Você está na página 1de 12

O futuro das megacidades:

dualidade entre o poder e a pobreza


Milton Santos

Nota introdutória

Em outubro de 1995, aconteceu em São O professor Milton Santos foi o pales-


Paulo o seminário internacional “O Futuro trante principal da sessão de debates sobre
das Megacidades”, promovido pela Compa- a dualidade entre poder e pobreza, além de
nhia Souza Cruz, integrando a linha insti- ter debatido nas demais sessões. As trans-
tucional do projeto Desafios Brasileiros. O crições dessa participação permaneceram
seminário contou com a presença de pesqui- inéditas. Considerando a importância de ca-
sadores e gestores urbanos nacionais e in- da fala, de cada linha escrita, de cada posi-
ternacionais e foi organizado em sessões de cionamento de autoria do professor Milton
debates que trataram de dualidades: poder Santos, recebidos como preciosidades quan-
e pobreza, prover e operar, geoeconomia e do tornados públicos, os Cadernos Metrópo-
geopolítica. A síntese de seus resultados, ou les têm o privilégio de resgatar e divulgar
a “Carta de São Paulo”, foi encaminhada co- a palestra e os debates dessa sessão. Nesse
mo contribuição às atividades preparatórias resgate, foram mantidas na íntegra as falas
à II Conferência das Nações Unidas sobre do professor Milton Santos, conforme as
Assentamentos Humanos, Habitat II, reali- transcrições, e sintetizadas as participações
zada em 1996. dos debatedores.

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


milton santos

A palestra e a sessão Mundo buscava equivocadamente imitar o


Primeiro Mundo. E a pobreza aparece como
de debates a doença da civilização, produzida, dizem
alguns, com o processo econômico; dizem
Professor Milton Santos outros, pelo processo econômico, no qual,
ao que havia até então, se agregam o com-
A primeira coisa que vou tentar (não ponente consumo, o componente circula­
sei se vou conseguir) é definir a pobreza, já ção, o componente informação, que não
que essa palavra é usada de maneira muito eram presentes na fase anterior, e se es-
extensiva, como se o mundo não houvesse tabelece uma pobreza relativa. Relativa em
mudado. Ora, desde que a Segunda Guerra relação ao desejável, assim como em relação
terminou, refiro-me sobretudo aos países a outros. E aí começa a grande “farra” dos
de Terceiro Mundo, nós tivemos pelo menos índices de pobreza. As pessoas incumbidas
três tipos de pobreza diferentes e três defi- de estudar a pobreza se deleitavam com a
nições de pobreza. apresentação de índices. Os mais bem-aven-
Primeiro era uma pobreza acidental, turados corriam o mundo catando índices
residual. Freqüentemente estacional, inters- de pobreza para exibir, para sua promoção
ticial, uma pobreza sem vasos comunican- nas suas Faculdades.
tes. Uma pobreza vista como desadaptação Nesse período, que é o segundo da nos-
aos processos de mudanças ou inadaptação sa periodização, os governos se preocupa­
16 entre condições naturais e condições so- vam ainda com a pobreza, porque era feio
ciais. Nem a cidade, nem o território, nem ter pobres. Quantos de nós escondíamos dos
a própria sociedade urbana então eram visitantes as favelas e os sinais de pobreza?
movidos exclusiva ou majoritariamente por E as sociedades nacionais? Quando eu falo
driving forces, compreendidos pelo proces- em sociedades nacionais – e esta é uma pala-
so de racionalização. vra usada de maneira abusiva com freqüên­
Não vou dizer que vivíamos numa eco- cia –, nas lideranças políticas, econômicas e
nomia natural, mas o artificial era de algu- intelectuais, no papel dos intelectuais­ – e eu
ma maneira comandado pelo natural, o que vou insistir nisto –, refiro-me a algo muito
tem repercussões diferentes do oposto – importante quando se discute a questão da
repercussões do ponto de vista econômico, pobreza, pois eles estão implicados nessa
social e cultural. E a solução dos problemas busca de soluções, que nessa fase eram en-
era privada, local, freqüentemente assisten- tão vistas como soluções de Estado.
cialista; a pobreza sendo considerada como Talvez vocês se lembrem de Josué de
um acidente natural ou um acidente social. Castro, grande pernambucano, que desco-
Mas então podíamos falar dos pobres incluí­ briu ao mesmo tempo a fome e o consumo.
dos, porque havia uma preocupação moral Foi o primeiro especialista, evidentemente
em relação a eles. que tinha que ser um geógrafo, a descobrir
Depois vem uma outra fase, que coin- essa noção que iria revolucionar o entendi-
cide com a transição entre esse primeiro mento do processo histórico na metade do
momento e o atual, fase em que o Terceiro­ século XX.

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


o futuro das megacidades: dualidade entre o poder e a pobreza

A fome era localizada. Não era essa fo- níveis. São vasos comunicantes que temos
me generalizada que há hoje. E os pobres co- diante de nós hoje. E a pobreza é vista co-
meçaram a ser chamados de marginais. Eles mo algo racional. Quantas vezes ouvimos
não eram incluídos, eles não eram excluídos. no rádio ou na televisão e lemos nos jor-
Havia uma vergonha de se ter pobres, e os nais, os nossos homens públicos, com apoio
especialistas os chamavam de marginais, de tantos economistas – inclusive daqueles
com o protesto de alguns, que por isso mes- que são inteligentes, porque existem alguns
mo não eram escutados – porque aí começa inteligentes –, explicando a racionalidade da
o momento em que, para ser escutado, o in- pobreza para legitimá-Ia.
telectual tem que estar de acordo com quem A pobreza atual é o resultado necessá-
manda, de uma forma ou de outra. rio do presente processo da chamada glo-
Aí nós chegamos à fase atual, que é a balização, porque globalização todavia não
da pobreza estrutural-globalizada. Fase na existe. Não existe senão como fábula e como
qual há uma produção globalizada da po- perversidade. Voltaremos a isto.
breza. Uma produção científica da pobreza, A pobreza é vista como algo racional,
com ajuda desses chamados intelectuais. no máximo vista como pobreza inerente às
De modo que a pobreza passa a ser dores do parto de um mundo prometido e
vista como também um resultado de um que não chega nunca. A pobreza é conside-
sistema de ação deliberado. Para retomar rada – como é nos nossos tempos e, des-
Weber, interpretado por Habermas e tam- graçadamente, também na academia – como
bém por muita gente mais, uma produção fenômeno natural, não importa o discurso. 17
voluntária da pobreza é uma decisão de criar Atenção, o discurso da academia tem que
a pobreza, resultado de um fenômeno que ser lido e relido hoje. Porque uma coisa é o
é novo e para o qual não se tem chamado discurso, outra coisa são as premissas con-
suficientemente a atenção. É a primeira vez ceituais que eles estabelecem. Não devemos
na História da humanidade que a divisão do nos equivocar com discursos que parecem
trabalho é administrada. Nos fios históricos generosos, mas que na realidade são cheios
anteriores, a divisão do trabalho existia, mas da pior perversidade, isto é, que, no fim, ex-
como resultado do livre “jogo do mercado”. cluem o seu uso, a sua utilização quando dos
Agora não. Agora a divisão do trabalho é estudos empíricos, por conseguinte, quando
administrada, produzida cientificamente, da possibilidade de aplicação prática.
imposta através dos meios de difusão do co- Ora, essa naturalização da pobreza que
nhecimento e das idéias e aceita de maneira estamos assistindo hoje, ela é politicamente
praticamente autoritária, numa fase em que produzida pelo governo global, porque há
tanto se fala em democracia como solução um governo global. Não podemos esconder
única para todos os povos. essa realidade. E há a colaboração conscien-
Isso cria uma pobreza pervasiva, ge- te de governos nacionais e há a colaboração
neralizada, permanente, global. E é isso dos intelectuais contratados para legitimar
que nos interessa hoje. Essa pobreza atual essa naturalização.
é resultado de um planejamento centraliza- E agora chegamos à fase da História na
do; da convergência de causas em diversos qual os pobres já não são incluídos, já não

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


milton santos

são marginais, eles são excluídos e, toda- porque o mundo se globalizou, há as redes,
via, não nos preocupamos suficientemente há todo um discurso semi-alfabetizado, mas
com eles, porque a pobreza é natural. É o com muito sucesso, que fala em rede, que
resultado de uma racionalidade que presi- fala em tecnologias, que enche a boca com
de à construção desse cachorro que busca as novidades tecnológicas para evitar exata-
morder a sua cauda, que é o mercado glo- mente o discurso, o discurso competente.
bal. Algo que se justifica a si próprio, cuja Todo esse discurso em que se baseia a
motivação é ele próprio, cuja finalidade globalização, tal como hoje ela se dá, como
não existe. Perguntem desse governo glo- uma fatalidade, vem como se jamais o mun-
bal, dos seus representantes nos governos do soubesse o que fazer com as técnicas.
nacionais. O que é o mercado global? Não Não faz parte da história do mundo, não faz
saberão defini-lo ou não poderão defini-lo, o parte da história das técnicas saber o que se
que vem dar no mesmo quando não se quer pode fazer delas. As técnicas somente o são
estabelecer um diálogo. enquanto sociotécnicas, isto é, não há téc-
Ora, assim como o território de cada nicas que comandem sozinhas o processo.
país é hoje o território nacional da economia Então, o fundamental, e talvez cheguemos
internacional, a pobreza hoje é a pobreza até lá, é vermos como essas chamadas tec-
nacional da ordem internacional. Houve uma nologias do presente estão construindo um
pergunta aqui que abriu o debate: a rela- mundo de excluídos, que comporta desde as
ção entre uma política neoliberal, no plano pessoas até as empresas excluídas, as insti-
18 nacional, e a possibilidade de uma política tuições excluídas. E que produzem, como ja-
social, no plano municipal. E aqui, atenção, mais, milhões de pobres tranqüilamente. Há
porque a palavra política pública aparece que se insistir nisso: que parece como uma
agora na boca de centenas dos chamados fatalidade, como se se estivesse voltando
experts. Isso não é política social. Uma coisa àquela teoria que foi vigente nos anos 60,
é política social, outra coisa é política pú- 70, do technological fics, discutida até então,
blica. Política pública são fragmentações, e agora não se fala mais nessa palavra. Mas
apresentação de pedacinhos de soluções que o que nós estamos assistindo é exatamente
fazem efeito diante das câmaras e que dão um regresso vergonhoso, por isso silencio-
a impressão de que quem recebe os resul- so, a essa ótica do technological fics, que de-
tados dessa coisa está sendo atendido. Mas liciava os cientistas em suas Faculdades e os
essas fragmentações são exatamente para seus debates destinados às suas promoções.
escapar à política social, que se entende no Mas, ao mesmo tempo, essa globalização,
bojo de uma política, isto é, de um projeto tal como se dá hoje, ela consagra a morte da
de nação. esperança, a morte da generosidade. A par-
Ora, o que acontece é que raro é o tir do momento em que o ponto de partida
país­ hoje que tem um projeto de nação, é fechado, esse technological fics.
que pressupõe um elenco coerente com as Por exemplo, a palavra flexibiliza-
demais políticas. Não há mais possibilidade ção, pode haver uma pior chantagem se-
de apresentar esse projeto, e eu sei que se mântica? Onde é que está a flexibilização?
diz que não vale a pena. Não vale a pena Nunca o mundo foi tão pouco flexível; tão

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


o futuro das megacidades: dualidade entre o poder e a pobreza

rigidamente­ comandado na sua atividade pouco.­Eu creio que a gente pode usar a pa-
econômica e política. Fala-se em desregu- lavra, com todo cuidado, isto é, a metrópo-
lação, mas essa desregulação é produzida le global, aquela que participa diretamente
por normas. Então as palavras têm que ser ou como “relé” na produção dos fluxos, que
utilizadas com extremo cuidado, e a leitura tenha uma visão global e que, por conse-
dos autores tem que ser feita com cuidado guinte, participe da produção do mercado
ainda maior. global, etc.
A ignorância é fundamental. O mundo Mas, se eu não considerar a questão
de hoje cria, cada dia, novos ignorantes e es- nacional e a questão local, eu não vou mais
sa é que é a beleza do mundo de hoje. Por- além de ser aquele que estuda a cidade para
que é essa ignorância, bendita, que permite entregar a um número limitado de atores.
a vontade de descobrir. Como na cidade, o Ora, o encantamento atual com as técnicas
que é bendito hoje é ter pobres, porque só de ponta! É até feio dizer que não se sabe
os pobres podem descobrir. Os pobres, os usar (como é que chama essa coisa?) o cor-
migrantes. Os ricos e os bem-dotados, ceva- reio eletrônico, que enche as faculdades do
dos no seu conforto, acostumados às idéias lixo bibliográfico, porque uma das grandes
que mantêm esse conforto, não podem pen- utilizações do correio eletrônico é trazer
sar, porque pensar é mudar. aquelas montanhas de bibliografias inutili-
Mas voltemos ao nosso esquema. Tudo záveis, às vezes totalmente inúteis.
isso conduz ao reino da necessidade, então E a negligência com o fator territorial?
não tem jeito. Entre as coisas sobre as quais Eu esqueci de dizer que eu sou um­ 19
a gente também tem que tomar cuidado, fa- geó­­grafo, por conseguinte, eu me preocupo­
lando da tal cidade e da pobreza na cidade, com território. E acredito que nesta fase
está a questão da cidade global. Que história atual da vida no mundo, o território passou
é essa? a ser algo extraordinariamente fundamen-
Cidade global – a questão da cidade tal, exatamente por isso, porque as ações
global comporta duas visões: a visão dos dos homens se tornaram extremamente
que querem que todas fiquem globais, quer necessitadas de uma intencionalidade preci-
dizer, que se preparem as cidades para que sa. Quanto mais precisa a intencionalidade,
elas atendam aos reclamos de algumas em- a intenção e a possibilidade de transformar
presas (quanto menor o número, melhor) a intenção em fato, tanto maior a produti-
e de alguns atores (quanto menos numero- vidade. Mas, para isso, é preciso que os lu-
sos, melhor); a outra visão vai ver que não gares sejam dotados dos objetos suscetíveis
há cidade global que não seja cidade nacio- de atribuir a essa intenção a factibilidade
nal e local, sobretudo no Terceiro Mundo. que promove a rentabilidade, a produtivi-
Porque só as cidades nacionais, já antes na- dade, a competitividade – esse conjunto de
cionais, puderam se tornar cidades globais. palavrões que é pronunciado mesmo dian-
Só as cidades antes industriais puderam se te da nossa senhora mãe, e que devia ser
tornar cidades de serviços, que é o caso de proibido.
São Paulo. De tal maneira que continuar fa- Ora, esse fator territorial, o fato de ele
lando impunemente em metrópole global é ser negligenciado, nos conduz exatamente­

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


milton santos

ao oposto do que a gente queria fazer. Essa é a chave, creio, da discussão da


Como­ é que eu trato a cidade sem consi- pobreza. Por quê? Porque a cidade é de
derar que aquilo é um território? Uma boa onde, de um lado, as indústrias fogem (e
parte dos enfoques da pobreza urbana sim- fogem porque podem se instalar em outra
plesmente negligencia o território, quando parte, conduzindo os empregos), de outro
o território é certamente um dos elementos lado, as cidades recriam a sua economia e se
fundamentais do entendimento da pobreza tornam mais fortes, como é o caso de São
e do entendimento da economia urbana. O Paulo. A partir do fato de ser uma metrópo-
que é, qual é o produto metropolitano da le informacional, mas que concentra os em-
globalização? Esse produto é o que eu cha- pregos diretivos, em um número reduzido
maria “involução metropolitana”. A involu- de pessoas, abre-se um vasto campo para
ção metropolitana é um fenômeno paralelo uma enorme quantidade de emprego que se
à globalização, é uma filha da globalização. situa exatamente nas partes envelhecidas das
Não se trata da involução urbana de que cidades. Se a cidade fosse toda ela nova, não
falaram os nossos colegas McGee e Arms- haveria lugar para os pobres. Só há porque
trong, nos anos 60. Não se trata de rurali- ela se tornou envelhecida e, por conseguin-
zação da cidade, porque não é mais questão te, não utilizável pelas atividades hegemôni-
de rurais na cidade, como se falava há trinta cas. São as atividades não-hegemônicas ou
anos atrás. hegemonizadas que vão se instalar nessa
O que se dá hoje com a produção do parte velha, ou melhor, envelhecida. Não di-
20 que estou chamando de “meio técnico, cien- go velha, mas envelhecida.
tífico e informacional” é a ocupação perifé- Se bem que esse envelhecimento é mo-
rica do território, as possibilidades novas de ral. Se bem que ele depende da política, não
instalação de uma fazenda moderna disper- da técnica. O que envelhece a cidade não é a
sa, de uma indústria dispersa, da fábrica dis- técnica, é a política, isto é, a maneira como a
persa; e a chamada desindustrialização, isto cidade é utilizada. E essa utilização da cidade
é, as indústrias que deixam a cidade porque não depende apenas da globalização, porque
a cidade é materialmente velha. Nesse pe- a globalização só entra nos países pela mão
ríodo, as cidades envelhecem muito mais dos governos nacionais. Nunca o Estado foi
depressa, exatamente porque a tecnologia tão necessário para realizar a divisão inter-
não se cansa de criar novas soluções. E no nacional do trabalho como hoje, porque os
mundo da competitividade, a morte social vetores fundamentais da globalização não
das formas materiais e sociais se precipita têm forma de se exercer plenamente, exceto
com uma velocidade nunca alcançada; isto pela informação e se o Estado lhe abre as
é, as cidades se tornam envelhecidas com portas – através de acordos freqüentemente
muita rapidez, a tal ponto que se pode dizer espúrios, realizados fora do país, mas que
que hoje o terreno de eleição para difusão têm repercussões dentro do país, entre elas
do grande capital não é a cidade, é o campo. a produção da pobreza. Isso também é váli-
O campo, por conseguinte, torna-se o lugar do para o Primeiro Mundo.
da racionalidade. E as cidades não aceitam Todos os tipos de capital podem se ins-
completamente a racionalidade. talar na cidade. Todos os tipos de trabalho

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


o futuro das megacidades: dualidade entre o poder e a pobreza

também se instalam na cidade. E é por isso a informação­ é que vem de cima pra baixo.
que a cidade resiste à globalização. O campo A informação, ela transporta os vetores da
não pode resistir. A cidade não tem outra racionalidade, do pragmatismo, ela exclui
forma, não tem outro remédio, se não o de a emoção e, por conseguinte, ela retarda a
resistir à globalização. E aí vale a pena até produção das idéias; enquanto que a comu-
agradecer aos generais, que governaram, nicação resulta das temporalidades diversas,
porque a produção de pobres que eles co- múltiplas, que marcam a existência de cada
meçaram tornou-se um dado fundamental um de nós. Quanto mais diversas as tem-
dessa descoberta possível do futuro na cida- poralidades práticas dos indivíduos, quanto
de, isto é, a presença de imigrantes. mais diferentes eles forem, tanto maior a
O imigrante não tem hábitos, ele traz riqueza da produção de idéias sobre a vida
hábitos que não se adaptam à realidade. num lugar.
Ele é obrigado a pensar, e nós outros que Ora, e aí há uma enorme vantagem pa-
somos velhos moradores urbanos estamos ra a cidade de Terceiro Mundo em relação
acostumados à cidade; por conseguinte, o à cidade de Primeiro Mundo. Por várias ra-
nosso pensamento sobre eIa é freqüente- zões. Uma dessas razões é que as distâncias
mente pobre. entre as pessoas é muito maior, em toda na-
Não sei se o IBGE já decidiu suprimir tureza, a distância econômica e, sobretudo,
aquela classificação, curiosíssima, dos imi- a distância cultural, que vem da impossibi-
grantes que tinham mais de dez anos, dos lidade de ser moderno. Essa impossibilida-
imigrantes que tinham menos de dez anos, de de ser moderno constitui um trunfo na 21
como se fossem estúpidos. Porque imigrante produção do desconhecimento orientado ao
era estúpido... Não! O imigrante, o pobre, é futuro.
que descobre a cidade, porque ele é obriga- Para terminar... (eu não posso mais
do a conviver com ela segundo normas que desenvolver essa idéia porque o meu tempo
estabelecem todos os dias. Enquanto que se esgota), mas eu tenho que dizer uma coi-
nós outros, das classes médias, das classes sa: é um equívoco querer definir um mundo
abastadas, estabelecemos normas perma- a partir do princípio da realidade. Esse equí-
nentes, que começam inclusive na maneira voco, ele sempre existiu, e vou explicar por
como nossos bairros são organizados. que. O mundo se define como realidade e
Então, o que eu queria dizer é: se, de possibilidade. Se eu não vejo o mundo co-
um lado, nós temos esse autoritarismo da mo realidade e como possibilidade ao mes-
globalização, essa indecisão de governos mo tempo, eu não estou me libertando do
centrais de instalar uma democracia no reino da necessidade. O reino da liberdade
país, essa não-aceitação do debate, que é só é possível quando eu juntar a definição
próprio do homem político, de um país on- das duas coisas. Isso é muito mais necessá-
de é muito rala a vontade de produzir um rio hoje porque chegamos ao primeiro mo-
projeto nacional, a sorte é que haja pobres. mento da história da civilização técnica no
Sorte nossa, de todos nós. Num mundo on- qual as técnicas podem ser outra coisa além
de a informação pode se tornar comunica- de dominadores do homem. No primeiro
ção: a comunicação vem de baixo pra cima, momento, por enquanto, não são, porque

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


milton santos

a organização para a qual elas estão traba- Parece-me que é fundamental, se nós que-
lhando não permite. Mas elas estão aí para remos construir um sistema de pensamento
permitir,­ para ensejar essa possibilidade, que seja suscetível de se tornar um sistema
uma libertação do homem. de ação.
Um exemplo: a indústria aeronáutica. Eu peço desculpas por já ter passado
Na indústria aeronáutica, todos são arte- um minuto do tempo que me foi dado, e fi-
sãos. Quer dizer, a relação do homem com a co à disposição para perguntas.
máquina, do piloto com o avião, ou do indi-
víduo que está na torre de comando, é uma
relação direta com a máquina que ele coman-
da, no momento preciso. Muito diferente do Debates
que acontecia no mundo industrial. Só que
para realizar, num país de pobres, para tor- Nos debates, foram ressaltadas a proprie-
nar factíveis as enormes possibilidades que dade da abordagem, a precisão da análise
o mundo oferece, o melhor lugar é a cidade, e a validade dos questionamentos quanto à
porque nela todos estão juntos. E o fato de perversidade da globalização. Mais que per-
estarem juntos cria um novo patamar, quer guntas, os debatedores firmaram posições,
dizer, uma transformação quase ideológica algumas das quais foram respondidas ou
do homem urbano, a partir dessas situações criticadas posteriormente pelo palestrante.
de cara a cara, dessa convivialidade força- Retorna-se, então, a palavra ao pales-
22 da, e que é produtora de conflitos, mas que trante, em seus comentários aos debatedo-
obriga a uma discussão cotidiana a respeito res, buscando resgatar a fala destes, às quais
do que é presente e do que é futuro. É a uti- o Professor Milton Santos faz referência.
lização das possibilidades existentes que nós
temos que conhecer para poder fazer delas Professor Milton Santos
outra coisa, para torná-las factíveis. E antes
de torná-las factíveis, é preciso produzir as Bom, eu peço mais do que dez minutos,
idéias. porque do contrário não posso responder.
É um equívoco fazer o que se está fa- Começo dizendo o seguinte: a luz me alum-
zendo hoje. Essa condenação de idéias, que brou. Essa é a palavra que nós usamos no
são praticamente proibidas. Há praticamen- Nordeste. Eu tenho medo de que tenha tam-
te uma proibição de pensar, neste mundo bém queimado meu cérebro [risos]. Porque
de hoje. Há um pensamento subordinado, eu não entendi certas questões. Nas minhas
e temos que romper com essa suposta exi- viagens pela América Latina, só no México
gência dos que comandam o mundo. Ora, pediram para eu traduzir. Tenho a impres-
a primeira coisa é pensar, repensar a me- são de que o Mário Kriegger não entendeu
trópole, repensá-la a partir do mundo como o meu português. E eu tenho medo de não
ele é, do mundo como ele pode ser, como ter entendido seu espanhol. Então, a minha
ele poderá ser, como ele será. Há rebeldia intervenção pode padecer dessa coisa.
da metrópole em aceitar a globalização, e se Eu não disse em nenhum momento que
mostra em 40, 60, 20 mil casos concretos. o Estado era forte. Seria uma estupidez. Eu

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


o futuro das megacidades: dualidade entre o poder e a pobreza

não posso ser acusado de tal estupidez. O Prazer em revê-lo, Jordi Borja. É mui-
que eu disse é que ele era necessário. E mos- to grato a um professor rever um antigo
trei por que. E ele é, sobretudo, necessário­ aluno, sobretudo quando ele chega aos pá-
porque é o produtor da geografia do mun- ramos que alcançou, mas, sobretudo, por-
do contemporâneo. Quer dizer, o mercado que ele trouxe um dado fundamental para o
deixa ao Estado ainda a produção da geo- nosso debate. Quando falava lá na Sorbone,
grafia – o Estado ou o que está por cima do quando você era aluno, estávamos cansa-
Estado. dos: vamos introduzir no estudo da cidade
No caso, por exemplo, da reorganiza- outros parâmetros, que não o economicis-
ção territorial da Espanha e de Portugal, em mo. O economicismo leva a dois impasses.
grande medida financiada por um governo O primeiro impasse é o da subserviência ao
supranacional, essa questão da renda mé- mandamento técnico. Isto é, a imposição ao
dia, eu acho que a gente deveria analisar. reino da necessidade. E o segundo é que o
Se a gente toma como ponto de partida o economicismo acaba por dar um sério valor
espaço, o território, com a carga de ciência, aos números e às séries estatísticas. Ora, eu
tecnologia que é própria do território mo- não sei o que fazer com as séries estatísti-
dernizado, na Argentina, no Brasil, na Ve- cas. O que é que eu faço? O que eu faço com
nezuela, na Colômbia, no México, para não as séries estatísticas é enfeitar o meu texto.
falar de outros países, a renda média maior Quando eu sugeri três momentos da
não está na grande cidade e não pode estar. produção da pobreza, é para mostrar que
Porque as cidades que são criadas a partir não se pode comparar um com o outro. 23
da modernização agrícola têm uma deman- Por conseguinte, dizer agora que tem gente
da de classe média. Se a gente estudar o que menos pobre do que antes, o que é que eu
se passa nesses países todos, que foi o que estou dizendo? Nada! Mas estou enfeitando
eu fiz, a gente vê que há uma atração maior com uma série estatística, que parece legiti-
dos pobres pelas grandes cidades, enquanto mar o meu dito, quando na realidade aque-
que as classes médias, letradas, não estou le mesmo número tem um valor diferente
dizendo cultas, vão à cidade média do inte- em cada momento histórico. Esse momento
rior, como exigência da globalização. Exata- histórico tem que ver com as formas possí-
mente! Eles vêm da globalização, que exige veis dessa co-presença, dessa convivialidade,
que se gaste mais dinheiro ainda com as dessa produção do vertical e do horizontal.
universidades. Quando se fala nas elevadas Eu acho que é por aí que a gente deve-
proporções de gastos com a Universidade, ria reexaminar a questão do território. O que
faz-se o uso indevido das estatísticas. Por- é o setor vertical, portador do pragmático,
que o que se devia dizer é que no Brasil não portador do vetor da modernidade, porta-
se pagam impostos. Então fica muito eleva- dor da ordem cuja obediência é indispen-
do o percentual de recursos que se destina sável; e o horizontal, que é o indivíduo no
à Universidade. Mas como é que nós vamos seu tamanho, na sua grandeza, na sua força,
construir um país sem um ente capaz de na sua capacidade de futuro, junto com ou-
pensar, de escolher realmente entre circuns- tros, produzindo com isso o que Jordi Borja
tâncias cuja apreciação é difícil? acaba de falar. Que, sobretudo, é possível,

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


milton santos

através de coisas que não tinham o mesmo palavra. Porque ela leva a um tratamento
valor no período histórico anterior, como a adjetivo da realidade. Eu prefiro um subs-
imagem, que tem esse poder agregativo.­ A tantivo, eu quero tratar a pós-modernidade
produção da nova Barcelona é a produção de como um período histórico, que eu tenho
uma imagem que tem um papel econômico que ver como um sistema temporal, isto é,
fundamental, como tem sobre as pequenas onde um certo número de ações, em siste-
e grandes cidades, como tem neste período ma, podem dar-se sobre um certo número
da globalização, e que pode ser explorado de objetos que também existem em sistema.
do ponto de vista do planejamento. Como Tenho que estudar, se eu quero conhecer a
vocês fizeram, criando a imagem, evidente- totalidade da questão. Se não, eu vou ficar
mente que não só a imagem, produzindo os trabalhando com pedacinhos e elogiando os
objetos técnicos indispensáveis à realização, autores desses pedacinhos. Não me interes-
de um lado, do que é vertical, mas, do outro sa isso.
lado, do que é horizontal, a cultura. Por- Ora, a dra. Janice não está aqui para ou-
que, chegando a Barcelona, cada qual sabe vir a resposta. Também não vou dar. Eu vou
quanto vai pagar por aquela distribuição de deixar, e ela vai ter que ler os meus livros
cultura, que o Jordi Borja ampliou na cidade agora, e está terminado. Muito obrigado!
quando ajudava a dirigi-Ia.
Eu vou me referir a Cândido Malta. Eu
apreciei também as sugestões do meu cole-
24 ga, amigo e companheiro por vários lugares, Palavras finais
o Cândido Malta. O tempo é curto, eu vou
ser respeitoso da vontade de almoço que Num mundo onde tudo é complexo, cada
parece ser dominante. Só tem um problema vez que eu busco simplificar, e decido ex-
que, aliás, me foi causado pelo Dr. Krieger. primir pela simplificação, estou falhando
Olha, os mercados regionais, eles conduzem no meu dever de explicar o detalhe, dizia
a aumentar a globalização. Então, eles não Cândido. Não sei se ele disse essa palavra,
são solução para a globalização. Eles são um que eu penso que foi dita também por vá-
instrumento. Eles fazem parte do processo. rios poetas, inclusive Schiller. A partir de
Então temos que ir para outro lugar. Isso é minha idade, a gente pode ser um pouqui-
uma coisa. A outra coisa é, quando o Malta nho pedante. Então, Deus é o detalhe, e sem
fala do aspecto positivo do neoliberalismo, detalhe o pensamento não é explicitado de
eu vou redargüir perguntando se não é um maneira a ser eficaz.
sistema. É um sistema, é um sistema que A produção e reprodução das metáfo-
fun­c iona. Então eu prefiro trabalhar com ras que nós ouvimos, a quantidade de me-
um sistema, em vez de trabalhar com a sua táforas em todas as reuniões a que vamos
ma­nifestação. são embelezadoras do texto, mas não são
E essa resposta é válida para Janice, instrutivas, não têm eficácia política.
que parte de premissa filosófica, que é exa- A eficácia política da idéia é o fato de
tamente a que eu não quero utilizar. A pós- que ela é representativa do real e pode ser
modernidade é uma grande palavra, uma vã utilizada para rever o real, porque o real

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008


o futuro das megacidades: dualidade entre o poder e a pobreza

não existe, o que existe é a minha idéia, e é idéia, ele não vai fazer acordo para assinar
a minha idéia que formula o real. manifestos. Ele tem que ficar sozinho mes-
Reuniões como esta me ensinam que a mo, que é a minha posição irrecorrível.
grande virtude do intelectual é saber estar Dito isso, eu só posso agradecer por ter
só. É a única coisa que nos cabe. Pouco im- estado aqui. Porque ouvi tanta coisa interes-
porta o aplauso, aliás, o aplauso é freqüen- sante, tantas experiências ilustres, aprendi
temente perigoso. Ficar só é a forma de tanto, e creio ter aprendido a escrever, em-
ganhar a força, de se manter íntegro e de bora não o tenha feito ainda. Prometo fazê-
multiplicar o esforço para entender. lo, que é o meu dever. A nação já gastou
Sei que a mídia pode ser interessante, muito para me formar, então eu penso que
porque o alimento do homem de faculda- o pagamento dessa dívida só pode ser fei-
de – não estou falando do intelectual – é a to assim. E agradeço aos que organizaram
citação, é a reprodução do que ele escreve esta reunião, porque permitiram o cotejo
ou diz. Mas esse warning é indispensável. de idéias tão interessantes e que podem ser
E é por isso que o intelectual também não férteis, e é o que eu sinceramente desejo
assina manifestos. O intelectual tem a sua que elas sejam.

25

cadernos metrópole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008

Você também pode gostar