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Transcrição:
Carlos Eduardo de Carvalho Vargas
Sumário
O conceito corpo
O que é um corpo? Quais são as notas que caracterizam um corpo? Todos os
corpos são sensíveis? Tudo que é corpóreo pode ser captado pelos sentidos?
Mas se falarmos que “corpo é uma substância1 com tamanho”, isso é suficiente?
Essa é a única característica que é permanente nos corpos e que se pode observar
em todos os corpos?2 Não é.
Aluno: De quantidade.
Professor: Por exemplo, o número é outro tipo de quantidade. Os
números; 1, 2, 3 e 4 significam um tipo de quantidade, mas não significam
necessariamente um tamanho. Então, por exemplo, posso falar de duas ou três
mil almas, mas isso não significa tamanho nenhum. Qual é a diferença entre
esse tipo de quantidade e o tipo de quantidade que é o tamanho? Por exemplo:
esse maço de cigarro é um só, mas ele possui tamanho. Qual é a diferença
entre a quantidade que é o tamanho desse maço de cigarro e o número de
cigarros que ele possui? São dois tipos de quantidade bem diferentes.
Vamos procurar as características em comum entre estas duas espécies
de quantidade, pois, assim, pode ser que as características diferentes se
destaquem na nossa mente. Uma característica comum das quantidades é a
multitude. Toda quantidade envolve muitos. Envolve uma diversidade das
partes. Para que isso tenha um número é preciso que tenha coisas diversas.
Para que isso seja um tamanho, é preciso que isso tenha partes que são
diversas. Por exemplo: essa parte aqui não é esta aqui. Esta outra não é essa
aqui. Mas a alma também tem partes: imaginação, inteligência, vontade, etc.
Qual é a diferença entre as partes da alma e as partes disto aqui? O ser
de uma parte da alma está no ser da outra. No tamanho, o ser de uma parte
não está no ser desta. Se eu eliminar esta parte, a outra continua existindo do
mesmo jeito. Mas na alma, se eu eliminar a sua imaginação, a sua alma inteira
mudou. Se eu eliminar a sua imaginação, eu simultaneamente tirei algo da sua
inteligência, dos seus sentimentos, da vontade e de tudo mais. Isso significa
que o ser da imaginação estava também na inteligência, no sentimento, na
vontade, etc. Não há como eliminar uma das partes e as outras continuarem as
mesmas. Mas no tamanho não é assim. Posso tirar uma parte do tamanho e a
outra continua sendo o que era antes.
Aluno: É o “reino da quantidade”.3 Não altera a qualidade.
Professor: A característica da quantidade é justamente esta: o ser das
partes não está nas outras partes. Do mesmo jeito que aqui tenho três maços de
cigarro e, ao tirar um deles, os outros continuarão sendo a mesma coisa. O ser
de cada parte não interferiu no ser da outra parte. A característica da
3
No sentido de René Guénon: conferir “O reino da quantidade e os sinais dos tempos”.
quantidade é que possui “parte fora de partes” ou o ser de uma parte não está
no ser de outra parte. É como se as partes estivessem fora das outras.
Então, talvez a diferença entre essas duas espécies de quantidade, o
número e o tamanho, esteja na relação entre as partes. É muito simples: aqui
tenho três maços de cigarro, que estão juntos. Se eu separá-los, continua sendo
três. O limite de uma parte é independente da outra. Eles são três juntos ou
separados. Agora vamos observar o tamanho; dívida imaginariamente este
maço de cigarro no meio. Você teria um plano dividindo o comprimento do
maço em duas partes. Mas este plano pertence à metade de lá ou de cá? Ele
pertence a esta parte ou àquela? Pertence a duas ao mesmo tempo. No número
não é assim, pois o início das partes é independente da outra. Então, podemos
dizer que tamanho é a quantidade cujas partes possuem seus limites em
comum. E número é a quantidade cujas partes possuem limites separados ou
independentes ou próprios.
4
Por um argumento que é uma espécie de “reductio ad absurdum”.
aspectos.5 Um corpo não pode ser verde e não-verde ao mesmo tempo [e nas
mesmas condições]. Para que haja mudança, é preciso existir um par de contrários,
mas simultaneamente deve existir a impossibilidade daqueles contrários estarem ao
mesmo tempo no mesmo sujeito.
Então, se eu quero descobrir como uma substância mutável de extensão
limitada pode ser mudada, tenho que descobrir nestas notas: “substância”,
“mutável”, “extensão” e “limitada”, quais são as notas que estão sujeitas à contrários
ou podem existir de maneira contrária. Por exemplo: peguemos nossa substância:
será que podemos mudar um corpo de substância para não substância? Um corpo
pode deixar de ser substância e tornar-se atributo de outra coisa?
Aluno: Não.
Professor: Não pode, porque a única espécie de ser positivo ou real que
não é substância é o atributo, mas este não é o contrário da substância, pois
somente existem na substância. Então, descobrimos algo sobre os corpos: a
substância corpórea é indestrutível.
Aluno: Não há nada contrário à substância corpórea?
Professor: Não há, porque não existe o contrário da substância. Esta
não tem contrários. Então, não é nessa nota que o corpo é mutável.
Aluno: Seria impossível transformar algo corpóreo em algo
incorpóreo?
Professor: É impossível transformar algo corpóreo em algo
incorpóreo, exatamente. O único modo de fazer essa mudança seria mudar
a ordem a que esta substância pertence, o que não é possível. Nunca se
poderá transformar um corpo em uma alma e vice-versa.
Posso mudar um corpo na sua mutabilidade?
Aluno: Ele ficaria imutável. E existiria um corpo incapaz de mudança, o
que já descobrimos que não há. Logo, um corpo não pode mudar na sua
mutabilidade.
Professor: Exatamente, é contrário à própria noção de corpo. Então,
tentar encontrar as mudanças a que os corpos estão sujeitos na substância ou
na mutabilidade é simplesmente procurar algo que não existe. Sobrou apenas
uma terceira nota: extensão limitada. Posso mudar os corpos em extensão.
Aluno: Posso diminuí-los ou esticá-los.
Professor: Exatamente! Posso fundi-lo com outro semelhante para que
ele se torne maior, fundindo, por exemplo, um pedaço de ferro com outro.
Mas não posso fazer muito mais do que isso.
6
No sentido de “princípio intrínseco de repouso e movimento” como o professor Luiz explicou em outras aulas [N.T.].
7
Ou, em parte, há fatores emergentes, e, em parte, fatores predisponentes, seguindo o vocabulário de Mário
Ferreira dos Santos em “Filosofia e Cosmovisão” [N.T.].
Professor: Exatamente. Ele possui um princípio passivo que diz: “se a
circunstância for assim, serei líquido, mas em outra circunstância ‘tal’, serei sólido”. Mas
eles mesmo não podem se determinar independentemente das circunstâncias.
A segunda coisa é a fusão e a fissão. Eu posso dividir em várias partes
ou unir diversas partes para que formem uma única. Isso muda o tamanho dele.
Muda a extensão completamente. O tamanho é variável [seja do todo ou das partes]:
cem grama de ferro é ferro e um quilo continua sendo ferro. A natureza do objeto
não mudou, mas apenas seu tamanho.
Essa disposição passiva para se tornar sólido, líquido ou gasoso é uma
disposição que torna o corpo sujeito a duas qualidades contrárias: ou ele possui, em
determinada circunstância, a qualidade de determinar a sua própria figura ou ele não
possui essa capacidade e, pelo contrário, possui a capacidade de se adaptar às figuras
dos outros corpos. São duas qualidades diferentes e contrárias.
Aluno: Como no exemplo da mesa e do ar.
Professor: A essa primeira qualidade, de determinar a própria figura,
Aristóteles chamava de secura. E à qualidade contrária, ele chamava de
umidade. Sei que a gente usa essas palavras em um sentido um pouco
diferente.
Aluno: Mas faz sentido!
Aluno: Poderia-se usar solidez e liquidez.
Aluno: A secura é a qualidade própria do objeto que pode determinar a
sua própria figura?
Professor: Exatamente.
Aluno: Se alguém jogar água no vaso, este determinará a figura da água
[pois esta é úmida, enquanto o vaso é seco, no sentido aristotélico].
Professor: A água não determinará a figura do vaso.
[Aluno compara a umidade aristotélica com a liquidez da economia.]
Professor: E mais ainda, todos os corpos possuem estas propriedades,
mas todos possuem a capacidade de mudar de uma para outra. Nenhum
corpo é sólido em todas as circunstâncias possíveis em que ele pode se
encontrar. Existe alguma circunstância em que ele perderá essa propriedade
e assumirá a contrária.
Aluno: Por mais difícil que seja!
Professor: Exatamente.
[Aluno comenta sobre a passividade dessas propriedades.]
Professor: A secura e a umidade são justamente as propriedades
passivas dos corpos. Um corpo simples, por si mesmo, não muda de uma
coisa para outra, mas é mudado por um outro. É mudado pelo conjunto dos
outros corpos como um todo [ou pelo seu “meio”]. Vocês estão entendendo
o que significa dizer que “um corpo somente existe tal como ele é [se estiver] diante de
um outro corpo”.
Então, por exemplo, vamos imaginar um imenso universo vazio no qual
há apenas uma pedra. Ela é sólida, não é? Mas a pedra, enquanto pedra,
enquanto aquele mineral [específico], poderia não ser sólido. Não há nada na
natureza dela que a proíba de deixar de ser sólida. Mas ela nunca poderia
realizar essa possibilidade sozinha. Algum outro corpo teria que intervir para
que ela realizasse essa possibilidade.
8
Como ficou patente no filme “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson.
9
Esta potência da alma já foi explicada pelo professor Luiz em uma das aulas anteriores.
10
Como se poderia dizer inspirado em Santo Agostinho: todos amam e odeiam, mas nem todos amam e odeiam
as coisas que respectivamente merecem ser amadas e odiadas. Algumas vezes amamos o que deveríamos odiar e
odiamos aquilo que deveríamos amar.
reprodutiva. Se uma macieira não se reproduzir, ela não alcançará a sua perfeição.11
Todas as outras modificações do ponto de vista da macieira estão subordinadas à
sua função reprodutiva. A macieira assimila elementos do ambiente corpóreo para
transformar em outra macieira. A macieira se alimenta. Ele se nutre dos minerais
para crescer. E cresce para atingir a sua maturidade reprodutiva, seja sexuada ou
assexuada, e produzir outras macieiras. A diferença de perfeição entre duas macieiras
está nas suas capacidades reprodutivas.
E a perfeição de um animal? Este é o exercício da capacidade de procurar
um ambiente confortável. Os animais têm como característica procurar um
ambiente que lhes seja agradável. Como, em certo sentido, os animais também são
vegetais, pois também se reproduzem, eles também possuem as potências
vegetativas, eles também procuram realizá-la, mas isso não lhe basta. Inclusive isso
no animal está subordinado ao prazer.
Então, existe uma diferença crucial entre a perfeição dos animais e vegetais
e a perfeição dos corpos em geral. A perfeição daqueles lhes é mais íntima. O
princípio ativo dessa perfeição está mais ligado a ele mesmo do que ao ambiente.
Este apenas oferece a oportunidade, mas são os próprios animais e vegetais que
realizam a perfeição que lhes é própria.12 No ser humano também é assim.13
Aluno: Mas os seres humanos não fazem isso com impulsos diferentes
dos animais?
Professor: Com impulsos diferentes porque a perfeição do animal é
uma e a do ser humano é outra. E o impulso do vegetal é outro. Entretanto, a
característica que distingue vegetais, animais e seres humanos dos corpos em
geral é que neles mesmos está o princípio ativo da própria perfeição.
Enquanto os corpos possuem apenas um princípio ativo, dependendo dos
outros para realizar, uma vez que esses efetivaram no corpo [a perfeição
deste].
Com isto quero dizer que vegetais, animais e seres humanos pertencem a uma
ordem do ser diferente dos corpos em geral. Os corpos pertencem à ordem do ser
que são passivos em relação à sua perfeição. Um corpo somente pode ganhar a
perfeição que ele irá perceber. Na outra ordem do ser, os vegetais animais e seres
humanos recebem uma perfeição do ambiente, mas somente isso não é suficiente
para eles, pois não realiza o que ele quer. Ele mesmo precisa intervir e realizar a sua
própria perfeição.
Qual é a outra característica comum aos animais, vegetais e humanos?
Simples: eles podem existir e não alcançar a própria perfeição.
Aluno: Podem frustrar.
Professor: Isso quer dizer que, embora eles sejam o princípio ativo da
própria perfeição, o ato da perfeição é distinto do ato de existir.
Aluno: Não basta existir para chegar à própria perfeição. A perfeição
requer algo dele mesmo [além de simplesmente existir].
11
Como a figueira estéril condenada por Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho.
12
Voltando ao tema dos fatores emergentes e predisponentes.
13
Até mesmo porque o ser humano também é um animal.
A noção da Alma
Professor: Exatamente. Por isso que Aristóteles dizia que os vegetais,
animais e seres humanos têm alma. Alma é o princípio ativo de perfeição do
próprio ser. Não são os componentes químicos do vegetal que causam sua
reprodução, mas é a sua alma vegetativa. Do mesmo modo, não são os
elementos químicos dos animais que causam a sua perfeição, mas é a alma
sensitiva. O mesmo vale para o ser humano: não são seus componentes
químicos que causam a sua perfeição.
Aluno: Por isso que o ser humano não possui a mesma [espécie de]
alma dos animais [em geral].
Professor: A própria palavra alma já significa a raíz ou sede dos
impulsos. Ela significa o princípio ativo ou princípio de atividade.
Entretanto, todos eles possuem em comum o fato de possuírem o princípio
ativo [da própria perfeição] ou alma.
Perceba que quando falamos alma não nos referimos [necessariamente]
a uma alma imortal. Alma e imortalidade são duas categorias diferentes.
Então, por exemplo, um vegetal pode assimilar qualquer mineral em qualquer
circunstância para se reproduzir? Não, alguns minerais, em algumas
circunstâncias, poderão provocar a sua destruição. [Alguns minerais] serão
venenosos para alguns vegetais.
Por outro lado, qual é a perfeição da alma vegetal? Criar um outro vegetal.
Apesar de ser uma alma ou um princípio intrínseco de perfeição, a sua ação se
efetiva sobre a corporalidade. Ocorre em uma situação que envolve ou implica
necessariamente a corporalidade. Se existisse uma alma vegetal sem corpo, esta não
poderia realizar sua perfeição ou reproduzir-se. Embora seja um princípio intrínseco
ativo, somente pode operar diante de um corpo. Um “espírito de macieira” não
pode, por si mesmo, produzir outro “espírito de macieira”.
O mesmo vale para a alma sensitiva dos animais. Embora seja a afetividade
própria do animal que lhe diga o que é agradável e desagradável, estas qualidades se
apresentam a ele por meio de outros corpos que se mostram agradáveis ou não. Se
não existissem esses outros corpos, o animal não poderia perceber o que é agradável
ou não, nem procurar a sua ambiência [que permitisse realizar a perfeição de sua
alma sensitiva].
Então são almas, mas são almas muito ligadas ao mundo corpóreo, pois a
operação delas somente pode ser realizada no mundo corpóreo. A mesma coisa vale
para nós, seres humanos, em relação às nossas potências vegetativa e sensitiva.
14
O Espírito Santo é o próprio Deus, na Santíssima Trindade com o Pai e o Espírito Santo.
15
O aluno parece estar se referindo à seguinte questão: Como aquela é separada em cada um se essa é a mesma
para todos?
16
Pois já se sabe, desde o começo, que o corpo é mortal.
conteúdo da sua inteligência.17
[Aluno pede para o professor retomar a explicação acima.]
Professor: Vamos listar todas as características que lhe distinguem para
verificar em que medida a sua personalidade é imortal, uma vez que como
“idéia em Deus” tudo é imortal. A resposta para isso18 é sim e não. Isso
depende do seguinte: a sua alma é imortal na medida da perfeição dela. Na
medida em que você é perfeito, ela é imortal. Na medida em que você é
imperfeito, ela é mortal.
Suponha que você tenha uma disposição habitual qualquer, como, por
exemplo, você tenha uma disposição generosa ou mesquinha. Quando você
morrer, a sua inteligência continuará lá, mas não poderá mais ver o mundo
corpóreo porque você via com os olhos e os seus olhos foram destruídos
com a morte. O que você irá ver? O que a sua consciência irá testemunhar?
O seu próprio psiquismo: as qualidades e as inclinações da sua própria alma.
Provavelmente, uma das primeiras coisas que você perguntará depois
de morrer é: “onde está tudo?”.19 E você sentirá a falta de algumas coisas que
você tinha antes. Essa falta pode ser testemunhada pela sua inteligência.
Suponha que a forma ou as qualidades distintivas da sua psique eram
proporcionadas aos corpos que você observava. Isto é, suponha que os princípios
formais das suas qualidades psíquicas estavam nos corpos. Então, por exemplo,
gosto muito de peixe. O princípio formal desse gostar muito de peixe está no
próprio peixe. A causa da existência desse prazer e desse gosto é o peixe. Ora,
quando morrer, não tenho mais peixe. O que acontece com um efeito quando a sua
causa é eliminada? Ele cessa. Então, algum tempo depois de eu estar morto, o meu
gosto por peixe desaparecerá. Inclusive a minha recordação do gosto de peixe
desaparecerá inevitavelmente.
Esta era uma característica distintiva da minha personalidade e ela irá
desaparecer. Se todas as características distintivas da minha personalidade derivavam
de formas corpóreas, todas elas desaparecerão. Sendo assim, tudo aquilo que eu me
identificava, isto é, tudo aquilo que eu chamava de “eu mesmo” e testemunhava em
mim, desaparecerá. E, mais ainda: esse processo de desaparecimento será um
processo de sofrimento porque será um processo de desintegração da minha
personalidade.20
Aluno: Será uma decadência. Esquecerei até das pessoas que amava.
Professor: Esquecerá de tudo [cujo princípio formal de integração na
psique estava vinculado apenas às suas almas sensitiva e vegetativa].
Aluno: E no final, o que sobra?
17
Somente na medida em que a alma humana une-se a algo imortal para realizar a sua própria perfeição.
Somente na medida em que a realização da sua perfeição está vinculada a algo imortal. Somente na medida em
que realmente efetiva a sua capacidade de fazer a sua existência relacionar-se [necessariamente] com algo imortal,
o Espírito Santo ou a Inteligência, para que a sua perfeição seja realizada, como se criasse um vínculo de
dependência da alma com o Espírito. Pois somente assim poderá continuar realizando a sua perfeição depois que
as suas almas sensitiva e vegetativa estiverem desintegradas
18
Para a pergunta seguinte: “a alma humana é imortal?”.
19
Como corresponde, mudando a espécie de “discurso”, a vários esquemas poéticos cristãos, entre os quais o
livro “Marcelino pão e vinho” (Ed. Record, 2002) do premiado José Maria Sanchez-Silva.
20
Isto é, será um “inferno”.
Professor: Por outro lado, suponha que exista uma outra coisa, além do
próprio peixe que eu comia, que seja a raíz formal do peixe. Do mesmo jeito
que a forma de peixe dava a forma que era testemunhada na minha
afetividade, suponha que haja outra forma que origina o próprio peixe.
Aluno: É o ser peixe.
Professor: Suponha que essa outra coisa seja ela mesma imutável e,
portanto, ela é um possível objeto de cognição. Logo, a minha inteligência
pode captar essa coisa. É a essência. Se a minha inteligência captá-la, todas
as formas derivadas estão incluídas na causa.
Isso é o céu! O céu é a captação da raíz formal de todas as coisas21 por
parte das inteligências.
Aluno: A raiz formal não é Espírito?
Professor: A raiz formal é o próprio Deus. Ora, se eu captava essa raíz
formal, essa captação não diminui com a minha morte. Ela tende a aumentar
com a minha morte.
Aluno: Aumenta porque passa a captar todas as formas de ser.
Professor: Exatamente. Se a raíz formal de peixe se tornou um objeto
para a minha inteligência, depois que morrer, não estarei privado da forma
do peixe e do efeito disso na minha psique. E ainda aumentarei isso
infinitamente. Cada vez que a minha inteligência captar essa raíz formal, esta
ampliará o prazer que a minha psique tinha no peixe. E assim minha psique
será imortal porque o seu objeto estará sempre comigo. E a minha
personalidade será imortal porque esse já era um traço do meu ser ou da
minha personalidade, isto é, o “gostar de peixe”.
Aluno: Esse é o estar em Deus.
Professor: Exatamente. Então, a minha personalidade, exatamente
como era nesse mundo, é simplesmente ampliada em proporções
incalculáveis.22
[Aluno pergunta sobre este princípio formal.]
Professor: Não é o gênero [no sentido lógico].
Aluno: É o “realíssimo”!
Professor: Exatamente, é aquilo que concede ao gênero a sua
consistência ontológica.
[Aluno pergunta sobre a relação entre o realíssimo e a essência.]
Professor: A palavra essência, neste contexto, pode ser usada em dois
sentidos. Por uma lado pode ser a “quididade” da coisa, isto é, a natureza à
qual a coisa percebia, como a “natureza de peixe”, por exemplo. Obviamente
estas quididades corpóreas não estarão mais presentes para mim depois da
minha morte. Mas a quididade ou o ser de qualquer ente concreto não se
reduz à sua quididade e à sua acidentalidade, mas a um ato que realiza essa
quididade e essa acidentalidade concretamente. Este ato vem do próprio
21
A qual está no próprio Deus. Conferir o “Sermão da Montanha” no Evangelho: “Buscai primeiro o Reino
de Deus e tudo mais vos será acrescentado”.
22
Como o aumento que ocorre na parábola do Evangelho em que os bens da pessoa fiel e justa eram
aumentados: da administração de cem talentos para a posse de uma cidade inteira.
Deus.
Nesse sentido, essência e realíssimo são as mesmas coisas, porque, nesse
sentido, o ser de cada coisa é uma atividade divina. Existem duas maneiras
de você fazer esse salto, em vida. Uma maneira é você se dedicar a uma vida
de contemplação, dedicando seu ser e seus gostos todos para a
contemplação, o que é extremamente difícil. Uma outra maneira é se o ser
que já seja assim, que já pertença à ordem do realíssimo, se ele já encarar
uma pessoa dessa maneira [como se esta já estivesse na ordem do
realíssimo].
Seria algo muito estranho! Dessa forma, você pode não ter conquistado
a imortalidade; você pode não ter encontrado a raíz do seu ser ou da sua
personalidade no realíssimo, mas suponha que o Cristo faça isso para você.
Ele pode sustentar a sua personalidade no realíssimo depois da morte até
que você seja capaz de fazer isso. Ele pode escolher ver em si mesmo a raíz
da personalidade de alguém e sustentá-la n’Ele mesmo.
Aluno: Mas Ele já não faz isso com todos, enquanto alguns se fecham a
isso?
Professor: Não, Ele não faz isso com todos! Ele mesmo disse: “nem todo
aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus”.
Aluno: Mas e aquele que diz isso [“Senhor, Senhor”] sinceramente?
Professor: Ele mesmo disse: “mas todo aquele que cumpre meus mandamentos”,
isto é, o sujeito que faz todo esforço para cumprir as condições que Ele
estabeleceu para isso, as condições para que você seja um órgão do Ser d’Ele.
[Neste caso], então, Ele faz isso para você.
Aluno: É uma aceitação.
Professor: É um pacto que você faz com Ele. Aluno: É uma dedicação!
Professor: Exatamente.
Aluno: Mas não é somente o livre-arbítrio.23
Professor: Se alguém procurar a raiz disso na Bíblia, verá que se chega a
uma situação imponderável, em que não é possível pensar em uma coisa em
comparação com a outra. Se alguém se perguntar de onde partiu todo esse
processo de salvação, é evidente que veio do próprio Deus. Para começar, foi
Ele que causou a nossa existência. Existe uma raiz em cada ser humano em
que graça e livre arbítrio não se diferenciam. Dessa raíz adiante é que a gente
escolhe um caminho um pouco diferente da graça.
Inteligência e Espírito
[Aluno pergunta sobre a relação entre a Inteligência e o Espírito.]
Professor: A Inteligência é o Espírito. Se a inteligência não fosse o
próprio Espírito, o que aconteceria? Quando você morresse, supondo que você
tenha sido um sujeito maximamente imperfeito e entrasse em um processo de
desintegração da personalidade, em certo momento a sua personalidade iria
apagar e você como personalidade iria deixar de existir completamente. Por que
isso não acontece assim?24 Porque há uma inteligência que testemunhará essa
desintegração.25 E ela é a mesma durante o tempo todo.
Aluno: Você não está falando de inteligência como uma virtude?
Professor: Isso é a Inteligência considerada em si mesma. Não é o seu
sentimento em relação à sua Inteligência.26 Esta é uma característica pessoal.
24
É por isso que se diz que nenhum ser volta para o nada, como alguém disse: uma folha que balançou não
pode desbalancear, uma vez que, como será explicado abaixo, foi algo testemunhado pelo Ser Absoluto, que
como diria Mário Ferreira, é símbolo da própria divindade.
25
Essa atenção desse testemunho divino da desintegração não deixa de ser uma Misericórdia, assim como a
própria desintegração, visto os malefícios que essa personalidade corrompida faria para si mesma e para os
outros. É como se nem a própria personalidade desintegrante agüentasse a si mesma.
26
Quer dizer que posso até me achar “burro”, mas a Inteligência continua sendo o Espírito.
Deus se realiza em uma alma humana de dois modos simultaneamente: como
uma inteligência impessoal e como uma personalidade perfeita. Somente essas
duas coisas podem ser imortais em você: a sua inteligência impessoal e a sua
personalidade na medida em que é perfeita, isto é, na medida em que está
enraizada na própria intenção divina. Como você não tem como anular a
inteligência enquanto perfeição, significa que o processo de decomposição da
sua personalidade será indefinido depois da morte se você for para o inferno.
Aluno: Qual é o conceito de inteligência impessoal?
Professor: Inteligência impessoal é a Inteligência que testemunha a
realidade tal e qual ela é.
Aluno: A inteligência objetiva.
Professor: Você não sente a realidade tal como ela é. Você sente a
realidade tal e qual ela é em relação à sua estrutura [pessoal]: uma pessoa
gosta de peixe e outra não gosta. Então, nesse gostar de peixe e não gostar,
existe um elemento subjetivo que é um elemento objetivo.
Isso quer dizer que a sua personalidade pode ser perfeita ou imperfeita. A
sua personalidade é um atributo da sua alma e esta não atinge a perfeição apenas por
existir. Entretanto, a sua Inteligência já é perfeita apenas por existir.27
Espírito e imortalidade
Quando o sujeito não vai para o céu, é a sua própria Inteligência que dá
testemunho contra ele mesmo. E é Deus, como essa Inteligência, que julga essa
personalidade indigna ou incapaz de permanecer.
[Aluno pergunta sobre esse juízo da Inteligência.]
Professor: Quando você morrer, o mundo corpóreo não estará mais
diante de você. A única coisa que estará diante de você é a sua personalidade.
Para começar, de início [após a morte], são os seus gostos, os seus desgostos,
as suas alegrias, tristezas, memórias, etc. Com o tempo, de tanto ficar
observando isso, o que acontecerá? Será como explicamos antes: se você
gostava de peixe, a causa formal28 que fazia você gostar de peixe era a forma
de peixe. De duas, uma: ou você capta o fundamento realíssimo do peixe e,
portanto, do gosto do peixe e isso perpetua o peixe, eternizando-o e
tornando imortal essa componente da personalidade, ou esta irá desaparecer.
Isso quer dizer que apenas os que vão para o Céu continuam sendo aqueles
que eram.
Aluno: E, nesse sentido, quem não vai simplesmente acaba.
Professor: Como personalidade, ele acaba. Passa a ser apenas um
processo vital, psíquico, que vai se desintegrando, mas sem personalidade.
Aliás, personalidade significa justamente isso: o instrumento por meio do
27
O leitor deve perceber que o professor Luiz não está usando inteligência no sentido “usual” de habilidade
lingüística ou como capacidade em executar raciocínios lógico e matemáticos.
28
No sentido das quatro causas de Aristóteles. Conferir “Metafísica” de Aristóteles.
qual algo soa: “per sona” (soa por). Se o que soava pela sua alma era apenas a
corporalidade, quando esta for tirada, o som será tirado, isto é, a sua
personalidade se desintegrará. Se o que soava era Espírito, continuará soando
eternamente.
A salvação pela fé
Isso quer dizer que, tecnicamente, para que tudo o que eu sou permaneça
após a minha morte, é preciso que eu compreenda tudo o que sou em Deus. Existe
uma única alternativa: pode ser que eu não consiga compreender tudo o que eu sou
em Deus, mas que eu compreenda suficientemente tudo o que Deus é para mim. Se
eu compreender suficientemente quem é o Cristo, e o sinal de que alguém
compreende é o modo pelo qual a própria vida é integrada na proposta de vida
d’Ele, isto é um elo entre a minha personalidade total e o próprio Deus. E este elo
permitirá, depois da minha morte, o resgate da minha personalidade.
É como uma troca: o que Cristo propõe a cada ser humano é:
“Seja como Eu agora, antes da sua morte, porque depois da sua morte serei como
você e você reencontrará a sua personalidade olhando para mim”.
O que ele propõe é isso:
“Vista-se de Cristo, que, depois da sua morte, Eu me vestirei de você e você se reencontrará em
mim”.
Aluno: O professor Olavo de Carvalho disse, certa vez, que a fé é
como um bônus de conhecimento.
Professor: Exatamente.
Aluno: A fé é uma posse antecipada, é um pré-conhecimento.29
Professor: Exatamente. É como se fosse um cheque de
conhecimento.30 Porque nem sempre é possível, ou melhor, raramente é
possível, para um indivíduo, compreender, como um todo, a sua
personalidade em Deus. Mas, o indivíduo pode, como um todo, entender a
personalidade de Deus para si mesmo. E, então, Cristo lhe faz uma promessa:
“Se você fizer isso [entender-me em você, durante essa vida], depois da morte Eu farei
o inverso para você [testemunhando a sua personalidade em Mim]”
Ele pode fazer isso por quê? Porque Ele é o Verbo divino31, é o primogênito
de todas as criaturas.32 Ele, o Cristo33, o Verbo Divino, é a raiz formal do ser de
todas as criaturas em Deus.
Aluno: É isso que é a salvação.
Professor: É isso.
29
Como afirmou São Paulo Apóstolo: “A fé é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar
as realidades que não se vêem” (Epístola aos Hebreus, capítulo 11, versículo 1).
30
Aproveitando a analogia: a fé é como um cheque cujo valor será entregue pelo próprio Cristo.
31
Conferir o Evangelho de São João, capítulo 1, versículo 1 em, por exemplo, http://www.bibliacatolica.com.br/
32
Conferir a Carta de São Paulo aos Colossenses (capítulo 1, versículo 15): “Ele [o Cristo] é a imagem de Deus
invisível, o Primogênito de toda a criação”.
33
Conferir no Evangelho de São Mateus (capítulo 16, versículo 16)
Aluno: Isso é ensinado nas catequeses e nos seminários?
Professor: Os católicos, hoje em dia, têm, [em geral,] uma grande
ignorância sobre a própria religião. E não é de hoje! No século XIII
mandaram São Boaventura, [que foi superior franciscano], julgar a ortodoxia
de um membro de sua congregação, o frei Gil.34 E ele respondeu que era esse
sujeito que deveria julgar a ortodoxia da nossa doutrina, porque não há
alguém mais cristão do que ele no mundo inteiro. Quer dizer que aqueles que
o mandaram julgar a Frei Gil já não conheciam mais a própria religião.
Aluno: São Tomás também passou por um processo assim.
Professor: Sim. E São Boaventura também passou pelo mesmo
processo.35 A história dessa ignorância não é de hoje.36
34
Trata-se do Beato frei Gil de Assis (também chamado de frei Egídio), cuja memória é liturgicamente celebrada
no dia 23 de abril. “Discípulo de S. Francisco, clérigo da Primeira Ordem (+1262). Pio VI aprovou seu culto a 04
de julho de 1777. Entre os primeiros companheiros de S. Francisco está o Beato Gil de Assis, o qual respaldou
sua petição para fazer-se Frade Menor cedendo imediatamente seu próprio manto quando, no convento dos
irmãos, chegou um pobre pedindo alguma coisa. Simples, humilde, iletrado, sabia contudo impelir todos ao amor
de Deus e proferir sentenças cheias de doutrinas. A maior parte de sua vida caracterizou-se por peregrinações:
Santiago de Compostela, Monte Gargano (Santuário de S. Miguel Arcanjo), Terra Santa e mais tarde África.
Ocupava o tempo de permanência e suas esperas forçosas ganhando a caridade das pessoas através de seus
trabalhos manuais. Fazia de tudo: carregava água, recolhia nozes ou lenha. Nunca o encontravam ocioso, mas
sempre em silêncio com Deus, com quem falava na contemplação, única fonte de sua sabedoria cristã. Assim,
veio a se tornar exemplo de vida franciscana primitiva. Cujo claustro é o mundo. Sua ocupação era qualquer
trabalho humilde e honesto e suas delícias estar com Deus nas noites silenciosas. No dia de S. Jorge, a 23 de abril
de 1209, Gil tinha escutado a missa em Assis, indo depois à Porciúncula para avistar-se com São Francisco.
Encontrou-o saindo de um bosquezinho e se lançou a seus pés. "Que queres?" perguntou-lhe Francisco. “Quero
permanecer contigo”, respondeu. Francisco o nomeou imediatamente "cavaleiro da távola redonda" e em sua
companhia partiu para Marca de Ancona. Ao longo do caminho Frei Gil louvava a Deus e, cheio de gratidão, se
prostrava por terra e beijava a erva, as flores e as pedras. Quando S. Francisco pregava, ele permanecia extático e
dizia aos demais: “Escutai-o, porque, ele fala maravilhosamente”. Fora do tempo reservado à oração e à leitura
do breviário, Gil trabalhava continuamente, e como paga recebia somente estritamente necessário para a vida.
São célebres seus ditos cheios de sabedoria religiosa e de espírito prático. Certa vez admoestou um pregador
palrador, gritando-lhe por detrás: "Blá, blá, blá, falou muito, agiu pouco". Com freqüência sua sabedoria era
bondosamente irônica, como quando um irmão disse que havia sonhado com o inferno e que ali não tinha visto
nenhum frade menor. Ao que Frei Gil lhe respondeu: "Seguramente não baixaste até o fundo". Perante outro
que falava muito sem refletir, disse: “Penso que seria bom ter o ombro tão largo como a grulha; assim a palavra
passaria por muitos de nós antes de subir a boca!” Frei Gil era um contemplativo, um místico que entrava em
êxtase somente em ouvir mencionar o Paraíso. S. Francisco e S. Boaventura tiveram por ele grande admiração.
Mais tarde, morto S. Francisco, sua vida transcorreu nos eremitérios da Úmbria, sobretudo no de Monterípido,
onde morreu avançado em idade a 23 de abril de 1262. Perto da morte, quando as autoridades de Perusa
enviaram pessoas armadas para guardá- lo, enviou-lhes recado para assegurar-lhes que nunca os montes de
Perusa teriam parte em sua canonização nem milagre algum lhe tocaria. Chamado Beato pela voz do povo, a
Igreja confirmou seu culto por meio de Pio VI a 04 de julho de 1777”
35
O professor Luiz desenvolveu mais esse tema na palestra “A Universidade de Paris no século XII” realizada na
Aliança Francesa em outubro de 2006.
36
Há livros sobre a história do conhecimento humano, como livros de história da ciência e da filosofia, mas
talvez se poderia fazer também um livro sobre a história da ignorância humana.
37
Conferir “Confissões” de Santo Agostinho.
teoria, do grego, por contemplação e, ora, por especulação. Então, eles dirão
que contemplação é a atividade da inteligência cujo objeto é o realíssimo.
Especulação é a atividade da mesma inteligência cujo objeto é apenas o real.
Qual é a diferença entre uma coisa e outra? A diferença “prática” é que
você pode transmitir diretamente o resultados da sua especulação. Você
pode, por meio do discurso, ensinar aquilo que você compreendeu sobre o
real38, mas você não pode, por meio do discurso, levar o outro à
contemplação do realíssimo.
Aluno: O discurso pode acompanhar o objeto até o “real”?
Professor: Sim. Por exemplo: você pode ensinar a ciência da
engenharia ao outro por meio do discurso. Assim, pode ensinar o que são os
prédios, os materiais, o que é resistência, etc. Isso pode ser ensinado.
Entretanto, suponha que você tenha contemplado o que é tudo isso no
realíssimo. Isso não poderá ser ensinado [pelo discurso]. O máximo que você
pode fazer é dar algumas indicações práticas do caminho que o sujeito deverá
percorrer até chegar a essa contemplação.
[Aluno pede mais uma explicação.]
Professor: Quando Platão e Aristóteles falavam da teoria, falavam das
duas coisas ao mesmo tempo [especulação e contemplação], mas, na prática,
podiam ensinar aos alunos [apenas] a especulação e dar algumas indicações
quanto à contemplação. E o que aconteceu? No decorrer das gerações do
ensino da Academia e do Liceu39, o número de pessoas que contemplavam
foi diminuindo em relação ao número de pessoas que apenas contemplavam.
[Aluno pergunta sobre a impossibilidade de ensinar a contemplação.]
Professor: Trata-se de uma impossibilidade intrínseca. Não dá para
transmitir o conteúdo da contemplação. O sujeito que contempla pode, no máximo,
oferecer algumas indicações sobre como se deve eliminar na própria vida os
obstáculos da própria contemplação, mas a especulação pode ser transmitida.
Por quê? Simples, porque a inteligência humana é transcendente em relação
aos objetos que ela contempla e que pertencem à ordem do real. A inteligência
humana é mais do que qualquer ciência que ela possa obter sobre as coisas naturais.
A esfera dos conhecimentos naturais está sob domínio da inteligência humana, mas
o realíssimo não. Ela não é transcendente em relação ao realíssimo. Ela é que está
sob domínio do realíssimo. Como se diz, não se pode “apreender” o conteúdo do
realíssimo e comunicá-lo a outro. Mas a inteligência humana pode fazer isso em
relação à especulação, isto é, em relação ao conhecimento das coisas naturais.
Por isso que, em qualquer cadeia de ensinamento humano, no decorrer das
gerações do ensinamento, o elemento contemplativo diminuirá, mas o especulativo
permanecerá o mesmo ou até se ampliar. Assim, no decorrer das gerações, tanto no
Liceu de Aristóteles, como na Academia de Platão, que os sujeitos ali estão apenas
voltados para a atividade especulativa, deixando de lado a vida contemplativa.
Entretanto, as duas atividades possuíam o mesmo nome: “bios theorétikos”. E
38
Como deveria fazer um filósofo ou um cientista.
39
As escolas iniciadas por Platão e Aristóteles, respectivamente.
é esta vida “teorética”40 reduzida a uma especulação sem contemplação que Santo
Agostinho recusava por não ser suficiente. Ele percebeu que entre os filósofos
gregos não havia especulação, a qual ele conseguiu encontrar entre os cristãos. No
cristianismo, Santo Agostinho encontrou pessoas que contemplavam, como Santo
Ambrósio. Então, esta contemplação [cristã] re-iluminou a especulação grega que
havia sobrado historicamente para que seu conteúdo contemplativo fosse
reencontrado.41 Mas, mesmo no cristianismo, demorou-se séculos para definir esses
dois campos de atividade da inteligência e usar termos adequados para distinguir um
do outro.
[Aluno volta a comentar sobre Santo Agostinho.]
Professor: Santo Agostinho descobriu que a vida especulativa não era
suficiente. Por exemplo: a vida especulativa permitiria compreender todas as
estruturas formais do bolo, mas isso lhe daria o gosto do bolo na boca?
Aluno: Não.
Professor: Mas a contemplação do bolo no realíssimo lhe dá mais do
que o próprio bolo.
Aluno: Ela [a contemplação no realíssimo] faz o bolo novamente?
Professor: Ela vai além.
42
“Bios theorétikos”.
Está mentindo porque a sua inteligência é um sinal do realíssimo.43 Se
fosse assim, seria uma grande contradição, porque teríamos que assumir que
somente existe o real, menos você que é realíssimo porque possui inteligência
e transcende a realidade.44
Aluno: “A tentação maior do homem é cair de uma verdade incerta para uma
inverdade certa”.45
Professor: É isso mesmo! Vamos guardar essa frase para comentá-la na
próxima aula.
Aluno: A verdade incerta é parte de um mistério.
Professor: Porque a sua inteligência pode contemplar o realíssimo, mas
não pode esgotá-lo.
Aluno: Não pega tudo nunca.
Professor: O elemento do mistério sempre estará lá.
Aluno: Exceto aqueles que achavam que possuíam todo o conhecimento
como Nietzsche, Marx, Hegel, Gramsci, etc.
Professor: Acabou.
43
Alguns chegam a se revoltar até mesmo contra o real, como os desconstrucionistas: “A desconstrução parte da
premissa linguística de Ferdinand de Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a
diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa
premissa contra as pretensões científicas da própria linguística, ao concluir daí que, se a língua é um sistema de
diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado” externo. Tudo o que o ser humano
diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com
“realidade”, “fatos” etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é constituído de “textos” ou
“discursos”, mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses discursos possam ser aferidos, não
tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não existe representação da realidade. Todo
discurso é livre invenção de significados. Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido
nietzscheano, afirmando que, se o discurso não é representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”.
Mas isso não quer dizer que por trás do discurso exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A ideia de
um eu estável e autoconsciente é ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da
realidade pode funcionar, o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada
“eu”. Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o
desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a
“différance”, com “a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor
do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria
inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela
mistura de pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a
usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer
que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você
fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a
si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela
diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o
que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência. Se o eu não existe e o objeto que ele
pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção
chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da
aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”. Portanto, a função de todos os discursos é negar a
realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João,
VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em
geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder.” (Olavo de Carvalho, O
sucesso do fracasso, Diário do Comércio, 27 de novembro de 2006)
44
A pessoa não se inclui no próprio juízo sobre o conjunto da realidade, isto é, enquanto fala e especula se exclui
da própria realidade.
45
Essa frase parece remeter a C.S. Lewis.