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A Filosofia Vedanta

A Filosofia Vedanta

Friedrich Max Müller

Palestras apresentadas na Royal Institution em marco de 1894

Tradução: Rerisson Cavalcante de Araújo


Nota prévia

Esta é a tradução da obra Three Lectures on the Vedanta


Philosophy, publicada em 1901, que reúne o texto de três palestras
ministradas em 1894 pelo linguista e orientalista alemão Friedrich
Max Müller na Royal Institution de Londres, na Grã-Bretanha.
Max Müller, como é mais conhecido, viveu de 1823 a 1900 e
foi um dos mais importantes linguistas do século XIX, em uma era
em que ser linguista tinha um significado, em alguns aspectos, bem
mais amplo do que hoje. Para ele e também para outros autores da
época, o estudo da religião e da mitologia comparada de civilizações
antigas era considerado uma parte das tarefas dos estudos
linguísticos, como um pré-requisito e desdobramento natural da
principal orientação da linguística da época, que era o estudo
histórico e comparativo das línguas antigas, de sua evolução,
desenvolvimento e filiação. Essa inclinação para os estudos de
mitologia comparada saem completamente do escopo da linguística
a partir do início do século XX, principalmente com a influência do
pensamento saussureano e estruturalista nos estudos da
linguagem.
Nascido em Dessau na Alemanha e filho do poeta lírico
Willhelm Müller, Max Muller estudou na Universidade de Leipzig,
onde conseguiu seu doutorado em 1843, com apenas 19 anos de
idade, com uma tese sobre Espinosa. Max Muler também passou
algum tempo em Berlim, para estudar com Friedrich Schelling, que
teve considerável influência sobre o desenvolvimento de seu
pensamento. Foi a pedido de Schelling que ele começou a traduzir
trechos dos Upanishads hindus.
Ao longo de sua carreira, Max Muller traduziu, publicou e
editou diversos livros sobre a cultura, religião e língua dos hindus e
de outros povos orientais. Dentre eles, merece destaque a edição
de The Sacred Books of the East, uma coletânea em 50 volumes,
entre 1879 e 1910, contendo diversos textos sagrados do
hinduísmo, budismo, taoismo, confucionismo, jainismo e islamismo,
traduzidos por diversos acadêmicos, incluindo o próprio Muller. Em
1846, ele viaja para a Inglaterra, onde se passou grande parte de
sua carreira e onde ele trabalhou bastante para difundir o
pensamento alemão, especialmente, a nascente ciência da
linguagem.
Algumas publicações de Max Muller

Sobre hinduísmo
A History of Ancient Sanskrit Literature So Far As It Illustrates the
Primitive Religion of the Brahmans (1859)
Introduction to the Science of Religion (1873)
Lectures on the origin and growth of religion as illustrated by the
religions of India (1878)
India, What can it Teach Us? (1883)
Six Systems of Hindu Philosophy (1899)

Sobre religião e mitologia comparada


Introduction to the Science of Religion (1873)
Natural Religion (1889)
Physical Religion (1891)
Anthropological Religion (1892)
Theosophy, or Psychological Religion (1893)
Contributions to the Science of Mythology (1897)
Comparative Mythology: an essay (1909)

Sobre linguística
Lectures on the Science of Language – vol. 1 (1866)
Lectures on the Science of Language – vol. 1 (1866)
Three Lectures on the Science of Language and its Place in General
Education (1882)
Sumário

Nota prévia

Algumas publicações de Max Muller


Primeira Palestra: A origem da filosofia vedanta
A importância da filosofia
O que é importante e o que é apenas interessante
A importância da filosofia vedanta
Opiniões de Schopenhauer, Sir W. Jones, Victor Cousin, P.
Schlegel sobre o Vedanta
O Vedanta, uma filosofia e uma religião
Os quatro estágios da vida
A relação da Alma (Atman) com Brama (Parama-atman)
O caráter assistemático dos Vedas
Desenvolvimento do pensamento religioso e filosófico antes dos
Upanishads
Crer em um só Deus
Duas formas do Vedanta
Os Upanishads tratados como livros revelados, não históricos
Preparação moral para o estudo do Vedanta
Desconfiança das evidências dos sentidos
A linguagem metafórica dos Upanishads

Segunda palestra: A alma e Deus


Amostras do Upanishads
A análise do subjetivo e do objetivo por Shankara
A herança do Vedanta
Não há um Vedanta esotérico
A relação entre o Brâma Superior e o Bramá Inferior
A relação entre o Atman Superior e o Atman vivente
Diferentes concepções de alma na filosofia indiana
As Upadhis como a causa da diferença entre a alma e Deus
A psicologia do Vedanta
Nossa mente não é o nosso Eu (Atman)
As Upadhis derivadas da Avidya
Avidya destruída pelo conhecimento
Como a alma pode ser uma com Deus

Terceira palestra: Semelhanças e diferenças entre a filosofia


indiana e a europeia
A estranheza da filosofia oriental
O interesse geral da filosofia indiana
O tratamento crítico da literatura oriental
A sílaba sagrada Om
Tudo que fosse antigo se tornou sagrado
Livros para o estudo do Vedanta
Coincidências. A substância de Espinosa
O significado do Real
A natureza de Avidya e Maia
Colebrooke sobre o Maya
Sir W. Jones sobre o Vedanta
Os dois Bramas são um
Os germes do Vedanta nos Upanishads
O conhecimento de Brama
Nome e formas como objetos do conhecimento de Brama
Pensamento e linguagem inseparáveis
Coincidências entre o Nâma-rûpa e o Logos Grego
A fala como um poder criador nos Vedas
Semelhanças com a Sabedoria do Antigo Testamento
Brama significava Palavra?
Brama derivado da mesma raiz que verbum e word
Nâma-rûpa, a conexão entre Brama e o mundo
Os deuses de outras religiões
Nâma-rûpa, o produto da Avidyâ
O Vedanta na vida prática
A Ética do Vedanta
A doutrina do karma
A pré-existência da alma
Recapitulação
Primeira Palestra: A origem da filosofia vedanta

A importância da filosofia

Tenho plena consciência das dificuldades que encontrarei ao


tentar conquistar o seu interesse, quem dera a sua simpatia, para
um antigo sistema de filosofia indiano, a filosofia vendanta. Mesmo
entre os muros de uma instituição científica, não é uma tarefa fácil
conseguir uma audiência para um mero sistema de filosofia, novo ou
antigo. Nosso mundo é ocupado demais para puras especulações
teóricas; queremos experimentos excitantes e, se possível,
resultados tangíveis. Mas ainda me recordo de alguém que deve ser
bem conhecido para todos vocês neste local; ainda me lembro de
nosso querido amigo Tyndal[1], alegrando-se diante de uma nova
teoria, pois, segundo ele, “Graças a Deus, ela não irá produzir
nenhum resultado prático; ninguém jamais será capaz de registrar
uma patente ou ganhar dinheiro com ela”. Leibniz, creio eu, não
tirou patente alguma de seu Cálculo Diferencial, nem Isaac Newton,
de sua teoria da gravitação.
Confiando no estado de espírito de Tyndal, que foi por muito
tempo a disposição dominante nesse atarefado laboratório do
pensamento, tenho a esperança de que ainda restarão entre esses
muros alguns de seus amigos e admiradores, desejosos por ouvir
meras especulações — especulações que nunca produzirão
resultados tangíveis, no sentido ordinário da palavra, e a partir das
quais, certamente, ninguém poderá tirar uma patente e, mesmo se o
conseguisse, não poderia esperar conseguir algum dinheiro por ela;
e, apesar disso, essas especulações estão relacionadas aos mais
elevados e mais valiosos interesses da vida humana.

O que é importante e o que é apenas interessante


O sistema de filosofia para o qual me atrevo a reivindicar a
sua atenção está principalmente preocupado com a alma e sua
relação com Deus. Ele vem da Índia e provavelmente tem mais de
dois mil anos. Convenhamos, a alma não é um assunto muito
popular nestes dias. Mesmo que a sua existência não seja
totalmente negada, há muito tem estado entre os assuntos sobre os
quais se pode dizer que “é tolice ser sábio”. Entretanto, se eu
chamasse atenção de uma plateia para um sistema de filosofia
grega ou alemã, se eu falasse o que Platão ou Kant disseram sobre
a alma, é possível que as palavras destes fossem consideradas,
pelo menos, dignas de curiosidade. Mas devo dizer imediatamente
que isso não me satisfaria. Eu vejo interessante ou curioso como as
mais preguiçosas e mais censuráveis das palavras. Se um homem
diz: “É, isso é interessante” ou “isso é curioso”, o que ele quer dizer?
O que ele realmente quer dizer com isso é: “É, isso é bem
curioso, mas só isso”. Mas por que só isso? Não porque seja algo
sem importância em si mesmo, mas simplesmente porque, nos
meandros de sua própria mente, não há nenhum lugar ainda pronto
para recebê-lo; simplesmente, porque os acordes de sua mente não
estão sintonizados com a questão e não vibram em harmonia com
ela. Simplesmente, porque não temos nenhuma simpatia real com
ela. Para uma mente bem centrada e para um intelecto bem
organizado, não deve haver nada que seja simplesmente curioso.
Ao contrário, é algo inteiramente verdadeiro que quase todas as
grandes descobertas, todo progresso real no conhecimento humano
foi alcançado graças àqueles que puderam descobrir algo realmente
importante, cheio de grande potencial, por trás daquilo que o mundo
em geral considerava algo simplesmente interessante.
A faísca elétrica do relâmpago tem sido algo curioso desde
que o mundo existe. Mas parece que foi apenas ontem que se
tornou realmente importante. Se meu objetivo fosse simplesmente
entretê-los, eu poderia colocar diante de vocês uma ampla coleção
de curiosidades sobre a alma, contar-lhe uma infinidade de
trivialidades curiosas sobre a alma, coletadas de povos civilizados e
incivilizados. Há, por exemplo, os próprios nomes dados à alma,
alguns deles, sem dúvida, bastante interessantes.
Entre os nomes aplicados à alma, alguns significam fôlego;
outros, coração; outros, diafragma; outros, sangue; outros, a pupila
dos olhos – todos revelando que tinham como referência algo
relacionado ao corpo, algo que deveria ter sua morada no olho, no
coração, no sangue ou na respiração, ainda que diferente de cada
um desses objetos materiais grosseiros. Outros nomes são
puramente metafóricos, por exemplo, quando a alma é chamada de
pássaro, não porque se acreditasse que ela fosse um pássaro,
enjaulado no corpo, mas porque parecia, em seus pensamentos e
fantasia, provida de asas. Ou quando é chamada de sombra, não
porque se acreditasse que fosse a própria sombra real, que o corpo
lança em uma parede (embora isso seja defendido por alguns
filósofos), mas porque era semelhante a uma sombra, algo
perceptível, porém imaterial e que não pode ser captado.
Mas é claro que, após a alma ser comparada e chamada de
sombra, abriu-se espaço para todo tipo de superstição, até que as
pessoas se convencessem, por exemplo, de que um cadáver não
era mais capaz de produzir uma sombra. De modo semelhante,
quando a alma foi concebida e nomeada, seu nome (em grego
ψνχή) também foi atribuído à borboleta, provavelmente porque a
borboleta emerge alada da prisão de seu casulo. E aqui, também, a
superstição logo entrou em cena e se passou a representar
pictoricamente a alma dos falecidos como uma borboleta que saia
de suas bocas. Não existe uma única tribo, por mais bárbara e
incivilizada que seja, que não tenha um nome para a alma que a
indique como algo que é diferente do corpo, mas ainda assim
intimamente ligado a este e agindo em seu interior.
Bem recentemente, fui apresentado, pelo Bispo da
Caledônia do Norte[2], a uma nova metáfora para alma. Os índios
tsimshians[3] têm uma palavra que significa ao mesmo tempo alma e
fragrância. Quando questionados pelo bispo sobre o assunto, os
índios responderam: “Não é a alma de um homem para seu corpo o
mesmo que a fragrância é para a flor?” Isto, sem dúvida, é uma
metáfora tão boa quanto qualquer outra e pode reivindicar um lugar
ao lado da metáfora usada por Platão no Fédon, em que ele
compara a alma a uma música harmoniosa que pode ser tirada de
uma lira.
Se eu quisesse excitar seu interesse quanto a uma coleção
de tais curiosidades, poderia colocar diante de vocês vários nomes,
uma infinidade de metáforas, vários e diferentes provérbios com
referência à alma. Mais do que isso, se as considerarmos como
contribuições para um estudo da evolução da mente humana, como
documentos para a história da sabedoria humana ou loucura
humana, tais frases curiosas podem até mesmo reivindicar certo
valor científico, dando-nos uma visão da antiga oficina do intelecto
humano.

A importância da filosofia vedanta

Mas devo dizer imediatamente que não me darei por


satisfeito, nessa apresentação, com uma lista de metáforas, por
mais poéticas ou belas que sejam. Ao colocar diante de vocês um
esboço da filosofia vedanta, tenho em vista objetos muito mais
elevados. Desejo reivindicar a simpatia não só de suas mentes, mas
também de seus corações, para as reflexões mais profundas dos
pensadores indianos sobre a alma. Afinal, duvido que a alma tenha
realmente perdido entre todos nós o charme que exerceu sobre os
antigos pensadores.
Nós ainda dizemos: “De que adianta um homem ganhar o
mundo inteiro e perder a sua alma?” Como podemos reconhecer
que temos uma alma a perder, se não soubermos o que queremos
dizer por alma? Mas, se lhes parece estranho que os antigos
filósofos indianos soubessem mais sobre a alma do que os filósofos
gregos ou medievais ou mesmo os modernos, lembremo-nos de
que, se os telescópios para observação das estrelas foram
aperfeiçoados cada vez mais com o tempo, os observatórios da
alma, ao contrário, permanecem exatamente os mesmos desde
sempre. Aliás, estou plenamente convencido de que as observações
agora feitas nos chamados laboratórios físico-psicológicos da
Alemanha, por mais interessantes que sejam para os fisiologistas,
não forneceriam nenhuma contribuição real a nossos filósofos
vedantinos. A paz e quietude que são necessárias para a reflexão
profunda ou para a observação precisa dos movimentos da alma
são mais facilmente encontradas nas florestas silenciosas da Índia
do que nas ruas barulhentas dos nossos chamados centros da
civilização.[4]

Opiniões de Schopenhauer, Sir W. Jones, Victor


Cousin, P. Schlegel sobre o Vedanta

Permitam-me que lhes conte que opinião tinha, sobre a


filosofia vedanta tal como contida nos Upanishad, Schopenhauer,
um filósofo bastante familiarizado com todos os sistemas históricos
de filosofia e, certamente, alguém em nada inclinado a declarações
extravagantes em louvor de qualquer filosofia a não ser a sua
própria. Em suas palavras,

“No mundo inteiro, não há um estudo tão benéfico e tão


elevado quanto o dos Upanishads. Foi o consolo da minha vida,
será o consolo da minha morte.”

Se essas palavras de Schopenhauer exigissem algum


endosso, eu poderia dá-lo de bom grado como resultado da minha
própria experiência durante uma longa vida dedicada ao estudo de
muitas filosofias e muitas religiões.
Se a filosofia significa a preparação para uma morte feliz, ou
uma euthanasia, não conheço uma preparação melhor para ela do
que a filosofia vedanta. E, de qualquer forma, Schopenhauer não é
a única autoridade que fala em termos tão arrebatadores das
filosofias antigas da Índia, especialmente da vedanta.
Sir William Jones[5], uma reconhecida autoridade tanto em
estudos orientais quanto em estudos clássicos europeus, observa
que é impossível ler o Vedanta ou as muitas composições
dedicadas a explicá-lo, sem acreditar que Pitágoras e Platão
retiraram suas teorias sublimes da mesma fonte com os sábios da
Índia (Works, Calcutá, ed. i. p. 20, 125, 127.).[6]
Não é inteiramente claro se o senhor William Jones quis
dizer literalmente que os filósofos gregos tomaram sua filosofia de
empréstimo da Índia. Se essa foi a intenção, acharemos muito
poucos adeptos dessa ideia em nossa época, pois um estudo mais
amplo da humanidade nos tem mostrado que algo que tenha
acontecido em um país também pode ter ocorrido em outro de modo
independente. Mas permanece o fato de que as semelhanças entre
esses dois ramos de pensamento filosófico na Índia e na Grécia são
muito surpreendentes e, às vezes, até desconcertantes.
Quando Victor Cousin, o maior entre os historiadores da
filosofia na França, palestrou em Paris nos anos 1828 e 1829 sobre
a história da filosofia moderna, falou nos seguintes termos, segundo
se conta, diante de uma audiência dois mil cavalheiros:

“Quando lemos com atenção as grandes obras poéticas e


filosóficas do Oriente, especialmente as da Índia, que começam
agora a se espalhar na Europa, descobrimos muitas verdades e
algumas delas tão profundas e que contrastam tanto com a
mediocridade dos resultados em que o gênio europeu às vezes se
estagnou, que somos obrigados a dobrar o joelho diante da filosofia
do Oriente e a ver, neste berço da raça humana, a terra nativa da
mais elevada filosofia.” (Vol. i, p 32.)

Os filósofos alemães sempre foram os mais ardentes


admiradores da literatura sânscrita e, em especial, da filosofia
sânscrita. Um dos primeiros estudiosos de sânscrito, o verdadeiro
descobridor da existência de uma família de fala indo-europeia,
Frederick Schlegel, em seu trabalho sobre Língua, literatura e
filosofia indianas (p. 471), observa:

“Não se pode negar que os primeiros indianos possuíam um


conhecimento do Deus verdadeiro; todos os seus escritos estão
repletos de sentimentos e expressões nobres, claras e imponentes,
concebidas de modo tão profundo e expressas com tamanha
reverência quanto em qualquer outra linguagem humana pela qual
os homens tenham falado de seu Deus.”

E novamente:

“Mesmo a mais alta filosofia dos europeus, o idealismo da


razão, tal como estabelecido pelos filósofos gregos, aparece, em
comparação com a abundante luz e vigor do idealismo oriental,
como uma débil centelha de Prometeu em meio a um verdadeiro
dilúvio da glória celestial do meio-dia: fraca e vacilante e sempre
pronta para se extinguir.”

E, no que se refere mais especificamente à filosofia de


Vedanta, ele diz:

“A origem divina do homem é continuamente reafirmada, de


modo a estimular seus esforços para retornar, para animá-lo na luta
e incitá-lo a considerar uma reunião e reassimilação com a
divindade como a o objeto primário de cada ação e esforço.”[7]

O Vedanta, uma filosofia e uma religião

O que distingue a filosofia vedanta de todas as outras é ser


ao mesmo tempo uma religião e uma filosofia. Entre nós, a opinião
predominante parece ser a de que religião e filosofia são não
apenas diferentes, mas antagônicas. É verdade que,
constantemente, há tentativas de se conciliar filosofia e religião. Mal
podemos abrir uma seção de Resenhas sem encontrar um novo
Eirenicon[8] entre Ciência e Religião. Não apenas lemos sobre uma
Ciência da Religião, mas até mesmo sobre uma Religião da Ciência.
Mas todas essas tentativas, bem ou malsucedidas, demonstram, em
todos os casos, que tem havido um divórcio entre as duas. E por
quê? A filosofia e a religião estão ambas em busca da verdade;
então, por que haveria algum antagonismo entre elas?
Muitas vezes se diz que a religião apresenta diante de nós a
verdade através da autoridade, enquanto a filosofia apela apenas ao
próprio espírito da verdade, ou seja, a nosso próprio julgamento
particular, deixando-nos perfeitamente livres para aceitar ou rejeitar
as doutrinas dos outros. Mas tal opinião traz em si uma profunda
ignorância da história das religiões.
O fundador de uma nova religião, de início, nunca possui
uma autoridade maior do que a do fundador de uma nova escola de
filosofia. Muitos deles foram desprezados, perseguidos e até mortos,
e seu último apelo foi sempre o que deveria ser — um apelo ao
espírito da verdade dentro de nós, e não a doze legiões de anjos,
nem, como ocorre mais tarde, aos decretos dos concílios, às bulas
papais, ou às palavras escritas de um livro sagrado.
Em nenhum outro lugar, no entanto, nos deparamos com o
que encontramos na Índia, onde a filosofia é vista como o resultado
natural da religião; mais do que isso, como a sua flor e fragrância
mais preciosa. Se a religião leva à filosofia ou se a filosofia à
religião, na Índia os dois são inseparáveis. E ambas nunca teriam
sido separadas entre nós, se o medo dos homens não tivesse sido
maior do que o medo de Deus ou da Verdade.
Enquanto, em outras nações, os poucos que refletiam de
modo mais profundo sobre sua religião e entravam plenamente no
espírito de seu fundador podiam ser chamados de hereges pelos
ignorantes, e até mesmo ser punidos pelo bom trabalho feito ao
purificar a religião da crosta de superstição que sempre se formará
ao seu redor, na Índia, esses mesmos foram honrados e
reverenciados, mesmo por aqueles que ainda não poderiam segui-
los na atmosfera mais pura de pensamento livre e irrestrito.
Também não havia na Índia nenhuma necessidade de que
os pensadores sinceros ocultassem suas doutrinas por trás do nome
da religião esotérica. Se a religião precisa se tornar esotérica para
sobreviver, como muitas vezes ocorre entre nós, de que ela serve?
Por que as convicções religiosas deveriam temer a luz do dia? Algo
ainda mais admirável nos antigos crentes e filósofos da Índia é que,
mesmo na posição elevada que lhes foi concedida por causa de seu
conhecimento superior e santidade, eles nunca desprezavam os que
ainda não haviam se erguido até o seu próprio nível. Eles
reconheciam os estágios anteriores de estudo submisso e de
serviço ativo como passos essenciais no caminho para a liberdade
que eles próprios gozavam; além disso, eles não admitiram em sua
companhia ninguém que não tivesse passado por essas etapas de
obediência passiva e utilidade prática. As três coisas que eles
pregavam a todos com uma voz de trovão:

Damyata. Subjugue-se, subjugue as paixões dos sentidos,


do orgulho e da vontade própria;
Datta. Doe, seja liberal e caridoso para o próximo; e
Dayadhvam. Tenha piedade daqueles que merecem sua
piedade, ou, como diríamos, “Ama ao teu próximo como a ti
mesmo”.

Esses três comandos, cada um começando com a sílaba


Da, eram chamados de os três Da’s e tinham que ser cumpridos
antes de qualquer expectativa por uma luz mais elevada (Brihad
Âranyaka Upanishad V, 2), antes que o principal objetivo dos Vedas,
o Vedanta, poder ser alcançado.
Vedanta significa o fim dos Vedas, seja se o tomamos no
sentido de parte final ou no sentido de objetivo final dos Vedas. Os
Vedas, como se sabe, são a antiga bíblia dos brâmanes, e
quaisquer que sejam as seitas e os sistemas que surgiram dentro da
sua religião durante os três mil anos de existência, todos eles, com
exceção do budismo, concordam em reconhecer os Vedas como a
autoridade máxima em todas as questões religiosas. A filosofia
vedanta, portanto, reconhece em seu próprio nome sua
dependência dos Vedas e a unicidade da religião e da filosofia. Se
tomarmos a palavra em seu sentido mais amplo, Vedas significa
conhecimento em geral, mas tornou-se um nome específico para a
bíblia hindu; e essa bíblia consiste em três de partes: os Samhitas,
ou coleções de orações métricas e hinos de elogios; os Brâmanas,
ou tratados em prosa sobre os sacrifícios; e os Aranyakas, livros
destinados aos moradores da floresta, cuja parte mais importante é
formada pelos Upanishads.[9] Estes Upanishads são tratados
filosóficos e seu princípio fundamental pode parecer, aos nossos
olhos, como subversivos em relação à religião. Nos Upanishads,
todo o sistema ritual e sacrificial dos Vedas não é apenas ignorado,
mas diretamente rejeitado como inútil e também malicioso. Os
antigos deuses dos Vedas não são mais reconhecidos. Apesar
disso, os Upanishads são vistos como perfeitamente ortodoxos e
também como a maior consumação da religião bramânica.
Essa situação é causada pelo reconhecimento de um fato
muito simples que quase todas as outras religiões parecem ter
ignorado. Desde tempos muito antigos, reconheceu-se na Índia que
a religião de um homem adulto não pode ser e não deve ser a
mesma de uma criança. Que, com o desenvolvimento da mente, as
ideias religiosas de um homem mais velho devem ser diferentes das
de um homem no auge de seu vigor físico. É inútil tentar negar
esses fatos.
Sabemos disso tudo desde o momento em que emergimos
da felicidade irrefletida da fé de uma criança e temos que lutar com
fatos importantes que nos pressionam de todos os lados, da história,
da ciência e do conhecimento do mundo e de nós mesmos. Depois
de se recuperar dessas lutas, o homem geralmente assume sua
posição em certas convicções, que ele acredita poder manter e
defender honestamente. Há certas questões que ele considera
como resolvidas de uma vez por todas, para nunca mais serem
abertas; há certos argumentos aos quais ele não vai sequer dar
ouvidos, porque, embora não tenha réplicas para dar, não quer
ceder a eles. Mas quando a noite da vida se aproxima e suaviza as
luzes e as sombras de opiniões conflitantes; quando concordar com
o espírito da verdade interior torna-se muito mais importante para
um homem do que concordar com a multidão do mundo lá fora,
essas velhas perguntas surgem para ele mais uma vez, como
amigos há muito esquecidos; ele aprende a suportar aqueles de
quem anteriormente diferia; e, ao mesmo tempo em que está
disposto a se separar de tudo o que não é essencial — e a maioria
das diferenças religiosas parece surgir no que não é essencial —,
ele se apega ainda mais às poucas tábuas fortes e sólidas que
restam para levá-lo ao porto final, agora já não mais distante do
alcance de sua visão. É difícil de acreditar que todas as outras
religiões tenham ignorado completamente esses fatos simples;
como tentaram impor a velhos e sábios o mesmo alimento destinado
aos bebês; e como, dessa forma, acabaram alienando e perdendo
seus melhores e mais fortes amigos. Essa é, portanto, uma lição da
história digna de ser aprendida: ao menos uma religião, uma das
mais antigas, mais influentes e mais amplamente difundidas,
reconheceu esse fato sem a menor hesitação.

Os quatro estágios da vida

De acordo com os antigos cânones da fé bramânica, cada


homem deve passar por três ou quatro estágios na vida. O primeiro
é o da disciplina, que dura da infância até a idade adulta. Durante
esses anos, o jovem homem é enviado de sua casa para um
professor ou guru, ao qual ele deve obedecer tacitamente e servir
de todas as formas; este, em retorno, tem que ensinar ao jovem
tudo o que é necessário para a vida, em especial os Vedas e o que
diz respeito a seus deveres religiosos. Durante todo esse tempo,
espera-se que o discípulo seja um recipiente passivo, um aprendiz e
um crente.
Segue-se, então, o segundo estágio, a fase adulta, durante
a qual o homem deve se casar, construir uma família e
desempenhar os deveres que são prescritos nos Vedas e nos livros
das leis para um chefe de família. Durante esses dois períodos,
nenhuma dúvida jamais é insinuada quanto à veracidade de sua
religião ou sobre a obrigatoriedade da lei que todos devem
obedecer.
Mas, com o terceiro período, que começa quando os
cabelos do homem se tornam brancos e ele já viu os filhos de seus
filhos, uma nova vida se abre, durante a qual o pai da família deve
deixar sua casa e sua vila e se retirar para a floresta com ou sem
sua esposa. Durante esse período, ele se vê livre da necessidade
de realizar qualquer sacrifício, embora possa e deva submeter-se a
certas abnegações e penitências, algumas extremamente dolorosas.
A ele é, então, permitido meditar com perfeita liberdade sobre os
grandes problemas da vida e da morte. E, para esse propósito,
espera-se que ele estude dos Upanishads, contidos nos Aranyakas
ou Livros da Floresta ou, ao menos — já que livros ainda não
existiam —, que ele aprenda suas doutrinas da boca de um mestre
qualificado. Nesses Upanishads, não apenas todos os deveres
sacrificiais são rejeitados, mas até os próprios deuses aos quais são
dirigidas as preces antigas dos Vedas são colocados de lado para
abrir espaço para o único Ser Supremo, chamado Brama[10].

A relação da Alma (Atman) com Brama (Parama-atman)

Os mesmos Upanishads devem, então, explicar a


verdadeira relação entre esse Brama, o Ser Supremo, e a alma do
homem. A alma humana foi chamada de Atman, literalmente o eu;
também de Givatman, o eu vivente; e, após a descoberta da
unidade substancial do eu vivente ou individual com Brama ou o Ser
Supremo, este Brama foi chamado o Supremo Eu ou Parama-
atman. Esses termos — Brama ou Atman, Givatman ou
Paramatman[11] — devem ser mantidos cuidadosamente na memória
para a compreensão da filosofia vedanta. O eu, como se pode
perceber, é um termo muito mais abstrato do que alma, mas tem a
intenção de expressar o que outras nações expressaram por termos
menos abstratos, como alma, anima, ψυχή ou πνεύμα.[12] Cada um
desses nomes ainda tem algum vestígio de seu uso predicativo
original, como movimento ou fôlego, enquanto atman, o eu, antes de
ter sido escolhido como um nome para a alma, tinha se tornado um
mero pronome, livre de qualquer conteúdo metafórico, expressando
nada além de existência ou autoexistência.
Esses não foram novos termos técnicos cunhados por
filósofos. Alguns deles são termos muito antigos, que ocorrem nas
mais antigas composições védicas, nos hinos, os Brâmanas, e
também nos Upanishads.
O sentido etimológico e original de Brama é incerto, e
tomaria demais de nosso curto tempo se eu me dispusesse a
examinar todas as explicações sobre ele que foram propostas por
intelectuais indianos e europeus. Espero retornar a esse ponto mais
tarde.[13] Para a presente palestra, é suficiente dizer que Brama
parece ter significado originalmente aquilo que surge ou irrompe,
seja na forma de pensamento ou palavras ou na forma de um poder
criativo ou força física.
A etimologia de atman também é difícil, e essa própria
dificuldade mostra que ambas as palavras, brama e atman, são
muito antigas e, do ponto de vista da história do sânscrito,
pertencem a uma fase pré-histórica da língua. Porém, qualquer que
tenha sido o sentido etimológico de atman, seja fôlego ou outra
coisa, já nos Vedas a palavra tinha se tornado um mero pronome.
Significava eu ou próprio, assim como no latim ipse. E foi apenas
após se tornar ipse que atman passou a ser usada para expressar a
ipseitas do homem, a essência ou alma tanto do homem quanto de
Deus.

O caráter assistemático dos Vedas


Podemos observar o desenvolvimento dessas reflexões nos
Upanishads e o seu tratamento mais sistemático nas Vedanta-
sutras. Quando lemos os Upanishads, a impressão que eles nos
deixam é que foram intuições ou inspirações repentinas, que
surgiram aqui e ali, de forma dispersa, e que foram coletadas
posteriormente. Mas, ainda assim, há um sistema por trás de todos
esses sonhos, existe um pano de fundo comum a todas essas
visões. Existe até mesmo uma abundância de termos técnicos
usados por diferentes autores com exatamente o mesmo sentido, de
tal modo que parece confiável que, por trás de todos vislumbres de
pensamento religioso e filosófico, existe, num passado distante, um
pano de fundo agora obscuro, do qual talvez nunca descubramos o
início. Há palavras, há frases, há citações e versos inteiros que
reaparecem em diferentes Upanishads e que devem ter sido
retiradas de um tesouro comum. Mas não temos nenhuma pista
sobre quem coletou esse tesouro ou onde estava escondido, apesar
de plenamente acessível aos sábios dos Upanishads.
O nome Upanishads significa, etimologicamente, “sentar-se
junto a alguém”, o equivalente ao francês séance ou session. Esses
Upanishads podem ser os frutos desses ‘encontros’ ou ‘reuniões’
que ocorreram sob a proteção de frondosas árvores nas florestas,
onde os sábios e seus discípulos se juntaram e expuseram o que
haviam coletado durante aqueles dias e noites passados em solidão
e meditação. Quando falamos de florestas, não devemos pensar em
regiões selvagens. Na Índia, a floresta próxima à vila era como um
retiro agradável, de clima ameno e silencioso, com flores e
pássaros, com cabanas e abrigos. Pensem como devia ser a vida
nessas florestas, como poucas preocupações e poucas ambições!
Sobre o que eles iriam pensar e falar se não a respeito de como
eles vieram a ser o que eram, o que eles eram e o que eles seriam
depois? O formato de diálogo é muito comum nessas obras, e elas
contêm as discussões de muitos sábios, que são tão comprometidos
no seu empreendimento de busca da verdade que eles
voluntariamente ofereciam suas cabeças aos adversários se estes
provassem que estavam errados. Mas, enquanto há uma completa
ausência de ensino sistemático nesses Upanishads, eles nos
oferecem mais uma vez uma amostra valiosa de um
desenvolvimento histórico real, que hoje é moda chamar de
“evolução”.

Desenvolvimento do pensamento religioso e filosófico


antes dos Upanishads

Há, de fato, alguns indícios de um desenvolvimento anterior


na vida espiritual dos brâmanes, e devemos nos deter por um
momento sobre esses antecedentes dos Upanishads, de modo a
entender o ponto a partir do qual a filosofia vedanta se iniciou.
Tenho sempre apontado que a importância real dos Vedas, o seu
caráter único, sempre será, não a sua grande antiguidade
cronológica, mas a oportunidade que ele nos oferece de observar o
processo ativo de fermentação do pensamento antigo.
Vemos nos hinos védicos a primeira revelação da Divindade,
as primeiras expressões de surpresa e dúvida, a primeira
descoberta de que, por trás desse mundo visível e perecível, deve
haver algo invisível, imperecível, eterno ou divino. Ninguém que
tenha lido os hinos do Rig-veda pode manter dúvidas sobre a
origem da primeira religião e mitologia ariana.
Quase todas as principais divindades dos Vedas possuem
vestígios inconfundíveis de seu caráter físico. Seus próprios nomes
nos dizem que foram no início nomes dos grandes fenômenos da
natureza, do fogo, da água, da chuva e da tempestade, do sol e da
lua, do céu e da terra. Posteriormente, podemos ver como essas
assim chamadas divindades e heróis se tornaram os centros de
tradições mitológicas, onde quer que os oradores arianos se
instalassem, seja na Ásia ou na Europa. Este é uma descoberta
alcançada e consolidada, e a luz produzida por ela lançou seus
raios muito além da mitologia e religião védica, iluminando os cantos
mais obscuros da história dos pensamentos mitológicos e religiosos
das outras nações arianas, bem como das nações que, por seus
idiomas, estão desconectadas dos falantes desses dialetos.
Da mesma forma, o desenvolvimento do conceito de Deus
se faz transparente nos Vedas como em nenhum outro lugar. Vemos
diante de nossos olhos como os poderes brilhantes do céu e da
terra se tornaram os Devas, os Brilhantes — ou os deuses, as
divindades de outras nações. Vemos como essas divindades
individuais e dramáticas deixaram de satisfazer a seus primeiros
adoradores; e nos deparamos com pensadores postulando,
incipientemente, um único Deus por trás de todas as divindades do
panteão mais antigo. Já por volta de 500 a.C., um escritor como
Yâska desenvolveu uma teologia sistemática, representando todas
as divindades védicas como, na verdade, apenas três: aquelas que
são como o Fogo, cujo lar é na Terra; como Indra, cujo lar é no ar, e
aquelas como o Sol, cujo lar é no céu; e ele declara que é a própria
grandeza da divindade que faz com que o Ser Divino único seja
celebrado como se fosse muitos.[14]

Crer em um só Deus

Vemos, entretanto, já nos hinos antigos, por volta de 1500


a.C., vestígios incipientes desse anseio por um Deus único. Os
deuses, embora individualmente separados, não eram
representados como limitados por outros deuses, mas cada deus é,
a cada vez, invocado como supremo, uma fase do pensamento
religioso, distinta do politeísmo comum, que tem sido descrita pelo
nome de henoteísmo. Assim, um dos deuses védicos, Indra, o deus
do ar, é chamado de Visvakarman, o Criador de todas as coisas,
enquanto o Sol (Savitar) é invocado como Pragâpati, o Senhor de
todos os viventes. Em alguns lugares, esse Um é chamado, de
forma neutra, como a grande Divindade de todos os deuses, mahát
devánâm asuratvám ékam (R.V. III, 55, i).
Estes foram, de fato, passos gigantes, e podemos vê-los
claramente em diferentes partes dos Vedas, a partir das mais
simples invocações aos agentes desconhecidos atrás do sol e da
lua, do céu e da terra, até a descoberta do Deus Único, o Criador do
céu e da Terra Senhor e Pai até, finalmente, a crença em uma
Essência Divina (Brama), da qual o Pai ou Criador de todas as
coisas é o que eles chamam de pratika ou rosto, ou manifestação ou
— como diríamos — a persona, a máscara, a pessoa.
Esse foi o desenvolvimento final do pensamento religioso,
que se iniciou com a crença natural em poderes invisíveis ou
agentes por trás do drama surpreendente da natureza e findou com
a crença em um único Grande Poder, o Deus desconhecido ou,
antes, o invisível, louvado (embora através de cultos feitos na
ignorância) durante muitos anos pelos poetas da era védica. Foi
este tesouro do pensamento religioso antigo que os sábios dos
Upanishads herdaram de seus antepassados. E agora nós podemos
ver que uso eles fizeram disso e como eles descobriram, por fim, a
verdadeira relação entre o que chamamos o Divino ou o Infinito
como visto objetivamente na natureza e o Divino ou o Infinito como
percebido subjetivamente na alma do homem. Devemos, agora,
estar em melhor posição para entender como eles ergueram, com
base neste antigo fundamento, o que era ao mesmo tempo a
filosofia mais sublime e a religião mais satisfatória, o Vedanta.

Duas formas do Vedanta

Quando falamos da filosofia vedanta, devemos distinguir as


duas formas em que a achamos. Nós a encontramos em uma forma
assistemática, ou seja, como um tipo de desenvolvimento errático
nos Upanishads, e a encontramos de novo, cuidadosamente
elaborada e plenamente sistematizada, nas vedanta-sutras. Essas
sutras, cuja data de elaboração é objeto de disputa, são atribuídas a
Badarayana[15]. Elas não formam um livro, no nosso sentido da
palavra, pois não são, de fato, mais do que títulos contendo a
quintessência da filosofia vedanta. Por si mesmos, elas seriam
completamente ininteligíveis, mas, se aprendidas de cor, como elas
eram e ainda são, formariam, sem dúvidas, um fio condutor bastante
útil pelo labirinto do vedanta. Ao lado dessas sutras, entretanto,
deve ter existido sempre um conjunto de ensinamentos orais e foi,
provavelmente, esse ensinamento tradicional que foi finalmente
reunido por Shankara, o mais famoso mestre do Vedanta, em seu
assim chamado comentário (Bhashya) sobre as Sutras. Mas esse
Bhashya, longe de ser um mero comentário, pode, de fato, ser
considerado como o verdadeiro corpo das doutrinas vedantinas,
para as quais as sutras formam não mais do que um índice útil.
Ainda assim, essas sutras devem ter logo adquirido uma autoridade
independente, pois elas foram interpretadas de diferentes formas
por filósofos diferentes, como Shankara, Ramanuja[16], Madhva,
Vallabha[17] e outros, que se tornaram fundadores de diferentes
correntes vedantas[18], todas apelando às sutras como sua
autoridade suprema.
O traço mais extraordinário dessa filosofia vedanta consiste,
como apontei antes, em ser um sistema de filosofia independente,
embora ainda inteiramente dependente dos Upanishads, uma parte
dos Vedas; ou seja, um sistema ocupado principalmente em provar
que todas as suas doutrinas, até os pontos mais minuciosos, são
derivados das doutrinas reveladas dos Upanishads, se corretamente
entendidas, que elas estão em perfeita harmonia com a revelação e
que não há nenhuma contradição dos vários Upanishads entre si.

Os Upanishads tratados como livros revelados, não


históricos

Era necessário proceder assim, pois os Upanishads eram


considerados revelações divinas; e essa crença estava tão
firmemente estabelecida que mesmo os filósofos mais ousados da
Índia tiveram que reconciliar suas próprias doutrinas com as de seus
antigos mestres inspirados. Isso é feito com a mais extraordinária
engenhosidade e uma perseverança digna de uma causa superior.
[19]
Para nós, os Upanishads têm, naturalmente, um interesse
totalmente diferente. Observamos neles o desenvolvimento histórico
do pensamento filosófico e, portanto, não somos ofendidos pela
diversidade de suas opiniões. Pelo contrário, esperamos encontrar
variedade e ficamos até contentes quando encontramos
pensamento independente e contradições aparentes entre mestres
distintos, embora a tendência geral de todos seja a mesma. Assim,
encontramos lado a lado tais enunciados como “No início, havia
Brama”, “no início havia o Eu”, “No início havia água”, “No começo,
havia o nada”, “No começo, havia algo”, ou para traduzir essas duas
sentenças mais corretamente para a linguagem da nossa filosofia
européia, “No início havia o μή ὅ ν” e “No começo havia τό ὅ ν”.
Encontramos até nos próprios Upanishads discussões causadas por
essas declarações contraditórias, destinadas a reconciliá-las, como
quando lemos no Khând. Up. VI, 27, “Mas como poderia é assim,
ser nascido daquilo que não é? Não, meu filho, apenas aquilo que é
foi no início, apenas um, sem um segundo”.[20] Mas, enquanto nos
Upanishads essas especulações sobre a verdade parecem surgir ao
acaso, posteriormente elas foram articuladas com grande paciência
e engenhosidade.[21] O propósito uniforme que existe em todos eles
foi claramente alcançado, e um sistema de filosofia foi erguido de
materiais tão diversos. Este não é apenas perfeitamente coerente,
mas bastante claro e distinto em quase todos os pontos da doutrina.
Embora, aqui e ali, as sutras admitam interpretações divergentes,
nenhuma dúvida é deixada em qualquer ponto importante da
filosofia de Shankara, o que é mais do que se pode dizer de
qualquer sistema de filosofia dos dias de Platão aos dias de Kant.

Preparação moral para o estudo do Vedanta

O estudo de filosofia na Índia era não apenas uma parte


integral da religião dos brâmanes, mas era baseado, desde o
começo, em um fundamento moral. Já vimos que ninguém era
admitido no estudo dos Upanishads se não tivesse sido iniciado
adequadamente por um mestre qualificado e se não tivesse
cumprido suas obrigações, tanto civis quanto religiosas, como um
chefe de família. Mas mesmo isso não era o bastante. Ninguém era
considerado pronto para a especulação filosófica se não tivesse
antes controlado suas paixões. Para refletir a luz do sol em toda a
sua calma e pureza divina, o mar não deve mais ser varrido pelas
tempestades. Assim, esperava-se que até o eremita na floresta
fosse um asceta e suportasse penitências severas como uma ajuda
para extinguir todas as paixões que pudessem perturbar sua paz. E
não era apenas o corpo que tinha que ser subjugado e endurecido
contra todos os distúrbios externos, como calor e frio, fome e sede.
Seis coisas tinham que ser adquiridas pela mente, a saber,
tranquilidade[22], autocontrole, abnegação, longanimidade,
serenidade e fé. De acordo com nossas concepções sobre a
filosofia[23], dificilmente essa tranquilidade poderia ser considerada
como a melhor característica para um filósofo, o qual deveria
derrubar montanhas para sacudir a fortaleza da verdade e
desbravar novos rumos na terra e nos céus. Mas devemos lembrar
que o objeto do Vedanta foi mostrar que não temos realmente nada
a conquistar, a não ser nós mesmos; que possuímos tudo dentro de
nós, e que nada é necessário senão fechar nossos olhos e nossos
corações contra a ilusão do mundo de modo a nos descobrirmos
como mais ricos do que o céu e a terra. Mesmo a fé, sraddhâ[24]
(cuja introdução como requisito para a filosofia nos parece
verdadeira ofensa, pois a filosofia, de acordo com Descartes,
deveria começar com o omnibus dubitare), tem seu lugar legítimo na
filosofia vedanta, pois, como a filosofia de Kant, ela nos conduz para
ver que muitas coisas estão além dos limites da compreensão
humana e devem ser aceitas ou cridas, sem serem compreendidas.
A seriedade da relação entre religião e filosofia para os
vedantinos pode ser percebida por aquilo que era considerado como
requisito essencial de um filósofo verdadeiro. Ele deve ter dominado
todos os seus desejos por recompensas, quer nessa vida ou na
próxima. Ele deve, portanto, jamais sonhar em adquirir riqueza, ou
conseguir fundar uma escola, ou ganhar um renome na história; ele
não deve sequer pensar em qualquer recompensa na forma de uma
vida melhor. Tudo isso pode soar bastante irreal, mas não posso
deixar de imaginar que, na Índia antiga, essas questões eram reais,
afinal, por que eles as teriam imaginado? A vida, então, era tão mais
simples e sem artificialidade que não havia desculpa alguma para
fantasias. Os brâmanes antigos nunca parecem estar fazendo pose
— eles raramente tinham um público a quem posar. Não havia
outras nações para observá-los e, mesmo se houvesse, estas eram
bárbaras aos olhos dos brâmanes, e seu aplauso não contaria para
nada. Não quero dizer, com isso, que os filósofos hindus eram feitos
de alguma matéria melhor do que nós mesmos. Apenas quero dizer
que muitas das tentações a que nossos modernos filósofos
sucumbem não existiam nos dias dos Upanishads. Sem querer
estabelecer alguma comparação depreciativa, considero necessário
apontar algumas das vantagens que os antigos pensadores da Índia
desfrutavam em sua solitude, de modo a dar conta do fato
extraordinário de que, após 2 mil anos, suas obras ainda sejam
capazes de prender nossa atenção, enquanto que, entre nós,
mesmo com todo o esforço de propaganda e com críticas favoráveis
e desfavoráveis, o livro de filosofia que é a sensação de uma
temporada costuma muitas vezes ser o livro de apenas uma
temporada. Na Índia, a filosofia dominante ainda é o Vedanta, e
agora que a impressão dos antigos textos sânscritos se consolidou
e se tornou lucrativa, há mais edições novas dos Upanishads e de
Shankara sendo publicadas na Índia[25] do que edições de Descartes
e Espinosa na Europa. A que se deve isso? Creio que muito da
excelência dos antigos filósofos sânscritos se deve a estes não
terem sido perturbados pela preocupação de agradar a um público
ou a um conjunto de críticos. Eles não pensavam em nada além do
trabalho que eles haviam se determinado a executar: sua ideia era
fazê-lo do modo mais perfeito que pudesse ser realizado.
Eles não davam valor aos aplausos e elogios, a menos que
viessem daqueles que lhes eram iguais ou melhores. Ainda não
existiam editores, agentes literários e marqueteiros. Precisamos,
então, especular por que seu trabalho foi realizado tão bem quanto
poderia ter sido e que isso tenha durado por milhares de anos? Os
antigos Upanishads descreviam com as seguintes palavras (Brih.
Up. IV, 4, 23) o estudante de filosofia adequadamente preparado:
“Aquele que conhece o Eu, após ter se tornado quieto, submisso,
contido, paciente e disciplinado, conhece ao seu eu no Eu, vê a tudo
como o Eu. O mal não o subjulga, ele subjulga o mal. O mal não o
queima, ele queima o mal. Livre do mal, livre de manchas, livre de
dúvidas, ele se torna um brâmane.”

Desconfiança das evidências dos sentidos

Outro requisito para um estudante de filosofia era a


capacidade de distinguir entre o que é eterno e o que não é. Essa
distinção se encontra, sem dúvidas, na raiz de toda a filosofia. A
filosofia começa quando os homens, após terem contemplado o
mundo, de repente refletem e perguntam a este: “O que você é?”.
Há mentes perfeitamente satisfeitas com as coisas tal como elas
aparentam e quase incapazes de apreender qualquer coisa além do
visível e tangível. Eles dificilmente compreenderiam o que se
entende por algo invisível ou eterno, muito menos poderiam ser
levados a crer que o invisível é o único real e eterno, enquanto o
visível é, por sua própria natureza, apenas irreal e aparente,
mutável, perecível e passageiro. Ainda assim, eles podem ter
aprendido com São Paulo (2º Cor 4, 18), que as coisas visíveis são
passageiras, mas as que não se podem ver são eternas. Para os
brâmanes, ser capaz de desconfiar da evidência dos sentidos era o
primeiro passo na filosofia. E eles aprenderam desde tempos
remotos a lição de que tudo o que é secundário, bem como todas as
qualidades primárias, são e só podem ser subjetivas. Em termos
posteriores, eles reduziram essas intuições filosóficas antigas em
um sistema, e eles o elaboraram com uma exatidão que pode muito
bem suscitar nossa surpresa e admiração.

A linguagem metafórica dos Upanishads


No entanto, nos períodos mais antigos do pensamento
filosófico, representados por alguns dos Upanishads, os brâmanes
estavam satisfeitos com visões proféticas, que eram frequentemente
expressas somente através de metáforas fecundas. O mundo
fenomênico era para eles como uma miragem do deserto: visível,
mas irreal, despertando a sede, mas nunca a extinguindo. O terror
do mundo era como o susto causado pelo que parecia uma cobra no
escuro, mas, à luz do dia ou da verdade, havia se provado ser
apenas uma corda. Quando indagados por que o Infinito deveria ser
percebido por nós como tendo qualidades definidas, eles
responderam: “Olhe para o ar no céu, não é azul; no entanto, não
podemos deixar de vê-lo como azul”. Quando indagados como o Ser
Infinito Único, o Um sem segundo, poderia aparecer como muitos
neste mundo, eles disseram: “Olhe para as ondas do mar e as
ondulações nos rios e nos lagos: em cada uma há o sol refletido mil
vezes, mas sabemos que há apenas um sol, embora nossos olhos
não possam suportar sua grande glória e sua luz deslumbrante.”
É interessante, entretanto, observar como Shankara
cuidadosamente se defende contra o abuso dessa ilustração
metafórica. Ele sabe que omne simile claudicat. Uma analogia, diz
ele muito acertadamente, existe para ilustrar apenas um ponto, não
todos, pois assim não seria uma analogia. Ele continua, apontando
que a comparação entre Brama ou do Eu Supremo refletido na
variedade deste universo, de um lado, e o sol ou a lua refletidos na
água, de outro, pode não parecer uma explicação inteiramente
admissível, porque o sol possui certa forma e entra em contato com
a água, que é diferente dele, e porque existe uma distância entre
ambos. Aqui podemos entender que deve haver uma imagem do sol
na água. Mas o Atman ou o Eu Supremo não tem forma e, como
está presente em todos os lugares e como tudo é idêntico a ele, não
existem condições limitantes que sejam diferentes dele. Mas
Shankara continua. Se, portanto, é possível questionar que as duas
instâncias não são paralelas, respondemos: “A instância paralela
(do reflexo do sol na água) é válida, pois existe de fato uma
característica comum — que é o motivo da comparação. Sempre
que duas coisas são comparadas, a comparação é feita com
referência a apenas um ponto particular que as duas aparentam ter
em comum. A completa igualdade entre duas coisas nunca pode ser
demonstrada; de fato, se pudesse ser demonstrada, haveria um fim
nessa relação particular que dá origem a uma comparação.”
Shankara, portanto, estava plenamente consciente da natureza
perigosa das comparações, que muitas vezes produziam tanta
confusão em discussões filosóficas e religiosas, por serem usadas
além dos limites adequados. Mas mesmo assim ele ainda não está
satisfeito. É como se ele dissesse: não sou o responsável pela
comparação; ela aparece nos próprios Vedas, e o que quer que
esteja nos Vedas deve estar certo. Isso mostra que mesmo a crença
na inspiração literal não é uma invenção nova. Ele acrescenta que a
característica especial em que a comparação se baseia é apenas a
participação no aumento e diminuição. O que ele quer dizer é que a
imagem refletida do sol se expande quando a superfície da água se
expande e se contrai quando a água se contrai; que ela treme
quando a água treme e se divide quando a água é dividida. A
imagem do sol participa, assim, de todos os atributos e condições
da água, enquanto o verdadeiro sol continua o mesmo o tempo
todo. Da mesma forma, o Brama, o Ser Supremo, embora na
realidade seja uniforme e nunca mude, participa, por assim dizer,
dos atributos e estados do corpo e das outras condições limitantes
(ou upâdhis) dentro das quais permanece; cresce com eles, por
assim dizer, diminui com eles, por assim dizer, e assim por diante.
Portanto, como duas coisas comparadas possuem certos recursos
em comum, nenhuma objeção válida pode ser feita na comparação.
Isto deve lhes mostrar que, por mais poética e às vezes
caótica que a linguagem dos Upanishads possa ser, Shankara, o
autor do grande comentário sobre as Vedanta-sutras, sabe como
raciocinar com precisão e com lógica e seria capaz de defender sua
posição contra qualquer oponente, seja indiano ou europeu.
Há outra analogia bem conhecida nos Upanishads,
destinada a ilustrar a doutrina de que Brama é a causa material e
eficiente do mundo, isto é, que o mundo é feito não só por Deus,
mas também constituído de Deus. “Como isso pode ser?”, pergunta
o aluno, e seu professor responde; “Olhe para a aranha que, com a
máxima inteligência, desenha os fios de sua maravilhosa rede a
partir de seu próprio corpo.” Certamente, esta é apenas uma
ilustração para ajudar o aluno a entender o que significava Brama
ser ao mesmo tempo a causa material e a causa eficiente da teia do
mundo criado. Mas qual foi a consequência? Alguns dos primeiros
missionários relataram que o deus dos brâmanes era uma grande
aranha negra sentada no centro do universo e criando o mundo
desenhando como fios de seu próprio corpo.
Comparações, como se pode ver, são perigosas, a menos
que sejam usadas cautelosamente. E, embora os Upanishads
abundem em metáforas poéticas, veremos nas páginas seguintes
que ninguém poderia ter se utilizado dessas analogias filosóficas
com maior cautela do que Shankara, autor do principal trabalho
clássico sobre a filosofia vedanta.
Segunda palestra: A alma e Deus

Amostras do Upanishads

I. Amostra do Katha Upanishad

Na fala de hoje, devo, em primeiro lugar, apresentar a vocês


alguns exemplos do estilo em que os Upanishads foram escritos.
Em um dos Upanishads, lemos sobre um pai que se gloria
de ter feito um sacrifício completo e perfeito, por ter entregado aos
deuses tudo o que ele considerava seu. Então, seu filho, seu único
filho, parece desafiar o pai por não tê-lo sacrificado também aos
deuses. Esse caso foi considerado como um resquício dos
sacrifícios humanos na Índia, assim como a vontade de Abraão de
sacrificar Isaque foi tomada como uma prova da existência anterior
de sacrifícios semelhantes entre os hebreus.
Pode ser o caso, mas nada é dito em nosso exemplo sobre
um verdadeiro assassinato do filho. Depois que o pai disse que
daria seu filho à morte, descobrimos imediatamente que o filho
entrou na morada da morte (Yama Vaivasvata) e que, na ausência
da Morte, não há ninguém para recebê-lo com a honra devida a um
brâmane. Por causa disso, quando o senhor da travessia, Yama,
retorna após três dias de ausência, expressa seu pesar pela
situação e oferece ao jovem três dádivas para escolher. O jovem
filósofo pede primeiro que seu pai não fique bravo quando ele
retornar (ou seja, ele evidentemente tem a intenção de voltar à
vida); e, em segundo lugar, pede para adquirir o conhecimento de
certos atos de sacrifício que levam à felicidade no Paraíso. Mas,
para a terceira benção, ele não aceitará nada além do conhecimento
do que se torna do homem após a morte. “Há uma dúvida.”, diz o
jovem, “Alguns dizem que, quando um homem morre, ele continua a
existir; alguns dizem que ele cessa de existir. Eu gostaria de saber a
verdade sobre isso, ensinada por ti. Esse é a terceira das minhas
dádivas.”
Yama, o deus da morte, recusa-se a responder a essa
pergunta e tenta o jovem com todo tipo de presente, prometendo-lhe
riquezas, lindas mulheres, uma longa vida e prazeres de todos os
tipos. Mas seu convidado resiste e diz (I, 26): “Estas coisas duram
até amanhã, ó Morte, e elas desgastam o vigor de nossos sentidos.
Mesmo uma vida longeva é curta. Mantém para ti teus cavalos,
mantém as danças e cânticos para ti mesmo. Ninguém pode ser
feliz com a riqueza. Podemos possuir riquezas, depois de vermos a
ti, ó Morte?”
No final, a Morte tem que ceder. Prometera três dádivas e
deveria cumprir sua promessa. Tudo isso lança uma grande luz
sobre o estado de vida e o estado de pensamento na Índia, cerca de
3.000 anos atrás. Pois, embora tudo isso seja poesia, devemos
lembrar que a poesia sempre pressupõe a realidade e que nenhum
poeta pode atrair com sucesso a simpatia humana a menos que
toque acordes que possam despertar uma vibração em resposta.
Então, Yama diz: “Depois de ponderar sobre todos os
prazeres que são ou parecem deleitosos, tu recusaste a todos. Não
seguiste pela estrada que conduz à riqueza, pela qual muitos vão à
destruição. Os tolos que habitam na escuridão, sábios em sua
própria presunção, e engasgados com um conhecimento vazio,
vagueiam e perambulam, cambaleando de um lado para o outro,
como cegos levados por outros cegos. O mundo vindouro não se
levanta diante dos olhos da criança imprudente, iludida pela ilusão
de riqueza. ‘O mundo é apenas isto’, ele pensa, ‘não há outro’ — e
assim ele cai de novo e de novo sob minha influência — o poder da
morte.”
Depois que Yama se convenceu de que o jovem brâmane,
seu convidado, havia subjugado todas as paixões e que nem o
sacrifício e a fé nos deuses comuns, nem a esperança de felicidade
no céu iriam satisfazê-lo, ele começa a indicar-lhe a verdadeira
natureza de Brama, que forma a realidade eterna do mundo, para
levá-lo a ver a unicidade de sua alma, isto é, a unicidade de si
mesmo com Brama; pois isso, de acordo com os Upanishads, é
verdadeira imortalidade. “O Eu,” diz ele, “menor do que o menor,
maior do que o maior, está escondido no coração da criatura. Um
homem livre de desejos e livre de dor vê a majestade do Eu pela
graça do Criador.”[26]
“O Eu não pode ser conquistado por meio dos Vedas, nem
pelo entendimento, nem por muito estudo. Aquele que o Eu
escolher, este poderá por si mesmo alcançar o Eu. O Eu o escolhe
para si.”
Essa ideia de que o conhecimento do Eu não vem pelo
estudo, nem por boas obras, mas pela graça ou livre escolha do Eu,
é familiar para os autores dos Upanishads, mas não é a mesma
coisa que tem sido chamada de Graça do Criador.
Então, ele continua: “Nenhum mortal vive pelo ar que inspira
e pelo ar que expira — o que devemos chamar de sopro de vida.
Vivemos por outro, em quem estes dois descansam”. Aqui vemos
que os brâmanes perceberam claramente a diferença entre a vida
orgânica do corpo e a existência do Eu, uma diferença que muitos
filósofos de tempos posteriores não conseguiram perceber.
E novamente: “Ele, a Pessoa mais elevada, que está
desperta nos homens[27] enquanto estes dormem, criando uma visão
encantadora após a outra; este que, de fato, é o Brilhante, que é
Brama, o único que pode ser chamado de Imortal. Todos os mundos
estão contidos nele, e ninguém lhe ultrapassa.”
“Assim como o fogo primordial, após entrar no mundo,
apesar de ser uno, torna-se semelhante a todas as formas que ele
assume (assim como a tudo o que queima), assim também o Ser
único que está em todas as coisas se torna diferente, de acordo
com cada coisa na qual está presente — mas continua existindo
independentemente delas.”
“Assim como o sol, que é o olho de todo o mundo, não é
contaminado pelas impurezas externas vistas pelos olhos, assim
também o Ser único presente em todas as coisas nunca é
contaminado pela miséria do mundo, mantendo-se sempre o mesmo
e nada mais.”
Aqui se pode ver que o caráter transcendente do Eu se
mantém mesmo depois de se encarnar, assim como cremos no
Ocidente que Deus está presente em todas as coisas, mas também
as transcende (B. F. Westcott, The Gospel according to St. John, p.
160). Mais uma vez, ele diz: “Há um só governante, o Ser em todas
as coisas, que faz com que o um forme o múltiplo. Os sábios que o
percebem dentro de si mesmos, em suas almas, a eles e a ninguém
mais pertence a felicidade eterna.”
“Sua forma não pode ser vista. Ninguém pode vê-lo com os
olhos. Ele só pode ser contemplado por coração, pela sabedoria e
pela mente. Aqueles que sabem disso são imortais.”
É notável como a mente do autor desse Upanishad, quem
quer que ele tenha sido, pouco se preocupa em provar a
imortalidade da alma por meio de argumentos. Isso também se
aplica às religiões da maioria dos povos antigos do mundo, até
mesmo às religiões dos povos selvagens e não-civilizados, cujas
opiniões sobre a alma e seu destino após a morte nos são
familiares. Nenhuma tentativa nunca foi feita para colecionar
argumentos em apoio da imortalidade da alma, pelo simples motivo,
parece-nos, de que, apesar de haver evidências inegáveis da
decadência e da decomposição final do corpo, nada como a morte
da alma jamais chegou ao conhecimento humano. As ideias sobre o
modo de vida que a alma teria depois da morte são, sem dúvida,
muitas vezes infantis e imperfeitas, mas a ideia de que a alma
chegaria a um fim completo após a morte do corpo, a mais infantil e
imperfeita de todas as ideias, pertence decididamente a uma época
bem posterior.
Como outros escritos sagrados, os Upanishads também se
entregavam às descrições mais fantásticas da morada da alma após
a morte, e suas concepções da felicidade ou infelicidade dos
espíritos que partiram dificilmente seriam superiores às dos gregos.
Pode ter sido o próprio caráter fantasioso dessas descrições que
levantou as dúvidas dos pensadores mais sérios e que fez com que
eles desistissem jogassem fora a sua crença na imortalidade das
almas junto com sua antiga crença nos campos Elíseos e nas Ilhas
dos Bem-aventurados. Os Upanishads, no entanto, adotam um
caminho muito mais sábio. Eles não argumentam contra a crença
popular, eles consideram a antiga crença útil para aqueles que não
conhecem felicidade maior do que um aumento da felicidade de que
desfrutaram nesta vida e que, por boas obras, mereceram a
satisfação de suas esperanças e desejos humanos. Mas eles
reservam uma imortalidade superior, ou melhor, a única imortalidade
verdadeira, para aqueles que obtiveram o conhecimento do eterno
Brama e de sua identidade com ele; os que podiam duvidar de sua
existência após a morte, pois já duvidavam de sua própria existência
antes da morte. Eles sabiam que o seu verdadeiro ser, como o de
Brama, era sem princípio e, portanto, sem fim, e eram sábios o
suficiente para não entrar em quaisquer visões proféticas quanto à
forma exata que sua futura existência assumiria. A imortalidade é
representada como o resultado do conhecimento. O homem é
imortal assim que conhece a si mesmo, ou antes, a Si mesmo, isto
é, assim que conhece o Ser eterno dentro dele.
Toda essa filosofia pode ser chamada de propriedade
comum dos antigos pensadores da Índia. Era perfeitamente natural
que ela não devesse ser ensinada a crianças ou a pessoas
impróprias para o pensamento superior; mas nenhuma pessoa
qualificada por nascimento e educação foi impedida de aprender
isso. Tudo o que nos impressiona é certa reticência, mesmo da
parte da Morte, quando esta é levada a comunicar seu
conhecimento ao jovem convidado. Vemos que o professor está
plenamente consciente do alto valor de seu conhecimento, e que ele
o confia ao aluno de maneira relutante e como a coisa mais preciosa
que tem a dar.

II. Amostra do Maitrâyana Upanishad

Neste outro trecho, não é um jovem brâmane, mas um velho


rei que entrega a coroa a seu filho e se retira para a floresta para
meditar sobre a vida e a morte. Ele encontra um sábio eremita e
atira-se a seus pés, dizendo: “Ó Santo, eu não conheço o Eu; tu
conheces sua essência. Ensina-me.”
Também aqui, o professor, primeiro, diz ao rei que o que ele
pede é difícil de ensinar. Mas o rei insiste. “De que vale o gozo dos
prazeres”, diz ele, “neste corpo ofensivo e não substancial, uma
mera massa de ossos, pele, tendões, medula, carne, sêmen,
sangue, muco, lágrimas, fleuma, excremento, água, bile e limo? De
que serve o gozo dos prazeres neste corpo que é assaltado pela
luxúria, ódio, ganância, ilusão, medo, angústia, ciúme, pela
separação daquilo que amamos, pela união com o que não
amamos, pela fome, sede, velhice, morte, doença, sofrimento e
outros males? Vemos que tudo é perecível, como esses insetos,
como as ervas e árvores, crescendo e decaindo. Poderosos
governantes dos impérios, exímios nas armas —segue-se uma
longa lista de nomes —, desfrutam de grande felicidade para si e
para os seus, mas passam deste mundo para o próximo. Os
grandes oceanos secaram, as montanhas caíram, até a estrela polar
se move[28], as cordas que mantêm as estrelas foram cortadas[29], a
terra foi submersa[30] e os próprios deuses fugiram de suas moradas.
Em um mundo como este, de que serve o gozo dos prazeres, se
aquele que se alimentou deles tem que retornar de novo e de novo!”
— (Aqui vemos o medo da outra vida; o medo não da morte, mas do
renascimento, que atravessa toda a filosofia indiana.) “Conceda,
portanto,” diz ele, “a benevolência de me resgatar. Neste mundo, eu
sou como um sapo em um poço seco. Ó santo, tu és a esperança,
tu és a minha esperança.”
Então, segue-se o ensino. Não vem, porém, da própria
mente do mestre, mas na forma como ele próprio aprendeu de outro
mestre, chamado Maitri. E Maitri, semelhantemente, não é
apresentado como o que chamaríamos o autor. Ele também apenas
relatou a seu discípulo Maitri o que foi revelado por Pragapati, o
senhor das criaturas, a outros santos, os valakhilias.
Tudo isso mostra um contexto histórico distante, e, por mais
fantasioso que alguns detalhes possam parecer para nós, temos a
impressão de que a vida descrita nesses Upanishads era uma vida
real; que naqueles tempos remotos, os colonizadores dessa terra
bela e fértil estavam ocupados em meditar sobre os pensamentos
que são registrados nos Upanishads; que eles eram realmente um
tipo de homens diferente de nós, diferente de qualquer outro povo;
que eles se preocupavam mais pelas coisas invisíveis do que pelas
visíveis; e que reis e príncipes entre eles realmente desciam de
seus tronos e deixavam seus palácios para meditar sobre os
mistérios da vida e da morte nos bosques escuros e arejados de
suas florestas.
Muito tempo depois, Gautama Buda fez o mesmo. Duvidar
que ele tenha sido realmente filho de um príncipe ou de um nobre
que desistiu de seu trono e de tudo o que possuía para se tornar um
filósofo e depois um mestre seria levar o ceticismo histórico muito
longe. Quando vemos como seu sucesso entre o povo dependia do
próprio fato de ele ter sacrificado coroa e riquezas, esposa e filho,
para se tornar um buda e um salvador; quando vemos como uma
das mais fortes críticas que os brâmanes lhe dirigiam era o fato de
que ele, sendo um kshatriya ou um nobre, tenha ousado assumir o
cargo de mestre espiritual, dificilmente podemos duvidar de que
estamos lidando aqui com fatos históricos, ainda que possam ter
sido embelezados por seus seguidores mais entusiastas.
Em nosso Upanishad, a primeira pergunta é: “Ó Santo, este
corpo não possui em si inteligência, é como um mero veículo. Quem
é que deu a esse corpo inteligência e quem é seu condutor?” Então
Pragâpati responde que é Aquele está acima de tudo, indiferente
aos objetos do mundo, infinito, imperecível, não-nascido e
independente, este é Brama, aquele que tornou inteligente este
corpo e que é seu condutor.
Vem, então, uma nova pergunta, a saber, como um ser sem
paixões e desejos poderia ter sido movido a fazer isso. E a resposta
tem algo de mitológica, pois nos é dito que Pragâpati (Visva) estava
sozinho no início e que ele não tinha felicidade alguma quando
sozinho; e que, ao meditar consigo mesmo, criava muitas criaturas.
Ele olhou para elas e viu que eram como pedra, desprovidas de
entendimento e paradas como postes sem vida. Ele não teve alegria
nisso e pensou que iria entrar nelas para que despertassem. Ele
realizou isso em seu próprio modo peculiar e então se tornou o
princípio subjetivo dentro deles, embora ele próprio tenha
permanecido impassível e imaculado. Em seguida, são
apresentados detalhes fisiológicos e psicológicos que podemos
pular. Há belas passagens declarando a presença de Brama no sol
e em outras partes da natureza; mas o fim é sempre o mesmo, que
“aquele que está no fogo e aquele que está no coração e aquele
que está no sol são todos um só e o mesmo”, e aquele que sabe
disso se torna um com o Um (VI, 17). “Como os pássaros e os
veados não se aproximam de uma montanha ardente, então os
pecados nunca se aproximam dos que conhecem Brama”. E
novamente (VI, 20): “Pela serenidade desse pensamento, ele
aniquila todas as ações, boas ou más; seu eu sereno,
permanecendo no Eu, obtém a bem-aventurança imperecível”.
“Pensamentos sozinhos”, diz ele, “criaram a roda de um
novo nascimento e uma nova morte; deixe um homem, portanto,
esforçar-se para purificar seus pensamentos. Um homem é o que
ele pensa: este é o antigo segredo[31] (VI, 34). Se os pensamentos
dos homens estivessem tão fixos no Eterno ou Brama como estão
nas coisas deste mundo, quem não seria libertado da escravidão?”
Quando um homem liberta sua mente da indolência, distração e
agitação, torna-se como foi concebido em sua mente. Essa é o
ponto mais sublime. “Água na água, fogo no fogo, éter no éter,
ninguém pode distingui-los; da mesma forma, um homem cuja
mente entrou no Eterno, em Brama, obtém a liberdade.”

A análise do subjetivo e do objetivo por Shankara

Agora devemos ver de que forma maravilhosa um sistema


de filosofia foi construído pelo autor ou autores da filosofia vedanta a
partir desses materiais. Neste sistema, os fragmentos dispersos são
cuidadosamente organizados e sistematicamente relacionados; um
passo segue o outro, e o fio do argumento nunca é quebrado ou
perdido. As chamadas Vedanta-sutras não podem ser traduzidas e,
se o fossem, fariam tanto sentido quanto um índice que reunisse
apenas os subtítulos do texto dessas minhas palestras. Devo tentar,
no entanto, apresentar um exemplar do estilo de Shankara, a quem
devemos o mais elaborado comentário sobre esses sutras e que é o
principal representante da filosofia vedanta na história literária da
Índia. Mas devo avisá-los de que seu estilo, embora muito mais
parecido com o de um livro comum, é difícil de seguir e requer o
mesmo esforço de atenção que temos de conferir aos intrincados
argumentos de Aristóteles ou Kant.
“É bem sabido”, diz Shankara, bem no início de sua obra,
“que o objeto e o sujeito que caem sob a percepção de Nós e Vós”
(ou, como diríamos nós, do Ego e do Não-Ego) “estão, em sua
própria essência, opostos um ao outro como a luz e a escuridão, e
que, portanto, um não pode tomar o lugar do outro; disso se segue
que seus atributos também não podem ser permutados.” O que ele
quer dizer é que o objeto e o sujeito (ou o que quer que caia sob os
nomes de Nós e Vós) não são apenas diferentes um do outro, mas
diametralmente opostos e mutuamente excludentes; portanto, o que
é concebido como o objeto não pode jamais ser concebido como o
sujeito de uma sentença e vice versa. Nós jamais podemos pensar
ou dizer “Nós somos vós” ou “vós sois nós”, nem podemos jamais
inverter qualidades objetivas e subjetivas. Sim, por exemplo, o Vós
pode ser visto e ouvido e tocado, mas o Nós ou o Eu não podem
jamais ser vistos, ouvidos ou tocados. Seu ser consiste em
conhecer, não em ser conhecido.
Tendo estabelecido essa proposição geral, Shankara
prossegue: “Portanto, devemos concluir que transferir o que é
objetivo (o que é percebido como Vós, o Não-Ego e suas
qualidades) para o que é subjetivo (o que é percebido como Nós, o
Ego, que consiste de pensamento), ou vice versa, transferir o que é
subjetivo para o que é objetivo, é sempre um equívoco. Um sujeito
nunca pode ser algo diferente de um sujeito; e o objeto sempre
permanecerá como o objeto.”
“Apesar disso”, continua ele, “combinar o que é verdadeiro
com o que é falso é um hábito inerente da natureza humana, uma
necessidade do pensamento — devemos reconhecê-lo — algo do
qual a natureza humana não consegue se desfazer: ‘Eu sou isso, e
isso sou eu’. Este é um hábito causado por uma falsa apreensão de
sujeitos e predicados que são absolutamente diferentes, resultado
de não se distinguir um do outro, mas transferir a essência e as
qualidades de um para o outro.”
Vocês podem facilmente perceber que sujeito e objeto não
são usados por Shankara em um sentido meramente lógico. Antes,
por sujeito ele quer dizer o que é real e verdadeiro, em suma, o Eu,
seja divino ou humano, enquanto objetivo significa, para ele, o que é
fenomênico e irreal, como o corpo e seus órgãos e todo o mundo
visível. Combinando os dois, afirmações como “Eu sou forte e sou
fraco, eu sou cego e posso ver” constituem a falsa apreensão que,
admite ele, é inerente à natureza humana, mas que, apesar de tudo
isso, é um erro e tem que ser reduzida e finalmente destruída pela
filosofia vedanta.
Em seguida, há uma investigação sobre o que se entende
por este ato de transferência, pelo qual o subjeito é tido como
objeto. Todas as definições parecem concordar neste ponto, que
essa transferência consiste em alguém imaginar em sua mente ou
memória que reconhece algo visto antes, mas que este alguém vê
agora em outro lugar. Como ilustração, ele apresenta o fato de que
algumas pessoas confundem a madrepérola com a prata, ou seja,
transferem a essência e as qualidades vistas na prata para a
madrepérola. Ou, semelhantemente, que algumas pessoas
imaginam que veem duas luas, embora saibam perfeitamente bem
que existe apenas uma. Da mesma forma, as pessoas imaginam
que o ser vivente ou o Ego comum é o verdadeiro sujeito ou eu, ou
que existem dois eus reais, o corpo e a alma, embora possa haver
apenas um, o que é tudo em tudo. A natureza dessa transferência
que está na raiz de toda experiência ou ilusão mundana é mais uma
vez explicada como “tomar uma coisa pelo que não é”, que é
ilustrado por um homem compassivo, que diz que sua vida vai mal e
que ele está triste, quando, na verdade, é a sua mulher e os seus
filhos que estão sofrendo. Da mesma forma, o homem diz que é
gordo ou magro, que ele se move, para ou pula, que ele faz
qualquer coisa, que ele deseja isso ou aquilo, quando, na verdade,
ele mesmo, isto é, é seu eu verdadeiro, o sujeito ideal, é apenas a
testemunha de tudo isso o que é feito e desejado, o observador de
tudo isso, que é ou deve ser independente dos vários estados por
que passa o corpo.
Em resumo, Shankara conclui dizendo que tudo aquilo que é
fundado sobre essa transferência ou suposição errônea, tudo, de
fato, que nós conhecemos e acreditamos ser verdade, seja na
ciência, na filosofia, nas leis ou em qualquer outro campo, pertence
ao domínio de Avidyâ ou da Nesciência; e que a tarefa da filosofia
vedanta é dispersar essa Nesciência e substituí-la pela Vidyâ, pelo
conhecimento verdadeiro.
Esse tipo de raciocínio pode soar estranho para nós,
acostumados a uma atmosfera de pensamento bem diferente, mas
contém, contudo, uma ideia importante, que, até onde eu saiba,
jamais foi plenamente utilizada pelos filósofos europeus, a saber, a
incompatibilidade fundamental que há entre o subjetivo e o objetivo;
isto é, a impossibilidade do sujeito em algum momento se tornar um
objeto, ou de um objeto se tornar o sujeito. Sujeito, entre os
vedantinos, não é um termo lógico, mas metafísico. É, na prática,
outro nome para o Eu, a alma, o espírito ou qualquer outro nome
que possa ser dado ao elemento eterno presente no homem e em
Deus. Os filósofos europeus, não importa que posição tenham sobre
a alma, sempre falam dela como algo que pode ser conhecido e
descrito e que, portanto, pode constituir um possível objeto. Se o
filósofo hindu é claro com relação a algum ponto, é sobre este: que
a alma subjetiva, a testemunha ou conhecedor, não pode jamais ser
conhecida como um objeto; ela só pode ser a si mesma e só pode
ser consciente de si mesma.
Shankara nunca iria aceitar o pensamento de que o Eu ou o
sujeito podem ser conhecidos como um objeto. Só podemos
conhecer a nós mesmos sendo nós mesmos; e, se outras pessoas
acreditam que nos conhecem, conhecem apenas nosso eu
fenomênico, nosso Ego apenas, não nosso eu subjetivo, pois este
não pode jamais ser outra coisa além de um sujeito; ele conhece,
mas não pode ser conhecido. O mesmo se dá se você imagina que
conhece outras pessoas. O que nós conhecemos é o que é visível,
conhecível, que é a aparência, mas nunca o eu insondável. Então,
se atribuirmos uma individualidade subjetiva a aquilo que é apenas
objetivo (como o céu ou um rio ou montanha), incorremos em erro,
produzimos mitologia e idolatria — recebemos apenas o que é falso,
não o conhecimento verdadeiro.
Enquanto nós dizemos que o mundo inteiro é dividido em
um mundo visível e um invisível, em fenômenos e noümena, o
vedantinos dizem que há um mundo subjetivo e um objetivo, e que o
subjetivo, no sentido que eles atribuem a esse termo, não pode
jamais ser conhecido como objetivo e vice versa. Os psicólogos
podem imaginar que podem tratar a alma como um objeto de
conhecimento, dissecá-la e descrevê-la. O vedantino diria que
aquilo que eles dissecam, medem, analisam e descrevem não é a
alma, no sentido que ele atribui a tal palavra, não é o sujeito, não é
o eu no mais alto sentido do termo. O que eles chamam percepção,
memória, compreensão, o que eles chamam de desejo e intenção,
tudo isso, de acordo com o vedantino, é externo ao eu; e, mesmo
nas suas manifestações mais perfeitas e sublimes, não é nada além
do véu através do qual o eu eterno olha para o mundo. Sobre o eu
por trás desse véu, não podemos saber nada além de que ele é; e
mesmo isso nós sabemos de um modo diferente de todos os demais
conhecimentos. Nós o conhecemos por sermos ele, assim como se
pode dizer que o sol brilha por sua própria luz e, por essa luz,
ilumina todo o mundo.
A abordagem mais próxima à que Shankara dá para sujeito
e objeto pode ser encontrada, creio eu, nos Wille e Vorstellung de
Schopenhauer, em que seu Wille corresponde a Brama, ou o sujeito
do mundo, a única e verdadeira realidade, e seu Vorstellung
corresponde ao mundo fenomênico, tal como visto por nós
objetivamente, que deve ser reconhecido como irreal, mutável e
perecível. Essas ideias são inteiramente familiares aos autores dos
Upanishads. Para eles, portanto, a verdadeira imortalidade consiste
simples e inteiramente em o eu conhecer o seu eu. Assim, em um
famoso[32] diálogo entre Yajnavalkya e sua esposa Maitreiyi, que
deseja seguir seu marido floresta adentro e aprender dele o que é a
alma e o que é imortalidade, Yajnavalkya resume tudo o que tem a
dizer nas seguintes palavras: “Em verdade, amada minha, o Eu (i.e.
a alma) é imperecível e de natureza indestrutível. Pois, quando e
onde existe dualidade, então um vê ao outro, um ouve ao outro, um
percebe o outro, um conhece o outro. Mas, quando o Eu apenas é
tudo o que há, como alguém pode ver o outro, como ele pode ouvir
o outro, como ele pode perceber ou conhece o outro? O Eu pode
ser descrito apenas por ‘Não, não’ (quer dizer, por um protesto
contra todo atributo). O Eu é incompreensível, é imperecível, é
inatingível, é irrestrito. Como, oh amada minha, poderá ele, o
conhecedor, conhecer ao conhecedor?”
Eis aqui um ponto crítico. Como pode o conhecedor
conhecer o conhecedor? Ou, como diríamos, como a alma pode
conhecer à alma? Esta pode ser apenas o conhecedor, aquele em
que sujeito e objeto são um, ou melhor, em quem não há distinção
entre sujeito e objeto, entre conhecer e ser conhecido, cujo próprio
ser é conhecer, e cujo conhecer é ser. Assim que o Eu é concebido
como algo objetivo, surge a Nesciência, começa a vida cósmica
ilusória, a alma parece ser isso ou aquilo, viver e morrer, enquanto,
como sujeito, ela não pode ser tocada nem pela vida nem pela
morte — ela permanece indiferente, é imortal. “Esta é a verdadeira
imortalidade”, como diz Yajnavalkya, e com essas palavras ele
caminha floresta adentro.

A herança do Vedanta

Vamos dar uma olhada, agora, sobre o que eu chamo de a


antiga herança da filosofia vedanta. Vimos que eles herdaram um
conceito, elaborado lentamente nos hinos védicos e nos Brâmanas,
o conceito de Brama, isto é, aquele do qual, segundo dizem as
Vedanta-sutras, veem a origem, a substância e a dissolução desse
mundo (Vedanta-sutras I, 2). Os únicos atributos desse Brama, se é
que podem ser chamados de atributos, são que ele é, que ele
conhece e que ele é pleno de bênçãos.
Mas, se esse é o mais elevado conceito de um Ser
Supremo, de Brama, de Deus no mais elevado sentido, como eles
dizem, tão elevado que a faz a linguagem sofrer uma torção, pois a
mente não pode alcançá-lo[33]; se, como dizem eles, ele é
desconhecido para os sábios, mas conhecido pelos simples —
Cognoscendo ignoratur, Ignorando cognoscitur —, como foi possível
reconciliar esse elevado conceito com as descrições ordinárias de
Brama dadas nos Vedas, em que ele aparece, muitas vezes, como
não mais do que uma divindade comum?

Não há um Vedanta esotérico

Tem sido cogitado que o Vedanta se consistiu de duas


escolas, uma exotérica e uma esotérica, com o conceito vulgar de
Brama pertencendo à primeira, e o conceito sublime, à segunda. Há
alguma verdade nisso, mas, para mim, isso é importar nossas ideias
europeias para a Índia. Na Índia, a verdade estava aberta a todos os
que tivessem sede por ela. Nada era mantido secreto; ninguém era
excluído do templo — ou melhor, da floresta — da verdade.
É verdade que as classes mais baixas, possivelmente os
habitantes aborígenes, estavam excluídas. A casta dos sudras[34]
não era admitida na educação fornecida para casta mais alta, a
casta dos nascidos duas vezes. Permitir que eles estudassem os
Vedas seria como admitir selvagens nus em uma palestra em um
auditório da Royal Institution.
Mas, ainda assim, até mesmo essa exclusão estava errada
e claramente em contradição com o verdadeiro espírito do vedanta.
Geralmente se assume que a quarta casta, os sudras, eram os
habitantes originais e, portanto, racialmente distintos dos
conquistadores arianos. Pode ser o caso, embora isso nunca tenha
sido provado, e sabemos que mesmo pessoas de fala ariana podem
perder todo o direito de pertença a alguma casta e cair socialmente
ao degrau mais baixo dos sudras ou até mesmo a posições
inferiores. Badarayana fala de pessoas que, por causa da pobreza
ou de outras circunstâncias, estão localizadas entre as três classes
superiores e os sudras. Mas, com relação a elas, ele diz que não
devem ser excluídas do estudo do Vedanta. A questão sobre se
sudras verdadeiros podem ou não ser aceitos evidentemente
desafiou bastante as mentes dos vedantinos, mas, no final, eles
aderiram ao princípio de exclusão. Mesmo assim, há casos nos
Upanishads que parecem mostrar que esse espírito de exclusão era
mais fraco em tempos antigos. Não devemos esquecer que, em um
dos hinos dos Rig-veda, há a declaração explícita de que os sudras
procedem de Braman assim como as demais castas. Não faltam
indícios de que eles falassem a mesma língua que os brâmanes. Há
dois casos, ao menos, em que os Upanishads parecem falar de
sudras que teriam sido aceitos no estudo da sabedoria do Vedanta,
a saber, os casos de Ganasruti e Satyakama.
A história de Ganasruti é bastante obscura. Apesar de
Ganasruti ser claramente chamado sudra, o caráter geral da
narrativa parece, ao invés disso, indicar que ele deve ter sido um
kshatriya. Quando Raikva o chama de sudra, ele usa esta palavra
como um termo meramente ofensivo. Os próprios brâmanes tentam
uma etimologia forçada para mostrar que sudra nessa passagem
não deve ser tomado no sentido técnico, mas, ao contrário, que se
deve concordar que o sudra verdadeiro não poderia ser instruído no
Vedanta. A história se desenvolve assim:

1. “Muito tempo atrás, viveu Ganasruti Pautrayana (bisneto de


Ganasruta), que foi um benfeitor piedoso, que concedeu muitos
bens ao povo e que sempre manteve sua casa aberta. Ele construiu
locais de refúgio em todos os lugares, desejoso de que as pessoas
pudessem, em qualquer lugar, comer de sua comida.”
2. “Certa vez, à noite, alguns hamsas (flamingos) passavam voando,
e um flamingo disse ao outro: ‘Ei! Bhallaksha, Bhallaksha (aquele de
visão curta), a luz (glória) de Ganasruti Pautrayana, se espalhou
como o céu. Não o toques, para que não te queime.”
3. “O outro respondeu a ele: ‘Como pode falar desse assim, sendo o
que ele é, como se fosse como o próprio Raikva com seu carro.”[35]
4. “O primeiro replicou: ‘Como é este Raikva com seu carro de quem
tu falas?”
“O outro responde: ‘Assim como (em um jogo de dados) todas as
jogadas menores pertencem àquele que conseguiu o Krita (o valor
mais alto da rodada), assim também, quaisquer boas ações que os
demais realizem, todas pertencem a Raikva com o carro. Aquele
que conhece o que ele conhece, é deste que eu falo’.”
5. “Ganasruti Pautrayana ouviu essa conversa e, assim que
levantou pela manhã, disse ao seu porteiro: ‘Tu falas de mim como
se eu fosse Raikva com o carro.’ Ele respondeu: ‘O que é isso de
Raikva com ocarro?’.”
6. “O Rei disse: ‘Assim como (em um jogo de dados) todas as
jogadas menores pertencem àquele que conseguiu o Krita (o valor
mais alto da rodada), então, quaisquer boas ações que os outros
executem, todas pertencem a esse Raikva com o carro. Aquele que
sabe o que sabe, é deste que eu falo’.”
7. “O porteiro foi em busca de Raikva, mas retornou dizendo ‘Eu não
o encontrei’.”
“Então, disse o rei: ‘Ai! Nos locais onde um brâmane deve ser
procurado (na solidão da floresta), lá busque por ele!”
8. “O porteiro se deparou com um homem que estava deitado sob
uma carruagem, coçando suas feridas. Dirigiu-se, então, a ele
dizendo: ‘Senhor, você é Raikva com o carro?’.”
“Ele respondeu: ‘Hum, eu sou’.”
Então, o porteiro retornou e disse: “Eu o encontrei.”

1. “Então, Ganasruti Pautrayana tomou seiscentas vacas, um colar e


uma carruagem com mulas, foi até Raikva e disse:
2. ‘Raikva, aqui estão seiscentas vacas, um colar e uma carruagem
com mulas; ensina-me sobre a divindade a quem você adora’.”
3. “O outro respondeu: ‘Argh!, colar e carruagem sejam seus, oh
sudra, junto com suas vacas!’”
“Então, Ganasruti Pautrayana tomou novamente mil vacas, um
colar, uma carruagem com mulas e sua própria filha e foi até ele.”
4. “E disse a ele: ‘Raikva, aqui estão mil vacas, um colar, uma
carruagem com mulas, essa esposa e essa vila em que tu moras.
Senhor, ensina-me!’”
“Levantando sua face, ele disse: ‘Você trouxe isso (vacas e outros
presentes), ó sudra, mas apenas este rosto (de tua filha) bastaria
para que você me faça falar.’”
“Estas são as aldeias de Raikva-Parna no país dos Mahavrishas,
onde Raikva habitou debaixo a proteção dele.”

Então, seguem-se os ensinamentos de Raikva, os quais,


para nós, dificilmente parecem merecedores dos presentes tão
vastos que Ganasruti lhe ofereceu. O ponto importante da história
para o nosso corrente propósito é se Ganasruti foi de fato um sudra
ou de Raikva o chamou assim apenas por impulso. A mim parece
claro que um homem que mantém um kshattri (porteiro ou
camareiro), que constrói cidades de refúgio, que dispõe de milhares
de vacas como presentes, que concede terras aos brâmanes e,
inclusive, acredita que sua filha pode ser aceita como um presente a
um brâmane, jamais poderia ter sido um sudra por nascimento. Os
vedantinos, portanto, dificilmente precisariam ter se esforçado tanto
para explicar o caso de Ganasruti de modo a excluir um precedente
para a admissão de sudras de verdade no estudo dos Upanishads e
do Vedanta.
O outro precedente não é inteiramente pertinente à questão.
Satyakama não é um sudra por nascimento, ele é filho de Gabala,
que parece ter sido um brâmane por nascimento, mas teve um filho
que desconhecia quem era seu pai. Apesar disso, uma vez que
tanto ele quanto seu filho, quando indagados, falam a verdade,
então Gautama Haridrumata, o mestre escolhido pelo garoto, o
aceita como um brâmane e passa a ensinar-lhe.
A história é encontrada no Khândogya Upanishad IV, 4:
1. Satyakama (i.e. Filaletes), filho de Gadala, dirige-se a sua mãe e
lhe diz: “Eu desejo me tornar um bramakarin (estudante religioso),
mãe. De que família eu sou?”
2. Ela disse a ele: “Não sei, meu filho, de que família você é. Na
minha juventude, quando eu tinha que me mudar muito como serva
(atendendo os convidados na casa do meu pai), eu te concebi. Não
sei de que família tu és. Eu sou Gabala por nome, tu és Satyakama.
Diga que tu és Satyakama Gabala (um membro da família dos
Gabalas, mas aqui simplesmente o filho de Gabala).”
3. Indo até Gautama Haridrumata, ele lhe disse: “Desejo me tornar
um bramakarin com o senhor. Posso ir com o senhor?”
4. Este disse a ele: “De que família você, meu amigo?” Ele
respondeu: “Não sei, senhor, de que família sou. Perguntei a minha
mãe, e ela respondeu: ‘Na minha juventude, quando eu tinha que
mudar muito como serva, eu te concebi. Não sei de que família tu
és. Eu sou Gabala por nome, tu és Satyakama. Diga que tu ès
Satyakama Gabala.’ Portanto, eu sou Satyakama Gabâlâ, senhor.”
O mestre lhe disse: ‘Ninguém, a não ser um verdadeiro
brâmane, falaria assim. Vá buscar azeite, amigo, eu vou iniciá-lo.
Você não se desviou da verdade.”

Essas histórias lançam luzes interessantes sobre o status da


sociedade na época representada nos Upanishads. Mas nenhuma
delas me parecem provar o que alguns supõem que elas mostram,
isto é, o direito de os sudras serem educados no Vedanta. Esse
direito resiste, na verdade, em bases muito mais gerais, na
humanidade em comum entre os sudras e os brâmanes; mas isto
não foi reconhecido até que Buda proclamasse, de uma vez por
todas, que nenhum homem é um brâmane por nascimento, mas
apenas por bons pensamentos, boas palavras e boas ações.
Mas, enquanto os sudras eram excluídos, todas as classes
mais altas, brâmanes, kshatriyas ou vaisyas, eram admitidas no
estudo dos Upanishads e da filosofia vedanta, desde que fossem
pessoalmente qualificados para essas especulações mais elevadas.
Essa insistência em certa qualificação, com certeza, não é
equivalente a exclusão, e nenhuma doutrina pode ser chamada de
esotérica se está aberta a todos os que sejam capazes e desejosos
de segui-la[36]. Em tudo isso, não devemos nos esquecer de que
estamos lidando com a Índia, onde, no tempo em que os
Upanishads foram redigidos e ensinados, não existiam manuscritos.
Um mestre era o depositário, o representante vivo de uma
composição literária; e todo mestre tinha a liberdade de julgar quem
ele desejava ter como seu discípulo e quem poderia ser recusado.
Tutores privados fazem o mesmo em Oxford, mas ninguém iria
chamar seu ensino de esotérico.
Algumas vezes lemos que era o dever do pai ensinar essas
elevadas doutrinas a seu filho; e, se a tarefa do pai é assumida por
um mestre, este se regozija em ver que seu discípulo possui uma
mente serena e é dotado de todas as qualidades necessárias (Maitr.
Up. VI, 29); mas nunca lemos casos em que discípulos
adequadamente qualificados tenham sido excluídos. Lemos em
outros lugares (Svet. Up. VI, 23) que os mistérios superiores do
Vedanta, entregues em uma era anterior, não devem ser dados
àqueles cujas paixões não foram subjulgadas, nem para quem não
for um filho ou um discípulo; mas não temos nenhum motivo para
duvidar que qualquer pessoa devidamente qualificada não fosse
devidamente recebida e devidamente instruída.

A relação entre o Brâma Superior e o Bramá Inferior

Com relação aos temas ensinados nos Upanishads, o


objetivo mais importante dos antigos filósofos vedantinos era
demonstrar que aquilo que nós chamaríamos de Bramá exotérico
era essencialmente o mesmo que o esotérico; que, na realidade, só
poderia haver um único Brâma, não dois. O conceito vulgar de
Bramá[37] como um criador não era considerado inteiramente errado.
Este conceito era, sem dúvidas, resultado da Nesciência ou Avidya,
mas não era inteiramente vácuo ou vazio; era o que chamaríamos
de fenomênico. Mas os vedantinos distinguem cuidadosamente
entre o que fenomênico e o que é falso ou vazio. Existe, de fato, um
mundo, e este não é mero nada, como defendem alguns budistas;
nem é completamente ilusório, como alguns vedantinos posteriores
ensinaram, os quais foram, por isso, chamados de cripto-budistas
(Prakkhanna-bauddhas). Essa é a excelência peculiar dos filósofos
vendatinos, eles sempre veem realidade além do irreal. Assim, eles
distinguem entre o Brama com qualidades definidas (saguna) e o
indefinido, inqualificado (aguna); e eles admitem um Bramá
qualificado para todos os propósitos práticos (vyavahara), em
especial para o propósito do culto (upasana), pois no estado de
adoração a mente humana requerer um Deus definido e objetivo,
um Deus Pai e Criador, apesar de esse Pai poder ser apenas uma
pessoa, uma pratika ou rosto — como os brâmanes o chamam —
da Substância Divina, que usa o mesmo simulacro de rosto, persona
ou pessoa, que é muito bem conhecido dos escritos dos primeiros
padres da Igreja.
Assim, Bramá pode ser adorado como Ísvara ou Senhor,
com um Deus pessoal condicionado, mas ainda assim ser
conhecido em sua substância superior, acima de todos os
condicionamentos e limitações inerentes à personalidade. O filósofo
vedantino pode, se assim preferir, satisfazer sua necessidade de
culto concebendo um Bramá como descrito nos Vedas, como um ser
“cuja cabeça é o céu, cujos olhos são o sol e a lua, cujo hálito é o
vento, cujo descanso para os pés é a terra”; mas ele também pode
satisfazer sua necessidade pela investigação racional, confessando
que um ser como o homem não pode nem perceber nem conceber a
Deus, nem predicar nada digno dEle. O filósofo vedantino, então,
disse:
“A respeito de Deus, só podemos dizer ‘Não, Não’.”, assim
como Atanásio declarou que é impossível compreender o que Deus
é, e que só podemos dizer o que ele não é. Se Santo Agostinho
disse que, a respeito de Deus, o silêncio é melhor do que uma
multidão de palavras[38], a filosofia indiana tinha se antecipado a ele
também nisso. Shankara (III, 2, 27) cita o seguinte diálogo de um
Upanishad: “Vashkali disse: ‘Conta-me sobre Braman’[39]. E Bahva
permaneceu quieto. Então, Vashkali pediu uma segunda e uma
terceira vez: ‘Senhor, conta-me sobre Brama’, ao que Bahva
respondeu: ‘Estamos lhe contando, mas você não compreende: o
Eu é quietude’.” Mas, ainda assim, esse Brâma, sobre o qual o
intelecto humano é incapaz de predicar qualquer coisa além de sua
existência, sua sabedoria, sua perfeição e bem-aventurança, era
adorado por aqueles que sentiam um desejo de prestar culto, pois,
apesar disso não afetar Brama em nada em seus atributos, nenhum
mal podia causar ao adorador ou à adoração chamá-lo de Senhor,
criador, pai, mantenedor e governando do mundo.
E aquilo que se aplica a Brâma, como a Grande Causa de
todas as coisas, também se aplica ao Grande Efeito, isto é, ao
Universo. Sua realidade substancial não é negada, pois este
subsiste em Brâma, mas tudo isso que vemos e ouvimos através de
nossos sensos limitados, tudo o que percebemos e concebemos e
nomeamos é, como nós dizemos, puramente fenomênico, é o
resultado da Avidya, como dizem os vedantinos. O simulacro
universal de que o mundo é um sonho aparece frequentemente no
Vedanta.
A ideia de que o nosso mundo real (como o chamamos) é
um mundo de nossa própria criação, que nada pode ser longo ou
curto, preto ou branco, amargo ou doce, independente de nós, que
nossa experiência, de fato, não difere de um sonho foi anunciada
audaciosamente pelo Bispo Berkeley. Lembremos que John Stuart
Mill (que não era ele próprio um idealista professo) declarou ser
Berkeley o maior gênio filosófico dentre aqueles que, desde os
tempos antigos, aplicaram suas faculdades mentais às
investigações metafísicas. Esse é um testemunho muito forte da
parte de tal homem. “O universo físico”, escreve o bispo Berkeley,
“que eu vejo, sinto e infiro é apenas um sonho meu e nada mais;
aquilo que você vê é o seu sonho; acontece apenas que nossos
sonhos concordam em muitos aspectos.”
Posteriormente, o professor Clifford, que, semelhantemente,
não era nenhum sonhador e nenhum idealista, expressou
exatamente a mesma convicção quando escreveu (Fortnightly
Review, 1875, p, 780): “Para os propósitos físicos, um sonho é tão
bom quando a vida real, a única diferença está em sua vivacidade e
coerência.” E o que diz o vedantino? Enquanto nós vivermos, nós
sonhamos; e nosso sonho é real enquanto nós sonhamos; mas,
quando morremos, ou, antes, quando acordados e nossos olhos são
abertos pelo conhecimento, um novo mundo, uma nova realidade se
levanta diante de nós, aquele que Platão chamou de mundo real, do
qual antes conhecíamos apenas as sombras. Isso não significa que
o mundo fenomênico é inteiramente um nada, — não, ele é sempre
o efeito do qual Brâma, a fonte de toda a realidade, é a causa; e, de
acordo com o vedanta, não pode haver diferença fundamental entre
a causa e o efeito; o mundo dos fenômenos é substancialmente tão
real quando Brâma, mais do que isso, em sua realidade última, é o
próprio Brâma.

A relação entre o Atman Superior e o Atman vivente

Temos agora que seguir os antigos pensadores vedantinos


um passo além, quando eles, sem medo, explicam sua grande
premissa central, a de que existe e somente pode existir um único
Brâma, a causa de tudo, que é tanto a causa material quanto a
causa eficiente de tudo. Nada pode existir fora de Brâma, nem
matéria nem almas, pois, se existisse algo fora de Brâma, seguir-se-
ia que Brâma possui limitações — o mesmo Brâma que, de acordo
com sua definição, é ilimitado, é ekam advitiyam, o primeiro sem
segundo. Mas, se isso é assim, o que é a alma subjetiva, o Eu
dentro de nós? Ninguém poderia negar sua existência, argumentam
os vedantinos, pois aquele que o negasse seria o próprio Eu que é
negado, e ninguém pode negar a si mesmo. Então, o que é o Eu
verdadeiro ou subjetivo dentro de nós? Ou, como diríamos nós, o
que é a nossa alma? Quando falamos do Eu, Atman em sânscrito,
devemos sempre nos lembrar de que não se trata do que,
geralmente, se chama de Ego, mas daquilo que permanece além
deste. O que nós costumamos chamar de nosso Ego é determinado
no tempo e no espaço, pelo nascimento e morte, pelo ambiente em
que vivemos, por nossos corpos, sentidos, memória, por nossa
linguagem, nacionalidade, caráter, preconceitos e por muitas outras
coisas. Tudo isso entra na constituição de nosso Ego ou nosso
caráter, mas não tem nada a ver com o nosso Eu. Portanto, traduzir
atman por alma, como muitos acadêmicos fazem, é um equívoco,
pois alma possui significados diversos, seja a alma animal ou
vivente (θρεπτική), a alma perceptiva (αισθητική) e alma pensante
(νοητική) — e todas elas, na visão do vedanta, são perecíveis, não
são eternas e não são o Eu. Aquilo que Brâma, como vimos antes, é
para o mundo (sua causa eterna e onipresente) é o Eu para com o
Ego; e, portanto, desde o início Brâma foi chamado de Parama-
atman, o Eu Superior, enquanto o Eu no homem foi chamado de
Gîva-atman, temporariamente o Eu vivente ou encarnado.

Diferentes concepções de alma na filosofia indiana

Assim como nas demais nações, também há filósofos na


Índia que declaram que o Eu ou a alma é simplesmente um nada,
ou que é um subproduto do corpo, ou que a alma seria os nossos
sentidos ou que seria a nossa mente (manas) ou nossos
pensamentos e nosso conhecimento. Eles até mesmo atribuem
diferentes locais no corpo para a alma, assim como os poetam
imaginam que a alma reside no coração, como os amantes
acreditam que ela está nos olhos, ou mesmo como Descartes
defendia que ela residia no conarium ou glândula pineal, ou como
muitos biólogos ainda defendem que ela reside no córtex do
cérebro, com base na ideia de que ela funcionaria através do
cérebro.
Os vedantinos tinham, portanto, que refutar todas as
opiniões heréticas, distinguindo entre o que é a alma e o que ela
não é, entre o que é eterno e o que é perecível. Ninguém pode
duvidar de que o corpo é perecível, nem que também o são os
nossos sentidos e, consequentemente, nossas sensações e o que é
baseado nelas — nossas percepções, nossa memória, nossos
conceitos, todos os nossos pensamentos, todos os nossos
conhecimentos, por mais profundos ou abrangentes. Após ter
deduzido tudo isso, não resta nenhuma opção; o Eu individual, em
sua realidade absoluta, deve ser aquilo que, de acordo com o
argumento anterior do Vedanta, é Tudo em Todos, o Primeiro sem
Segundo, a saber, Brâma ou o Eu Superior — ou, como diríamos
nós, nossa alma deve ser divina.
Mas em que sentido a alma poderia ser o Eu Superior?
Alguns filósofos cogitaram que o Eu humano fosse uma parte do Eu
Divino ou uma modificação deste, ou algo criado e inteiramente
diferente dele. Shankara mostrou que cada uma dessas opiniões
era insustentável. Não pode ser uma parte do Eu Divino, diz ele,
pois não podemos conceber partes naquilo que não está nem no
tempo nem no espaço. Se existissem subpartes no Brâma infinito,
então Brâma deixaria de ser infinito, seria limitado e assumiria um
caráter finito em relação a suas partes[40]. Em segundo lugar, a alma
vivente não pode ser uma modificação do Eu Divino, pois Brâma,
por sua própria definição, é eterno e imutável, e não há nada fora de
Brâma, não há nada que possa causar uma modificação nele. Em
terceiro lugar, a alma vivente não pode ser diferente do Eu Divino,
pois Brâma, se é algo, tem que ser Tudo em Todos, então não pode
haver nada diferente dEle.
Por mais desconcertante que pareça essa conclusão (que o
Eu Divino e o Eu humano são uma única e mesma substância), o
filósofo vedantino não se esmoreceu diante dela, mas a aceitou
como uma conclusão inevitável. Que a alma seja Deus soa
surpreendente mesmo para nós; mas, se não é Deus, o que ela
seria? Estamos mais acostumados com a expressão de que a alma
é divina ou semelhante a Deus, mas o que poderia ser semelhante a
Deus além do próprio Deus? Se Brâma é o “Primeiro, sem
Segundo”, segue-se, diz ele, que não há espaço para nada mais
além de Brâma. A frase frequentemente repetida “Tat tvam asi” (“tu
és ele”) não significa que a alma é parte de Brâma, mas que o todo
de Brâma é a alma. Os vedantinos são, de fato, o que Henry More e
outros platônicos cristãos de Cambridge chamariam de
holenmerianos, acreditando que o espírito estaria inteiramente
presente em cada parte (όλος εν μέρει).

As Upadhis como a causa da diferença entre a alma e


Deus

Mas, então, é preciso responder a uma questão: como


Brâma e o Eu individual podem ser um? Brâma (ou o Eu Divino) é
eterno, onipotente e onipresente, enquanto nosso Eu claramente
não o é. Por que não? A resposta é: “porque este é condicionado,
porque é restringido, porque está sob upadhis ou obstruções.” São
essas upadhis ou obstruções que fazem o Eu absoluto aparecer
como o Eu encarnado (sariraka). Essas upadhis ou obstruções são
o corpo e seus órgãos, os instrumentos de percepção, de
compreensão e de todo pensamento e o mundo objetivo (vishaya).
Vemos todos os dias que o corpo grosseiro e seus membros
decaem e perecerem; eles, portanto, não podem ser chamados de
eternos. Eles são objetos, não o sujeito, eles não podem constituir o
sujeito eterno, o Eu. Entretanto, além desse corpo grosseiro, que
perece no momento da morte, existe outro, como imaginam os
vedantinos, um corpo sutil (sukshmam sariram), que consiste do
espírito vital, das faculdades dos sentidos e do manas (a mente).
Esse corpo sutil é tido como o veículo da alma encarnada, e se
supõe que a alma deve habitar nele após a morte, até nascer
novamente. Naturalmente, nenhum filósofo indiano duvida do fato
da transmigração. Para eles, é algo tão certo quanto a nossa
migração ao longo dessa vida. Os detalhes fisiológicos dessa
migração ou transmigração são, frequentemente, fantasiosos e
infantis. Mas como poderia ser diferente naqueles tempos? Porém,
o fato geral da transmigração permanece inalterado por esses
detalhes fantasiosos, e é bem conhecido que esse dogma foi aceito
pelos grandes filósofos de várias nações. Esses detalhes mais ou
menos fantasiosos também não afetam as linhas gerais do sistema
vedantino como uma filosofia, pois, quando toda a verdade do
Vedanta já foi apreendida, a transmigração, bem como as bem-
aventuranças do paraíso celestial, desaparecem. Quando o Eu
humano se conhece como idêntico ao Eu eterno, não há mais a
possibilidade de migração, há apenas paz e descanso eterno em
Brâma.

A psicologia do Vedanta

A terminologia psicológica dos vedantinos pode parecer


bastante imperfeita e incerta, mas possui uma grande vantagem:
não faz confusão entre alma e pensamento. A alma ou o Eu possui
três qualidades: é, percebe e se regozija. Mas essa percepção por
parte da alma não é o que nós chamamos de pensamento. É muito
mais a luz ou brilho que distingue o homem do mundo inanimado,
que resplandece internamente e que, quando ilumina algo, é
chamada de percepção ou buddhi. Em um dos Upanishads, lemos
que os homens eram imóveis como rochas, até que Brama entrou
neles e eles foram iluminados com inteligência. O que chamamos de
percepção, memória, entendimento, imaginação e raciocínio, sob
todas as suas formas, é realizado por certos instrumentos,
chamados de sentidos (indriya), e pelo Manas, termo geralmente
traduzido como mente, mas que, na verdade, seria o sensorium
commune[41], o ponto de convergência de todos os sentidos. Tudo
isso, entretanto, não é o Eu. Os instrumentos principais de todos
esses conhecimentos, os órgãos dos sentidos, são perecíveis; e o
são também o resultado obtido por eles, por mais grandiosos que
possam parecer em seus estágios mais elevados. O vedantino
admite cinco órgãos ou sentidos de percepção (buddhi) e cinco de
ação (karman). Os primeiros servem para o propósito de perceber
som, forma, cor, sabor e cheiro; os últimos para os atos de pegar,
andar, falar e todo o resto.
Todas as sensações são transmitidas pelos sentidos para a
mente, manas, a sensorium commune, a qual, estando ou atenta ou
desatenta, percebe ou não percebe o que é trazido a ela. As
funções do Manas são diversas, como a percepção (buddhi), o
conhecimento conceptual (vijnana), o pensamento discursivo (kitta).
Muitas vezes essas três funções assumem um caráter independente
e tomam uma posição ou independente ou paralela ao Manas. Por
isso, há muita confusão na terminologia psicológica[42]. Outras
manifestações ou tarefas desse Manas ou mente são desejo (kama)
[43]
, imaginação (sankalpa), dúvida (vikikitsa), fé (shraddha), falta de
fé (ashraddha), resolução (dhriti), irresolução (adhriti), vergonha
(hri), reflexão (dhri) e medo (bhi)[44]. É difícil encontrar equivalentes
exatos para todos esses termos técnicos. Às vezes, memória parece
ser a melhor representação para manas, mente (Vedanta-sutras II,
3, 32.). De fato, mente ou manas nos Upanishads é bastante amplo,
quase tão amplo como o Mens de Espinosa, embora menos
definido. Mas, embora haja essa falta de definitude nos Upanishads,
na primeira tentativa de classificar as várias funções da mente,
Shankara, como um verdadeiro monista, defenderá a unidade da
mente e de seus dez órgãos e tratará todas as outras manifestações
como funções (vrittis) diversas de uma mesma e única faculdade
mental, chamada de Antah-karana[45] ou Órgão Interno.

Nossa mente não é o nosso Eu (Atman)

Tudo isso pode soar muito incompleto, mas contém um


pensamento importante, o de que nosso Eu não é nem o nosso
corpo nem a nossa mente, nem mesmo os nossos pensamentos
(dos quais alguns filósofos são tão orgulhosos); todos estes são
apenas condições às quais o Eu tem que se submeter, grilhões aos
quais está acorrentado, como nuvens que o obscurecem, ao ponto
de perder o senso de sua unidade substancial com o Eu Supremo e
esquecer o caráter puramente fenomênico do universo externo ou
interno.
As Upadhis derivadas da Avidya

Imediatamente, entretanto, uma nova questão surge: De


onde vêm essas upadhis ou restrições, esse corpo, esses sentidos,
essa mente e todo o resto? E a resposta foi: da Avidya ou
Nesciência. Creio que, originalmente, essa Nesciência tinha um
significado apenas subjetivo, como uma confissão de nossa
inevitável ignorância a respeito de tudo o que é transcendente, a
mesma ignorância que tem sido expressa, unanimemente, a esse
respeito pelas grandes filósofos. Mas muito cedo essa Avidya
passou a ser concebida como um poder independente. Não era
mais apenas uma Nesciência pessoal, mas uma Nesciência
universal, uma Nesciência que não afetava apenas o Eu humano,
mas que obscurecia temporariamente o Eu Supremo, o próprio
Brâma, o qual, como vimos, é a substância do Eu humano.
Então, sem dúvidas, a pergunta seria lançada uma vez
mais: como pode haver uma Nesciência afetando o Eu Supremo,
que é Tudo em Todos, que não é sujeito a nada que lhe seja
externo, uma vez que nada está fora de si, já que ele é, em suma,
perfeito em todos os aspectos? O vedantino só pode responder que
as coisas simplesmente são assim. Costuma-se dizer que é
insatisfatório para um filósofo se ele não tiver mais nada a dizer
além de que as coisas são assim, sem ser capaz de dizer por que
são assim. Mas existe um ponto em todo sistema de filosofia em
que uma confissão de ignorância é inevitável, e todos os grandes
filósofos têm tido que confessar que há limites para nossa
compreensão do mundo; mais do que isso, desde a Crítica da
Razão Pura de Kant, esse conhecimento dos limites de nosso
entendimento se tornou a própria fundação de toda filosofia crítica.
O vedantino vê a obra da Avidya ou Nasciência em todos os
lugares. Ele o vê em nosso desconhecimento de nossa verdadeira
natureza, em nossa crença no mundo objetivo tal como ele aparece
ou desaparece. Ele evita chamar de real essa Avidya universal, no
mesmo sentido em que Brâma é real, ainda assim, ele não pode
considerá-la como inteiramente irreal, uma vez que, de alguma
forma, causou todos os eventos que parecem ser reais, embora seja
em si mesmo irreal. Sua única realidade consiste no fato de que
deve ser tido como existente e de que não há nenhuma outra
suposição capaz de dar conta do que é chamado de mundo real.
Saber o que é essa Nesciência ou Avidya é impossível, mais do que
isso, é autocontraditório. E, quanto a isso, um verso muito revelador
é citado, que diz que aquele que conhecesse o que é a Avidya é
como um homem que desejasse ver a escuridão por meio de uma
tocha brilhante[46].

Avidya destruída pelo conhecimento

Mas, enquanto essa Nesciência, por algum tempo, tem


poder para nos dominar e nos escravizar, nós temos o poder para,
ao final, e pelos recursos da verdadeira ciência (Vidya) dominá-la e
escravizá-la, para destruir a ela e a todas as suas obras; e essa
ciência verdadeira, esse Vidya, é a filosofia vedanta. É verdade que
não podemos nos desfazer de nossos grilhões, mas podemos tomar
consciência de que são grilhões; não podemos nos livrar de nosso
corpo e sentidos ou destruir o mundo fenomênico, mas podemos
nos elevar acima dele e observá-lo até que ele cesse. Isso é
chamado de liberdade ainda nesta vida (jivanmukti), que se
transforma em liberdade perfeita por ocasião da morte. O filósofo
vedantino tem uma comparação para tudo. A roda do oleiro, diz ele,
continua girando mesmo depois de ter cessado o ímpeto dado a ela.
E, da mesma forma, nossa vida fenomênica segue, ainda que seu
ímpeto, a Avidya ou Nesciência, tenha sido destruído. A última
palavra nessa vida, a última palavra da filosofia vedanta é Tat tvam
asi, Tu és ele, ou Aham brahmismi, eu sou Brâma. “Com isto”, se
diz, “os grilhões do coração estão quebrados, todas as dúvidas são
desfeitas; todas as obras são destruídas, pois o Eterno (Brâma), o
mais alto e o mais baixo, foi visto.”

Bhidyate hridayagranthih
Khidyante sarvasamsayah,
Kshiyante kasya karmani
Tasmin drishte paravare.

Como conclusão, permitam-me ler outro breve capítulo de


Shankara (IV, I, 2), em que ele tenta explicar em que sentido nosso
Eu pode ser o Eu Supremo e como a alma pode ter seu ser
verdadeiro em Deus e apenas em Deus.

Como a alma pode ser uma com Deus

Shankara diz: “O autor das sutras cogita se o Atman, o Eu,


deve ser aceito como eu ou como algo diferente do eu. Dito isto,
como é possível haver essa dúvida, uma vez que a palavra Atman
ocorre nos Vedas com o sentido de ser interno ou eu? — a resposta
é que essa palavra Atman pode ser tomada em seu sentido original,
se for possível tomar a alma vivente e o Senhor como indistintos um
do outro; mas, se não for o caso, então e somente então, a palavra
deve ser tomada em seu sentido secundário.”
Então, o oponente usual é introduzido, dizendo: “Não pode
ser tomado no sentido primário de Eu, pois aquele que possui
qualidades como a ausência de pecado etc (i.e. o Senhor) não pode
ser concebido como possuindo as qualidades opostas (pecado, etc),
nem vice-versa. Ora, o Senhor Altíssimo é livre de pecado, o Eu
encarnado, ao contrário, é pecador. Mais do que isso, se o Senhor
estivesse imerso em samsara (migração) ou em um ser temporário,
ele não seria ipso facto o Senhor, e, portanto, as Escrituras
perderiam seu significado. Assim, supondo que o Eu temporário
pudesse ser o Eu do Senhor, as Escrituras seriam sem sentido, pois
não haveria ninguém qualificado (para o estudo do Vedanta ou para
alcançar o estado de Brama); além disso, a própria evidência dos
sentidos seria contraditória. Dito isso, e tomando como certos que
ambos são diferentes entre si, mas que a Escritura ensina que
devemos considerá-los como um só, por que não admitimos que
eles podem ser tomado como um no mesmo sentido em que Vishu é
tomado como uma de suas imagens? Isso, certamente, seria melhor
do que admitir que a alma temporal é o próprio Senhor. Esta é a
nossa opinião”, i.e., essas são as objeções que podem ser
levantadas (ao menos para o propósito da discussão) contra a outra
posição, que é a verdadeira.
Contra tudo isso, nós dizemos (agora é o próprio Shankara
que diz): que o eu temporal é o mesmo Eu do Senhor[47].
“O Senhor Altíssimo deve ser entendido como o Eu (em
nós), pois, ao tratar do Senhor Altíssimo, as Gabalas o tratam como
o Eu (em nós), dizendo ‘De fato, eu sou tu, ó, divindade santa, e tu
és eu, ó, divindade.’ E, com o mesmo efeito, outras passagens
também como trechos como ‘Eu sou Brama’ devem ser
consideradas como ensinamentos de que o Senhor é o Eu (interno).
Há textos do vedanta que ensinam que o Senhor é o Eu (interno),
por exemplo: ‘Este é o teu Eu, o qual está em tudo’; ‘Ele é o teu Eu,
o regente interno, o imortal’; ‘esta é a Verdade: isto é o Eu, e tu és
isto’, etc. E quanto à sugestão de que o que está sendo defendido é
apenas uma semelhança simbólica, como no caso das imagens de
Vishnu, trata-se de algo inteiramente fora de lugar, pois é censurável
como inverossímil; mais do que isso, a construção das sentenças
também depõe contra isso. Pois, quando se pretende apontar a
percepção de uma semelhança simbólica, a palavra é usada uma
vez, por exemplo, “Brama é a Mente”, “Brama é Âditya (o sol)”. Mas,
no texto, se diz “Eu sou tu, tu és eu”. Portanto, para explicar essa
distinção no texto das escrituras, devemos aceitar a não-diferença
(entre o Senhor e o Eu). Além disso, existe uma clara negação da
diferença nos Vedas. Pois, estes dizem: ‘Quem quer que adore
outro deus, imaginando ‘Ele é um, eu sou outro’, este não tem
discernimento’ (Brih. Ar. Upan. I, 4, 10); ‘Aquele que julga haver
diferença prossegue de morte em morte.’ (Brih. IV, 4, 19); e
novamente ‘Quem quer que olhe para algo a mais do que o Eu
perderá tudo’ (Brih. II, 4, 6). Essas e outras passagens dos Vedas
contradizem a visão da diferença (entre o Eu pessoal e o superior).
“E com relação do que se diz que qualidades contraditórias
são impossíveis no Eu, não se trata de uma objeção real, pois tem
sido demonstrado ser um equívoco admitir qualidades contrárias.
Adicionalmente, quando se diz que seria o caso de não existir o
Senhor, isso é errado novamente, pois há a autoridade da Escritura
para isso; nós mesmos não entendemos esse ponto dessa forma.
Pois nós não entendemos que o Senhor é o eu temporal, mas o que
queremos estabelecer é que o Eu temporal, se despido de seu
caráter temporal, é o Eu do Senhor. Sendo assim, segue-se que o
Senhor não-dual é sem pecado e eu a qualidade oposta (o pecado)
seria atribuída a ele por equívoco.”
“E quanto a não existir ninguém qualificado (para estudar o
Vedanta) ou quanto à evidência dos sentidos ser contra nós, isto
também é um equívoco. Pois, antes da iluminação ocorrer,
admitimos plenamente o caráter temporal do Eu, e a evidência dos
sentidos diz respeito apenas a esse caráter, enquanto a passagem
‘Se o Eu fosse tudo isso, como ele veria alguma coisa?’ mostra que,
tão logo a iluminação ocorre, a ação dos sentidos finda. A objeção
de que, ao cessar a percepção sensorial, a Escritura também
cessaria não é nada; tampouco nós aprovamos isso, pois, de acordo
com a passagem que começa com ‘Então, o pai não é pai’ e termina
com ‘Então, os Vedas não são os Vedas’, nós mesmos admitimos
que, com a iluminação, a Escritura cessa. E se alguém pergunta
‘Quem não é iluminado?’, nós dizemos: ‘Aquele mesmo que pode
levantar tal questão’. E se você diz ‘Mas eu, segundo a própria
Escritura, não seria o Senhor?’, nós respondemos: ‘Sim, você é,
mas, se você já é iluminado, ninguém é não-iluminado.’ A mesma
resposta se aplica à objeção apresentada por alguns de que não
pode haver não-dualidade no Eu, porque, devido à Avidya
(Nesciência), o Eu possui um segundo, isto é, antes que a
iluminação ocorra. O resultado final é que devemos pensar no Eu
em nós como o Senhor.”
Tudo isso — devemos lembrar sempre — não é uma
apoteose do homem no sentido grego da palavra, mas, se eu puder
criar tal palavra, como uma anatheose, um retorno do homem à
natureza divina. Os místicos alemães distinguiram claramente estes
dois atos, chamando o primeiro de Vergötterung, e o último de
Vergottung; e, enquanto teriam o primeiro como uma blasfêmia, eles
consideram o último como apenas outra expressão para a filiação
divina, o objetivo supremo da religião de Cristo.
Terceira palestra: Semelhanças e diferenças
entre a filosofia indiana e a europeia

A estranheza da filosofia oriental

A descrição que posso lhes oferecer da antiga filosofia


vedanta, no curto espaço de duas ou três palestras, é, naturalmente,
muito imperfeita e limita-se apenas às suas características mais
salientes. Seria igualmente difícil, dentro de limites tão estreitos, dar
uma ideia geral de qualquer sistema completo de filosofia, seja de
Platão ou de Kant, embora, no que diz respeito a estes, avancemos
em um terreno mais ou menos familiar, pois estamos habituados,
mesmo sem qualquer estudo especial, com um pouco de sua
terminologia pelo menos. Faz parte de nossa educação inconsciente
conhecer a diferença entre espírito e matéria, entre gênero e
espécie, e muitas vezes falamos de diferenças específicas sem ter
consciência de que o específico é simplesmente o que faz uma
espécie, uma tradução latina do grego ειδοποιός, ou seja, alguma
marca característica que faz uma nova εϊδος ou espécie e, portanto,
constitui a diferença entre uma espécie e outra. Falamos de ideias,
inatas ou adquiridas, de categorias, mesmo de razão pura, muito
antes de sabermos o que realmente significam.
Mas um sistema de filosofia indiana é como uma estranha
cidade oriental, da qual não conhecemos nem as ruas, nem os
nomes das ruas, e onde corremos o perigo constante de nos perder,
mesmo com um guia de viagens Murray e um mapa em nossas
mãos para nos orientar. Os próprios caminhos do pensamento são
diferentes no Oriente e no Ocidente. De modo algum seria fácil
encontrar os termos sânscritos correspondentes para expressar, do
ponto de vista vedantino, a diferença exata que traçamos entre
matéria e espírito. A abordagem mais próxima provavelmente seria
objeto e sujeito, e isso seria expresso por vishaya, objeto, e
vishayin, aquele que percebe um objeto, isto é, o sujeito. Se
tivéssemos que traduzir ideia, provavelmente deveríamos usar uma
palavra como samgna, que significa nome, a forma externa de uma
ideia. Categoria é, de modo geral, expressa adequadamente em
sânscrito por padartha, mas padartha realmente significa o referente
ou o significado de uma palavra. Por isso, o termo poderia ser usado
para expressar os predicados gerais, isto é, as categorias, como
substância, qualidade e todo o resto; mas o sânscrito é uma
linguagem tão filosófica que usa padartha também no sentido
comum de coisa, como se os autores daquela língua soubessem
que, para nós, uma coisa não é nada mais do que um
pensamento[48] — o significado, a intenção ou o objeto de uma
palavra. Até mesmo termos tão familiares como religião e filosofia
não são de modo algum fáceis de traduzir em sânscrito, porque a
mente indiana não considera que essas duas estabelecem entre si o
mesmo tipo de relação que estabelecem para nós.
Em certo sentido, portanto, é bem verdade que, para
entender a filosofia indiana, devemos aprender a entender a língua
indiana.

O interesse geral da filosofia indiana

No entanto, ao convidá-los a ouvir essas breves palestras


sobre a antiga filosofia vedanta, meu único objetivo foi convencê-los
de que esta antiga cidade do pensamento filosófico, o Vedanta,
merece uma visita; e que, se vocês tiverem tempo, vale a pena uma
exploração mais cuidadosa, assim como um viajante inteligente que
pode se dedicar a uma viagem pelos magníficos templos e túmulos
do pensamento antigo. Ter visto Karnak é algo impressionante,
mesmo sem ser capaz de ler todas as inscrições hieroglíficas em
suas paredes. Ter visto as fundações profundas e as estruturas
sublimes da filosofia vedanta, mesmo sem tempo para explorar
todas as suas passagens e para subir as torres de observação mais
altas, também o é.
Quando, após a queda de Constantinopla, a Europa
Ocidental tornou-se novamente familiarizada com os textos originais
da filosofia grega, a vida no Ocidente se tornou mais rica por causa
dos antigos tesouros do pensamento que tinham sido trazidos à luz
no Oriente. A descoberta da literatura indiana, e mais
particularmente da religião e filosofia indianas, foi também a
recuperação de um mundo antigo e a descoberta de um novo; e
mesmo que possamos lançar apenas um olhar passageiro sobre
esses tesouros do pensamento antigo que são armazenados na
literatura em sânscrito, sentimos que o mundo ao qual pertencemos
tornou-se cada vez mais rico, e nós nos sentimos orgulhosos da
herança inesperada que todos nós podemos compartilhar.
Devemos apenas evitar essa arrogância fatal que leva a
rejeitar tudo o que parece estranho e a desprezar tudo o que não se
pode entender imediatamente. Podemos rir diante de muito que os
pensadores da Grécia antiga e da Índia nos deixaram, mas não
precisamos zombar. Não sou um admirador promíscuo de tudo o
que vem do Oriente. Já expressei diversas vezes o meu lamento de
que os Livros Sagrados do Oriente contenham tanto do que deve
nos parecer simples tolices, mas isso não deve impedir que
apreciemos o que é realmente valioso neles.

O tratamento crítico da literatura oriental

Sei que muitas vezes fui acusado por chamar tolices o que a
mentalidade indiana parecia considerar sabedoria profunda e
merecedora do maior respeito. Acredito firmemente que devemos
sempre falar com cautela e respeito quando se trata de religião, e
estou disposto a admitir que, em questões religiosas, muitas vezes é
muito difícil colocar-nos exatamente na mesma posição que a mente
oriental se colocou durante séculos. Todos nós sabemos, por nossa
própria experiência, que aquilo que nos foi transmitido como muito
antigo e que fomos ensinados, quando crianças, a considerar como
sagrado retém ao longo da vida um fascínio que dificilmente se
afasta. Toda tentativa de desvendar a razão no que é irracional é
aceita como legítima, desde que nos permita manter aquilo que não
estamos dispostos a nos desfazer. Ainda assim, não se pode negar
que os Livros Sagrados do Oriente estão cheios de tolices e que o
mesmo riacho que carrega fragmentos de ouro puro também arrasta
areia e lama e que muito disso é estéril e ofensivo. Que muitas
coisas que ocorrem nos hinos dos Vedas, nos Brâmanas e nos
Upanishads foram consideradas até mesmo pela mentalidade
oriental como sujeira acumulada — nunca saberemos como — ao
longo de séculos, como podemos verificar nas opiniões de Buda.
A hostilidade dele em relação aos brâmanes tem sido muito
exagerada. Sabemos, atualmente, que muitas de suas doutrinas
eram realmente as dos Upanishads. Mas, embora ele aceitasse e
aproveitasse o ouro na literatura antiga da Índia, ele não aceitaria o
que nela havia de mera poeira acumulada. As palavras de Buda
sobre este assunto merecem ser citadas, não apenas para
exemplificar que, para uma mente oriental, parte do que os
brâmanes chamavam de venerável e inspirado podia parecia inútil e
absurdo, mas também para, ao mesmo tempo, exemplificar uma
liberdade de julgamento que mesmo nós, muitas vezes, temos
grande dificuldade de manter. No Kalama Sutta, Buddha diz:

“Não acredite no que você ouviu; não acredite em tradições


por terem sido transmitidas por muitas gerações; não acredite em
algo por ser dito e mencionado por muitos; não acredite apenas
porque existe uma declaração escrita por algum sábio antigo; não
acredite em conjecturas; não tome algo como verdade apenas por
você ter se tornando dependente disso por mero hábito; não
acredite apenas na autoridade de seus mestres e anciões. Após a
observação e a análise, quando se mostrar de acordo com a razão e
se mostrar propício para o bem e o benefício de um e de todos, aí
sim, aceite-o como verdade e viva de acordo com ela”(Anguttara
Nikaya, citado nas transcrições do The World’s Parliament of
Religions, vol. II, p. 869, organizado pelo rev. John Henry Barrows).
Dizer isso na Índia exigiu muita coragem. Na verdade, é
preciso coragem para dizer isso em qualquer época. Mas, em todo
caso, isso nos mostra que mesmo a mente oriental não conseguiu
admirar tudo o que tinha sido proferido como antigo e sagrado. Aqui
está um exemplo que devemos seguir, sempre tentando separar o
joio do trigo, provando todas as coisas e retendo o que é bom. Eu
afirmo, novamente, que há trigo nos Vedas, especialmente nos
Upanishads, mas também há abundância de joio, e, em resposta a
meus críticos, posso dizer que não é possível que alguém possa
realmente apreciar o trigo se não puder também rejeitar o joio.

A sílaba sagrada Om

Muito, por exemplo, do que é dito nos Upanishads sobre a


sílaba sagrada Om parece, em minha opinião, mero disparate, pelo
menos em sua forma atual. Não consigo trazer exemplos no
momento, mas só é necessário ler o início do Khandogya Upanishad
e vocês verão o que quero dizer. É bem possível que, originalmente,
houvesse algum sentido em todas as bobagens que encontramos
nos Upanishads sobre a sílaba sagrada Om. Este Om pode ter tido
originalmente algum significado. Pode ser sido a contração de uma
antiga forma *avam, e este avam pode ter sido uma raiz pronominal
pré-histórica, usada para se referir para objetos distantes, enquanto
ayam se referia a objetos mais próximos. Nesse caso, avam pode
ter se tornado a partícula afirmativa om, assim como o francês oui
surgiu a partir de hoc illud. E, portanto, lemos no Khandogya
Upanishad I, I, 8: “Essa sílaba é uma sílaba de permissão, pois
sempre que permitimos qualquer coisa, dizemos ‘om’, sim.” Se,
então, om significava originalmente aquilo e sim, podemos entender
que om, como o nosso Amén, pode ter assumido um significado
mais geral, algo como tat sat[49], e que pode ter sido usado como
representando tudo o que a linguagem humana pode expressar.
Assim, no Maitrayana Upanishad VI, 23, depois de se dizer que
havia um Brama sem palavras, e um segundo, um Brama-Palavra,
se diz que essa palavra é a sílaba Om. Isso parece absurdo, a
menos que admitamos que este om foi inicialmente utilizado como
símbolo de toda fala, assim como um pregador poderia dizer que
toda a linguagem era Amém, Amém.

Tudo que fosse antigo se tornou sagrado

Na verdade, é muito difícil explicar esta mistura estranha de


sabedoria e insensatez presente até mesmo nos Vedas, mais
especialmente nos Brâmanas, exceto supondo que, no momento em
que essas antigas composições foram reunidas em formato escrito,
qualquer coisa que tivesse sido considerada como antiga era vista
automaticamente como sagrada e digna de ser preservada.
Devemos nos lembrar como objetos horríveis e decadentes
podem ser admirados em nosso próprio meio por antiquários,
simplesmente porque serem molto antico. Também não devemos
esquecer que uma longa tradição oral afirma que os Vedas tinham
sido transmitidos oralmente, de geração em geração, antes de
terem recebido forma escrita. Isso também pode explicar as
esquisitices presentes em uma grande quantidade de pensamento
epigônico. Vemos a mesma mistura nos poemas homéricos (pois
mesmo Homero às vezes é apático) e também na poesia popular de
outras nações, sejam os escandinavos ou os alemães, os
finlandeses ou lapões. Mas, admitindo tudo isso, não é, por acaso,
dever do historiador proceder como os caçadores de ouro, ou seja,
que não se incomodam com a água enlameada, com a argila e a
areia, se puderem recuperar, ao final, ao menos algumas gramas de
ouro genuíno?
Eu não espero que nenhum de meus ouvintes se junte aos
caçadores de ouro, que comecem o estudo do sânscrito de modo a
serem capazes de ler os Upanishads e as vedanta-sutras no
original. Desejo apenas que eles olhem para algumas das gramas
de ouro ou algumas das pepitas maiores, de modo a que, no futuro,
o mapa da Índia, desde as montanhas do Himalaia até o Cabo
Comorim, não se apresente em suas mentes como cinza e preto,
mas colorido, brilhante e dourado.
O sânscrito não é uma língua tão difícil quanto, em geral, se
imagina que seja. Conheço várias damas da sociedade que o
aprenderam muito bem. Conheço ao menos um professor de
filosofia que considerou ser seu deve aprender sânscrito de modo a
estudar os diferentes sistemas de filosofia da Índia.

Livros para o estudo do Vedanta

Os Upanishas e as vedanta-sutras estão, certamente, entre


as obras mais difíceis de traduzir do sânscrito para qualquer língua
moderna, seja inglês ou alemão. Somos constantemente lembrados
de nossas deficiências para conseguir capturar e transmitir de modo
preciso os tons mais detalhados do significado, seja dos vislumbres]
inspirados dos Upanishads, seja dos raciocínios perspicazes da
escola vedantina de filosofia.
Várias vezes, mesmo percebendo claramente um desvio em
relação ao original, descobrimos ser quase impossível oferecer um
equivalente próximo e fiel em inglês. Ainda assim, eu me aventurei
em uma tradução ao inglês de todos os Upanishads mais
importantes e a publiquei no primeiro e décimo quinto volumes de
meu Livros Sagrados do Oriente. Nos casos em que esses
Upanishads já haviam sido traduzidos antes, muitas vezes eu tive
que diferir de meus predecessores, e, é claro, também não faltaram
críticos que diferiram de mim. Em muitos casos, tais críticas se
provam úteis; em outros, elas me pareceram tão mal informadas e
tão pouco alheias a questões acadêmicas que não mereciam
atenção, muito menos refutação. Ainda assim, não tenho dúvidas de
que os futuros tradutores encontrarão bastante trabalho a fazer,
especialmente se eles se permitirem fazer emendas conjecturais do
texto.
Como se tratava de uma primeira tentativa, eu considerei
correto evitar ao máximo qualquer alteração especulativa ou
conjectural do texto sânscrito, especialmente quando o texto era
confirmado pelos comentários de Shankara, escritos antes de 800
d.C., uma vez que não possuímos nenhum manuscrito dos
Upanishads de nenhum período equivalente. Também achei correto
seguir a orientação de Shankara o máximo possível e nunca desviar
dele exceto onde sua interpretação pudesse claramente ser
demonstrada como errada ou artificial e onde uma interpretação
melhor pudesse ser defendida com argumentos válidos. Esses
princípios que eu segui em minha tradução podem não ser
recomendáveis para todos os estudiosos, mas tenho tido o orgulho
de descobrir que os tradutores dos Comentários de Shankara sobre
as vedanta-sutras e outros acadêmicos com real competência para
julgar têm aprovado esses princípios e considerado minha tradução
não só confiável como útil.
Existe uma tradução excelente das Vedanta-sutras com
comentários de Shankara nos volumes trinta e quatro e trinta e oito
da mesma coleção, contribuição do professor Thibaut, que é um
residente nos centros de ensino do Vedanta, em Benares[50] e
Allahabad. Existe uma tradução alemã da mesma obra, feita pelo
professor Deussen, professor de Filosofia da Universidade de Kiel, o
estudioso alemão que não esquivou do desafio de aprender
sânscrito com o único propósito de estudar aquela filosofia vedanta
da qual Schopenhauer, como vocês devem lembrar, havia falado em
termos tão brilhantes. Essa tradução, feita por filósofo tão
academicamente qualificado, mostrará, em todo o caso, que um
homem profundamente versado em Platão, Aristóteles, Espinosa e
Kant não considerou como perda de tempo devotar alguns dos
melhores anos de sua vida ao Vedanta, bem como fazer uma
viagem à Índia, de modo a entrar em contato pessoal com
representantes ainda vivos da filosofia vedanta. Isso pode servir
para convencer aqueles que sempre são céticos quanto à
possibilidade de que algo de bom possa vir da Índia de que até
mesmo nossa filosofia pode ter algo a aprender com a antiga
filosofia indiana.
Por outro lado, não seria honesto da minha parte não lhes
contar que, enquanto filósofos alemães do calibre de Schopenhauer,
Deussen e outros nutrem, a partir desse estudo, expectativas de
grande renovação na filosofia (assim como o estudo do sânscrito e
da religião e mitologia da Índia trouxeram uma renovação na
filologia, teologia e mitologia comparadas), também não faltam
aqueles que olham para a filosofia vedanta como mera tolice, como
algo que, no fundo, não é digno de atenção por parte de estudantes
sérios de filosofia. Vocês deveriam ouvir a ambos os lados e julgar
por si mesmos. Apenas devo lembrar-lhes que não houve uma
filosofia que não tenha sido chamada de “mera tolice” por algum dos
mais sábios dentre os sábios. Aos olhos de algumas pessoas, toda
filosofia é uma tolice, até mesmo loucura, enquanto outros a
chamam de “loucura divina”.
Há alguns outros livros valiosos, como a tradução do
Vedanta-sara, uma obra mais moderna[51], feita pelo coronel
Jacob[52], e alguns outros textos traduzidos pelo professor Venis nos
volumes de “Pandit”. Os Essays on Indian Philosophy, de
Colebrooke[53], apesar de terem sido escrito há muito tempo, ainda
são bastante instrutivos; e os ensaios sobre os Upanishads, do
professor Gough[54], merecem um exame cuidadoso, embora
possamos discordar da postura com que foi escrito. A mesma
observação se aplica ao trabalho intitulado A Rational Refutation of
the Hindu Philosophical Systems, de meu amigo de longa data
Nilakantha Sastri Ghore (convertido ao cristianismo e missionário
em Poona), traduzidos do híndi para o inglês pelo dr. Fitz-Edward
Hall, Calcutta, 1862, que é certamente uma obra honesta e erudita,
mas escrita em um tom decididamente controverso.

Coincidências. A substância de Espinosa

Por mais estranha que a filosofia vedanta possa parecer, à


primeira vista, para a maioria de nós, dificilmente não
conseguiríamos descobrir similaridades surpreendentes desta com
os grandes sistemas de filosofia europeia. Assim, Brama, tal como
concebido nos Upanishads e definidido por Shankara é claramente
a mesma “Substância” de Espinosa. Espinosa a define como o que
é em si mesmo e por si mesmo concebido (in se est e per se
concipitur). Segundo ele, infinito, indivisível, uno, livre e eterno,
assim como o Brâma[55] de Shankara é chamado nos Upanishads de
“não-nascido, imperecível, imortal, sem partes, sem ação, tranquilo
e sem culpa ou mancha”. Mas, enquanto para Espinosa, essa
“Substância” simplesmente ocupa o lugar de Deus[56], Shankara,
quando perguntado se Brâma é Deus, responderia tanto Sim quanto
Não. Sem dúvidas, ele define Brâma como “a causa onisciente e
onipotente da origem, do surgimento e do desaparecimento do
mundo”; mas, assim como ele distingue entre um mundo
fenomênico e um mundo real, ele também distingue entre um Deus
fenomênico e um real. Esta é uma distinção muito importante. Há,
diz ele, um Brama inferior e um superior. Mesmo o inferior é
condecorado com os mais elevados predicados que a linguagem
humana tem para conferir; mas o superior está acima de todos os
louvores e todos os predicados; até mesmo os mais altos
predicados que as outras religiões têm atribuído à Divindade não
são dignos de Brâma. De acordo com Shankara, Deus, como
concebido por muitos, como uma pessoa histórica, que centenas ou
milhares de anos atrás criou o mundo e se mantém como seu
governante permanente, é apenas fenomênico; isto é, ele é o Brâma
real, mas escondido por trás de um véu de Avidya ou Nesciência
humana. A princípio, essa ideia de Deus parece ser muito baixa,
mas, se entendida adequadamente, é na verdade a mais elevada e
verdadeira visão que se pode ter. Pois fenomênico não significa o
que é inteiramente falso ou irreal; o Deus fenomênico é o Deus mais
real, porém como concebido pelo entendimento humano, o qual
nunca pode formular uma ideia adequada da Divindade, já que a
Divindade é inconcebível e inefável. Para todos os propósitos
práticos, entretanto, para os propósitos da religião e moralidade,
essa divindade fenomênica é necessária. É apenas para os
filósofos, para os vedantinos, que a realidade superior é necessária,
e isso vale tanto para o Brâma subjetivo quanto para o mundo
objetivo. A realidade fenomênica do mundo objetivo dura pelo tempo
em que as condições de sujeito e objeto da experiência
permanecem o que são. Para aqueles que não podem ver uma
realidade superior além do mundo fenomênico, esse mundo
fenomênico possui, é claro, a mais absoluta realidade e, aos seus
olhos, o mundo real por trás do véu dos sentidos, postulado pelo
filósofo, é inteiramente irreal, pura imaginação. O vedantino está
inteiramente convencido de que isto deve ser assim; ele não tem
nomes pejorativos para os que acreditam no mundo fenomênico e
no Deus fenomênico. Ele sabe que virá o tempo em que os olhos
destes serão abertos; até lá, embora eles cultuem a Deus na
ignorância, eles ainda cultuam a Deus, o Deus verdadeiro ou
Brâma.

O significado do Real

Poucas palavras possuem tantos significados quanto real,


poucas palavras passaram por mudanças de sentido tão drásticas.
Ainda assim, para todo pensador sincero, existe e pode existir
apenas uma realidade. Não podemos chamar nada de irreal a
menos que saibamos que algo é real, e vice versa. Assim, para a
grande maioria da humanidade, o que chamamos de mundo
fenomênico é completamente real, eles não conhecem nada mais
real; o que os vedantinos chamam de Deus fenomênico, o Senhor
ou Isvara, é o que eles chamam de único Deus verdadeiro e real[57].
Mas vem o tempo em que se perceberá que o mundo fenomênico é
apenas fenomênico, e que o Deus fenomênico é apenas
fenomênico, e que por trás dessas aparências deve haver algo de
real que se mostra. É isso o que o vedanta chama de Brama
verdadeiro, o Eu Superior, o Deus realmente verdadeiro. Esse
Brama — diz Shankara — permanece inalterável, mesmo quando é
adorado na ignorância. Ele não é manchado por nossa ignorância,
assim como o sol não é manchado pelas nuvens que passam por
ele. Mais do que isso, assim como aprendemos que o olho humano
não pode ver o sol, exceto quando coberto por essas nuvens
passageiras, assim também a mente humana não pode conceber
Deus, exceto por trás do véu da linguagem humano e do
pensamento humano. O Brama fenomênico, portanto, não é nada
além do Brama real, apenas encoberto no tempo pela Nesciência ou
Avidya.

A natureza de Avidya e Maia

Essa Avidya, entretanto, não significa, para nós, uma


ignorância individual, mas uma ignorância inerente à natureza
humana, como um tipo de força geral cósmica, como a escuridão
inevitável na luz, que faz com que o mundo fenomênico pareça e
seja para nós o que parece e o que é. Consequentemente, essa
Nesciência ou Avidya veio a ser chamada “Maya”, originalmente
poder (também Sakti), a causa criadora de todo o mundo. Esse
Maia logo assumiu o significado de Ilusão, Engano, Fraude,
assumindo até mesmo um tipo de personalidade mitológica. Porém,
todo esse desenvolvimento do pensamento vedantino é, com
certeza, bastante posterior. Independentemente do que tenha sido
escrito contra isso, Colebrooke estava, creio eu, perfeitamente certo
quando disse “que a noção de que o mundo versátil é uma completa
ilusão (Maya) e que tudo que alcança a apreensão do indivíduo em
vigília é apenas uma fantasia, apresentada à nossa imaginação, de
que cada coisa aparente é irreal e tudo é ilusório, não parece ser a
doutrina do texto do Vedanta”.

Colebrooke sobre o Maya

Aqueles que ousadamente defendem que Colebrooke


estava errado “do princípio ao fim” parecem não ter compreendido,
de fato, o que ele quis dizer. Olhemos para os fatos, primeiro. A
própria palavra Maya nunca aparece nos principais Upanishads com
o mesmo significado que Avidya. Começa a aparecer no Upanishad
Svetâsvatara, que ocupa uma posição própria. Isso é, com certeza,
um fato importante; e, como agora dispomos da Concordância feita
pelo coronel Jacob[58], podemos afirmá-lo com plena confiança.
Quando Maya ocorre, no plural, no Brihad Âr. Upanishad II, 5, 19, é,
a verdade, uma citação do Rig-veda VI, 47, 18, e mostra como
Maya, no sentido de Sakti, poder, veio a entrar na linguagem do
Vedanta. Em palavras compostas, Maya geralmente significa poder,
força criativa, bem parecido com Sakti, embora em Upanishads
posteriores tenha tomado o lugar de Avidya. O Vedanta nos alerta
diversas vezes que devemos distinguir entre dois tipos de ilusão.
Quando imaginamos ver uma serpente ao invés de uma corda,
existe algo real por trás da ilusão, mas quando um homem, em um
acesso de febre, imagina ver um demônio, não há nada real,
nenhum demônio real, nenhum demônio an sich, por trás disso.
Essa ideia de que o mundo é apenas Maya, uma ilusão, uma visão,
um nada, é aquilo a que Colebrooke se refere quando diz que está
ausente dos Upanishas e da filosofia Vedanta original; e ele está
certo. A ideia de que o mundo é nada além de Maya ou ilusão é
uma visão que Shankara menciona como a teoria dos budistas ou
dos sunyavadins, isto é, daqueles que dizem que tudo é o vazio.
É verdade que alguns dos vedantinos também falharam em
distinguir entre o que é absolutamente real e relativamente real (e,
por isso, foram chamados cripto-budistas). Mas os verdadeiros
vedantinos mantiveram que, por trás do relativamente real, existe o
absolutamente real, que por trás do mundo fenomênico existe a
realidade plena de Brama; e que, ao acreditar e ao adorar, em
ignorância, a um Criador do mundo, uma Divindade individual, não
inteiramente desprovida de qualidades humanas, eles estavam
acreditando e adorando ao Deus verdadeiro, ao Brama eterno, à
fonte incompreensível e inexpressável de todas as coisas.

Sir W. Jones sobre o Vedanta


Assim como Colebrooke, Sir W. Jones também percebeu o
verdadeiro caráter do antigo Vedanta quando escreveu: “O aspecto
fundamental da escola vedanta consiste não em negar a existência
da matéria, isto é, da solidez, impenetrabilidade e extensão (negar
isso seria loucura), mas em corrigir a noção popular sobre isso e
apontar que esta não possui nenhuma essência independente da
percepção mental, que existência e perceptibilidade são termos
conversíveis, que aparências externas e sensações são ilusórias e
que se desfariam em nada se a energia divina, que a sustenta,
fosse suspensa mesmo que por único momento; uma opinião que
Epicarmo e Platão parecem ter adotado e que tem sido defendida
no século atual com grande elegância, mas com muito pouco
aplauso público, em parte por ter sido mal compreendida, em parte
porque tem sido aplicada incorretamente pelo raciocínio equivocado
de alguns escritores impopulares, que não acreditam nos atributos
morais de Deus, cuja onipresença, sabedoria e bondade são a base
da filosofia indiana” (Works, i. pp. 20, 125, 127).
Esse fato, essa percepção de uma verdade relativa contida
em nossa experiência fenomênica, explica, creio eu, por que
encontramos na filosofia vedanta o mesmo espírito tolerante que
encontramos geralmente na religião indiana. Assim como o
Supremo espírito diz no Bhagavad Gita “Mesmo aqueles que
adoram a ídolos adoram a Mim”, Brama também diz na filosofia
vedanta “Mesmo aqueles que adoram a um Deus pessoal, sob a
imagem de cuidador ativo, ou um Rei dos Reis, adoram, em todos
os casos, a Mim”. Essa é uma distinção muito importante tanto de
um ponto de vista filosófico quanto de um ponto de vista religioso.

Os dois Bramas são um

Podemos compreender muito bem os perigos de mal-


entendidos frequentes quando a mesma palavra Brama é aplicada
em dois sentidos tão diferentes, tanto para o Brama Superior e
quanto para o Inferior, tanto para um ser incondicionado quanto para
um condicionado. Shankara tem, portanto, que dedicar uma porção
considerável de sua obra a mostrar em inúmeras passagens dos
Upanishads qual das duas ideias estava presente em cada caso, no
pensamento de seus autores. Por fim, ele se pergunta (IV, 3, 14): “O
que acontece, então? Há dois Bramas, um superior e um inferior?”
Ao que ele responde: “Sim, de fato, há dois.” E lemos em um
Upanishad (Prama V, 2): “A sílaba Om é o superior e também o
outro Brama. Então, o que é o Brâma superior, e o que é o outro
Bramá?” Ele responde. Quando Brâma é descrito nos Upanishas
apenas por palavras negativas, após a exclusão de todas as
diferenças de nome e forma, devidas à Nasciência — este é o
Superior. Mas, quando ele é descrito por termos como (Khând. III,
14, 2) “a inteligência, cujo corpo consiste de espírito, cujo corpo é
luz, que se distingue por algum nome ou forma especial, para o
propósito da adoração, esse é o outro, o Brama inferior.”
Mas, se é assim, então o texto que diz que Brâma é o Um
sem-segundo (Khând. VI, 2, I) pareceria contraditório. “Não”, diz ele,
“não seria, pois tudo isso é apenas a ilusão do nome e da forma,
produzia pela Nesciência.” Na verdade, os dois Bramas são um
único e o mesmo Brama — um concebível, outro inconcebível; um
fenomênico, outro absolutamente real.
Nada pode ser mais claro do que a distinção traçada aqui
por Shankara. Entre os poetas dos Upanishads, entretanto, a linha
divisória entre o Brâma Superior e o outro Bramá nem sempre foi
bem definida; e aqui Shankara várias vezes tem que explicar e, às
vezes, torcer o significado natural dos Upanishads. Assim, quando
interpreta as inúmeras passagens dos Upanishads que descrevem o
retorno da alma humana para Bramá após a morte, Shankara
sempre toma Bramá como sendo o Bramá condicionado e inferior.
“Pois a alma humana”, diz ele, “que alcançou o conhecimento do
Supremo Brâma não pode morrer, não pode ser movida em direção
a Brâma”. Essa alma, Shankara ousadamente o declara, “se torna
Brâma por ser Brâma”, isto é, por conhecer a si mesma, por
conhecer o que ela é e sempre foi. Remova a Nesciência e tudo é
luz, e nessa luz o Eu humano e o Eu divino resplandecem em sua
unidade eterna. Do ponto de vista da realidade suprema, não há
diferença entre o Brâma superior e o Eu individual ou Atman (Ved.-
sutras I, 4, i, p. 339). O corpo, com todos os condicionamentos e
upadhis a ele ligados, subsistirá por algum tempo, mesmo depois
que a luz do conhecimento apareceu, mas a morte chegará e trará
liberdade imediata e bem-aventurança perfeita; enquanto isso,
aqueles que, por suas boas obras, podem entrar no paraíso celestial
até lá terão que aguardar, até obterem a suprema iluminação e
serem restaurados à sua verdadeira natureza, sua verdadeira
liberdade e sua unidade com Brâma.

Os germes do Vedanta nos Upanishads

Quando consideramos quão obscuras são muitas dessas


ideias metafísicas que formam a substância da filosofia vedanta, é
muito interessante ver como Shankara tem sucesso em descobri-las
ou, em todo caso, descobrir seus germes, nos antigos Upanishads.
É verdade que algumas vezes ele nos lembra do modo como os
textos da Bíblia são interpretados ou, como tem sido dito,
‘aprimorados’ em sermões acadêmicos. Ainda assim, não podemos
negar que os germes de muitos dos pensamentos mais recônditos
dos metafísicos vedantinos estão realmente lá, embutidos nos
Upanishds. É claro, não existe uma terminologia estrita e
consistente naqueles textos antigos, e seus métodos são assertivos
ao invés de argumentativos. A concepção predominante sobre
Bramá, por exemplo, é certamente mitológica nos Upanishads. Ele
não é apenas a fonte da luz dourada (Hiranyagarbha), ele é visto no
próprio sol, com uma barba brilhante e cabelos dourados; ele
mesmo inteiramente dourado até as pontas de suas unhas; seus
olhos são azuis como as flores de lótus (Khând. I, 6, 6). Sim, aos
olhos de Shankara, tudo isso é apenas o aspecto fenomênico do
Brâma real; e dEle, o mesmo Upanishad diz “Verdadeiramente, ó,
amigo, este Imperecível não é nem áspero nem suave[59], nem curto
nem longo, nem vermelho (como o fogo) nem fluido (como a água);
é sem sombra, sem escuridão, sem ar, sem éter, sem apego, sem
olhos, sem ouvidos, sem fala, sem mente, sem luz, sem fôlego, sem
boca, sem cumprimento, não tendo nem interior nem exterior.”[60] E
esse processo de negação (ou o que pode ser realmente chamado
de abstração) segue adiante, até que cada folha da flor seja
arrancada, e nada mais reste além do caule ou da semente, o
Brama inconcebível, o Eu do mundo. Ele vê, mas não é
visto; ele ouve, mas não é ouvido; ele percebe, mas é imperceptível;
não há nada no mundo que veja ou ouça ou perceba ou conheça a
não ser Brama.”
Se os Upanishads dizem que Brâma é a luz no sol, o
vedantino deve aprender a entender que isso é assim, pois o que
mais poderia ser essa luz do que Brâma, aquilo que é tudo em
todos? Mas não deveríamos dizer que Brâma é inteiramente a luz; a
luz é que é inteiramente Brâma. A aproximação mais precisa que a
linguagem metafísica pode fazer em relação a Brâma é chamá-lo de
Luz, por assim dizer, luz consciente, que seria outro nome para
conhecimento. E assim lemos no Mundaka Upanishad (V, 2): “Esta é
a luz das luzes; quando ela brilha, o sol não brilha, nem a luz nem
as estrelas, nem os relâmpagos, muito menos esse fogo. Quando
Brâma brilha, tudo o mais brilha depois dele; por sua luz, todo o
mundo é iluminado.’ A luz consciente seria a melhor representação
do conhecimento atribuído a Brâma, e é bem sabido que Tomás de
Aquino[61] também chama a Deus de Sol inteligente (Sol intelligibilis).
Pois, embora todos os atributos puramente humanos sejam
negados a Brâma, o conhecimento (conhecimento sem limitações
externas, é claro) é reservado a Ele.

O conhecimento de Brama

Conhecimento é, de fato, o único predicado humano que


todas as religiões se aventuram a atribuir ao Ser Supremo; embora,
ao fazê-lo, elas muitas vezes esqueçam como é imperfeito o
conhecimento humano, mesmo quando este atinge a sua mais
elevada perfeição, e como este conhecimento, mesmo em seu grau
mais elevado, é indigno da Divindade. Existe um elemento passivo
em todo conhecimento humano, e este seria incompatível com a
Divindade. O Vedanta chama Brâma de onisciente, mas outro
sistema de filosofia, o Sânquia[62], se opõe a isso como algo muito
antropomórfico.
Os filósofos sânquias argumentam “Se você atribui a Brâma
onisciência, isto é, um conhecimento necessário de todas as coisas,
você o torna dependente dos objetos quanto ao ato de conhecer; ele
não pode deixar de conhecer, assim como nós não podemos deixar
de ver, mesmo quando não queremos; isso seria indigno de Brâma.”
Esta, sem dúvida, é uma objeção bastante perspicaz, mas o
vedantino a aborda sem medo e diz: “Também o sol, apesar de seu
calor e luz serem permanentes, é designado, no entanto, como
independente, quando dizemos ‘ele brilha, ele aquece’.” O filósofo
sânquia, entretanto, não desiste ainda. “O sol”, replica ele, “deve ter
objetos para iluminar e aquecer; e antes da criação do mundo, não
podia haver qualquer objeto sobre o qual Brama pudesse brilhar, o
qual ele pudesse ver ou conhecer.” E aqui a resposta do vedantino é
muito importante. “Primeiramente”, diz ele, “o sol iria brilhar, mesmo
se não houvesse nada sobre o que brilhar. Mas, independentemente
disso, Brâma era desde antes da criação do mundo e sempre tinha
algo para conhecer e sobre o que pensar.”

Nome e formas como objetos do conhecimento de


Brama

Se perguntarmos quais poderiam ser os objetos de seus


pensamentos eternos, o vedantino responde: ‘Nomes e formas’
(nâma-rûpa). O leitor perceberá imediatamente a semelhança
imediata entre essa teoria e a teoria platônica das ideias e ainda
mais com a teoria estoica sobre o Logos, a linguagem e o
pensamento. Que pensamento e linguagem são inseparáveis era
algo claramente percebido pelos filósofos estoicos e platônicos em
Alexandria, quando chamavam as ideias criadoras de Deity logoi,
que é tanto palavras quanto pensamentos; e isso foi igualmente
percebido pelos antigos filósofos hindus, quando chamavam os
mesmos pensamentos nâma-rûpa, nomes e formas. Esses nomes e
formas são, de fato, os είδη ou ideias de Platão e as espécies dos
últimos estoicos[63]. Como pensamentos de Brama antes da criação
do mundo, esses nomes-formas são não-manifestos (avyâkrita); no
mundo criado, eles são manifestos (vyâkrita) e múltiplos.

Pensamento e linguagem inseparáveis

A teoria de que pensamento e linguagem são inseparáveis,


que apareceu independentemente na Índia, na Grécia e que foi
levada a suas últimas consequências pelos padres alexandrinos na
Igreja Cristã, também tem sido reconhecida por filósofos modernos.
Quando eu a apresentei, alguns anos atrás, no meu livro “Sobre a
ciência do pensamento”, ela foi tratada, a princípio, como um mero
paradoxo, como algo novo e inédito. A única objeção produtiva
levantada contra minha teoria foi que, em um mundo fenomênico,
isto é, no espaço e no tempo, duas coisas jamais podem ser
idênticas, assim linguagem e pensamento também não poderia sê-
lo. Mas se é este o significado de idêntico, então deveríamos apagar
inteiramente de nosso dicionário a palavra idêntico, pois duas coisas
jamais poderão ser idênticas. Outros dentre meus críticos
compreenderam melhor a questão. Eles sabiam que eu apenas
queria provar, uma vez mais, aquilo que já havia sido provado muito
tempo atrás por filósofos gregos e indianos, ou seja, que linguagem
e pensamento são um, e que nesse sentido os pensamentos
criadores do Ser Supremo foram chamados de logoi, e, quando
concebidos como um, de Logos de Deus. Este foi o mesmo Logo
que foi chamado por Filo e outros, muito antes de São João, de υιός
μονογενής (Teosofia, p. 412), ou seja, o Filho unigênito de Deus, no
sentido de ser a primeira criação ou manifestação da Divindade.
Coincidências entre o Nâma-rûpa e o Logos Grego

Devo confessar que, quando encontrei pela primeira vez a


teoria do Supremo Ser meditando sobre palavras e dando forma ao
mundo por meio de palavras, suspeitei de que seria mais do que
uma coincidência; suspeitei que isso seria resultado de um influxo
real do pensamento grego na Índia. Estamos familiarizados com
essa teoria nos estoicos e neoplatônicos, e conhecemos na Grécia o
longo desenvolvimento histórico prévio que levou a até ela. Temos
muita segurança, portanto, de que os gregos não poderiam tê-la
tomado emprestada da Índia, assim como não temos dúvida de que
a ideia do Logos e o próprio termo υιός μονογενής — traduzido
equivocadamente como unigênito — chegou aos judeus, como Filo,
e aos primeiros cristãos, como São João, a partir da escola grega de
Alexandria. Mas a mera análise das datas dos textos em que são
encontrados os mesmos pensamentos (a teoria de um mundo ideal
e de pensamentos ou palavras divinas realizadas no mundo
material) na Índia torna impossíveis todas as suspeitas de
empréstimo. E, afinal, a teoria de que no princípio era o Verbo, ou as
palavras, e que por ele ou por elas todas as coisas foram feitas, não
é tão não-natural assim ao ponto de não poder ter surgido
independentemente em dois locais. A palavra é a manifestação do
pensamento; toda palavra, devemos lembrar, expressa um conceito,
não uma percepção. Árvore não serve apenas para esta ou aquela
árvore, é o conceito geral de todas as árvores; e, se cada coisa
individual é a realização de um tipo ou pensamento ou palavra ideal;
se cada homem, por exemplo, é a realização da palavra ou
pensamento divino de homem ou de humanidade, não precisamos
nos assustar quando encontramos tanto na Índia quanto na Grécia a
crença de que Deus criou o mundo pelo Logos ou pela palavra ou
por muitas palavras, o logoi, as ideias de Platão, as espécies ou
tipos da ciência moderna.
A fala como um poder criador nos Vedas

A única coisa surpreendente é que, na literatura védica,


encontramos, se não exatamente as mesmas ideias, ao menos
muito próximas, implícitas desde os tempos mais remotos e aceitas
sem quaisquer tentativas de explicá-las. Não conseguimos explicar
isso facilmente, a menos que estendamos o período da infância do
povo védico para muito antes da data de suas primeiras
composições poéticas. Assim, encontramos no Rig-veda um hino
que é posto na boca de Vâk ou Fala ou Voz, que é ininteligível a
menos que admitamos um longo período anterior de
desenvolvimento do pensamento, durante o qual a Voz se tornou
não apenas uma entre muitas divindades, mas um tipo de poder
além dos deuses, um tipo de Logos ou de Sabedoria primordial. Lá,
a Fala diz de si mesma:
“Eu me movo junto com Rudra, o deus da tempestade e do
trovão, com Vasus, com as Adityas, com Visve Devas, eu sustento
tanto Mitra quanto Varuna, os dois Asvins, Indra e Agni”.
Qual poderia ser o significado da Voz sustentando os mais
grandiosos entre os deuses védicos, a menos que ela tenha sido
concebida como um poder maior do que os deuses?
Então, ela diz novamente:
3. “Eu sou a Rainha, a coletora de tesouros, eu sou inteligente, o
primeiro dentre os merecedores de sacrifícios; os deuses me
fizeram múltiplo, existindo em muitos lugares, adentrando em muitas
coisas”.
6. “Eu estico o arco para Rudra matar o inimigo, aquele que odeia
Brama; eu causo guerra entre os homens, eu estico céus e terra”.
8. “Eu sopro como o vento, contendo todas as coisas; além do céu,
além dessa terra; tal sou eu, pelo meu poder”.
Não me parece que tudo isso poderia ser dito se Vâk ou Voz
tivesse sido concebida simplesmente como a linguagem falada ou
mesmo como oração ou hino de louvor. É inteiramente verdade que,
desde o primórdio, poderes miraculosos foram atribuídos aos hinos
dos Vedas, seja para abençoar ou amaldiçoar. Ainda assim, isso
não daria conta de Vâk ou Voz esticando céus e terra, nem sendo
maior do que céu e terra. Parece-me que tais expressões
pressupõem, em um passado distante, uma concepção de Voz ou
da Palavra como um poder criador, ainda que com o caráter vago da
Sabedoria (Sofia) judaica ao invés de uma forma mais definida
como o Logos grego.

Semelhanças com a Sabedoria do Antigo Testamento

Quando nossa atenção vai para os Brâmanas, também


encontramos lá muitas passagens que se tornariam muito mais
inteligíveis se tomarmos Vâk ou Voz no sentido da Sabedoria
judaica, que diz (Prov. viii. 22)
22. “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde
então, e antes de suas obras.”
23. “Desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes de
existir a terra.”
25. “Antes que os montes fossem assentados, antes dos outeiros,
eu fui gerada.”
27. “Quando ele preparava os céus, aí estava eu, quando traçava o
horizonte sobre a face do abismo.”
30. “então eu estava ao seu lado como arquiteto; e era cada dia as
suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o tempo.”

Encontramos um pensamento muito semelhante, por


exemplo, no Pañkavima Bramana XX, 14, 2, onde lemos:
“Pragâpati, o Criador, foi tudo isso. Ele tinha a Voz (Vâk) como sua,
como um segundo.” (ou, na língua da Bíblia, como algo criado com
ele). “Ele pensou: Enviarei essa voz; ela atravessará e permeará
tudo isso. Ele a enviou além, e ela atravessou e permeou tudo isso”.
Em outras passagens vâk é chamada de filha; em outras, de esposa
do Criador ou Pragâpati (assim como ela é chamada de seu deleite
diário no Antigo Testamento), e ela é sempre o principal agente no
trabalho da criação. Nós lemos que “tudo foi feito por vâk, e também
que tudo o que foi feito foi vâk” (Sat. Br. VIII, 1, 2, 9; XI, 1, 6, 18; cf.
Weber, Ind. Stud, x, p. 479). Assim como lemos em São João “todas
as coisas foram feitas pelo Verbo, e sem o Verbo nada foi feito que
fosse feito”.

Brama significava Palavra?

Que os antigos filósofos da Índia acreditavam que o mundo


foi criado pela Palavra ou que, no começo, havia a Palavra seria
algo bem mais evidente se conseguíssemos provar que brama
originalmente, muito antes da composição dos Vedas, tinha o
significado de “palavra”. Há passagens nos Brâmanas em que
realmente parece que deveríamos traduzir brama por Palavra ou em
que toda a passagem se tornaria mais inteligível se assim o
fizéssemos. Por exemplo, no Satapata Bramana VI, 1, 1, 9, nós
lemos: “Pragâpati, o Senhor de todas as coisas, desejou: ‘Eu posso
ser mais do que um, eu posso ser multiplicado... Ele criou, antes de
tudo, brama’.” Aqui, eu creio que brama foi originalmente entendido
no sentido de Palavra, para logo depois vâk, Voz, tomar o lugar de
brama; e disso, tudo o mais foi produzido. Eu deveria, portanto,
traduzir “Ele criou, antes de tudo, a Palavra”, a partir da qual
procederam todas as coisas. Em tempos posteriores, essa Palavra
foi identificada com os próprios Vedas, até mesmo com os três
Samhitas (tal como os possuímos hoje), mas isso dificilmente
poderia ter sido a intenção original do texto, embora em nossa
passagem brama seja explicado pela “ciência tripartida”, isto é, pelo
tríplice Veda.
Esse significado original de brama pode ter sido esquecido
com o tempo, mas podemos encontrar alguns vestígios dele em
vários lugares. Assim, Brihas-pati, o senhor da fala, também é
chamado de Vâkas-pati, demonstrando que brih e vâk têm o mesmo
significado. Mais do que isso, Brihas-pati e Vâk às vezes parecem
formar uma mesma divindade (Satapath. Br. V, 3, 3, 5). Também no
Khând. Up. I, 3, ii, o Brihatî, que é derivado de brih, é explicado pela
voz. Este brih é a raiz da qual brama também se deriva. Se brih
significasse originalmente romper/irromper ou florescer/saltar para
fora, Brama teria significado, no início, aquele irrompe, um
enunciado, uma palavra; e nesse sentido e também no sentido de
oração, brama é de ocorrência muito frequente nos Vedas. Poderia,
no entanto, ao mesmo tempo significar o que floresceu/irrompeu no
sentido de criação ou criador, especialmente quando a criação foi
concebida não como um ato de fazer, mas como um ato de
expandir.

Brama derivado da mesma raiz que verbum e word

Devemos agora dar um passo adiante. A raiz brih existe


também como bridh ou vridh e significa irromper, no sentido de
desenvolver, crescer. Se, de vridh, formássemos um substantivo
vardha, este, em latim, tomaria regularmente a forma de verbum. O
latim não tem dh, mas representa dh por f ou b; assim, ao invés da
forma sânscrita rudhira (vermelho), temos em latim ou rufus ou
ruber, em inglês, red. Isso nos leva a mais um passo. Como o dh do
sânscrito é representado em inglês por d, esse vardha do sânscrito,
esse verbum em latim, seria reproduzido em inglês regularmente por
word (‘palavra’); ou seja, brama, verbum e word procedem todos da
mesma raiz vrid ou vridh (‘irromper’) e compartilhariam o mesmo
significado, i.e. palavra. Disso, não podemos nos precipitar a
concluir que Brama, como a fonte do universo, foi concebido desde
o princípios como a Palavra criadora ou o Logos. Seria um resultado
bom demais para ser verdade. Mas o fato de que a mesma palavra
brama significava o poder criador que irrompe e também a palavra
que irrompe pode ter ajudado os primeiros pensadores na Índia a
chegar à ideia de que o primeiro irromper do mundo foi a palavra ou
pensamento emitido em e por Brama.

Nâma-rûpa, a conexão entre Brama e o mundo

Há outras passagens nos Brâmanas que deixam claro que,


por muito tempo, era algo familiar aos brâmanes a ideia de uma
comunicação por meio de palavras entre o Criador e o mundo
criado, embora esta tenha sido mal interpretada e esquecida. Como
o professor Deussen apontou, lemos nos Satapatha Bramana XI, 2,
3: “Brama era tudo no começo. Ele enviou (criou) os deuses; e,
tendo os enviado, ele os estabeleceu sobre os mundos, Agni (fogo)
sobre a terra, Vâyu (vento) sobre o ar, e Surya (sol) sobre o céu”.
Este é um mundo visível, mas acima desse vem um mundo superior,
então as Brâmanas continuam: “Quanto aos mundos acima destes,
Brama estabeleceu sobre estes as divindades que estão acima das
divindades anteriores. E como são manifestos aqueles mundos e
suas divindades, também estes mundos e suas divindades são
manifestos quando ele os estabeleceu.” Isso nos dá dois mundos,
mas próprio Brama transcende a ambos. Pois os Brâmanas
continuam: — “Então Brama foi até o meio do que estava além (o
que não era manifesto) e, tendo ido até lá, pensou: ‘Como eu posso
entrar nesses mundos?’”
Isso significa que Brama havia sido elevado a uma posição
tão transcendente que não podia mais se comunicar com o mundo
real. Ainda assim, uma comunicação era necessária; e como ela
podia ser alcançada? É-nos dito: “por palavras e formas”, isto é, por
aquilo que os estoicos teriam chamado de logoi ou logos. Então, nós
lemos “E Brama entrou nos mundo por dois meios, por formas
(rûpa) e palavras (nâma). Para toda coisa existe um nome por meio
do qual ela é nomeada; e qualquer coisa que não tenha um nome
pode ser conhecida por sua forma, ao se dizer ‘isto é assim, aquilo é
assim (tem tal forma). Em tudo, este (universo) se estende até onde
nome e forma se estendem.’ Estes dois, nome e forma, são os
grandes poderes de Brama, e qualquer um que conheça estes dois
poderes de Brama transforma a si mesmo em um grande poder.
Estas são as duas grandes revelações de Brama, e qualquer um
que conheça estas duas grandes revelações de Brama torna a si
mesmo uma grande revelação.”
Ao lermos essas passagens dispersas, é difícil resistir à
sensação de que há mais além delas do que os autores dos
próprios Brâmanas entenderam. Brama é concebido como
sublimemente transcendente, não apenas acima da terra, do ar e do
céu, mas também além de um segundo mundo que está além desse
mundo visível. E houve a indagação sobre como esse poder
transcendente poderia entrar em qualquer relação com sua própria
criação; a resposta é por meio de seus dois grandes poderes e
revelações, por meio de palavras e formas, isto é, por meio dessas
formas ou είδη que são palavras, e por meio dessas palavras ou
λογοι que são formas.
Estas são intuições magníficas sobre a verdade, mas estão
quase além do alcance intelectual dos autores dos Brâmanas. Eles
são como estrelas que se estabeleceram abaixo do seu horizonte de
visão e das quais os pensadores posteriores captaram apenas um
leve brilho aqui e ali.
Há uma passagem adicional, talvez a mais decisiva, que
ainda não foi considerada em conexão com esta concepção de
Linguagem e Razão como um poder criativo e como um poder que
sustenta e permeia o mundo. Ocorre no Maitrâyana Upanishad VI,
22, onde lemos: “Sobre dois Bramas se deve meditar, a palavra e a
não-palavra. Apenas pela palavra é revelada a não-palavra.” Aqui
temos novamente a contrapartida exata do Logos das escolas
alexandrinas. Há, de acordo com o filósofo alexandrino, a Essência
Divina, que é revelada pela Palavra, e a Palavra que a revela
sozinha. Em seu estado não revelado, esta é desconhecida; e foi
por alguns filósofos cristãos chamada de Pai; em seu estado
revelado, era o Logos Divino ou o Filho.
De tudo isso, parece-me que somos levados a admitir que a
mesma linha de pensamento que, depois de uma longa preparação,
encontrou sua expressão final em Filo e mais tarde em Clemente de
Alexandria, também se desenvolveu na Índia em um tempo muito
anterior, a partir de origens muito semelhantes e chegando a
resultados muito parecidos. Mas não há nada que possa indicar um
empréstimo de um lado ou de outro.

Os deuses de outras religiões

Quando os vedantinos têm que lidar com os deuses de


outras religiões, eles naturalmente veem neles, não o seu Brâma
absoluto, mas seu Bramá qualificado e ativo, seu Pragâpati, o
Senhor ou Ísvara de todas as coisas criadas, seu próprio Criador,
Mantenedor e Governante do mundo. A sua língua lhes dá uma
grande vantagem, pois por uma mera mudança de acento podem
mudar do Brâma neutro, com o acento na primeira sílaba, para o
Bramá masculino, com o acento na última sílaba. É por esses
artifícios, aparentemente insignificantes, que se pode dizer que a
linguagem ajuda ou impede o pensamento. Se considerarmos que,
por este Bramá masculino, eles se referem à divindade pessoal
ativa, dotada de todas as qualidades divinas, como a onipotência, a
onisciência, a justiça, a piedade e todo o resto, é fácil entender que
divindades como Jeová, tal como representado no Antigo
Testamento, e Jeová ou o Deus Pai, tal como concebido em muitas
passagens do Novo Testamento, bem como o Alá do Alcorão teriam
sido identificadas por eles com o Bramá masculino, não com o
neutro. Mas eles não atribuíram a estas divindades uma posição
inferior. Pois o seu próprio Deus fenomênico, seu Pragâpati ou
Bramá masculino, mesmo sendo fenomênico (ou, como diríamos,
histórico) era para eles tão real quanto pode ser qualquer coisa,
quando conhecida por nós. No entanto, por trás desse Deus,
conhecido e nomeado pelos seres humanos, eles admitiram um
Deus desconhecido, ou uma natureza divina, da qual Pragâpati,
Jeová, Alá e Deus o Pai seriam a personae apenas. Estes aspectos
pessoais da Natureza Divina se destinam à compreensão humana e
ao culto humano; eles podem ser chamados de históricos, se nos
lembrarmos de que a história de Deus só pode ser a história da
consciência humana sobre Deus ou das ideias que o homem (desde
o mais baixo estágio de adoração da natureza, até o mais alto
estágio da filiação divina consciente) tem moldado para si mesmo a
respeito desse Poder transcendente que ele sente tanto fora quanto
dentro de si. Vocês descobrirão que esse conceito de uma Natureza
Divina da qual participaram as personalidades divinas era familiar,
não apenas para os místicos medievais, mas também para alguns
dos teólogos mais ortodoxos. É claro que, na Idade Média, o que
era ortodoxo em um século muitas vezes se tornava pouco ortodoxo
no próximo; que um Concílio condenava outro Concílio, e um Papa
declarava como anátema o outro. Mas a ideia de que havia uma
Divina Essentia, que se manifestava no Pai, no Filho e no Espírito
Santo, era familiar para muitos teólogos cristãos, nos tempos
antigos e modernos. Por isso, surgia sempre o perigo de, por um
lado, substituir a Trindade por uma Quaternidade (isto é, a Essência
Divina e mais as três substâncias, Pai, Filho e Espírito Santo), ou
de, por outro lado, mudar a Trindade em três deuses,
substancialmente distintos, o que teria sido condenado como
triteísmo.[64]
Portanto, enquanto as divindades ativas de outras religiões
seriam naturalmente reconhecidas pelos seguidores modernos do
vedanta como o seu Bramá masculino, a Divina Substância em que
esses deuses participaram, o Deus uno que os nominalistas cristãos
definiram como um nome comum às três pessoas, lhes pareceria
corresponder ao seu Brâma neutro, o Deus desconhecido,
inconcebível e inefável.

Nâma-rûpa, o produto da Avidyâ


Mesmo com todas essas semelhanças entre a filosofia
indiana e a europeia, existe, como sempre existirá, uma diferença e
uma diferença enorme.
Antes de tudo, estes Nâma-rûpa, esses logoi ou o Logos,
que no Ocidente poderiam ser representados como incorporados na
Sabedoria Divina, permanecem entre os filósofos vedantinos como o
resultado da Nesciência ou Avidya. Eles eram os pensamentos de
Bramá, não de Brâma; eles pertencem ao Bramá ativo e criador, o
Ísvara ou Senhor. Essas especulações são capazes de nos
provocar tontura, mas, independentemente do que possamos
pensar sobre elas, elas nos mostram, em todo caso, a que altura
havia chegado a filosofia indiana em sua escalada paciente, de
cume a cume, e como devem ter sido fortes seus pulmões para
poder respirar bem em tal atmosfera.
Em segundo lugar, devemos nos lembrar de que o que
chamamos de criação do mundo, como um evento histórico ocorrido
uma vez, em momento preciso, não existe para os vedantinos. Eles
falam de uma manifestação ou expansão repetida, vinda de Bramá,
que não teve começo e não terá fim. Ao final de grandes períodos, o
universo é levado de volta a Bramá e depois enviado de novo. Mas
nunca houve um começo e nunca haverá um fim. Há uma
continuidade ininterrupta entre grandes períodos ou Kalpas; o
trabalho realizado em um período continua a atuar no próximo
período, e essa continuidade depende de Bramá, como o Senhor
ativo e pessoal (Ísvara). Ele vê que o próximo mundo há de ser o
que deveria ser, e que nada deve ser perdido. Em alguns lugares,
certos poderes latentes ou saktis são atribuídos a este Bramá para
explicar a variedade de coisas criadas em cada período, o que nós
iríamos chamar os vários logoi ou espécies. Mas Shankara se opõe
fortemente a isso, defendendo que o universo, apesar de ter toda a
sua realidade em e por Brama, não deve ser encarado como uma
modificação ou o que, atualmente, chamaríamos de evolução
(parinâma). Pois Brâma, sendo perfeito, nunca pode ser alterado ou
modificado, e o que se denomina mundo criado em toda a sua
variedade é e permanece para o vedantino como resultado de uma
virada ou perversão (vivarta) primordial e universal, causada pela
Avidya ou Nesciência. Assim, o Criador, assim como a própria
criação, possui apenas uma realidade relativa ou, como devemos
dizer, ambos são fenomênicos, assim como toda alma individual,
como tal, não pode reivindicar uma realidade absoluta, mas continua
a ser fenomênica para si mesma até descobrir a realidade absoluta
em Brâma, que está escondido em cada alma. Assim como a alma
individual foi feita individual por meio das Upâdhis, as restrições
(i.e., o corpo, os sentidos e a mente), o Criador também é o que Ele
é por meio das mesmas Upâdhis, só que Upâdhis de caráter muito
mais puro (visuddha). Este Criador ou Deus pessoal, devemos
lembrar, é tão real quanto o nosso próprio eu pessoal — e o que
pode ser mais real na linguagem comum do mundo? O que parece
irracional é que aqueles que falam em nome do que chamam de
bom senso primeiro neguem toda a possibilidade de haver qualquer
realidade além do que vemos e tocamos, para depois reclamar se
essa realidade superior (em que eles próprios não acreditam) for
negada aos objetos de seus sentidos e a todo o conhecimento
derivado deles.

O Vedanta na vida prática

Para todos os propósitos práticos, o vedantino assumiria


que todo o mundo fenomênico, tanto em seu caráter objetivo quanto
subjetivo, deveria ser aceito como real. Ele é tão real quanto
qualquer coisa pode ser para a mente comum. Não é um mero
vazio, como sustentam os budistas. E, portanto, a filosofia Vedanta
oferece a todo homem uma vasta esfera de utilidade real e o coloca
sob uma lei tão estrita e vinculante quanto qualquer coisa pode ser
nesta vida transitória. Oferece uma divindade para adorar tão
onipotente e majestosa como as divindades de qualquer outra
religião. Tem espaço para praticamente todas as religiões. Mais do
que isso, abraça a todas elas. Mesmo quando a luz mais alta
aparece, essa luz superior não destrói a realidade do mundo
anterior, mas lhe transmite, mesmo em seu caráter transitório e
evanescente, uma realidade mais completa e um significado mais
profundo. Kant também sabia que nosso mundo é e só pode
fenomênico e que a Ding an sich[65] (em certo sentido, Brâma)
subjaz além de nosso conhecimento, isto é, separado de nós pela
Nesciência, ou Avidya; e ele estabelece sua filosofia prática e moral
para o mundo fenomênico como se nenhum outro mundo numênico
existisse. No entanto, ele mantém a ideia de uma lei moral para o
mundo fenomênico em que vivemos, além de usar a ideia de lei
moral como a única prova certa da existência de Deus. O vedantino
tem uma vantagem da qual ele não deixa de fazer uso. Como a lei
moral é baseada nos Vedas (Karmakânda), ele a defende como
verdade revelada para aqueles que ainda estão sob a lei e garante a
liberdade a aqueles que não estão mais nesse mundo.

A Ética do Vedanta

Frequentemente se diz que uma religião filosófica como o


Vedanta seria deficiente, porque não poderia fornecer uma base
sólida para a moralidade. É bem verdade que alguns filósofos
afirmam que a ética não tem nada a ver com a religião e que deve
ter seu próprio fundamento, independente de toda religião, sendo
obrigatória para todo ser humano, qualquer que seja sua religião.
Mas esta questão, que atualmente está sendo agitada nos principais
periódicos filosóficos da Alemanha, França e América, não precisa
nos deter, pois espero ser capaz de mostrar que a filosofia Vedanta,
longe de apenas fornecer uma explicação metafísica do mundo, visa
a estabelecer sua ética sobre os mais sólidos fundamentos
filosóficos e religiosos.
Já apontei anteriormente que uma disciplina moral bastante
rígida é exigida de todos antes mesmo de se permitir o início do
estudo do Vedanta e que todas as autoridades ensinam que
ninguém que não tenha antes subjugado as paixões e ambições do
coração humano poderia alcançar a disposição espiritual
necessária. Mas ainda há muito mais para o fim de transmitir um
propósito moral permanente a esta vida fugaz. Vocês podem se
lembrar de que os vedantinos não consideram que o mundo foi
criado em um momento determinado e uma única vez, mas que eles
consideram o mundo eterno, apenas retomado ciclicamente em
Bramá, para depois se expandir de novo a partir de Bramá. O que
devemos chamar de poder ativo neste processo é o Bramá
qualificado, o Senhor (Ísvara) ou, como podemos dizer, o Criador do
mundo tal como existe para nós. Mas, se é assim, e se esse Criador
deve ser aceito como perfeito, como justo e reto, devemos perguntar
ao vedantino como podemos atribuir a Ele os erros que abundam no
mundo e os sofrimentos aparentemente imerecidos de seus
habitantes? Por que uma criança nasce cega ou é trazida a uma
sociedade cuja natureza moral deve conduzir à ruína? Por que os
maus são tantas vezes triunfantes, e os bons são esmagados? Por
que há tanto sofrimento no parto e na aproximação da morte? Por
que os inocentes são punidos, enquanto os culpados escapam?
Várias respostas foram dadas a essas questões por vários filósofos
e mestres religiosos. Podemos concordar com eles, se
compartilhamos certas crenças religiosas, mas nenhum sistema de
ética pura conseguiu satisfazer aqueles que fazem essas perguntas
na agonia de suas aflições imerecidas. A resposta dos filósofos
vedantinos é bem conhecida e tornou-se a nota principal não
apenas da moral bramânica, mas também da budista, na maior
parte do mundo. Deve haver uma causa, dizem eles, para explicar o
efeito que vemos tão claramente, e essa causa não pode ser
encontrada no mero capricho ou injustiça do Criador.

A doutrina do karma

Portanto, se isso é um resultado que nos afeta, só pode ser


o resultado de atos feitos em uma vida anterior. Vemos que a
existência anterior (ou mesmo a existência eterna) das almas
individuais é dada como certa, como parece ser o caso mesmo em
certas passagens do Novo Testamento (São João ix). Mas,
independentemente do que pensemos sobre as premissas em que
essa teoria se baseia, a influência desta sobre o caráter humano
sempre é enorme. Se um homem sente que aquilo que ele sofre
nesta vida, com ou sem culpa, só pode ser o resultado de alguns de
seus próprios atos anteriores, ele suportará seus sofrimentos com
mais resignação, como um devedor que está pagando uma velha
dívida. E se, além disso, ele sabe que ao sofrer nessa vida ele não
apenas pode pagar suas dívidas antigas, mas também acumular
capital moral para o futuro, ele tem um motivo para a prática do
bem, que não é mais egoísta do que deveria ser. A crença de que
nenhum ato, seja bom ou ruim, será perdido é apenas aplicação ao
mundo moral da nossa mesma crença na preservação da força no
mundo físico. Nada pode ser perdido. Mas, enquanto os budistas
aceitaram esta doutrina ética e metafísica em seu sentido
puramente mecânico, como a crença em um poder que age sem
qualquer supervisão divina, os vedantinos, que sustentam que as
sementes do mundo ficam dormentes em Bramá durante o intervalo
entre uma e outra era (kalpa), entre uma criação e a próxima,
ensinam que os efeitos que o passado produzirá dependem, em
último caso, do criador e governante do mundo, o mais ou menos
pessoal Ísvara ou Senhor. Falando em metáforas, como sempre
fazem, eles dizem que, embora as sementes de boas e más ações
sejam de nossa própria semeadura, seu crescimento no próximo
mundo depende do Senhor, assim como o crescimento de sementes
naturais depende da chuva e sol do céu. Por mais céticos que
possamos ser quanto ao poder de qualquer ensino ético e sua
influência na conduta prática de homens e mulheres, não há dúvida
de que esta doutrina do Karma (karman significa simplesmente feito
ou ação) encontrou ampla aceitação e ajudou a atenuar os
sofrimentos de milhões e encorajá-los não só na sua resistência aos
males atuais, mas igualmente nos seus esforços para melhorar a
sua condição futura.

A pré-existência da alma
Há um ponto muitas vezes deixado no escuro, que é como é
que nós, que não temos nenhuma lembrança do que fizemos em
uma vida anterior, que não sabemos nada dessa vida prévia além
de sua mera existência, deveríamos, apesar disso, sofrer por causa
de nossos atos e falhas. Mas por que deveríamos nos lembrar de
nossa vida anterior, se não conseguimos lembrar sequer dos
primeiros dois, três ou quatro anos de nossa vida atual? A crença
expressa por Wordsworth de que

‘The soul that rises with us, our life’s star,


Has had elsewhere its setting
And cometh from afar,’

[A vida que se ergue conosco, a estrela de nossa vida,


Foi estabelecida em outro lugar
E veio de longe]

talvez seja uma crença geral em nosso tempo; mas a crença em


que isto se baseia, que nossa estrela nessa vida é o que fizemos
em uma vida anterior, provavelmente ainda soaria estranha a muitos
ouvidos. O que parece é que alguns mestres vedantinos
pressentiram que o Karma ou os atos pelos quais sofremos ou
somos recompensados nessa vida não necessariamente foram
executados exclusivamente por nós, mas que o Karma pode ser de
um caráter mais coletivo; que, assim como desfrutamos de muitos
benefícios vindos do bom trabalho dos outros, também podemos ter
que suportar as consequências de más ações feitas por outros. Isso
levaria à concepção da raça humana como um corpo ou uma família
em que o todo sofre toda vez que um membro individual sofre, pois
somos membros uns dos outros; isso explicaria o funcionamento da
hereditariedade ou a perpetuação dos hábitos adquiridos; também,
nos faria entender o significado de a iniquidade dos pais visitar os
filhos até a terceira e quarta geração.
Entre os vedantinos, esse sentimento de interesse comum,
de unicidade ou solidariedade da raça humana, era bastante natural.
Toda a sua filosofia foi construída com base na convicção de que
todo ser humano tem seu verdadeiro ser em Brâma, e esse
sentimento, embora essencialmente metafísico, também aflorava
ocasionalmente como força moral. Nós dizemos: “Devemos amar
nossos vizinhos como a nós mesmo”. O vedantino diz: “Devemos
amar a nossos vizinhos como ao nosso eu”[66], isto é, devemos amá-
los não pelo que lhes é meramente fenomênico, por suas
qualidades ou beleza ou força ou bondade, mas por sua alma, pelo
Eu divino em todos eles.
Assim, nos Upanishads, um velho sábio que deixa suas
duas esposas para se retirar na floresta, diz a sua amada Maitrêyê
(Brih, Ar. II, 4): “Você, que é verdadeiramente querida para mim, fala
palavras carinhosas. Venha, sente-se, vou lhe explicar; marque bem
o que eu digo.” E ele disse: “Em verdade, um marido não é digno de
amor por si mesmo, para que você deva amá-lo; mas, se você
possa amar o Eu, então, o marido poderá ser amado. Em verdade,
uma esposa não é digna de amor por si mesma, para que você a
ame; mas, se você puder amar o Eu, então, a esposa poderá ser
amada”.’
O mesmo se diz sobre filhos e amigos, sobre os deuses e
sobre todas as criaturas; todos devem ser amados, não para si
mesmos, como eles aparecem, mas pelo Eu que está neles, pelo Eu
eterno neles, por aquele Eu universal que todos nós
compartilhamos, em que todos vivemos e nos movemos e somos.[67]
Como muitas verdades na religião oriental, também essa verdade (a
de que, ao amar ao nosso próximo, amamos de fato a Deus, e que,
ao amar nosso próximo, amamos a nós mesmos) às vezes foi
levada ao extremo até se tornar uma caricatura. No entanto, isso
revela uma enorme quantidade de trabalho intelectual para justificar
a noção de que devemos amar a nosso próximo, pois, amando-o,
amamos a Deus e, ao amar a Deus, nos amamos. A verdade
profunda que se esconde nisso certamente não foi elaborada por
nenhuma outra nação, até onde vai o meu conhecimento. Isso tudo
mostra que a filosofia Vedanta, por mais obscura que seja sua
metafísica, não negligenciou a esfera importante da ética, mas, pelo
contrário, encontramos a ética no seu começo, no seu meio e no
seu final, isto sem falar do fato de que mentes tão absorvidas pelas
coisas divinas como os filósofos vedantinos não são tão
susceptíveis de serem vítimas das tentações comuns do mundo, da
carne e de outros poderes.

Recapitulação

Desejo que vocês levem consigo uma ideia clara da filosofia


Vedanta, se não em todos os seus detalhes — o que seria
impossível —, ao menos em seu propósito geral. É um hábito muito
ruim dizer: ‘Oh, filosofia é algo profundo demais para mim’, ou
desprezar a filosofia oriental alegando que é esotérica ou mística.
Lembrem-se de que toda essa filosofia Vedanta nunca foi esotérica,
mas que estava aberta a todos, e foi elaborada por homens que, em
cultura e conhecimento geral, ficaram bem abaixo de qualquer um
de nós aqui presentes. Não devemos seguir seus passos? A
sabedoria alcançada pelos habitantes maltrapilhos da Índia dois ou
três mil anos atrás seria muito elevada ou muito profunda para nós?
E quanto à sua filosofia ser chamada de mística, realmente me
parece que aqueles que gostam tanto de usar esse termo mal
sabem nem como soletrá-lo. Eles parecem imaginar que a filosofia
mística deve estar cheia de névoa, nuvens e fumaça. A verdadeira
filosofia mística, no entanto, é tão clara como um céu de verão, está
cheia de brilho e cheia de calor. Místico significava originalmente
apenas algo que exigia preparação e iniciação; os mistérios não
eram coisas obscuras envoltas em mais obscuridade, mas coisas
escuras que eram tornadas brilhantes, claras e inteligíveis.
Se um sistema de filosofia é um todo consistente e orgânico,
proveniente de uma pequena semente, sempre deve ser possível
estabelecer sua verdade central a partir da qual todos os seus
dogmas se seguem, descartando todos os enxertos e
ornamentações, para traçar a direção em que seus argumentos se
movem, de modo a descobrir o objetivo que eles devem alcançar.
A quintessência da filosofia vedanta foi muito bem formulada
por um filósofo nativo, em uma linha breve, e seria muito bom se o
mesmo também pudesse ser feito para outros sistemas de filosofia.
Nosso vedantino diz:

‘Em meio verso, eu vos direi o que foi dito em milhares


de volumes: — Brama é verdadeiro, o mundo é falso; a
alma do homem é Brama e nada mais’

ou, como diríamos nós: ‘Deus é verdadeiro, o mundo é fugaz; a


alma do homem é Deus e nada mais’. E então ele acrescenta:

‘Não há nada que valha a pena ganha, não há nada


que valha a pena desfrutar, não há nada que valha a
pena conhecer, apenas Braman; pois aquele que
conhece Braman é Braman.’

Isso também nós poderíamos traduzir nestas palavras bem mais


familiares:
‘Que adiantaria, pois, ao homem ganhar o mundo
inteiro e perder sua própria alma?’
[1]
N. do T.: Referência ao físico britânico John Tyndall (1820 a 1893).
[2]
N. do T.: Diocese anglicana no distrito da Colúmbia Britânica, no Canadá.
[3]
N. do T.: Povo indígena do norte do Alasca.
[4]
N. do T.: Hoje, também é possível dizer o inverso: essa quietude pode ser mais
facilmente encontrada em um monastério, na Inglaterra, no Brasil ou na Índia, do
que as ruas agitadas de qualquer grande cidade desses mesmos países.
[5]
N. do T.: William Jones (1746-1794) é um nome bastante conhecido nos
estudos linguísticos pela declaração, feita em 1786, perante a Sociedade Asiática
de Bengali (da qual era presidente e fundador), sobre a similaridade e
ancestralidade comum entre grego, latim, sânscrito, persa e outras línguas
antigas. Esta declaração faz com que Jones seja considerado um precursor dos
estudos histórico-comparativos que deram origem à Linguística como uma ciência
independente a partir do século XIX, embora a contribuição real de Jones para a
Linguística tenha sido muito menos por causa dessa declaração do que pelo
trabalho de abrir as portas para o acesso e o estudo de materiais das línguas e
das culturas indianas.
[6]
N. do T.: Sobre a suposta influência das ideias da filosofia grega sobre o
pensamento indiano, vide a seção Coincidências entre o Nâma-rûpa e o Logos
Grego, no terceiro capítulo do presente livro.
[7]
Cf. Manahsukharama Suryarama, Vikarasagara, p. 5.
[8]
N. do T.: Uma proposta de resolver disputas e reconciliar diferenças. O termo
grego está presente no original. A forma aportuguesada é irênico.
[9]
N. do T.: Outras grafias registradas em português são Upanixades,
Upanissades e Upanichades.
[10]
Em sânscrito, Brâma, como substantino neutro, é paroxítono; como masculino,
é oxítono, Bramá.
[11]
N. do T.: A variação entre a ortografia parama-atman e paramatma está no
texto original.
[12]
N. do T.: Em grego, psiqué e pneuma, respectivamente.
[13]
Cf. a seção Brama derivado da mesma raiz que verbum e word.
[14]
As mesmas idéias são bem resumidas em um dos Upanishads (Brih. Ar. Up,
III, 9), onde se diz que havia no começo mais de três mil e trezentos deuses, mas
que foram reduzidos a 33, a 6, a 3, 2, a 1 ½ e, por fim, para um, e este Um é o
sopro da vida, o Eu e seu nome é Isso.
[15]
Este Vyasa Badarayawa dificilmente pode ser, como Weber e outros
supuseram, o mesmo que o Vyasa Dvaipayana, o renomado autor do
Mahabharata. O caráter de suas obras é diferente, assim como seus nomes.
Geralmente se aponta que esse Badarayana, o autor dos Brama-sutras, teria
vivido por volta de 400 d.C., embora as evidências não sejam muito conclusivas.
[16]
No Sarva Darsana Sangraha (p. 80, trad. Cowell) se diz que Ramanuga, que
viveu no século XII, considerou muito prolixo o comentário anterior composto por
Bodhayana e, por isso, compôs o seu próprio. O próprio Ramanuga diz isso em
seu Sribhashya e nos informa que outros mestres antes dele fizeram o mesmo
(Ved.-sutras, traduzidas por Thibaut, vol. I, p. xxi). Se a obra Vrittikara, contra a
qual se destinam algumas das declarações de Shankara, é o mesmo Bodhayana,
sua data seria anterior a, pelo menos, o ano de 700 d.C.
[17]
N. do T.: Também chamado Vallabhacharya.
[18]
Em alguns casos, os diferentes expositores das vedanta-sutras fazem
violência real ao texto. Assim, em I, 1, 15, o texto das sutras é Vikâra-sabdân na iti
ken na prâkuryât. O ponto é mostrar que o sufixo maya em anandamaya não
transmite necessariamente a ideia de mudança ou grau, que não seria aplicável a
Brama, mas que transmite a idaia de abundância (piâkurya). Mas Vallabha explica
prâkuryât não como um ablativo, mas como um composto prâkurya-at, i. e. indo
em direação a ou atingindo a abundância, porque este mundo material em si é
Brama, que alcançou a condição de abundância. (Shaddarsana-kintanikâ III, p,
39.)
[19]
Assim, no comentário sobre as vedanta-sutras II, 1, ii, lemos: “Em temas a
serem conhecidos a partir das Escrituras, não devemos confiar apenas no mero
raciocínio, pela seguinte razão. Assim como os pensamentos dos homens são
completamente irrestritos, o raciocínio que desconsidere os textos sagrados e que
dependa apenas da opinião individual, não tem fundamentos adequados. Vemos
muitas vezes como os argumentos que alguns homens inteligentes se
trabalharam com afinco para produzir podem ser refutados como falaciosos por
outros homens mais engenhosos; e como os argumentos desses últimos, por sua
vez, podem ser refutados por outros homens. De modo que, devido à diversidade
das opiniões dos homens, é impossível aceitar o mero raciocínio como sendo um
fundamento seguro. Também não podemos superar esta dificuldade aceitando tão
bem fundamentado o raciocínio de uma pessoa de reconhecida eminência mental,
quer seja ela Kapila ou qualquer outra pessoa, pois observamos que mesmo os
homens de indubitável eminência mental, como Kapila, Kanada e outros
fundadores de escolas filosóficas, se contradizem inúmeras vezes.” É verdade
que essa linha de raciocínio pode ser questionada, pois, ao opor raciocínios
diferentes entre si, estamos implicitamente admitindo a autoridade da razão. Mas,
ao final, Shankara afirma que “a verdadeira natureza da origem do mundo, da
qual depende a emancipação final, não pode, por causa de sua absurdidade
excessiva, ser pensada sem a ajuda dos textos sagrados.” “Os Vedas”, ele
acrescenta, “que são eternos e a fonte do conhecimento, podem ter como seu
objeto coisas firmemente estabelecidas e, portanto, a perfeição desse
conhecimento que se baseia no Veda não pode ser negada por nenhum dos
lógicos do passado, presente ou futuro. Assim, estabelecemos a perfeição deste
conhecimento que repousa nos Upanishads.”
Confira também II, i, 2, 7: “Como diz o Purawa: Não aplique o raciocínio ao que é
inconcebível! A marca do inconcebível é estar acima de todas as causas
materiais.” Portanto, a cognição do que é suprassensível é baseada apenas nos
textos sagrados. “Mas” — diria um oponente — “mesmo os textos sagrados não
podem nos fazer entender o que é contraditório. Brama, se diz, que é sem partes,
sofre mudança, mas não todo o Brama. Se o Brama é sem partes, ou ele não
muda ou muda na sua totalidade. Se, por outro lado, se diz que parte dele muda e
parte permanece, há uma ruptura efetuada em sua natureza, e disso segue que
consiste de subpartes, etc.” Aqui, Shankara admite uma dificuldade real, mas ele
a explica, mostrando que a ruptura em Brama é apenas o resultado de Avidya
(ignorância). O mesmo raciocínio é aplicado em II, 1, 31 e em outros lugares.
[20]
Cf. Taitt. Up. II, 7, Sacred Books of the East, xv, p. 58.
[21]
Cf. Vedanta-sutras I, 4, 14-15.
[22]
Sama, Dama, Uparati (muitas vezes explicado como renúncia a todos os
deveres sacrificiais), Titikshd, Samadhi, Sraddhâ.
[23]
Deussen, The System of the Vedânta, p. 85.
[24]
Esta é deixada de fora em alguns textos.
[25]
Cf. Catalogues of Sanskrit Books in the British Museum, por Haas e Bendall,
s.v. Badarayana.
[26]
É muito tentador ler dhâtuprasâdât e traduzir como “do aquietar dos
elementos”, tomando elementos no sentido dos três Gunas (sattvam, ragas e
tamas); cf. Gâbâla Up. IV. Mas a mesma expressão dhâtuh prasâdât ocorre
novamente no Svetârvatara Upanishad III, 20 e no Mahânârây. Up. VIII, 3;
enquanto o composto dhâtuprasâda não ocorre nos Upanishads, também o
prasâda não usou jamais da equalização das gunas, mas usa constantemente do
favor ou da graça dos seres pessoais (Ísvara, etc.).
[27]
Traduzir esse trecho como “O espírito que guarda os que dormem” seria
introduzir uma ideia inteiramente moderna. Além disso, atyeti também não
significa “escapar”.
[28]
Provavelmente , a mais antiga referência à precessão dos equinócios.
[29]
Este trecho pode estar se referindo a estrelas cadentes ou a cometas.
[30]
Este trecho pode se referir à tradição do dilúvio universal.
[31]
Esta exata ideia é expressa também por Buda no primeiro verso do
Dhammapada (Sacred Books of the East, x, p.3): “Tudo o que somos é o
resultado do que pensamos: é fundado em nossos pensamentos, é constituído
por nossos pensamentos.”
[32]
Brih. Ar. Upanishad IV, 6; S. B. E. xv, p. 185.
[33]
Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, i, 6: “Si autem dixi, non est quod dicere
volui.” [N. do T.: “Mas, se o disse, não foi isso o que eu quis dizer.” Confira
também a tradução de Nair de Assis Oliveira, publicada em 2002 pela Editora
Paulus, p. 47.]
[34]
N. do T.: Ou “shudras”.
[35]
O texto é, certamente, corrompido, mas nenhuma das emendas até então
propostas é sequer satisfatória. É fácil dizer como o texto deveria ser. Difícil é
explicar como o texto, se fosse como imaginamos ter sido, poderia ter se tornado
o que é agora. Hic Rhodes, hic salta!
[36]
Tem sido dito, com verdade, que a tradição gnóstica era secreta na medida em
que, de fato, todos os cristãos não a compreendiam, mas não eram secretos na
medida em que todos deveriam entendê-la. Consequentemente Clemente negou
que a Igreja possuísse διδαχάς άλλας απορρήτους enquanto ainda fala de το της
γνώμης απόρρητον (cf. Charles Bigg, The Christian Platonists of Alexandria, 1886,
p. 57).
[37]
N. do T.: Cf. nota 9. Na maior parte do texto, Müller utiliza a forma “Brahman”
sem fazer distinção, mas, em algumas seções, como nesta e na próxima, ele
opõe as formas “Bráhman” e “Brahmán” para distinguir as duas formas de se
referir a Deus. Assim, os usos de “Brama”, “Brâma” e “Bramá” neste texto
replicam os usos do próprio autor.
[38]
“Quae pugna verborum silentio cavenda magis quam voce pacanda est” (A
doutrina cristã, i, 6). [N. do T.: “Tal conteúdo de expressões, procuremos evitá0lo
com o silêncio, mais do que nos servindo de palavras de consenso”, na tradução
de Nair de Assis Oliveira, publicada em 2002 pela Editora Paulus, p. 47.]
[39]
Cf. o Taittiriya Upanishad, III, 1; o professor Thibaut (III, 2, 1) traduz como
“Learn Brahman, 0 friend”, o que dificilmente seria uma opção adequada.
[40]
Epinosa, Ética, I, Proposição XII. “Nullum substantiae attributum potest vere
concipi, ex quo sequitur substantiam non posse dividi.” [N. do T.: “Não se pode
conceber verdadeiramente nenhum atributo do qual se siga que a substância
possa se dividir”, na tradução portuguesa de Roberto Brandão.]
[41]
N. do T.: Um termo técnico da filosofia escolástica, que, como aponta o autor,
é uma espécie de sentido que coordena e relaciona as percepções dos diferentes
sentidos (audição, visão, etc), os quais, sem este, seriam incomunicáveis entre si.
[42]
Às vezes, quatro vrittis ou atividades do órgão interno são mencionadas; eles
são manah (memória ou mente), buddhi (percepção), ahamkara (egoidade) e kitta
(pensamento).
[43]
Cf. Espinosa, Ética, II, vii, 3: “Modi cogitandi, ut amor cupiditas...” etc. [N. do T.:
O trecho completo, na tradução de portuguesa de Roberto Brandão é “Modos do
pensamento como amor, desejo, ou tudo mais que seja designado como afeto da
alma, não podem existir em um indivíduo sem a ideia da coisa amada, desejada,
etc. Mas esta ideia pode existir sem nenhum outro modo do pensamento.”]
[44]
Também consideração (samsaya e vikalpa) e decisão (niskaya e adhyasaya).
[45]
N. do T.: Ou antahkarana.
[46]
Esta visão da Nesciência ou Avidya é claramente apresentada no Vedanta
Siddhanta Muktavali, como traduzido pelo Professor Venis (p. 14-15): “Da
realidade da Nesciência (avidya) não há provas, reveladas ou humanas... A
Nesciência é provada pelos Vedas ou pela percepção etc. ou é assumida como
responsável pelo mundo da experiência pois isso não poderia ser explicado de
outra forma? Não pelos Vedas, nem pela percepção, inferência ou ensinamento
humano. Pois, se por qualquer uma dessas Nesciências fosse claramente
provada, a controvérsia chegaria ao fim. E já que não há evidência para a
Nesciência, deve ser tomado como certo que a Nesciência seja responsável pela
produção de outro modo inexplicável do mundo irreal... Pois não há outro caminho
além desta suposição de ignorância.” (cf. Coronel Jacob, Vedanta-sara, p. 173.)
[47]
O professor Thibaut (Introdução, p. 100) e o coronel Jacob parecem sustentar
que essa identidade entre o indivíduo e o Eu altíssimo não deve ser atribuída a
Badarayawa (Jacob, Vedanta-sutra, p. iv). Esta é, no entanto, a doutrina dos
Upanishads.
[48]
N. do T.: Aqui, Muller faz um trocadilho entre a thing e a think.
[49]
N. do T.: “É assim”, “essa é a realidade”.
[50]
N. do T.: Também conhecida como Varanasi ou Varanássi.
[51]
N. do T.: De autoria de Sadananda Yogendra Saraswati, Vedanta-sara
(“essência do vedanta”) é uma obra do século XV.
[52]
N. do T.: coronel George Adolphus Jacob (1807-1896).
[53]
N. do T.: Thomas Henri Colebrooke (1765-1837). Os Essays on Indian
Philosophy foram publicados postumamente, em 1858.
[54]
N. do T.: Provavelmente, uma referência a The Philosophy of the Upanishads
and Ancient Indian Metaphysics, de Archibald Edward Gough, publicado em 1891.
[55]
N. do T.: Note que Muller volta a fazer uso da distinção “Brâma”, “Bramá” e
“Brama”.
[56]
Per Deum intelligo ens absolute infinitum, hoc est, substantiam constantem
infinitis attributis, quorum unumquodque aeternam essentram exprimit. [N. do T.:
“Por Deus entendo o ser absolutamente infinito, isto é, uma substância composta
de infinitos atributos, cada um deles exprimindo uma essência eterna e infinita.”,
definição VI, Parte I, de Ética de Espinosa, na tradução de Roberto Brandão.]
[57]
A mesma ideia é expressa por um filósofo moderno em linguagem um tanto
mais envolvente da seguinte forma: “A realidade, sob as formas de nossa
consciência, é e só pode ser o efeito condicionado da realidade absoluta; mas
este efeito condicionado está em relação indissolúvel com sua causa
incondicionada, sendo igualmente persistente com ele, enquanto as condições
persistirem, é a consciência que fornece essas condições, igualmente reais.” (cf.
Theosophy, p. 322.). Veja também Deussen, System des Vedânta, p. 59, nota.
[N. do T.: A citação é de Herbert Spencer, no capítulo 3 da Parte II de First
Principles. Já Theosophy é um livro do próprio Muller (Theosophy or Psicological
Religion) em que esse trecho de Spencer também é citado.]
[58]
N. do T.: Upanishad Vakya Kosha - A Concordance of the Principal
Upanishads and Bhagavad Gita, do coronel George Adolphus Jacob, publicado
em 1891.
[59]
Brth. Ar. Ill, 8, 8.
[60]
Deussen, System..., p. 146; Sutras I, i, 5.
[61]
Suma Teológica I, 2, qu. 109, art. i, ad 2.
[62]
N. do T.: Outras formas em português são Sā ṃ khya (como usado na
tradução de Filosofias da Índia, de Heirich Zimmer ), Sankhya e Sā ṅ khya.
[63]
Os budistas as chamam de sangna-darmas (cf. Sacred Books of the East, vol.
xlix, p. 117).
[64]
“Nos (scil. Papa) sacro et universali concilio approbante credimus confitemur
cum Petro (Lombardo) quod uma quaedam summa res est, incomprehensibilis
quidem et ineffabilis, quae veraciter est pater et filius et spiritus, tres simul
personae, ac singulatim quaelibet earundem. Et ideo in deo trinitas est
solummodo, non quaternitas, quia quaelibet trium personarum est illa res, videlicet
substantia, essentia, sive natura divina, quae sola est universorum principium,
praeter quod aliud inveniri non potest.” (Cf. Harnack, Dogmengeschichte, iv, p.
447, nota; Hagenbach, Dogmengeschichte, § 170, notas).
[65]
N. do T.: “A coisa em si” na filosofia de Kant, a realidade não mediada pelas
nossas percepções.
[66]
N. do T.: Em inglês, Muller opõe “ourselves” a “our self”.
[67]
N. do T.: Uma referência ao discurso do Apóstolo Paulo aos gregos em
Corinto, registrado em Atos 17: 28.

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