Você está na página 1de 33

Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Marcio Sotelo Felippe
Wilson Gomes

entrevista Lina Meruane

Dossiê Filosofia e macumba


Apresentação
A gira macumbística da filosofia
Batalha contra o desencanto: a encruza como chegada
Da necropolítica à ikupolítica
Drible e flecha de fulni-ô
Mulheres negras e a força matricomunitária

perfil Eliane Potiguara

colaboraram nesta edição


coluna

Resistência negra à necropolítica


BIANCA SANTANA

Colaboração. Ancestralidade. Circularidade. Partilha do axé (força de vida herdada e transmitida).


Oralidade. Transparência. Autocuidado. Solidariedade. Coletivismo. Memória. Reconhecimento e
respeito às diferenças. Horizontalidade. Amor. Valores da Coalizão Negra por Direitos, explicitados na
plataforma de princípios do grupo.
Em 28 de novembro de 2019, mais de cem representantes de entidades negras de todo o Brasil
passaram o dia sob uma tenda montada na quadra da Ocupação Nove de Julho, em São Paulo, discutindo
linha a linha do documento escrito de forma colaborativa pela internet, nas semanas anteriores. Chovia.
Fazia frio. Mas o povo não abriu mão de nenhum detalhe, das 9 da manhã às 10 da noite, com menos de
duas horas de pausa para o almoço.
A alegria do reencontro com velhas companheiras e companheiros coexistia com o luto e a
indignação pelo brutal assassinato de Seu Vermelho, liderança do Quilombo Rio dos Macacos, na região
metropolitana de Salvador, de onde viriam duas militantes para o Encontro da Coalizão. Três dias antes
do início de nossa atividade, Seu Vermelho, 89 anos, foi morto a machadadas na sala de sua casa. Há 50
anos ele participava da luta para proteger o direito de sua comunidade de viver nas terras preservadas por
seus ancestrais.
A Marinha tem uma guarita na entrada do quilombo, por manter uma vila naquele território e uma
Base Naval no entorno. Mas nenhum militar apareceu entre o momento em que o corpo foi encontrado e
a chegada da perícia no local, cerca de cinco horas depois. Um idoso foi assassinado em território
controlado pelas Forças Armadas do Estado brasileiro. E é a esse mesmo Estado — no mínimo, omisso
— que precisamos exigir a apuração do caso.
Entre 2016 e 2017, o número de assassinatos de quilombolas cresceu 350%. Depois de velarem Seu
Vermelho, moradoras e moradores de Rio dos Macacos têm sido torturados toda madrugada: pessoas
desconhecidas ficam caminhando sobre os telhados de suas casas. Ameaças constantes a quem exige
titulação das terras e acesso à água, já que a Marinha quer construir um muro para impedir o acesso à
única fonte da comunidade.
Demarcação dos territórios quilombolas, certificação, titulação, iluminação, saneamento, condições
de acesso ao quilombo, desenvolvimento sustentável e participativo são demandas pelas quais Seu
Vermelho viveu e, provavelmente, morreu. Direitos que a Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) exige do Estado brasileiro, articulada com outras
entidades do movimento negro das cidades e do campo.
Fortalecer a luta do movimento negro e nossas possibilidades de incidência política, nacional e
internacionalmente, é o objetivo central da Coalizão Negra por Direitos. Por solidariedade à família de
Seu Vermelho, à comunidade Rio dos Macacos e a todas as lideranças quilombolas do Brasil que têm
sido cada vez mais perseguidas, violentadas, exterminadas, trabalhamos, em 28 de novembro de 2019,
no documento que norteará nossa ação a partir de 2020. Em memória e reverência aos nossos mortos.
Pela urgência de garantir nossas vidas.
coluna

A nova manipulação
MARCIA TIBURI

Há uma velha questão que devemos levar a sério em tempos de decadência das ideias e triunfo da
ignorância: o ser humano é o que ele faz. A importância do ser relacionado ao fazer é o nexo que nos
cabe analisar. O ser que somos é um problema que ainda importa a muitas pessoas num contexto em que
se transformar em robô ou escravo voluntário dos poderes mais diversos não tem impacto algum na
inconsciência generalizada.
Ao refletir sobre o que somos como sendo o que fazemos, nós nos confrontamos com a alegria e a
dor, a promessa e o perigo da ação para nossa constituição.
Em termos de filosofia tradicional, trata-se do tema da “ontologia” como o estudo do ser. Já na
filosofia grega encontramos o tema do “conhecer-se a si mesmo” e do “tornar-se quem se é”, que
chegam até o pensamento contemporâneo. Por meio dessas questões, a ontologia já se inscreve como
tema da ética, na qual “o que somos” implica imediatamente a questão do que podemos ser. O que
podemos ser, ou seja, nossa potência de ser, é algo que nunca está dado. Isso depende do que fazemos e,
nesse caso, também do que fazemos com o ser que somos, com nosso corpo encarnado, um corpo que é
também linguagem e nos coloca no mundo como seres materiais e históricos, assim como seres
espirituais e sensíveis.
O que é a ação? É o que fazemos com nosso corpo e nossa linguagem. Atos são físicos, mas também
são linguísticos. Há atos que são gestos, há atos que são falas. Os próprios discursos que emitimos são
“atos de fala”, como demonstrou o filósofo inglês John Austin. Hoje, a internet vem modificando nossa
relação com o todo da nossa ação e, portanto, transformando o que “somos”. Se ficamos o dia todo
sentados diante de computadores, se portamos um celular que nos mantém conectados o dia todo, nossa
vida relaciona-se a esses fazeres. Nas palavras de Vilém Flusser, que escreveu Filosofia da caixa preta
no começo do anos 1980, somos “funcionários” de aparelhos. Em termos simples, somos pessoas que
funcionam conforme os aparelhos ou, em termos mais coloquiais, gente que dança conforme a música.
A servidão a um grande aparelho por trás dos pequenos aparelhos modificou nossa relação com a
existência. Nossas ações puramente analógicas estão cada vez mais raras, e a internet nos basta.
Dos muitos novos problemas relacionados ao que “somos enquanto fazemos”, está nossa servidão às
plataformas, inclusive às redes sociais. Não podemos dizer que as redes sociais manipulam,
simplesmente. Na verdade, elas definem os esquemas da ação e da linguagem, da comunicação e da
expressão e, inclusive, do que seria “pensamento”. Elas obrigam a procedimentos de interação e, por
isso, propiciam uma manipulação muito mais complexa e sofisticada. No lugar da passividade dos
manipulados, conta-se, agora, com a colaboração, o engajamento e o prazer das pessoas. Quem somos a
partir disso é uma pergunta que soa velha, mas que merece ser recapitulada.
coluna

O nome da besta
MARCIO SOTELO FELIPPE

Fevereiro de 1933. Göring, presidente do Reichstag, discursa. Em claro e bom tom, afirma que é preciso
acabar com a instabilidade do regime e que a atividade econômica exige calma e firmeza; termina
lembrando que vencer as eleições que se aproximam significa que não haverá novas eleições em dez
anos, ou mesmo nunca mais. Os ouvintes, em uma sala do Reichstag, assentem. Atendem por BASF,
Bayer, AGFA, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. Em seguida, Hitler fala por meia hora.
Sua pauta é direta: eliminar a ameaça comunista e extinguir os sindicatos. Para isso é preciso dinheiro. E
é o que não falta naquela sala. A cena está descrita em A ordem do dia, de Éric Vuillard.
Saber o que é fascismo é a questão mais importante desde os anos 1920, até hoje e até quando houver
capitalismo. Porque é a maior ameaça à civilização e a uma parte da humanidade. Ou perece o fascismo,
ou uma parte de nós perecerá. Mas qualquer busca em tudo que se escreveu ou falou sobre o conceito de
fascismo vai encontrar respostas diversas. O fenômeno é complexo. É fácil deslizar para uma enganosa
metonímia epistemológica, tomar a parte pelo todo e algumas características como definitivas: aspectos
culturais, psicológicos, sexuais, culto da tradição etc. Estão no fascismo, mas não são o fascismo.
Umberto Eco listou 14 características; algumas, afirmava, identificáveis no final do helenismo, como
o culto à tradição. Este e outros elementos do fascismo estão sempre presentes, mas ter a resposta certa
exige a pergunta certa. Se características do fascismo são historicamente identificáveis, em todos os
tempos, por que os regimes fascistas surgiram em um momento específico do século 20?
A resposta está no relato de Vuillard. Em pensadores que pesquisaram o fenômeno na ótica da luta de
classes, como o dirigente do Partido Comunista da Itália (PCI), Palmiro Togliatti. Um regime fascista,
agrupando características irracionais presentes em todas as sociedades e fazendo delas uma base social,
aparece no capitalismo sob a tensão da luta de classes, no momento em que a classe dominante se vê
ameaçada ou no momento em que um regime democrático se torna problema para o capital. O fascismo,
dizia Brecht, não é um desastre natural que pode ser entendido em termos de natureza humana. É
responsabilidade das “classes possuidoras para controlar o grande número de trabalhadores que não
possuem os meios de produção”.
As trevas de hoje têm circunstâncias e causas. Compreender a ameaça presente do fascismo e a razão
de termos um presidente fascista a partir de elementos como a facada, as fake news ou a manipulação
das redes sociais é como conhecer o oceano pela espuma das ondas. Essas são as circunstâncias.
Poderiam ser inócuas, como foram inócuos tantos que apareceram como figuras esdrúxulas ou fascistas.
A causa, o nome da besta, é capitalismo. Sem a orquestração das classes dominantes, o controle dos
meios de comunicação e a máquina do Judiciário, não teríamos um fascista na presidência nem
elementos do fascismo tão presentes. Enquanto houver capitalismo, lembrando mais uma vez Brecht, a
cadela do fascismo estará no cio. Enquanto houver capitalismo, a barbárie será uma possibilidade.
coluna

Gleichschaltung à brasileira: do nacional-socialismo ao bolsonarismo


WILSON GOMES

Foi inquietante quando o premiado diretor teatral e então secretário especial da Cultura do governo
federal, Roberto Alvim, em um vídeo-manifesto para lançar o Prêmio Nacional das Artes, a principal
política pública para o setor de arte e cultura do país, decidiu representar o papel de Joseph Goebbels, o
inesquecível ministro do Reich para o Esclarecimento do Povo e para a Propaganda.
O importante, contudo, é primeiramente que Alvim caiu, mas não exatamente pelas razões certas. E,
em segundo lugar, Alvim foi demitido, mas a ideia e o projeto que o sustentavam continuam intocados.
Curiosamente, um dos poucos a identificar o bicho pelo nome foi o ministro Gilmar Mendes, que
caracterizou a patacoada toda como “dirigismo autoritário nacionalista”. E é isso mesmo. Assim como
Goebbels encarnou a perseguição de Hitler a artistas e intelectuais e à arte praticada no país que não
dava sustentação à visão de mundo do nacional-socialismo, Alvim representou o ressentimento de
Bolsonaro com artistas e intelectuais brasileiros e deu azo à mágoa do bolsonarismo pela arte que se
realiza no país e que não se coaduna com a visão dos ultraconservadores do poder. As investidas de
Goebbels contra a “arte degenerada” (e o confisco, claro) tiveram seu correspondente brasileiro nas
denúncias à “arte que induz à pedofilia”, nos ataques cotidianos das matilhas digitais contra artistas e
intelectuais e até na política de ataque público, veto e censura a projetos artísticos em desacordo com a
visão de mundo da Nomenklatura do bolsonarismo. Goebbels chegou ao espetáculo das queimas
públicas de livros, e no Brasil não foram poucos os propositores recentes, no governo e no seu ciclo
próximo, de que os livros de Paulo Freire fossem incinerados em praça pública. Tudo isso é a pars
destruens do projeto nacional-socialista e do projeto bolsonarista, voltado para atacar, desacreditar,
desobstruir.
A parte construtiva do programa são coisas como o Prêmio Nacional das Artes, em que o
bolsonarismo compra no atacado, por 20 milhões, 5 óperas (a R$ 1,1 milhão cada), 25 espetáculos
teatrais, 25 exposições individuais de pintura e 25 de escultura, 25 contos inéditos, 25 CDs musicais
originais e 15 histórias em quadrinhos que encarnem o espírito da Nova Arte Brasileira, cujo manifesto
foi apresentado, não por acaso, usando palavras do próprio Goebbels. Tudo isso é para ontem, já que em
setembro deste ano, Mês do Renascimento da Arte Brasileira (sic!), a Secretaria Especial da Cultura
prevê organizar um grande evento no Brasil em que uma arte nova para o novo homem bolsonarista
nascerá com pompa, óperas e circunstâncias. Será nosso Festival de Bayreuth ou, mais grave ainda, será
a efetivação da Gleichschaltung à brasileira, a “sincronização”, o alinhamento de todos os setores
culturais e artísticos com a ideologia do bolsonarismo. Brasilien über alles não é o lema do governo?
entrevista Lina Meruane
De olhos bem abertos
DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES

Um dos símbolos da revolta chilena que já dura mais de três meses é a figura de um olho sangrando. Ela
aparece pintada nos muros da capital, Santiago, e também nos gritos dos milhares de manifestantes:
“Querem nos cegar!”. Em 2012, a escritora chilena Lina Meruane lançou o livro Sangue no olho (Cosac
Naify, 2015), com a história de uma mulher, também escritora, que vai perdendo a visão e tem de
reaprender a perceber o mundo no escuro.
Com ecos premonitórios, o romance recebeu prêmios importantes no México e na Alemanha, e
tornou a autora conhecida no mundo literário e no ringue das ideias. Combativa, ela tem se colocado
com força na oposição ao sistema neoliberal que governa o Chile há décadas. Também defendeu o
direito de não exercer a maternidade em Contra os filhos (Todavia, 2018), encarando com coragem a
controvérsia que se seguiu, e assumiu a identidade palestina no terreno árido do conflito em Israel, com o
livro de ensaio/viagem/memória Tornar-se Palestina (Relicário, 2019).
Meruane vive há cerca de 20 anos nos Estados Unidos, onde dá aulas híbridas de cultura, arte e
história latino-americanas na Universidade de Nova York. Filha de médicos, tem na doença – ou na
estigmatização das doenças – um tema recorrente, que desenvolve em clave de thriller. Sistema nervoso,
a ser lançado no Brasil neste mês de fevereiro pela Todavia, vai nessa linha – e além. Com maestria e
originalidade, ela combina relatos médicos e denúncia social, história política e poética do cosmo. São
cinco capítulos, cada qual passado num tempo, como se a narrativa estivesse filtrada pela teoria da
relatividade. Uma chilena que vive em Nova York, professora de astrofísica, sofre de hipocondria. Seu
marido, antropólogo forense, especializado em reconhecer os ossos de vítimas de governos opressores,
quase morre num atentado. Os pais e irmãos da professora moram no Chile e também se veem às voltas
com questões graves de saúde, sempre sob a sombra da memória dos tempos da ditadura. O livro é
poderoso, tanto nos fatos narrados, como na liberdade de estilo. Meruane falou com a Cult por Skype.
Sangue no olho se relaciona, ao menos indiretamente, com o momento atual. Parece até
premonitório, se considerarmos que um dos símbolos da revolta chilena é o olho sangrando,
atingido pelas balas “de los pacos asesinos”, os policiais que literalmente cegam manifestantes.
Estou justamente escrevendo um ensaio sobre a representação da visualidade em nossa cultura. O olho,
sobretudo na sociedade do espetáculo, representa o sentido do poder. Se pensarmos nos mitos gregos, há
duas figuras fundamentais sobre essa relação entre o olho e o poder. Tirésias é um vidente cego que tem
tanto poder que já não precisa dos olhos. Édipo, por sua vez, é um homem poderoso que não soube ver o
que acontecia ao seu redor e então arrancou os olhos, numa representação literal de sua impotência. Essa
questão entre olho e poder está muito presente hoje no Chile. A cidadania se empodera e os governantes
tentam cegá-la, não apenas de forma metafórica, mas também literal. É uma cena brutal, sangrenta. E
extremamente visível, ainda que a grande mídia não mostre.
As manifestações no Chile já duram mais de três meses. Muitas pessoas já encaram os gritos e
explosões como algo corriqueiro. Quais os riscos desse prolongamento?
Acho que essa manutenção da resistência tem a ver com o fato de que ao longo de dez ou vinte anos
todas as manifestações dos estudantes, dos trabalhadores e das mulheres não conseguiram transformar o
sistema. Todos protestavam por questões específicas, pontuais, mas não conseguiam atacar o fundo do
problema, que é a instalação do neoliberalismo nos anos da ditadura, e que está assegurada pela
Constituição de 1980. O sentimento agora é de que já nos ignoraram tantas vezes, em manifestações
mais breves, que vamos ficar nas ruas até que as coisas mudem. É um sentimento muito poderoso. “Não
são os 30 pesos do transporte público, mas 30 anos.” Ou seja, se aguentamos 30 anos de abuso
econômico, então podemos aguentar 3 meses, 30 meses, 30 anos nas ruas. E isso tem desesperado o
governo, pois ele não consegue combater essa resistência, não consegue satisfazer os manifestantes com
as poucas migalhas que oferece e não encontra líderes para prender ou acusar, pois não há líderes. O
poder está desconcertado, porque as fórmulas antigas já não servem. Nem mesmo a violência está
funcionando.
Como você vê o plebiscito de abril, pela mudança ou não da Constituição?
Poderemos finalmente questionar a estrutura fundamental do neoliberalismo no Chile, que é essa
Constituição de 1980, imposta de modo fraudulento sob a ditadura. Essa conquista é das ruas. A situação
está complicada porque, obviamente, os partidos de direita não querem essa mudança e estão fazendo
todo o possível para que o plebiscito não aconteça, já que a Constituição atual garante seus privilégios.
Há, inclusive, uma preocupação de que as grandes manifestações previstas para março possam servir de
argumento para que os governantes digam que não há condições de segurança para fazer um plebiscito.
A situação no momento é complexa e delicada.
Que mudanças na Constituição seriam essenciais, para você?
Não sou constitucionalista e a Constituição é um documento muito complexo. Mas acho que há duas
questões principais. Uma é assegurar que a cidadania esteja representada nessa mudança. Que estejam
representadas as mulheres em termos igualitários, que estejam representadas as pessoas independentes,
que não estão em conexão com os partidos políticos, e que estejam representados os povos indígenas,
que nunca tiveram voz nem voto para decisões de ampla magnitude. Outro grande assunto, que acho
fundamental, para além de questões mais específicas, é que essa nova Constituição não se baseie nos
valores do capitalismo, mas sim no pensamento de como podemos viver melhor todos juntos, ou seja,
que se baseie em valores solidários.
As manifestações se voltam em geral contra o neoliberalismo, mas há também vozes poderosas se
colocando contra o patriarcado e a violência doméstica. Penso na performance El violador eres tu,
que emocionou o mundo inteiro. Como você, que escreveu um livro radicalmente feminista já
bastante influente (Contra os filhos, lançado originalmente em 2014), vê essa nova geração de
manifestantes?
O movimento feminista no Chile sempre foi muito forte. As mulheres conquistaram o direito pleno de
votar na década de 1940. Sempre teve uma classe média numerosa no Chile e nela há muitas mulheres
conscientes de sua falta de direitos civis. Isso tudo foi acompanhado por um auge da literatura escrita por
mulheres. Esse movimento feminista se reativou com a discussão sobre o direito ao aborto e, em
coordenação com o movimento argentino, com o protesto sobre a vulnerabilidade do corpo das mulheres
em situações de violência doméstica e no espaço público, sem uma ação adequada do Estado e uma
educação adequada sobre a cultura patriarcal e misógina – o que tem tudo a ver com o projeto neoliberal.
É o movimento Ni Una A Menos, que coincide com o Me Too. Essa reativação se apresentou de maneira
espetacular, muito midiática. Em março do ano passado, a mobilização das mulheres foi tão grande que
se tornou a maior marcha da história da democracia no Chile. O que acontece é que, de cinco anos para
cá, as jovens chilenas deixaram de pensar na palavra feminismo como algo passadista e retomaram essa
grande história da consciência feminista chilena e latino-americana. E isso redundou na síntese atingida
pela performance que se espalhou pelo mundo.
Como você enxerga a ascensão da extrema direita no Brasil?
Não gosto de opinar sobre realidades que não conheço tão bem, mas minha impressão é de que estamos
vendo em muitos lugares que a crise do sistema neoliberal, com muita gente abandonada pelo Estado,
tem gerado a aparição de líderes populistas de direita que mobilizam o descontentamento para políticas
de grande violência. Foi o que se viu na Alemanha nazista. Não estou dizendo que é necessariamente
igual, mas que os discursos populistas vão convencendo as pessoas de que os imigrantes são inimigos, os
homossexuais são inimigos, os pobres são inimigos, dando essa ideia de que há muitos inimigos internos
e/ou externos. É o que pode estar acontecendo no Brasil.
Aliás, em Tornar-se Palestina (lançado originalmente em 2013) você conta sobre sua chegada a
Nova York, pouco antes do atentado ao World Trade Center, e de como se sentiu olhada como
inimiga.
Sim, eu era uma imigrante palestina e sudaca. A televisão mostrava os aviões surgindo, as torres caindo,
Arafat dizendo-se chocado e crianças palestinas celebrando algo que não estava claro o que era,
supostamente o atentado. Essa sequência era repetida várias vezes. Era a época da Segunda Intifada
palestina, e a televisão, antes de os terroristas assumirem o atentado, havia gerado uma campanha de
acusação aos palestinos. E aí percebi, pela primeira vez, que minha identidade semipalestina me
colocava em risco. Saía na rua e havia bandeiras norte-americanas nas casas, nos carros e até mesmo
envolvendo as pessoas. Fiquei com muito medo.
Sistema nervoso forma uma tetralogia da doença, com Fruta podrida (2007), Sangue no olho e
Viajes virales (2012), um ensaio sobre aids. De onde surgiu esse interesse?
Meus pais são médicos e são obcecados por casos clínicos, que sempre discutiam em casa. Eu ficava
fascinada, pois via nesses casos algo de detetivesco. Há uma série de pistas que o corpo expressa para
que se possa encontrar o assassino, que seria a doença. Essa linguagem me formou por conta também da
minha experiência como paciente, pois nasci com uma doença congênita. Quando fui aos Estados
Unidos fazer meu doutorado, deparei casualmente com uma série de livros sobre a aids que não usavam
a palavra aids. Fiquei muito incomodada com essa estigmatização. Li toda a literatura sobre doença que
encontrei – a ideia era que meu ensaio fosse algo bastante transversal. Mas, como sou escritora, passei a
querer escrever eu mesma um romance sobre doença. Então, ao mesmo tempo que fazia minha pesquisa,
fui juntando lembretes mentais para decidir como escreveria uma ficção com aqueles temas. De cara
decidi evitar ao máximo o uso de metáforas, pois, como Susan Sontag bem levantou, essas metáforas que
se aplicam aos doentes (e também à política) tendem a ser tóxicas, acabam jogando muita
responsabilidade sobre a pessoa doente, incriminando-a. Ao mesmo tempo, estava consciente de que as
metáforas são inevitáveis, pois são um recurso retórico que sempre usamos para nos expressar.
O curioso é que em Sistema nervoso há muitas metáforas, aproximando o corpo do cosmo, os ossos
encontrados pelo marido forense e os ossos quebrados do primogênito... É muito bonito, na
verdade.
Obrigada. Pensei nesses elementos menos como metáforas e mais como somatizações, nas quais o corpo
expressa uma angústia em forma de doença. A percepção é de que o corpo está em relação direta com
tudo o que o rodeia, e que toma para si a tarefa de resolver essas tensões. Sobretudo no caso do
primogênito, que é um personagem de quem eu gosto muito. Ele se quebra inteiro, literalmente, mas não
sabe lidar com suas quebras internas, e acaba sendo um irmão muito violento, castigador.
Você usou uma citação do físico Richard Feynman como epígrafe: “Um sistema não tem uma
única história, mas todas as histórias possíveis”. Tem muito a ver com opor-se a reducionismos
fáceis, mas também com os vários subtextos que se depreendem na leitura do livro. A morte da
mãe biológica, por exemplo, ou a própria origem da professora, está envolta em certa
ambiguidade.
Pensei mesmo na morte da mãe biológica como uma morte no parto, e por isso o irmão castiga a irmã e o
pai. Mas essa ideia de que uma mãe é tomada de seu filho tão precocemente sugere também uma
desaparição imprópria, como você nota bem. E a história dos personagens quando jovens coincide com o
momento da ditadura, com a violência da tortura e dos desaparecimentos (assim como no presente
coincide com a violência contra os imigrantes que tentam entrar nos Estados Unidos). Ou seja, a história
dessa família e seu ambiente doméstico não tem as portas viradas apenas para dentro, mas também para
fora, relacionando-se com a violência, a insegurança. É a incerteza que os rodeia que forma o cosmo em
que vivem.
No final de Sistema nervoso, o cenário é distópico, e no âmbito familiar o pai está morrendo. É
difícil não pensar no momento histórico do Chile.
É interessante, porque estou escrevendo um ensaio sobre a revolta chilena a partir de textos que foram
sendo escritos nos últimos 30 anos, em que essa crise era anunciada. Aliás, todo texto literário fala de
uma crise, se não a crise de um indivíduo, a de uma sociedade. Pontualmente, há muitos textos no Chile
que mostram um descontentamento com o sistema neoliberal e o abandono das políticas sociais. E me
interessa pensar nessa situação pela economia. Em Sistema nervoso a filha recebe dinheiro do pai para
fazer seu doutorado; ele depois se vê numa situação precária, num hospital público, sujo, com tratamento
inadequado. É o retrato da precarização da sociedade chilena. A situação está atravessada por um
sentimento de distopia em vários planos: a violência estatal, a vulnerabilidade do corpo, o abandono da
cidadania e dos direitos que o Estado deveria assegurar. E também pela destruição do planeta e essa
fantasia de que teremos, como civilização, de viver em outro lugar. É uma sensação de que tudo está
acabando.
Todos os seus livros têm um forte compromisso político. Acredita que isso tem também a ver com
uma necessidade – de resgate, compreensão, prestação de contas – de quem viveu a ditadura na
infância e adolescência?
Acredito que sim. Acho que as pessoas, em certa medida, escrevem sobre o que conhecem e sobre o que
teve um impacto sobre elas. E acho que meus romances “de doença” combinam estas duas
características: a fragilidade do corpo e a situação de violência social que vivi. Isso está presente às
vezes de maneira mais visível e em outras mais subliminar, tanto em meus romances como em meus
ensaios: Tornar-se Palestina não trata diretamente das ditaduras na América Latina, mas reflete sobre a
violência estatal em Israel.
Qual é a história da sua família na ditadura?
Boa pergunta. Minha família não foi uma vítima da ditadura. Descendentes de imigrantes palestinos por
um lado e italianos por outro, meus pais foram beneficiados pelas políticas sociais de governos
anteriores, como a universidade pública. São profissionais liberais que tiveram muito medo da ditadura,
mesmo sem participar politicamente. Assim como tiveram muito medo do socialismo, como boa parte da
classe média alta do Chile. Havia muita propaganda no governo Allende de que iriam destruir a
burguesia. Mas nunca tomaram realmente partido, nem de um lado nem de outro.
Quem são as autoras ou autores contemporâneos dos quais você gosta particularmente?
Há duas escritoras da minha geração que eu admiro muito, a Nona Fernández e a Alejandra Costamagna,
que está sendo traduzida agora para o português. As duas têm vozes muito potentes e distintas. E tem
outra mais jovem, que também vai ser publicada no Brasil logo mais, que é a Alia Trabucco Zerán. Mas
há também a grande Diamela Eltit, que tem um trabalho excepcional, mais difícil, talvez menos
narrativo, mais teatral, próximo da obra da Elfriede Jelinek, que tem um estilo oral e bastante politizado.
Em Contra os filhos você menciona a Pagu, a Nélida Pinõn e a Clarice Lispector. O que você
conhece de literatura brasileira?
Teve um momento na minha vida que li tudo da Clarice Lispector. Eu tinha por volta de 25 anos. Não sei
bem por que se lia tanto os livros dela no Chile. E eu a lia com muita paixão. Adoro sua literatura, suas
entrevistas. Acho que ela é muito original e que a liberdade que ela se permitia é única. Também li com
muito fascínio o Parque industrial, romance modernista da Pagu, que faz esse contraponto entre as
classes altas e as populares no espaço das mulheres que trabalham na indústria têxtil. É um romance
poderosíssimo, que traz muitas ideias que me foram úteis em Contra os filhos. Entre os contemporâneos,
gostei muito de A resistência, do Julián Fuks e O pai da menina morta, do Tiago Ferro, que são dois
romances híbridos e muito interessantes. E outra autora que tenho lido é a Ana Paula Maia, de De gados
e homens. Gostaria de acompanhar mais a literatura brasileira.
dossiê Filosofia e macumba
Apresentação
LUIZ RUFINO E RAFAEL HADDOCK-LOBO

Este dossiê nasce de cruzos de ideias e do diálogo de pessoas que querem pensar, justamente, o encontro:
as encruzilhadas. E um dos lugares mais importantes para que sejam firmados é aquele onde a filosofia
se cruza com a macumba. Não queremos de modo algum fazer uma filosofia da macumba, mas sim
pensar o que a encruzilhada vibra, uma vez que ela versa na máxima das possibilidades, nesse arrebate
pela remontagem dos seres, pela política da presença e pelo combate ao esquecimento que a macumba
impõe ao saber filosófico.
Nesse sentido, a articulação entre filosofia e macumba é necessariamente política, sendo a macumba
pensada como um complexo de saber codificado de maneira contínua nos trânsitos e encontros entre
diferentes modos de ser e saber. Macumba como um saber em ginga, aquilo que se busca aniquilar, mas
que salta de maneira tática como experiência imantada entre gerações. Enfim, aquilo que, sendo
subalternizado pela cultura eurocêntrica, precisa ser invocado e afirmado em sua potência máxima.
A afirmatividade desses saberes como tarefa política do filosofar conduz a uma política macumbeira,
sendo ela capaz de mobilizar o transe dos corpos destroçados pela tragédia colonial, restituindo a vida,
circulando axé (energia vital) e redimensionando o sentido da existência. Além disso, essa filosofia
macumbada pela política do axé tem força para enfrentar de modo legítimo a problemática do nacional,
pensando o Brasil entre a inventividade do terreiro e o terror da plantation, e encarando sem medo e sem
ufanismo nem xenofobia a questão da identidade nacional – questão mais do que urgente e da qual toda
filosofia parece se esquivar com medo de cair nas armadilhas (eurocêntricas) do nacionalismo. A questão
permanece, portanto, em como pensar de forma múltipla esse complexo de saber, ou seja, denunciando e
combatendo as retóricas discursivas racistas e fugindo de qualquer espécie de celebração da identidade
nacional como fetiche ou desejo de consumo das diferenças subalternizadas.
Na atualidade, quando ataques terroristas são diariamente dirigidos a territórios de filosofia, cultura,
educação e religiosidade afro-ameríndias e quando povos originários são assassinados cotidianamente
sem a menor visibilidade, é preciso firmar urgentemente a aliança entre o simbólico e o político. O
processo de desencantamento do mundo, que se iniciou com a racionalidade moderna (universalista e
colonial), parece, em épocas de neoliberalismo e neopentecostalismo, chegar a seu ápice em termos de
violência corporal, epistêmica e gnoseológica.
Essa aliança entre religião, Estado e capital torna-se hiperbólica, e a lógica do inimigo fundamenta a
guerra com base em seu ataque simbólico-linguístico (como o amordaçamento, a interdição de
linguagens, a recusa a outros modos explicativos fundamentais por meio de uma política de regulação do
ser e saber que aparece em frases tão conhecidas como: “Só Jesus expulsa o capeta das pessoas”,
“Haverá de conhecer a palavra”, “A palavra de Deus salva”, “Sai desse corpo que não te pertence”...).
Contudo, é justamente essa fundamentação teológico-política que, instrumentalizada pelo capital e
aparelhada pelo Estado, legitima os crimes e o terror contra terreiros, aldeias e seus praticantes, sendo
tais ataques parte do plano de morticínio do Estado Colonial.
No fundo, sabemos, atacam-se terreiros por serem espaços de produção de vida, que contrariam a
lógica da escassez e rompem com o encapsulamento de um modo que se quer único. Os terreiros como
matrizes e motrizes geradoras de vida alargam subjetividades, credibilizam outras inscrições e recuperam
possibilidades de um mundo outro. Nesse sentido, contrariam a política estatal dos assassinatos, que não
suporta a alegria, a criação, a celebração da vida, inclusive por aqueles que supraviveram (encantaram-
se) ou cruzaram a kalunga (ancestrais). É por essa razão que esses saberes são potentes na emergência de
narrativas múltiplas, encruzadas, fronteiriças e transgressoras, que esquivam e revidam tal política do
achatamento simbólico do imaginário popular praticando territórios não desencantados pela política, pela
ciência e pela filosofia dominante e propondo feitiços para imacumbá-los.
E mais: se a palavra macumba, vinda muito provavelmente do quicongo, quer dizer o encontro, a
reunião (ma) de poetas feiticeiros que encantam com a palavra (kumba), essa guerra precisa ser
empreendida coletivamente, por uma comunidade que pratica o encanto como política de inscrição do
ser e saber no mundo. Referenciados por política cósmica e ancestral, lançamos no tempo: não há virada
epistêmica que não seja também uma virada linguística e por isso poética. Assim, essa virada linguística
que o feitiço invoca busca corporificar as palavras. Palavras são corpos e potencializam a presença
enquanto vida em potência, e não como mortandade, escassez e desencanto.
O contrário da vida não é a morte, mas o desencanto, firma a sentença disparada em Flecha no
tempo. É por isso que os ebós epistemológicos que precisam ser praticados para despachar o carrego
colonial são também encantamentos de palavras e de corpos, através de uma produção textual que
invoque perspectivas mandingueiras e brincantes, em um processo educativo contínuo, pois a guerra
nunca termina.
Este dossiê é, portanto, um sopro que bendiz as vivacidades que se lançam na luta, uma amarração
atada por muitas mãos e bocas que invocam a força do feitiço e se comprometem a responder de maneira
responsável às demandas da guerra em que estamos lançados, reivindicando a inventividade e a
sapiência daqueles que dobram o tempo na hora grande e respondem com vida aos assombros do terror.
Nesta trama se encruzam cinco escritos. O primeiro deles, riscado por Rafael Haddock-Lobo, trata de
despachar a porteira para firmar a gira macumbística que arrebata em transe a filosofia. Luiz Rufino
invoca o dono da rua, sua corte e pensamentos para encarar a batalha, que se dá nos ritos cotidianos,
como instância de reivindicação da vida contra o desencante perpetrado pela guerra colonial. Wanderson
Flor do Nascimento em seu escrito nos apresenta o conceito de ikupolítica como um modo de resistência
à necropolítica, lembrando que a morte como trânsito da experiência vivente nutre de sentidos a
comunidade e, assim, os regimes de terror miram também o aniquilamento dos ritos e sentidos que
fundamentam a vida como exercício coletivo. Em diálogo com a espiritualidade da aldeia Brasil, Luiz
Antonio Simas convoca aqueles que supravivem no encanto, que são vivos, pois não são esquecidos e
baixam caçando os vazios; driblam e criam. Daí, a umbanda e o futebol como arte de caboclaria e prática
de terreirização de mundo. Tendo como base a ciclicidade da gira – assim não há fim, mas sempre um
novo início –, Katiúscia Ribeiro compartilha o axé do poder feminino nas tradições africanas
apresentando caminhos da política matriarcal inscrita nas travessias transatlânticas e plantadas nos
terreiros daqui.
Saravando a espiritualidade dos guerreiros que se lançam como flechas nas macumbas brasileiras,
cantamos que eles são os mateiros que abrem caminhos. São combatentes, mas antes nos ensinam
também o momento de observação, a estratégia e a tecnologia ancestral que diz o momento certo do
bote. E não podemos nunca deixar de esquecer que a força do guerreiro, seja qual for sua carapuça, é
também a força do feitiço.
Por essa razão, a encruzilhada na qual se encontram para arriar suas ofertas apalavradas esses cinco
filhos de Ogun, em Ketu, ou de Nkosi, em Angola, carregados no axé dos guerreiros das aldeias daqui só
poderia ser, no Brasil, uma ma-kumba.
E aqui fica o convite a todos que querem coletivamente lançar seus brados e atirar suas flechas,
plantar vida, semear vida como batalha contra o desencanto!
A gira macumbística da filosofia
RAFAEL HADDOCK-LOBO

Em 1977, Roberto Gomes publicava seu primeiro livro, Crítica da razão tupiniquim, no qual apresentava
algumas sérias provocações à produção filosófica brasileira. A importância do livro é tanta, embora
aparentemente ignorada pela comunidade filosófica, que Darcy Ribeiro chegou a afirmar, quando do seu
lançamento, que o Brasil teria voltado, afinal, a filosofar. Dois anos depois, em 1979, Gerd Bornheim,
filósofo brasileiro e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), publicou o ensaio
“Filosofia e realidade nacional”: defendia que uma filosofia dita brasileira precisa ser substantiva, e não
meramente adjetiva. Isso quer dizer que não basta produzir uma filosofia em território nacional para
dizer que no Brasil se faz filosofia brasileira.
Gerd Bornheim chama atenção de que é preciso algo mais para que façamos uma filosofia brasileira –
fato para o qual o provocativo livro de Roberto Gomes já atentara antes. Ambos apontam que a filosofia
precisa se debruçar sobre a singularidade de nossas questões (múltiplas, diversas, plurais) e abandonar as
ideias de neutralidade e universalidade que, junto com a colonização, chegam em nossas academias de
contrabando. Sem isso, não conseguiremos abandonar seu patamar elitista e ter algum contato real com
aquilo que, das ruas, provoca o verdadeiro pensamento.
É nesse sentido que venho tentando afirmar que a filosofia brasileira, para ser digna desse nome,
precisa ser uma filosofia popular brasileira. Uma filosofia produzida com base em uma experimentação
efetiva dos saberes e culturas produzidos por aquilo que a elite chama de “popular”. É claro que esses
saberes são elaborados independentemente da academia, mas meu intuito é, justamente, mostrar o quanto
esta perde ao não se conectar com a potente produção que se encontra em andamento nas ruas.
Diante dessa pluralidade, ou dessa multiplicidade de vozes e sotaques, uma filosofia “brasileira” seria
aquela que, sem clamor identitário ou nacional, assumiria perspectivas dessas vozes e desses sotaques, a
fim de produzir um pensamento que emerja dessas experiências. Buscando reunir esses elementos,
passeando pelos pensamentos dxs grandes filósofxs do Candomblé (como Mãe Beata de Iemanjá, Mãe
Stella de Oxóssi, Omindarewa, Professor Agenor); de filósofxs afro-brasileirxs (como Sueli Carneiro,
Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Nego Bispo, Uã Flor do Nascimento, Renato Noguera, Marcelo
Moraes); de filósofxs ameríndixs (como Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Tonkire Akrãtikatêjê, José
Urutau Guajajara, Sandra Guarani Nhandewa), acabo me encontrando com dois pensadores que, juntos
ou separados, me ajudam hoje a recolocar essa constante provocação endereçada à filosofia. São eles
Luiz Antonio Simas, um filósofo-historiador (das ruas), e Luiz Rufino, um filósofo-pedagogo (das
encruzilhadas), cuja produção intelectual é preciosa para pensar uma vez mais o que seria uma filosofia
brasileira, através justamente de uma relação imprescindível entre filosofia e macumba.
Eles nos chamam a atenção para o fato de que tal debruçar sobre a cultura popular brasileira só pode
acontecer se o filósofo, abandonando seus escritórios, suas bibliotecas, e mesmo suas salas de aula, pegar
seu caderninho de anotações, como fizeram tão bem Walter Benjamin e Guimarães Rosa, e sair dos
muros das universidades e se dirigir às ruas, aberto aos encontros que as encruzilhadas propiciam. Esse
movimento de saída da academia às ruas, que poderia ser compreendido como um giro ético-político tal
como parece acontecer na filosofia ocidental contemporânea, parece ter uma configuração um pouco
diferente quando se dá em nossas terras.
Como somos produtos da colonialidade, isto é, desde a colonização do pensamento até o assassinato
de habitantes nativos, sequestro, escravização e estupros de negros, esse giro ético-político certamente se
dá de modo diferente em terras tupiniquins: aqui é preciso promover o giro a partir daquilo que é, ao
mesmo tempo, mais próprio, mais comum, mais banal, mas também mais escondido, mais temido, mas
causador de vergonha, que, junto a Rufino e Simas, chamo de macumba. Se o termo pejorativo macumba
é usado como ofensa, para diminuir os saberes das religiosidades africanas e ameríndias que se encruzam
em nosso solo, devemos, seguindo a performatividade queer, potencializar tal termo para extrair dele o
máximo, a fim de afirmar a relevância epistemológica, estética, ética e política das macumbas.
Macumba, então, passa a ser pensada na perspectiva de uma filosofia da cultura popular brasileira,
com base não apenas nas práticas religiosas afro-ameríndias, como os candomblés, as umbandas, os
batuques, os catimbós, as juremas, os tambores de minas, mas também das capoeiras, dos sambas de
roda, dos fundos de quintal, dos jongos e de todas as rodas que promovem outras epistemologias e que,
por serem de fato populares, isto é, originárias das ruas, são por isso mesmo revolucionárias.
Entretanto, um giro macumbístico como esse que ocorreria ao Sul, que é certamente tão ético e
político como o ocidental ou mais, porque é também poético e epistemológico, não pode tão somente
tomar a forma de um giro, no sentido de reviravolta, virada ou tantos outros nomes que se dá a um novo
rumo de certo pensamento. Como me lembrou Rodrigo do Amaral Ferreira, se falo de giro
macumbístico, o que preciso marcar é que tal giro se transforma em gira.
A gira, o feminino do giro, sua feição mulher, que, não apenas gira como o giro no sentido de mudar,
desviar, promover deslocamentos, mas que também gira como a festa, a roda, o encontro que abre os
caminhos e que é marcada pelo termo quimbundo njira. Falo, portanto, de uma gira macumbística da
filosofia brasileira, gira através da qual a filosofia brasileira, antes apenas adjetivada como uma
produção do território nacional, pode vir a encarnar a brasilidade das ruas, tornar-se substantivo
produzido por corpos, músicas, sonoridades, cores, espíritos, cheiros e tantas outras coisas que jamais
compreenderá nossa vã academia.
E esse “jamais compreender” é, aqui, imperativo, pois a ideia de compreensão, atividade unicamente
mental, é o que impede a própria relação com o conhecimento macumbeiro, que precisa ser sentido pelo
corpo como um todo, experimentado por sentidos e razões múltiplas para que, em vez de ser
compreendido, prendido, apreendido, aprendido na forma de sujeito e objeto, ele seja incorporado,
tateado, degustado, cheirado, ouvido, cantado. Só assim ele poderá baixar, ainda que sempre provisória e
precariamente, assombrando-nos e sendo, tal conhecimento, muito mais o “sujeito” dessa relação.
Por fim, ao contrário de Hegel, que afirma que o Espírito se fenomenaliza por meio de diversas e
subsequentes etapas arquitetadas pela Razão, afirmo que os espíritos baixam através de diferentes giras,
sem ordem nem razão prévias, guiadas apenas pelo imperativo do “deixa vir quem tem de vir” – como
dizia minha falecida mãe de santo Concheta Perroni. É por essa razão que essa gira macumbística força a
filosofia a se constituir como uma espécie de “empirismo radical”, no qual a hipérbole da noção de
experiência é tamanha que os próprios lugares de sujeito e objeto, de consciência e mundo, ou qualquer
outro dualismo epistemológico, encruzam-se de tal maneira que não podemos mais definir com precisão
os limites entre o dentro e o fora, mas apenas marcar o encontro no coração da encruzilhada.
E assim, só assim, a filosofia, em vez de barrar ou atrapalhar o que vem das ruas, pode deixar a gira
girar – imperativo, enfim, de uma filosofia popular brasileira.
Batalha contra o desencanto: a encruza como chegada
LUIZ RUFINO

O ponto que abre essa gira, como todo ponto cantado, é uma amarração de palavras que serve de
montaria para que muitos saberes baixem. Esse corpo – palavra é corpo ofertado ao tempo – fala-nos da
invocação de presenças que correm mundo e se encarnam nas esquinas mais vagabundas e nos tipos
mais despretensiosos. Essas inscrições também nos apontam os limites das mentalidades obcecadas em
serem totais. Assim, o princípio dinâmico da vida nos convoca à tarefa da transgressão. A cada esquina
em que cisca o vivo e se alimenta o rito, está riscado um inventário de múltiplos saberes e se faz um
campo de possibilidades.
Seu Tranca Rua, trabalhador brasileiro em termos macumbísticos, vadeia nas dobras do tempo e nos
arremates da vida soprando aforismos como esse para que nos remontemos e inventemos soluções. Mas,
afinal, o que pode a macumba? Quais são suas implicações políticas e como seus praticantes, munidos de
um amplo repertório de tecnologias ancestrais, batalham em um mundo assombrado pelo desencanto?
Por aqui, nem toda vela que se acende é reza. Dessa forma, há de considerarmos que nenhuma
esquina come e bebe sem que seja para se erguerem batalhas que nos convoquem a inventar vida,
circular e expandir axé. É no diálogo com uma corte de seres comuns, senhores e senhoras que se
encantaram nos caminhos por onde a vida passa, que lanço mais uma pedra nessa canjira: qual é a
possibilidade do ser diante de um estado radical de violência? No canto da porta, um toco aceso e uma
cachacinha dão o tom do arrebate, e estala um tapa ao pé do ouvido: a lenha já se queimou e a gambá
está pra cozinhar. A encruzilhada, umbigo e boca do mundo, nos diz que não existe nada acabado.
Estamos em batalha.
A macumba como ciência encantada e a encruzilhada como tempo e espaço praticado e signo das
potências de Exu não podem ser reduzidas a uma leitura que se satisfaça em banhar-se na beirada. Para
os praticantes das margens de cá, a reivindicação desses horizontes perpassa a emergência de nos
reposicionarmos na luta, encarnando as mandingas, repertórios políticos e poéticos praticados em
esquinas, rodas, matas, terreiros, aldeias, vielas e profundezas desta terra.
Nesse jogo se tece um grande balaio, palavras de força, sopros ritmados que erguem realidades,
pedras lançadas que imantam energia vital e vencem demandas, faz-se a macumba. Nesse fundamento
risca-se o ponto do alargamento do tempo e subjetividades, dos saberes fronteiriços, da ampliação das
gramáticas, da instauração da dúvida, do movimento, de um primado ético responsável com as
diferenças e o inacabamento do mundo. Brinda-se a encruza. Macumba e encruzilhada são princípios
que compreendem um amplo repertório que diz, desde a presença, os conhecimentos, as linguagens e as
aprendizagens traçadas como forma de luta contra a dominação colonial.
Dessa maneira, cabe confrontarmos qualquer forma que invista nessas noções de maneira fetichista,
efeito do racismo estruturante que se manifesta desde a interdição dos termos, nas ofensivas de terror
contra seus praticantes e ritos, e também em certo deslumbre por parte de grupos que consomem os
repertórios macumbeiros com certo exotismo, gerindo uma economia que não credibiliza a força
inventiva e a sofisticação do pensamento dessas práticas na emergência de despachar os carregos
deixados pela obra colonial.
Assim, a macumba dos encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão
intransigente e propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto e a encruzilhada
como tempo e espaço de invenção, transmutações, aprendizagens múltiplas e rasura da obsessão
cartesiana são aqui reivindicadas como disponibilidades conceituais e formas de batalha contra o
desencantamento perpetrado pelo colonialismo e mantido pelo seu carrego. Em transe deslocando as
dimensões do ser e saber, o capitão da encruza encanta os quatro cantos desse campo de mandinga. O
que nos guarda nas esquinas? Uma vez que, ao dobrá-las, deparamos com nós mesmos, nossas
demandas, traumas e esperanças.
Os capoeiras nos lembram que campo de batalha é também campo de mandinga. Assim, ainda que
venha uma rasteira inesperada ou mesmo um golpe de traição, para aqueles que alimentam o invisível
haverá sempre uma mão que ampare a queda. Daí, não se cai, o corpo dá um jeito, emenda-se uma
resposta. O malandro não vive de sorte. Daí mandinga ser a arma de guerra, já que ninguém vai ao
campo de batalha desarmado.
Na rua, onde tudo passa, os mais atentos às demandas da vida têm sempre um compadre a quem se
podem confiar as pelejas do dia. Afinal, em um contexto em que batalha e mandinga forjam nossa
experiência vivente, cabe-nos responder como inscreveremos nossa travessia no tempo. Ao lado de
capoeiras, malandros, mulambos, moças formosas, moleques, feiticeiros, sacerdotes da folia e
espantadores da miséria, inscreve-se um arsenal de maneiras que não só denunciam, mas sucateiam as
engrenagens da aparelhagem de guerra erguida há mais de cinco séculos pela empresa colonial.
Dobrando a palavra, firmo que a crítica ao colonialismo não pode ser algo meramente datado ou
regimentado por um senso político que não fale as línguas das ruas. A crítica ao colonialismo, a meu ver,
perpassa uma virada política e de conhecimento, que deve ganhar ancoragem nos dizeres das margens e
no enfrentamento cotidiano das demandas do tempo e da guerra colonial. Tendo como orientação que
vivemos sobre as dimensões das energias e efeitos do constructo colonial, cabe-nos despachar esse
assombro com a imantação das belas batalhas, ou seja, inscrevendo lutas macumbeiras, mandingueiras.
A experiência dos batalhadores daqui como um duplo entre o encantamento de um Brasil terreiro e o
estrangulamento provocado pelo latifúndio, catequese e o estado de sítio nos coloca uma problemática
pedagógica: como responder com vida a um sistema de mortandade? Sobre a guerra nos cabe lembrar
que esse evento não fundamenta somente a ortopedia do Novo Mundo, mas também a espiritualidade de
escassez que permanece serpenteando no tempo produzindo desencante.
Para enfrentar essa guerra interminável alimentada pela ânsia de dominação do ocidente-europeu,
alicerçada na tríade intervenção militar, teologia-política e lucro, cabe-nos invocar e encarnar as batalhas
inscritas nas encruzas do tempo. Aquelas plantadas como tecnologias ancestrais, que substanciaram a
vida de muitos que fazem a volta na hora grande, mas que são comumente descredibilizadas pelos modos
de pensamento ocidentalizado. Dessa maneira, tomemos a encruzilhada como fundamento de mundo,
não antiocidental, mas que cruza todo e qualquer caminho. Ou seja, nela tudo dá e se lança em
transformações, reivindicando as ambivalências e inacabamentos que não cabem em uma lógica binária,
maniqueísta e hierarquizada. Na encruza responde o outro com a própria vida, se avivam os atos, ritos e
relações. É nesse rumo que a encruzilhada nos convoca a responder de maneira responsável à questão da
descolonização.
É na encruzilhada que arriamos nossos atos, é lá que nascem, criam-se e consagram-se os
batalhadores. Ao contrário da guerra colonial, substanciada pelo desencanto da dominação, a batalha dos
seres comuns se inscreve como ato de liberdade, pois é fundamentalmente uma mirada pela vida em toda
sua amplitude e formas. Os mulambos, vadios, rueiros, descartados e marginais já cantariam aos
senhores da rua, navegantes do tempo e donos da gira: “Santo Antônio de Batalha faz de mim
batalhador, corre gira Pombagira, Tranca Rua e Marabô”.
Da necropolítica à ikupolítica
WANDERSON FLOR DO NASCIMENTO

Podemos dizer que os tempos presentes são gravemente mortais. Guerras, acidentes com refugiados,
confrontos com milícias e as forças do Estado, violências de todas as ordens. O pensador camaronês
Achille Mbembe tem nomeado de necropolítica esse modo de gestão das populações que se instaura em
nossos tempos, marcado por um persistente encontro entre as relações políticas, culturais e econômicas
sob uma sombra racial, subjugando a vida aos poderes da “morte”.
Para Mbembe, as relações entre o capitalismo, o racismo, a xenofobia – e eu acrescentaria o
patriarcado –, instauram-se em torno da figura do inimigo, esse símbolo privilegiado nas relações sociais
em tempos nos quais a sociabilidade é hegemonicamente beligerante e o ódio é o afeto que marca parte
importante de nossos contatos com o mundo público.
Tal ódio por vezes se esvazia de intensidade, seja por uma rápida euforia, seja por uma potente falta
de empatia ante o sofrimento das pessoas que nos cercam. Já não lamentamos de maneira não fugidia as
mortes violentas ao nosso redor. Assistimos aos espetáculos da guerra e às tragédias ocorridas com
imigrantes como intervalos dos nossos reality shows prediletos, nos quais a diversão gira em torno das
violências simbólicas e do inimigo que elegemos durante a “temporada”.
Ronda nossos tempos uma impressão de sufocamento ou, ainda, uma sensação de que estamos em
um mundo sem saída – talvez, até pior, de que a única saída seja o extermínio do inimigo.
Essa impressão foi-nos ensinada ao longo da Modernidade, que adotou uma gramática racista para
organizar as relações sociais e trouxe, como efeito imediato, uma hierarquia entre os existentes,
começando pelos seres humanos: aqueles para com quem devemos manter uma relação de dignidade e
aqueles outros, que ora são semi-humanos, ora são desumanizados e colocados à disposição para uso de
sua força de trabalho de modos exaustivos e mortais.
Com a operação dessa gramática, desaprendemos a ter uma relação de proximidade com os outros,
essa figura que, aos poucos, vai tomando a forma do inimigo. Esse foi um dos movimentos que criaram a
dimensão política generalizada do Nós contra Eles.
E essa figura do Eles, os inimigos, cresce vertiginosamente. Os estrangeiros, as mulheres, os povos
originários, a classe trabalhadora em busca de direitos, a própria natureza vertida em mero recurso, as
pessoas LGBTs e tantos outros que são transformados em Eles em uma perigosa trama odiosa. E já não
mais se lamenta a morte d’Eles. São espécies de vida de segundo nível, combustíveis em uma guerra
incessante.
Ambientamo-nos com um tipo de morte não lamentável (e que alguns pensarão que tal modo de
morrer é necessário). E a morte parece se estabelecer como um destino desejável a esse inimigo que
encontramos em cada canto. E celebramos uma necropolítica, uma política de morte como jeito de lidar
com esses Eles que nos rondam.
Entretanto, nem sempre, e nem para todos os povos, a relação com a morte foi pensada assim. E aqui
tomarei o exemplo dos povos de terreiro, para os quais a morte não figura como um tipo de destino
desejável aos inimigos.
Para os povos de terreiro, morrer não é um problema, nem é encarado como evento punitivo. Para
entender isso, é importante saber que Iku, o modo como a palavra morte é entendida em iorubá – língua
de um dos povos que compõem os terreiros de candomblé –, é, antes de qualquer coisa, um orixá, isto é,
uma divindade. Aquela divindade encarregada de desvencilhar o corpo das pessoas que habitam uma
comunidade do restante daquilo que as faz ser pessoas, para que elas possam seguir na comunidade
como ancestrais. Iku é, portanto, a morte e também a divindade que, ao nos tocar, retira-nos parte
daquilo que nos faz sermos pessoas vivas: nossa ligação com o corpo.
Assim, Iku, a morte, não é entendida como um processo que rompe nossa pertença à comunidade. Ela
a transforma. Passamos da condição de vivos à condição de ancestrais mortos-viventes que pertencem à
comunidade, vivendo na memória das pessoas e também no espaço comunitário, no qual, como
ancestrais, nos comunicamos, nos alimentamos, agimos.
Em algum momento, Iku nos vem e nos toca, transformando nosso modo de estar na comunidade,
embora ela esteja, como divindade, sempre presente junto a nós, sem nos tocar. Portanto, ela não é, em
si, temida, pois não provoca nenhuma ruptura permanente nos laços que mantemos com nossa
comunidade, com o terreiro. Ela não nos faz desaparecer, nem é uma manifestação de nenhum mal.
Ao fim e ao cabo, Iku é parte da vida da comunidade. Esta vida interligada, interconectada,
interdependente, que habita tudo o que existe nos terreiros. Iku é respeitada, mas não nos assusta, nem
aterroriza, pois ela não nos destrói nem nos afasta do que somos: apenas muda parte de quem somos (a
relação com o corpo) e o modo como passaremos a interagir na comunidade.
Por isso, Iku não é a morte que assola, destroça e que participa de uma existência sofrida. Ela não é,
em si, violenta. Diferentemente da “morte” (thánatos) experimentada nos regimes necropolíticos
baseados em matar (nekróu) ou em expor a essa “morte”, Iku não é um resultado do peso de um viver
que, em vez de ser experimentado como potência, é vivenciado como maldição para alguém que pode
ver esse sujeito vivo como um inimigo, como parte de um Eles.
A “morte”, no contexto necropolítico – seja autoimposta ou imposta por alguém – é sempre rodeada
de violência ou crueldade: uma espécie de resolução de uma vida sofrida, e não de uma vida vivida, tal
como acontece quando Iku nos toca. Dizendo de outro modo, para os terreiros o problema não é morrer
pelo toque de Iku, mas ser morto por elementos violentos que nos retirem da comunidade, em vez de nos
manter nela.
Em tempos nos quais desaprendemos a ser em um coletivo de gentes, de certa maneira
desaprendemos a viver. Não somos tocados por Iku, mas por outro tipo de “morte”, por esse necrós que
nos alcança solitariamente, tanto como essa vida que se sofreu, em vez de se ter vivido.
Uma das coisas nefastas que a necropolítica provoca é a perda dessa morte vivida, dessa morte que
não nos afasta de nossa comunidade. A necropolítica tem matado também nossos modos tradicionais de
morrer, de nos mantermos nas memórias de nossas comunidades. Mortes violentas, tristes, cruéis tendem
a lançar os mortos no esquecimento, para que nos protejamos da dor de reviver o momento trágico da
morte cruel de alguém que amávamos. E, assim, o morto deixa de habitar a comunidade à qual pertencia.
É nesse contexto que talvez devamos nos lançar na construção de uma ikupolítica que promova
novamente modos em que morrer não seja vivenciado apenas no modo do ser morto. Reviver as
tradições comunitárias e experimentar uma morte que possa ser festejada, ou seja, vivendo uma vida boa,
atravessada de laços que nos mantenham em nossas comunidades. Luiz Simas e Luiz Rufino lembram-
nos que um jeito de resistir a essa “morte” que sai do controle é retomar jeitos brincantes, festivos,
evitando esquecer que somos viventes apenas nesses contextos comunitários – agindo assim, de modo
diferente desse modo a que a tradição necropolítica nos acostumou.
Retomar um modo de vida alegre e festivamente coletivo, tal como o orixá Ibeji, vinculado, em nosso
imaginário, com as crianças, retomando a vida como potência, aprendendo a vivê-la, em vez de sofrê-la
sob a égide do racismo e de outras violências que a modernidade nos legou. Promover uma ikupolítica
que seja um modo de resistência à necropolítica. Tarefa para realizarmos no coletivo, tanto como viver e
buscar reconstruir um mundo comunitário, onde se possa viver e morrer para sermos raízes. Viver uma
vida na qual os conflitos não sejam mortais, mas constitutivos e potencializadores.
Drible e flecha de fulni-ô
LUIZ ANTONIO SIMAS

Comecei a desenvolver o conceito de “culturas de síncope” a partir de uma pesquisa para um livro sobre
a Portela, que publiquei em 2012 (Tantas páginas belas: histórias da Portela). A necessidade de pensar
o conceito surgiu de uma constatação: os estudos sobre o samba simplesmente não viam o próprio samba
como manancial para a elaboração de conceitos capazes de dialogar com o complexo cultural que circula
em torno do gênero que, saído dos batuques do Congo, espraiou-se na diáspora.
Mas que diabos é a síncope? Ela é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento
de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte. Na prática, a síncope rompe com a
constância, quebra a sequência previsível e proporciona uma sensação de vazio que logo é preenchida
com fraseados inesperados. A síncope opera bordando de sutilezas o vazio entre as duas marcações do
ritmo. É ali que ela mora.
A síncope subverte a normatização, busca caminhos que não são os do enfrentamento, joga com o
tempo e o contratempo no deslocamento do jogo rítmico, traz o segredo da polirritmia típica da música
africana: o bailado sonoro de padrões rítmicos complexos, geralmente envolvendo um ritmo tocado
contra o outro, que na contraposição se complementam para dar conta das sutilezas, mais que do som, da
vida.
As culturas de síncope, por sua vez, dialogam com o drible, já que são capazes de “garrinchar” tempo
e espaço. E aí penso mesmo no futebol. O jogo inventado pelos britânicos consistia na tentativa de evitar
o adversário por meio de lançamentos longos, bolas alçadas em direção ao arco inimigo – o famoso
“chuveirinho”, na linguagem dos boleiros.
Em vez do chuveirinho, ou da troca de passes curtos ou longos, o futebol brasileiro se caracterizou
pela estratégia do drible, aquela que foi corporificada em sua potência mais ampla por Mané Garrincha.
O drible consiste na tentativa de burlar o inimigo pelo deslocamento do corpo/bola para o espaço vazio,
aquele onde o oponente não está e não pode chegar.
Ao subverter a norma da marcação (como faz a síncope) e propor o ritmo quebrado, necessariamente
inusitado, capaz de deslocar o jogo para a brecha, Garrincha abre o campo, amplia o horizonte de
possibilidades que, em suma, podem levar ao gol.
Surpreendentemente, entretanto, era comum também que Garrincha interrompesse a marcha em
direção ao gol para retornar ao ponto de origem da jogada: o drible. Exasperados com o que
aparentemente seria falta de objetividade do craque, alguns técnicos e comentaristas acusavam Mané de
preferir, ao gol, a finta. E era isso mesmo. Garrincha era senhor do tempo da partida.
Garrinchar o pensamento é subverter a lógica do jogo e entender que o processo – drible – pode ser
mais importante que o objetivo final: o gol. Arriscar o deslocamento para o vazio, fugir da
previsibilidade, chamar o marcador para a roda, entender o que o corpo pede, transitar entre o atleta e o
dançarino, ver na bola – o objeto – a flecha fulni-ô acariciando o alvo, refazer a jogada, produzir o
espanto, gargalhar na cara do zagueiro, sincopar o tempo para encontrar, no próprio tempo, o ritmo
adequado: é do jogo.
Falo de Garrincha e lembro que o futebol se espalhou no Brasil com notável rapidez e se impôs como
um elemento catalisador das paixões brasileiras. O jogo se consolidou, ao longo do século 20, como
elemento protagonista na produção de certo imaginário da brasilidade.
Nesse sentido, o futebol representou para o imaginário de um Brasil possível, no campo do esporte,
algo bastante parecido com aquilo que a umbanda representou no terreno dos ritos religiosos. A
popularização e o abrasileiramento do esporte inglês e a formação da umbanda ocorrem no mesmo
contexto: o das primeiras décadas do século 20. O futebol e a umbanda se encontram na encruzilhada em
que o brasileiro, nas frestas de um sistema excludente, apropriou-se do jogo britânico e do kardecismo
francês para construir seus modos de jogar bola e conversar com os mortos.
A versão mais famosa para a criação da umbanda do Rio de Janeiro – uma espécie de mito de origem
que não exclui os sentidos de diversos outros – remete ao dia em que no distrito de Neves, na cidade de
São Gonçalo, em 1908, o jovem Zélio Fernandino de Moraes sofreu uma paralisia inexplicável. Depois
de certo tempo sem andar, Zélio teria se levantado e anunciado a própria cura. No dia seguinte, saiu
andando como se nada tivesse acontecido. A mãe de Zélio, Leonor de Moraes, tomou um susto e levou o
filho a uma rezadeira chamada Dona Cândida, conhecida na região, que incorporava o espírito do preto
velho Tio Antônio.
Tio Antônio baixou em Dona Cândida e disse que Zélio era médium e deveria trabalhar com
caridade. Em 15 de novembro, por sugestão de um amigo do pai, Zélio foi levado à Federação Espírita
de Niterói, difusora do kardecismo francês no Brasil. Chegando lá, o rapaz e o pai sentaram-se à mesa.
Subvertendo as normas do culto kardecista, Zélio levantou-se subitamente e disse que ali faltava uma
flor, deixando a turma do centro espírita sem reação. Foi até o jardim, apanhou uma rosa branca e
colocou-a, com um copo de água, no centro da mesa de trabalho.
Ainda segundo a versão mais famosa para o acontecido, Zélio incorporou um espírito que batia no
peito e dava flechadas imaginárias. Simultaneamente diversos médiuns presentes receberam caboclos,
índios e pretos velhos. Instaurou-se, na visão dos membros da Federação Espírita, um furdunço
inadmissível. Advertido pelo dirigente da Federação, o espírito incorporado em Zélio perguntou por que
os kardecistas evitavam a presença dos pretos e caboclos do Brasil, pois nem sequer se dignavam a ouvir
suas mensagens.
Um membro da Federação argumentou com o espírito que Zélio recebia, dizendo que pretos velhos,
índios e caboclos eram culturalmente atrasados e não podiam, dessa forma, ser espíritos de luz. E
perguntou o nome da entidade. O espírito encarnado em Zélio respondeu que daria início a um culto em
que os pretos, índios e caboclos do Brasil poderiam difundir suas mensagens e cumprir missões
espirituais. Disse ser o Caboclo das Sete Encruzilhadas, aquele capaz de percorrer todos os caminhos.
Estudiosos da história da umbanda, ao destrinchar o mito centrado na figura de Zélio, destacam que o
buraco é mais embaixo e vai além da anunciação do Caboclo das Sete Encruzilhadas, talvez seu mais
famoso codificador. A umbanda é um sarapatel que mistura ritos de ancestralidade dos bantos, calundus,
pajelanças indígenas, catimbós (o culto de origem tapuia fundamentado na bebida sagrada da Jurema),
encantarias, elementos do cristianismo popular, do candomblé nagô, das magias e dos sortilégios de
ciganos, mouros e judeus, e do espiritismo kardecista europeu.
No mito da anunciação, o Caboclo das Sete Encruzilhadas estava insatisfeito porque o centro espírita
não permitia a chegada dos espíritos de índios, caboclos e pretos velhos; preferia dar passagem apenas
aos espíritos já vistos como desenvolvidos ou em processo de desenvolvimento e doutrinação. Na
religião que o Caboclo das Sete Encruzilhadas anunciou, os espíritos daqueles que formaram o Brasil aos
trancos e barrancos seriam bem chegados para dar passes, consultas, curar, dançar etc.
O futebol brasileiro popularizado está para o futebol inglês como certa umbanda para o kardecismo e
o cristianismo institucionalizado. O futebol praticado aqui começava a ser visto como um jogo inglês
subvertido, reinventado e encantado pelos modos brasileiros de jogar bola. O gramado/terreiro em que só
dançavam na gira do jogo os jovens das elites e os trabalhadores europeus residentes no Brasil começava
também a ser ocupado pelos descendentes de escravizados e de índios, pelos subalternizados no violento
processo de formação do país e por quem mais resolvesse baixar na gira.
Quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1958, o rei da Suécia cumprimentou todos os
jogadores brasileiros. Entre eles Pelé, um descendente de bantos escravizados, e Mané Garrincha, um
índio fulni-ô. O gramado, afinal de contas, também é uma das sete encruzilhadas percorridas pelo
caboclo macumbeiro, aquele que nunca encontra caminhos fechados e lança suas flechas por pernas
tortas, capazes de curvar monarcas e alargar o mundo.
Em que medida está na umbanda a chave para entender nossos modos sincopados de pensar e de
jogar bola?
Mulheres negras e a força matricomunitária
KATIÚSCIA RIBEIRO

O poder do feminino nas tradições africanas é milenar – e essas relações de pertencimento estão envoltas
por valores ancestrais e sociais, pois os poderes de gestação não são somente para gestar a vida, mas
estão também nas forças dinâmicas e propulsoras que movem as relações de todo um processo do
comum, que organiza e propõe perspectivas de interrelações grupais. Essas dinâmicas instrumentam a
existência comunitária e colocam as mulheres como força para gerir e gestar a vida e gerir e gestar as
organizações ancestrais, sociais, econômicas e políticas de um povo, assumindo o papel de
matrigeradoras e matrigestoras de uma comunidade.
Quando falamos em poder estamos falando de relações sociais de africanidade, estabelecidas com
base em um coletivo socioancestral que baseia seus modos de vivência e experiência alicerçados nas
tradições de um povo – tradições essas que buscam reforço e equilíbrio nos elementos da natureza como
princípio básico de reorganização existencial. É por isso que é preciso compreender que nessas relações
existe uma antropoteologia segundo a qual os seres humanos são considerados ontologicamente
constituintes do sagrado, como ensina o filósofo Jayro Pereira de Jesus.
Nesse contexto, o poder do feminino, constituído na natureza e no corpo das mulheres, interliga-se
com a parte masculina e, nesse encontro, produz a manutenção da vida, sendo revestido por um valor
sagrado. Esse valor faz parte da roda cíclica da existência, que busca o equilíbrio dinâmico, necessário
para pensar o fortalecimento do povo preto na sua matriz germinativa de enfrentamento aos massacres
colonialistas e ao epistemicídio (de acordo com a filósofa Sueli Carneiro). Ou seja, a força biomítica
(biológica e divina) restabelece dentro da comunidade o segredo, o sagrado social, econômico e político
que garantirá a resistência e a sobrevivência do povo preto na dispersão da diáspora.
O sequestro do Atlântico trouxe filosofias e ciências capazes de reestruturar e realocar os
descendentes de África dispersos pela escravização. Essas práticas, embasando as teorias afrocêntricas,
recriaram nos territórios negros dos terreiros e quilombos representações materiais e simbólicas que
permitiram o resguardo de capitais científicos, culturais, ambientais e filosóficos que resistem às
violações e violências impetradas ao povo negro. Modelos de sociedades matriarcais e comunitárias
embarcaram nas memórias da juventude da negra escravizada e as bagagens existenciais depositadas em
seus corpos suportaram todo o massacre e a dor e restabeleceram as forças para assim garantir o
compromisso de reorganizar o trilho civilizacional do povo negro disperso, fora de África.
Sendo preciso retornar às experiências comunitárias e cooperativas que esses grupos já vivenciaram
(herança de seus antepassados, repassada por gerações), no momento de dor, a saída era olhar para trás
(Sankofa) e firmar um pacto de compromisso com a/o outra/o africana/o escravizada/o, mesmo sendo de
etnias diferentes. Mulheres e homens, acolhendo-se com energias ancestrais, olhares, falas, cicatrizes,
curas ancestrais, toques, cheiros, afetos, choros, risos e principalmente escutas e observações,
reinventavam suas diferenças e resguardavam todas as estratégias de reorganização. Cada mulher e cada
homem foram trazendo suas formas de conhecer e organizar e assim foram tecendo suas histórias e
recriando mapas que deram direcionamento a uma ação conjunta, percebendo que havia algo comum
entre elas e eles: a sobrevivência do povo negro fora de África.
Os processos de observação, escuta e espera foram a base da auto-organização e do planejamento de
espaços de potencialidade de vida. E as mulheres foram fundamentais para desenhar novas formas de
convivência e possibilidades de viver em sociedade, articulando formas de compreender as dinâmicas do
escravismo. Aproveitando seu trânsito dentro das casas-grandes e senzalas, igrejas e ruas, para transmitir
ideias revolucionárias para fora das estruturas pensantes escravocratas, elas foram fundamentais para a
criação de planos de sobrevivência, rotas de fuga e a construção, por grupos de diferentes etnias, de
espaços afastados das casas-grandes e senzalas: os terreiros e os quilombos, lugares que reelaboraram a
força subjetiva africana de organização e de humanização desses indivíduos.
No Brasil, as lideranças femininas negras estão presentes até hoje à frente de grandes comunidades
tradicionais (quilombos e terreiros) e organizações comunitárias, como entidades sociais de mulheres
negras, escolas de samba, empresas solidárias, associações e cooperativas. Os vínculos solidários e a
matriz matrilinear são referenciais importantes de reorientação sagrada e constroem no universo social
das lutas das mulheres negras as práticas sucessórias de relações de acolhimento, respeito e cumplicidade
com as demais diferenças.
As famílias de asé (axé), nos territórios de terreiros e quilombos, são reorientadas no útero mítico de
África (ancestral), sacralizadas e ressocializadas. E as mulheres, impulsionadas pela força dessas raízes
ancestrais, organizaram com o povo negro contrapontos às forças externas, trazendo a solidariedade aos
povos africanos, materializada nas famílias extensas que são recriadas nas religiões tradicionais.
Mãe Aninha de Obá Biyi, Mãe Senhora, Mãe Stella, Mãe Olga do Alaketu, Mãe Menininha do
Gantois (Bahia); Tia Ciata, Mãe Beata, Mãe Mariazinha, Yá Torody (Rio de Janeiro); Mãe Rita do
Candombe (Beco Firme); Mãe Apolinária (Morro de Santana); Mãe Pretinha do Oxalá (Vila Floresta);
Mãe Marlene da Obá (Vila Santa Izabel); Mãe Nilza de Iemanjá (Vila Bom Jesus); Mãe Maria de Oxum
(Vila Cruzeiro, em Porto Alegre); Mãe Ciana, Joana Biriba, Mãe Gilda (em Santa Maria da Boa Vista,
PE), estas últimas sobrevivendo e trazendo práticas e técnicas de convivência no semiárido nordestino.
Todas essas mulheres desenvolviam e desenvolvem trabalhos sociais em comunidades marcadas pela
segregação e exclusão, com atuações comunitárias de grandes exemplos de sociabilidade que precisam
ser vivenciados e reproduzidos como autodesenvolvimento territorial e autossustentabilidade para o povo
preto.
Essas mulheres agregaram no sagrado social e político das comunidades de terreiros uma
reconstrução dos valores de convivências sociais e políticas, recriando os vínculos com as comunidades,
em sua grande maioria de população negra, população essa destroçada pela lógica colonialista e judaico-
cristã. Apresentar outras perspectivas mais humanas e dialógicas de conceber o sagrado é fundamental
para garantir a participação comunitária, ligando as realidades interna e externa dos indivíduos até
encontrar um elo entre a memória e o interesse pela própria história. Para assim vencerem as
adversidades, o preconceito e os estereótipos de demonização impostos aos cultos afro.
Essas mulheres deram palavras para seus corpos, e foram suas danças ancestrais e suas cantigas que
trouxeram as memórias corporal e social como estrutura das bases solidárias, em que os compassos, os
ritmos e as cantigas entoadas traziam novamente a história comunitária, política e social. Rever a história
desses territórios e seu formato de organização é compreender que as mulheres negras tiveram e têm
papel fundamental na continuidade da vida e estabeleceram relações de equilíbrio para o respeito a
outras formas de conceber o sagrado diante das bárbaras opressões e do terrorismo que sofrem ainda
hoje essas comunidades.
A contribuição feminina nos territórios tradicionais estabelece a condição de estar em igualdade de
direitos. O matriarcado e a matrilinearidade assumem a condição de respeito, vida e
autossustentabilidade, retroalimentando o poder sagrado, social e comunitário como instrumento para um
Devir negro. Uma reconstrução gestada por mulheres a fim de gestar a potência e sobrevivência de um
povo: O Negro.
perfil Eliane Potiguara
Eliane Potiguara: antes que tudo em mim se transforme em morte
ALBERTO PUCHEU

Ao menos desde de 2013, parece-me haver uma inflação no uso do termo resistência. Historicamente,
quem mais resiste no Brasil são os negros e os povos originários, junto com pobres, mulheres, pessoas
LGBTQIA+, ativistas empenhados e outros grupos. Como aparece a resistência em Metade cara, metade
máscara, de Eliane Potiguara?
Na abertura desse livro híbrido – com testemunhos, ensaios políticos, poemas... –, o texto “Invasão às
terras indígenas e a migração” parte da fuga e sobrevivência da esposa e da filha de Sepé Tiaraju,
assassinado em 1756, para contar “o início da solidão das mulheres indígenas, motivada pela violência,
pelo racismo e por todas as formas de intolerância”.
Por meio da cena prototípica, outras a desdobram em uma história continuada de invasões territoriais,
assassinatos, incêndios de pessoas vivas, casas e florestas, desaldeamentos, escravizações, contágios por
doenças letais, destruições do sagrado, contaminações de rios, migrações, separações familiares,
estupros, perdições nas cidades, alcoolismos, suicídios, loucuras, prostituições, tráficos de mulheres e os
mais diversos tipos de violações.
A história de Marina (esposa de Sepé Tiaraju) e de sua filha é paradigmática por mostrar-se singular
e coletiva: a emigração da víuva e da menina dá visibilidade ao que ocorreu com tantas outras indígenas
ao longo dos tempos. Ela serve para Eliane Potiguara introduzir sua história familiar, em uma mise en
abyme de uma comunidade repetidamente violentada, com um caso “comum a milhares de brasileiros,
migrantes indígenas”.
Se o poema “Migração indígena” afirma “Ah!... Não sei mais continuar esses cânticos/ Porque a mim
tudo foi roubado”, como é possível testemunhar? Hoje, para esses povos, cantar ou testemunhar é o mais
difícil, já que a “maioria de famílias indígenas violentadas, que continua em aldeias indígenas ou que faz
parte das famílias desaldeadas ou desestruturadas, permaneceu calada, enferma, enlouquecida, isolada na
sociedade envolvente. Famílias caladas pela pressão política, social e econômica ou por desconhecerem
seus direitos ou, até mesmo, por vergonha”.
A necessidade de tais histórias se deve ao apelo a formar comunidade: com elas, outros relatos vêm à
tona. Nesse estímulo à fala das mulheres, como coloca o poema “A denúncia”, descobre-se o que as
impede de falar e o que as autoriza a fazê-lo: “Ó mulher, vem cá/ Que fizeram do teu falar?/ Ó mulher
conta aí...// Conta aí da tua trouxa/ Fala das barras sujas/ dos teus calos na mão/ O que te faz viver,
mulher?/ Bota aí teu armamento./ Diz aí o que te faz calar.../ Ah! Mulher enganada/ Quem diria que tu
sabias falar?!”. Quem perdeu a fala é incitada tanto a denunciar a violência que a obrigou a calar como a
dizer o que a faz viver, dando um testemunho do “sofrer todas as dores que uma mulher pode sofrer”.
Como resultante do testemunhar, a mulher levada a desaprender a falar transforma a dor da
obrigatoriedade do calar na retomada de uma sabedoria paciente e profunda. Tornar-se testemunha é uma
conquista da importância de tal acontecimento também para constituir um “inquérito” que, jurídica e
politicamente interventivo, consiga “resgatar a dignidade e a cidadania dessas famílias vítimas de
racismo, exploradas e escravizadas por processos colonizadores em todo o território nacional, assim
como também o foram os Povos Ressurgidos e os Quilombolas”.
Enquanto, no livro, há o poema “Identidade indígena”, acrescido da dedicatória “Em memória de
meus avós, escrito em 1975 (Versão indígena)”, em anos posteriores, ele aparece intitulado “Em
memória do índio Chico Solón” (com o qual a poeta participa da primeira Antologia Poética Cult),
trazendo uma nota que estabelece o poema como testemunho: “O texto é o testemunho das lágrimas de
uma indígena vendedora de bananas, sua avó a refugiada Maria de Lourdes de Souza, filha do índio
Chico Solón, desaparecido das terras indígenas paraibanas por volta de 1920, quando se instalava ali a
neocolonização da agricultura algodoeira causando a fuga de famílias indígenas, oprimidas pela
escravidão moderna”.
A alternância do título de “Identidade indígena” para “Em memória do índio Chico Solón” sugere
que o dito sobre Chico Solón é, assim como a história de Sepé Tiaraju e seus parentes, paradigmático por
caracterizar o que se passa com grupos identitários indígenas na história brasileira. Subposto a “Em
memória do índio Chico Solón”, o título “Identidade indígena” se faz necessário pela ameaça constante
da “identidade perdida” (outro poema da coletânea).
Pai de três meninas, Chico Solón foi assassinado por uma família colonizadora inglesa ao defender
terras dos povos tradicionais no Nordeste, o que levou as filhas a migrarem para Pernambuco. Como
outras indígenas, uma dessas filhas, Maria de Lourdes, foi mãe solteira aos 12 anos, vítima de estupro
“por colonos que trabalhavam para a família inglesa, que escravizava a população indígena no plantio do
algodão”.
As quatro migraram para o Rio de Janeiro “em um navio em condições subumanas que trazia
nordestinos, indígenas e negros para o Sul do país”. Chegando sem qualquer dinheiro, ficaram nas ruas.
Quando Maria de Lourdes arranjou trabalho, moraram no Mangue, zona de prostituição da cidade. Sua
filha, Elza, teve um casal de filhos, que não conheceram o pai, logo morto.
Como Elza era faxineira, sua mãe criou a neta, mantida reclusa por proteção às ameaças do bairro e
preservação da tradição indígena no núcleo familiar. Essa menina é Eliane Potiguara, bisneta de Chico
Solón, que se tornou professora, casou-se com o músico Taiguara e, quando a avó morreu, rumou ao
Nordeste para conhecer a “verdadeira história” de sua família. Assumindo a herança de toda uma vida,
abraçou o território ancestral e ingressou no movimento indígena, conscientizando-se de que há “O
segredo das mulheres”, como no poema dedicado “À amada tia Severina, índia Potyguara, grande anciã
guerreira que muito me incentivou e me amou com a força da mulher indígena”: “No passado, nossas
avós falavam forte/ Elas também lutavam/ Aí, chegou o homem branco mau/ Matador de índio/ E fez
nossa avó calar/ E nosso pai e nosso avô a abaixarem a cabeça./ Um dia eles entenderam/ Que deviam se
unir e ficar fortes/ E a partir daí eles lutaram/ Para defender sua terra e cultura./ Durante séculos/ As avós
e as mães esconderam na barriga/ As histórias, as músicas, as crianças,/ As tradições da casa,/ O
sentimento da terra onde nasceram,/ As histórias dos velhos/ Que se reuniram para fumar cachimbo./ Foi
o maior segredo das avós e das mães./ Os homens, ao saberem do segredo,/ Ficaram mais fortes para o
amor, lutaram/ E protegeram as mulheres./ Por isso, homens e mulheres juntos/ São fortes/ E fazem
fortes os seus filhos/ Para defenderem o segredo das mulheres./ Pra que nunca mais aquele homem
branco/ Mate a história do índio!”.
Quando usada, a palavra resistência se coloca como uma ação diante da exposição contínua dos
indígenas a todo tipo de violência: “Durante o processo de escravidão indígena, muitos pais e famílias
cometiam o suicídio em massa contra essa forma de opressão. Atiravam-se dos penhascos. Isso era um
ato de resistência”. Como último e único modo de insubordinação e liberdade, resistir significa, aqui, a
escolha da morte coletiva à opressão da escravização em vida.
Há ainda a resistência dos que encontram outra saída. Eliane Potiguara afirma que “quase foi morta”,
“sofreu humilhações públicas, ameaças de morte, extorsões, inclusive difamação em vários jornais”,
“abuso sexual, prejudicando sua imagem moral, afetando seu trabalho, seu estado psicológico e de seus
filhos e prejudicando sua Organização”. Vulneravelmente exposta, no limite da morte, a feminista é uma
sobrevivente em luta pela afirmação das indígenas e da vida dos povos originários.
Com a mais firme convicção de que “gritos não podem ir para o túmulo”, a resistência nasce “antes
que tudo em mim se transforme em morte”, buscando a consciência dos povos, ações políticas, judiciais
e legislativas que lhes sejam favoráveis.
Falando de si na terceira pessoa, ressalta: “Entrou para o movimento indígena, criou políticas de
resistência, atuou em um trabalho de campo que beneficiou muitas pessoas, mas esbarrou com a força
reacionária, política e econômica do local. Quase foi morta por querer noticiar os fatos arbitrários e
trazer a conscientização dos direitos indígenas para o povo potiguara, que, na época, sofria o impacto
social e ambiental do arrendamento de suas terras por fazendeiros inescrupulosos que promoviam o
racismo ambiental”. Criou, ainda, o Grupo Mulher-Educação Indígena, ajudou a elaborar a Constituição
de 1988, a fundar o Comitê Inter-Tribal 500 Anos, participa do Fórum Permanente para Povos Indígenas
da ONU, de onde saiu a Declaração Universal dos Direitos Indígenas, esteve com Lélia Gonzalez em
Cuba a convite do Programa de Combate ao Racismo e participou de tantas outras “políticas de
resistências”.
Em passagem citada no livro, Olivio Jekupé afirma: “Perdemos nossas terras, a saúde, nossa comida,
nossos rios e tantas outras coisas mais, mas uma coisa nós índios não perdemos, é a resistência”. Para
que se possa permanecer enquanto povo, perde-se tudo, menos a resistência.
Primeira mulher indígena a publicar um livro, em seu volume da coleção Tembetá, ela ensina a todos
que hoje nos ocupamos com poesia: “A literatura indígena, na verdade, nunca existiu. Ela não existe, é
apenas uma estratégia de luta, um instrumento de libertação, de conscientização. Eu sempre considero
que a gente precisou partir para a literatura porque não tinha outros espaços. Estava todo mundo
ocupando nossos espaços. Eu vi centenas de pessoas escreverem sobre as lendas indígenas, alterando o
conteúdo do texto, o final da história. Escritores que não eram indígenas, que pegavam um mito e
alteravam para um texto escrito. Muda tudo. Não pode ser mudado. Aquilo é feito por indígena, alguém
tem de defender esse território também”.
colaboraram nesta edição
Alberto Pucheu é poeta, ensaísta e professor da Faculdade de Letras da UFRJ
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP,
autora de Quando me descobri negra (SESI-SP, 2015)
Christian Cravo é fotógrafo, com trabalhos expostos internacionalmente e indicados a prêmios como o
Paul Huff e o Prix Pictet
Katiúscia Ribeiro é doutoranda em Filosofia pela UFRJ
Luiz Antonio Simas é escritor e professor, mestre em História pela UFRJ
Luiz Rufino é doutor em Educação pela UERJ

Marcia Tiburi é filósofa, escritora, pós-doutora em Artes pela Unicamp, autora de Como conversar com
um fascista (Record, 2015) e Ridículo político (Record, 2017), entre outros
Marcio Sotelo Felippe é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Foi
procurador-geral do Estado de São Paulo
Rafael Haddock-Lobo é doutor em Filosofia pela PUC-Rio e professor do Departamento de Filosofia
da UFRJ e da UERJ
Wanderson Flor do Nascimento é doutor em Bioética pela UnB e professor do departamento de
Filosofia da mesma instituição
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA, autor
de A democracia no mundo digital: História, problemas e temas (Edições Sesc SP, 2018)
Table of Contents
1. coluna
1. Bianca Santana
2. Marcia Tiburi
3. Marcio Sotelo Felippe
4. Wilson Gomes
2. entrevista Lina Meruane
3. dossiê Filosofia e macumba
1. Apresentação
2. A gira macumbística da filosofia
3. Batalha contra o desencanto: a encruza como chegada
4. Da necropolítica à ikupolítica
5. Drible e flecha de fulni-ô
6. Mulheres negras e a força matricomunitária
4. perfil Eliane Potiguara
5. colaboraram nesta edição

Landmarks

1. Cover
2. Table of Contents

Você também pode gostar