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Religiões do Mundo I

Religiões do Mundo I
Introdução à Religião Comparada

LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO

Aula 04
Introdução ao Hinduísmo

O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.

Na última aula nós demos uma introdução à antropovisão indiana, que


serve de raiz tanto para a religião hindu quanto para a religião budista, e
descrevemos as camadas cada vez mais internas de um ser vivo. Começamos
pela camada mais externa – aquela que é imediatamente ligada ao corpo, e que
é comum a todos os seres vivos –, que são as potências nutritivas, que eram
chamadas pelos escolásticos de potências vegetativas; são funções vitais que
podem ser exercidas independentemente da consciência – até os vegetais
podem realizar. Em seguida, vimos as potências sensitivas, o conjunto dos
sentidos, e depois as potências apetitivas. Em suma: primeiro temos o
Annamaya Kocha, ou Annamaya, que são as potências nutritivas, as potências
vegetativas; em seguida, o Pranamaya, que é o conjunto das potências
sensitivas; depois, o Manomaya, que é o conjunto das potências apetitivas;
posteriormente, o Vjnanamaya, que é o conjunto das potências intelectivas.

Embora tenhamos descrito esse quadro como uma antropovisão hindu,


ela não é exclusivamente hindu – os próprios escolásticos tinham praticamente

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a mesma visão acerca do que é um ser humano e do que são os seres vivos em
geral. A diferença fundamental é que essa antropovisão, no território hindu, na
Índia, é que faz surgir a questão religiosa em si mesma.

A primeira pergunta dos hindus sobre religião é diferente da pergunta


semítica – da pergunta dos judeus, cristãos e muçulmanos. A pergunta dos
judeus, cristãos e muçulmanos é: “o que é Deus? Como é Deus? Como Deus se
apresenta para mim e como eu me apresento diante Dele?”. A primeira pergunta
dos hindus não é acerca de Deus, mas sim acerca da raiz do Anandamaya.

Quando os hindus percebem que todos os seres são como que feitos de
felicidade e bondade – porque todos eles estão ordenados a um fim que lhe é
próprio –, eles se perguntam: “de onde vem isso? Qual é a raiz? Por que os seres
são bons?”.

Na cosmovisão e na antropovisão hindu os seres são fundamentalmente


bondade, e o mal é um acidente, que ocorre quando tentamos orientar um ser
para um fim que lhe é estranho. Por exemplo, a maçã podre existe para colocar,
na terra, os nutrientes para outros vegetais, e não para ser um alimento para
nós. Nós comemos a maçã podre e falamos: “a maçã podre é ruim, ela é um
mal”. Porém, ela só é um mal quando você tenta realizar com ela um fim que
não lhe é próprio. Em si mesma, a maçã podre é um bem; para o seu fim
próprio, ela é perfeitamente estruturada.

Os hindus chamaram essa capacidade das coisas de se apresentarem de


modo ilusório, ou enganador, de Maya. Eles dizem que, para que descubramos a
verdadeira natureza das coisas, a primeira coisa que temos de saber é que ela
está atrás do véu de Maya. Isso significa que a verdadeira natureza de um ente
está encoberta pelo véu das funções naturais deste ente.

Ao investigar, ao levantar esta questão: “o que é essa natureza última


das coisas, a natureza suprema dos entes, que está atrás do véu de Maya?”, os
hindus chegaram a uma conclusão: esta natureza é tão radicalmente diferente
dos entes particulares, que é impossível descrevê-la.

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Os hindus perceberam – como todo mundo pode perceber – que ser


uma coisa exclui ser outra. Por exemplo: ser um copo significa não ser um
cavalo; ser um cavalo significa não ser uma pedra; ser uma pedra significa não
ser um ser humano, e assim por diante. Ou seja, as naturezas particulares se
excluem mutuamente. Porém, esse ser último, por trás de todas as coisas, ser ele
não exclui ser alguma outra coisa, porque ser alguma outra coisa é
simplesmente um modo de ser aquele mesmo ser primeiro.

Aluna: não entendi.

Professor: façamos uma analogia: se temos aqui um pouco de ouro,


podemos fazer uma jóia, ou um prato, ou uma estatueta, ou qualquer objeto. Ser
estatueta significa não ser um prato, e ser um prato significa não ser uma jóia,
mas tanto a estatueta, quanto a jóia, quanto o prato são modificações
secundárias do ouro. Isso aqui só pode ser um prato, ou uma jóia, ou uma
estatueta porque o ouro admite todas essas possibilidades nele mesmo. Então
ser ouro não exclui ser também uma estatueta. Porém, ser uma estatueta não é o
mesmo que ser ouro; ser uma estatueta, por si, não inclui ser ouro, porque a
estatueta pode ser de pedra, pode ser de barro, pode ser de madeira, e assim por
diante. Deste modo, do ponto de vista do ser supremo, há uma continuidade
entre o ser dele e todos os outros seres particulares. Segundo a teologia hindu,
quando Deus olha para você, Ele está olhando para Ele mesmo de um
determinado jeito – é como uma figura que se acrescentou ao ouro que é ele
mesmo. Mas quando você olha pra você, o que você vê não é o ouro de que você
é feito, mas justamente as características distintivas – isto é, a sua figura própria
–, porque, se você visse o ouro, você não veria mais [apenas] você, você veria
[tanto] você, [quanto] os outros, ou seja, você veria você e todos os outros seres.

Do ponto de vista hindu, a existência que nós cristãos chamamos de


criatural, a forma de existência de criatura é um ponto de vista, é simplesmente
uma maneira de encarar a realidade. Deus olha para Si mesmo e vê infinitas
possibilidades de ser; aí Ele pensa: “e se Eu recortar algumas possibilidades e
torná-las impossibilidades?”. Por exemplo, Deus olha para Si mesmo e vê: “Eu

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estou em toda parte. E se Eu não puder estar em toda parte?”, então Ele cria a
noção de corpo localizado. Ele pensa: “Eu sou vida infinita em todas as suas
modalidades. Mas e se Eu não fosse? E se Eu não pudesse perceber as coisas
como Eu as percebo (ou seja, totalmente)? E se Eu pudesse percebê-las apenas
parcialmente?”. Com isso Ele concebeu o modo de percepção das criaturas.

Deus, ao criar o universo, é como um artífice, só que Ele mesmo é o


material do qual Ele faz a obra de arte. Digamos que Ele se vê como uma
quantidade infinita de material. Para que Ele faça alguma coisa, Ele tem que
recortar esse material; Ele tira algo do material. Quando um artista pega um
bloco de mármore, para fazer uma estátua, o que ele precisa fazer? Ele precisa
tirar alguns pedaços de mármore. Os escolásticos, especificamente São
Boaventura, tinham um termo pra isso – eles também descreviam a criação do
mesmo jeito –, eles diziam: “o processo de criação divina é semelhante ao
processo do escultor; é um processo chamado ablatio, que significa retirar
pedaços, retirar o excessivo”.

A criação divina é simplesmente um processo que tem um princípio:


Deus pensa: “o que Eu posso retirar de Mim mesmo, de modo que o que sobre
ainda seja uma imagem integral do que Eu sou? O que Eu posso retirar de Mim
mesmo, de modo que o que sobre ainda seja uma indicação suficiente do Meu
próprio ser?”. Por exemplo, uma nota que foi tirada. Em todos os seres, para que
a criatura exista como criatura, e não como pensamento divino, Ele tem que
tirar a nota infinitude; toda e qualquer criatura tem que ser finita. Mas, se Ele
tira essa nota, como é que perceberemos, nessa obra, que ela representa o
próprio autor infinito? Então Ele retira a infinitude, mas deixa um sinal dela;
Ele deixa, na própria coisa finita, algo que indique o que é infinitude. Um
exemplo é a inesgotabilidade de aspectos das criaturas: por mais simples que
seja um ente, como um grão de areia, ou um átomo, esse grão de areia ou esse
átomo tem uma quantidade de aspectos indefinida, que a sua mente não tem
como abarcar. Por mais simples que seja um grão de areia, é impossível que um
ser humano conheça toda a história das modificações pelas quais aquele grão de

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areia passou. Por mais que você conheça sobre um ente [, sempre sobra algo que
é desconhecido] – aliás, quanto mais conhecemos um ente, mais sabemos que
existe um oceano de coisas que não conhecemos acerca dele. Esse é um sinal da
infinitude.

Outro traço de Deus que também não pode estar na criatura: Deus é
absoluto, Deus de nada depende. Já as criaturas todas dependem de alguma
outra coisa: são interdependentes – dependem umas das outras –, e todas
dependem de Deus, que é o princípio delas. Numa certa medida, muito do que
há em uma criatura pode ser reduzido ao efeito de outras criaturas sobre ela.
Um exemplo é o dos nossos gostos alimentares, que são, em grande parte,
derivados das reações que vimos outras pessoas terem diante do alimento, e dos
alimentos que nos foram oferecidos desde o começo da nossa vida. Se tivermos
contato com algum povo completamente diferente, veremos que as pessoas
daquele povo têm gostos alimentares completamente diferentes dos nossos.

Outra característica nossa que é dependente de algo é a aparência física.


A nossa aparência física depende, em parte, da carga genética dos nossos pais,
em parte das influências climáticas, alimentares etc. – de tudo que aconteceu
conosco. Em grande parte, tudo que nos define depende de um conjunto de
outras criaturas; existem inúmeros aspectos do nosso ser que podem ser
reduzidos a meros efeitos da ação de outros seres. Porém, não há nada em Deus
que possa ser reduzido a um efeito de outro ser. Então essa é outra diferença
radical entre o Criador e a criatura. No entanto, quando Deus faz a criatura,
também deixa nela um sinal do Absoluto, e esse sinal é a incomparabilidade:
não há duas criaturas idênticas; existe uma unicidade, um caráter único em todo
e qualquer ente, algo que acontece em um ente e não se repete em nenhum
outro. A própria forma total que damos ao conjunto de acidentes que recebemos
do mundo é única. Por exemplo, dois irmãos, numa mesma casa, recebem a
mesma educação – ou pelo menos uma educação muito semelhante –, e, no
entanto, podem se tornar pessoas completamente diferentes.

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Uma terceira nota: Deus é puro espírito. O que significa dizer que algo é
puro espírito? Significa que não há nada que possa resistir à presença daquele
ser. A palavra “espírito” significa “vento”, originariamente. Por quê? Porque o ar
entra em todo e qualquer lugar; então “espírito” significa algo que não pode ser
detido por outro ser. Nenhum outro ser é assim, só Deus; todo e qualquer outro
ser encontra resistência diante de si.

Além disso, Deus deixa um sinal nas criaturas, um sinal da Sua


espiritualidade. Esse sinal consiste no seguinte: embora não possamos conhecer
exaustivamente todos os aspectos de nenhuma criatura sequer, podemos
compreendê-la, podemos, num ato único, abarcar todas as suas possibilidades
sinteticamente – ou seja, as criaturas são inteligíveis. Por exemplo, por mais que
conheçamos uma pessoa, não podemos saber tudo que ela pensa, sente, deseja,
sofre e faz; mas podemos sinteticamente compreender a personalidade daquela
pessoa.

Os hindus levantam todos esses argumentos somente para explicar esse


ponto: de um ponto de vista mais profundo, não há descontinuidade entre Deus
e a criatura; essa descontinuidade existe apenas do ponto de vista da própria
criatura. Deus, Ele mesmo, pode ser Ele, eu, você, essa mesa e tudo mais; mas
você, essa mesa e eu não podemos ser isso e Deus ao mesmo tempo. É essa
continuidade fundamental – o fato de Deus poder ser as duas coisas ao mesmo
tempo, e ser de fato essas coisas ao mesmo tempo – que é a raiz da
espiritualidade hindu. Por quê? Porque eles dizem o seguinte: “embora você
tenha aqui dois pontos de vista, ou seja, o ponto de vista divino, segundo o qual
Ele e você são a mesma coisa, e o teu ponto de vista, segundo o qual você e Deus
são duas coisas muito diferentes, Deus faz o que Ele quer e você não; você tenta
fazer o que você quer e não acontece”. Essa é uma experiência evidente, a
experiência da diferença entre nós e Deus é imediata – quem não tem esta
experiência está no hospício, e com muita justiça. Mas os hindus dizem o
seguinte: “do Absoluto você pode afirmar absolutamente, mas do relativo não”.
Isto significa que o ponto de vista divino acerca do que você é, é absoluto, é a

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verdade absoluta acerca do que você é, enquanto que o seu ponto de vista acerca
do seu ser é meramente relativo, é dependente de alguns fatores.

Aluno: por conta da ausência daqueles pedaços que foram tirados.

Professor: exatamente. Ser criatura é ser relativamente, e ver as coisas


como criatura também é ver as coisas relativamente. E dizer relativo é dizer
“dependente de alguma outra coisa”. Isso significa que o modo pelo qual você
enxerga o seu próprio ser depende de um certo número de fatores; se você
eliminar esses fatores, ou compensá-los, você será, ao menos temporariamente,
capaz de se ver como Deus te vê – e aí o que você verá não é você como criatura,
mas o próprio Deus.

Aluno: mas os hindus percebem que essa tentativa é doentia, ou só


usam isso de uma forma abstrata?

Professor: não, veja bem, o que os hindus propõem não é que você passe
a pensar que você é Deus. A pergunta deles é: “existe algum método eficaz pelo
qual você possa perceber a sua realidade como Deus a percebe, ainda que
temporariamente?”.

Aluno: pelo conhecimento das lembranças...

Professor: já chegaremos lá, já veremos quais são os métodos.

Por que os hindus fazem essa pergunta? Você se percebe como


Guilherme, eu me percebo como Luiz Gonzaga, por quê? Porque nós não
percebemos a realidade como um todo. Essa é uma intuição brilhante, e quando
estudarmos o Cristianismo, veremos como o Cristianismo expressa essa
intuição. Isso significa que, do ponto de vista da totalidade, o nosso modo de
perceber é realmente um modo de não perceber. Façamos uma analogia com a
visão. Com a visão eu vejo alguma coisa, alguma coisa dos objetos. Mas a
própria estrutura da nossa visão exige que, para que eu veja alguma coisa dos
objetos, eu tenho que não ver outras. Para ver o que está acontecendo nesta sala,

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agora, eu preciso não ver o que está acontecendo a 25km daqui; eu preciso não
ver o que está acontecendo atrás de mim; eu preciso não ver essa sala como
vocês a estão vendo. Objetivamente eu estou vendo alguma coisa, mas para ver
essa coisa eu preciso não ver inúmeras outras. O que isso significa? Do ponto de
vista hindu, existir como criatura é não saber, ou não perceber alguma coisa da
realidade. Algumas criaturas, nesse sentido, são mais criaturas do que outras.
Por exemplo, a pedra precisa não ver nada para ser pedra; então ela é mais
parecida com a idéia de criatura do que um cachorro.

Como os fatores que determinam o nosso modo, ou o modo criatural de


perceber a realidade são todos relativos, todo e qualquer fator relativo pode ser,
em princípio, suspenso. Suponha que eu vivo em um lugar que sofre inundações
regulares. As inundações são um modo de ser relativo, que depende de alguns
fatores igualmente relativos. Se eu descobrir quais são os fatores que causam a
inundação, sabendo que eles são relativos, talvez eu possa conceber um meio de
eliminá-los, ou de contorná-los, e assim eu evito a inundação. Isso é
completamente diferente de, no começo, falar: “não, não existe inundação,
porque tudo é Maya, tudo é ilusão”. O louco que está no hospício porque diz que
é Deus só está falando que é Deus. O ponto, aqui, não é o sujeito chegar e falar:
“é, do ponto de vista de Deus, tudo é Deus, logo eu sou Deus. Obedeçam-me,
adorem-me”.

Há uma velha história hindu, que é a seguinte: o noviço, que quando


ouviu esse ensinamento pela primeira vez, pensou: “veja bem, tudo é Deus,
porque ser criatura é só um ponto de vista”. Depois de umas duas semanas de
ensinamentos, o mestre falou: “vá até a cidade pra comprar pão para nós”. Ele
estava indo pra cidade, estava na estrada, quando veio um elefante correndo em
disparada. Mas aí ele pensou: “eu não vou sair da estrada, porque eu sou Deus, e
o elefante também é Deus, e Deus não vai machucar Deus”. Então ele ficou
parado, o elefante veio e não quis nem saber dele: jogou-o longe. Depois, ele,
todo machucado, voltou e falou para o mestre: “po, mestre, mas que história é
essa? Eu não era Deus, e o elefante Deus...como é que deu errado?”. O mestre

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respondeu: “pois é, mas você não viu o condutor do elefante gritando pra você
sair da estrada? Também era Deus te dando a ordem pra sair da estrada!”.
[risos]

Isso significa que quando se descreve uma doutrina espiritual, não se


está propondo esta doutrina como um modo de vida. Nenhuma doutrina
espiritual é, de início, um modo de vida; ela só te dará as indicações que podem
vir a servir como princípios de um modo de vida. Então quando o hindu fala: “a
existência criatural, a existência da criatura é um mero ponto de vista divino; na
verdade só existe Deus, Deus se vendo como Deus, Deus se vendo como Luiz
Gonzaga, Deus se vendo como mesa, e assim por diante”, não adianta você só
pensar isso aí e sair agindo como se fosse assim, porque Deus tem algum motivo
pra se ver desses diversos pontos de vista, e Ele não vai mudar as Suas
motivações só porque você agora acha que Ele deveria mudar. Ou seja, essa
doutrina não vai cancelar a realidade criatural. A doutrina tem que ser testada
espiritualmente; toda doutrina espiritual tem que ser testada. Os hindus dizem:
“quais os métodos para verificarmos se a realidade é realmente assim? Por que
meios nós podemos saber se a realidade é realmente assim?”.

Faz parte da profissão de fé hindu saber: “só existe Deus, o resto é tudo
ilusão, é tudo um ponto de vista do qual Deus se reveste”. Mas um dogma de fé
não é um mandamento moral. O hindu diz: “para que isso te sirva de alguma
coisa, você tem que tentar realizar essa doutrina, você tem que experimentá-la
diretamente. Se a existência criatural é um mero ponto de vista, esse ponto de
vista só pode existir na existência de uma ignorância dos outros pontos de
vista”. Para Deus se pensar como Luiz Gonzaga, Ele tem que pensar, fazer de
conta que Ele não é nada mais do que o Luiz Gonzaga; Ele tem que esquecer o
que Ele é, e lembrar só desses aspectos aqui. Isso significa que ser criatura é ser
um modo de ignorância. Por isso os hindus logicamente propõe: “se ser criatura
é um modo de ignorância, o contrário imediato da ignorância é conhecimento”.
Então o primeiro método que eles propõem para o sujeito verificar a realidade

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do absoluto é esse: se você compreender cuidadosamente essa doutrina, você


perceberá a realidade tal como ela é.

Com essa idéia de que o conhecimento é o contrário da ignorância, eles


propõem um tipo de caminho espiritual: “agora você fará, sistematicamente, um
esforço para provar que essa doutrina é falsa, segundo uma série de métodos.
Você tem que achar uma prova definitiva de que existe um abismo radical e
intransponível entre o Absoluto e o relativo”. Se você tentar fazer isso
sistematicamente, segundo os métodos deles – veja bem, isso não é um negócio
que qualquer um pode decidir: “agora eu vou fazer aqui a mesma coisa”, não
funciona assim, nenhuma religião funciona assim; toda religião só funciona
dentro do seu próprio contexto.

Se o hindu tentar refutar a doutrina da unidade dos seres


sistematicamente, ele chegará à conclusão de que não há nenhuma prova
suficiente de que há um abismo radical entre o Criador e a criatura, entre o
Absoluto e o relativo. Esgotando todas as possibilidades de refutação, o que vai
acontecer com ele? A alma dele se tornará serena, ela acalmará. Eles dizem:
“nessa calma, você contemplará a realidade, você contemplará a natureza do
Absoluto”. Contemplando a natureza do Absoluto, você saberá que do ponto de
vista do Absoluto não há diferença alguma entre o relativo e o Absoluto, e que
essa diferença, de fato, é só um modo de encarar as coisas.

Uma das técnicas usadas nesse método consiste em procurar uma


resposta para a pergunta “quem sou eu?”. Vocês podem reparar que, se
perguntarmos para qualquer pessoa: “quem é você?”, ou mesmo se
perguntarmos para nós mesmos: “quem sou eu?”, temos que dar, como
resposta, uma referência que é posterior ao nosso eu. A primeira resposta que
geralmente damos é o nosso nome; mas o nosso nome veio depois de nós.

Outra pista acerca da resposta para essa pergunta é o uso da palavra


“meu”. Se eu digo que o nome é “meu”: “Luiz Gonzaga é o meu nome”,

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evidentemente o meu nome não é o eu, mas algo que pertence ao eu. O mesmo
vale para “o meu corpo”, “a minha mente”, “a minha inteligência”.

Aluno: parece que se está falando de agregados a alguma coisa.

Professor: sim, você está falando de uma série de agregados a outra


coisa, e essa outra coisa mesmo você não acha. Ou seja, podemos dar qualquer
tipo de respostas: inclinações psicológicas, tendências, um pedaço da nossa
história, mas tudo isto é seu, não é você. O conjunto de acidentes em torno do
ser é organizado de uma forma única. A palavra “eu” necessariamente se refere
ao traço do Absoluto no seu ser. Por exemplo, se eu falo “meu nome”, meu nome
é evidentemente comparável a algum outro nome; pode até ter uma pessoa que
tem um nome idêntico ao meu. E, de um modo ou de outro, o meu nome é
funcionalmente o mesmo que o seu nome, ele é, para mim, a mesma coisa que o
seu nome é para você. A mesma coisa vale para o corpo: o corpo de um ser é
sempre comparável ao corpo de outro; existem semelhanças e dessemelhanças,
e estruturalmente eles servem à mesma função. Em tudo você é comparável a
outro ser humano, ou a outro ser qualquer, mas a palavra “eu” não se refere a
nenhum desses componentes. Se ela não se refere a nenhum desses
componentes, a quê ela se refere? Quando procuramos na nossa mente o objeto
ao qual se refere a palavra “eu”, não o encontramos. Não podemos encontrar no
significado da palavra “eu” nenhuma das coisas que nos distinguem dos outros,
porque essas são coisas que pertencem ao eu. Também não podemos usar essa
palavra para significar nenhuma das coisas que nos assemelham aos outros,
porque essas pertencem ao eu tanto quanto ao não-eu. Isso significa que os
sinais distintivos de uma pessoa são simultaneamente distintivos e contra-
distintivos. Se estou lá fora e alguém me pergunta: “lá dentro da sala, quem é o
Guilherme?”, eu falo: “é o sujeito com barba”. A barba o diferencia de outras
pessoas na sala, mas o torna semelhante a outras pessoas. Ele chega aqui, daí
fala: “ih, mas há duas ou três pessoas com barba aqui”. Então barba, que seria
um elemento distintivo, pode tanto servir como um elemento distintivo, que
indica o que é o eu, quanto de elemento de confusão, que faz desaparecer ou

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borrar a diferença entre o eu e o não-eu. Se vocês analisarem, vocês perceberão


que isso serve para todo e qualquer elemento que usamos para definir o eu; não
tem uma única coisa que usamos para nos definir que não possa ser usada para
o contrário – ou seja, nenhuma delas serve realmente como sinal distintivo do
que é um eu. Isso significa que nenhum dos traços que eu posso perceber
empiricamente no meu ser indica o que sou eu. No entanto, eu tenho plena
consciência de ser um eu, de ser eu mesmo e não outra coisa; eu nunca acordo –
e, pelo menos as pessoas normais também não – pensando que sou outra
pessoa, ou que sou a cama na qual dormi.

Aluno: e se fizer a referência: “eu sou um objeto personalíssimo e


exclusivo da obra de Deus”, não vale como resposta, sem fazer referência a um
terceiro?

Professor: vale como resposta, desde que você experimente realmente


esta resposta. Essa resposta, fundamentalmente, corresponde à resposta hindu.
Mas esta resposta se aplica ao seu eu e ao conjunto de atributos que se agrega ao
seu eu – ela se aplica a tudo aí. Por exemplo, ela se aplica ao seu eu, e, vamos
dizer, ao seu tipo físico, ao seu tamanho, à sua personalidade, à sua história; é
esse conjunto todo que é um modo personalíssimo. Mas aí estamos fazendo uma
pergunta só para uma parte disso daí. Dá pra definir o que é uma psique, o que é
uma personalidade, o que é um corpo, o que é barba, cada uma dessas coisas dá
pra definir, mas e eu? Os hindus dizem: “você não tem como responder ao que é
o “eu”, porque o objeto que corresponde ao significado da palavra “eu” está para
além do Vjnanamaya; ele está além da sua capacidade de conhecimento
distintivo”.

[Professor começa a escrever no quadro, e em seguida passa a falar


referindo-se ao exposto no mesmo]

Aqui nós temos o mundo corpóreo. Segundo os hindus, esses diversos


estratos da realidade são mais universais na medida em que sobem. Isso
significa o seguinte: um corpo pode agir sobre outro corpo. Mas só por ser um

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corpo, ele não pode, por exemplo, se alimentar de outro corpo, ou se reproduzir.
Ou seja, um ser capaz de se alimentar e de se reproduzir é capaz de tudo o que
um corpo é capaz, e mais alguma coisa – ele é mais abrangente do que a simples
corporalidade.

O outro ser, que é dotado de sentidos, além de abarcar o Annamaya e o


mundo corpóreo, é capaz de outras coisas que o mundo corpóreo não é. Ou seja,
o objeto de ação de um ente é diferente em cada um desses patamares. Um
corpo é capaz de agir sobre outro corpo numa certa medida. Por exemplo: uma
pedra é capaz de quebrar um coco; um pouco de ácido sulfúrico é capaz de
dissolver um objeto de metal. Porém, nem o ácido sulfúrico, nem a pedra podem
assimilar o metal ao seu próprio ser: o ácido sulfúrico não pode transformar o
metal em ácido sulfúrico, aumentando a sua massa. Isso significa que a ação de
um corpo sobre outro é restrita.

Um vegetal, além de uma ação puramente física sobre outro corpo –


além da ação comum a todos os corpos –, é capaz de outras ações; ou seja, o
objeto dele é mais amplo, o seu campo de ação é mais amplo.

Um ser que, além disso, é dotado de sentidos, tem um campo de ação


mais amplo ainda. Certas realidades que são objeto de ação de um ser dotado de
sentido, ou do Pranamaya, simplesmente não existem, entraram no campo da
ignorância no Annamaya ou nos corpos. Por exemplo, o coco nunca poderá ver a
pedra chegando e tentar escapar dela. Esse tipo de realidade que é o movimento
da pedra em direção ao coco para destruí-lo não existe para o coco, está fora do
que o coco abarca como realidade.

O Manomaya tem ainda mais ação sobre a realidade, porque o


Manomaya é um modo de autoconhecimento; ele é o conjunto dos seus desejos
e apetites. Por exemplo, quando você busca alimento, você não busca alimento
do mesmo jeito que uma árvore busca alimento. A árvore simplesmente tenta
crescer pra ver se naquele solo tem alimento – se não tiver, ela morre. E se você
está num lugar que não tem alimento? Você morre? Não necessariamente,

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porque você sentirá o desejo de alimento, e então olhará o meio – porque, além
disso aqui [aponta no quadro para o Pranamaya], você tem isso aqui [aponta no
quadro para o Manomaya] –, pra ver se tem alimento. Aí você pensará: “não
tem alimento aqui, então vou para outro lugar”. Os desejos são uma esfera da
realidade que não existe abaixo do Manomaya.

O Vjnanamaya, ou seja, a capacidade de conhecimento abstrato, é ainda


mais amplo do que o Manomaya. Por exemplo, você pode entender a estrutura
regular ou permanente dos seus desejos e agir de acordo com isso, não pode?
Você só procura alimento quando você tem fome? Você não faz compra de mês?
Quando você faz compra de mês você está com fome de todos aqueles
alimentos? Mas você sabe que você estará com fome deles uma hora, não sabe?
Isso já é uma percepção abstrata: você está agindo com base na idéia de fome,
não com base na sensação de fome.

Para cada um desses estratos corresponde um objeto, um campo da


realidade, que é abarcado por esse objeto. Por exemplo, a sua capacidade de
conhecimento abstrato, a sua capacidade de montar uma idéia de fome depende
de você ter captado, na sensação de fome, uma dimensão dessa sensação, ou um
aspecto dessa sensação que, por exemplo, um leão não é capaz de captar. Existe
um aspecto da sensação de fome que só pode ser percebida, que só existe para o
sujeito dotado de inteligência abstrata.

Segundo os hindus, se você não pode entender e definir a idéia de “eu”,


é porque ela é um aspecto ainda mais profundo e sutil dos seres do que a sua
inteligência abstrata. Do mesmo jeito que o objeto da inteligência abstrata é
mais profundo e sutil do que os seus próprios desejos, o “eu” é uma idéia ainda
mais profunda e sutil do que a sua própria inteligência abstrata. Eles dizem: “a
idéia ‘eu’ não corresponde a nenhum aspecto da sua estrutura individual, mas à
própria atualidade que te põe no ser”. Isso significa que a pergunta “o que é um
eu?” só pode ter dois tipos de respostas razoáveis: ou o “eu” é uma atividade
divina, ou o “eu” é o próprio Deus – ou ele corresponde ao Annandamaya, ou

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seja, à própria atividade criativa em exercício, ou ele corresponde ao próprio


Criador.

INTERVALO.

Quem tiver interesse em aprofundar o conhecimento de Hinduísmo


[leia os livros indicados na lista apresentada em aula ou no site do professor]. A
lista está em ordem alfabética, pelo nome dos autores, mas o livro que eu
recomendaria que vocês lessem primeiro é justamente o último da lista, o do
Heinrich Zimmer: As filosofias da Índia.

Depois vocês podem ler O homem e seu devir segundo o Vedanta, do


René Guénon. Em seguida eu recomendaria que vocês lessem esses dois de
autores hindus, e que estão, felizmente, em português [livros do Ramana
Maharshi e Shankara].

Posteriormente, só se vocês tiverem muito interesse não só sobre a


doutrina hindu, mas sobre a civilização hindu, as diversas escolas de
pensamento, vocês lêem os outros dois livros: Introdução geral ao estudo das
doutrinas hindus, e Os seis sistemas de filosofia indiana.

Então os dois que eu sugeri primeiro – As filosofias da Índia e O


homem e seu devir segundo o Vedanta – têm a vantagem de possuírem uma
clareza filosófica ao expressar o fundamento das doutrinas hindus, o
pensamento hindu. Os dois livros estão traduzindo realmente o pensamento
hindu segundo as categorias do pensamento ocidental. São dois autores
bastante alicerçados no pensamento ocidental; eles entenderam bastante, então
podem traduzir e explicar, para o ocidental, o que o hindu pensa. Sem ler estes
dois – Zimmer e Guénon –, quem for ler o Ramana Maharshi e o Shankara não
terá a menor idéia do que eles estão falando, porque eles são hindus falando
para hindus. Se não pegarmos alguém que abarcou, numa certa medida, ou que
pelo menos chegou perto de abarcar toda a sua própria cultura, essa pessoa é
incapaz de transpor culturas. Um sujeito que não tenha compreendido, por
exemplo, a cultura espiritual ocidental, jamais entenderá e compreenderá o

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Hinduísmo, porque o salto humano que ele tem que dar é tão grande, que ele
não conseguirá. Se nós lermos um Shankara, um Ramana Maharshi, um Buda,
nós não teremos a menor idéia do que eles estão falando. Um exemplo de
conceito que gera muita confusão é o de reencarnação. Quem é que entende o
que significa reencarnação para um hindu ou um budista? Ninguém. Pra
começar, o ocidental pensa na reencarnação com um sentimento de alívio: “oba,
terei mais uma chance! Legal!”. O budista e o hindu pensam na idéia de
reencarnação com horror; eles pensam em reencarnação do mesmo modo que
nós pensamos em inferno. Eles pensam: “que desgraça, vou ter que passar por
todo esse sofrimento de novo!”. Só essa associação afetiva já é oposta – significa
que os dois não estão vendo a mesma idéia, quando usam esta palavra. Quantas
vezes eu já vi alguém falando: “eu acredito em reencarnação, porque é uma idéia
muito mais compassiva e misericordiosa do que ‘acabou essa vida e você vai
para o paraíso ou para o inferno’”.

Aluno: dizem que é mais justo.

Professor: dizer que é mais justo, mais misericordioso, mais bondoso, se


você falar isso para um hindu, ele rirá da sua cara; ele falará: “você não
entendeu que esse negócio de reencarnação é simplesmente o pior modo de
inferno que você pode conceber, e que ele existe na nossa religião pra você
tentar fugir disso com todas as suas forças?”.

Outra coisa é que o sujeito pensa que é ele que vai reencarnar. É você
que vai reencarnar? O que é você? O que é um “eu”? Para um “eu” reencarnar, o
que ele precisa ser? A primeira coisa: ele não pode ser nada que te caracteriza
individualmente nessa vida; todas as coisas pelas quais nós identificamos o
nosso próprio “eu” teriam que não existir numa vida seguinte. Vocês percebem o
quanto isso é mais doloroso do que a idéia de inferno ou paraíso? O que o hindu
está falando é o seguinte: “tudo que você é, como identidade pessoal, depois
dessa vida já era; você perderá, e isso será substituído por memórias que te são
estranhas, uma carga genética que te é estranha, um ambiente estranho, e
provavelmente numa forma animal ou infernal”.

16
Religiões do Mundo I

Segundo ponto: todo mundo pensa: “quando eu reencarnar,


evidentemente eu reencarnarei como ser humano”. Os hindus e budistas dizem:
“isso é impossível”. Eles não falam que é difícil, eles falam que isso é impossível,
que isso nunca acontece. Vocês percebem que a idéia de reencarnação tem um
significado totalmente diferente do corrente?

Outra questão: existem dois conceitos distintos no pensamento hindu e


budista, e os dois são chamados igualmente “reencarnação” no Ocidente; um é a
idéia de transmigração, e o outro a idéia de metempsicosis.

A idéia de metempsicosis consiste no seguinte: quando você morrer, os


elementos corpóreos do seu ser serão assimilados por outros seres – uma parte
do que era o seu corpo virará corpo de vermes, por exemplo. Os hindus e
budistas dizem: “existem alguns elementos da sua psique que também podem
ser assimilados por outros seres. Os elementos mais próximos da corporalidade
podem ser herdados por outros seres”. Por exemplo, suas imaginações,
memórias, seus padrões sentimentais e padrões de comportamentos também
podem ser herdados por outros seres, assimilados por outros seres após a sua
morte. Eles dizem que isso ocorre porque esses padrões, esses aspectos da sua
psique vão se decompor, do mesmo modo que o seu corpo se decompõe. Não é o
sujeito, não é a pessoa, na metempsicosis não é a pessoa que volta, mas alguns
elementos do psiquismo dela permanecem e são assimilados por outro ser; é o
que acontece no caso do Dalai Lama. O Dalai Lama de agora não é o mesmo
sujeito que o Dalai Lama anterior, ele é outro sujeito, que recebeu memórias e
padrões de comportamento do Dalai Lama anterior.

Aluna: a metempsicosis é do Budismo?

Professor: não, tanto no Budismo quanto no Hinduísmo existe o


conceito de metempsicosis.

O próprio Dalai Lama explicou isso em um artigo, explicando: “se fosse


a mesma pessoa, veja bem, o primeiro Dalai Lama era um Buda, ele tinha
alcançado a iluminação suprema; se fosse a mesma pessoa, eu teria iluminação

17
Religiões do Mundo I

suprema, mas eu não tenho! Mas algumas das qualidades da psique daquele
sujeito foram herdadas por mim, para que eu possa exercer essa função aqui”.

Por uma bobagem histórica, um probleminha histórico, que é o


dualismo cartesiano, nós tendemos a pensar em psique, ou mente, e corpo como
duas coisas radicalmente diferentes. Então tem aqui o mundo corpóreo e o
mundo espiritual. Porém, o pensamento tradicional hindu e o pensamento
tradicional cristão não são assim; ele é assim: [desenha no quadro] é uma
pirâmide, um edifício com vários andares. O Vjnanamaya é muito diferente dos
[ou “nos”?] corpos, e segue leis naturais muito diferentes das leis naturais dos
corpos. No entanto, o Annamaya é bem parecido. Por exemplo, suas potências
vegetativas serão todas destruídas algum tempo depois da sua morte. Algum
tempo depois disso, o Pranamaya será dissolvido também – ou seja, a sua
imaginação, as suas memórias, tudo que ficou na sua mente. Todos os
conteúdos que ficam na sua mente, ficam por meio de um sinal sensorial. Por
exemplo, seus conhecimentos de filosofia ficam na sua mente como imagens
verbais; estas são derivadas da corporalidade, não são? Essas imagens verbais
vão se decompor um tempo depois do seu organismo físico. Suponha que outro
ser seja capaz de, antes de elas se decomporem, chegar lá e assimilar aquilo: ele
então lembrará os discursos mentais que você fazia – isso é perfeitamente
possível e ocorre todos os dias; o número de casos documentados disso é prova
suficiente para saber que isso realmente acontece.

Aluno: os mecanismos para isso são variados ou são sempre os


mesmos?

Professor: para que essa herança se dê de forma sistemática?

Aluno: para a absorção daquilo que é conhecimento.

Professor: são tão variados quanto os meios para absorção do seu corpo
físico depois que você morre.

Aluno: mas a absorção do corpo físico é sempre a mesma.

18
Religiões do Mundo I

Professor: sim, mas uma parte pode ser absorvida por vermes, outra
parte por carnívoros, outra parte simplesmente pelos elementos minerais, ou
seja, pelo sol, pode ser destruído pelas intempéries etc. – existem inúmeras
possibilidades de destino para o seu corpo depois da sua morte; para os
elementos da sua psique também é a mesma coisa.

Aluno: então o substrato físico dos elementos da psique não é o


cérebro?

Professor: simbolicamente. O cérebro está associado à sua psique, ao


seu psiquismo, mas não é a mesma coisa. Se fosse a mesma coisa, bastava que,
quando o Einstein morreu, nós comêssemos o cérebro dele e nos tornaríamos
excelentes físicos, mas não é assim.

Os tibetanos, cuja religião depende da permanência de certas memórias


e experiências, que são do Dalai Lama original, têm ritos que o Dalai Lama tem
que ficar fazendo a vida toda, e outras pessoas em torno dele ficam fazendo a
vida toda, para que, quando ele morrer – eles mesmos dizem – talvez [ênfase
em “talvez”] essas memórias retornarem em um outro ser. Isso aí é uma coisa,
isso é metempsicosis. Outra coisa é transmigração. Segundo a transmigração, eu
sou tanto o Luiz Gonzaga, quanto o Guilherme, quanto essa mesa, porque “eu”
refere-se ao Deus que Se vê de cada uma dessas maneiras.

Os budistas e hindus dizem o seguinte: “depois dessa vida, quando você


morrer, o que pode acontecer com você é o seguinte:

Você pode ter atingido a libertação – ou a iluminação, no caso dos


budistas –, e aí você não está sujeito a mais nenhuma vicissitude, você não está
mais sujeito à mutabilidade;

Você pode não ter feito isso, não ter chegado à iluminação, mas você
pode ter sido um sujeito tão bom, tão bom, que você vai para um mundo
espiritual no qual você atingirá a iluminação;

19
Religiões do Mundo I

Você pode ter sido um sujeito mais ou menos – nem era muito bom,
mas também não era muito mau –, então depois que você morrer os elementos
da sua psique serão divididos e dispersos entre os diversos seres, de acordo com
os méritos deles;

Você pode ter sido um sujeito tão mau, tão mau, que você tem que ir
para um lugar em que esse processo de decomposição durará indefinidamente,
demorará indefinidamente e será terrivelmente doloroso.

Façamos uma imagem aqui.

[Professor começa a escrever no quadro]

Mostremos aqui, resumidamente, as concepções hindus e budistas


sobre os estados depois da morte.

O estado supremo depois da morte é a iluminação.

Abaixo da iluminação há dois estados positivos. Um deles um estado


pacífico, em que você aprenderá o que você precisava aprender para chegar à
iluminação. Isso aqui é o que os budistas chamam de “terra pura”. Você não era
um ser iluminado, mas você fez tudo que pôde, durante essa vida, para se tornar
uma pessoa melhor, para ser um ser iluminado, então você irá para um lugar em
que não existe sofrimento, que é puramente espiritual, e você terminará a sua
jornada para a iluminação.

Você pode ter sido alguém que tentou ser um bom sujeito, tentou a
iluminação, mas você não era tão bom assim, então você irá para outro lugar,
que é o equivalente do nosso purgatório. Este lugar aqui leva para o mesmo que
esse aqui, só que neste aqui na base da paulada. Ali você aprende na base do
amor, e aqui você aprende na base da dor.

Esses são os três destinos positivos para o ser humano depois da morte.
Mas existem dois destinos negativos.

20
Religiões do Mundo I

Aluno: este último é o equivalente cristão do purgatório?

Professor: É o equivalente cristão do purgatório. Existem vários nomes


[para este “estágio”].

Aluno: a “terra pura” tem equivalente no Cristianismo?

Professor: tem, ela é equivalente ao paraíso.

Aluno: não é a iluminação?

Professor: não, a iluminação é equivalente à ressurreição cristã – é


completamente diferente.

Aqui, embaixo, se você era um sujeito bonzinho – mas só bonzinho, por


uma bondade natural e espontânea –, e nunca fez nenhum esforço de
transcendência, você vai transmigrar. Transmigrar consiste no seguinte: os
animais e os demônios herdarão pedaços do seu ser. Os animais, que são um
pouquinho melhores que os demônios, ganharão a melhor parte de você:
algumas das suas capacidades, das suas qualidades, eles ganharão e terão uma
vida melhor com isso; e as partes piores irão para os demônios, que são os
piores seres que existem. Ou seja, você irá se decompor como identidade
individual, você irá se perder. Porém, essa perda não será, vamos dizer, dolorosa
– “não será dolorosa” é difícil dizer, porque só a idéia de você se decompor [já é
algo doloroso] –, mas ela será relativamente não-dolorosa, porque o processo
será mais ou menos breve, ele durará algumas semanas ou meses depois da sua
morte, e você terá uma consciência tênue do processo – você só verá que você já
era, você só estará vendo que você está se perdendo, e que daqui a pouco você
vai se apagar, e não vai voltar mais. [Este processo] Dói, mas não muito – não é
tão longo.

Se você for um sujeito definitivamente mau, aí você vai para o inferno.


O inferno é simplesmente um lugar em que este mesmo processo é

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Religiões do Mundo I

indefinidamente longo, e terrivelmente mais doloroso, porque você é


terrivelmente mais consciente dele.

Percebam que não há nenhuma reencarnação boa. Reencarnação é


daqui para baixo [aponta o quadro].

Aluna: quando a pessoa atinge a iluminação, ela perde a conexão com a


consciência individual?

Professor: claro que não, é evidente que não. Depois que o


Padmasambhava atingiu a iluminação, ele virou o Luiz Gonzaga? Não, ele
continuou o Padmasambhava. Depois que o São Francisco atingiu a santidade,
ele virou o Guilherme? Não, ele continuou o São Francisco.

Estes três destinos são processos de reintegração da identidade


individual no Absoluto. E aqui é justamente o contrário, são dois estados de
dissolução da identidade individual no cosmos.

Aluna: de qualquer maneira, dali pra cima você retorna a Deus?

Professor: sim, daqui pra cima. Esses três são bons destinos, são
destinos felizes. Daqui pra baixo é que é ruim.

Toda e qualquer doutrina religiosa sobre os estados póstumos


corresponde estruturalmente a isso. Às vezes simplificam-se esses destinos. Por
exemplo, o protestante simplifica em dois extremos: “você vai pra cima ou pra
baixo”. Mas isso corresponde a esse eixo. Não é preciso explicar esses detalhes
todos, de terra pura, purgatório etc., pra quê explicar tudo isso aí? Basta dizer:
tem um lado que é bom e outro lado que é ruim.

Aluno: e depende de como você foi na vida?

Professor: depende de como você foi na vida, depende do que


predominou. Corresponde a dizer exatamente a mesma coisa.

Aluno faz pergunta.

22
Religiões do Mundo I

Professor: a metempsicosis é quando a sua identidade individual não


pode ser reintegrada no Absoluto; ela é tão contrária ao Absoluto que o único
meio dela reintegrar-se no Absoluto é através de uma dissolução cósmica. Ou
seja, o único jeito de Deus gostar de você e conviver com você, é Ele esquecendo
que você é você. Cada vez que Ele lembra de você, Ele pensa: “argh, que
horrível, esse cara não dá!”, então Ele tem que esquecer a sua identidade, e isso
é a perda dela. E aqui [aponta outro destino póstumo no quadro] é justamente o
contrário, são as pessoas que Deus, quando lembra delas, pensa: “esse sujeito
Eu quero comigo”. Essas pessoas aqui são imortais porque Deus quer recordar
deles para sempre. Esses outros aqui [cuja identidade se dissolve no cosmos]
são imortais só porque os componentes psíquicos e físicos dos quais eles são
feitos são a própria criatividade divina, e também nunca deixarão de ser.

Agora já dá pra ter uma idéia de por que que quando você fala para um
budista, lá no Tibet, ou lá na Índia, ou lá na China, de reencarnação, ele fala:
“ahh, não!”. Para o hindu é a mesma coisa: “não, arghhh!”. E aqui nós falamos:
“ah, reencarnação, que bom!”.

Aluno faz pergunta.

Professor: não vou dizer “antes”, porque o período em que se começa


pelo menos a se passar por escrito essas especulações é mais ou menos o mesmo
no ambiente semítico e no ambiente hindu. O que é bem anterior são os textos
sagrados nos quais se baseiam essas especulações. Os Vedas são mais antigos do
que a Bíblia. Mas as especulações começam em períodos mais ou menos
semelhantes – claro, com um espaço de uns 1.000 anos, mas mais ou menos
semelhantes. Por exemplo, a análise cuidadosa, essa análise detalhada das
faixas ou estratos do ser, em mundo corpóreo, Annamaya Kocha etc., data mais
ou menos do século IX da era cristã; e a mesma análise, no mundo cristão, data
mais ou menos do século XI.

Aluno faz pergunta.

23
Religiões do Mundo I

Professor: o hindu quer evitar a reencarnação porque ele sabe que ela é
um modo de se perder, é um modo de perder a sua identidade própria. Uma
hora, no inferno, o sofrimento é tanto que o sujeito esquece quem ele é, ele não
sabe mais, já não tem mais identidade, já não há nada ali que permita
reconhecê-lo como aquele sujeito que viveu aqui. Nem os pais dele o
reconheceriam.

Aluno: em vida, aqui, já acontece.

Professor: já existem sinais disso, exatamente, já existem símbolos


disso.

É porque nós não tivemos – graças a Deus – uma convivência íntima


com as piores pessoas de que se tem notícia, porque, se tivéssemos convivido
com elas, se tivéssemos visto elas aos 4 anos, e depois visto aos 50,
pensaríamos: “mas será que é a mesma pessoa? Eu acho que esse sujeito morreu
e foi substituído por um demônio”. Ele mesmo não é capaz de se identificar no
que ele era antes.

Resumindo: depois da existência humana, existem estados póstumos


que são estados de reintegração da identidade no Absoluto, e existem estados
que são o contrário: dissolução da sua identidade individual no cosmos, no
relativo. Então existem dois tipos de estados póstumos: estados que são
processos de reintegração da identidade no Absoluto, e estados que são
processos de dissolução da identidade no relativo.

Aluno: o livre-arbítrio faz parte da consciência individual?

Professor: vamos explicar o que é o livre-arbítrio com um simbolismo


geométrico. [professor começa a escrever no quadro]

Se nós começamos com essa polaridade, ou seja, há os seres


condicionados, os seres particulares e o Absoluto. Nós falamos que o ser da
criatura é um modo do criador se ver. Pensemos o seguinte: além desses dois

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Religiões do Mundo I

aqui, nós temos a imagem, ou raiz da criatura, na mente divina. [professor vai
escrevendo no quadro e explicando] Isso aqui é o Criador que se vê como
criatura; é a raiz divina da criatura. Para que uma criatura exista, Deus teve que
Se pensar como ela primeiro. Quando Ele cria a criatura, quando ela está em
ato, Ele também olha ela criada e Se vê nela; então uma hora Ele olha a criatura
e Ele a vê como Criador. Por exemplo, quando Deus olha para o Adriano
[aluno], Ele vê a criatura e vê Ele mesmo. Isso significa que esse aspecto do seu
ser que Deus vê como Ele mesmo é transcendente em relação à totalidade do
seu ser, é mais do que você – existe uma parte de você que é mais do que você.
Existe uma parte de cada ser que transcende as condições que determinam a
existência daquele ser; é uma parte que Deus olha e fala: “isso aí é Eu, mas em
você”. No ser humano, isso é a vontade livre. A vontade livre, no indivíduo
humano, transcende todas as condições que determinam ou condicionam a
existência do indivíduo humano.

Aluno: como se fosse um empréstimo da própria divindade.

Professor: exatamente, é um empréstimo da própria criatividade divina;


é a própria criatividade divina, só que está na sua mão. É um aspecto da
realidade que não é Deus aqui [aponta uma anotação no quadro] que determina,
é Deus aqui [aponta outra anotação no quadro], ou seja, é um aspecto da criação
que você cria, você como Criador. É por isso que a vontade livre é que é o
instrumento de aproximação ou de afastamento em relação a Deus – porque ela
é um atributo divino, não um atributo criatural. Usando a terminologia
escolástica: ela é um atributo senhorial. Nas criaturas encontramos várias
qualidades; algumas delas são atributos criaturais, atributos que derivam
diretamente da noção de criatura enquanto criatura. Por exemplo, a finitude é
um atributo criatural, que depende da própria noção de criatura. Já a liberdade
não é um atributo criatural, que deriva da noção de criatura, mas sim que deriva
da noção de senhor. A liberdade é um atributo senhorial, que, no entanto, se
encontra em algumas criaturas; é um empréstimo da criatividade divina pra
você.

25
Religiões do Mundo I

Aluna: e a maldade?

Professor: existem várias coisas que nós podemos chamar de maldade.


Maldade um: pode ser a qualidade distintiva daquilo que é mau, a característica
do que é mau, do mesmo modo que a igualdade é a característica do que é igual,
ou a liberdade é a característica do que é livre – essa é uma coisa. Outra coisa
que podemos chamar de maldade: o hábito de fazer o mal. Terceiro objeto que
corresponde ao conceito “maldade”: a inclinação espontânea para fazer o mal, o
desejo espontâneo de fazer o mal. São três coisas diferentes. Vamos localizar
essas três coisas aqui [mostra o quadro].

Maldade, por um lado, pode significar o hábito de fazer o mal, ou o


desejo espontâneo, mas acidental, de fazer o mal. Por exemplo, há pessoas que
gostam de atirar na cabeça de outras pessoas, mesmo que não tenham nenhum
outro motivo, só porque acham gostoso. Isso é uma das coisas que nós
chamamos de maldade, é o hábito de fazer uma coisa má. Em que plano da
realidade existe este hábito? É no corpo? É pelo fato de ser um corpo que o
sujeito tem a inclinação de atirar nos outros? Não, porque uma pedra, por
exemplo, não tem nenhuma inclinação de fazer o mal – nem de fazer o bem. É
neste plano da realidade que existe esse hábito [aponta no quadro]. A inclinação
de fazer o mal é um desejo, a inclinação é um tipo de desejo.

Aluna: será que é desejo?

Professor: claro. Há um sujeito que tem o desejo de estuprar uma moça;


outro sujeito tem o desejo de dar um tiro na cabeça de quem não lhe fez nada –
e ele faz porque teve o desejo. Se falássemos: “não, ele fez premido pelas
circunstâncias”, então não chamaríamos mais de maldade, chamaríamos de
outra coisa, tem outro nome. Maldade é quando o sujeito, por exemplo, atira em
outro, sem haver motivo nenhum para fazer isso – tem gente que age assim.

[Fala apontando o quadro] Aqui, significa que nem os sentidos do


sujeito, nem as potências vegetativas, nem a corporalidade dele podem
determinar isso aqui, porque isto aqui transcende isso, isso, isso [vai apontando

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Religiões do Mundo I

no quadro]. Mas, por outro lado, nesse mesmo sujeito, isso aqui, isso aqui e isso
aqui transcendem isso aqui [segue apontando no quadro]. Por exemplo, existia
nele, nesse mesmo sujeito que faz isso, a possibilidade de refletir sobre aquele
desejo, e ver, verificar, abstratamente, se a satisfação daquele desejo, em última
análise, será uma causa de satisfação ou de frustração – essa é uma coisa que ele
poderia fazer. Outra coisa: ele poderia parar e pensar: “a satisfação desses
desejos é justa ou injusta?”. Por quê? Porque a idéia de justiça e injustiça está
nesse campo aqui. Então, por mais desejo que ele tenha de fazer o mal, esse
desejo não consegue apagar completamente da mente dele a idéia de justiça e
injustiça – é claro que ele pode ter uma idéia imperfeita, mas ela nunca se
confunde com a idéia de satisfação ou insatisfação de desejo. Ou seja, é muito
fácil distinguir o sujeito mau do sujeito louco, porque o problema do sujeito
louco não está aqui, está aqui, algo travou aqui. E aí percebemos que ele não
está fazendo isso porque ele quer, ou porque ele sente o desejo: ele não sabe por
que ele está fazendo isso. Enquanto que o sujeito mau não: ele está fazendo
porque deseja, ou porque quer. Se ele está fazendo porque deseja, ou porque
quer, ele poderia pensar no assunto, ele tem o poder de pensar no assunto, e não
existe nada nesse mundo que pode decidir para ele se ele pensará no assunto ou
não – isso é livre-arbítrio. Ele não é livre-arbítrio para decidir: “agora eu não
tenho mais sentimentos ruins; agora eu decidi, eu não vou mais ter desejo de
fazer o mal”. O livre-arbítrio nem sempre se aplica a esse campo. Por quê?
Porque o livre-arbítrio pertence a este campo aqui; ele é uma participação na
criatividade divina; então não existe nada que possa impor, ou decidir para esse
sujeito, uma vez que ele vai refletir ou não sobre o que ele está fazendo –
ninguém pode fazer isso, nenhuma circunstância. Claro que podemos examiná-
lo: de acordo com o temperamento dele, de acordo com a natureza corpórea
dele, com os tipos de alimento que o corpo dele assimila, podemos colocá-lo
numa situação que facilite o trabalho para ele. Por exemplo, tem um sujeito aqui
que faz o mal todo dia, e não pára pra refletir. E se colocarmos ele numa celinha
de 2 X 2 [metros], onde ele nem tem como fazer o mal?

Aluna: eles dão um jeito.

27
Religiões do Mundo I

Professor: claro que eles dão um jeito, mas você está dando uma
oportunidade para ele refletir. A correção, a punição irá corrigi-lo? Não sei. Só o
livre-arbítrio dele poderia mover a reflexão dele para ele se corrigir, só ele. Mas
eu dei uma chance pra ele, eu o coloquei na seguinte situação: “se você quiser
refletir, ninguém irá te atrapalhar. A necessidade que você tem, por exemplo, de
comida não irá te atrapalhar. Você tem teto, você tem comida...”. Você tirou as
distrações da vida cotidiana, que o atrapalhavam. Colocar um sujeito numa
cadeia é dar a ele a oportunidade de se tornar um monge – pelo menos
temporariamente. Se ele não aproveita essa oportunidade, pior pra ele.

As pessoas confundem muito o livre-arbítrio; elas sempre levantam


como objeção ao livre-arbítrio isso aqui. Mas o livre-arbrítrio não se exerce
diretamente sobre os seus desejos, ele se exerce diretamente sobre a sua
capacidade reflexiva.

Aluno: mais de cima.

Professor: mais de cima, exatamente, e ela é que se exerce sobre os seus


desejos. Uma vez que você pensou: “peraí, esse desejo é injusto, eu não quero
satisfazê-lo”, a sua reflexão entra em outro processo: “como eu me liberto desses
desejos e passo a ter outros melhores?”. Mas você só pode dominar os teus
desejos se antes você chegou a alguma conclusão sobre eles serem justos ou
injustos.

Aluno: pode haver travamento do livre-arbítrio?

Professor: não. Por quê? Isto aqui, tudo isto aqui decorre da estrutura
criatural, tudo isto aqui é ser um ser relativo.

Aluno: existe diferença qualitativa de indivíduo para indivíduo no seu


livre-arbítrio?

Professor: não, nenhuma. Existe diferença qualitativa nisso aqui: existe


gente mais inteligente, e gente mais burra; existe nisso aqui: existe gente de boa

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Religiões do Mundo I

índole, e gente de má índole; nisso aqui: existe gente que tem os sentidos mais
eficazes, e gente que tem os sentidos menos eficazes; nisso aqui: existe gente
que tem melhor saúde, melhor capacidade de assimilar os alimentos, e gente
que tem pior; e nisso aqui: ter um corpo mais bem-feito ou mais mal-feito. Em
tudo isso aqui tem diferença, mas nesse aqui não tem.

Aluno: é por isso que a soberba é um dos pecados mais graves, porque
ela deriva do empréstimo divino?

Professor: exatamente. O que é a soberba? O sujeito pôs isso aqui a


serviço do que estava embaixo. Ele decide: “eu tenho livre-arbítrio, mas eu não
quero saber dele, eu só quero saber dos meus desejos”. É uma inversão da
hierarquia. Soberba é sempre isso, é considerar melhor o que é pior e considerar
pior o que é melhor.

Aluno: os agnósticos são os maiores pecadores?

Professor: temos que analisar [cada caso], porque um sujeito pode ter
recebido informação errada; o agnosticismo dele pode ter por base fundamental
um engano muito profundo. O problema pode estar aqui. Então, objetivamente,
o próprio Vjnanamaya dirá: “o agnosticismo é um erro gravíssimo”, mas, como
ele pode sediar-se na incapacidade intelectiva de um sujeito, o sujeito pode ser
mais ou menos inocente dele – subjetivamente ele pode ser mais ou menos
inocente. Por exemplo, o sujeito pode ter feito uma análise sincera da realidade,
mas ele não conseguiu chegar a uma conclusão certa. Se ele não chegou, no
decorrer de uma vida inteira, a uma conclusão certa, existia um elemento de
soberba e maldade; mas esse elemento pode ser muito pequeno em relação ao
elemento de ignorância.

Aluno: você acha que Kant é por aí?

Professor: é por aí.

Aluno: e o Gramsci?

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Religiões do Mundo I

Professor: Gramsci é justamente o contrário: será que existia algum


elemento de ignorância?

Esse é um ponto interessante, porque é entendendo em quê cada ordem


de criatura tem um elemento positivo ou divino é que podemos entender o que é
esse mundo que Deus criou. Por exemplo, o ser humano, onde está a força dele?
Qual o elemento da criatividade que é divino nele? É justamente a vontade livre.
Nos anjos, é a inteligência objetiva; os anjos não se enganam. Nós nos
enganamos, mas os anjos não. Mais pra diante, podemos fazer uma análise dos
diversos tipos de seres, dos vegetais, dos animais, dos minerais.

Aluno pede para repetir.

Professor: é a inteligência objetiva: os anjos nunca se enganam. Mesmo


quando eles não sabem um negócio, eles sabem que não sabem.

Aluno: o Hinduísmo também tem essa noção?

Professor: sim, tanto que o ser humano, no Hinduísmo, é chamado


“manava”, que é uma palavra que tem a mesma raiz que a palavra “mano”, do
Manomaya. Por quê? Porque a vontade livre é análoga aos desejos.

Aluno faz pergunta.

Professor: sim, existe essa noção, que consiste no seguinte: tudo que te
acontece é uma conseqüência do que você é. Isso é bastante simples de entender
se você pensar o seguinte: [escreve no quadro] vamos conceber isso aqui como a
infinitude divina. E isso aqui é você, ou seja, é um pedacinho retirado disso.
Você é a sua capacidade de ação sobre isso aqui. Essa capacidade de ação
depende do quê, é determinada pelo quê? Do que foi excluído do seu ser, do ser
divino, para existir você, então essa capacidade de ação sobre os outros é
imediatamente proporcional à capacidade de ação da totalidade da realidade
sobre você.

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Religiões do Mundo I

Vamos supor que você se deslocou aqui; você veio para cá. Para você vir
para cá, alguma outra coisa teve que ir para lá, não teve? Necessariamente. Mas
você podia mover esse outro aspecto da realidade divina? Você não podia
modificar o outro ser na sua estrutura íntima, então tem que ter havido uma
interação, um intercâmbio. Por exemplo, quando eu movo esta garrafa e ponho
água no copo, estou causando algo na garrafa e no copo, mas eles estão
simultaneamente causando alguma coisa em mim, que é diretamente
proporcional ao que eu estou causando aqui. Ou seja, tudo que te acontece é um
efeito justamente dessas interações – e tudo em você está sujeito a essas
interações. Por exemplo, se hoje você tem 10 conhecimentos, e no mês que vem
tem 15 – é uma comparação quantitativa –, isso é decorrente do quê? Da sua
ação sobre o mundo e da ação do mundo sobre você. Isso não deriva apenas do
seu ser intrínseco, deriva de você e do mundo; é um resultado proporcional à
sua natureza e à natureza das outras coisas. A única coisa que não é modificada
assim é o seu livre-arbítrio enquanto você é ser humano.

Aluno faz comentário.

Professor: nos dois casos você continua sendo livre. Você escolheu os
bons amigos, você escolheu os maus amigos, seu livre-arbítrio não foi afetado
em nada. Mas o que que determinou a sua escolha de bons amigos ou de maus
amigos? Por exemplo, pode ter sido a mera contigüidade: é porque ele era o
sujeito que morava na casa ao lado. Pode ter sido uma afinidade de sentimentos:
“é porque eu desejava um tipo de coisa, achava esse tipo de coisa boa e ele
também”. Então você teve um movimento, uma mudança, uma modificação,
que foi causada ou pela sua estrutura corpórea, ou pelo Annamaya, ou pelo
Pranamaya, ou pelo Manomaya, ou pelo Vjnanamaya. Na medida em que uma
ação se origina de um campo, de um estrato mais elevado, ela é mais ampla em
consequências. Por exemplo, quando você entende a definição de triângulo, a
sua ação se estendeu sobre todos os triângulos reais, atuais ou possíveis. O que
você mudou, aquilo sobre o que você agiu não é só um objeto que está aqui na

31
Religiões do Mundo I

sua frente, é um objeto incalculavelmente mais amplo – e ele também age sobre
você do mesmo jeito.

Aluno: depois de você saber o que é um triângulo, você é vulnerável a


eles para sempre, não é?

Professor: sim, você não pode dizer que não conhece.

A primeira reação, o primeiro efeito de entender o que é um triângulo se


dará no plano do próprio Vjnanamaya, ou seja, isso terá um efeito sobre os seus
outros conhecimentos e sobre a sua capacidade geral de conhecimento. Depois
que ocorrem esses efeitos, isso como que vai reverberar no plano inferior: assim
como uma vibração de uma corda, agora ela vai reverberar na corda de baixo, no
Manomaya: isso mudará um pouco os seus desejos. Mudados um pouco os
desejos, mudará um pouco como você percebe as coisas sensivelmente. Mudou
como você percebe as coisas sensivelmente, mudará como você assimila o
ambiente corpóreo, mudará a sua saúde. A partir daí, vai reverberar na sua
presença física diante dos outros seres. Mudar a sua presença física diante dos
outros corpos é mudar a presença física dos outros corpos diante de você,
simultaneamente – é evidente. Falar relatividade é falar relações. Qual a única
coisa que, nesse processo todo, permanecerá a mesma? Só o seu livre-arbítrio.

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