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Num segundo momento, a pobreza é identificada como uma doença da civilização, cuja
produção acompanha o próprio processo econômico. Agora, o consumo se impõe como um
dado importante, pois constitui o centro da explicação das diferenças e da percepção das
situações. Dois fatores jogam um papel fundamental. Ampliam-se, de um lado, as
possibilidades de circulação, e de outro, graças às formas modernas de difusão das inovações,
a informação constitui um dado revolucionário nas relações sociais. O radiotransistor era o
grande símbolo. A ampliação do consumo ganha, assim, as condições materiais e psicológicas
necessárias, dando à pobreza novos conteúdos e novas definições. Além da pobreza absoluta,
cria-se e recria-se incessantemente uma pobreza relativa, que leva a classificar os indivíduos
pela sua capacidade de consumir, e pela forma como o fazem. O estabelecimento de “índices”
de pobreza e miséria utiliza esses componentes. Ainda nesse segundo momento, que coincide
com a generalização e o sucesso da idéia de subdesenvolvimento e das teorias destinadas a
combatê-lo, os pobres eram chamados de marginais. Para superar tal situação, considerada
indesejável, torna-se, também, generalizada a preocupação dos governos e das sociedades
nacionais, por meio de suas elites intelectuais e políticas, com o fenômeno da pobreza, o que
leva a uma busca de soluções de Estado para esse problema, considerado grave mas não
insolúvel. O êxito do estado do bem-estar em tantos países da Europa ocidental e a notícia das
preocupações dos países socialistas para com a população em geral funcionavam com
inspiração aos países pobres, todos comprometidos, ao menos ideologicamente, com a luta
contra a pobreza e suas manifestações, ainda que não lhes fosse possível alcançar a realização
do estado de bem-estar. Mesmo em países como o nosso, o poder público é forçado a
encontrar fórmulas, saídas, arremedos de solução. Havia uma certa vergonha de não enfrentar
a questão.
O último período, no qual nos encontramos, revela uma pobreza de novo tipo, uma pobreza
estrutural globalizada, resultante de um sistema de ação deliberada. Examinando o processo
pelo qual o desemprego é gerado e a remuneração do emprego se torna cada vez pior, ao
mesmo tempo em que o poder público se retira das tarefas de proteção social, é lícito
considerar que a atual divisão “administrativa” do trabalho e a ausência deliberada do Estado
de sua missão social de regulação estejam contribuindo para uma produção científica,
globalizada e voluntária da pobreza. Agora, ao contrário das duas fases anteriores, trata-se de
uma pobreza pervasiva, generalizada, permanente, global. Pode-se, de algum modo, admitir a
existência de algo como um planejamento centralizado da pobreza atual: ainda que seus
autores sejam muitos, o seu motor essencial é o 35 mesmo dos outros processos definidores
de nossa época. A pobreza atual resulta da convergência de causas que se dão em diversos
níveis, existindo como vasos comunicantes e como algo racional, um resultado necessário do
presente processo, um fenômeno inevitável, considerado até mesmo um fato natural.
Alcançamos, assim, uma espécie de naturalização da pobreza, que seria politicamente
produzida pelos atores globais com a colaboração consciente dos governos nacionais e,
contrariamente às situações precedentes, com a convivência de intelectuais contratados – ou
apenas contratados – para legitimar essa naturalização. Nessa última fase, os pobres não são
incluídos nem marginais, eles são excluídos. A divisão do trabalho era, até recentemente, algo
mais ou menos espontâneo. Agora não. Hoje, ela obedece a cânones científicos – por isso a
consideramos uma divisão do trabalho administrada – e é movida por um mecanismos que traz
consigo a produção das dívidas sociais e a disseminação da pobreza numa escala global. Saímos
de uma pobreza para entrar em outra. Deixa-se de ser pobre em um lugar para ser pobre em
outro. Nas condições atuais, é uma pobreza quase sem remédio, trazida não apenas pela
expansão do desemprego, como, também, pela redução do valor do trabalho. É o caso, por
exemplo, dos Estados Unidos, apresentado como o país que tem resolvido um pouco menos
mal a questão do desemprego, mas onde o valor médio do salário caiu. E essa queda do
desemprego não atinge igualmente toda a população, porque os negros continuam sem
emprego, em proporção talvez pior do que antes, e as populações de origem latina se
encontram na base da escala salarial. Essa produção maciça da pobreza aparece como um
fenômeno banal. Uma das grande diferenças do ponto de vista ético é que a pobreza de agora
surge, impõe-se e explica-se como algo natural e inevitável. Mas é uma pobreza produzida
politicamente pelas empresas e instituições globais. Estas, de um lado, pagam para criar
soluções localizadas, parcializadas, segmentadas, como é o caso do Banco Mundial, que, em
diferentes partes do mundo, financia programas de atenção aos pobres, querendo passar a
impressão de se interessar pelos desvalidos, quando, estruturalmente, é o grande produtor da
pobreza. Acatam-se, funcionalmente, manifestações da pobreza, enquanto estruturalmente se
cria a pobreza ao nível do mundo. E isso se dá com a colaboração passiva ou ativa dos governos
nacionais. Vejam, então, a diferença entre o uso da palavra pobreza e da expressão dívida
social nesses cinqüenta anos. Os pobres, isto é, aqueles que são o objeto da dívida social,
foram já incluídos e, depois, marginalizados, e acabam por ser o que hoje são, isto é, excluídos.
Esta exclusão atual, com a produção de dívidas sociais, obedece a um processo racional, uma
racionalidade sem razão, mas que comanda as ações hegemônicas e arrasta as demais ações.
Os excluídos são o fruto dessa racionalidade. Por aí se vê que a questão capital é o
entendimento do nosso tempo, sem o qual será impossível construir o discurso da liberação.
Este, desde que seja simples e veraz, poderá ser a base intelectual da política. E isso é central
no mundo de hoje, um mundo no qual nada de importante se faz sem discurso.