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Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

A Diferença entre a Alma e o Espírito

Revisão:
San

Editado:
San

Projeto gráfico e capa:


San

Transcrição:
Carlos Eduardo de Carvalho Vargas
Sumário

Introdução: os modos de ser da Alma e do Espírito I


A perfeição no modo de ser corpóreo II
O conceito corpo III
Quantidade contínua e Quantidade discreta IV
As mutações dos Corpos V
As qualidades passivas dos corpos: umidade e secura VI
As qualidades ativas dos corpos: calor e frieza VII
As quatros categorias de corpos VIII
A perfeição própria dos modos de ser sujeitos a pares de qualidades opostas IX
A perfeição dos vegetais e dos animais X
A noção da Alma XI
A ordem dos seres espirituais XII
A imortalidade da Alma: céu e inferno XIII
A raiz humana no realíssimo Divino XIV
Inteligência e Espírito XV
Espírito e imortalidade XVI
A salvação pela fé XVII
Especulação e contemplação na vida teorética XVIII
A tensão entre a vida contemplativa e a vida sensitiva XIX
Epílogo: À guisa de conclusão XX
Introdução: os modos de ser da Alma e do Espírito

Aluno: Na última aula paramos na pergunta sobre a diferença entre Alma


e Espírito.
Professor: O que diferencia a alma humana das outras almas animais é
justamente a possibilidade dela reproduzir de forma inesgotável o conteúdo do
Espírito nela mesma. É uma potencialidade e não um ato que seja dado desde o
começo. O Espírito por si mesmo é inesgotável. E alma humana é indefinidamente
capaz de assimilar o Espírito. Não há um momento em que o indivíduo consiga
esgotar as possibilidades de realização do Espírito.
Aluno: O que significa absorver o Espírito?
Professor: Significa que você pode reproduzi-lo ou representá-lo na
forma de conteúdo mental: de imagens, sentimentos e pensamentos. Mas essa
reprodução nunca esgota o Espírito. É como se você tivesse um objeto com infinitas
facetas e você tentasse pintar cada uma das facetas. Cada uma delas revela um aspecto
do objeto e algo novo sobre ele, mas você nunca terminará esse processo porque tem
infinitas facetas.
Isso não quer dizer que o Espírito não tenha certas operações regulares.
Ele tem certos modos regulares de atuar na alma humana, mas esses modos são
regulares para o Espírito e sempre novos para a alma porque a alma não consegue
esgotar todos os modos do Espírito.

A perfeição no modo de ser corpóreo


O modo de Ser do Espírito e o modo de Ser da alma pertencem a ordens do
ser diferentes. Os modos do ser ou órgãos da existência se diferenciam pelo modo
pelo qual os seres que pertencem a cada uma das ordens alcançam a sua perfeição
própria. Por exemplo: a perfeição corpórea. Como um corpo alcança a sua perfeição
própria? Qual é a perfeição de um corpo ou objeto corpóreo? A perfeição de um
objeto corpóreo é simplesmente a sua presença diante de outros corpos. A perfeição
do ouro é reagir como ouro diante de outros corpos minerais. A perfeição do ouro é
uma fórmula de reações diante de outros corpos.

Aluno: Qual é o sentido da perfeição neste caso? A essência de um


corpo o faz se comportar como ele mesmo.
Professor: Como ele mesmo: o ouro não reage diante dos outros corpos
do ambiente como se ele fosse ferro. É nesse sentido que se pode dizer com os
escolásticos que os corpos não possuem defeitos.
Qual é o limite do corpo? A perfeição dele não se realiza por si mesmo.
Um corpo somente existe como corpo porque ele está diante de outros corpos
diante dos quais ele reage como aquela espécie de corpo. Em um certo sentido,
um pedaço de ouro é ouro porque existem outros metais diante dos quais ele se
apresenta como ouro, diante dos quais ele reage exatamente como ouro.
Aluno: Mas não é por causa de alguma coisa na estrutura dele como
ouro?
Professor: Sim, mas essa estrutura é meramente potencial se não há
outro corpo que não seja o ouro.
Aluno: Então se não houvesse outro corpo, ele seria o quê?
Professor: A atualização da realidade ouro somente existe quando há
um outro corpo diante do outro. Para entendermos vamos relembrar a noção
de corpo que foi apresentada em uma das aulas anteriores.

O conceito corpo
O que é um corpo? Quais são as notas que caracterizam um corpo? Todos os
corpos são sensíveis? Tudo que é corpóreo pode ser captado pelos sentidos?

Aluno: O que você está querendo dizer com


“sensível”?
Professor: Algo captável por um dos cinco
sentidos.
Aluno: Eles são físicos?
Professor: Físico é uma coisa, sensível é outra. Mas quando
introduzimos a nota “físico”, isso problematiza sobre o objeto, mas não
explicita o que ele é. Porque a gente teria que se perguntar “o que é físico?”,
mas a explicação precisa ser mais simples do que o objeto e não [deve ser]
mais complexa. A primeira pergunta que a gente faz quando queremos
definir um objeto está lá nas “Categorias” de Aristóteles: ou é uma espécie de
objeto capaz de existir nele mesmo ou é um objeto que existe em outro. A
cor vermelha é alguma coisa que existe em outra coisa que não é a cor
vermelha. Para que exista a cor vermelha é preciso que exista alguma coisa
que tenha cor vermelha. A mesma coisa com “30 gramas” ou “30
centímetros”: é preciso que exista alguma coisa que tenha “30 gramas” ou
“30 centímetros”. Essa coisa mesmo não é grama, nem centímetro, nem cor.
Porque a massa, o tamanho e a cor são acidentes que existem em uma outra
coisa. São características ou atributos de uma outra coisa que, por sua vez,
não seja atributo. Eu posso dizer: “homem é atributo de Guilherme” ou
“Guilherme é homem”, mas Guilherme não é atributo de nada. Ele é um
sujeito último de atributos. Para que haja atributos é preciso existir um
sujeito último. Então, a primeira pergunta sobre corpos é: “os corpos são
sujeitos ou são atributos?” Pelo que tudo indica, os corpos estão sujeitos.
Eles entram, então, na categoria de substância. Um corpo é uma coisa que
existe nele mesmo. Ele não existe em outro ou como atributo de outro.
Assim nós já temos um gênero. Sabemos que tipo de coisa é um corpo. É
claro que existem também substâncias ou sujeitos últimos que não são
corpóreos, mas espirituais. Mas de qualquer jeito existem alguns sujeitos que
são chamados de corpos. Eles possuem alguns atributos, mas o próprio
sujeito é corpóreo. Para entendermos o que é corpo, basta entender o
seguinte: “quais são os atributos que necessariamente precisam estar
presentes em um sujeito para que ele seja corpóreo”? Um deles é tamanho.
Um sujeito incorpóreo não possui tamanho. Qual é o tamanho de uma alma,
de um anjo ou de Deus? O atributo tamanho é descabido em relação ao
sujeito incorpóreo, mas é necessário ao sujeito corpóreo. Não tem um
sujeito corpóreo que não tenha um tamanho definido.

Mas se falarmos que “corpo é uma substância1 com tamanho”, isso é suficiente?
Essa é a única característica que é permanente nos corpos e que se pode observar
em todos os corpos?2 Não é.

Aluno: O que falta? Massa? Textura?


Professor: Faltam várias outras condições. Como as que captamos
(massa, cor, peso, etc)? Tudo isso a gente capta por uma propriedade dos
corpos: eles podem ser modificados por outros corpos. Todo corpo pode ser
alterado por um outro corpo.
Aluno: Você pode dar um exemplo?
Professor: O ar que está nesta sala pode ser modificado pela
configuração dos outros objetos que estão nela. Um corpo pode empurrar
outro corpo, deslocando-o; também pode fundir, aquecer, esfriar, etc. Tudo
isso são modificações de uns corpos sobre outros. E por mais que eu procure,
não encontro um corpo que não possa ser modificado ou seja incapaz de sofrer
uma modificação. Mesmo que eu encontre um corpo que não possa ser
quebrado, ele também não pode ser aquecido ou deslocado? Então, uma
característica também universal dos corpos é que todos eles estão sujeitos a
mudanças. Então, já possuímos mais de uma nota sobre os corpos: são
substâncias mutáveis. Todos eles podem mudar.
[Aluno faz um comentário breve.]
Professor: Atualmente se conhece mais dados sobre os corpos e mesmo
assim ainda não se encontrou nenhum corpo que seja incapaz de mudança.
Então, a possibilidade de ser mudado por um outro corpo faz parte da
estrutura intrínseca de um corpo.

Então, acrescentamos uma terceira nota sobre os corpos:


1
Nesta aula substância está significando um sujeito último
2
Busca-se os atributos permanentes, universais e objetivos. Conferir aulas anteriores sobre “tópicos” e o
procedimento dialético
1) Eles são substâncias ou sujeitos de atributos e não apenas
atributos de outros seres;
2) Eles são mutáveis;
3) Eles possuem tamanho;

Quantidade contínua e Quantidade discreta


Vamos tentar entender esta última nota: tamanho. Tamanho é um tipo de quê?

Aluno: De quantidade.
Professor: Por exemplo, o número é outro tipo de quantidade. Os
números; 1, 2, 3 e 4 significam um tipo de quantidade, mas não significam
necessariamente um tamanho. Então, por exemplo, posso falar de duas ou três
mil almas, mas isso não significa tamanho nenhum. Qual é a diferença entre
esse tipo de quantidade e o tipo de quantidade que é o tamanho? Por exemplo:
esse maço de cigarro é um só, mas ele possui tamanho. Qual é a diferença
entre a quantidade que é o tamanho desse maço de cigarro e o número de
cigarros que ele possui? São dois tipos de quantidade bem diferentes.
Vamos procurar as características em comum entre estas duas espécies
de quantidade, pois, assim, pode ser que as características diferentes se
destaquem na nossa mente. Uma característica comum das quantidades é a
multitude. Toda quantidade envolve muitos. Envolve uma diversidade das
partes. Para que isso tenha um número é preciso que tenha coisas diversas.
Para que isso seja um tamanho, é preciso que isso tenha partes que são
diversas. Por exemplo: essa parte aqui não é esta aqui. Esta outra não é essa
aqui. Mas a alma também tem partes: imaginação, inteligência, vontade, etc.
Qual é a diferença entre as partes da alma e as partes disto aqui? O ser
de uma parte da alma está no ser da outra. No tamanho, o ser de uma parte
não está no ser desta. Se eu eliminar esta parte, a outra continua existindo do
mesmo jeito. Mas na alma, se eu eliminar a sua imaginação, a sua alma inteira
mudou. Se eu eliminar a sua imaginação, eu simultaneamente tirei algo da sua
inteligência, dos seus sentimentos, da vontade e de tudo mais. Isso significa
que o ser da imaginação estava também na inteligência, no sentimento, na
vontade, etc. Não há como eliminar uma das partes e as outras continuarem as
mesmas. Mas no tamanho não é assim. Posso tirar uma parte do tamanho e a
outra continua sendo o que era antes.
Aluno: É o “reino da quantidade”.3 Não altera a qualidade.
Professor: A característica da quantidade é justamente esta: o ser das
partes não está nas outras partes. Do mesmo jeito que aqui tenho três maços de
cigarro e, ao tirar um deles, os outros continuarão sendo a mesma coisa. O ser
de cada parte não interferiu no ser da outra parte. A característica da
3
No sentido de René Guénon: conferir “O reino da quantidade e os sinais dos tempos”.
quantidade é que possui “parte fora de partes” ou o ser de uma parte não está
no ser de outra parte. É como se as partes estivessem fora das outras.
Então, talvez a diferença entre essas duas espécies de quantidade, o
número e o tamanho, esteja na relação entre as partes. É muito simples: aqui
tenho três maços de cigarro, que estão juntos. Se eu separá-los, continua sendo
três. O limite de uma parte é independente da outra. Eles são três juntos ou
separados. Agora vamos observar o tamanho; dívida imaginariamente este
maço de cigarro no meio. Você teria um plano dividindo o comprimento do
maço em duas partes. Mas este plano pertence à metade de lá ou de cá? Ele
pertence a esta parte ou àquela? Pertence a duas ao mesmo tempo. No número
não é assim, pois o início das partes é independente da outra. Então, podemos
dizer que tamanho é a quantidade cujas partes possuem seus limites em
comum. E número é a quantidade cujas partes possuem limites separados ou
independentes ou próprios.

As mutações dos Corpos


O que isso quer dizer para o nosso conceito original de corpo? É simples:
porque na ideia tamanho já captamos duas notas distintas: a nota extensão e o quê
mais? Um corpo é simplesmente uma substância mutável e extensa? Não, porque o
corpo é uma substância mutável de extensão limitada. A noção de tamanho implica
simultaneamente na noção de extensão e na noção de limite desta extensão.
Então, eu posso dizer com bastante precisão que corpo é “a substância
mutável de extensão limitada”. Por mais que você procure, você nunca encontrará um
corpo que não seja isso. Ele pode ser muitas coisas ainda, mas ele precisa ser isso
também. E, por outro lado, você nunca encontrará uma coisa que não seja corpo e
seja uma substância mutável de extensão limitada.
É fácil provar que os corpos têm extensão limitada porque existe mais de
um corpo.4 Se existisse um corpo de extensão ilimitada não existiria mais nenhum
corpo porque não haveria lugar para a extensão de um segundo corpo.
Agora que nós já sabemos o que todos os corpos são. Imagine um corpo
que seja apenas isso e não tenha mais nenhuma característica. E que esse corpo se
reduza a uma substância mutável de extensão limitada. Se ele é mutável, o que se
pode mudar em um corpo assim?
Vamos pensar: somente é possível mudar coisas que estejam sujeitas à
contrários. Por exemplo: se eu tenho um corpo vivo, esta noção de vivo possui um
contrário, que é morto. Um corpo vivo talvez possa ser mudado no seu contrário
que é um corpo morto. Para que haja mudança, é preciso que haja um par de
contrários e um sujeito que é capaz de um contrário ou do outro. Posso mudar um
corpo de verde para vermelho. Posso mudá-lo de cor. Por quê? Porque a noção de
“não-verde” corresponde a alguma realidade positiva, que não é verde: seja azul,
amarelo ou qualquer outra cor. E nesse sentido, verde possui um contrário real.
Possui muitos contrários: pois existem muitas cores reais que são “não-verde”. Mas
os contrários não podem existir na mesma coisa, ao mesmo tempo e sob os mesmos

4
Por um argumento que é uma espécie de “reductio ad absurdum”.
aspectos.5 Um corpo não pode ser verde e não-verde ao mesmo tempo [e nas
mesmas condições]. Para que haja mudança, é preciso existir um par de contrários,
mas simultaneamente deve existir a impossibilidade daqueles contrários estarem ao
mesmo tempo no mesmo sujeito.
Então, se eu quero descobrir como uma substância mutável de extensão
limitada pode ser mudada, tenho que descobrir nestas notas: “substância”,
“mutável”, “extensão” e “limitada”, quais são as notas que estão sujeitas à contrários
ou podem existir de maneira contrária. Por exemplo: peguemos nossa substância:
será que podemos mudar um corpo de substância para não substância? Um corpo
pode deixar de ser substância e tornar-se atributo de outra coisa?

Aluno: Não.
Professor: Não pode, porque a única espécie de ser positivo ou real que
não é substância é o atributo, mas este não é o contrário da substância, pois
somente existem na substância. Então, descobrimos algo sobre os corpos: a
substância corpórea é indestrutível.
Aluno: Não há nada contrário à substância corpórea?
Professor: Não há, porque não existe o contrário da substância. Esta
não tem contrários. Então, não é nessa nota que o corpo é mutável.
Aluno: Seria impossível transformar algo corpóreo em algo
incorpóreo?
Professor: É impossível transformar algo corpóreo em algo
incorpóreo, exatamente. O único modo de fazer essa mudança seria mudar
a ordem a que esta substância pertence, o que não é possível. Nunca se
poderá transformar um corpo em uma alma e vice-versa.
Posso mudar um corpo na sua mutabilidade?
Aluno: Ele ficaria imutável. E existiria um corpo incapaz de mudança, o
que já descobrimos que não há. Logo, um corpo não pode mudar na sua
mutabilidade.
Professor: Exatamente, é contrário à própria noção de corpo. Então,
tentar encontrar as mudanças a que os corpos estão sujeitos na substância ou
na mutabilidade é simplesmente procurar algo que não existe. Sobrou apenas
uma terceira nota: extensão limitada. Posso mudar os corpos em extensão.
Aluno: Posso diminuí-los ou esticá-los.
Professor: Exatamente! Posso fundi-lo com outro semelhante para que
ele se torne maior, fundindo, por exemplo, um pedaço de ferro com outro.
Mas não posso fazer muito mais do que isso.

As qualidades passivas dos corpos: umidade e secura


E o “limite” da extensão? Existe mutabilidade no limite da extensão. O limite
da extensão é “total”: abarca o todo do corpo completamente. Então, o próprio limite
não pode se tornar maior ou menor, uma vez que sempre acompanha o todo. Mas
existem diversas espécies de limites nos corpos. Por exemplo: o ar possui uma espécie
5
Princípio da não-contradição.
de limite. Esta mesa possui outra [espécie de limite]. O limite da mesa pode mudar a
forma do limite do ar, mas o limite do ar não pode mudar a forma do limite da mesa.
Ora, se existem dois tipos de limite e eles são contrários, é possível que um
mesmo corpo sujeito a dois contrários, mude de espécie de limite. O mesmo corpo
que, em determinadas circunstâncias, [possuía um limite sólido ou] era sólido pode, em
determinadas circunstâncias, não ser sólido. Há uma espécie de limite que possui
figura própria e há outra espécie de corpos que não tem [limite com] figura própria,
mas possui a forma daquilo que está perto de si. Por essa característica, posso mudar
os corpos, aumentando sua extensão ao juntá-lo com um semelhante ou diminuindo
sua extensão ao provocar sua divisão. E, de fato, os corpos estão constantemente
sofrendo e provocando essas mudanças uns nos outros. Isso é algo que se testemunha
constantemente na natureza. E eles também podem mudar a forma como outro corpo
possui esta figura. Um corpo, em determinada circunstância, possui uma determinada
figura que lhe é própria, determinada por si mesmo. E em outra circunstância, quando
é, por exemplo, superaquecido, ele pode passar a não ter figura própria, mas ter uma
figura que é determinada pelo seu meio.

Aluno: Como o gelo [que se derrete].


Professor: Por exemplo! A água é um dos corpos que pode mais
facilmente ser observado em suas mudanças nesse sentido: pode mudar de gelo
para água e desta para vapor [e vice-versa]. Então é simples: se os corpos são
mutáveis e podem ser modificados por outros corpos, ele precisa ter uma
natureza que determina a amplitude e a circunstância dessas mutações em si.
Por exemplo: se quero que o gelo fique líquido, preciso de uma determinada
circunstância ambiental. É exatamente a mesma circunstância ambiental de que
se precisa para que o ouro fique líquido? É diferente. Mas ambos podem mudar
de sólido para líquido e vice-versa.
Aluno: Por que não é a mesma?
Professor: Porque as condições de temperatura e pressão são diferentes
[para que a água e o ouro passem do estado sólido para o líquido].
Aluno: Porque eles possuem “naturezas”6 diferentes?
Professor: Exatamente.
Aluno: Mas é o mesmo caminho [para que ambos mudem de estado]?
Professor: É o mesmo caminho. Exatamente: tinha figura própria e não
tem mais ou não possuía [figura limitada por si mesmo] e agora tem.
[Aluno indica mais um exemplo.]
Professor: Isso significa que todos os corpos possuem uma disposição
passiva para ficar sólido, líquido ou gasoso. Essa disposição é ativada pelo
ambiente. Por um conjunto de fatores que estão fora de si. Mas a disposição
está nele. [Em caso contrário,] se estivesse fora dele, todos os corpos se
tornaram sólidos, líquidos e gasosos diante da mesma circunstância exata.
Aluno: Em parte o princípio é intrínseco e, em parte, é extrínseco.7

6
No sentido de “princípio intrínseco de repouso e movimento” como o professor Luiz explicou em outras aulas [N.T.].
7
Ou, em parte, há fatores emergentes, e, em parte, fatores predisponentes, seguindo o vocabulário de Mário
Ferreira dos Santos em “Filosofia e Cosmovisão” [N.T.].
Professor: Exatamente. Ele possui um princípio passivo que diz: “se a
circunstância for assim, serei líquido, mas em outra circunstância ‘tal’, serei sólido”. Mas
eles mesmo não podem se determinar independentemente das circunstâncias.
A segunda coisa é a fusão e a fissão. Eu posso dividir em várias partes
ou unir diversas partes para que formem uma única. Isso muda o tamanho dele.
Muda a extensão completamente. O tamanho é variável [seja do todo ou das partes]:
cem grama de ferro é ferro e um quilo continua sendo ferro. A natureza do objeto
não mudou, mas apenas seu tamanho.
Essa disposição passiva para se tornar sólido, líquido ou gasoso é uma
disposição que torna o corpo sujeito a duas qualidades contrárias: ou ele possui, em
determinada circunstância, a qualidade de determinar a sua própria figura ou ele não
possui essa capacidade e, pelo contrário, possui a capacidade de se adaptar às figuras
dos outros corpos. São duas qualidades diferentes e contrárias.
Aluno: Como no exemplo da mesa e do ar.
Professor: A essa primeira qualidade, de determinar a própria figura,
Aristóteles chamava de secura. E à qualidade contrária, ele chamava de
umidade. Sei que a gente usa essas palavras em um sentido um pouco
diferente.
Aluno: Mas faz sentido!
Aluno: Poderia-se usar solidez e liquidez.
Aluno: A secura é a qualidade própria do objeto que pode determinar a
sua própria figura?
Professor: Exatamente.
Aluno: Se alguém jogar água no vaso, este determinará a figura da água
[pois esta é úmida, enquanto o vaso é seco, no sentido aristotélico].
Professor: A água não determinará a figura do vaso.
[Aluno compara a umidade aristotélica com a liquidez da economia.]
Professor: E mais ainda, todos os corpos possuem estas propriedades,
mas todos possuem a capacidade de mudar de uma para outra. Nenhum
corpo é sólido em todas as circunstâncias possíveis em que ele pode se
encontrar. Existe alguma circunstância em que ele perderá essa propriedade
e assumirá a contrária.
Aluno: Por mais difícil que seja!
Professor: Exatamente.
[Aluno comenta sobre a passividade dessas propriedades.]
Professor: A secura e a umidade são justamente as propriedades
passivas dos corpos. Um corpo simples, por si mesmo, não muda de uma
coisa para outra, mas é mudado por um outro. É mudado pelo conjunto dos
outros corpos como um todo [ou pelo seu “meio”]. Vocês estão entendendo
o que significa dizer que “um corpo somente existe tal como ele é [se estiver] diante de
um outro corpo”.
Então, por exemplo, vamos imaginar um imenso universo vazio no qual
há apenas uma pedra. Ela é sólida, não é? Mas a pedra, enquanto pedra,
enquanto aquele mineral [específico], poderia não ser sólido. Não há nada na
natureza dela que a proíba de deixar de ser sólida. Mas ela nunca poderia
realizar essa possibilidade sozinha. Algum outro corpo teria que intervir para
que ela realizasse essa possibilidade.

As qualidades ativas dos corpos: calor e frieza


Mas existe um outro par de contrários a que todos os corpos estão sujeitos.
E este é um par de qualidades ativas ou de forças ou virtudes. Esse par de
qualidades é facilmente conhecido quando se quer transformar gelo em água. O que
alguém faz quando quer transformar gelo em água? Esquenta a água! O que
acontece quando você esquenta o objeto?

Aluno: Recebe o calor.


Professor: O que acontece quando um corpo recebe o calor?
Aluno: A forma dele muda.
Professor: Por que a forma muda?
Aluno: As partes separam-se.
Professor: Exatamente. Quando você esquenta um corpo as partes dele
tendem a se separar. Há uma tensão no sentido da separação. Mas um corpo
se separa com o mínimo calor que o aquece?
Aluno: Separa-se muito pouco [se o calor for mínimo].
Professor: Isto quer dizer que todo corpo possui em si também uma
força pela qual ele mantém as partes unidas. E essa também é uma força
ativa. Esta é uma tensão de coesão no corpo. E essa tensão de coesão é
contrária à tensão de separação. As duas não podem coexistir no mesmo
corpo. Se você aumentar a tensão de separação, a tensão de coesão será
superada ou perdida. Então essa tensão de coesão era chamada de frieza por
Aristóteles ou a tensão que um corpo possui para manter as suas partes
unidas. E a tensão para a separação das partes ele chamava de calor.
Aluno: Tudo isso é para chegar na diferença entre Espírito e alma?

As quatros categorias de corpos


Professor: O que isso quer dizer? Como os corpos têm as
possibilidades de pares contrários, eu posso classificá-los em quatro
categorias. Um corpo não pode ser simultaneamente frio e úmido. Então já
há duas espécies de corpos: os secos e os úmidos. Mas os corpos também
não pode ser simultaneamente quente ou frio: pode haver nele o predomínio
da tensão de coesão ou de separação.

Aluno: Mas não há problema em um mesmo corpo ser


simultaneamente e nos mesmos aspectos ser quente e seco?
Professor: Não. E também não há problema em ser quente e úmido,
nem frio e seco, nem frio e úmido.
Aluno: São os quatro elementos ou quatro categorias.
Professor: São quatro categorias.Cada uma delas combina as
qualidades que em si mesma não são contrárias. Como essas categorias ou
qualidades dependem da interação entre os corpos, todo e qualquer corpo
pode estar em qualquer uma dessas categorias em circunstâncias diferentes.
Todas essas quatro categorias afirmam qualidades que são relações entre os
corpos. Então, por exemplo, se eu colocar dois corpos quaisquer juntos,
pode ser que um esteja exercendo sobre o outro uma tensão de aquecimento
e este pode estar exercendo no primeiro uma tensão de esfriamento.
Enquanto um tenta separar as partes do outro, o outro se esforça para
manter unidas as partes daquele. Isso pode acontecer independente do
estado deles, sejam sólidos, líquidos ou gasosos. Então, posso aproximar dois
pedaços de ferro, um quente e um frio. Os dois são sólidos e secos, mas um é
quente e frio. Um causa tensão de separação e o outro causa tensão de
coesão. Também poderia juntar duas massas de ar: uma quente e uma fria. A
primeira estaria esquentando a outra e essa estaria esfriando a quente. Então
é simples: como aprender a distinguir uma espécie de corpo da outra espécie?
Cada espécie de corpo possui uma fórmula própria de combinação dessas
quatro características. Se, por exemplo, tivéssemos aqui um laboratório que
fosse um sistema fechado e se mantivermos nas mesmas condições regulares
de temperatura e pressão. Se colocarmos um pedaço de ouro, este ficará em
um equilíbrio tensional de coesão e separação diferente, por exemplo, de um
pedaço de gelo. Suponha que esse recipiente, [no laboratório], seja mantido a
10oC de temperatura. O ouro se adapta a essa temperatura, mas na sua
fórmula de coesão e separação ainda predominará a força de coesão. Se eu
colocasse um pedaço de gelo, a essa mesma temperatura [de 10oC] iria
predominar a tensão de separação.
Isso quer dizer que cada espécie de corpo possui a sua fórmula própria
de equilíbrio dessas quatro propriedades. E a perfeição daquela espécie
corpórea é justamente a “existenciação” dessa fórmula. Existir para um
corpo é existenciar essa fórmula. É mudar sempre de acordo com essa
fórmula e não com outra. Um corpo somente pode se realizar como corpo
sendo alterado por outros corpos. A perfeição [de completude] de existência
completa de um corpo em todas as condições de secura, umidade, calor e
frieza somente pode acontecer se houver outros corpos interagindo com ele.
O ciclo completo de existência do ouro somente existe se houver outros
corpos interagindo com ele. Um pedaço de qualquer corpo estaria
aprisionado a uma modalidade de seu ser e nunca poderia realizar as outras
modalidades se não existissem outros corpos.

A perfeição própria dos modos de ser sujeitos a pares de


qualidades opostas
Isso já nos oferece uma base para clarear a ideia de perfeição. A perfeição
de um ser ocorre com a plena perfeição dos seus modos de ser. Então, por exemplo,
nós temos vários modos de ser. Um dos nossos modos é ter vários sentimentos em
relação às coisas que nós observamos. Podemos sentir agrado, desagrado, tristeza,
alegria, apego, desapego, aversão, etc. Enquanto não vivemos plenamente a
capacidade de sentir ou ter sentimentos, não realizamos a perfeição da nossa vida
afetiva. Como a vida afetiva, assim como a atividade corpórea, está sujeita a
atividades contrárias, pois não se pode ser feliz e infeliz ao mesmo tempo, alegre e
triste com a mesma coisa ao mesmo tempo, o ser humano que nunca foi triste é
incompleto. Ele não realizou plenamente o seu ser. Existe algo do ser dele que ele
desconhece. Mas também nós temos alguns modos de ser que não são sujeitos à
contrários reais. Então, por exemplo, a inteligência. Qual é o contrário do
compreender ou do entender?

Aluno: Não entender.


Professor: Mas o não entender não é um modo de ser positivo, sendo
apenas a privação do entender [que por sua vez é um modo de ser positivo]. Mas ser
úmido não é apenas não ser seco, é [realmente] uma outra qualidade. Entretanto,
não entender é apenas não entender. Percebam que nisso o modo de ser que da
inteligência é completamente diferente da afetividade, porque sentir tristeza é tão
sentir como sentir alegria. É um sentimento tão real quanto o sentimento contrário.
Tanto é assim que existem seres e circunstâncias que merecem a nossa tristeza. A
tristeza também é um modo de perfeição. Se alguém vê [Nosso Senhor Jesus] Cristo
sendo crucificado é para sentir-se bem e achar aquilo uma maravilha? Qual é o
sentimento perfeito em relação a esse acontecimento? É uma tristeza porque essa
manifesta a sua compaixão. A tristeza é a sua participação naquele sofrimento.
Existem coisas diante das quais apenas os maus ou imperfeitos alegram-se.8
Aluno: E em relação à vontade?9
Professor: A ausência de vontade [também] é apenas uma privação, mas a
vontade também é sujeita a atos contrários porque a vontade também pode amar ou
odiar. Existem coisas que são odiosas, diante das quais a vontade própria é o ódio.10
Depois chegaremos na vontade, mas, por enquanto, o importante é a percepção de
que existem modos de ser que estão sujeitos a qualidades contrárias e que a
plenitude desse modo de ser é alternar de uma para outra e não permanecer apenas
em uma delas.

A perfeição dos vegetais e dos animais


Professor: Agora vamos tratar da perfeição do vegetal. Um vegetal
também é um corpo, mas ele não realiza a sua perfeição comportando-se apenas
como um corpo qualquer. A simples mudança daquelas quatro qualidades que
estudamos não realiza a perfeição de um vegetal. Por exemplo: a perfeição de uma
macieira não é realizada apenas porque ela alterna entre calor e frieza ou secura e
umidade. A perfeição da macieira é de uma ordem diferente: encontra-se na ordem

8
Como ficou patente no filme “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson.
9
Esta potência da alma já foi explicada pelo professor Luiz em uma das aulas anteriores.
10
Como se poderia dizer inspirado em Santo Agostinho: todos amam e odeiam, mas nem todos amam e odeiam
as coisas que respectivamente merecem ser amadas e odiadas. Algumas vezes amamos o que deveríamos odiar e
odiamos aquilo que deveríamos amar.
reprodutiva. Se uma macieira não se reproduzir, ela não alcançará a sua perfeição.11
Todas as outras modificações do ponto de vista da macieira estão subordinadas à
sua função reprodutiva. A macieira assimila elementos do ambiente corpóreo para
transformar em outra macieira. A macieira se alimenta. Ele se nutre dos minerais
para crescer. E cresce para atingir a sua maturidade reprodutiva, seja sexuada ou
assexuada, e produzir outras macieiras. A diferença de perfeição entre duas macieiras
está nas suas capacidades reprodutivas.
E a perfeição de um animal? Este é o exercício da capacidade de procurar
um ambiente confortável. Os animais têm como característica procurar um
ambiente que lhes seja agradável. Como, em certo sentido, os animais também são
vegetais, pois também se reproduzem, eles também possuem as potências
vegetativas, eles também procuram realizá-la, mas isso não lhe basta. Inclusive isso
no animal está subordinado ao prazer.
Então, existe uma diferença crucial entre a perfeição dos animais e vegetais
e a perfeição dos corpos em geral. A perfeição daqueles lhes é mais íntima. O
princípio ativo dessa perfeição está mais ligado a ele mesmo do que ao ambiente.
Este apenas oferece a oportunidade, mas são os próprios animais e vegetais que
realizam a perfeição que lhes é própria.12 No ser humano também é assim.13
Aluno: Mas os seres humanos não fazem isso com impulsos diferentes
dos animais?
Professor: Com impulsos diferentes porque a perfeição do animal é
uma e a do ser humano é outra. E o impulso do vegetal é outro. Entretanto, a
característica que distingue vegetais, animais e seres humanos dos corpos em
geral é que neles mesmos está o princípio ativo da própria perfeição.
Enquanto os corpos possuem apenas um princípio ativo, dependendo dos
outros para realizar, uma vez que esses efetivaram no corpo [a perfeição
deste].
Com isto quero dizer que vegetais, animais e seres humanos pertencem a uma
ordem do ser diferente dos corpos em geral. Os corpos pertencem à ordem do ser
que são passivos em relação à sua perfeição. Um corpo somente pode ganhar a
perfeição que ele irá perceber. Na outra ordem do ser, os vegetais animais e seres
humanos recebem uma perfeição do ambiente, mas somente isso não é suficiente
para eles, pois não realiza o que ele quer. Ele mesmo precisa intervir e realizar a sua
própria perfeição.
Qual é a outra característica comum aos animais, vegetais e humanos?
Simples: eles podem existir e não alcançar a própria perfeição.
Aluno: Podem frustrar.
Professor: Isso quer dizer que, embora eles sejam o princípio ativo da
própria perfeição, o ato da perfeição é distinto do ato de existir.
Aluno: Não basta existir para chegar à própria perfeição. A perfeição
requer algo dele mesmo [além de simplesmente existir].
11
Como a figueira estéril condenada por Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho.
12
Voltando ao tema dos fatores emergentes e predisponentes.
13
Até mesmo porque o ser humano também é um animal.
A noção da Alma
Professor: Exatamente. Por isso que Aristóteles dizia que os vegetais,
animais e seres humanos têm alma. Alma é o princípio ativo de perfeição do
próprio ser. Não são os componentes químicos do vegetal que causam sua
reprodução, mas é a sua alma vegetativa. Do mesmo modo, não são os
elementos químicos dos animais que causam a sua perfeição, mas é a alma
sensitiva. O mesmo vale para o ser humano: não são seus componentes
químicos que causam a sua perfeição.
Aluno: Por isso que o ser humano não possui a mesma [espécie de]
alma dos animais [em geral].
Professor: A própria palavra alma já significa a raíz ou sede dos
impulsos. Ela significa o princípio ativo ou princípio de atividade.
Entretanto, todos eles possuem em comum o fato de possuírem o princípio
ativo [da própria perfeição] ou alma.
Perceba que quando falamos alma não nos referimos [necessariamente]
a uma alma imortal. Alma e imortalidade são duas categorias diferentes.
Então, por exemplo, um vegetal pode assimilar qualquer mineral em qualquer
circunstância para se reproduzir? Não, alguns minerais, em algumas
circunstâncias, poderão provocar a sua destruição. [Alguns minerais] serão
venenosos para alguns vegetais.

Por outro lado, qual é a perfeição da alma vegetal? Criar um outro vegetal.
Apesar de ser uma alma ou um princípio intrínseco de perfeição, a sua ação se
efetiva sobre a corporalidade. Ocorre em uma situação que envolve ou implica
necessariamente a corporalidade. Se existisse uma alma vegetal sem corpo, esta não
poderia realizar sua perfeição ou reproduzir-se. Embora seja um princípio intrínseco
ativo, somente pode operar diante de um corpo. Um “espírito de macieira” não
pode, por si mesmo, produzir outro “espírito de macieira”.
O mesmo vale para a alma sensitiva dos animais. Embora seja a afetividade
própria do animal que lhe diga o que é agradável e desagradável, estas qualidades se
apresentam a ele por meio de outros corpos que se mostram agradáveis ou não. Se
não existissem esses outros corpos, o animal não poderia perceber o que é agradável
ou não, nem procurar a sua ambiência [que permitisse realizar a perfeição de sua
alma sensitiva].
Então são almas, mas são almas muito ligadas ao mundo corpóreo, pois a
operação delas somente pode ser realizada no mundo corpóreo. A mesma coisa vale
para nós, seres humanos, em relação às nossas potências vegetativa e sensitiva.

A ordem dos seres espirituais


Existe uma ordem de seres que não podem realizar a própria perfeição, são
os corpos [minerais]. E existe uma outra ordem de seres que podem realizar a
própria perfeição, mas esta é distinta do ato de existir. E existe uma outra ordem de
ser que possui o princípio intrínseco de se sua própria perfeição e esse princípio é a
sua própria existência. Pelo simples ato de existir, esses seres são perfeitos. Isso é o
espírito. Estes são seres espirituais. A perfeição deles está no próprio ato de
existência. A essa ordem de ser, pertence a inteligência. Este é um modo de ser
espiritual.
Aluno: Não tem nada a ver com a alma?
Professor: Não é bem assim. Pode haver alguma relação entre a alma e a
inteligência porque pode haver um modo de ser que combine essas duas
formas de existência.
[Aluno pergunta sobre a relação entre essa ordem de ser espiritual e o
Espírito Santo.]14
Professor: Agora estou apenas diferenciando a natureza corpórea da
natureza anímica da natureza espiritual. A primeira delas não possui força
ativa para alcançar a própria perfeição. Uma natureza anímica, por sua vez,
tem força ativa para alcançar a própria perfeição, mas a alcança por um ato
distinto e posterior à sua própria existência. Uma alma precisa existir
primeiro e alcançar a sua própria perfeição depois. E a natureza espiritual é
uma coisa que é a força ativa para alcançar a própria perfeição. Logo, para
ela, existir é ser perfeito. E estamos complementando afirmando que a
inteligência é um ser desta ordem.
Aluno: É perfeita pelo fato de existir.
Professor: Como não há meio termo entre ser e nada, não há meio
termo entre conhecer e não conhecer. Todo ato de conhecer, enquanto tal, é
ato de conhecer perfeitamente. A inteligência é perfeita no seu primeiro ato
de conhecer. Ela já é perfeitamente inteligente.
[Aluno comenta sobre a relação entre Inteligência e Espírito Santo.]
Professor: Exatamente, isso quer dizer que a Inteligência é o próprio
Espírito Santo em você, em mim, nele, etc. Ela não é outra, senão o Espírito Santo.
Aluno: E a personalidade, em relação à inteligência?15
Professor: É simples: a sua alma, além da presença da inteligência,
possui várias outras coisas. Você possui várias outras coisas que lhe
diferenciam das outras pessoas: seu temperamento, seu sentimento, sua
imaginação, etc.

A imortalidade da Alma: céu e inferno


Professor: Alguém poderia se perguntar: esse conjunto de modo de
ser, que é a sua alma, é imortal? A sua pessoa como um todo, descartada a
sua personalidade16 pode ser destruída? O seu corpo, enquanto corpo, possui
uma tendência tanto para se organizar como um organismo humano como
tende para outras formas [que também são possíveis ao corpo]. E a sua
alma? Em que medida ela é imortal? Somente na medida em que ela é um

14
O Espírito Santo é o próprio Deus, na Santíssima Trindade com o Pai e o Espírito Santo.
15
O aluno parece estar se referindo à seguinte questão: Como aquela é separada em cada um se essa é a mesma
para todos?
16
Pois já se sabe, desde o começo, que o corpo é mortal.
conteúdo da sua inteligência.17
[Aluno pede para o professor retomar a explicação acima.]
Professor: Vamos listar todas as características que lhe distinguem para
verificar em que medida a sua personalidade é imortal, uma vez que como
“idéia em Deus” tudo é imortal. A resposta para isso18 é sim e não. Isso
depende do seguinte: a sua alma é imortal na medida da perfeição dela. Na
medida em que você é perfeito, ela é imortal. Na medida em que você é
imperfeito, ela é mortal.
Suponha que você tenha uma disposição habitual qualquer, como, por
exemplo, você tenha uma disposição generosa ou mesquinha. Quando você
morrer, a sua inteligência continuará lá, mas não poderá mais ver o mundo
corpóreo porque você via com os olhos e os seus olhos foram destruídos
com a morte. O que você irá ver? O que a sua consciência irá testemunhar?
O seu próprio psiquismo: as qualidades e as inclinações da sua própria alma.
Provavelmente, uma das primeiras coisas que você perguntará depois
de morrer é: “onde está tudo?”.19 E você sentirá a falta de algumas coisas que
você tinha antes. Essa falta pode ser testemunhada pela sua inteligência.
Suponha que a forma ou as qualidades distintivas da sua psique eram
proporcionadas aos corpos que você observava. Isto é, suponha que os princípios
formais das suas qualidades psíquicas estavam nos corpos. Então, por exemplo,
gosto muito de peixe. O princípio formal desse gostar muito de peixe está no
próprio peixe. A causa da existência desse prazer e desse gosto é o peixe. Ora,
quando morrer, não tenho mais peixe. O que acontece com um efeito quando a sua
causa é eliminada? Ele cessa. Então, algum tempo depois de eu estar morto, o meu
gosto por peixe desaparecerá. Inclusive a minha recordação do gosto de peixe
desaparecerá inevitavelmente.
Esta era uma característica distintiva da minha personalidade e ela irá
desaparecer. Se todas as características distintivas da minha personalidade derivavam
de formas corpóreas, todas elas desaparecerão. Sendo assim, tudo aquilo que eu me
identificava, isto é, tudo aquilo que eu chamava de “eu mesmo” e testemunhava em
mim, desaparecerá. E, mais ainda: esse processo de desaparecimento será um
processo de sofrimento porque será um processo de desintegração da minha
personalidade.20
Aluno: Será uma decadência. Esquecerei até das pessoas que amava.
Professor: Esquecerá de tudo [cujo princípio formal de integração na
psique estava vinculado apenas às suas almas sensitiva e vegetativa].
Aluno: E no final, o que sobra?

17
Somente na medida em que a alma humana une-se a algo imortal para realizar a sua própria perfeição.
Somente na medida em que a realização da sua perfeição está vinculada a algo imortal. Somente na medida em
que realmente efetiva a sua capacidade de fazer a sua existência relacionar-se [necessariamente] com algo imortal,
o Espírito Santo ou a Inteligência, para que a sua perfeição seja realizada, como se criasse um vínculo de
dependência da alma com o Espírito. Pois somente assim poderá continuar realizando a sua perfeição depois que
as suas almas sensitiva e vegetativa estiverem desintegradas
18
Para a pergunta seguinte: “a alma humana é imortal?”.
19
Como corresponde, mudando a espécie de “discurso”, a vários esquemas poéticos cristãos, entre os quais o
livro “Marcelino pão e vinho” (Ed. Record, 2002) do premiado José Maria Sanchez-Silva.
20
Isto é, será um “inferno”.
Professor: Por outro lado, suponha que exista uma outra coisa, além do
próprio peixe que eu comia, que seja a raíz formal do peixe. Do mesmo jeito
que a forma de peixe dava a forma que era testemunhada na minha
afetividade, suponha que haja outra forma que origina o próprio peixe.
Aluno: É o ser peixe.
Professor: Suponha que essa outra coisa seja ela mesma imutável e,
portanto, ela é um possível objeto de cognição. Logo, a minha inteligência
pode captar essa coisa. É a essência. Se a minha inteligência captá-la, todas
as formas derivadas estão incluídas na causa.
Isso é o céu! O céu é a captação da raíz formal de todas as coisas21 por
parte das inteligências.
Aluno: A raiz formal não é Espírito?
Professor: A raiz formal é o próprio Deus. Ora, se eu captava essa raíz
formal, essa captação não diminui com a minha morte. Ela tende a aumentar
com a minha morte.
Aluno: Aumenta porque passa a captar todas as formas de ser.
Professor: Exatamente. Se a raíz formal de peixe se tornou um objeto
para a minha inteligência, depois que morrer, não estarei privado da forma
do peixe e do efeito disso na minha psique. E ainda aumentarei isso
infinitamente. Cada vez que a minha inteligência captar essa raíz formal, esta
ampliará o prazer que a minha psique tinha no peixe. E assim minha psique
será imortal porque o seu objeto estará sempre comigo. E a minha
personalidade será imortal porque esse já era um traço do meu ser ou da
minha personalidade, isto é, o “gostar de peixe”.
Aluno: Esse é o estar em Deus.
Professor: Exatamente. Então, a minha personalidade, exatamente
como era nesse mundo, é simplesmente ampliada em proporções
incalculáveis.22
[Aluno pergunta sobre este princípio formal.]
Professor: Não é o gênero [no sentido lógico].
Aluno: É o “realíssimo”!
Professor: Exatamente, é aquilo que concede ao gênero a sua
consistência ontológica.
[Aluno pergunta sobre a relação entre o realíssimo e a essência.]
Professor: A palavra essência, neste contexto, pode ser usada em dois
sentidos. Por uma lado pode ser a “quididade” da coisa, isto é, a natureza à
qual a coisa percebia, como a “natureza de peixe”, por exemplo. Obviamente
estas quididades corpóreas não estarão mais presentes para mim depois da
minha morte. Mas a quididade ou o ser de qualquer ente concreto não se
reduz à sua quididade e à sua acidentalidade, mas a um ato que realiza essa
quididade e essa acidentalidade concretamente. Este ato vem do próprio

21
A qual está no próprio Deus. Conferir o “Sermão da Montanha” no Evangelho: “Buscai primeiro o Reino
de Deus e tudo mais vos será acrescentado”.
22
Como o aumento que ocorre na parábola do Evangelho em que os bens da pessoa fiel e justa eram
aumentados: da administração de cem talentos para a posse de uma cidade inteira.
Deus.
Nesse sentido, essência e realíssimo são as mesmas coisas, porque, nesse
sentido, o ser de cada coisa é uma atividade divina. Existem duas maneiras
de você fazer esse salto, em vida. Uma maneira é você se dedicar a uma vida
de contemplação, dedicando seu ser e seus gostos todos para a
contemplação, o que é extremamente difícil. Uma outra maneira é se o ser
que já seja assim, que já pertença à ordem do realíssimo, se ele já encarar
uma pessoa dessa maneira [como se esta já estivesse na ordem do
realíssimo].
Seria algo muito estranho! Dessa forma, você pode não ter conquistado
a imortalidade; você pode não ter encontrado a raíz do seu ser ou da sua
personalidade no realíssimo, mas suponha que o Cristo faça isso para você.
Ele pode sustentar a sua personalidade no realíssimo depois da morte até
que você seja capaz de fazer isso. Ele pode escolher ver em si mesmo a raíz
da personalidade de alguém e sustentá-la n’Ele mesmo.
Aluno: Mas Ele já não faz isso com todos, enquanto alguns se fecham a
isso?
Professor: Não, Ele não faz isso com todos! Ele mesmo disse: “nem todo
aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus”.
Aluno: Mas e aquele que diz isso [“Senhor, Senhor”] sinceramente?
Professor: Ele mesmo disse: “mas todo aquele que cumpre meus mandamentos”,
isto é, o sujeito que faz todo esforço para cumprir as condições que Ele
estabeleceu para isso, as condições para que você seja um órgão do Ser d’Ele.
[Neste caso], então, Ele faz isso para você.
Aluno: É uma aceitação.
Professor: É um pacto que você faz com Ele. Aluno: É uma dedicação!
Professor: Exatamente.
Aluno: Mas não é somente o livre-arbítrio.23
Professor: Se alguém procurar a raiz disso na Bíblia, verá que se chega a
uma situação imponderável, em que não é possível pensar em uma coisa em
comparação com a outra. Se alguém se perguntar de onde partiu todo esse
processo de salvação, é evidente que veio do próprio Deus. Para começar, foi
Ele que causou a nossa existência. Existe uma raiz em cada ser humano em
que graça e livre arbítrio não se diferenciam. Dessa raíz adiante é que a gente
escolhe um caminho um pouco diferente da graça.

A raiz humana no realíssimo Divino


Aluno: Qual é essa raiz?
Professor: Somente entenderá essa raíz quem tomar a vontade humana
23
O aluno refere-se à relação entre Graça divina e esforço pessoal.
como objeto e entendê-la no realíssimo. Se você contemplar a raiz formal da
vontade humana no realíssimo. Isso não é explicável. Ou você faz isso e
contempla ou não [conseguirá].
No momento exato em que Deus lhe criou ainda não havia diferença
entre você e Deus. Houve um momento na sua existência, um momento
inicial em que você e Deus eram a mesma coisa. Era um momento em que
você não existia e somente havia Deus. No momento inicial da sua
existência, você e Deus eram o mesmo. Você foi simplesmente um modo de
atualidade divina. A marca desse momento permanece durante a sua
existência toda. Se você observar essa marca, não há como dizer se ela é
você ou é Deus. As duas afirmações são descabidas. A raiz de todo e
qualquer ser é simultaneamente criador e criatura, mas a contemplação dessa
raíz é extremamente difícil.
Aluno: Por que é difícil?
[Alunos arriscam algumas hipóteses.]
Professor: É simplesmente por um efeito colateral do próprio ato
criativo. O ato criativo é [como] um ato de exteriorização. Quando você
nasce está nesse impulso de exteriorização [em relação a Deus]. É por isso
mesmo que Deus não espera que você nasça e fique sábio imediatamente.
Ele sabe que não é no primeiro dia de vida que você buscará contemplar a
raiz divina de todas as coisas. Você leva uma vida inteira para reverter esse
impulso. Ou você precisará de uma série de atos para que Ele mesmo reverta
esse impulso. Para que Ele lhe guarde e esse impulso seja revertido após a
morte. É evidente que Ele não faz isso para todos, senão não haveria o
inferno, isto é, não haveria um estado depois da morte que é apenas um
estado de desintegração da personalidade.

Inteligência e Espírito
[Aluno pergunta sobre a relação entre a Inteligência e o Espírito.]
Professor: A Inteligência é o Espírito. Se a inteligência não fosse o
próprio Espírito, o que aconteceria? Quando você morresse, supondo que você
tenha sido um sujeito maximamente imperfeito e entrasse em um processo de
desintegração da personalidade, em certo momento a sua personalidade iria
apagar e você como personalidade iria deixar de existir completamente. Por que
isso não acontece assim?24 Porque há uma inteligência que testemunhará essa
desintegração.25 E ela é a mesma durante o tempo todo.
Aluno: Você não está falando de inteligência como uma virtude?
Professor: Isso é a Inteligência considerada em si mesma. Não é o seu
sentimento em relação à sua Inteligência.26 Esta é uma característica pessoal.

24
É por isso que se diz que nenhum ser volta para o nada, como alguém disse: uma folha que balançou não
pode desbalancear, uma vez que, como será explicado abaixo, foi algo testemunhado pelo Ser Absoluto, que
como diria Mário Ferreira, é símbolo da própria divindade.
25
Essa atenção desse testemunho divino da desintegração não deixa de ser uma Misericórdia, assim como a
própria desintegração, visto os malefícios que essa personalidade corrompida faria para si mesma e para os
outros. É como se nem a própria personalidade desintegrante agüentasse a si mesma.
26
Quer dizer que posso até me achar “burro”, mas a Inteligência continua sendo o Espírito.
Deus se realiza em uma alma humana de dois modos simultaneamente: como
uma inteligência impessoal e como uma personalidade perfeita. Somente essas
duas coisas podem ser imortais em você: a sua inteligência impessoal e a sua
personalidade na medida em que é perfeita, isto é, na medida em que está
enraizada na própria intenção divina. Como você não tem como anular a
inteligência enquanto perfeição, significa que o processo de decomposição da
sua personalidade será indefinido depois da morte se você for para o inferno.
Aluno: Qual é o conceito de inteligência impessoal?
Professor: Inteligência impessoal é a Inteligência que testemunha a
realidade tal e qual ela é.
Aluno: A inteligência objetiva.
Professor: Você não sente a realidade tal como ela é. Você sente a
realidade tal e qual ela é em relação à sua estrutura [pessoal]: uma pessoa
gosta de peixe e outra não gosta. Então, nesse gostar de peixe e não gostar,
existe um elemento subjetivo que é um elemento objetivo.
Isso quer dizer que a sua personalidade pode ser perfeita ou imperfeita. A
sua personalidade é um atributo da sua alma e esta não atinge a perfeição apenas por
existir. Entretanto, a sua Inteligência já é perfeita apenas por existir.27

Espírito e imortalidade
Quando o sujeito não vai para o céu, é a sua própria Inteligência que dá
testemunho contra ele mesmo. E é Deus, como essa Inteligência, que julga essa
personalidade indigna ou incapaz de permanecer.
[Aluno pergunta sobre esse juízo da Inteligência.]
Professor: Quando você morrer, o mundo corpóreo não estará mais
diante de você. A única coisa que estará diante de você é a sua personalidade.
Para começar, de início [após a morte], são os seus gostos, os seus desgostos,
as suas alegrias, tristezas, memórias, etc. Com o tempo, de tanto ficar
observando isso, o que acontecerá? Será como explicamos antes: se você
gostava de peixe, a causa formal28 que fazia você gostar de peixe era a forma
de peixe. De duas, uma: ou você capta o fundamento realíssimo do peixe e,
portanto, do gosto do peixe e isso perpetua o peixe, eternizando-o e
tornando imortal essa componente da personalidade, ou esta irá desaparecer.
Isso quer dizer que apenas os que vão para o Céu continuam sendo aqueles
que eram.
Aluno: E, nesse sentido, quem não vai simplesmente acaba.
Professor: Como personalidade, ele acaba. Passa a ser apenas um
processo vital, psíquico, que vai se desintegrando, mas sem personalidade.
Aliás, personalidade significa justamente isso: o instrumento por meio do

27
O leitor deve perceber que o professor Luiz não está usando inteligência no sentido “usual” de habilidade
lingüística ou como capacidade em executar raciocínios lógico e matemáticos.
28
No sentido das quatro causas de Aristóteles. Conferir “Metafísica” de Aristóteles.
qual algo soa: “per sona” (soa por). Se o que soava pela sua alma era apenas a
corporalidade, quando esta for tirada, o som será tirado, isto é, a sua
personalidade se desintegrará. Se o que soava era Espírito, continuará soando
eternamente.

A salvação pela fé
Isso quer dizer que, tecnicamente, para que tudo o que eu sou permaneça
após a minha morte, é preciso que eu compreenda tudo o que sou em Deus. Existe
uma única alternativa: pode ser que eu não consiga compreender tudo o que eu sou
em Deus, mas que eu compreenda suficientemente tudo o que Deus é para mim. Se
eu compreender suficientemente quem é o Cristo, e o sinal de que alguém
compreende é o modo pelo qual a própria vida é integrada na proposta de vida
d’Ele, isto é um elo entre a minha personalidade total e o próprio Deus. E este elo
permitirá, depois da minha morte, o resgate da minha personalidade.
É como uma troca: o que Cristo propõe a cada ser humano é:
“Seja como Eu agora, antes da sua morte, porque depois da sua morte serei como
você e você reencontrará a sua personalidade olhando para mim”.
O que ele propõe é isso:
“Vista-se de Cristo, que, depois da sua morte, Eu me vestirei de você e você se reencontrará em
mim”.
Aluno: O professor Olavo de Carvalho disse, certa vez, que a fé é
como um bônus de conhecimento.
Professor: Exatamente.
Aluno: A fé é uma posse antecipada, é um pré-conhecimento.29
Professor: Exatamente. É como se fosse um cheque de
conhecimento.30 Porque nem sempre é possível, ou melhor, raramente é
possível, para um indivíduo, compreender, como um todo, a sua
personalidade em Deus. Mas, o indivíduo pode, como um todo, entender a
personalidade de Deus para si mesmo. E, então, Cristo lhe faz uma promessa:
“Se você fizer isso [entender-me em você, durante essa vida], depois da morte Eu farei
o inverso para você [testemunhando a sua personalidade em Mim]”
Ele pode fazer isso por quê? Porque Ele é o Verbo divino31, é o primogênito
de todas as criaturas.32 Ele, o Cristo33, o Verbo Divino, é a raiz formal do ser de
todas as criaturas em Deus.
Aluno: É isso que é a salvação.
Professor: É isso.

29
Como afirmou São Paulo Apóstolo: “A fé é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar
as realidades que não se vêem” (Epístola aos Hebreus, capítulo 11, versículo 1).
30
Aproveitando a analogia: a fé é como um cheque cujo valor será entregue pelo próprio Cristo.
31
Conferir o Evangelho de São João, capítulo 1, versículo 1 em, por exemplo, http://www.bibliacatolica.com.br/
32
Conferir a Carta de São Paulo aos Colossenses (capítulo 1, versículo 15): “Ele [o Cristo] é a imagem de Deus
invisível, o Primogênito de toda a criação”.
33
Conferir no Evangelho de São Mateus (capítulo 16, versículo 16)
Aluno: Isso é ensinado nas catequeses e nos seminários?
Professor: Os católicos, hoje em dia, têm, [em geral,] uma grande
ignorância sobre a própria religião. E não é de hoje! No século XIII
mandaram São Boaventura, [que foi superior franciscano], julgar a ortodoxia
de um membro de sua congregação, o frei Gil.34 E ele respondeu que era esse
sujeito que deveria julgar a ortodoxia da nossa doutrina, porque não há
alguém mais cristão do que ele no mundo inteiro. Quer dizer que aqueles que
o mandaram julgar a Frei Gil já não conheciam mais a própria religião.
Aluno: São Tomás também passou por um processo assim.
Professor: Sim. E São Boaventura também passou pelo mesmo
processo.35 A história dessa ignorância não é de hoje.36

Especulação e contemplação na vida teorética


[A partir de um episódio da vida de Santo Agostinho37, o aluno pergunta
sobre a diferença entre a contemplação e a especulação.]

Professor: Qual é o problema? A raiz última desse problema é uma


ambigüidade semântica. A palavra “teoria” em grego tinha dois significados
simultâneos. De tal maneira que os escolásticos ora traduziam a palavra

34
Trata-se do Beato frei Gil de Assis (também chamado de frei Egídio), cuja memória é liturgicamente celebrada
no dia 23 de abril. “Discípulo de S. Francisco, clérigo da Primeira Ordem (+1262). Pio VI aprovou seu culto a 04
de julho de 1777. Entre os primeiros companheiros de S. Francisco está o Beato Gil de Assis, o qual respaldou
sua petição para fazer-se Frade Menor cedendo imediatamente seu próprio manto quando, no convento dos
irmãos, chegou um pobre pedindo alguma coisa. Simples, humilde, iletrado, sabia contudo impelir todos ao amor
de Deus e proferir sentenças cheias de doutrinas. A maior parte de sua vida caracterizou-se por peregrinações:
Santiago de Compostela, Monte Gargano (Santuário de S. Miguel Arcanjo), Terra Santa e mais tarde África.
Ocupava o tempo de permanência e suas esperas forçosas ganhando a caridade das pessoas através de seus
trabalhos manuais. Fazia de tudo: carregava água, recolhia nozes ou lenha. Nunca o encontravam ocioso, mas
sempre em silêncio com Deus, com quem falava na contemplação, única fonte de sua sabedoria cristã. Assim,
veio a se tornar exemplo de vida franciscana primitiva. Cujo claustro é o mundo. Sua ocupação era qualquer
trabalho humilde e honesto e suas delícias estar com Deus nas noites silenciosas. No dia de S. Jorge, a 23 de abril
de 1209, Gil tinha escutado a missa em Assis, indo depois à Porciúncula para avistar-se com São Francisco.
Encontrou-o saindo de um bosquezinho e se lançou a seus pés. "Que queres?" perguntou-lhe Francisco. “Quero
permanecer contigo”, respondeu. Francisco o nomeou imediatamente "cavaleiro da távola redonda" e em sua
companhia partiu para Marca de Ancona. Ao longo do caminho Frei Gil louvava a Deus e, cheio de gratidão, se
prostrava por terra e beijava a erva, as flores e as pedras. Quando S. Francisco pregava, ele permanecia extático e
dizia aos demais: “Escutai-o, porque, ele fala maravilhosamente”. Fora do tempo reservado à oração e à leitura
do breviário, Gil trabalhava continuamente, e como paga recebia somente estritamente necessário para a vida.
São célebres seus ditos cheios de sabedoria religiosa e de espírito prático. Certa vez admoestou um pregador
palrador, gritando-lhe por detrás: "Blá, blá, blá, falou muito, agiu pouco". Com freqüência sua sabedoria era
bondosamente irônica, como quando um irmão disse que havia sonhado com o inferno e que ali não tinha visto
nenhum frade menor. Ao que Frei Gil lhe respondeu: "Seguramente não baixaste até o fundo". Perante outro
que falava muito sem refletir, disse: “Penso que seria bom ter o ombro tão largo como a grulha; assim a palavra
passaria por muitos de nós antes de subir a boca!” Frei Gil era um contemplativo, um místico que entrava em
êxtase somente em ouvir mencionar o Paraíso. S. Francisco e S. Boaventura tiveram por ele grande admiração.
Mais tarde, morto S. Francisco, sua vida transcorreu nos eremitérios da Úmbria, sobretudo no de Monterípido,
onde morreu avançado em idade a 23 de abril de 1262. Perto da morte, quando as autoridades de Perusa
enviaram pessoas armadas para guardá- lo, enviou-lhes recado para assegurar-lhes que nunca os montes de
Perusa teriam parte em sua canonização nem milagre algum lhe tocaria. Chamado Beato pela voz do povo, a
Igreja confirmou seu culto por meio de Pio VI a 04 de julho de 1777”
35
O professor Luiz desenvolveu mais esse tema na palestra “A Universidade de Paris no século XII” realizada na
Aliança Francesa em outubro de 2006.
36
Há livros sobre a história do conhecimento humano, como livros de história da ciência e da filosofia, mas
talvez se poderia fazer também um livro sobre a história da ignorância humana.
37
Conferir “Confissões” de Santo Agostinho.
teoria, do grego, por contemplação e, ora, por especulação. Então, eles dirão
que contemplação é a atividade da inteligência cujo objeto é o realíssimo.
Especulação é a atividade da mesma inteligência cujo objeto é apenas o real.
Qual é a diferença entre uma coisa e outra? A diferença “prática” é que
você pode transmitir diretamente o resultados da sua especulação. Você
pode, por meio do discurso, ensinar aquilo que você compreendeu sobre o
real38, mas você não pode, por meio do discurso, levar o outro à
contemplação do realíssimo.
Aluno: O discurso pode acompanhar o objeto até o “real”?
Professor: Sim. Por exemplo: você pode ensinar a ciência da
engenharia ao outro por meio do discurso. Assim, pode ensinar o que são os
prédios, os materiais, o que é resistência, etc. Isso pode ser ensinado.
Entretanto, suponha que você tenha contemplado o que é tudo isso no
realíssimo. Isso não poderá ser ensinado [pelo discurso]. O máximo que você
pode fazer é dar algumas indicações práticas do caminho que o sujeito deverá
percorrer até chegar a essa contemplação.
[Aluno pede mais uma explicação.]
Professor: Quando Platão e Aristóteles falavam da teoria, falavam das
duas coisas ao mesmo tempo [especulação e contemplação], mas, na prática,
podiam ensinar aos alunos [apenas] a especulação e dar algumas indicações
quanto à contemplação. E o que aconteceu? No decorrer das gerações do
ensino da Academia e do Liceu39, o número de pessoas que contemplavam
foi diminuindo em relação ao número de pessoas que apenas contemplavam.
[Aluno pergunta sobre a impossibilidade de ensinar a contemplação.]
Professor: Trata-se de uma impossibilidade intrínseca. Não dá para
transmitir o conteúdo da contemplação. O sujeito que contempla pode, no máximo,
oferecer algumas indicações sobre como se deve eliminar na própria vida os
obstáculos da própria contemplação, mas a especulação pode ser transmitida.
Por quê? Simples, porque a inteligência humana é transcendente em relação
aos objetos que ela contempla e que pertencem à ordem do real. A inteligência
humana é mais do que qualquer ciência que ela possa obter sobre as coisas naturais.
A esfera dos conhecimentos naturais está sob domínio da inteligência humana, mas
o realíssimo não. Ela não é transcendente em relação ao realíssimo. Ela é que está
sob domínio do realíssimo. Como se diz, não se pode “apreender” o conteúdo do
realíssimo e comunicá-lo a outro. Mas a inteligência humana pode fazer isso em
relação à especulação, isto é, em relação ao conhecimento das coisas naturais.
Por isso que, em qualquer cadeia de ensinamento humano, no decorrer das
gerações do ensinamento, o elemento contemplativo diminuirá, mas o especulativo
permanecerá o mesmo ou até se ampliar. Assim, no decorrer das gerações, tanto no
Liceu de Aristóteles, como na Academia de Platão, que os sujeitos ali estão apenas
voltados para a atividade especulativa, deixando de lado a vida contemplativa.
Entretanto, as duas atividades possuíam o mesmo nome: “bios theorétikos”. E

38
Como deveria fazer um filósofo ou um cientista.
39
As escolas iniciadas por Platão e Aristóteles, respectivamente.
é esta vida “teorética”40 reduzida a uma especulação sem contemplação que Santo
Agostinho recusava por não ser suficiente. Ele percebeu que entre os filósofos
gregos não havia especulação, a qual ele conseguiu encontrar entre os cristãos. No
cristianismo, Santo Agostinho encontrou pessoas que contemplavam, como Santo
Ambrósio. Então, esta contemplação [cristã] re-iluminou a especulação grega que
havia sobrado historicamente para que seu conteúdo contemplativo fosse
reencontrado.41 Mas, mesmo no cristianismo, demorou-se séculos para definir esses
dois campos de atividade da inteligência e usar termos adequados para distinguir um
do outro.
[Aluno volta a comentar sobre Santo Agostinho.]
Professor: Santo Agostinho descobriu que a vida especulativa não era
suficiente. Por exemplo: a vida especulativa permitiria compreender todas as
estruturas formais do bolo, mas isso lhe daria o gosto do bolo na boca?
Aluno: Não.
Professor: Mas a contemplação do bolo no realíssimo lhe dá mais do
que o próprio bolo.
Aluno: Ela [a contemplação no realíssimo] faz o bolo novamente?
Professor: Ela vai além.

A tensão entre a vida contemplativa e a vida sensitiva


Professor: Por que existe a tensão no ser humano entre a vida
contemplativa e a vida sensitiva? Todo ser possui simultaneamente três
aspectos. Todo ente é:
a) Por um lado, uma atividade divina, que é a sua raíz no
realíssimo; cada ente é realíssimo enquanto atividade.
b) Ao mesmo tempo, ele é uma quididade, isto é, uma forma
específica que você pode compreender.
c) E, ao mesmo tempo, ele é um conjunto de acidentes
particularizantes dessa quididade.
A quididade e o conjunto de acidentes são como duas imagens
diferenciadas na raíz do realíssimo. A quididade reflete um aspecto da raíz no
realíssimo e os acidentes refletem outro, mas a quididade ou a acidentalidade, por si
mesmas, não conseguem reproduzir esses dois aspectos. Como você é capaz de
assimilação dos dois, a mera assimilação de um deles não fará efeito. Por isso que
não adianta se dedicar apenas à aquisição de ciências, porque estas são ciências de
quididades. Elas satisfazem apenas um aspecto do seu ser. Também não adianta se
dedicar apenas à vida sensível.
Entretanto, o uso de termos distintos para os dos sentidos de “teoria”,
como contemplação que é a “teoria do realíssimo” e especulação que é a “teoria do
real”, é muito posterior a Santo Agostinho. Começa-se a perceber a necessidade
40
Chamada, às vezes, indistintamente de vida especulativa ou contemplativa.
41
Nesse sentido, é preciso buscar ao ler as “especulações” de um filósofo, refazer as experiências cognitivas
(ou “contemplativas”) que ele teve para redigir aquilo. Este procedimento lembra a noção de “origem” em
Husserl, que elaborou um método filosófico para buscar as experiências originais dos conceitos filosóficos e
científicos.
desta distinção pela própria experiência de Santo Agostinho. Por que Sócrates,
Platão e Aristóteles falavam que a “vida teorética”42 era tudo e Santo Agostinho
dizia que era nada? Simples, porque eles usavam a mesma palavra para realidades
diferentes. Não estavam tratando da mesma “vida teorética”.
Uma coisa é entender o que é mesa. Outra coisa ainda é apreciar as
qualidades particulares de uma mesa. Outra coisa ainda é entender a raiz dessa
unidade em Deus. Apreciar as qualidades particulares da mesa é uma vida sensitiva.
Compreender o que é mesa é vida especulativa. Captar ou entender a raíz dessa
mesa em Deus é vida contemplativa. É evidente que a vida especulativa nunca será
suficiente para a perfeição humana. Por isso que Cristo não mandou que todos
sentassem e ficassem estudando durante o tempo todo. Isso não adiantaria nada.
Aluno: É isso que se quer dizer com a frase “A fé sem obras é morta”?
Professor: Refere-se à mesma dicotomia, mas não é exatamente a mesma
coisa, porque a fé é como uma imagem da salvação. Do mesmo jeito que a
quididade e a acidentalidade são imagens da raíz no realíssimo, a fé é uma imagem
da Salvação que mostra apenas metade da salvação. E as obras formam outra
imagem que mostram a outra metade. Com a fé e as obras é como se você realizasse
uma imagem suficiente ou integral da salvação, isto é, do próprio Cristo. E a
proposta do Cristo é justamente essa:
“realize uma imagem suficiente do que EU SOU e Eu realizarei, após a morte, uma
imagem suficiente do que você é. E Eu manterei essa imagem no real
até que você a compreenda. E, assim, você se imortalizará.”
[Aluno avisa sobre o final da aula.]

Epílogo: À guisa de conclusão


Professor: O importante nesta aula é que alma e espírito
diferenciam-se porque esse é perfeito pelo seu próprio ato de existir,
enquanto a alma depende dos seus atos para atingir a perfeição. Eu
recomendo que vocês leiam e releiam a transcrição porque as noções
levantadas aqui ainda podem ser mais desenvolvidas.
[Aluno comenta sobre uma explicação dada por C.S. Lewis sobre um
assunto relacionado com a aula.]
Professor: Quem diz:
“somente existe o real e não existe o realíssimo”

42
“Bios theorétikos”.
Está mentindo porque a sua inteligência é um sinal do realíssimo.43 Se
fosse assim, seria uma grande contradição, porque teríamos que assumir que
somente existe o real, menos você que é realíssimo porque possui inteligência
e transcende a realidade.44
Aluno: “A tentação maior do homem é cair de uma verdade incerta para uma
inverdade certa”.45
Professor: É isso mesmo! Vamos guardar essa frase para comentá-la na
próxima aula.
Aluno: A verdade incerta é parte de um mistério.
Professor: Porque a sua inteligência pode contemplar o realíssimo, mas
não pode esgotá-lo.
Aluno: Não pega tudo nunca.
Professor: O elemento do mistério sempre estará lá.
Aluno: Exceto aqueles que achavam que possuíam todo o conhecimento
como Nietzsche, Marx, Hegel, Gramsci, etc.
Professor: Acabou.

Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

43
Alguns chegam a se revoltar até mesmo contra o real, como os desconstrucionistas: “A desconstrução parte da
premissa linguística de Ferdinand de Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a
diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa
premissa contra as pretensões científicas da própria linguística, ao concluir daí que, se a língua é um sistema de
diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado” externo. Tudo o que o ser humano
diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com
“realidade”, “fatos” etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é constituído de “textos” ou
“discursos”, mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses discursos possam ser aferidos, não
tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não existe representação da realidade. Todo
discurso é livre invenção de significados. Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido
nietzscheano, afirmando que, se o discurso não é representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”.
Mas isso não quer dizer que por trás do discurso exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A ideia de
um eu estável e autoconsciente é ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da
realidade pode funcionar, o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada
“eu”. Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o
desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a
“différance”, com “a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor
do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria
inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela
mistura de pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a
usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer
que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você
fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a
si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela
diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o
que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência. Se o eu não existe e o objeto que ele
pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção
chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da
aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”. Portanto, a função de todos os discursos é negar a
realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João,
VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em
geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder.” (Olavo de Carvalho, O
sucesso do fracasso, Diário do Comércio, 27 de novembro de 2006)
44
A pessoa não se inclui no próprio juízo sobre o conjunto da realidade, isto é, enquanto fala e especula se exclui
da própria realidade.
45
Essa frase parece remeter a C.S. Lewis.

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