Após a consulta preliminar, o psicanalista explica ao paciente
ou estudante a única regra que lhe caberá seguir durante as sessões psicanalíticas. Pede ao paciente que relaxe e diga tudo o que lhe venha ao espírito, tal como lhe ocorrer, ob- servando os pensamentos, os sentimentos e os impulsos que nascerão nele. O psicanalista permanece silencioso. Numa sessão em que se manifestava uma resistência tenaz, um de meus pacientes chamou a psicanálise de “uma situação impossível”. A sinceridade me obriga a reconhecer que em termos de convenção social ele tinha razão. É di- fícil entregar a um estranho os fatos mais íntimos de uma vida e ainda mais difícil confiar-lhe os pensamentos e as emoções que não se ousa admitir nem para si mesmo. Há momentos em que a situação ameaça verdadeiramente se tornar “impossível”. Suponha que o paciente conceba al- guns pensamentos ofensivos ou injuriosos sobre o analista. E se sentir impulsos afetuosos ou mesmo sexuais para com o analista? Isso acontece com frequência. O paciente não ignora, certamente, que deve tratar essa matéria como to- dos os outros pensamentos ou emoções que atravessam seu espírito. Já lhe foi dito que ele é tão pouco responsável por seus pensamentos quanto pela cor de seus olhos ou cabelos. 17 18 Três textos antigos sobre o silêncio
Ele deve aprender a superar esse obstáculo. De pouco
adiantaria apelar para sua consciência intelectual, ou dizer- lhe que tornar possível o que aparentemente é impossível é uma das principais tarefas dessa análise. Tentar convencê- lo, fazendo apelo à sua coragem moral, tem poucas chances de sucesso. Poder-se-ia dizer-lhe: “Eu espero que você se mostre à altura desta tarefa difícil, o que prova que tenho confiança em sua energia e boa vontade. Se Hércules viesse me ver para provar sua força, eu não lhe pediria para levantar uma poltrona acima da cabeça, mas lhe fi xaria uma tarefa mais difícil.” Todas essas palavras seriam trabalho perdido. Tudo quanto podemos é esperar que o paciente encontre por si mesmo a coragem de tornar possível o impossível. O resto é silêncio. Quase todas as dificuldades da psicanálise têm uma rela- ção com o dizer, com a “palavra”. Ouvimos com frequência – demais, parece – o argumento de que é impossível ima- ginar que uma doença histérica grave, um pensamento ob- sessivo agudo, uma fobia penosa possam dissipar-se somente por obra de “palavras”. Os que empregam esse argumento são os mesmos que, quando crianças, jamais duvidaram que uma palavra mágica abrisse uma montanha ou que, por uma fórmula, um feiticeiro pudesse transformar um homem em animal, ou que certos sons pudessem conduzir anjos ou demônios a um dado lugar. Mais tarde, essas mesmas pes- soas se entusiasmam pelo discurso de um chefe de Estado, convencem-se pela discussão de uma ideia, emocionam-se pela tragédia de um poeta, absolvem-se pela confi ssão a um sacerdote – palavras, palavras, palavras. E esses mesmos indivíduos – como provam a história das nações e a de suas No início é o silêncio 19
próprias vidas – não duvidam da soma de felicidade e de
miséria engendrada pelas palavras e do quanto as grandes decisões na vida dos homens dependem apenas de palavras. Não seria justo, no entanto, atribuir os resultados da psica- nálise unicamente ao poder das palavras. Seria mais exato dizer que a psicanálise prova o poder das palavras e o poder do silêncio.
* * *
Tanto se tem discutido a palavra em psicanálise, que muitas
pessoas evitam quase inteiramente os efeitos emocionais do silêncio. Se por acaso ele é mencionado, trata-se tão somente de pausas ocasionais do paciente. Escolhemos aqui uma tri- lha isolada, de poucos passantes até agora, pois vamos falar do silêncio do psicanalista, de sua significação na situação, de sua importância emocional, de seu sentido oculto. Ne- nhuma dúvida sobre isso, o silêncio do psicanalista se torna também uma das assim ditas “impossibilidades” da situação. Numa conversa, os interlocutores falam em alternância. Um diz ou conta alguma coisa, o ouvinte faz uma obser- vação, uma pergunta, emite um som que exprime interesse ou, por sua vez, conta uma história. Em sociedade evita-se o silêncio. Se alguém não tem nada a dizer, o outro fala. O analista não tem medo do silêncio. Como Saussure observou com justeza, o monólogo do paciente, por um lado, e o silêncio quase absoluto do psiquiatra, por outro lado, não constituíam um princípio metodológico antes de Freud.2 Compreendemos melhor seu sentido oculto ao 20 Três textos antigos sobre o silêncio
observar o efeito que produz no paciente. Devemos nos
corrigir aqui. Deveríamos ter dito “os efeitos”, pois eles são diferentes ao longo da psicanálise, não somente segundo os indivíduos, mas também num mesmo indivíduo. Isso significa, portanto, que o silêncio do psicanalista pode ter sentidos diferentes. É notável que desde a primeira sessão o paciente atribua certa significação emocional a esse silêncio. Por que não suporia estar ali a atitude natural e necessária ao analista, que ele deva calar-se para escutar atentamente? Na maioria dos casos, esse silêncio tem um efeito calmante e benéfico. O paciente o interpreta pré-conscientemente como um si- nal de atenção tranquila, que enquanto tal lhe traz uma prova de simpatia. Esse silêncio parece pedir-lhe que fale livremente, esquecendo temporariamente as inibições con- vencionais. Ainda não se destacou outro efeito emocional coordenado: o mundo de fora passa para o pano de fundo. A calma age como um abajur que transforma a luz crua demais. A pressão pela proximidade da realidade material se desloca. De alguma maneira, o silêncio do analista pa- rece marcar que se começa a olhar o outro e a si próprio de maneira mais calma, menos imediata. O paciente penetra na situação analítica, única em nossa civilização, saindo do silêncio. Ele fez silêncio sobre algumas de suas experiências, emoções e pensamentos – mesmo que se tenha mostrado muito falante e o mais volúvel possível. Talvez tenha falado bastante de si mesmo e de suas experi- ências, mas não falou desse lado de si mesmo que aflora na situação analítica. No Pacífico, perto da ilha de Vancouver, encontra-se um lugar curioso, chamado Zona de Silêncio. No início é o silêncio 21
Foram muitos os navios que se esmagaram contra os roche-
dos nesse lugar e repousam no fundo do mar. Nenhuma si- rene é possante o suficiente para avisar os capitães. Nenhum ruído exterior penetra esta zona de silêncio, que se estende por muitas milhas. Neste setor, os ruídos do mundo exte- rior não alcançam mais o navio. Pode-se comparar o que chamamos de material recalcado a esta “zona de silêncio”. A psicanálise efetuou a primeira penetração neste domínio. Quando o paciente fala de si mesmo, os primeiros sons dis- tantes, apenas perceptíveis, alcançam sua zona de silêncio. Nessa primeira fase da psicanálise podem se produzir pausas mais longas; salvo algumas exceções, em geral são sinais de resistência superficial, determinada pelo fato de que o paciente deve se ajustar a uma situação estranha e insó- lita. Mesmo assim, as resistências iniciais são comparáveis ao trovão longínquo que anuncia tempestade em algum lugar. Lentamente, o silêncio do psicanalista muda de signifi- cação para o paciente. Algo lhe veio ao espírito que não lhe agrada dizer ou que lhe é difícil dizer. Fala de uma coisa e outra, sentindo muito bem que evita aquela que quer se exprimir. E depois se cala, como o psicanalista. A situação não mostrou ainda sua aparente impossibilidade, mas, pela primeira vez, seu desconforto. O paciente o sente e reco- meça a falar de coisas secundárias, ninharias. Mas o pensa- mento que rejeitou retorna. Parece que quer ser expresso, ou forçará o muro de silêncio impondo-se e interferindo com qualquer outro encadeamento de ideias. É possível que então o paciente se volte para o psicanalista para pedir ajuda, mas esse último guarda silêncio, como se fosse a única atitude normal, sem preocupação aparente com o mundo social que 22 Três textos antigos sobre o silêncio
evita um silêncio tão embaraçoso numa conversação. Uma
paciente havia cortado seu relato com uma longa pausa, que tentava em vão suprimir falando de coisas indiferen- tes. Depois recaiu num longo silêncio. Era evidente que ela não queria falar de certa experiência cuja lembrança era acompanhada de sentimentos penosos. Finalmente declarou: “Façamos silêncio sobre outra coisa.” Em certo momento da análise, o silêncio do analista torna-se um fator que favorece a reciprocidade das forças emocionais. Parece proibir que se passe por cima dos pro- blemas e faz tomar consciência daquilo que escondem os comentários sobre o tempo ou sobre a biblioteca que ali está. O poder ativo do silêncio torna transparentes os pe- quenos nadas da conversação e possui uma força que arrasta o paciente e o faz progredir, empurra-o para profundezas maiores do que havia visualizado. Eis aqui um fato psicológico surpreendente e raramente observado: quando as pronunciamos, as palavras têm um valor diferente do que quando as pensamos em nossas re- presentações verbais. A palavra articulada tem um efeito retroativo sobre quem fala. O silêncio do analista intensifica essa reação; age como um quebra-voz. O analista que anos a fio seguiu atentamente essa luta com o ego tem cada vez mais a impressão de assistir a um confronto entre potências que querem se exprimir e se afi rmar e outras que querem levar ao silêncio. Às vezes lhe acontece mesmo observar uma espécie de angústia após o ato. O paciente com frequência está ligeiramente amedrontado com o que acabou de dizer, ao mesmo tempo em que se sente aliviado por tê-lo dito. Aqui, o silêncio do analista age de maneira encorajadora No início é o silêncio 23
sobre o paciente e com maior eficácia do que as palavras. A
situação emocional do paciente, vista pelo analista, lembra a do prisioneiro que tenta se libertar. Seus esforços para exprimir em voz alta e inteligível o que estava recalcado me fazem pensar naquele pianista que diz um dia, mostrando seu instrumento: “Às vezes parece que me fecham lá dentro e tenho que encontrar o caminho através [dele].” Não é o momento de prosseguir sobre o significado psi- cológico do silêncio do analista no início de um tratamento. Não se trata de um simples silêncio. Ele vibra de palavras não articuladas. Sabemos que temos aí a condição indispensável para a recepção e a assimilação das comunicações feitas ao analista – e ainda mais.3 O analista não escuta somente o que está nas palavras, ele escuta também o que as palavras não dizem. Escuta com a “terceira orelha”, escutando o que dizem o paciente e suas próprias vozes interiores, o que surge de suas profundezas in- conscientes. Um dia Mahler fez esta reflexão: “Em música, o mais importante não está na partitura.” O mesmo vale para a psicanálise, o que é dito não é o mais importante. Parece-nos bem mais importante detectar o que o discurso esconde e o que o silêncio revela.
A Consciência interior (Traduzido): Um curso de lições sobre os planos internos da mente, intuição, instinto, mentação automática e outras fases maravilhosas dos fenômenos mentais