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Rodrigo Gurgel

ESQUECIDOS
&
SUPERESTIMADOS

Prefácio de Jessé Almeida Primo


SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Prefácio – Literatura e verdade
Epígrafe
Apresentação
Capítulo 1 – À espera de justiça
Figuras complexas
Diálogos e descrições
Problemas
Capítulo 2 – Escondido e desprezado
Teoria do engrossamento
Linguagem e primitivismo
Fantasmas
Resposta ao enigma
Capítulo 3 – Combate interminável
Misterioso defunto
“Celeiro agreste”
Síntese e ampliação
Vencer e não vencer
Capítulo 4 – Perseguido, mas brilhante
Ilusória liberdade
Torpezas e amor
Diálogos e oratória
Desafio à história
Excelência
Capítulo 5 – Perfumaria bilaquiana
Clichês e elogios
Hipérboles
Ritmo ternário
Pequenos escritores
Tédio
Capítulo 6 – A salvação pelo duplo
Contar ou mostrar
Artimanhas e personagens
Doppelgänger
Luta
Capítulo 7 – Retorno à querência
Alegoria e epizeuxe
Anáfora e humor
O narrador ideal
Capítulo 8 – Manual de literatice
Extravagâncias
Verborragia
Naturalismo
Pedido de desculpas
Capítulo 9 – Salvo da banalidade
Destemor e covardia
Linguagem
Apuro
Língua portuguesa
Capítulo 10 – Canalhice e afetação
Difamadores
Falsa elegância
“Espuma inconsistente”
Capítulo 11 – Salvo pela ironia
Ouro falso
Acidez
Capítulo 12 – Ideologia e azedume
Homem estéril
Morte e vida
Condenação
Naturalismo
Capítulo 13 – Psicopatia e racismo
Crítica involuntária
Miscigenação e decadência
Descrições
Diálogos e cantilena
Narciso e Don Juan
Capítulo 14 – Injustamente esquecido
Fisgar o leitor
O traçado
Desenlaces
Tempo e consciência
Capítulo 15 – Corrosivo e sempre contemporâneo
Audácia editorial
Sem artificialismos
Riso e desprezo
Retrato do Brasil
Literatura e demonologia
Fracos e fortes
Desequilíbrio
Gótico
Sarcasmo
Sintaxe e humor
Pré-modernista?
Capítulo 16 – O filho tardio de Alencar
Filas de adjetivos
Idealização e melodrama
Linguajar e esquematismo
Lacunas e romantismo
Bom humor e Iracema
Estilo bombástico
Dois gaúchos
Capítulo 17 – Sobriedade e sutileza
Papéis invertidos
Metáfora
Capítulo 18 – Equívocos e retórica
Escolhas repreensíveis
Debilidades
Sinceridade
Créditos
Sobre o Autor
Sobre a Obra
PREFÁCIO

Literatura e verdade

Não obstante a obviedade da afirmação, a forma explicita o


conteúdo. Claro está que isso não é uma obrigação
circunscrita a textos literários, mas a qualquer outro que
busque comunicar algo. Dessa maneira, não é por acaso
que o autor deste volume também dedica sua crítica às
obras de prosadores que militaram em nome de alguma
causa, como o pensador católico Jackson de Figueiredo e o
polemista anti-republicano – e divertidíssimo – Carlos de
Laet, e escreve a sua “história da inteligência brasileira”.
É salutar, por sua vez, que numa nação haja um número
significante de indivíduos com inteligência ao menos
mediana, cuja formação dê estímulo ao que se produz, ou o
ecoe, e o que seja produzido venha acompanhado de senso
de dever, de prestação de contas ao leitor; que seja algo
feito para ser lido, entendido e apreciado, e assim não se
abram espaços largos aos narcisismos e solipsismos
literários de que fala o crítico Rodrigo Gurgel nos textos que
compõem seu primeiro livro, Muita retórica – Pouca
literatura (de Alencar a Graça Aranha), e nos espraiados em
dezoito capítulos deste que leva um título que por si mesmo
é bem elucidativo, Esquecidos & superestimados .
Como esse é também um assunto de que se ocuparam
outros escritores, é inevitável que Gurgel tenha ou
antecessores ou companheiros de viagem com a mesma
percepção. Se este tem como interesse a prosa, a qual não
se restringe à de ficção, uma vez que abrange a ensaística,
a de reflexão, obras sobre história, de filosofia etc. – mas
que têm em comum o terem se destacado bem ou mal
estilisticamente –, outros há, como Bruno Tolentino, que se
dedicaram ao mesmo assunto no exame da lírica: “De que
modo dar um sentido mais puro à língua que um só homem,
ou dois, ou mesmo três, falam sozinhos?”. [ 1 ]
Para quem acompanha os textos críticos de Gurgel, essa é
a pergunta inevitável. Em tempo, o alvo de Tolentino foram
os irmãos Campos, que, de tanto radicalizar no que
julgavam ser uma peculiaridade literária, não conseguiram
senão eliminar “um padrão comum de lucidez e
participação”, [ 2 ] a cultivar assim, em sua torre
“verbicovisual”, o que “se passa por poesia / porque se
afasta do chão...”. [ 3 ] Ocupando-se com essa literatura de
umbigo, afastaram-se de modo prejudicial da tradição do
verso e, ao mesmo tempo e ironicamente, aproximaram-se
dos vícios retóricos comuns nessa mesma tradição. Ou seja,
quem se volta contra a tradição acaba de um modo ou de
outro se contaminando com o que dela há de pior, com a
sua caricatura. [ 4 ] E nesse complexo de Adão, os abusos
formalistas, mais a crescente desfiguração da linguagem,
com a posterior bênção acadêmica e sua formulação em
decretos educacionais, criaram o isolamento do escritor que
primeiro se ressentia de sua marginalização e depois a
tornou numa ética – com licença da rima – de sua estética.
Contra uma prosa que se pretende literatura porque se
afasta do chão comum de cada dia é que se insurge, em
continuação ao Muita retórica , Rodrigo Gurgel, que
denunciou a cumplicidade da própria crítica literária nesse
vício:
O crítico e historiador [Sérgio Buarque de Holanda] lastima-se pelo fato de
Oswald de Andrade e Clarice Lispector não terem intensificado seu
experimentalismo nas obras que se seguiram a Serafim Ponte Grande e Perto
do coração selvagem – e, defendendo a prevalência da técnica sobre a
mensagem, aponta, em Coelho Neto, a falta de uma “moldura adequada”.
Ora, idéias desse tipo deságuam em dois erros, faces da mesma moeda:
menosprezam-se grandes narradores que não optaram pelo vanguardismo
tout court – como Buarque de Holanda faz, no mesmo ensaio, em relação à
obra de José Lins do Rego – ou condena-se a linguagem literária à ingrata
tarefa de reinventar a si mesma permanentemente, o que produz obras
passíveis de serem compreendidas apenas por seus próprios autores ou por
um seleto grupo de iluminados – beco do qual a literatura brasileira luta para
sair.

Essa é uma passagem sobre Coelho Neto, um romancista


que, segundo é observado no mesmo texto, é o “escritor
mais detestado pela crítica brasileira” e “atingido pela fúria
modernista com os piores adjetivos, os julgamentos mais
levianos” – e sobre quem “tripudiam, até hoje, os prosélitos
de Lima Barreto e Oswald de Andrade”. Se nesse trecho o
crítico acusa as manifestações de ódio contra qualquer
escritor que lembre o passado, nesta outra passagem,
dessa vez sobre Monteiro Lobato, vemos a denúncia do mais
idolátrico filofuturismo que anima o citado ódio:
A verdade é que o escritor [com o artigo “Paranóia ou mistificação”] se
mostrou lúcido o suficiente para, cinco anos antes da Semana de 22, colocar-
se de prontidão contra a típica maneira de proceder dos subdesenvolvidos:
acatar modelos estéticos importados, já diluidíssimos, desgastados de sua
força original, como se fossem verdades atemporais; e aceitar de forma
acrítica o que aparenta ser novo, apenas por trazer o rótulo de vanguarda ou
escândalo. Não por outro motivo parte dos jovens escritores nacionais – e
também dos não tão jovens – insiste em reescrever o Finnegans Wake ...

O crítico Luís Augusto Fischer [ 5 ] critica o desejo que os


modernistas têm de apresentar-se como marco zero da
literatura, o começo de tudo no mundo da cultura. Ainda de
acordo com Fischer, o próprio termo “pré-modernismo” é
mais uma estratégia para os modernistas se colocarem no
centro, restando aos que os antecederam o papel de meros
“Joões Batistas”. Acrescente-se que o comentário ao termo
pré-modernismo corrobora a desconfiança de Gurgel acerca
do assunto. Em seu blogue, [ 6 ] anunciando aos leitores a
conclusão deste presente volume, disse ter se debruçado
sobre “livros das duas décadas iniciais do século XX , período
que nossos estudiosos se acostumaram a tratar como pré-
modernismo, conceito impregnado de confusão, que se
liquefaz quanto mais estudamos os escritores ali enfiados”.
Rodrigo Gurgel, diga-se, não escreveu esta obra com o
intuito ranzinza de resgatar autores desconhecidos contra
os escritores que se tornaram celebridades, o que seria
outra forma de manifestar a sanha de originalidade dos
modernistas, sob disfarce de arqueologia crítica. Está se
falando, sim – pautado em princípios pedagógicos e de
independência crítica, sem as comodidades ideológicas –,
de ter curiosidade por saber o que foi produzido, de querer
saber o que realmente diz o texto, e dessa maneira, como
está entendido no ensaio sobre Coelho Neto, desfazer
enganos ou confusões causadas por maledicências:
Trata-se, portanto, de desprezar o continuum de erros e injustiças [...],
ignorar o vale-tudo em que nossos estudos se transformam quando se trata
de defender a Semana de 22 e seus herdeiros e dedicar-se à releitura da
ampla, multíplice bibliografia que Coelho Neto nos legou, ou seja, deixar as
obras falarem.

A não ser assim, cairia no erro, ainda segundo esse ensaio,


“de escolher, para justificar sua reabilitação – como sugere
Alfredo Bosi em O pré-modernismo –, entre ‘uma
determinada doutrina estética’ ou ‘um pensamento
estreitamente casualista’” e, dessa maneira,
condenar o escritor a permanecer na camisa-de-força em que o enfiaram o
superficialismo e o preconceito de grande parcela da academia e da crítica
literária, satisfeita no seu exercício de papaguear o que aprendeu neste ou
naquele manual, mas raramente disposta a ler, com espírito despojado de
ideologias, a produção dos autores.
Com isso chegamos ao título deste volume, Esquecidos &
superestimados. Como este sugere, há de fato o que se
chamaria de resgate, o fazer-se justiça. Por outro lado, o
“superestimados” não se limita, como veremos agora, às
celebridades. Afinal, desde algum tempo difundiu-se o
hábito de superestimar certos autores por serem
desconhecidos, o qual é muitas vezes motivado pela
vaidade de se ver como o primeiro que “percebeu”
enquanto os outros estavam “cegos”, na tentativa de
construir-se uma identidade “interessante” e, de algum
modo, valendo-se do privilégio da obscuridade do que se
descobre – e também criando um ambiente de tão infernal
quanto de interminável revisionismo reativo –, legitimar
procedimentos duvidosos. Recorrendo mais uma vez a
Bruno Tolentino, o poeta percebeu esse mesmo ardil nos
irmãos Campos que organizaram os espólios dos poetas
Kilkerry e Sousândrade:
A reunião dos contorcidos e “incompreendidos” espólios de Titio Kilroy &
Vovó Sousândrade – respectivamente o Homem Torso e a Mulher Barbada
das sub-letras tropicais – mais que um consolo à solidão da Família Adams do
Beletrismo Futurista, seria um modo a mais de torpedear a idéia mesma de
uma ordem possível no acervo cultural de um povo, especialmente uma que
unisse beleza e verdade como traços da fisionomia nacional. [ 7 ]

José Guilherme Merquior, por sua vez, disse que Foucault,


ao dedicar-se a autores obscuros da Renascença em
detrimento aos célebres do mesmo período, como
“Leonardo, Erasmo, Rabelais ou Montaigne, emprestou à
sua obra uma áurea de erudição que, para muitos leitores,
disfarçava a sua principal fraqueza: a notória falta de
intimidade com a rica literatura sobre os temas tratados por
esses autores”. [ 8 ] O filósofo Olavo de Carvalho, no Jardim
das aflições , fizera observação semelhante a respeito dos
philosophes brasileiros que, parasitando o charme da
antiguidade grega, pretenderam resgatar Epicuro para dar
legitimidade à busca tão adolescente do “prazer” e da
liberdade total, justificar o falseamento da realidade pelas
ideologias e assim criar um mundo sem culpas e cuja obra,
força é dizer, tinha seu interesse mais ou menos restrito a
alguns poetas libertários ou a desocupados da época. E
quem passou pelo curso de História deve lembrar-se do
volume O queijos e os vermes , uma bobagem sobre a
criação do mundo elaborada por um camponês obscuro,
condenado e morto pela Inquisição, o qual só conseguiu
reputação por ter sido um mártir do “esclarecimento”
perseguido pela Igreja, uma espécie de Manuel de Barros da
gnose.
O critério de Gurgel, portanto, não é o grau de obscuridade
de que determinado autor usufrui, como de resto já foi
notado. Mas o da relevância das obras. O que elas têm para
dizer e como o dizem. Seu temperamento conservador,
portanto, não o obriga a referendar obras de outros autores
com os quais compartilha valores comuns, e assim, quando
é justo fazê-lo, não os poupa de censuras nem atenua os
termos contundentes que lhes são dirigidos. Atesta-o a
avaliação dura ao pensamento de Jackson de Figueiredo,
que é também um autor conservador e, em seu tempo, um
dos notórios militantes católicos:
À parte (...) [o] elogiável caráter anti-revolucionário de Jackson de
Figueiredo, que o impelia a lutar em favor da legalidade e da ordem pública,
os textos descambam, muitas vezes, para uma defesa acrítica do fascismo
italiano, da ditadura de Primo de Rivera e do Integralismo Lusitano, na figura
do poeta António Sardinha. Ao enaltecer a “Ordem” e a “Hierarquia”, Jackson
de Figueiredo chega a elogiar Augusto Comte – “gênio realmente formidável”
– e Charles Maurras, desconhecendo, presumo, o tanto de pensamento
agnóstico e anticatólico que havia na obra do líder da Action Française .
Conseqüência fatal dessas escolhas, é possível entrever laivos de anti-
semitismo ao menos em dois artigos. [ 9 ]

Essa contundência se prolonga em observações negativas


a respeito dos meios expressivos:
Há méritos, sem dúvida, em apresentar aos brasileiros, por exemplo, a obra
de Auguste Viatte, mas Jackson de Figueiredo o faz numa linguagem que está
sempre pronta a cair no elogio fácil e no circunlóquio, tão caros à retórica
nacional [...].
Venerador do advérbio “máxime”, repetido de forma cansativa, e de longas
citações em francês, típicas do eruditismo que até hoje nos assedia, Jackson
de Figueiredo não tem a vivacidade e a ironia do católico e anti-republicano
Carlos de Laet. Seu texto enfada [...].

E comungando com a escritora católica Flannery O’Connor,


por ele citada, que diz de certos escritores da mesma
religião serem “extasiados com sua condição cristã,
esquecem sua natureza de escritor”:
Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de literatura: se acerta
ao dizer que “mais larga que a categoria do belo é a do bem”, erra ao
proclamar a “absoluta superioridade da obra de arte católica em relação a
qualquer outra obra de arte”.

O que está em perfeito acordo com o que Lúcia Miguel


Pereira escreveu em 1934:
Nada afasta mais a religião, nada dificulta mais o entendimento da
psicologia do crente do que os romances ditos de piedade: deveriam ser
proibidos às meninas sabidas dos colégios de freiras; essa humanidade
insossa, com bons sentimentos em lugar de sangue, é, do católico de carne e
osso, uma caricatura escandalosamente empobrecida, retocada, adoçada,
inconsistente. A encruzilhada sempre perigosa e sempre renovada do bem e
do mal – a grande tentação e a grande aventura cristã – não é nos livros
virtuosos que se encontra. [ 10 ]

Com isso Rodrigo Gurgel não apenas mostra as fragilidades


também presentes nas produções de quem batalha no
mesmo lado, bem como sua obra é uma advertência aos
críticos conservadores – pelo bem da causa que defendem –
para não cometer os mesmos erros dos adversários, i. e.,
corromper os meios sob pretexto de construir um mundo
melhor, posto que seja um mundo onde todos são cristãos e
conservadores.
E para terminar essas digressões, Rodrigo Gurgel também
avalia a qualidade das idéias e suas implicações morais, e
desse modo o crítico é temperado pelo moralista, não um
moralista segundo algumas definições viciadas que
aparecem em vários escritos mundo afora e atingiram os
dicionários, corrompendo o sentido original da expressão,
como o faz de forma tão primária Evanildo Bechara no
dicionário que leva seu nome: “Que ou quem adota um
critério moral rígido”[sic], [ 11 ] não escapando certa
insuficiência da edição brasileira de Aulete: “Que ou o quem
escreve sobre moral, que trata de moral, que preconiza
preceitos de moral” [ 12 ] e sim mais de acordo ao moraliste
do dicionário Larousse : “autor que escreve sobre a moral, a
natureza e sobre a condição humana” [ 13 ] ou, como bem
disse o editor José Mário Pereira a respeito de Bruno
Tolentino, “ moraliste , na linhagem cristã de um Pascal, um
Kierkegaard, um Tolstoi”. [ 14 ] Mas por que deveria um
crítico literário se ocupar de assuntos morais? Antes leiamos
o que escreveu Merquior:
Nos parnasianos, nos narradores naturalistas, prevaleceu constantemente o
velho fundo pirotécnico, gratuitamente exibicionista, da infância “gongórica”
das letras ibero-americanas. Os primeiros fazem espocar o verso opulento,
mas oco; os segundos alardeiam sem maior significação as teses científicas
em voga. É que a ascensão da classe média pela literatura parece ter-se
inconscientemente pautado pelo antigo ethos senhorial, antipragmático e
ornamental. Ascendendo socialmente pelo domínio das técnicas de
expressão, o escritor esposava sem saber valores hidalguistas: valores de
uma aristocracia ociosa, estranha ao gesto funcional. Idéias e formas
passaram então a ser manipuladas por si, sem a preocupação de fazê-las
ferramentas de uma visão crítica do real. [ 15 ]

Sem senso moral, sem conhecimento da natureza humana,


como seria possível fazer avaliação tão acurada a respeito
da doença retórica denunciada por Rodrigo Gurgel em sua
obra, apresentando-lhe a raiz? Não se está falando afinal de
questões morais que determinaram de modo definitivo uma
literatura e pensamento? Quando Lúcia Miguel Pereira diz
“respeitamos demais a palavra, expressão da idéia, para vê-
la desperdiçada, arredondando períodos” [ 16 ] não está a
um só tempo fazendo crítica literária e assumindo uma
posição moral? O papel do crítico de separar o joio do trigo,
de descobrir e apontar qualidades ou defeitos de obras e
dizer por que tal livro deve ser lido, não depende antes de
um posicionamento moral que se revela em qualidades
igualmente morais como honestidade e coragem? Os
recursos retóricos de que se valem certos autores para
disfarçar o vazio das idéias não são uma atitude moral, na
qual se podem revelar o medo, o senso de conveniência ou
a vaidade, que também são sentimentos morais? O retrato
corrosivo que Machado faz da humanidade é apenas uma
atitude literária? Será que ele gostaria que a filosofia
subjacente a suas narrativas fosse ignorada? Será que
Aluísio de Azevedo ou Eça de Queirós gostariam que fosse
ignorada para o bem da estética a visão determinista que
anima seus romances e muitas vezes exposta – vide o final
de O cortiço – com indisfarçável sadismo?
Não há, pois, como escapar ao fato de que o exercício da
crítica é, sim, uma escolha e uma atividade morais que em
nada atrapalham o juízo. Ao contrário, realçam-no. Podemos
incluir nesse realce o entusiasmo, a falta dele e a
contrariedade. Chega a ser tocante a indisfarçável alegria
com que nosso polêmico autor procura – em aplicação
impressionante da técnica do close-reading – convencer o
leitor a perceber a dignidade e força narrativa de Júlia Lopes
de Almeida ou “enfrentar as páginas iniciais de ‘A Terra’” do
livro Os sertões de Euclides da Cunha, a desejar que esse
leitor experimente as mesmas sensações que ele
experimentou, de fazer uma travessia deliciosamente difícil
e que é deliciosa, entre outras razões, justamente pelas
dificuldades:
[O leitor] encontra-se dividido entre abandonar o volume ou seguir em
frente. [...] Mas questiona-se se poderá suportar a descrição de “cristais de
feldspato”, “estratos de um talcoxisto”, “formações silurianas”, “cachopos de
quartzito” e quejandos. Nesse momento, quando suas vísceras começam a
gemer, salva-o da escuridão o narrador, abraçado à tarefa de explicar as
características climáticas, mudando subitamente a inflexão da voz para
tornar-se íntimo, lírico...

Dito isso, o esforço de impessoalidade, pela qual se aprecia


uma obra com o ar de quem finge não ser tocado
emocionalmente por ela, é pura afetação. Corrobora o que
Tolentino disse do crítico que não tem “capacidade de
admiração” e assemelha-se a um pica-pau que introduz o
bico num picolé mas sem saboreá-lo. Não é por outro
motivo que Olavo de Carvalho disse que “uma cultura em
que as regras de bom-tom são mais relevantes do que a
veracidade intrínseca dos argumentos é uma cultura
moribunda”. [ 17 ] E se a imprensa ficou assustada – e o
público gratamente surpreso – com o desembaraço com que
Rodrigo Gurgel mostra seu gosto, a alegria e as
contrariedades que algumas leituras lhe proporcionam, e
sem abrir mão de rara exposição pedagógica que se traduz
numa expressão de Schlegel que lhe é muito cara, “um
leitor que rumina”, e tornando assim o seu leitor algo como
um cúmplice de suas leituras, deve-se ao seguinte
fenômeno que Olavo de Carvalho mais uma vez explica:
Nas últimas décadas, como é público e notório, a crítica literária andou
desaparecida do nosso cenário cultural, e isto é provavelmente o motivo pelo
qual a linguagem pessoal e desabrida em que se escreveram algumas das
produções clássicas desse gênero se tornou destoante no nosso ambiente
jornalístico, onde as normas de impessoalidade e frieza que devem imperar
no noticiário acabaram alastrando sua jurisdição, indevidamente, para as
páginas culturais e literárias. [ 18 ]

Diremos, portanto, com o Apocalipse de São João: “Oxalá,


fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem frio nem
quente, vou vomitar-te” (3, 15-17), que ilustra com
contundência a citação acima. Que Rodrigo Gurgel com este
livro, caro leitor, não apenas lhe proporcione uma boa
leitura, bem como tire a crítica literária da tepidez infernal e
não seja mais intimidada pela boa educação luciferina.
Jessé de Almeida Primo
Ensaísta, autor de A natureza da poesia (Editora Tulle),
colunista de poesia da revista Dicta & Contradicta e da
revista eletrônica LeiaTom

[ 1 ] Os sapos de ontem , 1995, Editora Diadorim, p. 32.


[ 2 ] Idem , p. 31.
[ 3 ] Idem , p. 81.
[ 4 ] Fenômeno esse também percebido por Bruno Tolentino ao declarar que os
irmãos Campos fizeram, antes de qualquer coisa, poesia subparnasiana e deram
continuidade, ainda que pela negação, ao que já estava sendo praticado pela
Geração de 45: “O espantoso, o flagrantemente artificial, pois, não era apenas
que os gaguejos futuristóides de Noigandres nascessem dos ainda recentes
bocejos parnasianísticos e abarrocados de três autores [i.e., Haroldo e Augusto
de Campos e Décio Pignatari] em nada distintos da pior mediocridade morna da
dita Geração de 45, à qual o trio de fato pertence em estilo, mentalidade e
fôlego... não havia como perceber diferença alguma, fosse qualitativa, fosse de
dicção, vocabulário, sintaxe ou sensibilidade, entre a fraternidade de Noigandres
e o resto que fumegava então do pior calibre 45. Atestava-o o estilo
penteadeira-de-velha do Sr. Augusto de Campos por volta de 1953: “em
glaromas de Amil e penubis / (...) / com estas mornas flores de oromãs /
morigerantes ou cansadas corças” .... (in Os sapos de ontem , op. cit. p.14)
[ 5 ] “Contra São Paulo” in Para fazer a diferença , Ed. Artes e Ofícios, 1998.
[ 6 ] http://rodrigogurgel.blogspot.com.br/.
[ 7 ] Op. cit. , 31n.
[ 8 ] “From the prose of the world to the death of man” in Foucault , Fontana
Press, Londres, 1991, p. 44 (segunda edição).
[ 9 ] Termos esses que se afinam com a observação que Gustavo Corção fizera
contra o oficialismo da Igreja na Argentina: “Como católico, solidário com todos
os irmãos perseguidos, não posso alegrar-me com o fato de uma perseguição;
mas posso rejubilar-me com o epílogo de uma impostura, com o termo de um
equívoco que é certamente pior, mais danoso do que a própria perseguição. E é
isto, é sobretudo isto que vejo nas boas, nas excelentes notícias que chegam da
Argentina. Cai a máscara do tiranete [refere-se a Perón], que se apresentava
como protetor da Igreja, e assim é de esperar que se abram os olhos daqueles
que se deliciavam com a proteção, com aquela proteção. Contestará alguém
que a veracidade seja um lucro? Por mais penosas que sejam as conseqüências
para as igrejas na Argentina, é melhor esse sofrimento que vem da liberdade
essencial da Igreja do que a cômoda continuação de um catolicismo oficial
fundamentado na momentânea conveniência de uma política maquiavélica”.
“Perón e a Igreja”, artigo de 1954, incluído no volume de crônicas Dez anos ,
Agir Editora, 1957, p. 224.
[ 10 ] “Romance de tese e individualidade”, in A leitora e seus personagens ,
Editora Graphia, 1992, RJ, p. 75.
[ 11 ] Evanildo Bechara, Dicionário da língua portuguesa , Nova Fronteira,
2012.
[ 12 ] Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa (5 vols.,
Rio de Janeiro, Ed. Delta S.A, 1965).
[ 13 ] Dictionnaire Larrousse maxi poche , Ed. Larrousse, 2009.
[ 14 ] Orelhas do livro A balada do cárcere , de Bruno Tolentino.
[ 15 ] “O segundo oitocentos”, De Anchieta a Euclides: breve história da
literatura brasileira , I, Rio, José Olympio, 1977, cap. IV, p. 108.
[ 16 ] “O ofício de compreender”, in op. cit., Editora. Graphia, 1992, p. 75.”
[ 17 ] “Carta do filósofo Olavo de Carvalho ao Sr. Editor de Cultura”, incluído
em Os Sapos de ontem , de Bruno Tolentino, p. 66, op. cit.
[ 18 ] Idem , p. 67.
São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor:
um é feito de chifres; o outro, de marfim.
Os sonhos que passam pelos portões de marfim talhado
são nocivos e trazem palavras que nunca se cumprem.
Mas os que saem cá para fora dos portões de chifre polido,
esses trazem coisas verdadeiras, quando um mortal os vê.
Homero, Odisséia , Canto XIX
(Tradução de Frederico Lourenço)
APRESENTAÇÃO

Este livro é a continuação de Muita Retórica – Pouca


Literatura (de Alencar a Graça Aranha) e reúne ensaios
publicados, entre 2012 e 2013, no jornal Rascunho , na
série, ainda não terminada, em que releio os prosadores da
literatura brasileira.
Nada mudou em minha visão do papel da crítica literária,
no meu método de análise ou, como afirmei no volume
anterior, citando Friedrich Schlegel, na necessidade de,
enquanto crítico, ser um leitor que rumina.
Ao contrário, a recepção de Muita Retórica – Pouca
Literatura reafirmou minha intuição de que número
considerável de leitores, estudantes de Letras, escritores e
membros da academia estão cansados da crítica que há
bom tempo viceja entre nós, sempre pronta a papaguear,
com nova camada de verniz, antigos julgamentos – ou,
igualmente desolador, apenas referendar a produção
literária atual.
Assim, minha leitura prossegue na contramão, recusando,
prazerosamente, formalismo, niilismo e solipsismo – a tríade
infernal denunciada por Tzvetan Todorov.
Rodrigo Gurgel
Janeiro de 2014
CAPÍTULO 1

À espera de justiça
– Júlia Lopes de Almeida e A falência

No tecido da literatura brasileira há um vigor que não


cansa de pulsar. São os autores esquecidos, sobranceados
pelos que, injustamente, se tornaram famosos. Traídos pelas
convenções estéticas, pelas panelinhas que controlam os
cadernos culturais e pelos críticos obedientes a modismos,
esses menosprezados cumprem, no entanto, digno papel: o
de aguilhoar o establishment e comprovar que, andando na
contramão, também é possível produzir boa literatura.
Silentes, preenchendo as prateleiras dos sebos ou o canto
úmido das bibliotecas, tais obras sussurram aos novos
escritores: “Não receiem tomar emprestados meus acertos
e melhores lições”.
Incluo nesse rol de livros depreciados o romance A falência
, de Júlia Lopes de Almeida. Se alguns erram por nem
mesmo citá-lo, outros – entre eles, Lúcia Miguel- Pereira [ 19
] – falham ao classificar a autora como “monótona” ou
destituída de estilo pessoal. Nada pode ser mais falso em
relação à escritora que nos deixou vasta obra e teve a
alegria de conhecer o sucesso em vida.
Figuras complexas
Poucos autores nacionais conseguiram criar tramas que se
impusessem como panoramas de uma época ou de
determinado contexto social. E um número ainda menor
mostrou habilidade para dar vida a personagens variados,
que não representassem existências isoladas, mas
interagissem de forma dramática. Júlia Lopes de Almeida
alcançou essas qualidades e concedeu a algumas de suas
obras a perfeita característica do romanesco, ou seja, um
conjunto ficcional harmonioso, em que se somam, à
diversidade de tipos, peripécias, anseios e decepções
pessoais, personalidades contraditórias e, no caso de A
falência , o cenário da nascente República e do
Encilhamento.
Francisco Teodoro, protagonista da história, é o imigrante
português de origem humilde que enriqueceu graças ao
esforço pessoal. Proprietário de um armazém exportador de
café, vive a euforia econômica do início da República Velha.
Critica as inovações do novo regime, resiste à investida dos
especuladores, mas, afligido pelo enriquecimento frenético
do rival Gama Torres, deixa-se engolfar na promessa de
lucros fáceis. A luta para emergir da pobreza concedeu-lhe
não apenas o gosto da pompa, mas também um leve traço
de distúrbio obsessivo-compulsivo, o cacoete de “remexer
com a mão curta e gorda o dinheiro e as chaves guardadas
no bolso direito das calças”. Esse homem de bom coração –
que sustenta inclusive pais e irmãos da esposa, cujas
cartas, pedindo sempre mais dinheiro, não param de chegar
do Sergipe –, capaz de defender a Monarquia sem
dissimulações, é o centro em torno do qual gravitam as
demais personagens: Mário, o primogênito, esbanjador e
boêmio; Nina, a sobrinha pobre, abandonada pelo pai, que
adora Mário e cujo amor não será correspondido; Ruth, a
filha sensível, imaginosa, hábil violinista; Noca, a mulata
agregada, contadora de histórias, supersticiosa, intérprete
de sonhos; as pequenas Raquel e Lia, filhas caçulas e
gêmeas, sempre prontas a fazer estripulias; Camila, a
esposa egocêntrica e adúltera, que finge estar resignada ao
casamento sem amor; as tias de Camila, Itelvina, avarenta e
rancorosa, e Joana, devota e bonachona; Gervásio, médico
da família e amante de Camila; Rino, tímido rival de
Gervásio; e a corte formada por amigos, conhecidos,
empregados.
Cada um desses personagens possui idiossincrasias que
não surgem de forma esquemática, mas contextualizadas,
respondendo à dinâmica da trama. A avareza de Itelvina,
por exemplo, não é mero penduricalho, mas uma compulsão
que a leva a roubar as esmolas que Joana consegue para a
Igreja e, na ausência da irmã, até mesmo apagar, por
economia, a lamparina do oratório. Bisbilhoteira, fria e
arrogante, chega ao extremo de surrar a empregada Sancha
por motivos que não passam de invenções da sua
imaginação doentia. Mas cada um dos seus gestos e falas
jamais é gratuito – ao contrário, corresponde a determinada
situação e provoca alguma conseqüência, ainda que
insignificante. Assim, no Capítulo III , o ótimo diálogo entre
Itelvina e Noca revela a memória autocomplacente da
primeira, que não enxerga a própria sovinice, a ponto de
transferir o drama ocorrido em sua casa a outras
circunstâncias, irreais.
A capacidade de criar pormenores reveladores,
impregnados de psicologia, é, sem dúvida, uma das
qualidades de Júlia Lopes de Almeida. Camila, salva da
pobreza graças ao casamento com Francisco Teodoro,
revela-se por inteiro nos breves comentários de insatisfação
que verbaliza, no Capítulo II , ao entrar, recém-casada, no
lar decorado pelo marido:
A sua maior comoção fora ao entrar em casa, na rua da Candelária.
Supusera sempre que ela apalpasse, com sofreguidão, todo o seu ninho, na
alegria de ser a dona, a senhora de tantas coisas compradas para o agasalho
do seu amor. Mas não: em vez de ir para o interior, Camila fora para a
sacada. Ele acompanhou-a.
Em frente, os telhados mais baixos sucediam-se irregulares, cortando-se em
linhas angulosas de um vermelho sujo; as casas, desiguais, acumulavam-se,
paredes ameaçando paredes, janelinhas de sótãos espiando as telhas
estriadas de limo, de onde emergiam chaminés negras e curtas, baforando
fumo.
Camila murmurava, como quem fala só:
– Se ao menos se visse o mar...
Disse; e curvava-se para a rua quando a badalada de um sino reboou perto,
formidável, prolongando-se num som que era como um gemido da cidade
inteira. Mila ergueu-se com um estremeção e voltou para o perfil da igreja o
olhar estático.
Ele sorrira do susto, enquanto ela dizia:
– Como é alto!

Tal descompasso de sentimentos só aumentará – e anos


depois, residindo no palacete de Botafogo, em que grande
parte do romance transcorre, enquanto Francisco dorme na
cadeira de balanço e a casa oscila entre as histórias de
Noca, a partida de Mário para mais uma noitada, a
brincadeira das crianças e a solidão de Nina, a autora fecha
o Capítulo II de maneira a confirmar nossas suspeitas: “[...]
Lá em cima, no terraço, ao lado do marido adormecido,
Camila curvou-se para o dr. Gervásio e beijou-o na boca”.
Submissa apenas na aparência, Camila justifica o adultério
como uma resposta às traições de Francisco Teodoro,
quando recém-casado. Mas a verdade é que o fato de sentir-
se desejada por Gervásio e Rino alimenta seu amor-próprio,
sentimento ao qual se abandona com evidente luxúria. Ser
infiel, contudo, ganha outros contornos e transborda para a
forma como acoberta os erros de Mário, mente sobre
questões insignificantes e age de maneira perdulária. Seu
apego ao caso de amor é maior, inclusive, do que a
vergonha de ser desmascarada pelo filho. E quando o
amante, a pedido de Francisco Teodoro, lhe comunica a
falência, suas reações passam por diferentes estágios: da
crítica ultrajante às acusações infundadas, da revolta ao
desejo de proteger o marido. Camila, portanto, não está
condenada pela autora a ser apenas uma esposa volúvel.
Depois do suicídio do marido, parte de sua complexidade
mostra-se na cena em que, vestida de luto, recebe de
Gervásio a chave do esquife: “[...] sentia na palma da mão a
friagem daquela chave pequenina e pesada sem saber onde
guardá-la, com medo de a pôr no seio, achando irreverente
guardá-la no bolso”. São as dúvidas de uma viúva fútil, mas
que demonstra saber o preço que deve pagar à opinião
alheia. Meses mais tarde, quando ainda reluta em aceitar a
pobreza, após se decepcionar com Gervásio ela enfim
abraçará o real sem teatralismos, demonstrando
maturidade e resiliência.
O hipócrita e falante Gervásio Gomes impõe-se
gradativamente à família, ocupando o vazio deixado por
Francisco Teodoro, mais preocupado com os negócios. Sob o
olhar ciumento de Rino, ele não passa de um “tipo
escanifrado”, com “ar de ironia, às vezes perversa, às vezes
insulsa”. Na verdade, por trás das frases prontas e dos
rasgos de ácido humor há o homem cético, o esnobe que
também foi traído pela esposa. Gervásio nos provoca
repulsa, mas é impossível não rir dos seus comentários
cheios de afetação, como este, quando pretende
redirecionar os interesses musicais de Ruth: “Chopin é um
músico perigoso, minha filha; é um torturador, um excitador
de almas. Contente-se com os seus clássicos, mais sadios e
mais frescos”. Ele incorpora, de maneira crescente, a tarefa
de refinar os gostos da família de Camila – e suas
intromissões não conhecem limite:
Ele agora demorava-se no palacete dias inteiros. Fora ele quem
determinara a transformação de duas alcovas inúteis em uma sala de
música, em que essa aplicação fosse indicada por pinturas a fresco: foi ele
quem contratou artistas, quem escolheu mobílias novas e harmonizou o
conjunto em todas as peças. Tudo que saía das suas mãos parecia a Camila
perfeito.

A família vive, assim, de forma promíscua, aceitando a


autoridade do amante, cujas ordens podem descer a
detalhes:
Entretanto, o dr. Gervásio perguntou a Mila:
– Seu marido está melhor?
– Não sei; anda amofinado... Sentiu muito o casamento de Mário. Ele não
quer que se diga que está doente. E efetivamente não está. Não sei o que é
aquilo.
Gervásio calou-se, pensativo. As gêmeas começaram a rir, uma da outra.
– Viu que bonito cróton está no vaso da entrada, doutor? – perguntou Ruth
ao médico.
– Vi. O cróton é bonito, o vaso é que é medonho. Tirem aquele vaso de
alabastro dali, ou eu não volto cá.
– Acha feio?
– Horrível.

Joana será a única a enfrentá-lo, quando o encontra, por


acaso, num bairro da periferia. Depois de ouvir as censuras,
o amante se revolta:
[...] Sentia-se colado de espanto àquele chão poeirento. Os seus amores,
que ele julgava bem ocultos, tinham varado as sacristias e ido do Botafogo
elegante até aos casebres do Castelo e da Conceição! Quis desmentir a
velha; mas os seus olhos claros, de um castanho louro, não o deixaram falar,
cortando-lhe pela raiz qualquer protesto. Ela não falara só pela boca, que a
tinha sincera; mas também pelos olhos, em cuja limpidez aparecera toda a
verdade.
O médico viu-a, com ódio, ir arrastando, na sua peregrinação de fé, as
pernas inchadas, rebolando os quadris largos, bem fornidos e que ainda os
franzidos da saia exageravam.
Apressou-se em voltar-lhe as costas, com medo que ela tornasse, para lhe
dizer ainda alguma coisa do pecado.

Mas, tão fútil quanto Camila, sua indignação é falsa, pouco


resiste:
Cansado, nervoso, picado pelo sol, o dr. Gervásio seguiu à toa, desceu o
morro, andou pelas ruas, mal respondendo aos cumprimentos dos
conhecidos, que ia encontrando à proporção que se aproximava do seu
centro habitual. Já nada do que vira e o impressionara naquele giro, se lhe
esboçava na lembrança. Aquelas riquezas, aquele movimento, aquelas
casas, aquele rumor de população atarefada, baixa e mesclada, aquelas
altas ruas despenhadas em escadarias imundas e barrancos, tudo se
dissipava e se fundia numa impressão de mar e de lixo, de onde surgia a voz
melada, untuosa da tia Joana, oferecendo promessas, confidenciando com
estranhos sobre os seus amores e os seus adorados segredos.
Uma raiva surda roncava-lhe no peito, quando chegou à rua do Ouvidor.
Veio-lhe então em cheio o aroma das flores frescas, à venda na esquina; e a
graça de uma mulher que passava com um chapéu atrevido e um vestido
bem feito, distraíram-no um pouco...

Não há, portanto, em A falência , nenhuma personagem


destituída de variado conjunto de atributos. Até mesmo o
secundário Negreiros é presenteado com momentos em que
pode revelar seu caráter. Já decretada a falência, ele e
Francisco Teodoro se encontram. Enquanto o segundo
aguarda o bonde, um cupê passa, levando Inocêncio, o
banqueiro que arruinara o exportador de café. Há um rápido
diálogo:
Francisco Teodoro nem tocou no chapéu e murmurou com ódio:
– Cão!
– Vai para a Europa... segue diretamente para Londres, num paquete da
Nova Zelândia, amanhã.
– Com o meu dinheiro...
Negreiros engoliu uma palavra qualquer, afagou o nariz e depois, corando
um pouco, aproximou-se mais de Teodoro e murmurou:
– Se precisar de mim... os amigos são para as ocasiões...
Francisco Teodoro estremeceu e apertou-lhe a mão com força; houve nos
olhos de ambos como que o brilho passageiro e eloqüente de uma lágrima.
Vinha um bonde; o negociante tornou a sacudir em silêncio a mão de
Negreiros e partiu.

O narrador não deixará de observar que, dias depois, antes


de seguir para o velório, “Negreiros levou a carteira cheia,
pensando em fazer o enterro”.
Diálogos e descrições
Os aspectos positivos de A falência não se esgotam na
psicologia dos personagens – da qual, aliás, demos poucos
exemplos. Há ótimos diálogos, plenos de fluidez e
naturalidade; e descrições abrangentes – que não
negligenciam nenhum aspecto do real –, nas quais há
espaço para cores, movimentos, aromas, sensações. A
abertura do Capítulo I é clássica:
O Rio de Janeiro ardia sob o sol de dezembro, que escaldava as pedras,
bafejando um ar de fornalha na atmosfera. Toda a rua de S. Bento,
atravancada por veículos pesadões e estrepitosos, cheirava a café cru. Era
hora de trabalho.
Entre o fragor das ferragens sacudidas, o giro ameaçador das rodas e os
corcovos de animais contidos por mãos brutas, o povo negrejava suando,
compacto e esbaforido.
[...] Um carroceiro, em pé dentro do caminhão, onde ajeitava as sacas,
gritava zangado, voltando-se para o fundo negro da casa:
– Andem com isso, que às onze horas tenho de estar nas Docas!
E os carregadores vinham, sucedendo-se com uma pressa fantástica, atirar
as sacas para o fundo do caminhão, levantando no baque nuvens de pó que
os envolvia. Uns eram brancos, de peitos cabeludos mal cobertos pela
camisa de meia enrugada de algodão sujo: outros negros, nus da cintura
para cima, reluzentes de suor, com olhos esbugalhados.
Ao cheiro do café misturava-se o do suor daqueles corpos agitados, cujo
sangue se via palpitar nas veias entumescidas do pescoço e dos braços.
Da balbúrdia que se desenrola na rua, o narrador nos leva
ao interior do armazém, chegando ao “extenso porão”,
sem janelas, ladeado de sacos sobrepostos e adornado nas vigas sujas do
teto por infinita quantidade de teias de aranha, enredadas, como longas
sanefas viscosas de crepe russo.
Para depois subir ao escritório, onde encontramos o
proprietário, Francisco Teodoro:
Toda a sua pessoa ressumava fartura e a altivez de quem sai vitorioso de
teimosa luta.
Gordo, calvo, de barba grisalha rente ao rosto claro, com os olhos garços
tranqüilos e os dentes brancos e pequeninos, tinha um belo ar de burguês
satisfeito.
Não era alto e quando andava fazia tremer a casa, tal a firmeza dos seus
passos pesados.

Problemas
A falência , contudo, apresenta alguns traços naturalistas e
muitas vezes resvala para um romantismo sentimentalóide
– a pior escolha talvez seja comparar os olhos de Camila a
“duas nascentes de agonia, choravam sem cessar”.
Mas há outros elementos que destoam do conjunto. Em
certos trechos, o tema do feminismo se desvincula da
narração, ganha vida própria, e torna-se mero discurso
panfletário. Em outros, o narrador exagera no cromatismo e
acaba por criar pinturas de mau gosto:
Ao longe, a Serra dos Órgãos desenhava no céu os seus contornos de um
azul de ardósia. Para os lados da barra havia montes de prata fosca em que o
sol, cintilando nas pedras, escorria laivos de prata polida, e rochedos cor de
violeta espelhavam-se nágua; entre montanhas de um verdor intensíssimo.

Júlia Lopes de Almeida chega, inclusive, a repetir algumas


figuras, insistindo na presença dourada do sol, no azul de
tons variados, na vespa solitária que, perdida no aposento,
ressalta o silêncio, nas cigarras a cantar enquanto a ruína se
instala, no personagem que caminha e aproveita para
refletir... É como se, de repente, ela esquecesse os múltiplos
recursos de que provou ter domínio. E se tivesse controlado
um pouco o seu narrador, principalmente quando ele
desanda em divagações infantis ou sente-se obrigado a
bordar com razões e filigranas tudo que vê, teria feito um
benefício ainda maior à nossa literatura.
De qualquer modo, quando terminamos o livro torna- se
ainda mais inacreditável que péssimos autores – como
Franklin Távora, Adolfo Caminha ou Afonso Arinos [ 20 ] –
continuem recebendo elogios, enquanto Júlia Lopes de
Almeida, passado mais de um século da publicação de A
falência , ainda não mereceu profunda e extensa releitura.

[ 19 ] Em Prosa de Ficção (De 1870 a 1920) , 2ª edição, revista, Livraria José


Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
[ 20 ] Escritores analisados em Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a
Graça Aranha) , Vide Editorial, 2012.
CAPÍTULO 2

Escondido e desprezado
– Emanuel Guimarães e A todo transe!...

A todo transe!... é um tipo peculiar de roman à clef : à


parte o fato de pertencer a certo elogiável grupo – no qual
encontramos, por exemplo, Os Buddenbrooks ou O sol
também se levanta –, a obra de Emanuel Guimarães,
publicada em 1902, permanece atual não apenas graças às
qualidades literárias, mas porque sua “chave”, passados
mais de cem anos, pode ser encontrada em Brasília ou nas
assembléias estaduais, como se os políticos encobertos
pelas personagens ainda estivessem vivos, cadáveres
embalsamados por meio de alguma técnica miraculosa,
capaz de mantê-los respirando e, principalmente,
cometendo os mesmos delitos.
De fato, a semelhança entre o romance e as piores páginas
do noticiário político chega a ser assustadora, mas não
devemos nos prender a tal característica, pois ela apequena
as virtudes desse livro injustamente esquecido, que nos
ensina como a ficção pode descrever não só uma época,
mas, partindo de fatos mesquinhos, retratar a índole
duradoura da classe dirigente e a feliz alienação do povo.
Não por outro motivo, aliás, A todo transe!... foi expulso
das nossas histórias literárias, escorraçado das antologias e
banido das livrarias: o brasileiro é condicionado, sempre e
cada vez mais, a enganar-se quanto a seus defeitos e
qualidades, travestindo-os por meio do sentimentalismo, da
farra, da autocomiseração ou do comportamento ufanista. O
que é o Carnaval, senão a exasperação da tristeza e da
derrota? E a crescente hegemonia do marxismo – inclusive,
é claro, na crítica literária – só agravou o problema: para a
esquerda, o brasileiro, olhando-se ao espelho, deve ver não
a realidade, mas a utopia – a idéia benévola que faz de si
mesmo.
O romance de Emanuel Guimarães vai na contramão dessa
cultura. Se há idealismo, está somente nas falas de Andrade
e Melo, o deputado monarquista – o último deles; ou o
último que tem coragem de se afirmar como tal. Desviando-
se do óbvio e da ilusão, A todo transe!... é um panorama
dos bastidores da política e das regiões mais escuras do
coração humano. Um romance sem ideais, mas que recusa
o sarcasmo machadiano, pois seu narrador sabe diferenciar
o certo do errado, o bem do mal.
Teoria do engrossamento
A perfeita definição da política, o narrador a coloca na boca
do velho deputado Soares, experiente mas de poucas luzes,
que assim explica ao novato Júlio César Betarry,
protagonista do romance:
Isto de política é um ofício como outro qualquer: um homem, como o
visconde de Mauá, que tem idéias grandes de progresso, é um perfeito
imbecil ao lado de um lorpa como o Jotajota, que ganha dinheiro em jogo de
câmbio e de bichos; aos olhos do mundo este vale muito mais que aquele.
Na política é a mesma cousa: quem tem idéias, quem quer ser estadista cai
no ridículo e na miséria; político é o Juca Lima [líder do governo na Câmara
Federal]: é o rei do Brasil, nem sabe ler, não sabe nem quer saber senão de
bobagens.

Ao que Betarry, rindo, pergunta o motivo de manterem


Juca Lima na liderança, se realmente todos pensam assim.
Impassível, Soares responde: “[...] Ora, porque ele é o ideal
do político, nulo de inteligência, fácil de moral e prático de
eleições”.
A visão crua de Soares voltará logo a seguir, quando
Betarry, inebriado pela vida no Rio de Janeiro (até então era
um obscuro representante na assembléia estadual mineira),
percebe que os deputados, diferente do que sempre
imaginara, “apenas saíam do parlamento procuravam
afugentar todas as idéias que dissessem respeito à sua
profissão”. Surpreso com os temas dos diálogos –
“mulheres, o escândalo do dia, o pagode de amanhã” –,
com as rápidas sessões da Câmara, em que nunca se
discutia realmente, e com a visita diária a teatros, clubes e
prostíbulos, Betarry questiona o velho deputado, que lhe
responde na voz do narrador:
[...] O governo era o governo, a ele é que incumbia de trabalhar; quando
surgia uma questão qualquer, o partido, o leader os convocava para uma
reunião onde se dava a cada qual o papel a representar; quanto a ele, era
apenas um número, um voto; não tinha outro mister: sim ou não, conforme
lhe diziam. Muita vez discordava do que se fazia: mas para que buscar
embaraços e maçadas quando as tinha já tantas involuntariamente? Aquilo
tudo era uma pachouchada: eles entendem lá de governo? Mas estão de
cima, são quem manda: querem assim? Sua alma, sua palma! Se essa
bambochata desse em droga, ao menos ele não teria remorsos de haver sido
o causador, nenhuma responsabilidade lhe poderia caber nos
acontecimentos, eram todas dos que mandavam.

Loureiro, outro deputado, da mesma roda, apresenta


justificativas mais elaboradas – e não menos cínicas –, para
assim concluir:
[...] Ajunta que a vida é curta, o voto popular incerto quanto o bel-prazer do
governo. Ora, hei de eu perder meu tempo de deputado eleito, com
alfarrábios e estatísticas, trocar pela eloqüência dos algarismos, muito
cacete, muito trabalhosa, muito falsa e muito pouco eficaz nos ânimos, a
minha bela e fácil eloqüência, do verbo agradável, oco, de inevitável efeito, e
de absoluta inanidade, em vez de aproveitar enquanto o Brás é o tesoureiro?
E sacrificar-me estupidamente, à toa, porque o meu embrutecimento não
redundaria em benefício nem meu nem de ninguém? Então pensas que nós é
que fazemos a política? A política é que nos faz a nós, quem a faz é a arca
onipotente da rua do Sacramento [à época, endereço do Tesouro Nacional],
quem faz a esta é o café e a borracha, que são as duas tetas do Estado [...].

A essas explicações, destituídas de eufemismo, o próprio


Betarry, depois de eleito à Câmara, somará outras,
adquiridas em rápido aprendizado. Na carta que escreve ao
cunhado – Fabiano de Alencar, fazendeiro e chefe político
em Juiz de Fora –, responsável por seu ingresso na vida
política, o novo deputado federal comemora o resultado das
urnas e desculpa-se por não ter visitado a cidade nem
mesmo durante a campanha:
[...] Para que iria eu lá? Tinha-te a ti como patrono, e sobretudo, não me
queiras mal, tinha a promessa do ministro: ainda quando eu fora nascituro,
com tal garantia sairia eleito; para que deixar isto aqui, este Rio de Janeiro
onde me prendi douda, doudamente?...

A essa lição – sucinta e esclarecedora – a respeito do


sistema eleitoral da República Velha, Betarry adicionará
outra, na qual elucida a técnica para se criar notabilidades,
aperfeiçoamento do puxa-saquismo:
[...] A palavra engrossamento , hoje em moda, é característica da época.
Hoje não se adula, não se lisonjeia, nem mesmo se bajula: hoje engrossa-se :
aqueles vocábulos eram mais finos, aplicavam-se a um certo ato, no fundo
ignóbil, mas que se praticava como que envolvido em panos quentes, às
ocultas: hoje o ato é o mesmo mas sem cobertas, às escâncaras, tão ignóbil
no fundo como na aparência, e por isso a gíria popular criou o engrossa ,
palavra indecente, obscena, como a cousa que representa [grifos do autor].

Didático, Betarry esmiúça o tema, usando como exemplo o


ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, o médico
Jerônimo Moreira, seu protetor, a quem chama de
“nulidade” por ter produzido um “plano geral de viação para
o Brasil” capaz de estupidificar seus leitores:
[...] Ele quer ser engrossado, exige o engrossamento constante, perene,
criou o engrossamento para uso próprio, hoje vive dele. [...] O tal plano de
viação geral do Brasil foi levado aos cornos da lua: o Clube Politécnico não
hesitou em declarar que a salvação do país está na realização daquela
monstruosidade. Não te assustes: ninguém acredita nisso; os membros do
Clube são os primeiros a se admirar de como um homem pôde imaginar
tanta asneira; mas houve engrossamento – Ite, missa est . Tenho refletido
muito neste fenômeno: um homem galga por acaso uma posição social: os
competentes, que precisam dele, começam a engrossá-lo, aos poucos o povo
se capacita que o engrossamento é a verdade, e o cujo passa a notabilidade;
depois os acontecimentos entram a demonstrar-lhe a ignorância palpável, os
engrossadores lhe a revelam, o povo lhe ri às barbas; o engrossado tornou-se
sabedor. Ninguém mais persuadirá ao país que o Dr. Jerônimo Moreira,
ministro da Viação, é o que ele é, uma ignorância forrada de presunção
catedrática: está consagrado. [...]

São os fatos que prevalecem até hoje, caso acreditemos


nas informações da mídia, em certas pessoas escolhidas
para cargos de confiança e no perfil desolador dos eleitos,
com os agravantes típicos das democracias representativas,
cujos vícios não enumeraremos aqui.
Linguagem e primitivismo
Mas se desconsiderarmos o contagiante pessimismo que
brota dessas linhas, veremos, a sustentar o enredo, a
linguagem fluida, espontânea, em grande parte coloquial –
que se submete, infelizmente, à retórica em alguns trechos
–, capaz de recriar, além das falcatruas, dos bastidores do
jogo político, a vida social carioca do início do século XX , o
crescente desenvolvimento da cidade. Linguagem hábil em
descrever o comportamento da massa ou a vida íntima das
classes sociais que tinham acesso ao poder, com seus
dramas, traições, imoralidades.
Aos 31 anos, quando publicou A todo transe!... , Emanuel
Guimarães tinha absoluto controle da sintaxe, dos meios de
expressão oferecidos pela língua, construindo um estilo
muito distante dos períodos quase telegráficos que
encontramos na literatura contemporânea, reflexos não de
uma opção estética consciente, mas, em grande parte, da
nítida insegurança dos escritores. Um breve parágrafo,
simples descrição do hall da residência de Joca, a amante
do ministro Moreira, mostra como a estrutura frasal pode
refletir a emoção intensa, a confusão que o reencontro de
Betarry – por quem permanece apaixonada, passados vários
anos – provoca nessa mulher; e também a perfeita idéia de
movimento, dos personagens que se deslocam para o
interior da casa:
Um vestíbulo pequeno, com um cabide esguio, do espelho estreito e
comprido de cristal grosso, onde ela dependurava o chapéu de Júlio César e
depunha-lhe a bengala, flanqueado de três portas, das quais uma fronteira à
da entrada, abria-se, por trás de um reposteiro espesso de seda desmaiada,
dum tom brando de folhagem seca, para a sala de visitas, onde Joca ia
fazendo-o entrar, quase arrastando-o.

Emanuel Guimarães mostra-se igualmente feliz na


descrição das personalidades, às vezes estendendo-se em
demasia, mas sempre conseguindo uma frase que sintetiza
o personagem. De Jerônimo Moreira, ressaltará sua
“nulidade empertigada”. Sobre Juca Lima: “Sua própria
nulidade fora seu melhor título: sem passado, sem opiniões
divulgadas, era o tipo por excelência do constituinte
desejado”. Pimenta, um intendente municipal, promotor de
festas quase diárias em sua casa – em relação às quais
Soares dirá estarem “num ponto em que ninguém sabe
onde começa a prostituição e acaba a honestidade” –, surge
como um tipo hediondo:
Crivado de cicatrizes de bexigas, o bigode falhado, as faces rechonchudas,
ele tinha o aspecto dos sórdidos gozadores, desses rebotalhos sociais que
em épocas críticas sobrenadam, mancos de senso moral, legião torpe que
devora a cousa pública sem rebuço e clamam com um muxoxo cínico: depois
de mim o dilúvio.

E o narrador se mantém inflexível ao apresentar o falso


luxo da residência que Pimenta divide com as filhas:
[...] Tudo aquilo pequenino, guarnecido de uns móveis efeminados,
bonitinhos, móveis de fancaria, casquilhos, de uma graça luxenta de quem
quer e não pode. [...] Em tudo transluzia a dificuldade que atribulava
constantemente a existência daquela gente, curta de recursos, larga de
usanças.

Os diálogos merecem especial atenção, pois estão repletos


de indiretas e ironias, ferinas ou não, trocadas entre
companheiros de partido e suborno ou inimigos que se
suportam em nome da convivência quiçá democrática. Uma
seqüência de falas entre personagens pode ser construída
utilizando-se o coloquialismo típico dos rápidos encontros
entre conhecidos, plenos de comentários airosos ou
divertidos, entremeados por rápidas cenas urbanas, que
dão vida e autenticidade à história. Veja-se, por exemplo, no
Capítulo V , o longo trecho em que os personagens se
deslocam pelas ruas centrais do Rio de Janeiro,
encontrando-se e despedindo-se, interrompidos pelos
bondes, pela massa que se desloca, por figuras que se
aproximam, agregando-se temporariamente ao grupo,
enquanto o narrador capta os gestos, as expressões, o
burburinho. Então, quando percebemos, estamos no centro
dessas conversas ligeiras, ouvindo vozes dessemelhantes,
tomando consciência de suas peculiaridades; entramos com
eles numa joalheria e assistimos ao fútil quinteto operístico
expor sentimentos diversos, mas formando um todo
harmônico, coerente. Mais que o perfeito controle dos
elementos da frase, construir cenas desse tipo requer
sensibilidade, vivência, argúcia.
Observem como Emanuel Guimarães, indo além do
diálogo, acrescenta verossimilhança à descrição da rua do
Ouvidor – encaixa um incidente curioso, que reforça o
descompasso entre a paisagem urbana rústica e o aparente
progresso, salientando a conhecida negligência brasileira:
O sol caindo sob a Cidade Nova deitava os raios oblíquos, e as casas altas
sobre a estreiteza da rua banhavam-na em sombra amena, bruscamente
cortada, nas esquinas das ruas transversais, com uma mancha dura de
claridade. As bandeiras, permanentes nas sacadas dos prédios, ondulavam
com a viração agradável que soprava do mar, e no movimento daquelas
fraldas largas dos pavilhões desbotados, de cores mortas pela exposição
constante à atmosfera, roçando penosamente nos arcos de bicos de gás de
lado a lado na rua, desprendia-se um característico ar de rudez primitiva,
como que prolongando e acentuando o contraste estranho entre as
edificações da rua e as vitrinas, do povo imenso grulhando e o exíguo espaço
da calçada, estrambótica com os esgotos em meio, a mescla indizível de
civilização e barbaria que ressumbra da rua do Ouvidor.
De súbito, a gente toda que acercava a esquina da rua da Quitanda,
alvoroçou-se, e uma nuvem densa de poeira levantou-se.
– Que diabo! Exclamou Garcia tapando o nariz com o lenço e atirando-se
para o lado oposto. Isto é um desaforo! Em plena rua do Ouvidor, a estas
horas.
Era uma carrocinha cheia de terra, puxada à mão, que dous trabalhadores
tinham naquele instante virado à entrada do andaime de uma reedificação
ali, na esquina. A terra fina produzira um pó alvacento que toldava o ar,
sufocando. [...] Andrade e Melo puxou do lenço e espanou a poeira que lhe
enxovalhara a roupa.

Essa crítica de Guimarães ao progresso destituído de


civilização retorna em diferentes momentos. O narrador faz
Júlio César Betarry ver a rua do Ouvidor como um símbolo
da “aversão hedionda e indomável” que o país tem “pela
beleza, pelo conforto, pelo polimento”, observando, com
repulsa,
a rua abjeta com as vitrines repletas dos mais requintados lavores da
indústria moderna, no contrassenso dos luxuosos vestuários, roçando
podridões amontoadas pelas sarjetas, na imoralidade das fachadas
ornamentadas com os fundos internos pestilentos, na tristeza da aparência
civilizada com a realidade selvagem e primitiva, símbolo mordaz do povo
todo pompeando com a fama de suas grandezas e esbofado de miséria
íntima, encurralado nos costumes grosseiros, lembrando o caipira de pé
descalço e enfiados no varapau os sapatos que calça à entrada da vila, para
assistir à festa!
Se essa visão das contradições do Brasil urbano não fosse
assumida pelo narrador, não poderíamos confiar nas
impressões de Betarry, pois ele é o protótipo do político
desleal e fingido – e não é minha culpa que esta última
expressão tenha se tornado um pleonasmo.
Fantasmas
A construção psicológica do protagonista – e dos demais
personagens – é outro mérito de Emanuel Guimarães.
Fazendo perfeito corte na narrativa, ele abandona o Betarry
que acabara de chegar à capital e volta no tempo, a fim de
mostrar a formação, no Capítulo II , desse jovem interiorano
que olha todos com arrogância e compara os políticos a
prostitutas. Filho de um descendente de ciganos que se
torna criador de porcos, Júlio César forma-se, com
brilhantismo, na antiga Escola de Minas, em Ouro Preto. O
prenúncio de sua ambição já se encontra no universitário
que “não estudava por amor ao estudo, mas pela satisfação
de orgulho que o estudo lhe proporcionava”. Isolado, sem
amigos, mantendo “apenas as relações de camaradagem
forçada pela pequenez do meio social”, logo percebe que
apenas a política lhe permitiria erguer a cabeça acima da
pobreza:
Viu que ela dá tudo: por ela, salientando o indivíduo, galgam-se as posições
iminentes e dominadoras, e a importância que se adquire ou os proventos
que se pode auferir dela, abrem de par em par todas as portas de todas as
satisfações.

Escolhido orador da turma, os temas do discurso formam a


síntese do pensamento que norteará sua carreira: Darwin,
Nietzsche e um visceral anti-cristianismo. Para nossa
surpresa, contudo, os sonhos morrem ao primeiro golpe da
realidade – e ele se transforma num funcionário público
medíocre. Apaixonado pela trapezista do circo que se instala
na cidade – a mesma Joca que o reencontrará no Rio de
Janeiro –, seu pai o impede de fugir com a jovem. O cunhado
leva-o, então, para sua fazenda, onde Betarry rapidamente
esquece a aventura. Sob circunstâncias favoráveis, acaba
escolhido pelo parente para derrotar, no interior do partido,
um representante da oposição. É o primeiro passo para ser
eleito deputado estadual. A partir desse ponto, o que vemos
é sua crescente e insaciável ambição. Famoso e respeitado
na província, sonha com mulheres fantasiosas: “[...] Ele
aspirava acorrentar após si, como uma teoria de lânguidas
vitórias, inúmeras amadas umas após outras, suplicantes
em torno dele, impávido, coroado de glória e amor”. Este é
Betarry, pronto a ser objeto de adoração, mas jamais
disposto a amar verdadeiramente. E, na política, suas
posições se definem não segundo princípios ou certezas,
mas por obediência à cupidez:
A única possibilidade que ele entrevia eram as futuras eleições federais.
Mas três longos anos ainda o separavam daquele prazo fatal e o ardor que
lhe fervia no peito não se padecia com tal demora. Do estado d’alma que lhe
formou aquele desequilíbrio entre o que possuía e o que almejava, resultou-
lhe uma aspereza no trato que inflamou a campanha de oposição que
combatia contra o governo.
Um azedume o enfebreceu contra tudo e contra todos.

Inseguro, imaturo, Betarry avança às apalpadelas. Na


capital da República, seduzido pelas festas e pelo
meretrício, continua, no fundo, o envergonhado mineiro.
Ganha importância, sim, não pelas qualidades de
articulador, mas por servir às pessoas certas, estar à mão,
com sua vibrante oratória, pronto a agir enquanto
marionete. Durante a madrugada em que caminha ao lado
de Andrade e Melo, ouve a fala repleta de indignação do
ético deputado monarquista – mas recebe-a como estímulo
para sua própria desonestidade. E ao reencontrar Joca,
aceita possuí-la não em nome dos sentimentos passados,
mas, obedecendo ao desejo de grandeza, por ela ser
amante do ministro – de quem, aliás, corromperá a esposa.
Assim, finalmente alcança fama e conquista mulheres. Mas
ainda lhe falta riqueza. Na manhã seguinte à de sua
primeira noite com a esposa do ministro, só consegue ver o
quanto outros são mais ricos que ele:
E enquanto ele ia-se vestindo às pressas, seus olhos erravam da cama de
ferro, com lençóis de cretone, à colcha grosseira de algodão branco, para o
lavatório de vinhático com o espelho já todo sarapintado, o aço desfeito pelo
ar salitrado do mar, as duas cadeiras de palha velhas, o sofá de reps safado,
e suas roupas dependuradas em pregos pelas paredes, e o baú de couro
peludo com as tachas de metal, tudo pobre, pobre, pobre, pobre! Em vez
disso, o ministro, lá nas Laranjeiras ou na praia de Botafogo, nadava em luxo;
o Jotajota, boçal e torpe, fruía palacete pomposo; o Barão da Concórdia
rolava em vitória macia com bestas ajaezadas de prata; o Pimenta indecente
tinha dinheiro a rodo para pagar-se cocottes de preço [...].

Em seu delírio, Betarry obedece à frase síntese do livro: “O


que se procura é o dinheiro, venha como vier, donde vier, o
dinheiro a todo transe...”. Fiel à desmesurada ambição,
aceita se casar com a filha natural do Barão da Concórdia,
feia, quase disforme, mas dona de incrível dote.
A segunda carta que escreve ao cunhado, no Capítulo XII , é
o resumo do que há de mais sórdido na política. Por um
momento, Betarry ensaia questionar-se acerca de sua
própria identidade:
O que me atormenta ligeiramente é apenas isto: para quê? Sim, para que
sou eu o que sou, que fim demando, de que serve toda esta força que me
está nas mãos? A inanidade do poder está-me agora ante os olhos, clara
como um período do Padre Vieira.

Mas não tem fibra moral para ir adiante; e as linhas


seguintes, gasta-as em generalizações, pretendendo
defender sua perversidade, até chegar ao lugar-comum
citado por todos os corruptos: “O mal, o mal político, a
nulidade prática do governo, dos homens públicos, faz parte
da organização brasileira: se o governo deixasse de ser
inútil e pernicioso, o Brasil deixaria de ser Brasil”.
À fácil desculpa do atavismo político, Betarry acrescenta
galhofas a respeito do seu próprio comportamento, cada
vez mais laxo:
E sobretudo te peço que não tires do fundo do teu arsenal de mineiro,
reprovações à minha conduta como costumas fazer. Não penses em
casamento interesseiro nem glorifiques o amor ao lar, dignidade da família,
como não penses em honra, em pátria, bem da nação e todas as suas usuais
mineiradas. São cousas passadas, só em Minas, lá no fundo dos sertões e
das fazendas, é que se sonha ainda com esses fantasmas.

O livro termina com terrível metáfora: a massa


espremendo-se contra os portões da igreja, ensandecida
para assistir ao casamento de Betarry – o povo reduzido a
insignificante, mas satisfeito espectador da festança alheia.
Resposta ao enigma
O leitor que chegou até aqui certamente se pergunta por
qual motivo nossos peritos em literatura fazem questão de
esconder e desprezar A todo transe!... Parte da resposta
está no próprio livro; parte nas linhas acima. Mas aos que
desejarem se aprofundar no enigma, proponho um salutar
exercício: leiam a educadíssima carta que Elio Vittorini –
cujo projeto era o da suposta “renovação moderna da
literatura” – enviou, em julho de 1957, a Giuseppe Tomasi di
Lampedusa, explicando por qual motivo se recusava a
publicar O Leopardo . Ali, nas entrelinhas, nas razões
ideológicas que Vittorini dissimula, encontrarão o fragmento
fundamental da resposta.
CAPÍTULO 3

Combate interminável
– Euclides da Cunha e Os Sertões

Excêntrico e híbrido, Os Sertões , de Euclides da Cunha,


assemelha-se ao mostrengo de Fernando Pessoa, que se
ergue a voar na “noite de breu”, em pleno oceano, e
circunda a nau do explorador, interrogando-o: “Quem é que
ousou entrar / Nas minhas cavernas que não desvendo, /
Meus tectos negros do fim do mundo?”. E a reação do leitor,
ao se deparar com o grosso volume e seu texto muitas
vezes excessivamente rebuscado, quase sempre não
corresponde à do navegante que enfrenta a terrível criatura
– “Aqui ao leme sou mais do que eu: / Sou um povo que
quer o mar que é teu [...]” –, pois tornou-se comum a
desistência logo às primeiras páginas, quando o inexperto
marinheiro se depara com descrições topográficas e
geológicas que parecem conduzi-lo ao abismo; e não à
passagem do Bojador.
O desejo euclidiano de erigir uma obra total pagou o preço
da desmesura, semelhante aos personagens mitológicos
julgados por sua hybris . Mas o livro, que veio à luz em
1902, continua a merecer atenção – cuidadosa e necessária.
Em relação a Os Sertões é preciso distanciar-se das leituras
fossilizadas, pois excessivamente laudativas, capazes
somente de coroar a obra com jaculatórias, segundo o feliz
ensinamento do seu principal estudioso contemporâneo,
Leopoldo Bernucci, no evento Euclides da Cunha 360º ,
realizado em 2009. O pesquisador, aliás, salientava o fato
de, no Brasil, cultuar-se esse autor controverso que, ao
invés de ser endeusado, deveria ser debatido. Prática,
completa Bernucci, fruto de uma cultura em que não se
aprende a ler de maneira compenetrada e crítica, na qual o
fascínio pela palavra escrita se sobrepõe à sua
compreensão.
Tais cuidados fazem-se ainda mais necessários quando
recordamos a melhor biografia de Euclides da Cunha,
escrita pelo norte-americano Frederic Amory. [ 21 ] Para o
autor de Euclides da Cunha: uma Odisséia nos Trópicos , a
leitura proveitosa de Os Sertões exige isolar o valor
estilístico dos erros geográficos e das análises deterministas
e racistas. A força da narrativa supera, é verdade, em
inúmeros trechos, o conteúdo analítico datado; mas não
podemos esquecer as sábias observações de Gilberto
Freyre, para quem Euclides está
perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do
oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses
perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus
excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de
extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou ao
fracasso artístico. [ 22 ]

Há quem prefira alimentar opinião mais radical, como


Roberto Schwarz, que critica, ao falar de Euclides e Raul
Pompéia, a “monstruosa salada que junta naturalismo e
parnasianismo, écriture artistique e racismo científico,
eloqüência épica e terminologia técnica”. Para Schwarz, a
“prosa franca e espirituosa” de Helena Morley (em Minha
vida de menina ), “inimiga de afetações de superioridade” e
livre das “alienações ideológicas e artísticas”, encontra-se
num patamar superior ao de Os Sertões . Trata-se, sem
dúvida, no que se refere a Euclides, de uma “dialética
envenenada”, mera provocação, como aliás anunciava o
próprio título da entrevista. [ 23 ]
Na verdade, guarda mais razão Franklin de Oliveira, no
ensaio “Um problema de ontologia literária”, presente em
Euclydes: a espada e a letra . [ 24 ] Ao recuperar o histórico
dos termos phantasia e imaginatio , passando por Leonardo
da Vinci – para quem a ciência era “uma segunda criação
realizada pela fantasia”, pois “a criação artística contém
todas as formas que estão na natureza e as que não estão”
–, o estudioso maranhense demonstra que, para Euclides, “a
fantasia é o fermento, a levedura das criações artísticas e
científicas”. Ainda que, páginas depois, Franklin acabe por
acorrentar Os Sertões à categoria de “ensaio de crítica
histórica”, comparando-o, de forma absurdamente
exagerada, a Johan Huizinga ( O outono da Idade Média ) e
Jacob Burckhardt ( A cultura do Renascimento na Itália ), a
intuição do ensaísta plantou boa semente: a base de Os
Sertões é a fantasia – e o livro, de fato, está recheado de
ficção.
Misterioso defunto
Um dos trechos mais belos e instigantes de Os Sertões é
“Higrômetros singulares”, no qual Euclides apresenta a
“secura da atmosfera”, na região de Canudos, por meio de
uma cena perturbadora. O leitor acaba de enfrentar as
páginas iniciais de “A Terra”, primeira parte do livro, e
encontra-se dividido entre abandonar o volume ou seguir
em frente. É a reação natural de quem, não sendo geólogo,
pergunta-se o que significam, por exemplo, “assomadas
gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase
geométricos, à maneira de silhares”. Ele percebe, graças a
seu instinto panglossiano e à eufonia, a relativa beleza de
dizer que
Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda – restos de velhíssimas
chapadas corroídas – se derramam ora em alinhamentos relembrando velhos
caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajes
fraturadas, delatando idênticas violências.

Mas questiona-se se poderá suportar a descrição de


“cristais de feldspato”, “estratos de um talcoxisto”,
“formações silurianas”, “cachopos de quartzito” e
quejandos. Nesse momento, quando suas vísceras
começam a gemer, salva-o da escuridão o narrador,
abraçado à tarefa de explicar as características climáticas,
mudando subitamente a inflexão da voz para torna-se
íntimo, lírico:
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos,
fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturnos,
encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas
se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros
virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes,
davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao
lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação
franzina.

Nesse cenário idílico, no qual “icozeiros virentes viçando


em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes”
explodem não só graças ao brilho que ofusca, mas à
aliteração da frase, um soldado “descansava... havia três
meses”. A antinomia dos elementos seduz. Passadas
dezenas de páginas em que o linguajar técnico enfastiava,
no centro do jardim luxuriante surge o morto:
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o
cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que
sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo,
derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma
escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido.

A cena, trágica, tem uma beleza que atordoa. Ali está o


defunto, protegido pela longa sombra do sol poente,
“braços largamente abertos, face volvida para os céus”.
Euclides acrescenta o comentário enternecedor: “O destino
que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma
concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso
repugnante [...]”. E prolonga nossa pena por meio de uma
sugestiva amplificação: “[...] e deixara-o ali há três meses –
braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para
os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas
fulgurantes...”.
As linhas finais servem não só à comprovação científica da
“secura extrema dos ares”, mas acrescentam caráter
filosófico ao texto. O narrador contrapõe uma nota de
enlevo à sua constatação, lacônica e aguda, colocada entre
travessões, sobre o fim da matéria, como se a degradação
invulgar daquele corpo pudesse fugir à lei universal:
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços
fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado,
retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja.
Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe
maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição
repugnante, numa exaustão imperceptível.

São trechos desse tipo, nos quais a fantasia estraçalha o


ensaio histórico, que justificam a leitura de Os Sertões . E o
colocam bem acima do livro pueril de Helena Morley – e de
grande parte da literatura produzida no Brasil até o início do
século XX .
Esse trecho encerra também uma característica misteriosa.
Como afirmei em meu blog , em 2006, considero
“Higrômetros singulares” uma espécie de paráfrase do
poema “Le dormeur du val”, de Arthur Rimbaud. A
semelhança entre os textos é fascinante, inclusive se
utilizarmos a tradução impecável de Ivo Barroso. [ 25 ] Em
Euclides, “um velho jardim em abandono”, com uma “árvore
única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação
franzina”; em Rimbaud, “um recanto verde onde um regato
canta / doidamente a enredar nas ervas seus pendões / De
prata”. No brasileiro, “o sol poente desatava, longa, a sua
sombra pelo chão”; no francês, “o sol, no monte que
suplanta, / Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões”.
Se o soldado, em Os Sertões , tem “os braços largamente
abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes,
para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...”, no
poema ele apresenta a “boca aberta, fronte ao vento, / [...]
estendido sobre as relvas, ao relento, / Branco em seu leito
verde onde chovia luz”. Luz que fulge na “flores rutilantes”
de Euclides. Este fala da “ilusão exata de um lutador
cansado, retemperando-se em tranqüilo sono”; no poema, o
verbo dormir surge duas vezes.
A transposição é clara. Euclides tirou o soldado do vale
verdejante de Rimbaud e colocou-o entre seus “icozeiros
virentes”, também num vale, descrito no seu estilo algo
hiperbólico.
A similaridade me encanta. Leopoldo Bernucci já
demonstrou as relações intertextuais que Os sertões
mantém com, entre outros, Victor Hugo e Domingo
Sarmiento. [ 26 ] E há um dado, de ordem biográfica, que
corrobora minha hipótese: sabe-se da influência que teve –
não só no que se refere a sugestões de leitura, mas, de
maneira indireta, na própria elaboração de Os sertões – o
intendente de São José do Rio Pardo, Francisco Escobar.
Entre 1898 e 1901, período durante o qual Euclides viveu na
cidade do interior paulista, ocupando-se da reconstrução da
ponte que ruíra, os dois estabeleceram profunda relação de
amizade, prolongada depois em razoável número de cartas.
Ora, Escobar foi um autodidata culto, além de bibliófilo,
dono de farta biblioteca, que deve ter representado
universo sem precedentes para Euclides. Há quem afirme,
inclusive, que Escobar apresentou ao amigo os clássicos
portugueses, como Alexandre Herculano, além de inúmeros
escritores, exercendo, assim, influência sobre o estilo do
autor.
Dessas constatações surgem várias perguntas: Escobar
teria apresentado Rimbaud a Euclides? “Le dormeur du val”
aparece em duas edições: Reliquaire, poésies [ 27 ] e
Poésies completes . [ 28 ] Um desses livros faria parte da
biblioteca do intendente? Teria importado o volume?
Acompanhava os lançamentos editoriais franceses, hábito
comum entre os brasileiros cultos da época? Ou trata-se
apenas de um tema recorrente na literatura, mera
coincidência? Mas se Euclides da Cunha leu o poeta Maurice
Rollinat, como afirma Frederic Amory, por que não
conheceria Rimbaud? Se existir um catálogo ou lista dos
livros de Francisco Escobar, ali poderemos descobrir parte
das respostas.
“Celeiro agreste”
Não é preciso sair de “A Terra” para encontrar mais páginas
memoráveis. Veja-se, por exemplo, a descrição da seca.
Euclides interrompe a narração de algumas tradições locais,
como os desafios, para descrever a estiagem prolongada
que susta a vida e a esperança simples do sertanejo:
De repente, uma variante trágica.
Aproxima-se a seca.
O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se
desencadeia o flagelo.
Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida
pelo limbo candente que irradia do Ceará.

As frases bruscas introduzem o fenômeno de maneira


cortante, pois o autor sabe que este é o centro da tragédia –
parte fundamental das causas que desencadearão a guerra.
Podemos lastimar o discurso que idealiza o sertanejo,
transformado num estóico quando, na verdade, age não por
opção consciente, heróica, mas porque só tem duas
escolhas, submeter-se ou fugir. E há trechos de exagerada
retórica, como ao qualificar a seca de “sezão assombradora
da Terra”. No entanto, o crescendo que Euclides descreve
está além da épica; marcado por extremo realismo,
evidencia cada gesto da luta pela sobrevivência – e o
malogro que se renova:
Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes
delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui,
ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes,
cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão
abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o nível
das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao
alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando
cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor
na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva,
se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze.
E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera,
entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes,
transvoando a outros climas...
O ritmo da frase alcança, muitas vezes, musicalidade
poética. Tal afirmação, repetida por dezenas de autores,
recebeu atenção criteriosa de Augusto de Campos, [ 29 ]
que dissecou o texto, demonstrando, com inúmeros
exemplos, a ocorrência da métrica clássica na prosa
euclidiana e como ela constrói uma estrutura em tudo
oposta à mera “caricatura do parnasianismo”. Poesia
encontrada na descrição das manifestações de religiosidade
que acompanham “a insurreição da terra contra o homem”:
Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas
procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas
chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes...

A caatinga transforma-se, então, num “celeiro agreste”,


oximoro que sintetiza a busca por alimento, cada vez mais
desesperada, na qual parcela da fauna volta-se contra o
gado e contra o homem. No fim, os próprios urubus rejeitam
a carne dos “bois mortos há dias e intactos”, pois “não
rompem a bicadas as suas peles esturradas”. Banido pela
seca, o sertanejo migra. E mesmo sabendo que o final feliz
da narrativa, contestado pela realidade, nem sempre é
verdadeiro, não podemos negar-lhe o acerto dos termos, a
simetria dos períodos, a harmonia à qual colabora perfeita
pontuação:
Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de “retirantes”. Vê-a,
assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa
nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o
sertão que se esvazia.
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho
em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo
penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares
onde o não mate o elemento primordial da vida.
Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do
sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de
infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e
instável, os mesmos dias longos de transes e provações demorados.

Síntese e ampliação
Os Sertões também está polvilhado de personagens que,
apesar de serem reais, ganham contornos próximos do
fantástico. Na terceira parte do livro, “A Luta”, encontramos
o coronel Moreira César, cuja “legenda de bravura” Euclides
desmonta com perfeita ironia, primeiro inserindo-o no
quadro maior da história do país, cuja “sentimentalidade
suspeita” está – até hoje – pronta a criar “heróis de quarto
de hora destinados à suprema consagração de uma placa à
esquina das ruas”. Tão lunático quanto Antônio Conselheiro,
Moreira César, servil à pior face do ditador Floriano Peixoto,
é apresentado como criminoso contumaz, responsável,
durante a Revolução Federalista, por um dos mais
sangrentos episódios, no qual ordenou prisões e
fuzilamentos sumários. Não por outro motivo o coronel é
escolhido para comandar a primeira tentativa séria de
debelar Canudos:
Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades.
Despontavam, efêmeras, individualidades singulares; e entre elas o coronel
César destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu passado
salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos.

A expedição é descrita pormenorizadamente, incluindo-se


os erros táticos, a arrogância do comandante que se
considerava imbatível e o absoluto despreparo da tropa. No
fim, em plena debandada do exército, até o corpo de
Moreira César é atirado “à beira do caminho”. Na última
cena, os jagunços decapitam os cadáveres:
Alinharam, depois, nas duas bordas da estrada as cabeças, regularmente
espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos
arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e
dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes,
mantas, cantis e mochilas...

E ao perverso estetismo do sertanejo, Euclides adiciona o


seu comentário, não menos mórbido:
A caatinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa
florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no
azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e
estribos oscilantes...
Euclides da Cunha também se mostra hábil nas cenas
breves, capazes de sintetizar todo o horror da guerra:
Numa das refregas subsequentes ao assalto, ficara prisioneiro um curiboca
ainda moço que a todas as perguntas respondia automaticamente, com
indiferença altiva:
“Sei não!”
Perguntaram-lhe por fim como queria morrer.
“De tiro!”
“Pois há de ser a faca!”, contraveio, terrivelmente, o soldado.
Assim foi. E quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glote, a
primeira onda de sangue borbulhou, escumando, à passagem do último grito
gargarejando na boca ensanguentada:
“Viva o Bom Jesus!...”

Mas é nos longos períodos, perfeitamente encadeados, que


o escritor revela suas melhores qualidades. Perto do fim da
guerra, antes que a solução definitiva – o uso da dinamite –
seja colocada em prática, a insânia do combate surge
reconstruída num parágrafo do qual transbordam, em iguais
proporções, armamentos e força abusiva, vitória e
devastação:
E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os
pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos
às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos
desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo,
chasqueados em pleno agonizar dos vencidos – os triunfadores, aqueles
triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela
história, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a
um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil
sabres; e o golpear de 12 mil braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6
mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de
schrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez
meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento
das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na
ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços
– sob a impassibilidade dos céus tranqüilos e claros – a queda de um ideal
ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte...

Vencer e não vencer


Retomando os primeiros parágrafos deste ensaio,
poderíamos tê-lo escrito de modo diverso, salientando o que
é afetado, grandiloqüente e pleno de preciosismo em Os
Sertões . Ou, tarefa ainda mais fácil, detalhando equívocos
e impropriedades nascidos do olhar determinista e de tantas
outras influências, mais que datadas. No entanto, mal
começa-se a reler esse livro, contaminado de idéias
envelhecidas, ressurge o mostrengo indomável, que nos
condena a repetir a luta do sertanejo, “recontro que não
vence e em que se não deixa vencer”. Não é outra a tarefa
– interminável – do leitor que se dispõe a abrir Os Sertões .

[ 21 ] Ver minha análise em “Trágica ingenuidade”, Jornal Rascunho , junho de


2011.
[ 22 ] Em “Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira”:
http://bvgf.fgf.org.br/frances/obra/pref_p_tercei/euclides.htm
[ 23 ] “Dialética envenenada – Duas meninas na periferia do capitalismo”,
Folha de S. Paulo , Caderno Mais, 1º de junho de 1997.
[ 24 ] Editora Paz e Terra, São Paulo, 1983.
[ 25 ] Rimbaud, Arthur. Poesia Completa , 2ª edição revista, Rio de Janeiro,
Editora Topbooks, 1995.
[ 26 ] Ver A Imitação dos Sentidos – prógonos, contemporâneos e epígonos de
Euclides da Cunha , Edusp/University of Colorado at Boulder, São Paulo, 1995.
[ 27 ] L. Genonceaux, Paris, 1891; prefácio de Rodolphe Darzens.
[ 28 ] L. Vanier, 1895; prefácio de Paul Verlaine.
[ 29 ] No ensaio “Transertões”, em Os sertões dos Campos – duas vezes
Euclides da Cunha , Editora 7Letras, Rio de Janeiro, 1997.
CAPÍTULO 4

Perseguido, mas brilhante


– Coelho Neto e Turbilhão

O escritor mais detestado pela crítica brasileira, Coelho


Neto, atingido pela fúria modernista com os piores
adjetivos, os julgamentos mais levianos – sobre ele
tripudiam, até hoje, os prosélitos de Lima Barreto e Oswald
de Andrade –, merece, inclusive por esse motivo, cuidadoso
estudo. Não se trata de escolher, para justificar sua
reabilitação – como sugere Alfredo Bosi em O pré-
modernismo [ 30 ] –, entre “uma determinada doutrina
estética” ou “um pensamento estreitamente casualista”.
Optar por um desses atalhos seria condenar o escritor a
permanecer na camisa-de-força em que o enfiaram o
superficialismo e o preconceito de grande parcela da
academia e da crítica literária, satisfeita no seu exercício de
papaguear o que aprendeu neste ou naquele manual, mas
raramente disposta a ler, com espírito despojado de
ideologias, a produção dos autores.
Trata-se, portanto, de desprezar o continuum de erros e
injustiças – no qual até mesmo a sensata Lúcia Miguel-
Pereira caiu, escorando-se, em Prosa de ficção , [ 31 ] no
juízo, dentre outros, de Adolfo Caminha, um ninguém da
literatura brasileira –, ignorar o vale-tudo em que nossos
estudos se transformam quando se trata de defender a
Semana de 22 e seus herdeiros e dedicar-se à releitura da
ampla, multíplice bibliografia que Coelho Neto nos legou, ou
seja, deixar as obras falarem.
Ilusória liberdade
Publicado em 1906, Turbilhão é um dos vários romances
que poderiam ser escolhidos para apresentar os méritos de
Coelho Neto. A fim de melhor aproveitá-los, o leitor deve
estar aberto ao vocabulário cujas acepções nem sempre são
corriqueiras, e exatamente por isso acrescentam rigor e
força à narrativa. O que parte da crítica chama de
“parnasianismo” é, na verdade, destemor para utilizar os
recursos que o português oferece, busca apaixonada,
flaubertiana, do termo justo – sem descuidar do emprego da
linguagem coloquial, quando ela se faz necessária. Veja-se,
por exemplo, este parágrafo do Capítulo 1 :
Subitamente um bufo, como da expansão de uma válvula, subiu das
oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente, com
rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas moveram-
se, abalando o soalho em trepidações contínuas.

O período coeso – que muitos escritores contemporâneos


transformariam, por imperícia, numa sucessão de frases
independentes – recria com exatidão os movimentos iniciais
de uma impressora de jornal do início do século XX . Logo a
seguir, o tipógrafo começa seu trabalho:
Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava para
uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De repente
afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com elas em volta
do “Monstro” vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu o papel entre os
cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a máquina moveu-se com
rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de papel que os rolos
apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas, como as primeiras
vasas anunciadoras do parto.

Perceba-se não só a precisão das palavras, a descrição que


nos permite visualizar a cena, a analogia inusitada entre os
primeiros resultados da impressão e um parto, mas também
o julgamento feito pelo narrador, ao usar o substantivo
“tacha”, referindo-se às manchas de tinta, cujo sentido
comporta uma alusão a defeitos ou máculas morais
propagados pelas notícias – idéia reforçada pelo adjetivo
“sórdidas”.
A história da pequena família suburbana – formada por
uma viúva, D.ª Júlia, e seus filhos, Paulo e Violante – é
perturbada de maneira dramática, logo no Capítulo 2, pela
fuga da jovem. A descrição do quarto da irmã, em plena
madrugada, depois de Paulo ter enfrentado, para encontrá-
la, a chuva e também o descaso da polícia, reflete o
sentimento de abandono:
Deteve-se um momento, limpou os olhos e, tomando da mesa uma caixa de
fósforos, fez luz e entrou. Sobre o lavatório de vinhático, numa palmatória de
cristal, havia um coto de vela; acendeu-o.
À luz, que se foi, aos poucos, difundindo, lançou os olhos pelo interior
desolado e, cruzando os braços, ficou a olhar como se estivesse diante dum
cadáver.
A cama estreita, alva, com um fino cortinado enastrado de fitas, tinha uma
ligeira depressão; o travesseiro macio, de paina, com a fronha de crivo,
estava machucado. Um lenço jazia aos pés da cama, amarfanhado e
odorante.
[...]
Voltou-se: o lavatório estava em ordem, com os vidrinhos de essências, os
vasos de flores, as escovas, os pentes. Sobre a cômoda o retrato do pai,
fardado, em grande gala, de pé junto a um rochedo; e outros retratos de
moças, de crianças; e cromos e a cestinha que ele lhe dera pelo Natal com
amêndoas.
No fundo, o guarda-vestidos entreaberto. Puxou a porta, que rangeu,
emperrada, e viu, a um canto, sobre a caixa de chapéu, a boneca, muito
loura, com os braços abertos, rindo, toda de azul; e os vestidos escorridos
nos cabides, a sombrinha, caixas, embrulhos. Afastou as saias, sentindo um
perfume morno e sensual de essência e de carne – faltava a de seda preta, a
mais nova. Fora com ela, a linda saia que ele lhe havia dado meses antes, no
dia em que ela completara dezoito anos, e que a mãe cortara e cosera,
cantarolando as suas modinhas tristes.
Coisas insignificantes adquirem relevo extraordinário. E
Coelho Neto nos leva, de pormenor em pormenor, a um dos
elementos que ganham importância crescente na história,
sobre o qual falarei adiante.
O narrador apresenta igual vigor quando abandona a
intimidade do lar e descreve cenas urbanas, com seus
personagens anônimos flagrados, de maneira
cinematográfica, em meio aos hábitos do cotidiano, aos
gestos reveladores de sua condição social:
À porta de uma casinha robusta mulher, encostada ao umbral, uma das
mãos engastando o queixo, olhava, com melancolia, o céu carregado,
cinzento, sem esperança de sol. Adiante, em outra casinha, a família jantava.
O homem, já grisalho, em mangas de camisa, à cabeceira da mesa, os
braços muito abertos, as bochechas cheias, todo derreado sobre o prato,
devorava. Um pequenote, balançando as perninhas escalavradas, esmagava
o bolo de feijão; a mulher, magra, triste, comia lentamente, com ar
enfastiado. De pé, na penumbra, ao fundo, uma rapariga ruiva, com um
prato sob o queixo, chupava talhadas de laranja, chuchurreando tão alto que
se ouvia de fora, e um cão negro, sentado, com as orelhas atentamente
fincadas, olhava o homem, à espera de algum bocado.
Meninos, com as calças arregaçadas, chapinhavam sordidamente na lama,
aos gritos. Entrava gente – um velho mascate, curvado ao peso da grande
caixa; um vendedor de fósforos, com o tabuleiro suspenso à altura do ventre,
coberto por um encerado; operários, com as ferramentas, e, à porta da
venda, que comunicava com a larga entrada da estalagem, em túnel, havia
um ajuntamento: homens de pé, outros sentados em pedras, fumando,
conversando.
Fora, ao portão, um garoto apregoava os jornais da tarde. Cães
morrinhentos dormitavam pelos cantos e, defronte, num sobradinho amarelo,
uma mulher gorda, com fofos de renda à volta do pescoço, chupava roletes
de cana, atirando o bagaço à rua.

Mas Coelho Neto pode passar da exposição


descomprometida, leve, ainda que detalhista, desses
cenários da vida social a certo momento dramático, tenso,
no interior de um cômodo lúgubre:
Quando Paulo tornou ao quarto a moribunda arquejava em agonia maior,
respirando a espaços, ficava longo tempo imóvel, como se já houvesse
acabado; de repente, porém, abria-se-lhe a boca imensa e o ar entrava de
raspão como se fosse rompendo passagem. Ritinha chegou-se ao leito e
ficou contemplando a velha, cuja fisionomia cavava-se com a angústia.
Apalpou-a, sentiu-a fria até o ventre – era a morte que começava a subir.
Súbito, abriram-se-lhe dilatadamente os olhos vítreos, assombrados e fitos.
Os dois recuaram, um estremecimento sacudiu-a toda. Os braços enrijaram-
se, a cabeça soergueu-se de leve, um gargarejo rolou no fundo da garganta,
as pálpebras tremeram.
Ritinha pôs-lhe a vela na mão. Paulo ajoelhou-se soluçando. Fecharam-se-
lhe os olhos e ficou imóvel. Ele ainda esperou ouvir o estertor angustioso,
mas a morte passara [...].

Ênclises e mesóclises incomodam o leitor que se viciou no


folgado predomínio das próclises, mas, superando-se tal
estranhamento, o trecho se revigora, livre das conhecidas e
cansativas reflexões naturalistas sobre o caráter
irremediável do processo biológico que comanda nossa
espécie, etc. ou do olhar romântico, que buscaria idealizar o
fato e incluir na cena algum elemento edulcorante. Aqui, o
narrador está livre de qualquer imposição – e um
personagem, a fim de completar essa ilusória liberdade,
pode apalpar de maneira desrespeitosa, quase promíscua, a
pobre moribunda.
Torpezas e amor
O fim indigno de D.ª Júlia, contudo, não se resume a esse
pequeno trecho. Na verdade, o romance enfoca o ápice da
desagregação familiar, o breve período no qual essa
derrocada, até então mero anúncio, finalmente se
materializa, condenando a idosa à decepção e à morte,
expressão concreta de sua impotência diante da ruína
moral.
Perfeito corte no tempo, a narrativa nos informa sobre o
passado não por meio do narrador onisciente, mas,
sugestivo recurso, de um personagem secundário, Fábio,
compadre da pobre matriarca: suas censuras a Paulo e
Violante revelam a verdade suavizada, até aquele
momento, pelo excessivo amor de D.ª Júlia. Desse ponto em
diante, o comportamento, as decisões dos personagens só
confirmarão as palavras do velho Fábio, de início
aparentemente severas.
Paulo, que nas primeiras páginas do romance surge como
revisor de jornal cansado das longas horas de trabalho e
crítico implacável da irmã, mostra-se egocêntrico, sensual,
ciclotímico, supersticioso, desfibrado. O jovem que
bravateia, como se fosse a palmatória do mundo, revolta-se
com a fuga de Violante – mas não demonstra preocupação.
Ao contrário, sua inquietude concentra-se no que pensarão
dele os vizinhos, os amigos, os colegas de trabalho e da
faculdade. Em nenhum instante ele se questiona seriamente
sobre a repentina decisão da irmã, chegando a assobiar
enquanto a mãe chora e reza, destruída pela angústia. Para
sua mente perturbada, as pessoas que o observam na rua
ou riem num restaurante na verdade zombam dele. É
também um hipócrita, a quem notícias da fugitiva, se
estampadas num jornal, serviriam para enaltecer sua
própria moralidade. Ele engana D.ª Júlia repetidas vezes,
gasta na roleta o dinheiro de uma jóia penhorada para
pagar o aluguel e introduzirá na casa a própria amante, a
volúvel Ritinha, que finge ser a caridosa esposa de um
amigo, disposta a cuidar da doente.
Paulo, no entanto, revela mais que inversão de valores. Na
sua completa desorientação, a realidade não é um dado
nítido, palpável, mas o cenário onírico que se modifica
conforme as variações do seu humor: impedido, pela chuva,
de ir à jogatina, entende o aguaceiro como castigo divino, e
imediatamente passa a murmurar desculpas
estapafúrdias...
O romance é construído de maneira a nos surpreender
sempre. Ultrapassada a primeira metade, quando
imaginamos que todas as cartas foram distribuídas, Coelho
Neto oferece novos elementos para compor a personalidade
de Paulo: a compulsão em fazer cálculos, distribuindo o que
sonha ganhar no jogo em listas de compras mirabolantes –
e sua atração sexual pela irmã. O jovem que abre o armário
e sente o “perfume morno e sensual de essência e de
carne”, pouco antes descrevia Violante, ao delegado,
ressaltando não os traços principais, mas aqueles que o
encantam. Quando os irmãos se reencontram por acaso e
Paulo descobre que a fugitiva tornou-se uma prostituta de
luxo, o moralista desaparece, restando o homem dividido
entre a beleza da irmã e a possibilidade de ela o proteger,
fazê-lo participar de sua fortuna. O desejo incestuoso atinge
o clímax na visita que Paulo faz a Violante horas depois. O
ato não se consuma, mas o cenário destila volúpia:
Cortinas escuras temperavam a luz, quebrando a violência do sol que
entrava por quatro janelas abertas sobre balcões. Na mesa do centro,
incrustada de marfim, dentro duma linda jarra de porcelana, morriam rosas.
Aroma tépido e voluptuoso impregnava o recinto. Os rumores da rua
chegavam abafados, ensurdecidos, como se viessem de muito longe.
[...]
E, de pé, os braços cruzados, pôs-se a examinar os quadros, as estatuetas
das peanhas. Uma sandália cor-de-rosa jazia no meio do salão embarcada.
Sobre um dos divãs uma saia de rendas amarrotada parecia uma grande e
estranha flor, murchando em abandono.

Da depravação ao cinismo salta-se com extrema facilidade.


Assim, Paulo e Ritinha copulam na sala enquanto D.ª Júlia
agoniza. Poucas horas depois, o corpo da boa mulher é
esquecido – e a família obscena senta-se à mesa para
jantar, rindo e travando saborosa discussão a respeito das
características da comida francesa.
Cabe a D.ª Júlia o papel de contraponto em meio a tanta
torpeza. E ela o desempenha com humildade e brandura,
sob a pressão do desespero e da doença, amando os filhos –
mas, ainda que eles não percebam, sem se deixar enganar,
sem perder a lucidez, conhecendo seus defeitos e
momentâneas qualidades.
Diálogos e oratória
Merecem estudo à parte os diálogos de Turbilhão . Paulo e
D.ª Júlia estão inteiramente personificados nestas breves
falas:
Soprou uma baforada e, vendo a mãe curvar-se a esfregar a perna,
gemendo, quis saber se estava sentindo alguma coisa.
– Tenho sofrido muito nestes últimos dias. É da umidade... E hoje andei
tanto!
– Eu também não tenho passado bem: dores de cabeça, fastio... É fadiga.
Também, com a vida que levo não é para admirar: não paro.
– É, precisas ficar um dia em casa descansando.
– Pudesse eu! – suspirou encaminhando-se para o quarto. – Mamãe pode
arranjar-me uma xícara de café?
– Sim.
A velha levantou-se pesadamente e foi devagar, claudicando, a amparar-se
pelas paredes do corredor. [...]
O jovem que passou dois dias na jogatina, abandonando a
mãe às grosserias do cobrador do aluguel, obrigando-a a
caminhar pela cidade em busca de uma casa de penhores,
retorna com o dinheiro que conseguiu e finge ter perdido
horas em algum trabalho cansativo. As mentiras brotam de
Paulo com tal naturalidade que, a partir de certo ponto,
percebemos sua mitomania. O desmesurado egotismo
torna-o indiferente à condição em que a mãe se encontra há
semanas – e pede-lhe o café como se estivesse diante de
uma mulher saudável, lépida. A mãe amorosa se enternece
pelo filho que só consegue enxergar a si mesmo, despreza
suas próprias dores e levanta-se para servi-lo. A viciosa
intencionalidade das falas de Paulo nos revoltam, mas é
admirável como o autor une as palavras à personagem
delirante. Não há exagero nos termos utilizados,
naturalidade e fluidez ampliam a verossimilhança e nenhum
dos dois expressa sentimentos ou reações imprevistos. O
diálogo contribui para desenhar a cena e reforça no leitor
suas certezas em relação aos personagens, impulsionando-o
a seguir na leitura, ao menos para descobrir quão pernicioso
Paulo pode ser ou quanto de bondade D.ª Júlia ainda guarda
em sua alma.
Outro exemplo, distinto mas de igual qualidade, encontra-
se no Capítulo 4, quando Paulo procura Mamede, o ex-
policial, para que o ajude a encontrar Violante. A linguagem,
aqui, sofre adequada transformação. As falas do mulato,
repletas de coloquialismo, expressam, primeiro, falsa
humildade, para, a seguir, transbordarem de jactância, pois
suas promessas não se realizam, ele não localiza a jovem e
todas as pistas que apresenta são apenas desculpas para
extorquir alguns trocados de Paulo. O discurso malandro,
contudo, anuncia o que saberemos mais tarde: o suposto
amigo foi expulso da polícia, não passa de um larápio, ágil
no uso da navalha, expedito para o jogo e o crime.
Há, no entanto, alguns problemas no texto. É uma pena
que Coelho Neto às vezes abuse dos gerúndios:
[...] Frias lufadas balançavam as lanternas, enfunavam as bandeiras,
retorciam as flâmulas que faziam uma aleia triunfal à entrada e circulavam o
pátio, subindo às negras folhagens das árvores raquíticas como estranhos
frutos d’oiro e farrapos espadanando, alongando-se no ar, coleando, tufando.

Em raros momentos, o escritor cede à tentação da retórica,


não consegue se libertar do incontrolável amor que muitos
escritores brasileiros, ontem e hoje, têm pela própria voz. E
acaba cometendo parágrafos assim:
Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a natureza
quedava em humilhação estática, adorando silenciosamente o grande astro a
pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando d’alto a terra que se
prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo o peso do macho sobre o
seu corpo vibrante de emoção lúbrica.
O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse, aos
poucos, parando – só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas fanhas,
que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso espasmo.

Esse tipo de orgiástica grandiloqüência – que faz também


alguns autores repetirem sempre o mesmo narrador, com os
mesmos cacoetes, certos de estarem escrevendo um novo
livro, defeito a que dão o nome de “estilo” – é um índice de
como permanecemos nos estágios iniciais das culturas
escritas: neles, recordando a lição de Northrop Frye, o mais
importante porta-voz é o orador.
Desafio à história
Mas coloquemos de lado essas imperfeições, superadas
pelas características exemplares que apontei, e retomemos
o início deste ensaio. Na verdade, esconde-se, sob o
preconceito que há contra Coelho Neto, uma visão
deformada de literatura. Faz tempo, a maioria dos críticos
insiste que a arte literária deve expressar, necessariamente,
não as experiências ou a maneira de ver o mundo de cada
escritor, mas, sim, o modus vivendi de sua época – e precisa
fazê-lo não só em termos de conteúdo, mas principalmente
de forma. Leiam, por exemplo, o ensaio “Tema e técnica”,
de Sérgio Buarque de Hollanda. [ 32 ] Escrito em 1950, as
idéias ali presentes se repetem, com palavras diversas, até
hoje. O crítico e historiador lastima-se pelo fato de Oswald
de Andrade e Clarice Lispector não terem intensificado seu
experimentalismo nas obras que se seguiram a Serafim
Ponte Grande e Perto do coração selvagem – e, defendendo
a prevalência da técnica sobre a mensagem, aponta, em
Coelho Neto, a falta de uma “moldura adequada”.
Ora, idéias desse tipo deságuam em dois erros, faces da
mesma moeda: menosprezam-se grandes narradores que
não optaram pelo vanguardismo tout court – como Buarque
de Hollanda faz, no mesmo ensaio, em relação à obra de
José Lins do Rego – ou condena-se a linguagem literária à
ingrata tarefa de reinventar a si mesma permanentemente,
o que produz obras passíveis de serem compreendidas
apenas por seus próprios autores ou por um seleto grupo de
iluminados – beco do qual a literatura brasileira luta para
sair.
Sim, é verdade que a literatura está parcialmente
condicionada pela história – mas é verdade também, como
afirma Northrop Frye, que ela forja a sua própria história. Ela
“responde a um processo histórico externo”, sustenta o
estudioso canadense em O caminho crítico , [ 33 ] “mas não
é determinada por ele no que diz respeito à sua forma”. E,
completo, pode se contrapor ao seu tempo também no que
se refere ao conteúdo.
Deste modo, se queremos analisar um escritor, não
devemos investigar se ele representa ou não sua época,
mas, antes, ver seus livros, ainda citando Frye, como
“estruturas coerentes”. Nossa difícil tarefa, portanto, é
“permanecer a meia distância dos dois extremos não
críticos”: a tese de que “a literatura necessita de uma
referência social, sob pena de sua estrutura ser ignorada e
seu conteúdo associado a alguma coisa não literária”; e a
“crítica avaliadora que impõe os valores pessoais do crítico,
decorrentes dos preconceitos e ansiedades de sua própria
época, a toda a literatura do passado”.
Enquanto não nos libertarmos desses “extremos não
críticos” ou “sofismas”, como Northrop Frye os denomina –
em minha opinião, degenerescências das propostas que
defendiam uma literatura engagée –, continuaremos
desprezando obras que, intencionalmente ou não, negam-se
a ser um eco do seu tempo. Exemplo elucidativo sobre essa
questão encontra-se no ensaio “Improviso em homenagem
a Stravinski”, de Milan Kundera, [ 34 ] mas referindo-se à
música. Ali, o romancista tcheco mostra como a escolha de
Bach pela polifonia pura significou, na prática, um “gesto de
desafio para com a História, uma recusa tácita do futuro”. A
mais radical escolha de Bach, portanto, denuncia o que
muitos de nós esqueceram, que
a História não é necessariamente um caminho ascendente (em direção ao
mais rico, ao mais culto), que as exigências da arte podem estar em
contradição com as exigências do dia (dessa ou daquela modernidade) e que
o novo (o único, o inimitável, o que nunca foi dito) pode ser encontrado
numa direção diferente daquela traçada por aquilo que todo mundo sente
como progresso. Com efeito, Bach pôde ler na arte dos seus contemporâneos
e dos mais jovens do que ele um futuro que deveria parecer, a seus olhos,
uma queda.

Excelência
Desconheço se as escolhas estéticas de Coelho Neto foram
conscientes, mas sua obra nos afirma que ele recusou
seguir a via aberta por Machado de Assis com Memórias
póstumas de Brás Cubas , publicado em 1880, mais de duas
décadas antes do romance que aqui analisamos – e nem por
isso deixou de escrever “uma obra-prima indiscutível”,
como Wilson Martins [ 35 ] classifica, acertadamente,
Turbilhão .
Entre minhas certezas, só posso repetir o que o poetastro
Aurélio afirma no Capítulo 14 de Turbilhão , vociferando,
exaltado, em favor da “Arte Nova” que estaria a caminho,
“sonora e rica, luminosa e forte”, anunciando ter ele mesmo
no fundo da gaveta “dois poemas e um romance [...] cuja
tese era a emancipação da mulher, com um surdo protesto
contra o celibato clerical”. Por meio de Aurélio, Coelho Neto
ironiza o futuro, sem saber que tal predição se realizaria da
pior forma: numa tentativa de estraçalhar sua obra. Mas,
apesar das conseqüências nada desprezíveis,
comemoremos: o futuro não se realizou plenamente.

[ 30 ] Volume V de A Literatura Brasileira , 5ª edição, Editora Cultrix.


[ 31 ] 2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
[ 32 ] Ver O Espírito e a Letra , volume 2, Editora Cia. das Letras, São Paulo,
1996.
[ 33 ] Editora Perspectiva, São Paulo, 1994.
[ 34 ] Em Os testamentos traídos , 2ª edição, Editora Nova Fronteira, Rio de
Janeiro, 1994.
[ 35 ] História da Inteligência do Brasil , Volume V (1897-1914), 2ª edição, T. A.
Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 5

Perfumaria bilaquiana
– Olavo Bilac e suas crônicas

Dentre os gêneros literários, a crônica é o mais ingrato.


Servos do transitório, são raríssimos os cronistas que
conseguem impregnar seus textos com elementos capazes
de extrapolar o banal, conceder ao corriqueiro uma
perspectiva inusitada. Esses – como Rubem Braga, de quem
comemoramos o centenário de nascimento quando escrevo
este ensaio – conquistam sobrevida; a maioria, no entanto,
está condenada ao esquecimento ou a ter suas produções
lidas não pelo valor literário, mas por serem documentos
curiosos, úteis a sociólogos, historiadores e quejandos.
O poeta Olavo Bilac, que produziu crônicas, com maior ou
menor intermitência, de 1883 a 1908, escrevendo, em
períodos diferentes, para quase três dezenas de revistas e
jornais, situa-se no grupo maior. É o que pode ser verificado
ao lermos o criterioso trabalho de Antonio Dimas, Bilac, o
jornalista . [ 36 ] Uma crestomatia anterior – Vossa
insolência , [ 37 ] também organizada por Antonio Dimas –
serve ao leitor interessado em conhecer, de forma não
extensiva, a prosa de Bilac.
Clichês e elogios
A pobreza da imagística bilaquiana aproxima-se do
vexaminoso. Seus textos são escritos sob a autoridade do
lugar-comum. O “lento evoluir da aldeia em cidade” é
definido como “lenta passagem do estado de lagarta ao
estado de borboleta”, no qual o substantivo masculino
repete-se de forma desnecessária e desagradável. Dizer que
o “desejo andava, tonto e ansioso, rodando em torno dela
como um animal faminto em torno de uma presa cobiçada”
é utilizar a comparação mais previsível. A mesma
observação serve para “alegre como um canário, fresca
como uma madrugada”, “ardendo no fogo de todas as
paixões” e “lareira em que um lume alegre crepitava”.
Espera-se, a cada crônica, uma figura que fuja à banalidade,
mas o clichê predomina: “Tudo se renova, tudo progride, e
nada morre. Morremos nós, que nada somos. Mas as
cidades ficam e perduram, devoradoras de gerações”. Ou:
“A primavera simboliza a mocidade das cousas e das
almas”. E ainda: as palavras que “entram como cunhas de
aço na alma de quem as lê”; a terra que “somente se abre
em verduras de primavera e em frutos do outono depois de
ter o seio dolorosamente rasgado pelo arado”.
Por mais que se esforce – e prefiro imaginar que se
esforçava –, Bilac não consegue fugir da expansão dos
sentimentos melosos. Ao relembrar a juventude, exclama:
[...] Doce e clara manhã! talvez fosse, realmente, uma agreste manhã, feia
e chuvosa; mas a minha alegria, o meu orgulho de rimador novato, a minha
vaidade de poeta “impresso” eram capazes de acender um sol de verão na
mais nevoenta alvorada de inverno.

Referindo-se à casa de Eça de Queirós em Paris, define-a:


“[...] um encantado recanto de paz e trabalho no meio da
tumultuosa agitação da grande cidade”. E utiliza os mesmos
artifícios, que cansei de ler nos almanaques farmacêuticos
da minha infância, para qualificar o trabalho do romancista
português: “paciente e sublime ofício de corporificador de
idéias e de desbastador de palavras”.
São raras as crônicas em que Bilac não paga alto preço à
eloqüência vazia – no Brasil, a maior destruidora de
talentos, depois da idealização romântica:
[...] Ao cair da tarde, esgotada a sua provisão cotidiana, o semeador dá um
último olhar à terra palpitante, mira-lhe com amor o seio fecundo preparador
para a glória da messe futura, e já pensa no trabalho do dia seguinte, na
continuação do labor sagrado, que é a única preocupação e o único orgulho
de sua existência...
Na mesma crônica, dedicada a Émile Zola, as
conseqüências da adjetivação incontrolável voltam a se
mostrar, nefastas:
[...] De pedra em pedra, o edifício da sua obra hercúlea crescia e subia.
Nascido do lodo, com a base no fundo asqueroso do pântano humano, esse
edifício demandava o céu, a claridade serena, a alta glória da luz.

Peço ao leitor que tire o sorriso do rosto. O caso é


dramático. Esse tipo de estilística piegas fez escola no Brasil
– e sofremos suas conseqüências até hoje. Há, acreditem,
acadêmicos que têm a mesma poética avaliação da obra de
Aluísio Azevedo, ainda que, mutatis mutandis, tomem o
cuidado de esconder um pouco os adjetivos...
Mas voltemos ao rol de elogios a Zola. Não satisfeito, Bilac
ainda pespega:
[...] – era apenas um poeta, um grande poeta, cuja alma de criança sonhara
pôr o céu ao alcance da terra, e que, dia e noite, via sorrir sobre as tristezas
da vida contemporânea o prenúncio de uma vida melhor, o primeiro rubor de
uma aurora fecunda, toda de paz e igualdade, toda de amor e de fartura.

E já que recordamos o autor de O Cortiço , Bilac pertence,


sim, ao grupo dos admiradores de Azevedo. Chama o amigo
de “vigoroso operário das nossas letras”, cujo “estilo freme
e fulgura com as palpitações do ideal que as inflama” –
mero circunlóquio para construir a discutível glorificação.
Como percebemos, não faltam elogios fáceis à imaginação
do nosso cronista. Referindo-se a O Defunto , de Eça de
Queirós, chama o conto de “obra-prima”, “novela admirável
[...] animada de um vasto sopro de gênio”, “a mais notável,
talvez, das criações de Eça”. De Artur Azevedo, dirá que “foi
artista em todas as manifestações da existência, no
escrever, no pensar, no falar, no viver”. E termina o
necrológio, incansável, com este período manco: “[...] Não
desaparece verdadeiramente o Artista, que ficará vivendo
na história deste país, quando a Morte também já tiver
consumido todos os corações e todas as inteligências que
admiram a sua inteligência”. José Carlos Rodrigues, diretor
do Jornal do Comércio , tem não apenas “tato”, mas
“prudência” e “atilado espírito”; seu jornal é “grave,
pesada, seriíssima e formidável folha”, ainda que no
passado tenha apresentado “enorme face impassível de
paquiderme monstruoso” – deplorável conjunto de
adjetivos. Outro jornalista, Ferreira de Araújo, “viveu
servindo à Arte e à Poesia, e alimentando com o seu talento
e a sua dedicação esta atmosfera moral de sentimento e
inteligência, que é o nosso maior orgulho de povo”;
“aliavam-se no seu estilo a força e a graça, a impetuosidade
e a leveza, a solidez e a malícia”. Um gênio, felizmente
desconhecido.
Hipérboles
O exagero permeia grande parte dos exemplos acima,
afinal, o que seria da eloqüência sem a hipérbole? Ambas
trabalham juntas para criar os balões de gás que encantam
leitores ineptos. O mero projeto de colocar bustos de
escritores no Passeio Público transformará o local no
“templo umbroso e perfumado dos numes tutelares da
nossa Inteligência”. Mas Bilac esquece que o enaltecimento
despropositado pode tornar certas virtudes irreais:
[...] Émile Zola não conheceu nunca os desfalecimentos que desmoralizam
o trabalhador, as dúvidas, as hesitações, as síncopes da vontade, as fases de
trágico e tremendo desespero em que o espírito a si mesmo pergunta se não
é uma loucura perder as forças num trabalho vão. Zola não duvidou nunca
da nobreza e da utilidade de sua tarefa.

Muito além do razoável e do bom senso, Bilac exalta e


dramatiza, criando efeito diverso do pretendido também
nestas linhas dedicadas a José do Patrocínio e sua tentativa
de construir um dirigível que cruzasse o Atlântico:
Ali dentro, o gênio humano está armazenando forças para alcançar uma
nova conquista; ali fermenta e ferve uma idéia imensa, ali cresce e se
empluma, para a grande viagem da luz, um sonho radiante. E quem vê o
pesado bonachão, que parece calmamente dormir, sob a soalheira ardente
do dia ou sob a paz estrelada da noite, não pode imaginar que assombroso e
misturado mundo de esperanças, de desesperos, de desenganos, de surtos
de fé, de assomos de coragem, de sacrifícios, de desilusões, de milagres de
pertinácia e de prodígios de trabalho está vivendo e palpitando entre aquelas
quatro paredes mudas...
Destrambelhado, o cronista substitui “cama” por um
ridículo “vale dos lençóis” e transforma certo bonde em
alucinação:
Haja sol ou chuva, labute ou durma a cidade, o trabalho metódico do bonde
não cessa: à alta noite, ou alta madrugada, quando já os mais terríveis
noctívagos se meteram no vale dos lençóis, ainda ele está cumprindo o seu
fadário, deslizando sobre os trilhos, abrindo clareiras na treva com as suas
lanternas vermelhas ou azuis, acordando o eco das ruas desertas, velando
incansável pela comodidade, pelo conforto, pelo serviço da população.

E a cascata de gerúndios, anunciada no trecho acima,


finalmente surge:
Mas que te importa que digamos mal de ti, condescendente e impassível
bonde? Tu não dás ouvido às nossas recriminações, e vais largando o teu
domínio, dilatando o teu aranhol, suprimindo as distâncias, confraternizando
pela aproximação o Saco do Alferes com Botafogo e a Vila Guarani com o
Cosme Velho, e reinando como senhor absoluto e indispensável sobre a
nossa vida.

Ritmo ternário
A fraseologia bilaquiana guarda outra particularidade
maçante: a tríade de palavras encadeadas – esquemática
forma de acumulação. Certo jornalista é “o mais completo, o
mais brilhante e o mais popular”. Depois de ir aos
cinematógrafos, o autor se diz “derreado, tonto, moído”; e
afirma, sem perceber a importuna cacofonia, que seu
acompanhante “olhava, mirava, admirava, embevecido,
deliciado, enlevado”. O texto ganha ritmo de modinhas e o
leitor segue um bando de crianças, “lenta e ruidosa maré de
frescura, de mocidade, de animação”. Surge, de repente, o
perfil gerenciador de Bilac: “Administrar não é somente
gerir: é também, e principalmente, assistir, acudir, prover”.
Falando sobre a Revolta da Vacina, o cronista se transforma
num militante ecológico: “[...] a alcatéia arrancara, torcera,
espezinhara, destruíra todas as pobres árvores pequenas,
que, ainda fracas e humildes, dentro de suas frágeis grades
de ferro, só pediam, para crescer e dar sombra, um pouco
de sol ao céu, um pouco de umidade à terra e um pouco de
carinho aos homens”. O povo brasileiro, eis a irretorquível
certeza do cronista, “tem uma inteligência nativa,
exuberante, pronta”. E o ecologista retorna, agora para
somar obviedade ao discurso monótono: “Aves e borboletas
são felizes: em tendo um pedaço de céu azul, um bocado de
jardim verde, um raio tépido de sol, não pedem mais nada”.
Aferrado à receita medíocre, Bilac não descansa: “que vida
agoniada, inquieta, sobressaltada” exclama, nesse estilo
saltitante, referindo-se a Carlos Gomes; e conclui, decidido
a romper drasticamente o ritmo da frase, mas preservando
as rimas: “[...] numa perpétua luta com os editores, com os
empresários, com os cantores, e com os credores!”.
Em certa crônica, Bilac reclama, de forma surpreendente,
da “retórica que se encarrega de estragar tudo”.
Concluímos, então, que ele de fato não tinha consciência da
própria inabilidade.
Pequenos escritores
Canhestro no estilo, às vezes o cronista oferece
informações jocosas. Sua visão do sistema literário em
1905, por exemplo, repete-se, sem grandes modificações,
atualmente. Para ele, o Rio de Janeiro era
a capital de uma nação que, sobre todas as outras do continente, sempre
teve a primazia em cousas da Inteligência. [...] É ela que possui a literatura
mais vibrante, mais original, e mais forte.

E conclui, depois desse jato de otimismo carioca, sem


atinar com o absurdo:
Uma só cousa tem prejudicado essa literatura: é o círculo restrito, em que
se expande acanhadamente a língua que falamos e escrevemos...
Se os nossos escritores ainda não têm trabalho fácil e vida folgada, é
porque ainda não existe no país uma grande massa de leitores.

Termina o raciocínio voltando ao júbilo infundado, à


comemoração dessa literatura sem leitores:
É forçoso reconhecer que só nos falta isso: expansão literária. A matéria-
prima já a possuímos: temos literatura nossa, como temos arte nossa – e
esta supremacia intelectual e artística, ainda não a perdemos (graças a todos
os deuses!) no continente sul-americano.
Na crônica “Flaubert”, ao recordar viagem feita à França,
em 1890, para assistir, na cidade de Rouen, à inauguração
de um singelo busto do autor de Madame Bovary , Bilac
revela a faceta suburbana dos nossos escritores. De Paris a
Rouen, ele, Eduardo Prado, Paulo Prado e Domício da Gama
ocupam quatro lugares num vagão de primeira classe com
apenas oito poltronas. Nas quatro restantes, Émile Zola,
Edmond de Goncourt, Guy de Maupassant e o editor
Georges Charpentier. Mais presumidos que acanhados, os
brasileiros só conseguem rir dos franceses. A descrição que
Bilac faz é patética – ou melhor, vergonhosa, tamanha a
pequenez.
Tédio
No entanto, se os textos de Bilac estão recheados de
pompa pretensiosa, isto não se deve apenas ao estilo
maljeitoso, mas também ao narcisismo do autor:
O noticiarista retira da mina a ganga de quartzo em que o ouro dorme, sem
brilho e sem préstimo; o cronista separa o metal precioso da matéria bruta
que o abriga, e faz esplender ao sol a pepita rutilante.

Entre as “pepitas”, cuja prolixidade destila enfado e bolor,


há críticas e elogios à imprensa e aos políticos, ditos
irônicos, traços de humor, trechos autobiográficos,
descrições das causas e conseqüências da febre amarela
etc. E discurso ornamentado. Muita, muita perfumaria.

[ 36 ] 3 volumes, Edusp / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo / Editora da


Unicamp, 2006.
[ 37 ] Editora Cia. das Letras, 1996.
CAPÍTULO 6

A salvação pelo duplo


– Lindolfo Rocha e Maria Dusá

Pode-se definir Maria Dusá , de Lindolfo Rocha, como um


romance no qual certa ótima idéia é constrangida pela
linguagem claudicante. No afã de apresentar múltiplos
pormenores, incluindo-se as características climáticas e
sociológicas da Chapada Diamantina, região em que a maior
parte do enredo transcorre, o autor não se satisfaz com
escrever uma boa história, mas perde-se em trechos
retóricos ou de teor ensaístico. O próprio subtítulo de Maria
Dusá , suprimido nas edições contemporâneas, revela parte
da intenção do autor: Garimpeiros (romance de costumes
sertanejos e chapadistas) .
Logo na abertura do Capítulo III , de maneira a reforçar a
descrição da seca de 1860, cujas conseqüências foram
perfeitamente expostas no início do livro – não por meio de
digressões cansativas, mas de fatos dramáticos, sobre os
quais falaremos adiante –, o narrador insiste:
Nesse ano de tristíssimas recordações a zona ubertosa do interior da
província da Bahia transformou-se em terra sáfara, imprestável; de nutriz
fecunda e dadivosa, que era, mudou-se em madrasta irritadiça e ilacrimável;
de liberal e opulenta, em mendicante e miseranda.
Em grandes extensões de terreno não se vislumbrava sinal de clorofila
senão no Icó, a planta que resiste a todas as secas, e nas diversas espécies
de cactos, entre as quais sobressaíam o mandacaru, a palmatória e o
xiquexique formando este sempre e em grande cópia os grandes e bizarros
candelabros de Humboldt.

Poucos parágrafos à frente, do relatório climático


passamos à verborragia sentimentalóide:
Nas estradas, de espaço a espaço, encontravam-se quadros vivos da mais
completa consternação. Aqui, um velho, cercado de filhos e netos famintos,
num cirro interminável de durar dias e dias; ali, um desventurado pedindo
pelo amor de Deus um punhado de farinha para que o filho pudesse morrer;
adiante a figura esquelética doutra mater dolorosa , na última agonia,
deixando que o filhinho lhe sugasse a derradeira gota de leite sanguinoso;
além, orlando a estrada, arranchamentos provisórios, retirantes famintos,
movendo-se lentamente, em busca d’água ou de raízes, extremamente
magros, cheios de escaras, de doenças, de achaques, ou aniquilados de
anemia profunda, e dentre os quais partiam gritos que aterravam, gemidos
que cortavam o coração, e, de envolta com esses, imprecações dos
desesperados, pragas dos cínicos, gargalhadas dos desalmados, choro de
crianças, tudo isso lembrando alguma coisa daquele choro e ranger de
dentes do Juízo Final.

A imperiosa necessidade que o autor se impõe, de


desenhar um retrato social, quebra, em inúmeros trechos, a
espontaneidade da narrativa. Assim, por exemplo, nada
acrescenta à trama a notícia, no início do Capítulo V , de que
Mucujê chama-se, desde 1847, Vila de Santa Isabel. Ou a
informação, no mesmo capítulo, que certo personagem,
anos depois, teria um filho governador do Estado. Ao
descrever as conseqüências do tiro dado contra um
arruaceiro, o narrador torna-se perito em anatomia: “Apenas
quatro caroços de chumbo empregaram-se na omoplata
direita, interessando somente o tecido celular subcutâneo”.
Da mesma forma, no Capítulo VI , assume a personalidade
de um topógrafo e fala sobre as “anfractuosidades do
terreno”. Mais à frente, no Capítulo VII , a fim de detalhar o
sentimento de saudade, transforma-se em psicólogo,
explicando como, “por um fenômeno de autopersuasão, mui
freqüente nas pessoas predispostas ao histerismo, a
gratidão [...] transformava-se em benquerer”. Na seqüência,
uma personagem não sente fome, mas procura “não
sucumbir à dor que lhe torturava a principal fonte de
renovação da vida animal”. Suposto bioquímico, o narrador
nos explica também os efeitos do “cloreto de sódio em
organismos desacostumados e enfraquecidos”. Ainda preso
a teses naturalistas, justifica, utilizando-se de um
biologismo rasteiro, a independência financeira que
algumas prostitutas conquistavam à época:
Na Chapada Nova, como na Chapada Velha, era coisa vulgar verem-se
mulheres de vida livre, no auge da influência, transformadas repentinamente
em negociantes, capitalistas, garimpeiras, hoteleiras, e até alquiladoras,
abandonando dessarte, sem confissão nem penitência a poliandria do tom.
Era isso efeito de intuitiva previdência, reunida ao instinto monogâmico, ou
da conservação da espécie, que mui alto fala, exatamente entre as mais
baixas classes dos sertões brasileiros.

Não satisfeito, o narrador assume papel de geólogo,


fornecendo, no Capítulo XIX , longa e fastidiosa explicação
sobre o processo de formação do diamante, bem como das
técnicas de garimpagem.
Quanto à maldita retórica, renasce sempre. Recurso
nefasto, pronto a poluir e desequilibrar a narrativa, como
neste trecho:
Águas e serras! Que filho, que habitante destas regiões criadoras do
“diamante e do gênio”, não sentiu alguma vez toda a grandiosa poesia
dessas paisagens alpestres, que, se desnutrem ambições evangélicas, de
pobreza e santidade, tonificam o caráter para as mais rudes conquistas da
vida!
Águas e serras! Que desventurado, ausente, ou que feliz, mas ao
entardecer da existência, não rememora, saudoso, os dias idos, de
sonhadora contemplação das altas serranias, que dilaceram as nuvens com o
itacolumito de seus visos, ouvindo o escachoar das águas límpidas, por entre
as arestas do granito de seus flancos!
Águas e serras! Que filho ou ádvena não traz de memória o selo de
grandeza dessas altanadas serras, e o cunho fisiológico dessas águas
salubérrimas!
Suportamos parágrafos assim, de arrebatamento meloso,
apenas para nos deparar, no Capítulo XXXIX , com outros
ainda piores, aos quais se acrescenta patriotismo
avassalador.
Contar ou mostrar
Penso que uma das grandes dificuldades de Lindolfo Rocha
é a de efetivamente crer na sua capacidade de narrar.
Durante a leitura, lembrei-me do sábio conselho de Anton
Tchekhov: “Não diga que a lua está brilhando; mostre o
brilho da luz num copo quebrado”. Chega a ser dramático
perceber como o autor cumpre perfeitamente a
recomendação do escritor russo, caindo, logo a seguir, no
erro apontado na primeira parte da citação.
Vejamos um exemplo da insegurança de Lindolfo Rocha. No
início da história, na Fazenda Lagoa Seca, devastada pela
estiagem prolongada, encontramos a família de Raimundo e
Maria Rosa Alves, destruída também por “incurável
preguiça”. A desolação do cenário impressiona – e o
narrador nos fornece detalhes iluminadores da pobreza,
como o das filhas do casal, que utilizam, na confecção das
rendas de bilro, não alfinetes, mas espinhos de mandacaru.
Quando chega a inesperada tropa, sob o comando de
Ricardo Brandão, temos a cena de terrível aviltamento, em
que a velha Maria Rosa não só desnuda as filhas diante do
tropeiro, a fim de ressaltar sua pobreza, como as oferece
em troca de um celamim de sal. A reação de Ricardo
expressa toda a sua personalidade: circunspecto, ele analisa
o quadro jamais imaginado; aceita comprar a filha mais
velha, Maria; entrega aos pais não só sal, mas toucinho e
carne; e aproxima-se da jovem:
– Não chore, não, moça; seus pais venderam a filha, mas a filha não foi
comprada: fica aí, com eles; somente lembre-se que o mineiro se chama
Ricardo Brandão. Aqui está mais uma lembrança, que eu destinava a uma
irmã.
E assim dizendo, tirou da escarcela uma pequena medalha de prata e a
entregou com mão trêmula.

Ora, a configuração ética do personagem está dada.


Quando o jovem monta seu cavalo, já não é um tropeiro
qualquer, mas o herói, verdadeiro ginete do sertão. A luz
brilhou no copo quebrado. Lindolfo Rocha conseguiu o que
todo escritor deseja: mostrar algo – e não apenas contá-lo.
Qualquer outra informação que possa ser adicionada deve
cumprir, a partir desse ponto, duas funções: reafirmar tais
virtudes ou, a fim de desenvolver a trama, negá-las,
momentaneamente ou não.
O problema é que nosso autor parece, muitas vezes, não
ter consciência da técnica que utiliza. Assemelha-se a um
intuitivo cujos acertos nascem do acaso. Assim, ao longo do
texto, Lindolfo Rocha sente-se obrigado a ressaltar as
qualidades e defeitos de Ricardo, às vezes por meio de
novos fatos, bem narrados, mas desgraçadamente
repetindo, em inúmeros trechos, que “a lua está brilhando”.
Perde-se, então, nos insistentes adjetivos ou nas longas,
enfadonhas digressões.
Artimanhas e personagens
Todavia, é inacreditável que tal somatório de truculências
textuais não consiga destruir Maria Dusá . E se a obra ainda
é legível, deve isso, em parte, ao enredo nem um pouco
esquemático.
A imagem de Maria permanecerá, na mente de Ricardo,
como a da mulher idealizada. Depois de fugir da
perseguição policial, devido ao tiro que poderia ter matado
um arruaceiro, Ricardo volta a Minas Gerais, para vender a
tropa e rever a mãe. Ao mesmo tempo, morrem Raimundo,
Maria Rosa e o único filho homem. Decidida a encontrar o
tropeiro, cansada da pobreza, Maria foge para a Chapada
Diamantina. Na fuga, inocente, une-se a um grupo de
meretrizes. Recusando-se a se prostituir, acaba sendo
protegida, em Mucugê, por D.ª Rosária. Aprende a ler e
escrever; e começa a fazer flores artesanais. Ricardo, que
sonha com os diamantes, volta à Bahia, acompanhado de
um fiel tropeiro, João Felipe, e de um cão, Amigo, que
desempenha papel importante na história. Ao chegar a
Xiquexique, é hospedado por um sertanejo, que a princípio
não reconhece, a quem matara a fome depois de abandonar
Lagoa Seca. Os dois saem, certa noite, e são atraídos pela
festa que se realiza na casa de uma famosa prostituta,
Maria Dusá. Quando Ricardo vê a mulher, acredita ser a
Maria que se recusara a comprar, tamanha a semelhança
entre as duas. Invade a casa e, para sua surpresa, é
ridicularizado pela mulher e seus convidados. Pari passu ,
D.ª Rosária e Maria, pressionadas por mexericos, já haviam
se transferido também para Xiquexique; e, certa noite,
durante uma novena, Maria vê Ricardo na igreja. Tímida,
pede que sua protetora fale com ele. Contudo, quando a
mulher se aproxima, a confusão está formada: Ricardo
acredita que Maria Dusá é Maria – e vê em D.ª Rosária a
portadora do recado de uma pessoa ingrata, que, esquecida
do passado recente, agora o humilha. Com seu insultuoso
revide, o protagonista afasta de si, sem saber, a Maria com
que ainda sonha. Por outro lado, Dusá não consegue tirar o
mineiro voluntarioso de seus pensamentos. A partir daí, os
destinos dessas três pessoas se entrecruzarão cada vez
mais. Ricardo progride com os diamantes, mas logo
conhece a ruína, embriagado pelo dinheiro fácil, por falsos
amigos e prostitutas. Dusá toma consciência do vazio de
sua vida e decide mudá-la radicalmente. Instigada por sua
semelhança com outra mulher – fato que, gradativamente,
torna-se público –, aproxima-se de Maria e coloca-a sob sua
proteção. Da mesma forma que, a princípio sem o
conhecimento do garimpeiro, ajuda Ricardo em seus
reveses.
A trama também ganha complexidade graças ao recurso
de retardar o esclarecimento de dúvidas e confusões. No
Capítulo X , a estranheza de Ricardo em relação à forma
exageradamente atenciosa com que é tratado por seu
anfitrião contamina o leitor, e passamos a desconfiar do
personagem. Só parágrafos à frente descobrimos, junto com
Ricardo, que se trata do sertanejo a quem dera de comer
capítulos antes.
A mesma técnica de retardamento é utilizada depois que
Ricardo invade a casa de Maria Dusá, certo de ter sob os
olhos a sua Maria. Somos iludidos por várias páginas. O
leitor acredita que o narrador exagera e não sabe
concatenar os fatos com a passagem do tempo. No entanto,
o que parecia uma falha – responsável por transformar
Maria, de maneira assaz rápida, numa prostituta famosa –
torna-se efeito elogiável, sedutora artimanha.
O romance apresenta outras características relevantes. Há
maravilhoso grupo de personagens secundários, para os
quais o autor construiu cenas antológicas. Veja-se, no
Capítulo XXI , o trecho em que Antônio Roxo – honesto, fiel a
Maria Dusá, sonhador inveterado – vinga sua amiga e
patroa, submetendo o malevolente Aristo Alfaiate a sábia
punição, obrigando-o a comer o pasquim anônimo que
publicara para caluniar Dusá. Ao final, um elemento
inesperado completa a vingança:
Em poucos minutos tinha engolido todo o pasquim. No último, Antônio
voltou ao tom zombeteiro, e ria.
– Agora, sim, disse ele, podemos ser camaradas. Com essa cura você ainda
pode fazer boa figura na sociedade, porque inteligência tem. Assim não lhe
dê ela pra aperrear os outros... Sim, já comeu tudo... agora só bebendo um
pouquinho do azeite da candeia, que eu acho que papel comido assim faz um
mal danado à barriga da gente.
E assim falando, procurava uma vasilha para tirar azeite.
– Tira aqui, Manuel Pedro.
O camarada assomou à porta.
[...]
Manuel Pedro apanhou uma xícara na saleta que servia de cozinha e trouxe.
– Ah! Sô Antônio! O azeite da candeia está quente! olhe ali no canto uma
garrafa!
– Como é sabido! chasqueou o garimpeiro. Não gosta de azeite quente pela
boca! Porém no inferno você há de tomar fervendo por outros lugares!
A garrafa estava cheia de azeite de mamona, retinto; o garimpeiro encheu a
xícara, e o Alfaiate bebeu-a de um fôlego.
– Bem, agora estamos de pazes. Adeusinho, e queira-me bem que não
custa dinheiro, disse Antônio, saindo adiante do camarada.
O alfaiate chorava debruçado sobre a mesa do quarto.
Pela porta da rua, que ficara aberta, entrou apressado um vulto de mulher.
Na porta do quarto, apostrofou:
– Mas isso é que é miséria no mundo! Toma estas saias e dá cá essas
calças, peste!
Disse e fez meia volta, retirando-se. Era a vizinha predileta do Aristo.

Outro personagem cativante é Amigo, perdigueiro que não


tem os dotes quase humanos da Baleia de Graciliano
Ramos, mas cujas inteligência e afeição pelo dono
empolgam, enternecem. Ocupa papel crucial na terrível luta
do Capítulo XXIII , ao defender Ricardo de seus captores. O
trecho, aliás, termina com duas cenas de grande
humanidade: o divertido diálogo entre o inspetor de polícia
e sua esposa, quando esta o censura pela covardia; e o
encontro de dois apenados com um terceiro, que fora
atacado por Amigo e morria: os personagens demonstram
ternura pelo agonizante, cumprem as ordens do inspetor, de
se desfazer dos outros corpos, e ainda têm a esperteza de
fugir.
Humor, perfeito coloquialismo, respeito, benevolência e
maternal fidelidade estão presentes em todos os diálogos
que Dusá mantém com Rita, a escrava à qual, no fim da
trama, dará carta de alforria. Mas é uma pena que o
narrador mostre-se vacilante em sua maneira de retratar as
mulheres: ao mesmo tempo que compõe Dusá, protagonista
capaz de altruísmo e autoconhecimento, às vezes assume
certa posição preconceituosa, como no Capítulo XIV , em que
generaliza, acusando todas de serem supersticiosas.
Doppelgänger
É curioso que parcela da crítica insista em permanecer
cega às qualidades de Maria Dusá . Alfredo Bosi restringe-se
a recomendar sua leitura, não sem alguma ironia, aos
“críticos que, por gosto ou convicção doutrinária, amam a
projeção romanesca do trabalho humano, com toda a fadiga
e a esperança que implica”. Massaud Moisés explicita, em
duas páginas, o que define como “luz dissonante
imprevista”; e, seguindo os passos de Lúcia Miguel-Pereira,
chama de “solução primária ou de mau gosto” a
semelhança entre Maria e Maria Dusá.
Penso de maneira oposta. Na verdade, o tema do
doppelgänger – do duplo – é dos mais recorrentes na
literatura: de Plauto, e sua Menaechmi , a Shakespeare e A
comédia dos erros , chegando, apenas para citar dois
exemplos, aos contos O parceiro secreto , de Joseph Conrad,
e O outro , de Jorge Luis Borges. São inúmeros os
desdobramentos do tema, demonstrando a indiscutível
riqueza que oferece à arquitetura narrativa, romanesca ou
não.
À parte a confusão que permite – nos personagens que
vêem a duplicidade ou a experimentam em suas próprias
vidas –, o duplo surge, também, como ensejo à mudança ou
à reafirmação da própria identidade. No caso de Maria Dusá,
a insatisfação com sua vida e a decisão de mudar são
anteriores à descoberta de Maria, mas o encontro com a
igual reforça a urgência de ser diferente. Colocada diante de
Maria – virgem, pobre, abandonada –, Dusá vê com maior
nitidez sua condição: é rica e famosa; mas riqueza e fama
que durarão, bem sabe, apenas enquanto for atraente.
Neste romance, ver o duplo não é enlouquecer, como
ocorre em parte das narrativas que utilizam o doppelgänger
. Ao contrário, a solução de Lindolfo Rocha mostra-se
agradavelmente complexa, pois constrói dois destinos
opostos: Maria Dusá recusa o presente vivido enquanto
ilusão, abandona as fantasias da vida depravada e abraça o
real; não se definirá mais pelo que sonha ser, mas pela
realidade; sua lucidez cresce – e mesmo que, de início, sofra
com a maledicência das pessoas ou com a dúvida em
relação aos sentimentos de Ricardo, seu prêmio, no fim,
será a felicidade. Ocorre o inverso com Maria. Deixando-se
levar pelos acontecimentos, inclusive por certo incontrolável
sensualismo, assume, a princípio, uma posição leviana,
depois cínica, finalmente diabólica. Veja-se o perturbador
Capítulo XXVI , em que a transformação de Maria se consuma
diante de Dusá: a jovem parece incorporar a personalidade
da prostituta e de sua pior inimiga, tentando, inclusive,
seduzir a protetora. Mais tarde, chega, por acidente, a
casar-se, mas a viuvez – provocada pela semelhança que
tem com Dusá – leva-a, finalmente, à prostituição e à morte.
Em Maria Dusá , o encontro com o duplo não oblitera o eu,
mas, ao contrário, afirma-o. Permite às personagens fugir da
ambivalência – para o bem e para o mal. Há no romance,
portanto, instigadora dimensão ética, na qual a escolha
entre objetividade e sonho, realidade e fantasia, impõe,
como na própria vida, conseqüências. No caso específico de
Dusá, o encontro com sua mítica metade significa uma
salvadora reintegração ao real.
Luta
O romance que Wilson Martins chamou de “superestimado
[...], ficção folhetinesca e melodramática”, [ 38 ] tem,
portanto, qualidades que não podem ser desprezadas. E o
que menos importa em Maria Dusá é exatamente o seu
regionalismo, apesar de ter servido, segundo informações
de Múcio Leão, à Comissão de Filologia da Academia
Brasileira de Letras “como uma das suas fontes de
abonação de brasileirismos”. Na verdade, os aspectos
positivos do livro revelam a luta do escritor, consciente ou
não, para libertar-se da retórica oitocentista e buscar o que,
até aquele princípio do século XX , poucos autores nacionais
tinham encontrado: a literatura.

[ 38 ] História da Inteligência do Brasil , Volume V (1897-1914), 2ª edição, T. A.


Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 7

Retorno à querência
– Simões Lopes Neto e Lendas do Sul

Vem de longe minha admiração pelo gaúcho João Simões


Lopes Neto. Na biblioteca de meu pai havia um exemplar
ricamente ilustrado do Lendas do Sul . Ainda menino, eu
tinha certeza de que, aberto o volume, o sortilégio mais
uma vez me atingiria – mas recalcitrava contra o medo e
retornava às gravuras, àquele início perturbador de “A
Mboitatá”:
Foi assim:
num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que
pareceu que nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem
rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.

Lá estava eu novamente, cego imerso no caos, tocando às


apalpadelas o vazio que me circundava, temendo que a
cobra-grande aparecesse. Depois, à noite, como cruzar o
corredor – pequeno trecho do conto, pleno de escuridão –
que levava do meu quarto ao banheiro?
Hoje, quando me disponho a escrever sobre Lendas do Sul
, há, no entanto, outro obstáculo. É difícil tratar de aspectos
que não tenham sido analisados por Augusto Meyer, um dos
poucos mestres da crítica literária nacional, que em três
ensaios – presentes no volume Prosa dos Pagos (1941-1959)
[ 39 ] – praticamente esgotou os elogios, os estudos
pormenorizados e o levantamento histórico dos temas e das
fontes de Simões Lopes Neto. E o fez com seu estilo nobre,
inconfundível. Na verdade, qualquer análise da obra do
escritor pelotense guarda uma dívida com esse crítico,
ainda que prefira escondê-lo na bibliografia...
Alegoria e epizeuxe
A lenda do Negrinho do Pastoreio, que Simões Lopes Neto
reconta, nasce, como bem definiu Augusto Meyer, do
“estrume da escravidão”. Saliente-se, aliás, a sugestiva
analogia que o crítico estabelece entre a narrativa e a
descrição do naturalista e viajante Auguste de Saint-Hilaire,
que tivera a oportunidade de encontrar – e deixou gravado
em seu Notícia descritiva da Província do Rio Grande de S.
Pedro do Sul – um dos possíveis arquétipos que inspiraram a
tradição popular:
Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos que permanece de pé,
pronto a ir chamar os outros escravos, a trazer um copo d’água e a fazer
todos os pequenos recados necessários ao serviço interior da casa. Não
conheço criatura mais desgraçada que esta criança. Não se assenta, nunca
ninguém lhe sorri, nunca se diverte, passa a vida tristemente apoiado à
parede e é muitas vezes martirizado pelos filhos de seu senhor.

Voltemos à lenda. Depois de nos remeter a um tempo


imemorial, o narrador apresenta o estancieiro “muito mau,
muito”. Vilão da história, ele perseguirá, com a ajuda do
filho – “menino maleva” e “cargoso” –, o pobre Negrinho,
ginete numa corrida de cavalos da qual sai,
desgraçadamente, derrotado. O estancieiro, apesar de ter o
melhor animal, não vence a disputa, talvez por causa de sua
ganância: ao combinar a corrida com o vizinho, não aceita a
proposta do oponente, de doar o prêmio de mil onças de
ouro aos pobres. Na volta para casa, a descrição do
perdedor deixa antever a maldade que recairá sobre o
escravo:
O estancieiro [...] veio pensando, pensando, calado, em todo o caminho. A
cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de
banhado laçado meia espalda. O trompaço das mil onças tinha-lhe
arrebentado a alma.

A frustração do personagem atinge o protagonista,


elemento mais fraco, indefeso, que se torna, portanto, bode
expiatório. De surra em surra, o drama do Negrinho se
agiganta graças à diligente maldade do filho do estancieiro,
sempre pronto a criar novas dificuldades quando a solução
se avizinha e o escravo está a um passo de retomar seu
cotidiano. Bem e mal se enfrentam numa cena evangélica: o
Negrinho é a vítima sem palavras – o narrador permite-lhe
apenas gemer ou sorrir –, enquanto estancieiro e filho
tripudiam, entregam-se ao sadismo incontrolável. No
derradeiro castigo, quando o corpo do cândido escravo é
lançado às formigas, o narrador prenuncia: “pareceu que
morreu”. Seguem-se noites e dias estranhos, de cerração
forte, durante os quais o estancieiro sonha
que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil
cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado
dentro de um formigueiro pequeno...

Poder, riqueza e maldade transformam-se, assim, no que


realmente são: desprezível, impotente formigueiro. Trata-se
de sonho profético, cuja chave o truculento latifundiário só
perceberá na terceira e alegórica manhã, quando, dirigindo-
se à boca do formigueiro, encontra o Negrinho “de pé, com
a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o
cobriam ainda” – e a seu lado, “a Virgem, Nossa Senhora,
tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no
céu”. Montado no baio e comandando a tropilha do senhor,
o Negrinho parte a galope, agora transformado em milagre,
pronto a repetir na vida dos fiéis o que tentou fazer
desesperadamente por seu torturador: encontrar-lhe os
cavalos perdidos e trazê-los com segurança à fazenda.
De fato, em nosso imaginário, só a alegoria – e não apenas
o símbolo – pode explicar, dado o seu sentido moral, o
sofrimento absurdo e despropositado, a “infância triturada
na engrenagem da estrutura colonial”, como afirmou, com
agudeza, Augusto Meyer.
Mas a técnica de Simões Lopes Neto não se revela apenas
na imagística. “Onde o modelo rasteja, ele voa”, diz Meyer.
Vejam, por exemplo, a habilidade do autor ao retardar a
informação de que é o Negrinho quem, durante a corrida,
cavalga o baio do estancieiro, o que lança o personagem no
centro de seu drama de forma abrupta, com ele em plena
disputa, a pedir auxílio à “Virgem Madrinha”. E, melhor,
sempre reencontro com prazer o uso que ele faz da
epizeuxe, enfatizando, por meio de certas repetições, as
experiências dramáticas do protagonista. Tais construções
pleonásticas amoldam-se bem ao modelo dessa legenda
típica de alguns martirológios, ampliando nossa compaixão.
Anáfora e humor
A “Salamanca do Jarau” é narrativa mais complexa. O
protagonista, o vaqueiro pobre Blau Nunes, típico anti-herói,
já inicia a história sob o feitiço do Caipora, que, encontrado
em certo campo, trouxera-lhe má sorte: “Gaúcho valente
que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando
cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão
ia mermando e o do contrário o lanhava...”. É nesse estado
frágil que se deparará, enquanto busca um boi barroso, com
a figura mítica do “santão da salamanca do cerro”. Instigado
por este, repetirá a lenda que a avó lhe contava, sobre
como o Anhangá-pitã, o demônio, encontra-se, na América,
com os mouros fugidos da Guerra da Reconquista, seus
servos na Península Ibérica. Vinham em busca de riquezas,
a fim de “alçar de novo a Meia-Lua sobre a Estrela de
Belém”. Anhangá-pitã os recebe com alegria, pois
introduzirão, finalmente, a ganância numa “gente sem
cobiça de riquezas”.
Trata-se, percebemos, do reconto da introdução do Mal no
Jardim do Éden. Ocorre, a seguir, dupla transformação: o
demônio segura o “condão mágico” que eles traziam e
transforma-o numa “pedra transparente”. Quanto à fada
moura que também os acompanhava, “demudou-a em
teiniaguá, sem cabeça. E por cabeça encravou então no
novo corpo da encantada a pedra, aquela, que era condão,
aquele”. A essa híbrida lagartixa o demônio ensina os
caminhos secretos que levam a cavernas repletas de
tesouros.
Conclui-se, assim, a primeira parte da história. A segunda,
o narrador deixa a cargo do santão “de face branca e
tristonha”, que passa a completar o que Blau Nunes lhe
contara. A narrativa torna-se, então, autobiográfica – e
descobrimos que o velho fora, na longínqua juventude, em
tempos que remontam à primeira presença jesuítica no Sul,
um sacristão devotado. Ele encontra, certo dia, a teiniaguá,
“a lagartixa engraçada e buliçosa”, prende-a num chifre e
leva-a consigo, escondendo-a numa canastra, certo de que
as promessas de riqueza que a lenda contava se realizariam
em sua vida. Essa história é, portanto, a concretização do
relato maravilhoso que Blau Nunes narrara. O sacristão
delira em seu sonho de fortuna. E quando abre, à noite, a
canastra, para, em sua inocência, alimentar a lagartixa,
esta se transforma na princesa moura – será ela, mulher de
esplêndida beleza, que esconde, entretanto, essência
rasteira, quem lhe proporá o pacto fáustico. A dívida
contraída deverá ser paga da pior forma, a do ser destruído
em sua unidade, obrigado a servir a dois senhores:
Cada noite era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva, ela
desaparecia ante a minha face cavada de olheiras...
E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém, e
todo me estortegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente
ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, que nem
pecados eram, comparados com os meus...

Antagonismo que o sacristão experimentará de forma


paroxística, quase livre da prisão a que os padres o
condenam quando descobrem seus crimes, mas
definitivamente acorrentado ao Mal. Vejam como Simões
Lopes Neto constrói o quadro, compondo um texto
sedutoramente anafórico:
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas que
iam minguando, em retirada… mas também ouvindo com os ouvidos do
pensamento o chamado carinhoso da teiniaguá; os olhos do meu rosto viam
a consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava... mas os olhos do
pensamento viam a tentação do riso mimoso da teiniaguá; o nariz do meu
rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e perfumando as
santidades… mas o faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel
fino de que a teiniaguá tanto gostava; a língua da minha boca estava seca,
de agonia, dura de terror, amarga de doença… mas a língua do pensamento
saboreava os beijos da teiniaguá, doces e macios, frescos e sumarentos
como polpa de guabiju colhido ao nascer do sol; o tato das minhas mãos
tocava manilhas de ferro, que me prendiam por braços e pernas… mas o tato
do pensamento roçava sôfrego pelo corpo da encantada, torneado e rijo, que
se encolhia em ânsias, arrepiado como um lombo de jaguar no cio, que se
estendia planchado como um corpo de cascavel em fúria...

Agora, passados duzentos anos, o sacristão lamenta-se ao


paciente vaqueiro: tem todas as riquezas escondidas nas
cavernas cujos caminhos o demônio ensinou à lagartixa-
princesa, mas é como se não as possuísse:
E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre
os homens, como quando era como eles e como eles gemia necessidades e
cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dias de maldade e sempre
aborrecimento do que possuía, ambicionando o que não possuía...

É o preço a pagar pela hybris , pela ambição desmedida.


Inicia-se, então, a terceira história dentro da narrativa, com
o comando de volta ao narrador onisciente. Como o
vaqueiro, ao chegar, saudou o velho usando uma fórmula
cristã – e foi o primeiro a fazê-lo em tantos anos –, tem
direito a entrar na caverna do Jarau, passar por sete provas
e, se não for vencido, encontrar-se com a princesa e ver
seus sonhos realizados. Blau aceita, vence as provas e
recusa os favores que a moura, agora uma “velha
carquincha e curvada, tremendo de caduca”, lhe oferece.
Mas não age assim por ser bom ou honesto; ao contrário,
diz não a cada um dos favores apresentados apenas por
querer todos. Na verdade, repete a ganância do sacristão,
revelando sua frágil condição humana. O resultado é ver-se
expulso da caverna. Monta seu cavalo, cheio de desânimo,
mas o sacristão reaparece, oferecendo-lhe consolo: uma
onça de ouro que lhe “dará tantas outras quantas quiseres,
mas sempre de uma em uma e nunca mais que uma por
vez”.
Começa assim a verdadeira prova moral do vaqueiro Blau
Nunes. A princípio, tudo corre bem. A cada onça de ouro
retirada do cinto sob o poncho, nova onça surge. Simões
Lopes Neto insere, então, um quadro agradavelmente
jocoso: ao comprar certo campo e dez mil cabeças de gado,
o vaqueiro precisa desembolsar três mil onças, o que leva
um dia inteiro:
Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha de
ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo...
O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou;
e quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando onça
trás onça!...
Ao escurecer estava completo o ajuste.

A fama do vaqueiro se alastra. Mas tudo que recebe em


seus negócios evapora-se “como água em tijolo quente”. E
quem aceita negociar com ele, a seguir perde as onças que
recebe. Blau Nunes, abandonado por todos, condenado ao
isolamento, toma sua primeira decisão realmente heróica:
volta ao cerro do Jarau para devolver a onça ao velho. Sua
resolução resgata-o para a verdade, transformando-o,
novamente, no vaqueiro destemido e simples – mas salva
também seu interlocutor. Este, ao receber de Blau, na
chegada e na despedida, cumprimentos cristãos, alcança o
número cabalístico exigido para se ver livre da lagartixa-
princesa. Nesse mesmo instante, como prometia a lenda, a
caverna explode e os tesouros do demônio transformam-se
em fumaça:
Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma cruz
larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e despacito foi
baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como se
dentro dele cantasse o passarinho verde...
E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria
em paz o seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em
paz a sua vida!...

Ao recusar a quimera demoníaca, Blau Nunes não salva


apenas a si mesmo, mas quebra a corrente de uma história
de sujeição ao Mal.
No ensaio em que analisa o conto, Augusto Meyer recupera
as tradições que formaram essa lenda hoje politicamente
incorreta, que coloca os muçulmanos como sócios do
demônio – o que certamente levará algum esquerdista
membro do Conselho Nacional de Educação a, em breve,
propor a censura de Simões Lopes Neto... E ao analisar as
linhas que abrem a narrativa, plenas do que ele chama de
“boleio de frase”, Meyer sintetiza as qualidades estilísticas:
Escolhi esta nesga de exemplo porque, ao primeiro relance, não há nada
mais banal; é o tom da própria banalidade. Bem examinada a construção,
todavia, nada mais sutil; as freqüentes pausas respiratórias, o descosido e
alinhavado no modo de contar, a habilidade na repetição – a meu ver
proposital – das preposições, que nesse caso logo sugerem a pronúncia da
nossa gente da campanha, tudo se acha amalgamado com arte perfeita, que
não poderia ter sido simples intuição, mas fruto de longo amadurecimento.
Como esse, há outros exemplos, noutro registro de expressão, todos
passíveis do mesmo reparo.

O narrador ideal
“A Mboitatá”, contudo, é a narrativa mais admirável.
Simões Lopes Neto conseguiu criar um exemplo perfeito de
sintetismo, construindo-o por meio de elementos que, de
forma reiterada, transportam-nos ao universo mítico. Numa
cosmologia primitiva, a longa noite está instaurada – e o
que veio antes dela permanecerá incógnito. O homem,
anulado diante do cosmo que se desorganizou, encontra-se
no anti-gênesis. Estamos in illo tempore : um passado
indefinido, em meio ao caos. A desordem absoluta, que
enche de pavor homens e animais, favorece o surgimento
do prodígio maléfico: a serpente que devora olhos.
O narrador assume o papel de quem detém uma verdade
ancestral. Há austeridade no narrar. E ele não permite
dúvidas ao dizer que “os homens viveram abichornados, na
tristeza dura”, usando o verbo no pretérito perfeito, de
maneira a salientar, semelhante a uma testemunha, os
fatos que se desenrolaram num tempo indeterminado.
Vejam com que habilidade o narrador rejeita, no início de
diferentes trechos, partes do seu próprio testemunho –
“Minto”, ele diz –, de maneira a intensificar a dramaticidade
do relato e inserir novos elementos, que desequilibram as
poucas certezas do leitor: por exemplo, na Parte II, o canto
do pássaro que “agüenta a esperança dos homens” – bela
figura, construída graças à acepção inusual do verbo.
A reflexão moral da Parte IV pausa a narrativa e enfatiza
seu caráter universal, destruindo a possibilidade de os
leitores reduzirem o impacto da mensagem ao microcosmo
rio-grandense. E, logo a seguir, ao retomar a linha mestra
do relato, o discurso se hiperboliza, a fim de materializar
ainda mais a cobra-grande e sua fome descomunal. Na
Parte VI, o “vai” anafórico cria o continuum , trecho síntese
que faz nascer a cobra, “uma luzerna, um clarão sem
chamas, [...] um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e
fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda
estavam vivos...”. Encontramo-nos, assim, em plena
“persuasão da continuidade”, para recordar a feliz
expressão de Northrop Frye.
A morte do ser mítico não diminui a intensidade do relato.
Ao contrário, é a conseqüência esperada, pois não há outro
destino possível a quem se alimenta do que está morto,
ainda que lhe reste alguma frágil luz. O sol renasce, então,
tímido, e lentamente a natureza recupera sua ordem. Mas a
luz da boitatá permanece como fantasmagoria ou malefício.
No entanto, aquilo que ainda causa medo serve também à
coragem:
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com
ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos
fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a
cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lha em cima,
e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo
numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se
de novo, com vagar, na aragem que ajuda.

Simões Lopes Neto é o mestre e sábio de que nos fala


Walter Benjamin em seu “O narrador – Considerações sobre
a obra de Nikolai Leskov”: ele sabe, intuitivamente, que os
relatos sobre nossos medos primevos ensinam os homens a
“enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e
arrogância”.
A prova de destreza à qual o gaúcho é chamado, venceu-a
Simões Lopes Neto, ao não se render às fórmulas
regionalistas fáceis, que, edificando um monumento ao
localismo, acreditam ter encontrado receita infalível de
originalidade. Ele é o narrador ideal de Benjamin, “que
poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir
completamente a mecha de sua vida”. Superou o mero
registro da oralidade e soube controlar, com perfeição, os
elementos da sintaxe, da riqueza vocabular – e também da
imagística, da simbólica. Em “A Mboitatá”, experimentamos,
sim, o horror – mas hoje, ao abrir a porta do quarto e
deparar-me com a escuridão, cruzo-a sem me dar ao
trabalho de acender a luz, pois o narrador conduziu-me de
volta à sonhada querência.

[ 39 ] Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.


CAPÍTULO 8

Manual de literatice
– Antônio Sales e Aves de arribação

Se existe mérito em Aves de arribação , do cearense


Antônio Sales, é o de concentrar, em quase duas centenas
de páginas, os defeitos da literatura brasileira, mostrar que
eles conseguiram vencer, incólumes, o século XIX e ressurgir
nesse romance anacrônico, repleto da ornamentação piegas
que polui os livros de José de Alencar, do naturalismo
exacerbado de Aluísio de Azevedo e da retórica afetada de
Raul Pompéia. Obra que Lúcia Miguel-Pereira não leu ou leu
mal, a ponto de não explicar o que tentou dizer, em Prosa
de ficção , [ 40 ] ao chamá-lo de “livro de qualidades”.
Elogio impreciso, de certa forma repetido por Alfredo Bosi,
para quem Aves de arribação “se lê ainda hoje com
agrado”. [ 41 ] Ninguém, contudo, foi tão enfático quanto
Massaud Moisés:
Tudo bem ponderado, parecendo acima ou à margem das ortodoxias
estéticas, colhendo na realidade o assunto galante e transfundindo-o em arte
com “sensação e força”, fundando-se na observação do cotidiano, mas sem
apelo aos maniqueísmos patológicos ou sentimentais, Aves de arribação
pode bem situar-se na ficção que prenuncia o romance nordestino dos anos
30. [ 42 ]

Não é, decididamente, o que encontrei nesse romance


verboso, no qual o talento escasseia.
Extravagâncias
Os perfis e rascunhos de trama apresentados no Capítulo I
morrem ali mesmo, pouco restando das diferenças políticas
tão salientadas, que acabam servindo apenas como tênue
pano de fundo para uma história de mexericos,
sentimentalismo provinciano e dramas mesquinhos.
Subtraídas as incongruências, resta o parágrafo que fecha o
capítulo, síntese dos problemas repetidos até o final:
Por todas as abertas do templo se escapavam morcegos para a razia
noturna, tomando rumos diversos, num vôo trôpego, a que faltava a
flutuação serena da plumagem. Nos tamarindeiros do quintal as graúnas
faziam as despedidas ao sol, desferindo as notas agudas e limpas do seu
canto, a estalarem cristalinamente na calma religiosa do ar.

A plumagem que falta aos morcegos sobrará, logo a seguir,


nos galos cujos cantos “se repetiam de quintal em quintal
num concertante wagneriano”. Não bastasse o despropósito
da imagem, o narrador a esmiúça, por masoquismo ou
sadismo, salientando as “notas grossas e arrastadas de
galos velhos, outras limpas e retinidas de galos novos, tudo
entremeado dos falsetes dos franguinhos pretensiosos e
dominado pelas fanfarras intermitentes das galinhas-
d’angola”. Trata-se de verdadeira banda marcial, reveladora
da fixação ornitológica desse antipatizante de Wagner.
Apenas anunciada no Capítulo II , alcançará o clímax no
Capítulo VII , quando uma epidemia de pássaros ataca o
leitor, precedida deste parágrafo, outro resumo do estrago
causado pela eloqüência:
Já saturado d’água, o solo não emitia esse calor de cio que lhe irradia das
entranhas ao contato das primeiras chuvas. Os rios corriam túrgidos, na
majestade soberana das grandes forças, atingindo a orla das altas
ribanceiras, de onde se debruçavam os mofumbos folhudos e os canoés
alongavam as raízes longas e retilíneas como os tubos de um órgão. O
marulho surdo das águas, rolando sobre as lajes do leito, acompanhava o
grande coro das aves, cujas vozes, diferentes de som e expressão, se
harmonizavam no mesmo hosana festivo em honra da estação bendita.

Na seqüência, insistindo na metáfora sinfônica, o autor nos


oferece aborrecida “confusão maviosa de uma Babel
musical”, com nada menos que onze parágrafos dedicados,
cada um, a um pássaro diferente: exercício artificial de
estilo, perfeito talvez num livro de zoologia, mas que, no
romance, além de descontextualizado, serve apenas para
comprovar o demérito do escritor, cuja incansável atração
pelo tema ainda produz, no final do capítulo, terrível
paralelo: “E, tomando o pé da rapariga na mão direita e
segurando-lhe a cinta com a esquerda, guindou-a até a
altura da sela, onde ela se sentou com um donaire de ave
que pousa num ramo”.
Outra excentricidade do narrador é composta pelas
paisagens evocativas – nas quais é necessário sempre
inserir um elemento dourado. As nuvens, no final da tarde,
podem ser – não obstante a cacofonia – “pardas oureladas
de ouro”. Mais à frente, também o sol matinal “redourava
magnificamente” as “ruas mesquinhas”; e o próprio capim
mostra-se “salpicado aqui e ali de pequeninas flores de
ouro”. A cor retorna neste trecho de tom horrivelmente
hiperbólico:
De volta, encontraram toda a família, que saíra ao encontro deles, a
passear pelo pátio, todo fulgurante de uma póstuma claridade solar, que
projetava em todas as superfícies fronteiras uma ardente coloração de
incêndio. Os morcegos surpreendidos doidejavam no espaço e mergulhavam
no estendal das frondes em busca da escuridão foragida. Florzinha, de
branco, rutilava naquele fundo incandescente como uma estátua de ouro; e
naquele instante Alípio sentiu que, com o seu vestido de cambraia e ao
clarão daquele pôr do sol fantástico, ela era mais formosa que se estivesse
coberta de seda num salão flamejante de luz.

As nuvens “oureladas de ouro” voltarão no início do


Capítulo XVIII , agora aguardando “o carro ígneo do estio”. E
adivinhamos a mesma repetida imagem no último capítulo,
no poente “todo em fogo” que “corroía os contornos
caprichosos dos formidáveis torrões de nuvens por cujas
seteiras se derramava a luz como jorros de metal em
fusão”.
Verborragia
A tediosa predileção de Sales pelo adjetivo produz
aberrações diversas. Não há dificuldade em imaginar
“pintinhos gritadores”, mas que eles sejam inclusive
“flocosos”, bem, certamente há formas melhores de
descrevê-los. A desmedida pode criar monstros: a
personagem que apresenta “brilho úmido dos olhos a
arderem inquietos sob o velário negro das pestanas
palpitantes” ou esta, que, ao discursar, atinge “o delírio
lúcido dos oradores da raça”. Após farto almoço, os
personagens fumam e conversam, “enquanto passava a
crise da digestão”, talvez pontuada de algumas cólicas. E
muito pode ser subtraído destes pobres cavalos de feira,
perdidos numa cidadezinha do interior do Ceará, mas
transformados em seres mitológicos:
[...] nédios animais de sela, tratados com esmero, gordos de se “poder lavá-
los com uma bochecha d’água”, aprendidos em todas as marchas, quer na
estrada, quer na meia marcha, quer por cima, na alta esquipação, em que
desfilam vertiginosamente, de pescoço encapotado, a tocar com o beiço
inferior no largo peito branco de espuma, as fartas crinas agitadas ao vento e
a cauda longa e crespa desfraldada e soberba como um pavilhão triunfante.

O mesmo hiperbolismo agiganta “uma sensação de


deslumbramento produzida pela visão fulgurante de um
vestido branco ao sol e de uns cabelos soltos que o vento
repuxava num feixe luminoso, como a cauda de um
cometa”. E Alencar, esteja onde estiver, com certeza alegra-
se ao ver o conterrâneo passarinheiro aprimorar, até o
paroxismo, suas lições:
A emoção só não atingira às graúnas, que, do alto dos tamarindeiros,
garganteavam ao cair da tarde notas sublimes ressoando cristalinamente
sob um céu purpureado que se arqueava sobre a cidade com uma majestade
feita de serenidade e de mistério.

O rebuscamento não conhece limites, a lista de horrores é


infindável, os lugares-comuns se repetem e o resultado cria,
inúmeras vezes, efeito cômico, diverso do pretendido pelo
autor: certa personagem tem as palavras “cortadas
freqüentemente pelos ecos dos soluços extintos, como
lufadas de um temporal que se afastava”; outra “praticara
em seu eu a mutilação da consciência, e adquirira por isso a
indiferença feroz de um eunuco moral” – descrição no
mínimo grotesca.
Não bastam “sonhos epitalâmicos” – e é preciso repetir as
lições de eloqüência forense aprendidas com Raul Pompéia,
[ 43 ] como neste trecho em que a humilde professorinha
tem de enfrentar seu primeiro amanhecer sem hímen:
A certeza do desastre era nítida fisicamente; mas havia ainda uma porção
de sombra do extinto e agitado sono a povoar-lhe o espírito, a envolver,
como no aconchego protetor de um nimbo escuro, os pensamentos
alucinados com que adormecera morbidamente ao tombar despojada de
suas asas, numa queda rápida e brutal, com todo o peso inerte de sua carne
maculada para sempre.

Asas que voltarão na ênfase desmesurada, cheia de


lugares-comuns, por meio da qual o narrador descreve o
resultado de um emotivo mas fortuito diálogo entre mãe e
filha:
A conversação tinha girado indiferentemente à superfície da alma, cada
uma das duas mulheres evitando descer ao âmago do sentimento, onde a
dor latente latejava, pronta a sangrar ao primeiro contato da realidade. Foi
refletindo mudamente, sem o derivativo nervoso da palavra, enquanto
ambas aprofundavam com o pensamento os sítios dolorosos de seus
corações, que se romperam os diques das lágrimas. Os braços se
entrelaçaram com ímpeto, as faces se procuraram com frenesi, os peitos
unidos bateram no descompasso da aflição. Elas eram como duas aves de
asas feridas que se juntassem para voar ainda, ou como duas naves em
perigo que se unissem para flutuar ou soçobrar juntas. Os seus soluços
valiam por juramentos de um pacto de vida e morte, contra o qual nada pode
uma vontade estranha.

É o que, linhas à frente, o autor chamará, acreditem, de


“correlação magnética das duas almas”.
Tal narrador verborrágico e de ferozes tendências
ornitológicas perde páginas e páginas esmiuçando os
sentimentos dos personagens ao invés de fazê-los interagir.
Ele realmente acredita que pode sustentar frágeis
personalidades utilizando apenas discursos melodramáticos.
Prolixo, transforma um rapaz tímido e uma jovem que
apenas se ressente de não ser amada em excrescências da
imaginação:
Entre Matias e Luizinha, ao contrário, o namoro se delineava claramente, e
a lembrança de seu antigo afeto a Florzinha começava a tomar na alma do
rapaz o feitio apagado e disforme de um sonho distante e que já começava a
parecer absurdo. E assim essa paixão, nunca traduzida por uma palavra,
existindo embora latente nessas duas almas, ia morrer, agonizava já dentro
do berço a que faltou o calor fecundo e ativo da coragem animal do homem;
tivesse-a Matias e encontraria em Florzinha a força passiva que recebe,
concentra e assimila essa coragem em prodígios de resistência contra os
obstáculos opostos pelas vontades estranhas. Morria a larva no casulo; mas
Florzinha pensava naquele momento que em toda a sua vida havia de sentir
o corpo estranho daquele esquifezinho a pesar-lhe dolorosamente num ponto
do coração. [...]

Terminado o trecho, devemos agradecer ao autor por não


ter oferecido mais detalhes sobre o pequeno caixão de
defunto.
Naturalismo
Esse tal “calor fecundo e ativo da coragem animal do
homem” faz parte das influências naturalistas de Antônio
Sales, principalmente quando se trata de expor o drama de
Bilinha, professora seduzida pelo promotor Alípio, a fim de
cumprir o que sua própria mãe, velha prostituta, chama de
“fado ruim”, marca de todas as mulheres de sua família,
“funesto desenlace” que a velha espera com “indiferença
budista” e chega até a comemorar. Conclusão à qual a
própria Bilinha desperta, enquanto observa suas alunas, não
sem antes – sim, o narrador abusa da nossa paciência –
compará-las a pássaros:
Lá estavam as inocentes a grazinarem baixinho, descuidosas como um
bando de aves pousadas sobre o lamaçal de um caminho. Nascer para ser
mulher... Qual seria o destino de cada uma dessas criaturinhas? Umas
casariam, estas bem, aquelas mal; outras morreriam sem ter conhecido os
mistérios do amor com seus gozos e suplícios; outras... Não haveria entre
elas algumas, ao menos uma, fadada para o infortúnio que a ferira de
maneira tão desastrosa? Alguma devia ter vindo ao mundo eivada do vírus
maléfico que mais cedo ou mais tarde destrói uma existência, como
acontece aos herdeiros dos morbos implacáveis. [...]

Bolorentas teses naturalistas, que permeiam todo o


romance, como no encontro casual de Alípio com um
estrangeiro:
Logo adiante deu de cara com um sujeito vermelho, cara raspada, vestido
de brim branco, chapéu de chile, desabado, sem fita, perneiras de couro
amarelo: era um moço americano, comprador de peles de cabra. E Alípio
sentiu o forte contraste daquela atividade enérgica e vencedora com a
moleza enervada de um rapaz da terra, que, em mangas de camisa,
derreado de uma janela olhava basbaque o estrangeiro mover-se direito e
rápido na faina do seu negócio.

Pedido de desculpas
Nada se sustenta nesse livro. Devemos, portanto, à
conterraneidade ou a algum tipo especial de febre os
elogios que Rachel de Queiroz fez ao romance. Quanto a
Tristão de Athayde, ao festejar a reedição da obra, em 1929,
soube escrever um desses textos, tão comuns ainda hoje,
em que a falsa cordialidade brasileira sobrepuja a
necessária independência da crítica. Resta a Wilson Martins
o papel de única voz lúcida, por ter salientado o caráter
menor livro – “quanto ao estilo romanesco e à técnica
narrativa” – e o fato de Antônio Sales “não ter sabido
escrever o romance que soubera imaginar”.
Na verdade, o próprio autor tinha consciência de sua
imperícia. Publicado na forma de folhetim, no jornal Correio
da Manhã , do Rio de Janeiro, em 1902, Aves de arribação
ganhou o formato de livro em 1913, com uma “Nota ao
Leitor” algo melancólica:
Escrevi há muitos anos esta novela [...].
Desde então nunca mais a reli senão agora quando, animado por alguns
amigos, resolvi editá-la em volume.
Desta leitura verifiquei que muita coisa teria nela a modificar; mas preferi
deixar que apareça tal como saiu no jornal, salvo ligeiras correções.
A crítica encontrará, por certo, neste trabalho, muitas falhas e
inexperiências, que já são sensíveis para mim agora [...].

Podemos, é claro, acatar este pedido de desculpas,


compreender o embaraço do autor, a difícil decisão de,
consciente dos problemas, aceitar a publicação do romance.
Mas nada justifica os elogios irrefletidos que Aves de
arribação tem merecido, obra massacrante à qual podemos
conceder, sem injustiça, o título de vade-mécum da
literatagem nacional.

[ 40 ] 2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.


[ 41 ] Histórica Concisa da Literatura Brasileira , 34ª edição, São Paulo, Editora
Cultrix.
[ 42 ] História da Literatura Brasileira , volume II – Realismo e Simbolismo,
edição revista e atualizada, São Paulo, Editora Cultrix.
[ 43 ] Ver, a respeito de Raul Pompéia, o Capítulo 14 de Muita Retórica – Pouca
Literatura (de Alencar a Graça Aranha) .
CAPÍTULO 9

Salvo da banalidade
– Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas

Hugo de Carvalho Ramos sofre, desde 1917, as avaliações


errôneas e injustas que cansamos de descobrir no substrato
do nosso cânone. A recepção superficial dos contos de
Tropas e boiadas torna ainda mais indecoroso o
derramamento de elogios a, por exemplo, Afonso Arinos,
cujas lenga-lengas medíocres analisei no ensaio “Arenga
sertanista”. [ 44 ] As sementes desse incompreensível
desdém, bem como da exagerada preferência que a
academia reserva ao beletrismo de Arinos, talvez possam
ser encontradas em nossa devoção – tão apaixonada quanto
inconsciente – à eloqüência. Ou talvez a injustiça nasça
apenas de um erro de reiteração, no qual muitos estudiosos
incorrem por absoluta preguiça.
A verdade, entretanto, é que as narrativas do goiano Hugo
de Carvalho Ramos estão acima do que se costumou
chamar, entre nós, de regionalismo, termo dúbio e sempre
aberto a revisões. Impregnados de tom épico, alguns contos
parecem nascer de episódios da Chanson de Roland e
outras canções de gesta, com seus personagens heróicos,
reticentes no que se refere a introspecções, mas sempre
prontos à presteza e à coragem, aceitando com
naturalidade a vida sob permanente tensão. Tal influência,
aliás, é apresentada de forma clara no transcorrer do livro,
em que as histórias dos doze pares da França e do
imperador Carlos Magno são recordadas mais de uma vez.
O autor ultrapassa, assim, a mera recopilação de costumes
ou vocábulos dos tropeiros do Centro-Oeste, nega à
linguagem típica o papel de protagonista e, desobrigando o
leitor de visitas freqüentes ao dicionário, prefere seduzi-lo
com a trama instigante.
Destemor e covardia
O elogio do destemor nasce logo no início do volume, no
conto “Caminho das tropas”, em que um dos tropeiros
define, orgulhoso, seu desprezo pela covardia:
“Assombramento, tenho ouvido casos, verdade seja, mas as
mais das vezes falta de coragem, turvação do medo e da
bebida”. A própria narrativa é construída de forma a
enaltecer a ousadia: o pavor, crescente, acaba reforçado
pela pausa do arreeiro, que saboreia a expectativa dos que
o escutam; a seguir, o anticlímax fecha a história com o
ensinamento moral: “Enfim, creiam mecês, é ter sempre
desapego ao perigo”.
A perfeita cena de luta – em “Nostalgias” – não é apenas
um modelo de descrição:
O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele
torceu e deixou-o passar. De novo, frechou-lhe em cima a anspeçada, faca a
prumo, num bote curto, procurando aberta; novamente ele furtou o corpo,
mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra veio espetar-se,
bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os lados, aos
borbotões.

A febre do instinto jorra semelhante às golfadas que o


vencedor comemora: “– Ah, como que ainda sentia pelas
mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue do
Minguinhos salpicando-o d’alto abaixo, todo fumegante,
como brasa!”.
O conto “Ninho de periquitos” apresenta outra face da
coragem, desta vez contra a natureza, e mostra-nos como,
muitas vezes, a bravura precisa vir acompanhada de
agilidade: no meio da mata, o roceiro não hesita em, depois
de arrancar a cabeça da serpente, decepar a própria mão, a
fim de impedir os efeitos do veneno. Não há espaço para a
dor, mas apenas o saborear da vitória:
E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando
entre os dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo
de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata
companheira [...].

“Peru de roda” abre com a figura solar e excêntrica do


Coronel Pedrinho, desde menino percorrendo as estradas de
Goiás. Seu arreeiro, Joaquim Percevejo, descrito de forma
impressionante, é, no entanto, o falso corajoso, cujo destino
moral encontra-se anunciado no título da história. Parágrafo
a parágrafo, o narrador desmonta os estereótipos e chega
ao fim surpreendente, em que a intrepidez do coronel vence
seu empregado e paralisa enorme grupo de homens
armados, reunidos na propriedade de um rival. O estilo
conciso ressalta os gestos, a firmeza:
Bateu violentamente a cancela, entrou montado no terreiro, saltou da sela;
e, a corda na mão, caminhou direito sobre Percevejo.
Nem um único olhar lançara ao fazendeiro. Pegou o arrieiro pela barba,
atou-a num ápice, em nó-de-porco, à embira; prendeu a ponta desta ao rabo
da mula e achou-se montado de novo.
O coronel encarava-o aparvalhado, os olhos remelentos, rindo constrangido.
Nem um gesto sequer. E ninguém se movera naquele rápido segundo.
Olhavam, estarrecidos.
Viram-no ferrar esporas, a besta arrancar num trote largo. E, ao primeiro
puxão, Percevejo se pusera também a trotar atrás, desesperadamente.
Sumiram-se na quebra do cerrado. E nenhum tiro se ouviu.

Mais tarde, antes de ser despedido pelo Coronel Pedrinho,


Joaquim Percevejo é obrigado a escutar a sentença: “– Vai-te
perrengue! Um homem que se deixa amarrar pela barba,
não é homem, não é homem! [...]”. E a decisão posterior do
tropeiro só confirma sua covardia: não muda de
comportamento, mas prefere, apenas, cortar a barba...
Benedito dos Dourados, protagonista do desigual “Gente
da gleba”, será derrotado por sua audácia irrefletida, mas a
cena da captura de Malaquias poderia estar num western de
Howard Hawks:
Mas alguém batera à porta. A festeira foi abrir. Montado, o pala escorrendo
água, as abas do chapéu dobradas sobre o rosto, o forasteiro num relance
varejou aquela cena. Descobriu Malaquias agachado sobre o garrafão de
cachaça, a despejar o seu conteúdo no prato de açúcar, e berrou:
– Negro! Vim buscar-te!
Ele olhou, turvo, e apanhando sobre a mesa um facão amolado com que
raspara a rapadura, saiu ao terreiro.

Da luta, em que o fugitivo sairá perdedor, a dupla passa a


uma relação de companheirismo, na qual a honradez
prevalecerá até o terrível, injusto fim de Benedito.
Quanto à narrativa “Alma das aves”, poderia inspirar
Horacio Quiroga, que deixou vários contos protagonizados
por animais. O que Hugo de Carvalho Ramos chama de
“minúscula tragédia” é o embate desproporcional entre uma
galinha e certa inconveniente cascavel. A valentia da ave
tem arroubo humano – e contrapõe-se a outro famoso
galináceo da nossa literatura, pertencente a Clarice
Lispector: no interior do Centro-Oeste, as galinhas não
podem ser “estúpidas, tímidas e livres”, mas apenas
entregam-se ao instinto, dormindo para sempre depois,
intoxicadas pela peçonha.
São histórias sem as soluções fáceis de enaltecimento ou
idealização da vida sertaneja. A realidade pulsa,
inquestionável, observada por um narrador que às vezes se
permite momentos de lirismo – realidade em cujo centro
encontra-se o homem, pronto a viver com desassombro e,
se possível, alegria. E se há melancolia ou angústia,
permanecem reservadas às poucas personagens femininas.
Linguagem
Em termos estilísticos, Hugo de Carvalho Ramos consegue
criar trechos antológicos, nos quais ao encadeamento das
frases corresponde plena visualização dos gestos:
O tropeiro empilhou a carregação fronteira aos fardos do dianteiro, e
recolheu depois uma a uma as cangalhas suadas ao alpendre. Abriu após um
couro largo no terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo
que o resto da tropa ruminava em embornais a ração daquela tarde. O cabra,
atentando na lombeira da burrada, tirou dum surrãozito de ferramentas,
metido nas bruacas da cozinha, o chifre de tutano de boi, e armado duma
dedada percorreu todo o lote, curando aqui uma pisadura antiga, ali
raspando, com a aspereza dum sabuco, o dolorido dum inchaço em princípio,
aparando além com o gume do freme os rebordos das feridas de mau
caráter.
Em “Mágoa de vaqueiro”, a cena da fuga de Maria, filha
única que abandona o pai, ergue-se diante do leitor como
um exemplo de síntese, no qual verbos, adjetivos e
substantivos harmonizam-se graças também à pontuação
perfeita, formando o período em que nenhum elemento é
excessivo:
Em pontas de pé, dissimulando o tilintar das rosetas no cachorro das
esporas, Zeca Menino alcançou o alpendre à banda, desamarrou a mula
estradeira e voltou montado ao oitão da casa, raspando-se no peitoril duma
janela, que arranhou suavemente com o cabo da açoiteira. Os tampos
descerraram-se sem rumor; um vulto esquivo deixou-se escorregar para a
garupa roliça da besta, e o estrépito abafado do animal, que ganhara a
porteira e se afastava na cerração, misturou-se perdido aos zangarreios da
sanfona, reavivando dentro a animação dos comparsas.

No final, vencido pela tristeza, o pai entrega-se à morte. A


dramaticidade é intensificada não só pela seqüência de
verbos construída em crescente sinonímia, mas graças à
oposição entre, de um lado, a roupa humilde e a carne
morta, e, de outro, a voracidade dos insetos:
Ao pé, na roupeta singela de algodão em que se enfatiotara, nas axilas, nos
braços, pela boca e orelhas, ia cerce a faina das térmitas em rasgar, picar,
cortar e estraçalhar aquele estorvo molengo que se lhes abatera desde cedo
por cima da casa...

Em “Alma das aves”, o mero gesto de alimentar o


galinhame no terreiro alcança novas dimensões e cumpre o
esperado da literatura, isto é, que salve da banalidade
inclusive as mínimas coisas:
E eram punhadas sábias para um lado, para o outro, de grãos saltitados,
rápido estrelando o solo com o seu brilho alegre de ouro novo, mais depressa
subvertendo-se naquela multidão de mendigos, cada qual apostado em
exceder o vizinho em gula e solércia; o cuidado da mulher em ter uns dos
outros afastados os galos de rinha, de aculeado esporão, ciosos e
espancadores; e depois, tufada a paparia fulva, o pedinchar de quem ainda
atende e a sua dispersão final – a custo resolvida – pelo cerrado dos
arredores.

Há grandes cenas, em que a paisagem se mescla ao


movimento dos tropeiros, às cores e ao brilho das
vestimentas e dos arreios:
Ao longe, os peões bracejavam e sacudiam a taca, achegados à retranca
dos lotes; e nos volteios do caminho, as suas cabeças amarradas em lenço
de alcobaça – as pontas sarapintadas voltadas para trás – passavam como
asas de borboletas, adejando num vôo indolente rasteiras ao solo, uma azul,
outra amarela, outra encarnada, por sobre o verde-pálido indefinível da
campina. Faiscavam às vezes, num movimento involuntário do pescoço, os
metais das cabeçadas de prata; subia a toada contínua dos guizos e
cincerros; e, a perder de vista, a terra estuava e desdobrava-se uniforme, na
mesma e epitalâmica pujança de arruídos e de vida.

Sim, o período verga-se, principalmente no final, à


eloqüência, pois “epitalâmica pujança” é nítido exagero.
Mas o resultado cria um conjunto intenso, vivo.
Apuro
O autor também nos mostra como é possível, usando
inteligência, sensibilidade e apuro lingüístico, fugir dos
lugares-comuns. A lua, uma das mais batidas referências da
literatura universal, surge renovada nestes breves trechos:
A noite descia mansa e silenciosa, perturbada apenas pelo clamor
longínquo das seriemas da campina no fundo dos vargedos, e a lua
assomava como uma grande moeda de cobre novo por sobre os
descampados, em vago nevoeiro. [“Caminho das tropas”]
Parei o pingo. Os pretos, imitando, pararam. Fiquei ali imóvel longo tempo,
os olhos neles grudados, sem tino, enquanto que o minguante principiava a
tingir de açafrão a copa folhuda das árvores, e lentamente ia abaixando a
sua luz amarelada sobre o carreiro. [“À beira do pouso”]
E como a lua surdia no horizonte, como uma enorme roda de carro,
avermelhada e triste dentre os vapores das derradeiras queimadas,
alumiando ao longe os carreiros cor de barro e inundando o rosto pálido de
Nhá Lica... [“Gente da gleba”]

Há o mesmo cuidado em relação ao sol, que, após


sucessivos dias de queimada,
semelha de eito a eito um enorme carvão aceso e sangra pelos flancos a
sua luz avermelhada e mortiça, numa atmosfera de forja, que nenhum sopro
de aragem alenta.

Língua portuguesa
Encontram-se, claro, problemas no livro. Mas um conto
péssimo, “A bruxa dos marinhos” – de que se salva apenas o
diálogo final –, as irregularidades de “Nostalgias” –
principalmente o último parágrafo, de excessiva
adjetivação, preso ao desgastado tema do contraste entre
campo e cidade –, as longas e desnecessárias digressões de
“Gente da gleba” – que só confirmam a vocação do autor
para a narrativa curta – e a insipidez de “A madre de ouro”
não diminuem o vigor de Tropas e boiadas , não maculam
os trechos que assomam como inesperadas descobertas.
Saborosas expressões locais podem iluminar certas
passagens: “– Homem, a modo que já vão andando... Ah,
meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol
com a mão!...” ou “– Qual, isso é ainda efeito da beijoca que
dei ali atrás ao frasco de cachaça [...]”. A breve frase
consegue recriar um galope: “Engolimos num trago aquele
chão”. A correta inserção de um detalhe concede nova
perspectiva à cena: o fim iminente da festa, em “Mágoa de
vaqueiro”, é anunciado, no primeiro parágrafo, pela mesa
em que se encontram os “sobejos da ceia – frascos de licor
e o doce de buriti esparramando-se na toalha besuntada
[...]”; no conto “Gente da gleba”, “as botas esturradas de
mormaço ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo à
cozinha” revelam o vaqueiro que, apesar de livre para
entrar na casa-grande, baralha no seu íntimo dedicação e
subserviência. E não poderia faltar o perfeito sentido do riso
e da ironia, presente no conto “O Saci”.
A última narrativa, “Dias de chuva”, surge plena de
saudosismo. Não chega a ser um conto, mas destila
linguagem extraordinária, às vezes lírica: “A chuvarada
continuava aberta, naquele seu grande choro de
desconforto, ensopando os campos”. Aqui, estamos muito
além do que Wilson Martins chamou, ao se referir a Tropas e
boiadas , de “implicações apotegmáticas”. [ 45 ] O que
temos diante de nós é a língua portuguesa em seus
momentos límpidos. Inculta, talvez – e também por isso
capaz de produzir coisas belas.
[ 44 ] Capítulo 18 de Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça
Aranha) .
[ 45 ] História da Inteligência Brasileira , volume VI (1915-1933), 2ª edição, T. A.
Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 10

Canalhice e afetação
– João do Rio e
A correspondência de uma estação de cura

A correspondência de uma estação de cura , de João do Rio


(pseudônimo de Paulo Barreto), obra publicada em 1918,
pertence a um gênero praticamente desconhecido em nosso
país, o das narrativas epistolares. Tratada como “romance”
pela crítica, não passa, entretanto, de um conjunto de
crônicas travestidas em cartas, o que fez surgir uma
noveleta na qual, segundo Antonio Candido, “a felicidade do
método é superior à relativa banalidade do tom e da visão
de mundo”. [ 46 ]
A história desse gênero pouco valorizado no Brasil
confunde-se, na Inglaterra, com o surgimento do próprio
romance. Quando o impressor Samuel Richardson aceitou,
em 1739, a encomenda dos livreiros Rivington e Osborn de
escrever um volume de cartas que servisse como modelo a
leitores sem grande preparo para a escrita, não previa o
resultado da sua concordância. A concepção da obra
obrigou-o a elaborar contextos inusitados, a fim de
diversificar os modelos e criar um manual o mais completo
possível. Esses exercícios de estilo estimularam sua
imaginação, a ponto de fazê-lo escrever o romance epistolar
Pamela , que se tornou uma das obras mais influentes do
século 18 (também produziria, seguindo o mesmo gênero,
dois outros romances de sucesso: Clarissa e The History of
Sir Charles Grandison ).
A importância do romance persiste até hoje. O crítico Frank
Kermode mostra, no ensaio “Richardson and Fielding”, [ 47 ]
que a prosa epistolar em geral e a obra de Richardson
anteciparam questões colocadas, séculos mais tarde, por
Joseph Conrad e Henry James, como a do desaparecimento
do autor, pois a técnica de escrever por meio de cartas
permite às personagens que falem com suas vozes
características, sem a intermediação de narradores. Não por
outro motivo, estudiosos consideram Richardson um dos
criadores do romance psicológico, já que as cartas e o diário
de Pamela apresentam os complexos sentimentos e
reflexões de uma jovem de quinze anos.
O que foi grandioso nas mãos de um impressor inglês – e
se aperfeiçoou com Rousseau ( Julie ou la Nouvelle Héloïse ,
1761), Goethe ( Os sofrimentos do jovem Werther , 1774),
Chordelos de Laclos ( As ligações perigosas , 1782) e Ugo
Foscolo ( Ultime lettere di Jacopo Ortis , 1802) – tornou-se,
contudo, medíocre sob a pena de João do Rio.
Difamadores
As cartas que compõem A correspondência de uma
estação de cura pertencem a diversos missivistas instalados
em Poços de Caldas, famosa estância hidromineral na
primeira metade do século XX . A elite carioca e paulista,
impedida de ir à Europa pela Guerra de 1914, ocupa o
melhor hotel do município mineiro e entrega-se aos
divertimentos possíveis: jogatina, banhos sulfurosos, shows
noturnos, cavalgadas – e mexericos, intrigas, a nobilíssima
arte de falar mal uns dos outros.
De carta a carta, das fofocas irônicas do dândi Antero
Pedreira às lamúrias de José Bento, misto de empresário
artístico e reclamador profissional, passando pelas teses
naturalistas do neurastênico Teodomiro Pacheco, os
narradores repetem o mesmo exercício: caluniar e rir, à
socapa, das pessoas com as quais convivem diariamente.
Se confiarmos no que diz Lêdo Ivo na “Apresentação” de
Cinematógrafo (Crônicas cariocas) , [ 48 ] o cronista
conhecia bem a classe que descreveu:
o gordo e triunfante e bebedor de champagne João do Rio transitava nos
salões mundanos e nas embaixadas, com os seus ternos de fazenda inglesa,
o seu monóculo, e a sua frase cintilante. E, em grandes e demoradas
viagens, respirava a brisa dos transatlânticos.

Além de, completa Ivo, posicionar-se “ostensivamente ao


lado dos ricos e bem-nascidos” e cortejar
“desembaraçadamente os comendadores portugueses que
costumavam abastecer-lhe os bolsos sempre furados de
dissipador incorrigível”.
Infiel ou não à classe que o sustentava, João do Rio
alinhavou essas crônicas em que o exagero, as repetidas
maledicências e o tom monocórdio da correspondência ativa
dos difamadores destroem qualquer possibilidade de
verossimilhança.
No que se refere à psicologia dos personagens, não há
conflito entre o papel que desempenham em sociedade e o
que realmente pensam, pois são incapazes de realizar
qualquer mínima autoanálise. Com exceção de algumas das
cartas de Teodomiro Pacheco e das escritas pela jovem Olga
da Luz, o olhar dos narradores está sempre voltado aos
supostos defeitos de outrem.
A obstinação para descrever casos frívolos concede à
narrativa irrefreável tendência ao episódico, o que faz a
noveleta se dissolver numa clara falta de unidade
estrutural. A única trama curiosa, citada em algumas cartas,
é a sedução da inocente Olga da Luz, dona de imensa
fortuna, pelo imoral Olivério Gomes – e a tentativa, dos
outros pretendentes, de atrapalhar o possível noivado,
trazendo a Poços a amante de Olivério, uma prostituta. Tudo
transcorre, no entanto, em clima de vaudeville .
Ou seja, se o tema é ordinário, o método, diferente do que
argumentou Antonio Candido, mostra-se frouxo, debilitado.
Mais razão tem Lúcia Miguel-Pereira (em Prosa de ficção ),
para quem o livrinho “nem chega a merecer o título de
novela”.
Falsa elegância
Em meio à coleção de pedantismos e ao persistente tom
de zombaria, surgem ilhas de curiosidade, como a carta do
Capítulo XIII , na qual Teodomiro narra a história bem-
humorada do caboclo que se alimenta apenas de café – um
faquir do interior mineiro. No entanto, a maior parte dos
capítulos pouco acrescenta para formar um eixo
consistente.
O lugar-comum predomina, como no Capítulo XXXV ,
assinado pela casamenteira Maria de Albuquerque, em que
João do Rio plagia, sem pudor, certo episódio de A Dama
das Camélias . Além dos chavões, não faltam figuras
melosas, pois os narradores escrevem mal; e se repetem,
tamanha a semelhança de sentimentos ou, quem sabe, a
falta de criatividade do autor: o luar tem a “doçura de lírios
diluídos” numa carta de Antero Pedreira, que completa: “[...]
Sobre as árvores, recamando as colinas, abrindo no espaço
o êxtase azul da luz, ligando céu e terra no mesmo
espasmo, o luar esplendia”; imagem que surge, sob o
mesmo véu de preciosismo, na carta seguinte, assinada por
Olga da Luz: “[...] Faz um esplêndido luar, desses luares que
choram sobre a terra”.
O máximo de reflexão que essa manada de pulhas alcança
– sem nunca revelar a menor chama de integridade – é
dizer, num rompante:
[...] A esposa deve ser inteligentíssima sempre. As amantes, pouco importa.
Ça ne compte pas ... Para que o amor não fosse uma cacetada seria preciso
que as esposas fossem a tal ponto inteligentes que deixassem o ciúme para
diversão das amantes estúpidas... [...]
Dos ricos aos falidos, dos aristocratas aos sanguessugas,
todos usam linguagem semelhante – nos discursos da elite
há mais anglicismos e galicismos, recurso que o autor utiliza
para demonstrar a elegância de certos personagens. E
todos são vis, mesquinhos, afetados.
“Espuma inconsistente”
Na resposta que escreveu à crítica de Viriato Correia, [ 49 ]
em julho de 1918, João do Rio diz que
o romance em língua portuguesa, depois de Eça e de Aluísio de Azevedo [...]
chegou à indigência impossível de leitura. Total ausência de idéias, uma
história qualquer dividida em capítulos e nesses capítulos o que eles
chamam de observação natural. Coisas enfim que não interessam a
ninguém.
E defendia – depois de afirmar que Machado de Assis era
“autor de volumes que poderiam ter todos o título geral de
Memórias ” – a tese de que,
artisticamente, a individualidade é tudo. A individualidade começa pela
técnica. Há mil modos de fazer uma jarra. Criar o seu modo e pôr-lhe o
sangue das suas idéias é sempre fazer jarras – mas de outra maneira.
Tais superficialidades demonstram como a avaliação
errônea e a incompetência podem levar um escritor a
resultados grosseiros.
Monteiro Lobato, nos comentários que fez sobre o livro – e
que podem ser lidos no volume Crítica e outras notas [ 50 ]
–, aponta o “linguajar cambaio”, a “charrice” das “idéias
simiescas” e a “pretensa elegância canalha”. Lúcia Miguel-
Pereira classifica o texto do cronista como “espuma
inconsistente”. [ 51 ] Ambos estão certos. Errados são
aqueles que elogiam tais coisas.

[ 46 ] “Atualidade de um romance inatual”, em A correspondência de uma


estação de cura , Editora Scipione / Fundação Casa de Rui Barbosa / Instituto
Moreira Salles, 1992.
[ 47 ] Cambridge Journal 4, 1950-1951.
[ 48 ] Cinematógrafo: crônicas cariocas , João do Rio, Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras, 2009.
[ 49 ] “A forma do romance”, em A correspondência de uma estação de cura ,
op. cit.
[ 50 ] Editora Globo, Rio de Janeiro, 2009.
[ 51 ] Prosa de Ficção (De 1870 a 1920) , 2ª edição, revista, Livraria José
Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
CAPÍTULO 11

Salvo pela ironia


– Carlos de Laet e suas crônicas

Meio século escrevendo ininterruptamente na imprensa,


assim pode-se resumir a carreira do polígrafo Carlos de
Laet. Mas não seria inadequado completar: exercitando fina
ironia, segunda pele desse polemista que, consciente do
seu papel, afirmava estar “sempre em divergência com
alguém, o que muito me apraz, porque é sinal de que agito
idéias”. Ironia, contudo, jamais presa aos artigos e às
crônicas, mas pronta a temperar o cotidiano. Derrubada a
monarquia, certa manhã, caminhando para o trabalho numa
das escolas do Rio de Janeiro, Laet vê que trocam o nome
do Campo de Santana pelo de Praça da República; minutos
depois, ao entrar na classe, diz aos alunos: “Não posso
explicar o ponto marcado, porque ia falar sobre sintaxe da
regência, e o novo governo é capaz de mandar que se fale
sobre sintaxe da república”. Comentando o Hino da
Proclamação da República, afirma que a letra tem apenas
uma coisa certa: os pontos de exclamação. Certa vez, um
aluno retruca diante das críticas que o professor faz ao
evolucionismo: “– Mas papai disse que nós descendemos do
macaco”. Ao que Laet responde: “– Não me interessam
questões particulares de sua família...”. No ensaio biográfico
que escreveu sobre nosso escritor, do qual retiramos estes
casos, o jesuíta Francisco Leme Lopes assevera que,
segundo depoimento de Mário de Alencar, amigo íntimo de
Machado de Assis, este, no fim da vida, só lia o Jornal do
Brasil das quintas-feiras, quando podia encontrar o texto de
Laet.
Mas, nos dias de hoje, quem se lembra de Laet? Pouco
sobrou dos cinqüenta anos de colaboração na imprensa e do
ácido humor. A culpa não é da ironia, figura que está longe
de ser efêmera ou superficial, mas cabe, parcialmente, aos
modernistas, que talvez até pudessem fazer vista grossa ao
catolicismo de Laet, mas jamais aceitaram suas críticas –
ele já troçava do futurismo em 1910, antes mesmo que
Oswald de Andrade (Oswald Júnior, à época) e seu pai
criassem O Pirralho – e seu conservadorismo, em tudo
oposto à idéia central do movimento, sintetizada no
conhecido trecho da conferência de Graça Aranha, “A
emoção estética na arte moderna”, que inaugura a Semana
de 22:
o que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o
próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e como não temos
felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo
promete uma admirável florada artística.
Essa presunção de iniciar uma nova era, típica das
vanguardas e das ideologias revolucionárias, contagiou não
apenas a Semana, mas grande parte do que se produziu
depois dela; e nos casos radicais – ou seja, patológicos –,
continua a impossibilitar que o artista entenda a história e,
pior, veja a realidade.
Ouro falso
Mas parte da culpa de que falávamos acima cabe ao
próprio Laet. Incansável em sua defesa da monarquia,
acabou se tornando repetitivo. Ler a coletânea de suas
crônicas, [ 52 ] pequena amostra de tudo que ainda não foi
coligido, torna-se experiência às vezes tediosa, ainda que o
escritor possua méritos indiscutíveis: rompe com a visão
histórica dos golpistas – que se tornou hegemônica, pronta
a detratar a monarquia e endeusar a república, escondendo
a vocação despótica que esta forma de governo assumiu
entre nós – e reapresenta, aos leitores modernos, figuras
cruciais, diminuídas ou menosprezadas nos livros didáticos.
Vejam-se, por exemplo, as crônicas sobre o marechal Osório
– herói da Guerra do Paraguai, personagem só
recentemente recuperada, graças ao historiador Francisco
Doratioto – e o barão de Rio Branco: elogiosas, sim, mas
sóbrias, em tudo diferentes do tom encomiástico que
utilizou para retratar, anos mais tarde, o pintor Victor
Meirelles. Laet também testemunhou momentos que,
passado mais de um século, a historiografia marxista deseja
transformar em meros acidentes ou pérfidas manipulações
oligárquicas, mas aos quais o cronista concede emoção
genuína, ainda que possamos criticar seu estilo, como o da
votação, no Senado, do projeto que se transformou na Lei
Áurea. Descontada a irrestrita defesa da monarquia, o perfil
que desenha de Benjamin Constant serve para mostrar a
ascensão da ideologia positivista no Brasil e suas
conseqüências até hoje mal estudadas – o que só reafirma a
coragem de Laet, pronto a contrariar os militares e
denunciar seus crimes, incluindo os de Floriano Peixoto,
outro capítulo ditatorial esquecido da nossa história.
Sofrendo do mal típico dos escritores brasileiros, Laet
confunde retórica com magniloqüência. Critica o vício dos
“pedantes sequiosos de tropos” que povoam este “país de
advogados”, mas não consegue se livrar da doença.
E reza o Evangelho narrando a história daquela miraculosa alvorada em
que, junto ao sepulcro do Grande Mártir, se quedava um celeste mensageiro
anunciando a estupenda nova da ressurreição,

diz ele, por exemplo, colando adjetivos desnecessários,


certo de que compõe um período harmônico, elegante.
A tese da crônica “Ela”, dedicada à Princesa Isabel, é justa,
mas a linguagem mata a boa intenção. O mesmo
desequilíbrio ocorre no texto dedicado a Machado de Assis:
Laet percebe, com agudeza, o que chama de “eurritmia
estética” – “incapaz de censurar com veemência um abuso,
ele também o era de baixar à lisonja” –, mas perde-se em
procedimentos enfáticos, vazios. A crônica salva-se, no fim,
graças ao diálogo revelador, em que Machado demonstra
seu horror às polêmicas, e à narração dos encontros nos
quais o romancista sofre um ataque epiléptico ou chora,
lamentando a morte da esposa, Carolina.
O problema não é a sintaxe de Laet, que apresenta
agradável anacronismo, principalmente hoje, quando a
maioria escreve como se telegrafasse ou preenchesse um
formulário. A agrura surge do discurso que circunvaga e
demora a chegar ao porto, do preciosismo, das citações em
latim – esnobismo igual ao dos críticos que, atualmente,
abusam dos termos estruturalistas e da linguagem
hermética –, dos lugares-comuns, da verbosidade estafante:
Rebrilhava o sol em uma apoteose tropical. Um dilúvio de luz inundava as
alamedas por onde escoava o fúnebre préstito, espelhava-se nas folhas lisas,
nas arestas dos túmulos, nos doirados dos ataúdes... Por cima deste havia,
concitando atenções, um pano colorido, uma bandeira, a bandeira do
Império, a que flutuou no mastro do Amazonas quando se ganhou Riachuelo,
a que seguiam nossos bravos quando se pelejava em Tuiuti, aquela que
também na terra do exílio cobriu o féretro de Pedro II... E o sol, dardejante,
em uma ardente carícia de amor e entusiasmo envolvia todo aquele cenário
– fagulhando nas folhas e nos túmulos, naquela bandeira que parecia
evocada por hipogeus da História, e naquele féretro que, de coração
apertado e olhos turvados de lágrimas, silencioso eu acompanhava à
derradeira estância.

Semelhante terror ressurge na crônica, gordurenta de


palavrório, dedicada à memória de Euclides da Cunha:
Todo túmulo é digno de lágrimas. Em todo féretro vão a esconder-se
mundos de afeto. Não há tumba, por mais humilde que seja, onde não chore
uma saudade ou não se lamente uma esperança. Mas quando o morto tem
vivido dessa larga vida da publicidade em que comungam milhares de
inteligências, há nas tristezas que o acompanham ao cemitério, alguma
cousa mais solene que os lutos da família. Chora também essa grande e
pujante mãe, que todos amamos e tanto que por ela daríamos a vida, chora
Pátria, orfanada de mais um filho que a ilustrava e que dos resplendores de
seu nome lhe entretecia um trecho da formosa auréola.
Lamuriento em sua defesa saudosista da monarquia, Laet
raramente apresenta o ímpeto, o apelo, o ataque preciso à
república que Eduardo Prado compôs em Fastos da ditadura
militar no Brasil . [ 53 ] E quando digressiona, oferece,
principalmente ao elogiar, um ouro falso, pedante,
exagerado, como neste trecho, em que analisa os artigos de
certo jornalista:
[...] Não são tímidas aves a tomarem o primeiro vôo, incertas do destino
que as aguarda: são hostes que retornam do combate, e que, frementes
ainda com a febre da pugna, vitoriosas demandam os quartéis da História.
[...].

Há também crônicas dedicadas a arengas chatíssimas,


como “Com a Academia”, na qual, para justificar a suposta
tolerância da Academia Brasileira de Letras, perde-se
explicando as linhas ideológicas dos seus membros.
Infelizmente, nesses textos, Laet exclui-se da minoria que
ele mesmo define: “O jornal é um edifício, uma estátua,
uma tela, um livro feito para apenas durar um dia, e no qual
só por exceção se inscreve o nome do artífice”.
Acidez
Todos esses problemas desaparecem quando surge a ironia
– e o estilo de Laet se transfigura.
A sanha adesista que toma conta da sociedade, assim que
os republicanos dão o golpe, é sintetizada neste episódio:
[...] Existiam no estabelecimento umas talhas da Bahia, nas quais
ostentosamente se viam as armas imperiais, como então muito se usava. De
ordem superior infalivelmente haviam de ser retiradas. Água bebida em
talhas tão sediciosas até poderia fazer mal à saúde... [...] Eu o vi, o pretinho
incumbido da espinhosa tarefa de tirar as coroas. Com uma faquinha ele
procurava raspar o barro em que se modelara o nefando símbolo, e ao
mesmo tempo, e com máximo cuidado, evitar o estrago total daqueles
produtos cerâmicos.
Mas era impossível...
– Perdes tempo, meu velho, disse eu ao servente da República... A coroa
sai, mas a talha fica furada!
Meu dito, meu feito. Instantes depois abria-se um furo medonho, por onde
despejava grosso jorro de água.
Desconfio que nunca mais se consertou a talha republicana.

Que a república continue a fazer água, isso só demonstra a


qualidade profética – e metafórica – da ironia de Laet.
A compulsão por reformas ortográficas vem de longe em
nosso país. Em 1907, a chamada reforma Medeiros e
Albuquerque recebe crítica sarcástica, publicada no Jornal
do Brasil , na forma de uma carta a Machado de Assis:
Meu karu Maxadu Dasis.
Não temus estado juntus, á muintus meses, i konpletamente ignoru kual a
tua maneira de pensar a respeitu da nova reforma ortografica, de invenção
du Medeiros Albukerke. Não axas tu ke para uma revolusão é muito pôku, i
para uma desorden já é demais?
Á, nu ke vai fazendu a Akademia, grande falta de lojica. Vêjase, por exenplu,
akilu du agá! Não u admite nu meiu das palavras, i todavia u tolera nu
principiu dalgumas. Ô u agá é bom, ô é mau. Si é bon, kontinúe a viver onde
ker ke seja; si é mau, suprima-se de todu.

Era o que Laet chamava, com seu espírito debochado, de


“fonetismo jacobino”. Graças à sua lucidez – e à de vários
outros –, a reforma não vingou.
Ao criticar o futurismo de Marinetti, faz não só exercício de
futurologia, mas de perfeita vidência:
Eu não conheço o Sr. Marinetti; mas entendo que, se leva a peito a sua
propaganda, só tem um caminho a seguir: tome um transatlântico e venha
cá ao Brasil fazer conferências. Este conselho de um desconhecido poderá
parecer exorbitante das boas normas: mas eu lho dou, ao já ilustre
propagandista, com espírito de simpatia e para o bem dele e da sua
novidade.
Realmente, não conheço país em que mais probabilidades de ótimo êxito se
lhe possam deparar. Direi mais, sem contudo, nem de leve, apoucar a
originalidade do Sr. Marinetti: nós, os brasileiros, somos os genuínos
precursores de sua filosofia.
Há vinte anos, seguramente, não fazemos senão rasgar e queimar a
História. Pode-se dizer que os anais destes últimos quatro lustros nada mais
são do que um imenso auto-de-fé, em que arde a tradição. Venha para cá o
Sr. Marinetti e, em vez de recalcitrantes discutidores, achará cordatos
discípulos e talvez mesmo provados mestres.

Dezesseis anos depois, em 1926, o fascista Filippo


Tommaso Marinetti chegava ao Brasil, aclamado por um
séquito de intelectuais babões e triunfalmente apresentado
por Graça Aranha no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Laet
estava certo: “[...] O marinetismo já entre nós tinha adeptos
antes de brotar o Sr. Marinetti”.
A relação de Carlos de Laet com Graça Aranha foi marcada
por zombarias. Em 1924, o autor de Canaã envia um
telegrama cifrado, anunciando o início da Revolução
Paulista: “Tumor mole virá a furo esta noite”. A polícia, no
entanto, não tem dificuldade para decifrar a mensagem
explícita e prende o escritor. É a inspiração perfeita para
Laet, que destila acidez:
O Aranha publicou um livro simbólico, Canaã, que ninguém compreendeu...
Agora faz um telegrama secreto, que todo o mundo decifrou. Obscuro,
quando quer a claridade; diáfano, quando busca o mistério. Que estilista!

Não satisfeito, ainda compõe um soneto em que faz dupla


crítica, pois aproveita o telegrama funesto para ridicularizar
o estilo telegráfico de Marinetti, então já imitado pelos
modernistas:
Noite. Calor. Concerto nos telhados.
Cubos esferoidais. Gatas e gatos.
Vênus. Graças. Aranhas. Carrapatos.
Melindrosas. Poetas assanhados.
Rabanetes azuis. Sóis encarnados.
Comida no alguidar. Cuspo nos pratos.
Três rondas a cavalo. Mil boatos.
Prosa sesquipedal. Tropos safados.
Avenida deserta. Bondes. Grama.
Chopes Fidalga. Leite. Pão de ló.
Carros de irrigação. Salpicos. Lama.
Vacas magras. Esfinge. Triste. Só.
Tumor mole. São Paulo. Telegrama.
Dois secretas. Cubismo. Xilindró.
Em 1926, numa crônica publicada em O Jornal , Laet ataca
novamente. Relembra o telegrama e usa rimas, a fim de
criticar a poesia modernista, que “planeia o verso” e, na
verdade, escreve prosa:
Meu querido Graça Aranha – Para mitigar saudades, traço esta carta
poética. Não é potoca ou patranha: são velhuscas novidades, sem respeito à
tua estética.
Grafo seguido o meu verso; mas, lido com certo jeito, canta a rima
sonorosa. Tua escola faz o inverso: calcando norma e preceito, planeia o
verso e sai prosa.
[...]
Tudo, Aranha, aqui te chama. Ingratos os que se ausentam! Volta, surge
sem detença. (Não te espeço telegrama, porque os tumores rebentam
quando a gente menos pensa.)
Mando um abraço apertado à tua grei futurista. Beija a mão do Marinetti,
que deve andar espantado. Teu confrade passadista, e sempre amigo, Laet.

Imaginando os ensinamentos de um Catecismo


revolucionário , Carlos de Laet cria definições perfeitas,
sábias, adequadas a todos os tempos – e segue a forma
clássica dos antigos catecismos católicos, com perguntas e
respostas. Questionado sobre o que é a igualdade, o
revolucionário responde:
O nivelamento de todas as condições sociais. Nosso ideal em fisiografia
seria uma planície. Detestamos as colinas pretensiosas e os cabeços das
montanhas coroados de nuvens. Em geometria suprimiríamos uma das três
dimensões. Adoramos o largo e o chato.

Quanto à liberdade, depois de muito hesitar, o personagem


conclui:
É a licença de fazer cada qual o que bem lhe pareça, contanto que não vá
contra o que instituímos.

Mas a melhor resposta – resumo do que são revoluções,


golpes e governos que se autoproclamam renovadores –
irrompe quando o interlocutor sugere a possibilidade de
ocorrer relutância em alguns setores da sociedade:
Em verdade assim pode acontecer; mas para que tal não suceda, deve-se
proceder com a devida cautela. Sonda-se a opinião; contra os cobardes, que
são a maioria, emprega-se o terror; dão-se gorjetas aos venais, acena-se aos
ávidos com o quinhão do confisco.
Agripino Grieco estava certo quando definiu Laet como o
“‘não’ eterno” que “nunca se deixou açaimar pelas cédulas
do tesouro”. Suas polêmicas – com Camilo Castelo Branco,
João Ribeiro, Jackson de Figueiredo e outros –, também
reunidas em volume publicado pela Fundação Casa de Rui
Barbosa, [ 54 ] estão repletas de inteligência e liberdade
incomparáveis, difíceis de encontrar neste reinado do
populismo em que se transformou o Brasil. Laet tem o dom
raro de condensar, por meio do gracejo ou do deboche, as
diversas formas do ridículo. Ao ler seus textos, rimos ou
choramos, dos outros ou de nós mesmos – e só ignorantes
ou deslumbrados insistem na indiferença.
[ 52 ] Obras seletas de Carlos de Laet — Crônicas (Volume I), Editora Agir /
Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
[ 53 ] Obra que analisei no ensaio “O anti-revolucionário”, Capítulo 17 de Muita
Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) .
[ 54 ] Obras seletas de Carlos de Laet — Polêmicas (Volume II), Editora Agir /
Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
CAPÍTULO 12

Ideologia e azedume
– Lima Barreto e
Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá

A definição de “literatura militante” elaborada por Lima


Barreto, à sombra de Jean-Marie Guyau – pensador que foi
lido atentamente por Kropotkin e Nietzsche –, impõe à obra
literária “o destino de revelar umas almas às outras, de
restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo
entendimento dos homens”. Em nosso país, onde, segundo
Barreto, não há passado, mas só futuro, “nós nos
precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos
outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós
tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos
destinos”, dizia o romancista. E completava, depois de
excluir do seu sonho os “cavalheiros de fidalguia suspeita” e
as “damas de uma aristocracia de armazém por atacado”:
“[...] Devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um
índio, um português ou um italiano se podem entender e se
podem amar, no interesse comum de todos nós”.
Esse anseio de solidariedade utópica – e, portanto,
excludente – surgiria em outras crônicas do autor, incluindo
o “Manifesto Maximalista”, de apoio à Revolução Russa –
encerrado com o grito “Ave Rússia!” –, sempre voltando ao
desejo de tornar “os homens mais capazes para a conquista
do planeta e se entenderem melhor, no único intuito de sua
felicidade”.
Para Lima Barreto, o dever dos “escritores sinceros e
honestos” é o de
tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos
adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo
e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior,
em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas
têm de comum e dependente entre si.
Tais esboços de espírito revolucionário, esses lampejos de
fraternidade universal, não se concretizaram, no entanto, na
ficção de Lima Barreto, marcada, desde Recordações do
Escrivão Isaías Caminha (1909), pelo sentimento de derrota:
Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que a não
pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me
repelente, repelente de fraqueza, de decisão e mais amolecido agora com o
álcool e os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter
dinheiro... Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha meninice eu
não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral, a excomunhão
dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o
Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo
de fantasmas e não obedecera ao seu império.

Não é outra a conclusão que explode no final de Clara dos


Anjos (publicado postumamente, em 1948), quando a jovem
sentencia à mãe: “– Nós não somos nada nesta vida”; ou
nas reflexões sobre o conceito de “pátria” que o narrador de
Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) coloca na mente do
major, pouco antes de sua morte:
Mas, como é que ele, tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o
seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu
nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um
falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência?
Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia
para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um
beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!
Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de
saboroso.

Não importa se essas vítimas da ingenuidade, do ideal, de


uma visão fatalista da existência e, principalmente, do auto-
engano, refletem as características pessoais do autor, ainda
que seja possível estabelecermos inúmeros paralelos. O que
ressalta é o abismo a separar a vontade da ação, o projeto
de “literatura militante” das obras em que amor,
compreensão entre os homens e felicidade nunca se
concretizam. O que sobressai é o iniludível vitimismo, no
qual as personagens às vezes até conseguem captar a
medida de responsabilidade que tiveram em seus destinos,
mas sem jamais lograr verdadeiras mudanças.
Homem estéril
O problema se repete em Vida e morte de M. J. Gonzaga de
Sá (1919). Logo no Capítulo I , o narrador, o jovem Augusto
Machado, anuncia que contará as “cousas íntimas” da “bela
obscuridade” de seu amigo, Gonzaga de Sá, funcionário da
inútil Secretaria dos Cultos; e o primeiro documento que nos
oferece é o breve texto descoberto entre papéis e livros do
burocrata: a história de um inventor derrotado, metáfora,
logo percebemos, da existência de Gonzaga.
O próprio narrador, aliás, já anunciara, nas justificativas
apresentadas antes de iniciar a biografia, que as possíveis
críticas lhe darão “alento para viver, cousa que me vai
faltando dentro de mim mesmo”. E as conclusões que
Machado extrai do relato sobre o inventor antecipam muito
de sua cosmovisão: “[...] o Acaso, mais que qualquer outro
Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sábios
planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e
da nossa vontade”.
O livro nasce, assim, do encontro desses dois homens,
prontos a revelar, em diferentes momentos, sua
inadequação à vida.
Às reflexões que Machado tece, no Capítulo II , acerca da
burocracia – à qual aderem os intelectuais independentes,
mas que ali acabam soterrados pelo “enfado”, pela
“depressão mental”, perdendo o “viço, a coragem e mesmo
o ânimo de estudar” – correspondem os estudos e leituras
de Gonzaga, “sem filhos, membro de família a extinguir-se”,
condenado à “obscuridade a que se havia voluntariamente
imposto”; situação que o narrador definirá, páginas depois,
no Capítulo VII , tentando criar certo duvidoso elogio, como
uma “fraqueza de gênio prático”.
O vencido Gonzaga está sempre propenso, portanto, a
fazer o discurso dos ressentidos: sua crítica ao Barão de Rio
Branco – tema caro a Lima Barreto – é impiedosa, parcial,
injusta. Lastima não ter mantido relações amorosas
duradouras; confessa, de forma digressiva e indireta, ser
virgem; e acaba por revelar sua misoginia, camuflada
quando diz sentir pelas mulheres “uma grande afeição de
ordem puramente intelectual”. Tenta envernizar seus
pensamentos, mostra-se capaz de gestos solidários em
relação a algumas raras pessoas, mas o que prevalece é o
ceticismo carregado de ironia:
– Levamos a procurar as causas [...] da civilização para reverenciá-las como
se fossem deuses... Engraçado! É como se a civilização tivesse sido boa e
nos tivesse dado a felicidade!

Augusto Machado chega a tocar a superfície da


personalidade do amigo, mas não consegue ir além de uma
interrogação:
Gonzaga de Sá seria um apaixonado que não conseguira a tempo
encaminhar o seu temperamento para um objeto qualquer, ficara de parte,
guardando suas paixões, escondendo seus estos, tanto por timidez como por
orgulho?

A pergunta ecoa as questões do narrador de Policarpo


Quaresma , citadas acima. Quanto às respostas, Gonzaga
de Sá não deixa espaço a dúvidas. Para ele, “a morte tem
sido útil, e será sempre [...]. Não é só a sabedoria que é
uma meditação sobre ela – toda a civilização resultou da
morte”. Mais à frente, diz: “Eu julgo [...] que os desgraçados
se deviam matar em massa a um só tempo”. E logo depois
ilustra sua reprovável tese com uma história:
[...] Recordo-me que, uma vez, por acaso, entrei numa pretoria e assisti um
casamento de duas pessoas pobres... Creio que até eram de cor... Em face de
todas as teorias do Estado, era uma coisa justa e louvável; pois bem, juízes,
escrivães, rábulas enchiam de chacotas, de deboches aquele pobre par que
se fiara nas declamações governamentais.
Ao fim desse relato, quando esperamos que ele, numa
reviravolta da consciência, se transforme no porta-voz do
“mútuo entendimento dos homens” defendido por Lima
Barreto, sua fala descamba para o niilismo feroz:
Não sei porque essa gente vive, ou antes, porque teima em viver! O melhor
seria matarem-se, ao menos os princípios químicos, dos seus corpos, logo às
toneladas, iriam fertilizar as terras pobres. Não seria melhor?

Por um momento, Gonzaga de Sá parece reencontrar a


bondade; interrompe sua fala e conclui: “Não; a maior força
do mundo é a doçura. Deixemo-nos de barulhos...”. Esse
pensamento, entretanto, será corroído pela frustração que
se revela no penúltimo capítulo, em tudo semelhante à de
Isaías Caminha: “[...] As noções que acumulei, não as soube
empregar nem para a minha glória, nem para a minha
fortuna... Não saíram de mim mesmo... Sou estéril e morro
estéril...”. E o burocrata destrambelha, lançando a culpa do
seu desgosto sobre os que não o compreenderam:
[...] A burrice humana é insondável! Tenho desgosto de mim, da minha
covardia... Tenho desgosto de não ter procurado a luz, as alturas, de me ter
deixado covardemente entre patos, entre tais perus, burros e maus,
agaloados ou não, ignorantes e sórdidos, incapazes de simpatia, de gratidão
e de respeito pelo valor dos outros... [...] Que bestas! O que mais me
aborrece é ter chegado a esta idade vazio de tudo, vazio de glória, de
amizade, só, e quase isolado dos meus e dos que me podiam entender. [...]
Fugi das posições, do amor, do casamento, para viver mais independente...
Arrependo-me!... Vênus é uma deusa vingativa!

De fato, é alto o preço de não viver, de dar as costas à


realidade, procurando apenas certo mundo ideal.
Morte e vida
De igual patologia sofre Augusto Machado – o “interlocutor
indulgente” de Gonzaga de Sá, segundo a perfeita definição
de Eugênio Gomes [ 55 ] –, que, também insignificante
funcionário público, imaturo, quase despersonalizado,
incorpora, sem crítica, as conclusões dos amigos. Se
Gonzaga demonstra misoginia, logo no capítulo seguinte
Machado amplifica, de maneira pueril, o sentimento:
[...] Basta que as mulheres, sejam quais forem as condições delas, não
pensem em outra coisa, e queiram-na de qualquer modo até o ponto de fazer
a raça humana a mais perfeitamente desgraçada de todas as raças,
espécies, gêneros e variedades animais e vegetais do planeta. Eu as acuso!

No Capítulo IX , esse narrador nos oferece longo trecho


dedicado às mulheres, no qual o bordão de Gonzaga de Sá –
“A dama fácil é o eixo da vida” – repercute, influencia,
confunde. As páginas estão entre as mais bem escritas da
literatura brasileira, apesar de algumas cacofonias –
semelhante ao que Lima Barreto executa no início do
Capítulo XI , quando Machado penetra na multidão para
esquecer de si mesmo. As prostitutas de origem
estrangeira, “cheias de jóias, com espaventosos chapéus de
altas plumas”, surgem semelhantes a “velas enfunadas ao
vento, impelindo grandes cascos [...], transtornando tudo
pelas ruas em fora”:
Elas seguem... É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem; todas as almas e
corpos são arrebatados e sacudidos pelo vórtice. Há uma energia
poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se vestem; há atração,
fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa
personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural.

Tudo se perde sob o fascínio que elas impõem, tudo se


anula:
Esvaziam-se os pecúlios pacientemente acumulados; vão-se as heranças
que tantas dores resumem, e os cofres das repartições e dos bancos
sangram... As inteligências trabalham, as imaginações associam elementos
para estelionatos, peculatos e concessões... E tudo acaba nelas; é a elas que
se encaminham as riquezas ancestrais, em terras longínquas, em gado nédio
e plantações virentes. São para elas que se drenam os ordenados, os
subsídios; é a elas também que vão ter os frutos dos roubos e os ganhos das
tavolagens. É uma população, um país inteiro que converge para aqueles
seres de corpos lassos.
Machado recorda outra afirmação de Gonzaga, para quem
essas mulheres “estão se dando ao trabalho de nos polir”, e
suas impressões enveredam por um infame utilitarismo, em
que as prostitutas são vistas como peças do que ele
entende ser a máquina civilizadora:
[...] A sua missão era afinar a nossa sociedade, tirar as asperezas que
tinham ficado da gente dada à chatinagem e à veniaga dos escravos
soturnos que nos formaram; era trazer aos intelectuais as emoções dos
traços corretos apesar de tudo, das fisionomias regulares e clássicas daquela
Grécia de receita com que eles sonham. [...] Os maridos que as
freqüentassem, levariam aos lares, ao conselho daquelas estrangeiras, o
sainete mais moderno, o bibelot última moda, e o móvel, e o tecido, e o
chapéu, e a renda. Assim, ateariam o comércio e estimulariam o contato
entre a nossa terra e os grandes centros do mundo, requintando o gosto e o
luxo.

Vê-se que nem Gonzaga nem Machado vão além de suas


teses naturalistas. E a única definição de amor presente no
livro é a que o narrador plagia de seu colega Rangel. Este
afirma: “Em meu parecer, nesse negócio de amor o que vale
são os preliminares, os estados d’alma preambulares, a
agonia da esperança de obter ou não o objeto amado. Mas,
quando se toca...”. E Machado, incapaz de ter idéias
próprias, resume, respondendo ao conselho de Gonzaga
para que namore: “Qual! O namoro é a negação do amor...”.
Mas a realidade se encarregará de perturbar, ainda que
momentaneamente, suas falsas certezas. No velório do
compadre de Gonzaga de Sá, sentado na sala de jantar,
enquanto admira o crepúsculo, a idéia da morte o obseda:
[...] Tinha pensado muito – é verdade; mas sem ter concluído coisa alguma.
Nada me ficou palpável na inteligência; tudo era fugidio, escapava-me como
se tivesse a cabeça furada. Evaporou-se tudo e eu só sabia dizer: a Morte! a
Morte! [...]

Poucos minutos depois, ainda no velório, conhece Alcmena,


a jovem que o desequilibrará ainda mais. Ela não só
discorda, com desembaraço, das suas teorias socialistas e
de outras falsas certezas, típicas da juventude, mas o
aniquila com sua beleza, lançando-o num estranhamento
em que ele, desorientado, se surpreende por estar longe da
Rua do Ouvidor.
Esses extremos de morte e vida o impulsionam a sair do
mundo cerebral a que se aferra:
[...] era o cadáver que me impelia, que me empurrava para a moça; era sua
mudez de fim que me ditava o único ato da minha vida capaz de fugir à lei a
que ele se curvara. Vivente, tinha vivido, pois tanto é forte em nós o viver,
que só em nós mesmos encontramos a razão e o fim da vida, sabendo todos
nós que devemos continuá-la a todo o transe, custe o que custar, em nós
mesmos e nos nossos descendentes.

A mulher talvez pudesse libertá-lo. Seu nome guarda essa


promessa: na mitologia grega, Alcmena, possuída por Zeus,
dá à luz o poderoso Héracles. Mas Augusto Machado é um
cerebrino incorrigível; e deixa as emoções serem sufocadas
pelo idílio que só consegue manter – e o faz cansativas
vezes no decorrer da história – com a natureza.
Condenação
Decorridos alguns dias, após “uma noite má, povoada de
recordações amargas”, o narrador, “covardemente desejoso
de fugir para lugares longínquos”, pretende desaparecer
entre o povo que assiste a um desfile militar. Mas a cena de
dois populares orgulhosos dos batalhões, dos regimentos,
das bandeiras, desencadeia seu amargor, seu espírito
destrutivo. Evidente ressentimento o faz questionar:
Por que aqueles homens maltratados pela vida, pela engrenagem social,
cheios de necessidades, excomungados falariam tão santamente
entusiasmados pelas coisas de uma sociedade em que sofriam? Por que a
queriam de pé, vitoriosa – eles que nada recebiam dela, eles que seriam
espezinhados pela mais alta ou pela mais baixa das autoridades, se alguma
vez caíssem na asneira de ter negócios a liquidar com alguma delas?

Para Augusto Machado, todos os males, incluindo sua


própria insignificância, seus próprios limites, têm um só
culpado: o “corpo social em que vivemos”. Dessa forma,
resta-lhe apenas a batida oratória revolucionária:
E eu ascendi a todas as injustiças da nossa vida; eu colhi num momento
todos os males com que nos cobriam os conceitos e preconceitos, as
organizações e as disciplinas. Quis ali, em segundos, organizar a minha
República, erguer a minha Utopia, e, por instantes, vi resplandecer sobre a
terra dias de Bem, de Satisfação e Contentamento. Vi todas as faces
humanas sem angústia, felizes, num baile!

Logo a seguir, o fatalismo assoma. Suas frustrações não só


o isolam da realidade, mas lançam-no de miragem a
miragem, de um extremo a outro:
Não sei que diabólica lógica me dominava; não sei que inveterados hábitos
de reflexão vieram derrubar meus sonhos: eu abanei a cabeça desalentado.
Tudo isto era sem remédio. Morto um preconceito ou uma superstição,
nasciam outros. Tudo na terra concorre para criá-los: a Arte, a Ciência e a
Religião são as suas fontes, são as matrizes de onde saem, e só a morte
dessas ilusões, só o esquecimento dos seus cânones, dos seus delírios e dos
seus preceitos trariam à humanidade o reino feliz da perfeita ausência de
todas as noções entibiadoras.

A conseqüência de tal raciocínio é a pulsão de morte, de


assassinato, chave das mentes revolucionárias:
Tive um louco desejo de acabar com tudo; queria aquelas casas abaixo,
aqueles jardins e aqueles veículos, queria a terra sem o homem, sem a
humanidade, já que eu não era feliz e sentia que ninguém o era... Nada!
Nada!

Essa antiética, essa pseudofilosofia acabam por se


expressar, de forma mais concreta, no microcosmo da vida
familiar de Gonzaga de Sá. Este decidira, após a morte do
compadre, garantir os estudos do órfão, menino inteligente,
aplicado. Machado louva a “missão educadora” que a tia de
Gonzaga, depois que seu amigo falece, leva adiante, mas
não deixa de destilar o fel do pessimismo nos parágrafos
que fecham a obra. Segundo ele, Gonzaga e sua tia
contribuíam apenas
para ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz, a
consciência da criança que devia ficar restrita aos dados elementares para o
uso do viver comum, sem que viessem surgir nela uma mágoa constante e
um fatal princípio permanente de inadaptação ao meio, criando-lhe um mal-
estar irremediável e, conseqüentemente, um desgosto da Vida mais atroz do
que o pensamento sempre presente da Morte!
Para nossa surpresa, as idéias que Lima Barreto
propugnava, de “difundir as nossas grandes e altas
emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens”,
transformam-se na disposição de condenar a criança à total
inconsciência.
Naturalismo
Há, como vimos, predominância do naturalismo na obra.
Teses infectadas de biologismo surgem logo no primeiro
capítulo, em um dos insistentes idílios do narrador com a
natureza:
Façam como eu: sofram durante quatro séculos, em vidas separadas, o
clima e o eito, para que possam sentir nas mais baixas células do organismo
a beleza da senhora – a desordenada e delirante natureza do trópico de
Capricórnio!...

No Capítulo IX , a ótima descrição dos trabalhadores que


retornam ao lar acaba corrompida pelo determinismo, pela
necessidade de encontrar condicionamentos biológicos que
justifiquem a existência do mal, louvando-o como elemento
purificador da realidade:
Operários e pequenos burgueses, eram eles que formavam a trama da
nossa vida social, trama imortal, depósito sagrado, fonte de onde saem e
sairão os grandes exemplares da Pátria, e também os ruins para excitar e
fermentar a vida do nosso agrupamento e não deixá-lo enlanguescer... Quiçá
não soubessem disso e, se o soubessem não se consolariam do duro fardo de
viver... Viviam, sob o aguilhão dos deveres e com a vaga esperança
consoladora da afeição eterna dos filhos.

Não deixa de ser curioso esse tom de superioridade que


perpassa o livro. O narrador quer nos fazer acreditar que só
ele detém a verdade – mas o que vibra sob cada ironia, sob
cada comentário ferino, é a inadaptação de Augusto
Machado e, tal como Gonzaga de Sá, a personalidade
fatalista, o medo de viver, seu complexo de inferioridade, os
inconfessáveis ressentimentos que o condenam a emoções
e comportamentos distorcidos, a fraqueza moral. Esses
venenos sangram inclusive os melhores trechos, como a
descrição do subúrbio, nesse mesmo capítulo: em meio ao
“arruamento delirante”, o narrador não deixa de lembrar
que a “casinha acaçapada” mostra-se “saudosa da toca
troglodita”.
Ao tentar romper a retórica ornamentada e vazia da
“língua da Bruzundanga”, Lima Barreto não conseguiu dar
vida a seu projeto utópico, o de criar a almejada literatura
de comunhão entre os homens. Abatido pelo azedume – seu
e de suas personagens –, submeteu-se aos discursinhos
ideológicos que tencionam, ontem e sempre, comprimir a
realidade em poucos, estreitos padrões.

[ 55 ] Em A Literatura no Brasil , direção de Afrânio Coutinho, volume 4,


Capítulo 39 (Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004).
CAPÍTULO 13

Psicopatia e racismo
– Afrânio Peixoto e Fruta do mato

O médico Afrânio Peixoto, eleito, a 7 de maio de 1910, para


a Academia Brasileira de Letras, publicou seu primeiro
romance apenas no ano seguinte, quando tomou posse na
instituição. Discípulo do lombrosiano Nina Rodrigues,
divulgou o darwinismo social e a eugenia típicos do seu
tempo. Não foi, entre nossos escritores, o primeiro a fazê-lo.
Graça Aranha e Euclides da Cunha já haviam se espojado na
arrogância positivista – de nefasta influência no Brasil – e
repetiriam, com maior ou menor intensidade, as idéias que,
durante largo tempo, dominaram inclusive a literatura.
Basta pensar, por exemplo, no romancista Aluísio Azevedo e
seu naturalismo, em que degradação e promiscuidade se
tornam a lei à qual todos estão definitivamente submetidos.
[ 56 ] No âmbito da ciência, alguns estudiosos apontam
Afrânio Peixoto como responsável por uma campanha de
difamação realizada contra seu rival, Carlos Chagas, fato
que teria impedido o descobridor do protozoário
Trypanosoma cruzi de receber o Nobel de Medicina.
À parte essa vergonhosa questão ética, é curioso verificar
que o romantismo alencariano se agrega, no romance Fruta
do mato , de 1920, às influências apresentadas acima. As
ficções de Afrânio Peixoto são bons exemplos de como a
tradição formada por Manuel Antônio de Almeida e Machado
de Assis – ou seja, o que de melhor se produziu em nossa
literatura durante quase um século – demorou a vingar ou
produziu frutos esparsos, às vezes esquecidos. Afrânio
Peixoto e a maioria dos escritores nacionais sofreram a pior
influência ao escolherem os modelos mais fáceis, prenhes
de cientificismo ou retórica – e por isso mesmo desbotados
de literatura.
Crítica involuntária
O narrador e protagonista de Fruta do mato , o jovem
Vergílio de Aguiar, declara-se, cheio de orgulho, leitor de
Auguste Comte e Herbert Spencer. Tais leituras o
impediriam de acreditar nas superstições que rondam a
fazenda do Corre-Costa, cujos proprietários, um traficante
de escravos e a esposa sádica, seriam demoníacos. É o que
demonstra, logo no início do livro, ao debater, com os
colegas Zoroastro e Espiridião, sobre a possível compra da
propriedade, oferecida a preço irrisório. Forasteiro na
cidadezinha de Canavieiras, no sul da Bahia, em busca de
fortuna fácil, Vergílio sente-se superior a todos, mostra-se
arrogante inclusive na forma de se referir à região,
tratando-a como se não fizesse parte da Bahia – ou como se
apenas a capital do estado representasse a verdadeira
cultura baiana.
Vergílio esconde, no entanto, uma contradição: é tão
imaturo e frágil quanto o narrador de Lucíola , que, se
recordarmos o enredo desse romance alencariano, acaba
submetido à morbidez da protagonista. [ 57 ] No caso de
Vergílio, ele vence, graças às certezas que a ciência lhe
infunde, as assombrações, mas termina derrotado pela
sedução de Joaninha, neta do Corre-Costa, ela própria
sádica desde a infância, personagem estereotipada,
presuntivo símbolo do feminino, no qual se concentram
manipulação e melifluidade. Afrânio Peixoto não busca
construir, como ocorre em Lucíola , um arquétipo que passa,
abruptamente, do extremo pecado à exaltada santidade,
mas personificar o mal, retratá-lo em minúcias, desenhá-lo
numa personagem plana, destituída de contrastes – e
exatamente por isso inconvincente. No que se refere ao
narrador, as certezas antimetafísicas só ressaltam seu
infantilismo, sua fragilidade moral: ele descobre as tramóias
de Joaninha, seus deletérios jogos de sedução; o que, de
início, é dúvida em que se mesclam arroubo romântico,
atração sexual e credulidade, torna-se certeza; nas páginas
finais, o positivista obtém o testemunho, a prova almejada,
que desnuda a mulher-demônio – mas termina seu relato
infenso à verdade. Assim, de forma involuntária, a obra,
apesar das poucas qualidades estéticas, torna-se risonha
crítica ao cientificismo.
Miscigenação e decadência
Às teses caras ao naturalismo – o homem escravo da
hereditariedade e o preconceito racial –, Peixoto acrescenta
sua visão deturpada das relações entre homem e mulher,
criando um protagonista que vê a si mesmo como eterno
dependente do sexo feminino: “Parece que é da natureza do
homem ter uma mulher no sentido”, conclui Vergílio, a
princípio dividido entre Gracinha, jovem que disputa com
Zoroastro e Espiridião, e Joaninha. Os diminutivos, aliás, não
expressam valorização afetiva ou carinho, mas julgamento
moral, que se revela logo às primeiras páginas: “Sexo
prevenido, desconfiado, desunido!”.
As bobagens racistas espraiam-se por todo o romance.
Onofre, mulato e feitor da fazenda do Corre-Costa, também
apaixonado por Joaninha,
é mestiço, ser ambíguo, transitório, em que duas raças ainda se digladiam
num homem, quase um híbrido: resulta que despreza o negro, que já não é,
mas cuja inferioridade ainda o envergonha, e inveja o branco, que não
chegou a ser, e de cuja superioridade se vinga, detraindo, rebaixando-o à
própria condição...
Não satisfeito com a breve e pseudocientífica descrição, o
narrador prossegue:
Lembraram-me os infinitos mestiços que andam por aí além, por este Brasil,
e cuja psicologia só pode ser esta: rancor mais ou menos declarado a todas
as virtudes, méritos, talentos, instituições, costumes dos brancos, ainda hoje
em dia, como outrora o votaram aos outros seus parentes os pretos, esses
bons, humildes, pacientes, serviçais, afetuosos, que, com o seu sangue, o
seu braço e o seu coração, do mato grosso de nossa terra fizeram o Brasil
colonial.
A benevolência do narrador em relação aos negros só
esclarece e sublinha seu racismo e sua interpretação da
mestiçagem. Partindo dessas avaliações, Vergílio cria um
excêntrico, bárbaro tribunal antropológico-histórico, no qual
os mulatos seriam a pena que os brancos devem suportar:
A civilização branca tem no Brasil, ainda por trezentos anos, seus inimigos
latentes na mestiçagem em que vamos purgando os milhões de africanos do
tráfico. É a desforra de Cam.

Já não é mais o narrador quem fala no trecho a seguir,


mas, sim, o médico Afrânio Peixoto, professor e escritor na
área de Medicina Legal, cuja tese, depois de formado,
intitulava-se Epilepsia e crime :
[...] O que o Brasil sofre, de degradação familiar, social, cívica, religiosa,
moral, política, por influxo da escravidão africana, vinga o martírio de uma
raça nos quatro séculos em que ajudou a criar nossa nacionalidade. A
escravatura forra em 88 nos terá, sob a vergonha das suas presas, durante
ainda quanto tempo? Havemos de purgar lentamente essa corrupção, o
nosso castigo... se não morrermos de infecção...

O próprio Onofre, mulato responsável por castigar os


escravos da fazenda, incorpora as idéias do autor e revela,
em seu longo depoimento, no final do romance:
[...] Eu vingava neles toda a minha raiva e meu arrependimento, e, quanto
mais sofria, mais era ruim. Também não me arrependo, porque essa raça
amaldiçoada nasceu para o açoite... ruins, falsos, perversos, não veio outra
assim no mundo.

Há teses análogas em Canaã , publicado dezoito anos


antes. Surpreendentemente, contudo, o pernóstico romance
de Graça Aranha foi enaltecido pelos modernistas e, até
hoje, tem fervorosos admiradores, enquanto Afrânio Peixoto
permanece esquecido. [ 58 ] O critério seletivo, portanto,
não é estético ou ideológico, mas partidário, fazendo-nos
pensar se o lema dos modernistas de 22 não era o mesmo
que Sébastien-Roch-Nicolas de Chamfort descobriu, a duras
penas, entre os radicais franceses de 1789: “Seja meu
amigo – ou eu te matarei”.
Descrições
Como afirmei acima, o romantismo piegas de Alencar
contamina Fruta do mato desde as primeiras páginas. Está
presente no narrador que, caminhando solitário à noite,
fala: “Sob meus pés incendiavam-se, como estrelas
perdidas na grama, os clarões efêmeros dos vaga-lumes”. O
mesmo narrador que, logo a seguir, anseia que Gracinha
estivesse com ele,
mirando estrelas e vaga-lumes, eu a aspirar, com o das boas-noites, o cheiro
das suas pesadas e lustrosas tranças; e, além da palpitação dos mundos,
sentindo bater, junto ao dela, meu coração desejoso e indeciso...
Ao encontrar Joaninha a primeira vez, voltam imagens
semelhantes, idealizadas, melosas, comuns:
Quis rapidamente analisá-lo [refere-se ao suposto feitiço da mulher], mas
não consegui. Seria de cabelos pretos, profusos, lustrosos, pesados, que se
derramavam encaracolados pelas fontes e pelas espáduas? Seria da face
pálida, cor de marfim antigo, que dois olhos negros, redondos, polidos e
grandes como jaboticabas, iluminavam como faróis obscuros? Seria do corpo
todo, esbelto, gracioso, torneado, que as vestes sem-cerimônia, roceiras e
domésticas, nem encobriam nem dissimulavam? Seria do prestígio que
realçava essa realidade confirmada? Não sei; tudo isso talvez...

Não satisfeito, o narrador retoma a descrição páginas à


frente:
[...] Os cabelos fartos que choviam encaracolados pelas espáduas até a
pala da blusa, às oscilações da marcha, se afastavam às vezes,
entremostrando a nuca morena, roliça, como um torso de mármore antigo,
penugenta e provocante como de mulher moça e faceira, porque oculta e
esquiva, atrás da sua móvel cortina de seda preta... O tronco bem feito, a
cintura fina, as ancas ondeadas, que o ritmo do andar fazia alternativamente
menear, num gesto impudico.

É uma das características de Afrânio Peixoto: pouco


acrescentar de uma descrição a outra – ou apenas repetir. A
confirmar essa observação, veja-se o que ele escreve dez
páginas depois:
Abria a porta do meu quarto para sair à sala, quando dei com ela, Joaninha,
que entrava na varanda. Tinha ainda roupa de manhã, um roupão alvo,
amplo, rendado, que não a vestia, ajustado, mas no qual se movia, solta,
livre, independente, como um fruto raro ou um diamante lapidado, que se
tivesse deposto na sua coifa de algodão. [...] Os cabelos negros e anelados
caíam em rolos e cachos sobre as fontes e escorriam retorcidos, pesados e
lustrosos, pelas espáduas. [...]
Não bastasse repisar imagens, o autor esbanja lugares-
comuns e apenas rodeia sua personagem, incapaz de
descrevê-la, a não ser enfileirando adjetivos. Trinta anos
antes, no conto “Missa do Galo”, presente na coletânea
Páginas recolhidas , Machado de Assis já descrevera o
roupão mais famoso da literatura brasileira, que dava a
Conceição um “desalinho honesto”, despindo-a sem
desvesti-la. E o fez com economia de recursos até hoje
invejável – lição que Afrânio Peixoto desconhecia ou
recusou.
Diálogos e cantilena
Se desconsiderarmos as interferências enfadonhas do
narrador, há alguns diálogos razoáveis em Fruta do mato ,
como este, no Capítulo IX :
– Vergílio?
Tomou-me um arrepio de frio ou de excitação. Quis volver para prendê-la
nos meus braços, mas seu corpo me pesou com mais lassidão, forçando a
manter-me na mesma atitude, docemente coacto. Ela continuava:
– Você acha que gosta de mim... Eu só desejo crer. Você vai me dar a
prova...
– ...
– Vamos fugir...
Parece-me que o mundo desabava sobre mim... Num instante tomou-me
uma perplexidade, diante do abismo que via se me cavar aos pés... Não
achei movimento nem resposta. Depois, uma onda de sangue me cobriu a
face de uma quentura. Ela me sacudiu:
– Responda... quer?
A muito custo, pude dizer:
– E o Américo?
– Se o abandono, é porque não gosto dele... Não o posso mais suportar...
– E eu... seu amigo de infância... seu hóspede?
– Você não se lembrou disso, para me cobiçar...
Como eu não respondesse, a voz lhe tomou uma entonação de ironia:
– Compreendo... Para você não lhe sirvo. Uma mulher é muito para um
homem... é demais! Preferiria dividida pelos dois, o outro com a
responsabilidade, você com a distração... Que belo passeio pelo rio da
Salsa!... Enganou-se, meu amigo, eu não sou destas...
[...]
– Pois sim! fujamos... Quando?
[...]
– Qual! Você não é dos que roubam, nem dos que matam...
[...]
– Sou dos que são tentados e atormentados... Por que você me aborrece?
– Porque ainda não gosta de mim, como eu quero que goste... Como eu
queria ser amada... Está escrito talvez que não acharei o meu, um “homem”
na vida... Vivo a procurá-lo, e a me enganar...

Mal terminada a conversa, no entanto, retorna o narrador


com sua cantilena, seu psicologismo, pronto a explicar o
que o leitor já compreendeu e, dessa forma, diluir a tensão,
arruinar o efeito criado:
A provocação da faceirice, a maldade da zombaria, passariam... um véu de
tristeza, trágica e silenciosa, cobriu-a com seu manto grave de sofrimento e
de piedade. Talvez na vida lhe fosse a única palavra não mentirosa,
arrancada pela decepção à sinceridade. O coração se lhe exibia nu, nessa
revelação. Uma mulher nunca o revela, porque não tem consciência dele, e
se tem, porque lhe resta um pudor na alma, quando o do corpo já não
subsiste mais. Andam por isso tantas, de braços a braços, errantes e
envergonhadas, nas experiências e decepções, procurando, sem achar o seu,
o par, que deve haver para cada uma... A essa, acudira a razão aos lábios...

Narciso e Don Juan


Da obra em que Alfredo Bosi encontrou “elegância simples
e corrente” salvam-se, com esforço, a longa cena do
desafio, no Capítulo VII – desde que eliminados os trechos
em que o narrador se intromete desnecessariamente –, e,
no Capítulo XVII , o diálogo entre Joaninha e Onofre, que este
relata a Vergílio, no qual vemos, com nitidez, a
personalidade psicopática da mulher. Afora esses trechos,
Afrânio Peixoto antecipa-se a Nelson Rodrigues. Depois da
surra que leva do marido, Joaninha comenta com sua fiel
empregada: “– Umbelina, nunca pensei que Américo me
quisesse tanto bem...”. É o que resta dessa doentia
personagem, misto de Narciso e Don Juan, e desse romance
medíocre, de final entanguido, filho tardio do romantismo e
do naturalismo.

[ 56 ] Ver, em Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) ,


o Capítulo 9, “O preço do naturalismo”, em que analiso O Cortiço .
[ 57 ] Ver minha análise de Lucíola no Capítulo 1 de Muita Retórica — Pouca
Literatura (de Alencar a Graça Aranha) .
[ 58 ] Minha análise de Canaã pode ser encontrada no ensaio “Puro
pedantismo”, Capítulo 20 de Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a
Graça Aranha) .
CAPÍTULO 14

Injustamente esquecido
– Valdomiro Silveira e Os caboclos

O paulista Valdomiro Silveira – que passou a vida


publicando seus contos em jornais e revistas, reunindo-os,
de tempos em tempos, no formato de livro – sofre, até hoje,
a incompreensão de parte da crítica literária. Mas não se
pode esperar muito de alguns mandarins, sempre prontos a
enaltecer o beletrismo cabotino de Afonso Arinos – como
não me canso de dizer – e desprezar, como vimos no
Capítulo 8, a espontaneidade e a tensão épica do goiano
Hugo de Carvalho Ramos. Aliás, este último forma, ao lado
de Simões Lopes Neto e do próprio Valdomiro Silveira, a
tríade que não ergueu suas preocupações regionalistas à
condição de um mausoléu da linguagem ou dos costumes
locais.
Fisgar o leitor
Os caboclos , primeiro livro de Valdomiro Silveira, publicado
em 1920, reúne 24 contos elaborados entre 1897 e 1906,
com exceção da narrativa que fecha o volume, “Desespero
de amor”, escrita especialmente para a Revista do Brasil ,
em 1915.
São histórias singelas ou dramáticas, de inícios
contagiantes, que quase sempre capturam o protagonista
num momento revelador. É o que ocorre em “Esperando”:
A Maruca trepou ao lugar mais alto daquela pedra e pôs-se a olhar o rio. O
rio estava repontado de uma vez, e corria quase em silêncio: tinham-se-lhe
encoberto as rochas das corredeiras por sob as águas da última chuvarada.
Um martim-pescador, sentado no guatambu da ribanceira, olhava para o
largo, tocaiando os peixes. E o vulto do martim-pescador, fazendo sombra no
rio, depois da sombra da Maruca, tinha jeito de lhe estar de pé na cabeça.
Perceba-se a forma algo simples de narrar, obediente à
tentativa de reconstituir a fala caipira – avessa, certamente,
à mesóclise –, claro propósito do autor, que sequer evita
repetir certos vocábulos, o que não o impede de descrever
com habilidade a posição curiosa assumida pelas sombras.
Iniciar bem é uma arte, ainda que os teóricos do conto
insistam na importância dos finais. Em “Na tapera de Nhô
Tico”, as exclamações que irrompem sob o sol fisgam o
leitor:
– Ota! Solama bruta! – ia dizendo Chico Pica-pau, sozinho, pela estrada
vermelha, ao pino do dia. O suor caía-lhe em grossas gotas pela testa e rosto
abaixo, banhando-lhe a camisa de algodão e um bentinho de baeta azul que
vestia a oração livradeira das cobras e dos outros bichos da peçonha [...].

No conto “Salvação”, os pássaros espocam, quase


antropomorfizados, numa barulheira tremenda:
Um gurundi pegara a chiar, muito aflito, no meio do cambuizal: e perto
dele, em gritaria alvoroçada, enrufando penas, iam pelo ar os bem-te-vis, as
cabeçudas e as sapucaias. Chegou a aparecer no tumulto, curiosa e
assustada, ua meia-pataca: mas, pousando em galho vizinho ao em que
estava o gurundi, tomou-se logo de tamanho terror, que abriu vôo,
desmanchado e cor de havana, entre os ramos povoados de frutinhas
vermelhas.
Não de forma tão abrupta, mas com desagradável
surpresa, começa a narrativa “Camunhengue”:
Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer pelo rosto do
Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama que ninguém
sabia como explicar. Engrossavam-lhe as asas do nariz, iam-se-lhe sumindo
os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os lados,
recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas, esfiapadas, ao
mesmo tempo que a cabeça despovoava de cabelos e uma quase contínua
fraqueza lhe bambeava as pernas, para baixo dos joelhos.

O traçado
Esses começos, capazes de prender nossa atenção,
anunciam outra das qualidades de Valdomiro Silveira: a de
criar narradores que se expressam com desembaraço,
colocando o leitor diante da cena viva, nítida. Como em “Por
mexericos”:
O Fernando, enlevado no trabalho, não viu quando lhe chegou à porta o
Chico Ferro: corria a plaina por um toro de peroba e, rasgando fitas e fitas
cor-de-rosa, punha gosto em ver que se enrolavam como uma trança
desfeita, pendiam para a banda e caíam no chão, entre os sarrafos e a
serragem [...].

Sua técnica pode se revelar numa composição metafórica


que resume, de forma poética, certo estado de espírito:
“[...] Para quem trazia saudade velha, não havia hora
melhor: tudo em roda estava quieto, o sol ardia, e a sombra
dos arvoredos era boa e serena como um perdão” (“Hora
quieta”); ou pode se distender em analogias aliciantes:
Mas a calma fugiu logo: o José começou a falar-lhe um dilúvio de coisas,
com a voz abafada como a dos urus na grota do ninho, e sempre se lhe ia
chegando mais para perto, a ponto de ser preciso que ela às vezes recuasse
para um lado e outro. A voz do José tinha o som de um enxame de mirins
fumegando à porta do mel: e o que a voz dizia, naquele pouco som, tinha a
mesma doçura que o mel dos mirins. (“As fruitas”)

Nas mãos desse contista, as frases se encadeiam sem


adereços desnecessários, o ritmo torna-se leve – e a paixão
é descrita com perfeito toque de humor:
O carreiro levava uma carregação de sal para o Tibagi; mas ficou tão
enlevado na Vicença (agora, que ela era linda, isso era!), ficou tão enlevado,
que por um triz não se lhe derreteu o sal com os aguaceiros de maio, caídos
sem mais tirte, nem guarte, nem licença dos que andam apaixonados.
Estava quase aguando, o pobre! com sal e tudo, a boiada engordando na
grama larga, e o tempo dando trinta dias por mês: até que enfim, ganhando
coragem, pediu a moça, numa janta, em cima da última colher de cocada
preta e antes da tigela de café. (“Última vez”)

O inusitado dos verbos não recupera apenas a linguagem


típica do interior paulista, mas areja a frase e soma-se aos
adjetivos e ao advérbio para tornar a personagem visível:
[...] O Valério machucava um parelho de brim de algodão trançado, tinha
um lenço de ramos atado à camisa de morim e quebrara à testa,
vitoriosamente, um chapéu cor de leite com café. [...] (“Saudade do Natal”)
Em “Os curiangos”, desoladora história do coveiro Pedro
Mariano, a febre, talvez a gripe espanhola, se instala na
cidade. O estranho bater dos sinos e a pobreza dos funerais
ampliam a dor das sucessivas mortes:
[...] Não acabava o sino de bater por um defunto, devagar, devagarzinho, já
pega a bater por outro, mais de pressa, até que o toque dos mortos já
parecia repique de festa, credo em cruz! Os que tinham alguma coisa de seu,
lá iam meio arranjados p’r’o carro preto, depois de um terno de homens de
fora esborrifá-lo de quanta água esquisita há; os outros, que morriam p’r’o
hospital ou p’r esses ermos, a carrocinha de pão vinha buscá-los, e, depois
que os tais home’s os deixavam molhados duma vez, lá iam p’r’o alto da
estação, toca-que-toca, sofrendo a birra dos cocheiros e o trote duro dos
cavalos arrebentados.

A devastação irrompe diante da personagem que volta,


sem avisar, à cidade e, ao descer do trem, vê apenas
abandono, destruição. “É a viração do mundo”, sintetiza o
narrador, “o que onte’ era doce devera, amarga hoje; o que
fora bom, fica ruim”, recuperando a clássica figura do
“mundo às avessas”, tão bem descrita por Ernst Robert
Curtius. [ 59 ] Logo depois, quando o protagonista se vê
forçado a enterrar a mulher que amava em segredo, o
infortúnio leva-o à loucura. Vagando enlouquecido, Mariano
imagina sofrer o ataque da natureza:
Chegou à porteira que dá p’r’a chacra do João Júlio, dobrou às canhas,
atormentado, sem tino e sem tento, e foi beirando os trilhos. Agora, a
barulhada não era só dos curiangos, em roda: lá dentro da cabeça também a
bicharia amotinada lhe fazia um guaiú de ensurdecer, como se tivesse ânsia
de voar, no mesmo auto, p’r’aquele milheiro de gargantas despregadas. E
sentiu recrescer a loucura dos curiangos, e a raiva, enquanto os bitus e içás
estalavam de leve as asas tremidas, e as escumanas se lhe encaminhavam
p’r’o meio dos miolos, campeando saída a toda pressa.

Mas Valdomiro Silveira também sabe ser lírico, como neste


trecho de “Desespero de amor”, em que sol e lua se
alternam não só para reforçar a idéia da passagem do
tempo, mas também criar uma ilusão pictórica:
A paixão lavrou depressa: não podia passar muitas horas longe dele,
esperava-o à porta com flores no cabelo, no peito ou na cintura; e ficava a
acompanhá-lo com os olhos, tempo esquecido, até que o vulto
desaparecesse no caminho e sobre o caminho caísse toda a poeira que
aquele vulto erguera na passagem. Quantas vezes o sol a cobrira de ouro,
vendo ela o Chico Só a sumir na lonjura de um morro, e a lua viera cobri-la
de prata, sem que ela se afastasse ainda da porta, enamorada e sonhadora!

Desenlaces
Valdomiro Silveira tinha a exata noção de como os finais
podem ser impactantes num conto, sejam eles o desfecho
clássico que Edgar Allan Poe advogava, com sua tese de
que o dénouement deve ser escrito antes de tudo, [ 60 ] ou
apresentem a perturbadora sensação de permanência – e
muitas vezes de irresolução – da narrativa tchekhoviana.
Em “Por mexericos”, Nhô Fernando, interrompido no
trabalho, ouve as reclamações de Chico Ferro com aparente
paciência – até correr o falastrão de sua oficina,
confirmando o velho ditado: “Cão que ladra não morde”. A
história do topetudo que se acovarda retorna no conto
“Valentia”, mais cômico, com Ana Triste – “pixaim repuxado
para as orelhas, à força de pente, remexido em caracóis e
todo besuntado de banha com essência de rosa” –
enfrentando o brigão Imbuava. No conto “Missa da Páscoa”,
a alegria antecipada, os cuidados da vaidade, os sonhos do
amor correspondido – maiores do que os da paixão
impossível – são destruídos de repente, restando apenas o
vazio num final em que a protagonista sequer tem a chance
de reagir. “Pinhã refugada” termina com o golpe de
insolência e desprezo sobre a prostituta que começa a
envelhecer, mas cuja inabalável dignidade se revela, em
meio a soluços, na última frase. Em “Desespero de amor”, a
confirmação do adultério é anunciada de forma sutil mas
inquestionável, também por meio de breve sentença.
Mas os causos de Valdomiro Silveira podem terminar sem
surpresa, ratificando a expectativa do leitor, que se vê,
contudo, cingido por uma nota lírica ou comovente: em
“Cena de Amor”, Chico Luís e Candoca, ambos feios, se
apaixonam, mas o gesto involuntário do final, da mão que
toca a trança da mulher – trança, aliás, sutilmente
anunciada parágrafos antes –, sintetiza a narrativa; o fecho
de “Hora quieta” chega a ser pueril, mas, graças à
espirituosa exclamação da jovem apaixonada, o leitor é
transferido a delicioso universo, no qual não há espaço para
angústias ou dúvidas existenciais – sentimento que se
repete em “Salvação”, por meio do saudosismo feliz do
velho e bom Albino. Em “Mamãe”, ao contrário, a dor
materna, subitamente revelada, expõe ao filho doente a
dimensão do seu próprio drama. De nada adianta a
Chiquinha Sabiá, protagonista do “Faiscador de Carumbé”,
sua devoção ao galanteador Zé Saúva; previsto, o desgosto
permite-lhe apenas aflitiva reação: “Agora (ela gaguejou um
tempinho), agora (e pôs-se a tremer os lábios), agora (e
desatou a chorar), agora só morrendo!”. O choro convulso e
o arrependimento dominam Lainha, em “Constância”,
quando esta percebe, tarde demais, que não fora fiel ao
próprio coração.
Tempo e consciência
O talento desse contista pode se revelar, ainda, na
composição dos diálogos. Em “Saudades do Natal”, as
memórias de Valério e Doninha se alternam – uma
verbalizada pelo apaixonado, outra, puro assentimento,
desfiando-se nas lembranças da silenciosa ouvinte.
Compõe-se, assim, o dueto no qual o amor, sobressaindo da
festa familiar, realimenta-se em emocionado continuum .
A fim de marcar o progresso da morféia, o tempo ganha
relevância em “Camunhengue”, mas avança segundo os
ciclos da natureza: ainda cai “uma neblina muito fria,
embora fosse tempo de milho verde”, quando Zeca Estevo
sai em busca do curandeiro; ao chegar “o tempo das águas,
com uma ventania nunca vista e um poder de tempestade
todo santo dia”, a esposa já se recusa a dormir com ele na
mesma cama; na estiagem, numa manhã de dezembro,
Zeca parte definitivamente, rejeitado por todos.
Narrativa concisa, “Cena de amor” revela, sob a trama em
que alguns encontraram apenas ingenuidade, a plena
abertura de Nhá Candoca à vida – apesar da feiúra, esta
mulher não se permite a mínima autocomiseração.
Semelhante força moral está presente em “Na tapera de
Nhô Tido”: Chico Pica-pau, o protagonista, passa da
inquietação e do desejo de vingança ao estupor que lhe
permite reencontrar o sentido da própria consciência.
Não há banalidade, portanto, em Valdomiro Silveira.
Abandonado por certos críticos num limbo nada honroso,
ele merece leitura atenta – inclusive para lembrarmos que a
literatura não deve espelhar apenas derrotismo, misantropia
e tédio.

[ 59 ] Em Literatura Européia e Idade Média Latina , MEC — Instituto Nacional do


Livro, Rio de Janeiro, 1957.
[ 60 ] Em “A Filosofia da Composição”, Poemas e ensaios , Editora Globo, Rio de
Janeiro, 1987.
CAPÍTULO 15

Corrosivo e sempre contemporâneo


– Monteiro Lobato, Urupês e Negrinha

A reedição da obra completa de Monteiro Lobato pela


Editora Globo, após longo e controvertido litígio entre os
herdeiros e a Brasiliense, é um dos melhores
acontecimentos do mercado editorial na primeira década do
século XXI – principalmente àqueles leitores que discordam
de Alfredo Bosi, para quem o escritor – “um intelectual
participante que empunhou a bandeira do progresso social e
mental de nossa gente” – não passa de um “medíocre
paisagista acadêmico”. [ 61 ]
Se considerar Lobato “acadêmico” é inaceitável – pois não
foi um seguidor rigoroso dos modelos consagrados pela
tradição nem se manteve infenso a inovações –, chamá-lo
de “medíocre” parece-me escolha, no mínimo, inadequada.
Mas esse tipo de reação não é difícil de se encontrar
quando falamos de Lobato. Para a maioria dos seus
detratores, o artigo “Paranóia ou mistificação? – A propósito
da exposição Malfatti” [ 62 ] estigmatizou o escritor,
transformando-o em inimigo de tudo o que significa avanço
na arte brasileira. Lido com atenção, o texto apresenta
inclusive elogios à obra de Anita Malfatti, porém, aos
criadores do senso comum não importa a verdade –
interessa, sim, preservar certa posição a qualquer custo.
Passam a valer, dessa forma, as versões que, reafirmando a
voz geral, garantem aos incansáveis repetidores a
aprovação do partido, a chancela dos iguais. O gregarismo
cobra, sem dúvida, alto preço da inteligência.
Mas, à parte os comentários de Lobato sobre a obra da
artista, sua crítica às vanguardas está lá, indefectível, no
famoso artigo:
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não
passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a
regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da
forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma idéia,
mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador.
A fisionomia de quem sai de uma de tais exposições é das mais sugestivas.
Nenhuma impressão de prazer ou de beleza denunciam as caras; em todas
se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos
outros, incapaz de raciocinar e muito desconfiado de que o mistificaram
grosseiramente.
Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vasa para épater le
bourgeois (chocar o burguês). Teorizam aquilo com grande dispêndio de
palavreado técnico, descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo,
justificam-nas com a independência de interpretação do artista; a conclusão
é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo genial de
iniciados nas transcendências sublimes duma Estética Superior.
No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor. É
mister que o público se ria de ambos.

Que alguns ainda se condoam da crise emocional em que


Anita Malfatti teria imergido, supostamente por causa das
palavras de Lobato, bem, esse é um problema de
psicanalistas e biógrafos. A verdade é que o escritor se
mostrou lúcido o suficiente para, cinco anos antes da
Semana de 22, colocar-se de prontidão contra a típica
maneira de proceder dos subdesenvolvidos: acatar modelos
estéticos importados, já diluidíssimos, desgastados de sua
força original, como se fossem verdades atemporais; e
aceitar de forma acrítica o que aparenta ser novo, apenas
por trazer o rótulo de vanguarda ou escândalo. Não por
outro motivo parte dos jovens escritores nacionais – e
também dos não tão jovens – insiste em reescrever o
Finnegans Wake ...
Um ano depois do polêmico artigo, a publicação de Urupês
, contendo textos produzidos entre 1915 e 1917, definiria o
perfil não de um modernista, mas – como bem sintetizou
José Aderaldo Castello [ 63 ] – de um moderno que, no papel
de escritor e empresário, foi uma das principais influências
da Semana de 22.
Audácia editorial
De fato, não há melhor resposta ao comentário de Luciana
Stegagno Picchio – segundo a filóloga, “a prepotente
personalidade” de Lobato “cava um vazio” em torno dele
“nas batalhas cívico-literárias” [ 64 ] – do que a coragem do
autor de Urupês para, enquanto editor, publicar tantos e tão
jovens autores nacionais. Sem a explosão do mercado
editorial patrocinada por ele, a Semana de Arte Moderna
teria de esperar, certamente, por José Olympio.
De promotor público no interior do Estado de São Paulo e
fazendeiro, Lobato passou, em 1918, a proprietário da
Revista do Brasil . Além de revitalizar a publicação, deu vida
a uma editora. O panorama do mercado editorial e a
revolução empreendida pelo escritor foram delineados por
Laurence Hallewell: [ 65 ] em meio ao desalentador
comércio de livros do pós-guerra, as obras da maioria dos
autores nacionais eram importadas de Paris, onde a Editora
Garnier as produzia, ou de Portugal. Inconformado, Monteiro
Lobato sabe que, primeiro, deve criar uma ampla rede de
distribuidores. Escreve, então, a todos os 1.300 agentes
postais do país, “solicitando nome e endereço de bancas de
jornal, papelarias, farmácias ou armazéns que pudessem
estar interessados em vender livros”. Quase todos
responderam. No final do processo, Lobato dispunha de dois
mil distribuidores. Ele diria: “Os únicos lugares em que não
vendi foi nos açougues, por temor de que os livros ficassem
sujos de sangue”. Também se mostrou original na
propaganda, fazendo publicidade em jornais, coisa raríssima
na época. Importou novos tipos, mais modernos, e alterou
os padrões de diagramação e ilustração, não só para
melhorar a aparência do produto, mas preocupado com a
legibilidade das obras. No início de 1919, importava seu
próprio papel e começou a montar a oficina gráfica. Em
1923, tinha quase duzentos títulos em catálogo e se tornara
uma referência no mercado.
O grande impulso à cultura, no entanto, o que Hallewell
chama de “pequeno renascimento literário”, centralizou-se
na publicação de novos autores. Seguindo seus princípios –
“Nada de medalhões, nada de acadêmicos com farda de
general de opereta do tempo de Luís XIV, armado daquela
espadinha de cortar-papel. Gente nova, de paletó saco,
humilde nas suas pretensões” –, Lobato publicou, entre
outros, Guilherme de Almeida, Amadeu Amaral, Gilberto
Amado e ao menos dois dos seus “inimigos” modernistas:
Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Ainda segundo
Hallewell, “a todos pagava generosamente, e
freqüentemente antes da publicação”. O caso de Lima
Barreto é exemplar: em novembro de 1918 ofereceu ao
escritor “metade dos lucros de Vida e morte de M. J.
Gonzaga de Sá , com o que o autor não concordou” – no fim,
acabou oferecendo uma cifra que representou “direitos de
mais de 13% sobre toda a edição de três mil exemplares”,
assumindo possível prejuízo.
Esse Lobato pronto a ajudar os escritores seguiu atuante
mesmo depois da falência do seu primeiro projeto editorial,
ocorrida em 1925. Vinte anos mais tarde, o sergipano Paulo
Dantas, depois de tentar a sorte no Rio de Janeiro e em Belo
Horizonte, chegou a São Paulo. Já havia recebido o Prêmio
Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, pelo
romance Aquelas muralhas cinzentas , mas estava doente,
desempregado e sem economias. Além de pagar seu
tratamento em um sanatório de Campos do Jordão, o
“prepotente” de Luciana Stegagno Picchio abriu para ele as
portas da sua nova editora, a Brasiliense. [ 66 ]
Sem artificialismos
Voltando ao ano de 1918, a publicação de Urupês trouxe a
público não a linguagem de um vanguardista, mas a de um
escritor que, sem se render a modismos,
optando por escrever sobre a flora, a fauna e os habitantes do interior do
Brasil, e, acima de tudo, pelo seu constante uso do diálogo idiomático
natural, talvez tenha desempenhado papel tão importante quanto o de
qualquer outro escritor no abrasileiramento da linguagem literária.
O veredicto de Hallewell não é apenas equilibrado, mas
justo. Talvez, como também afirma o pesquisador, não
tenha existido, da parte de Lobato, “o desejo consciente de
inovar”, mas considero essa ausência um mérito, qualidade
que o distanciou dos artificialismos típicos da vanguarda.
Ler Urupês nos dias de hoje não exige as sucessivas
consultas ao dicionário que são imprescindíveis, por
exemplo, em Euclides da Cunha. E se há um tom coloquial,
não é aquele utilizado nos grandes centros urbanos da
época, mas outro, próprio da zona rural paulista. No conto
“A vingança da peroba”, por exemplo, duas famílias de
sitiantes se enfrentam em rivalidades mesquinhas:
Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore à
noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela coisa,
nem Santo Antônio remediaria o mal.
– Está resolvido: derrubo a peroba!
Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e ainda não raiava
a manhã quando a peroba estrondeou por terra, tombada do lado do Nunes.
Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram a sondar
o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, à frente do bando,
interpelou:
– Com ordem de quem, seu...
– Com ordem da paca, ouviu? – revidou Nunes provocativamente.
– Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha, meia
sua.
– Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua pra aí!... – retrucou Nunes
apontando com o beiço a cavacaria cor-de-rosa.
Pedro continha-se a custo.
– Ah, cachorro! Não sei onde estou que não...
– Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira “cuia”
que passar o rumo!...
Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio com
grande descabelamento de palavrões. De espingardinha na mão, radiante no
meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta:
– Vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!...
A Porungada, afinal, abandonou o campo – para não haver sangue.
– Você fica com o pau, cachaceiro à toa, mas inda há de chorar muita
lágrima por amor disso...
– Bééé!... – estrugiu Nunes triunfalmente.
Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo, seguidos do olhar
vitorioso de Nunes.
– Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá de língua, pé, pé, pé;
mas chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a arruda pelo cheiro!
E assombrou o velho com muitos lances heróicos, quebramentos de cara,
escoras de três e quatro, o diabo.

A cena não é só divertida, mas tem agilidade incrível.


Lobato faz Nunes caçoar da família rival com um jogo de
palavras no qual troca o sobrenome “Porunga” pelo
substantivo “cuia”, praticamente sinônimos – sem esquecer
que “cuia”, em algumas regiões, significa “meretriz”. E há
outras boas escolhas: o “ronco” dos machados, o uso das
interjeições e o dito popular, chulo, referindo-se a Pedro
como “guampudo”, ou seja, corno. Seria plausível dizer que
o conto, por sua modernidade, foi produzido em 1930 ou
1940, mas Lobato o escreveu em 1915.
Em “O faroleiro”, do mesmo ano, o narrador, ávido pela
história que o amigo hesita em contar, diz-se “esporeado na
curiosidade” – invulgar, deliciosa expressão. E no conto
“Bucólica”, também de 1915, a contraposição – clara desde
o início da narrativa – entre a natureza exuberante e a
humanidade que só decepciona ganha ainda maior
evidência no diálogo entre patrão e empregado:
– Então, meu velho, na mesma?
– Melhorzinho. A quina sempre é remédio.
– Isso mesmo, quina, quina.
– É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, três cruzados. Estou vendo
que tenho de vender a paineira.
– ??
– Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis por ela – e inda um
capadinho de choro. Como este ano carregou demais, vem paina pra arrobas.
Ele quer aproveitar; derruba e...
– Derruba!...
– Derruba e...
– Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus?
– Não vê que é mais fácil derrubar...
– Derruba!...
Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça. Aquela maleita
ambulante é “dona” da árvore. Urunduva está classificado no gênero
“Homo”. Goza de direitos. É rei da criação e dizem que feito à imagem e
semelhança de Deus.

Essa, aliás, é outra das características presentes em


Urupês : o pessimismo em relação à humanidade.
Empresário arrojado, cidadão idealista cujo espírito cívico
promoveu campanhas nacionais que se transformaram em
atos de resistência contra o governo – chegando a ser
silenciado com a prisão –, fundador da literatura infantil
brasileira, parece contraditório que Lobato não tivesse,
também no que se refere à sua literatura adulta, um pó de
pirlimpimpim mágico o suficiente para transportá-lo a um
universo em que os aspectos negativos do homem não
fossem plenamente vitoriosos. No conto “Um suplício
moderno”, por exemplo, ele diz que “a humanidade é
sempre a mesma cruel chacinadora de si própria”. E em
“Meu conto de Maupassant”, a reflexão, acompanhada de
fatalismo, surge logo nos primeiros parágrafos: “A morte e o
amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a
jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio
trágico”. Aqui, estamos próximos de Schopenhauer – e a
anos-luz da sabedoria de D.ª Benta.
Essa inexorabilidade do destino, marcada, na maioria das
vezes, pela tragédia, é outro elemento essencial das
narrativas de Lobato. O piadista Francisco Teixeira de Souza
Prates, de “O engraçado arrependido”, termina sua jornada
tragicômica enforcando-se com a ceroula. Da neta ingrata,
em “A colcha de retalhos”, resta apenas a colcha
inutilmente costurada, que servirá de mortalha à avó.
Nunes sofre a maldição dos Porungas: a peroba,
transformada em monjolo, esmaga a cabeça de seu filho. No
tétrico “Bocatorta”, não basta que a heroína morra sem
conhecer o amor: deve ser condenada à necrofilia,
recebendo de um ser hediondo “o único beijo de sua vida”.
Riso e desprezo
Um só personagem livra-se do final terrível: Izé Biriba, de
“Um suplício moderno”, o melhor conto de Urupês . E é
sintomático que o escritor conceda a essa triste figura um
destino de liberdade: os inimigos de Biriba são o Estado, os
políticos e a burocracia – exatamente aqueles que
perseguirão Lobato por toda a vida.
Conto de tese, a história de Biriba apresenta o quadro da
política brasileira. As quatro páginas iniciais formam um
libelo sarcástico contra a burocracia, a “falange gorda dos
carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o
país”, centralizando suas atenções no estafetamento,
“avatar moderno das antigas torturas”. Izé Biriba, cabo
eleitoral premiado com um cargo na administração pública,
torna-se estafeta. Mal sabe os suplícios que o aguardam. No
fim, cansado da escravidão, vinga-se do chefe político local
e desaparece na estrada, pouco depois de dizer o seu
último “Sim senhor”. Lobato nada perdoa: critica os altos
salários, o nepotismo, a mediocridade das leis. E apresenta
a burocracia como o lugar dos falidos, dos incompetentes,
do restolho da nação. A narrativa provoca riso e desprezo.
Quanto a Biriba, o personagem mostra a habilidade do
escritor para construir tipos singulares: por meio de um só
gesto – erguer a mão esquerda à altura da testa, arrumando
o topete – temos o homem inteiro diante de nós.
Retrato do Brasil
Além dos contos, Urupês traz dois artigos. “Velha praga”,
introduzido no volume apenas na segunda edição e
originalmente publicado em 1914, no jornal O Estado de S.
Paulo – “violenta diatribe”, na perfeita definição de José
Aderaldo Castello –, apresenta severas críticas ao país:
“Infelizmente, no Brasil subtrai-se; somar ninguém soma...”.
O discurso de Lobato lembra o profético missionário frei
Vicente do Salvador, em sua pouco conhecida História do
Brasil , na qual critica brasileiros e portugueses que vivem
na colônia:
Uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários,
só para a desfrutarem e a deixarem destruída. Donde nasce também que
nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum,
senão cada um do bem particular.

Lobato investe também contra o método das queimadas,


até hoje comuns, criticando impiedosamente o roceiro, o
matuto paulista:
Tala cinqüenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome
e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência
às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar forme”, sem virem
a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo muito bem; assim fez o
pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua
no terreiro.

A mordacidade retornará no libelo que fecha o livro – e que


dá título à obra. Lobato nega-se a idealizar o homem do
campo. Não repetirá o erro cometido pelos românticos, que
criaram “aimorés sanhudos, com virtudes romanas por
dentro e penas de tucano por fora”. Para certa antropologia
contemporânea, que costuma ser indulgente com o atraso e
a ignorância, a tudo desculpando em nome da infra-
estrutura econômica, a verve de Lobato continua a provocar
reações histéricas. O Jeca Tatu não é “um forte”:
[...] A verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz,
formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o
aborígine de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de
evolução, impenetrável ao progresso.
[...]
Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade!
[...]
Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor
esforço – e nisto vai longe.

De certa forma, o escritor se antecipa aos críticos do


regionalismo que romantiza o subdesenvolvimento e tenta
criar heróis onde só existem derrotados. “Urupês” é a
síntese do Brasil agrícola, primitivo, no qual a boçalidade se
irmana ao misticismo:
Na mansão do Jeca a parede dos fundos bojou para fora um ventre
empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela umidade, oscilam
na podriqueira do baldrame. A fim de neutralizar o desaprumo e prevenir
suas conseqüências, ele grudou na parede uma Nossa Senhora enquadrada
em moldurinha amarela – santo de mascate.
– “Por que não remenda essa parede, homem de Deus?”
– “Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?”
Não obstante, “por via das dúvidas”, quando ronca a trovoada Jeca
abandona a toca e vai agachar-se no oco dum velho embiruçu do quintal –
para se saborear de longe com a eficácia da escora santa.
Um pedaço de pau dispensaria o milagre; mas entre pendurar o santo e
tomar a foice, subir ao morro, cortar a madeira, atorá-la, baldeá-la e especar
a parede, o sacerdote da Grande Lei do Menor Esforço não vacila. É coerente.

O artigo permanece como um repto ao país. É verdade


que, na quarta edição do livro, Lobato publicou um pedido
de desculpas ao Jeca, reconhecendo outras causas, mais
profundas, para o primitivismo do caboclo. Mas a radiografia
do Sudeste rural estava feita – e a denúncia repercute até
hoje.
Literatura e demonologia
Lúcia Miguel-Pereira, no artigo “De Peri a Jeca Tatu”, [ 67 ]
afirma, com acerto, que “Jeca Tatu é o único matuto de
ficção que tem nome e personalidade, que se tornou um
símbolo. O símbolo que Alencar tentou em vão fazer de
Peri”. Depois de analisar a “melancólica falta de
personalidade” de grande parte da ficção publicada até
aquele período, reconhece, na arte de Lobato, não só a
habilidade de criar um anti-herói, digamos, marcante. Com
sabedoria, a crítica resgata “Urupês” do âmbito da mera
denúncia e o insere no espaço da literatura:
E foi quando, no homem brasileiro, não procurou mais o herói, quando não
o quis mais exaltar, e sim quando nele viu um pobre coitado, desamparado e
humilde, que a literatura o logrou perpetuar como tipo.
A piedade humana foi mais criadora do que a imaginação.

A confirmar as conclusões de Lúcia Miguel-Pereira, Edgar


Cavalheiro afirma, em sua biografia de Lobato, que Oswald
de Andrade colocava Urupês “como o autêntico ‘Marco
Zero’ do movimento modernista”. [ 68 ]
Por tudo o que vimos até aqui – pequena parcela do que
Lobato empreendeu durante seus 66 anos –, reconhecer os
méritos desse escritor não é apenas uma questão de
justiça, mas de respeito à verdade.
Antes de Urupês , Lobato publicou um longo estudo
etnográfico sobre o saci-pererê, assinando-o, provocativo,
com o pseudônimo “Demonólogo Amador”. Talvez essa
tenha sido, realmente, sua principal vocação: estudar e
combater as forças que intimidam e corrompem o homem,
impedindo-o de ser o protagonista da sua breve existência.
Não só demonólogo, portanto, mas exorcista mordaz, que se
empenhou na tarefa de passar a limpo o Brasil.
Acompanhando com rigor o país e seus contemporâneos, foi
em tudo semelhante à sua adorável Emília: audacioso,
moderno e corrosivo.
***
Não é diferente o que ocorre com Negrinha , cuja primeira
edição, publicada em 1920, apresentava seis narrativas:
além da que serve como título, “As fitas da vida”, “O drama
da geada”, “Bugio moqueado”, “O jardineiro Timóteo” e,
fechando a obra, “O colocador de pronomes”. A escassez de
histórias, contudo, não diminui o valor da obra.
Na verdade, se uma hecatombe assolasse o país e
restassem apenas, no gigantesco monturo que substituiria a
Biblioteca Nacional, as 28 páginas finais do livrinho, os raros
sobreviventes, se alfabetizados, poderiam revivificar nossa
literatura, então libertada do pessimismo machadiano, dos
ressentimentos de Lima Barreto, do pansexualismo de
Aluísio Azevedo, do romantismo sentimentalóide de Alencar
e da retórica enfadonha de Raul Pompéia. E começariam
seu trabalho fazendo o que há de mais prazeroso no destino
da humanidade: rir, pois “O colocador de pronomes” é
exemplo do melhor humor, dessa “centelha divina que
descobre o mundo na sua ambigüidade moral e o homem
em sua profunda incompetência para julgar os outros”,
como resumiu Milan Kundera no belo ensaio “O dia em que
Panurge não mais fará rir”. [ 69 ]
A primeira frase de “O colocador de pronomes” já é um
encanto de insanidade: “Aldrovando Cantagalo veio ao
mundo em virtude dum erro de gramática”. Esse começo
inesperadíssimo captura o leitor – e o que vem a seguir o
acorrenta, obriga-o a se surpreender mais uma vez:
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um
cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de
versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no Itaoquense , com
bastante sucesso.

Em poucas linhas, frases curtas, temos o tipo completo, de


espantosa mediocridade. E, logo a seguir, a descrição de
seu carrasco, o Coronel Triburtino. Neste caso, a linguagem
lobatiana trabalha, de forma irônica, com lugares-comuns e
expressões coloquiais. Estas, como “tutu da terra”,
utilizadas raramente na atualidade, concedem tempero
adicional à leitura:
Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um vereador
oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí se transformou no tutu
da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte
que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no
nariz.

“Sarna filológica”, “pronominúria”, “furúnculo filológico”,


“pronomorréia” – não há limites para concretizar a loucura
do personagem cuja vida “foi sempre o mesmo poento idílio
com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos
lusitanos”, estudioso que “escabichava belchiores na pista
dos mais esquecidos mestres da boa arte de narrar”. Lobato
abusa da linguagem ornamentada exatamente para
espicaçar a retórica, para denunciar a patologia dos mestres
da eloqüência nacional – no fim do conto, inclusive, presta
sutil e irônica homenagem a Rui Barbosa.
A obsessão de Aldrovando – protagonista, não por acaso,
de nome bombástico – leva-o a se apartar da realidade:
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o
presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de Bernardim Ribeiro. E se
acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha bicar “pomos de Hespérides” na
laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apóstrofes:
– Salta fora, regionalismo de má sonância!

Panfletário, médico, engenheiro e, finalmente, “apóstolo”,


o amante dos pronomes vagueia, incapaz de encontrar
quem aceite suas críticas, seus conselhos. O diálogo com o
ferreiro da esquina é antológico; e a justificativa do
profissional para o erro da tabuleta que anuncia seus
serviços – “Ferra-se cavalos” – leva o nonsense ao
paroxismo:
– Vossa senhoria me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu
não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É
como quem diz: “Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos”. Para
economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: “Ferra
Se (rafim) cavalos”. – Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

O crescente desespero de Aldrovando desemboca no


capítulo central de seu livro, “Do método automático de
bem colocar os pronomes”, promessa não apenas de
solução gramatical, mas primeiro passo rumo ao fármaco
infalível, o “Pronominol Cantagalo”. É pena que a utopia
tenha tropeçado no tipógrafo que, certamente movido por
boas intenções, transforma o herói no “primeiro santo da
gramática, o mártir número 1 da Colocação dos Pronomes”.
Fracos e fortes
Ainda que esse conto formidável diminua o brilho das
outras histórias, todas, em maior ou menor grau, merecem
elogios.
“Negrinha” tem uma de suas melhores partes na quebra
do estereótipo de maldade que Dona Inácia representa: a
matrona se torna verossímil quando permite à órfã brincar
com as sobrinhas. Até esse ponto, a narrativa, apesar de ser
um libelo contra o racismo, não convence. O segundo trecho
importante é o final – e não me refiro à morte da
protagonista, mas aos dois comentários insensíveis que
formam a lápide da menina.
“O drama da geada” se desequilibra entre o beletrismo de
certos trechos, algumas boas descrições, o dom de Lobato
para captar falas coloquiais e um final trágico, que faz a
leitura valer a pena.
A estrutura de “Bugio moqueado” é perfeita. Depois de um
começo informal, carregado de gírias, o narrador vai
sobrepondo camadas de mistério, a fim de consolidar o tom
soturno. Há certo exagero, principalmente na descrição da
mulher, mas o desvio, pouco antes do fim, e a conclusão
repulsiva acabam submetendo o leitor.
Triste lição sobre a impermanência das coisas, “O jardineiro
Timóteo” é metáfora da tradição destruída por modismos.
Apesar do final óbvio, merece atenção a semiótica das
flores que o jardineiro elabora para dialogar com a realidade
e torná-la suportável. Quando acreditamos que Lobato não
conseguirá criar novos devaneios, ele surpreende. O
desabafo que antecede o triste final serve com perfeição à
estrutura da narrativa.
“As fitas da vida” apresenta um dos pontos fortes de
Lobato, os diálogos. Primeiro, entre o funcionário da
Hospedaria dos Imigrantes e o cego; a seguir, deste com o
major: as vozes intercalam-se de forma ágil; as falas do ex-
soldado constroem o núcleo da narrativa, pleno de honradez
e lealdade. Nenhum comportamento é estereotipado – e
temos certeza de estar frente a emoções genuínas quando
o pobre cego esmorece, fraco e desprotegido, incapaz de
reagir aos insistentes ultrajes do major. Toda a trama se
resolve com a revelação que oferece esperança ao sofredor.
Trata-se de um conto moral, edificante mas sem pieguice,
exemplo raro na literatura brasileira.
Desequilíbrio
As narrativas incluídas nas edições posteriores de Negrinha
criaram um todo mais desigual. Há historinhas divertidas,
como “A policitemia de Dona Lindoca” e “Sorte grande”;
uma tentativa frustrada de censura à avareza (“Herdeiro de
si mesmo”); duas narrativas híbridas, que não se decidem
entre o conto e a crônica (“O fisco” e “Quero ajudar o
Brasil”); o inocente “Uma narrativa de mil anos”, espécie de
Un cœur simple quase esquemático, apesar do início
sugestivo; “Barba Azul”, de tema interessantíssimo mas
sem dramaticidade; e “Os pequeninos”, que soma duas
histórias curiosas, principalmente a segunda, em que o
protagonista é derrotado por inimigos insólitos.
Restam, no entanto, três ótimos contos.
Gótico
“Os negros” revisita o velho tema dos viajantes obrigados
a passar a noite numa casa mal-assombrada. O que Afonso
Arinos realizou, de forma capenga, em “Assombramento”,
Lobato eleva à condição de narrativa gótica, com os
elementos característicos: tempestade inesperada,
propriedade em decadência, ambiente lúgubre, amor
impossível e cena trágica – além, claro, da alma penada.
Na dupla de viajantes, formada pelo narrador e seu amigo,
Jonas, será este – zombeteiro e racista – o alvo do espírito
de um subalterno da fazenda, jovem português que
cometera o erro de se apaixonar pela filha do latifundiário, o
capitão Aleixo. A história é contextualizada por meio de
diálogos desembaraçados, nos quais ressalta a figura do
hospitaleiro Tio Bento. Há boas falas, em que Lobato
transmite de maneira perfeita as inflexões coloquiais, e esta
figura impressionante, síntese do horror do tráfico negreiro:
“Aportamos em África para recolher pretos de Angola,
metidos nos porões como fardos de couro suado com carne
viva por dentro. Pobres pretos!”.
Saliente-se o cuidado de Lobato ao criar uma voz
sobrenatural que, apesar de editada, como o próprio
narrador explica, ganha características peculiares. Outro
aspecto positivo é não se apelar ao grotesco no final, mas
oferecer rápida visão do local da morte, certa parede
sinistra.
Sarcasmo
Lobato exercita sua ironia em “A facada imortal”, cujo
título, escolhido com perspicácia, causa boa confusão no
leitor, intensificada pelos dois primeiros parágrafos, em que
se passa do enxadrismo ao faquista Indalício Ararigbóia.
Logo percebemos tratar-se de um compêndio de
escroqueria, técnica que o protagonista exerce com refinado
academicismo:
[...] O escultor nobilitará até um paralelepípedo de rua, se lhe der forma
estética. Por que não nobilitaria eu o deprimentíssimo ato de pedir? Quando
lanço a minha facada, sempre depois de sérios estudos, a vítima não me dá
o seu dinheiro, apenas paga a finíssima demonstração técnica com que o
tonteio. Paga-me a facada do mesmo modo que o amador de pintura paga o
arranjo de tintas que o pintor faz sobre uma estopa, um quadrado de
papelão, uma relíssima tábua. O faquista comum, notem, nada dá em troca
do miserável dinheirinho que tira. Eu dou emoções gratíssimas à
sensibilidade das criaturas finas. Minha vítima tem de ser fina. O simples fato
da minha escolha já é um honroso diploma, porque nunca me desonrei em
esfaquear criaturas vulgares, de alma grosseira. Só procuro gente na altura
de compreender as sutilezas das paisagens de Corot ou dos versos de
Verlaine.

Em suas reflexões, o delicado anti-herói tece, inclusive,


laivos de teoria literária:
– E eu, que caço? – perguntei.
– Antíteses – respondeu de pronto Indalício. – Fazes contos, e que é o conto
senão uma antítese estilizada?

A morte banal desse especialista em “caçar otários com a


espingarda da psicologia” arremata o exercício de
sarcasmo.
Sintaxe e humor
“Dona Expedita”, narrado com naturalidade e humor
impressionantes, demonstra também o controle de Lobato
sobre a sintaxe. Vejam como o narrador apresenta, de forma
oblíqua e irônica, a verdadeira idade da protagonista:
E, como só tem 36 anos, veste-se à moda dessa idade, um pouco mais
vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força de
cores claras, ruges e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os seus
famosos 36, era provável que desse a idéia duma bem aceitável matrona de
60...

Autores contemporâneos optariam por um discurso sem


rodeios, destituído de sutilezas, para relatar o mesmo fato –
e justificariam a pobreza de seu estilo alegando obediência
a supostas teorias estéticas ou sociolingüísticas...
O longo diálogo que encerra o conto – e, gradativamente,
inverte as expectativas das interlocutoras – é peça
sugestiva, tem humor, fluidez, precisão.
Pré-modernista?
Referindo-se a Urupês , Edgard Cavalheiro resumiu as
qualidades da contística lobatiana: “Nada de falsa literatice
tão em moda, da superafetação bombástica, do palavreado
vazio, e sim literatura da boa, fonte não somente de
emoção e sabedoria, mas também de humanidade [...]”. [
70 ] O correto elogio pode se estender a outros livros de
Lobato – e bastam “Um suplício moderno” e “O colocador de
pronomes” para implodir a esdrúxula periodização da nossa
literatura. Encarcerar Lobato num caótico e liquefeito pré-
modernismo ou condená-lo por meio de avaliações
preconceituosas e superficiais só diminui esse autor de
narrativas cáusticas, exemplares e sempre
contemporâneas.

[ 61 ] História concisa da literatura brasileira , 34ª edição, revista e


aumentada, Editora Cultrix.
[ 62 ] O Estado de S. Paulo , 20 de dezembro de 1917.
[ 63 ] A literatura brasileira – origens e unidade , volume II , Edusp, 1999.
[ 64 ] História da Literatura Brasileira , Editora Nova Aguillar, 1997.
[ 65 ] O livro no Brasil (sua história) , T. A. Queiroz Editor / Edusp, 1985.
[ 66 ] Ver o depoimento de Paulo Dantas em seu livro Presença de Lobato , RG
Editores, 1973.
[ 67 ] Texto publicado no jornal Correio da Manhã , em 19 de novembro de
1944. Pode ser lido em Escritos da maturidade , Graphia Editorial, 1994.
[ 68 ] Apud José Aderaldo Castello. Op. cit .
[ 69 ] Em Os testamentos traídos , Editora Nova Fronteira, 2ª edição, 1994.
[ 70 ] Ver “Ciclo Paulista”, Capítulo 40 de A literatura no Brasil , volume 4,
direção de Afrânio Coutinho, Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004.
CAPÍTULO 16

O filho tardio de Alencar


– Alcides Maya e Alma bárbara

No ensaio que dedica a Alcides Maya em Prosa dos Pagos –


1941-1959 , [ 71 ] Augusto Meyer afirma, logo no primeiro
parágrafo, que “há um imperativo de saudade e uma
deleitação de fundo nostálgico na leitura” da obra desse
escritor, salientando, poucas linhas depois, “a monotonia
que transparece de suas páginas”, característica analisada
não como algo negativo, mas como “um atestado de
fidelidade” à “constância”, ao apego do escritor às suas
raízes. Para dar vida a tal afeição, Maya, ainda segundo
Augusto Meyer, buscava “surpreender os vestígios de um
estilo de vida já em recuo para o passado, evanescente e
apenas sobrevivendo em crise”.
As observações de Meyer resumem, de maneira fidedigna,
a temática dos contos reunidos em Alma bárbara ,
publicado em 1922, mas não abrangem a forma escolhida
por Alcides Maya para exteriorizar a invariabilidade que,
diferente do crítico otimista, considero exemplo de
mesmice. Assim, se as histórias estão circunscritas à
idealização do gaucho ou à narração de causos cujo limite
geográfico e cultural é a vida pampiana, a linguagem
utilizada mostra-se refém de soluções monocórdias e
retóricas.
Filas de adjetivos
“Água parada”, que abre o volume, anuncia o saudosismo
do autor e seu apego aos adjetivos. A narrativa idílica, que
não chega a criar um conto, fixa-se no tema bucólico e aí
permanece, definindo certa idealizada lagoa como
“profunda, singular, diferente de todas”, com águas
também “profundas”, novamente “diferentes” e, por fim,
“atraentes”. Vencidos poucos parágrafos, a água torna-se
“calada, solitária, arrastadora”, mais uma vez “atraente” e,
a seguir, “indiferente”. Sob o domínio de tal adjetivação, o
discurso pernóstico, de nítida influência alencariana, é
conseqüência inevitável: “Lá embaixo, bem no fundo,
estremeceria ainda, na algidez dos seus desejos torpentes,
alguma iara sonolenta, das que outrora seduziam os
guerreiros com seus olhos cerúleos e as suas verdes
madeixas?”, pergunta-se o narrador. Não faltam, elementos
indispensáveis nesse tipo de texto, os lugares-comuns, na
forma de “beijos de brisas perfumadas pelas flores da
encosta”.
O problema se agrava no relato seguinte, “Fábula de hoje”,
no qual temos a história do gato Mephisto e sua fugaz
amizade por um passarinho. Enumerar as qualificações do
felino pode ser um exercício divertido para quem deseja
conhecer este modelo de antiliteratura, em que o
enfileiramento de adjetivos pretende definir tudo. O gato
chega a ter “formosura moral”, logo destruída pela fome,
que o obriga a, num desfecho previsível, devorar seu amigo.
Em “Monarcas”, descobrimos Neco Alves, o campeiro que
não consegue fazer jus plenamente à herança de coragem
dos antepassados. Além da cascata de adjetivos, o narrador
passa mais da metade da história construindo um gaúcho
idealizado, símbolo de bondade e inocência, em perfeita
harmonia com a natureza, mas que, dado o excesso de
qualidades, acaba se tornando ridículo. No último terço da
narrativa, quando pensamos que surgirá alguma trama, o
escritor opta pela solução mais fácil, frouxa de tão
resumida.
Idealização e melodrama
“Chica-Balaio (historieta de dragões)” nos oferece,
novamente, a linguagem empolada: em certo trecho, a
mendiga continua a bater na cobra que acaba de matar,
mas o autor prefere dizer que “a mulher continuava a
contundir a serpe, atingindo-lhe o dorso crispado e a cauda
açoitante”. Além disso, há um erro de composição que torna
a cena inverossímil: num momento, Chica-Balaio está longe,
concentrada em “ajuntar gravetos”; no seguinte, consegue,
graças à sua visão telescópica, perceber a cobra pronta a
atacar o menino e, o principal, correr na incrível velocidade
que lhe permite impedir o ataque.
Depois de ultrapassarmos “China-Flor”, crônica ultra-
romântica, plena de soluções melodramáticas, chegamos a
“Alvos”, história do vaqueano Silvério Torres, obcecado por
atirar. O gaúcho sofre a transformação cara a Alcides Maya,
sempre movido por irrefreável ânsia de idealização, e é
descrito como um esteta, “amante do ser em movimento”,
capaz de, acreditem, entre madressilvas, margaridas e
outras florinhas, acertar numa borboleta “mimosa, trêfega,
pequenina”. Na verdade, Torres não passa de um sádico
que, em busca de alvos humanos, favorecerá a traição da
mulher. Dez parágrafos antes do fim, já sabemos qual será o
desfecho.
“Lenda guerreira” é história sentimentalista, com “arrebóis
longínquos do poente – mancha de frágua entre o azul
cerúleo e o verde-montanha dos campos” e um beija-flor
que morre e cai no colo da mãezinha sofredora, anunciando-
lhe a morte do filho na Guerra do Paraguai. Nem Alfredo Le
Pera e Horacio Pettorossi conseguiram, na letra do famoso
tango Silencio , ser tão melodramáticos.
Linguajar e esquematismo
Às vezes, Alcides Maya dá a impressão de tatear em busca
do estilo ideal. No conto “História gaúcha”, narrativa de ódio
e vingança que transcorre em torno de certa adaga
satânica, o escritor tenta reproduzir o linguajar dos Pampas:
A rapariga consentiu, dei-le umas boquinhas (ah! tempo!) e, à meia-noite,
atei o ca’alo na frente e empurrei na porta um manotaço. Um aviso... Inda o
bruto não tinha saltado do catre e já eu penetrava no rancho. Derrubei a
relho aquel’tebas! Quando o companheiro acudiu, já eu fazia relampear a
adaga do bugre, minha herança de fado, que outro bem nunca tive, mas esse
me apertencia. Lascou-me fogo e errou (havia de ser!) e ali mesmo lo
acuchilhei, como rês, no sangradouro... E nem alimpei o ferro: de vereda, fui-
me ao primeiro, que se boqueava no chão, e le taquei um tiro no ouvido, mas
bem dentro, bem no fundo... Não se abichorne, moço, que a vida é assim...
Vocemecê queria, ’tá ouvindo. E dê-me no mais do seu místico, que o meu
isqueiro se quebrou e este pito está manheirando...

O principal limite de experiências desse tipo, sem dúvida


curiosas, é óbvio: a linguagem torna-se o principal
personagem – e ao assumir o protagonismo, desbanca ou
enfraquece o enredo.
Na seqüência, a brevidade de “Ritornelo romântico” não
permite nem mesmo que a trama se concretize – tudo se
resume a esquematismo, nada mais. Problema, aliás,
semelhante ao de “Supérstite”, conjunto de cenas rápidas
que se dividem entre a coragem e a morte.
Lacunas e romantismo
“Entre bandidos (do diário de um amigo)” é a tentativa
mais esforçada do autor para se aproximar do conto
clássico. O resultado, pífio, deve-se principalmente ao
entrecho repleto de lacunas. Dois amigos escutam a história
de um terceiro, Heitor Mendes, proprietário da Estância dos
Álamos, que relembra um inimigo “de nascença”. Este é o
primeiro problema: não há justificativa para o ódio comum –
o primeiro olhar foi de “ódio profundo, inelutável, definitivo”.
À força desses adjetivos, o autor acredita ter materializado
o sentimento para os leitores e segue, decidido, adiante.
Após alguns encontros, Heitor afirma que Padilha, o
adversário, “sustenta com a polícia uma luta desigual e
épica”, sem descrever, entretanto, o embate, certo de que
apenas o fato de mencioná-lo constitui literatura. Mais
tarde, reencontrará o inimigo, agora com a amante – por
coincidência, sua ex-namorada. Enciumado, decide montar
uma cilada para Padilha e capturar a jovem. Quando a ação
está prestes a ocorrer, o narrador inventa esta desculpa:
Tentei reproduzir o diálogo em homenagem a vocês, e porque, além de
revelar o meu desvario, me dispensa de insistir sobre o que, em seguida,
aconteceu. Felizmente, não houve morte de homem... Arrebatada por mim,
pessoalmente, a rapariga esteve aqui, em segredo, três semanas, três
séculos do inferno... Não se rendeu: fugiu...

O autor nos rouba, assim, a melhor parte da narrativa – e,


no parágrafo seguinte, a jovem encontra-se na estância.
Incapaz de submetê-la, pois permanece apaixonada por
Padilha, Heitor a liberta. Os inimigos se reencontram – mas
apenas para que Padilha, melancólico, relate a Heitor a
morte e o enterro da sua paixão. Novíssima histórica
romântica, portanto.
No “Conto... realista”, é curioso perceber como o narrador
chega a abandonar a história, perdendo-se em explicações
pseudo-antropológicas sobre a religiosidade e as
superstições gaúchas. No fim, o elemento que prometia
desvendar a solidão e a estranha personalidade do velho
curandeiro – uma trança negra, de cabelo crespo –
permanece inexplícito.
Bom humor e Iracema
A melhor narrativa do livro, “Duas tragédias...”, apresenta-
se na forma de um diálogo repleto de bom humor, no qual o
linguajar gaúcho não pretende se impor de maneira
absoluta, mas apenas ser o veículo das histórias contadas
por Zeno, mentiroso e extrovertido campeiro. O personagem
pueril, interrompido, aqui e ali, pelo patrão gozador, é mal
aproveitado e o conjunto se resume a dois causos sem
nenhuma inter-relação.
Em “Caturrita”, o narrador se perde, logo no início, numa
cansativa digressão, romântica e pseudo-filosófica.
Estamos, então, de volta ao estilo pegajoso:
Malvina era de todos, espontânea e cantante, qual uma fonte à sombra,
nascente mansa de água múrmura, que desaltera e fica para trás, esquecida,
na verdura macia, aromática, hospitaleira dos capões...

Quanto ao corpo dessa “femeazita”, como a denomina o


narrador, era
ágil e rijo, trigueiro e penugento, elástico e serpentino, cheirando a araçá
maduro, a trevo pisado, a flechilha e a espinilho, a todas as flores. A todas as
gemas silvestres reunidas na mesma adorável carnadura de mulher.

Sem dúvida, trata-se da reencarnação sulista de Iracema,


que se sacrifica por “um amor imprevisto, repelido,
arrastador, aniquilador...”.
Estilo bombástico
Considero “Ceguinho de estrada”, que fecha o volume, a
narrativa mais dramática, exatamente por reunir os defeitos
de Maya. É surpreendente que Augusto Meyer tenha
considerado essa história
verdadeira obra-prima, em que a expressão da piedade se apresenta nua,
direta, simples na sua humilde franqueza, como se o autor, despido de todos
os preconceitos, deixasse falar pela sua voz a força de um destino.

O pobre cego é destruído, parágrafo a parágrafo, pela


linguagem que, afetada, pretende criar um ser mirífico:
Não tivera mestre, não passava de um mísero ceguinho, e, contudo, sentia
ser o seu espírito um centro convergente e consciente de vibrações. Falava-
lhe à alma encarcerada a alma errante, envolvente, arrastadora, dominadora
das cousas, e eis porque entrevia, percebia, completava os aspectos. [...]
Os outros eram instinto; ele, espírito e coração. Sofria por isso, por ser
assim, por ânsia de amar o desconhecido, que lhe povoava de longínquos
esplendores, fugazes, mas contínuos, a treva insondável do seu destino. [...]
Ele amava a brisa, os sibilos do vento, o perfume das flores invisíveis, o
tatalar dos pássaros, as folhas cobertas de orvalho, a tépida carícia das
alvoradas [...].

Os derramamentos do autor enaltecem de maneira


cansativa o protagonista – semelhante ao que ocorrera em
“Monarcas” e “Alvos” – apenas para, no final, condená-lo “às
mágoas cruciantes do seu viver, de todo, para sempre,
desamparado, perdido...”. Mal contada e sentimentalóide, a
narrativa é ótimo exemplo do estilo bombástico de Alcides
Maya.
Dois gaúchos
A esgotante tarefa de ler Alma bárbara serviu para me
lembrar do argentino Ricardo Güiraldes (1886-1927) e seu
Don Segundo Sombra , publicado em 1926 – a melhor
contraposição à linguagem e aos gaúchos de Alcides Maya.
Romance de formação, em que o jovem Fabio Cáceres se
relaciona com o vaqueiro que dá nome ao livro, aprendendo
com ele os valores, a ética da gauchería , Don Segundo
Sombra é exemplo de sutileza, de lirismo comedido, síntese
do imaginário da llanura pampeana . Esse mestre altivo,
que leva Fabio às portas da maturidade, percorre, cruzando
os Pampas, o trajeto inverso dos personagens de Maya:
torna-se, página a página, uma figura mítica – até o
momento da despedida, em que Cáceres afirma: Aquello
que se alejaba era más una idea que un hombre .
Trata-se de romance superior: nada de efusões
incontroláveis; a adjetivação, sóbria; as frases, buriladas,
muitas vezes lacônicas, reproduzem a personalidade do
gaucho altivo, de heroísmo ático. Güiraldes produziu um
clássico que, em inúmeros trechos, nos transporta a certo
universo épico, enquanto Maya, romântico decadente, é
apenas o filho tardio de Alencar.

[ 71 ] Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.


CAPÍTULO 17

Sobriedade e sutileza
– Amadeu Amaral e A pulseira de ferro

Amadeu Amaral permanece indispensável à cultura


brasileira graças a O Dialeto Caipira – estudo pioneiro sobre
as características da linguagem no interior do Estado de São
Paulo –, à permanente campanha em defesa do folclore,
cujas pesquisas nos permitiriam alcançar o que ele
chamava de “conhecimento exato da nossa gente” e aos
insights das análises literárias reunidas em O Elogio da
Mediocridade , incluindo o ensaio que dá título ao livro,
deliciosa peça de ironia sobre o papel do crítico e dos
escritores. Poeta menor, deixou uma novela exemplar, A
pulseira de ferro , presente no volume Novela e Conto de
suas Obras Completas [ 72 ] – publicadas sob a direção de
Paulo Duarte, intelectual paulista injustamente esquecido.
Papéis invertidos
O escritor não teme iniciar A pulseira de ferro utilizando a
fórmula “Era uma vez um vigário da vila de Candeias,
chamado Guilherme de Meneses...” – assim o narrador
finaliza o Prólogo, em que também avisa o leitor sobre suas
opções lingüísticas, despojadas de preocupações literárias
regionalistas.
De fato, padre Guilherme assume, num primeiro momento,
o papel de protagonista. Na pacata vilazinha começa a
história desse vigário bonachão, dedicado, em algum dia
entre 1875 e 1880, ao seu almoço, “oloroso assado” que
pretende saborear. Interrompido por Chico, o sacristão, que
o chama para um batizado urgente, pois a criança estaria à
morte, segue para a igreja. Lá, encontra o recém-nascido,
mas abandonado pelos pais. Decide, então, acolhê-lo em
sua casa, confiando que a cozinheira, Rosa, cuidará dele.
O que ressalta na personalidade do clérigo é o caráter
pueril, presente já nos seus primeiros comentários, quando
se mostra incomodado ao perceber a forma como Chico o
julga, pois este acredita que, entre o almoço e o batismo,
padre Guilherme prefere o primeiro. Para um homem de
quarenta anos, acostumado a conviver com diferentes tipos
de pessoas e a ouvir delas, no confessionário, o que têm de
pior, a insistência para provar ao sacristão suas verdadeiras
intenções fornece os primeiros sinais da imaturidade que a
trama comprovará.
Ao decidir adotar a criança, o clérigo atesta, mais que
compaixão, nítida carência afetiva, necessidade de
conceder amor especial, particular, a uma única pessoa. O
diálogo do Capítulo III , em que troca idéias com a cozinheira
sobre o nome que dará à criança e sua dúvida em relação
aos padrinhos, confirma a personalidade de um homem
despreparado para seu ofício, tolo a ponto de acreditar em
superstições. O próprio narrador trata-o com ironia, no
Capítulo VII , descrevendo-o “quase como uma senhora na
doçura e na paz da maternidade recente”.
Em pouco tempo, o vigário torna-se alvo de mexericos: a
adoção, apesar de informal, revelaria que ele é o verdadeiro
pai da criança. O diálogo que mantém com o professor
Camacho, único redator do jornal da vila, desencadeia sua
indignação:
Camacho abanou a cabeça e esboçou um sorrisinho indeciso. Depois,
levantando as sobrancelhas e apertando os beiços numa caramunha de
contrariedade, arrulhou:
– Eu julgava que vossa reverendíssima estava ao fato de tudo, e foi por isso
que me atrevi a falar...
– Desembuche.
– Referia-me ao pequeno, ao enjeitadinho, que as línguas perversas deram
agora para assoalhar que é filho do sr. vigário...
Padre Guilherme baixou as sobrancelhas híspidas sobre o olhar coruscante,
enquanto ouvia o professor, e assim se conservou por um tempo.
– Então dizem isso de mim?
Camacho fungou um suspiro.
– Por toda a parte, sr. padre.
– Mas dá-se crédito a semelhante infâmia? Que caráter tem isso? De notícia
certa? De boato vago? De pilhéria? E quem é que o diz, sr. Camacho? A quem
é que o senhor já ouviu dizer isso, sr. Camacho?...
O mestre-escola gaguejou umas evasivas. E o padre, pegando-lhe na
manga e dando-lhe pequenos repelões:
– Dessas “minudências” o senhor não sabe, hem! sr. Camacho... O senhor
sabe que me caluniam, que me arrastam o nome por essas sarjetas, mas não
sabe mais nada, não viu, não percebeu... não quis perceber mais nada!

À parte o diálogo perfeito, bem construído, as reações do


clérigo, que se intensificarão a partir desse ponto,
reafirmam sua total incapacidade para lidar com questões
controversas. Mesmo tentando fingir que nada acontecera,
ter consciência dos boatos é algo insuportável para ele. E
apesar do apoio que recebe do único amigo, o advogado
Veloso, sucumbe às maledicências e decide partir da cidade.
Seu rancor fica claro nas palavras que, num rompante, diz a
Veloso, pouco antes de partir:
– Por ter a consciência limpa é que me revolto, Veloso (bradava o padre).
Não, não me posso conformar com esta idéia de que a “minha” pessoa não é
afinal “minha”, não me pertence, não é aquilo que eu quero que ela seja,
aquilo que eu tenho o direito de querer que ela seja, aquilo que eu vivo a
trabalhar toda a minha vida para que ela seja!... E essa idéia estúpida, essa
idéia trágica é a realidade, a realidade objetiva, a realidade tangível! A
“minha” pessoa é uma coisa como qualquer outra, é um objeto, é um traste,
é um punhado de matéria desprezível que o primeiro ladrão apanha,
desconjunta, torce e deforma à sua vontade, por desfastio, por malvadez, por
pilhéria, sei lá!...

De nada servem os argumentos de Veloso, que confirmam


os papéis invertidos desses personagens, pois o advogado
mostra-se mais próximo da firmeza de caráter que o senso
comum espera do sacerdote:
– Que culpa tem Deus de que você exagere a sua sensibilidade? Você é que
devia ter a força de desprezar o que é desprezível; mas não desprezar de
gesto e de palavra – desprezar de toda a vontade, de toda a alma, num
desprezo integral e sereno... Você não tem essa força, e padece... Mas
reconheça ao menos que também esse padecimento é providencial. Nós nos
orgulhamos facilmente das nossas boas partes; e aquele que se compraz em
reconhecê-las em si mesmo, já desmereceu um pouco, só por isso. A má-
língua chama-nos à realidade, força-nos a ser modestos, a juntar ainda uma
qualidade, preciosa entre as mais, às qualidades que já possuímos...

Metáfora
Esses comentários, no Capítulo X , representam apenas um
dos inúmeros trechos que contribuem para transformar
Veloso no personagem central da narrativa. Página a
página, o narrador torce com habilidade a trama, passa a
segundo plano o vigário, utiliza as calúnias sofridas pelo
padre para provocar no advogado a recordação pungente
do próprio passado – e Veloso, por sua personalidade
diligente e solícita, seu poder de análise, assume o
protagonismo da história.
O núcleo dessa mutação encontra-se no Capítulo IX , no
qual o advogado relata ao padre, para que lhe sirva de
exemplo, a história do ferreiro Manuel da Costa, morador de
Candeias, durante longos cinco anos dedicado a moldar, nas
horas de lazer, a delicada “pulseira de ferro”, presente que
dará a Raquel, sua jovem filha, por quem Veloso, já homem
maduro, se apaixona. A família, contudo, é destruída pelas
intrigas da população – e Veloso partilha da violência das
calúnias, responsáveis inclusive pelo suicídio de Raquel.
Essa experiência anterior é o drama que permite ao
advogado ironizar a indignação do padre, correta, sem
dúvida, mas desproporcional.
Pouco antes, depois de salientar que o vigário vive apenas
a “estréia de caluniado”, Veloso expusera, num diálogo
central, no Capítulo VIII , sua teoria sobre como a índole
violenta do homem depurou-se até se transformar em
difamação:
[...] O bruto ganhou em peçonha, em perversidade recolhida e fedorenta o
que perdeu em brutalidade esbarrondante e sadia: já não assalta nem
esquarteja o inimigo, amargura-lhe, comodamente, a existência; envenena-
lhe os prazeres, se os têm; agrava-lhe as dores e as melancolias, que as têm
pela certa; põe-lhe um sabor de lama na água que ele bebe, um cheiro
excrementício nos perfumes que ele respira; entra-lhe pelo corpo com o pão
que ele come, tornando-lho duro e dissaborido; precipita-se-lhe na torrente
do sangue, e queima-o em febre; fustiga-lhe as fibras recônditas dos nervos,
e chama-se insônia; põe-lhe nos olhos as lágrimas que ele deve estilar em
silêncio, às escondidas, e é então a amargura que mata. E ninguém escapa!
ninguém! [...]

A pulseira de ferro não é, contudo, ficção de tese; não está


presa aos esquematismos darwinistas do nosso naturalismo
e o advogado não busca nenhuma suposta verdade
científica. Não. Mais que a história de um padre destituído
de firmeza, a novela retrata os infortúnios de Veloso,
homem sensível, íntegro, sagaz, obrigado a ser vítima
indireta dos mexericos, devido aos quais perde, primeiro, o
grande amor, e depois, o melhor amigo. A pulseira de ferro
torna-se, assim, metáfora dos sentimentos que
alimentamos, durante longo tempo, com empenho sincero,
mas que são destruídos, aniquilados pela malevolência de
outrem.
O narrador completa, dessa forma, a inversão – e o que
prometia ser uma história óbvia ganha agradável,
inesperada sutileza. Sua sensibilidade aguda completa o
trabalho revelando, no final, não os caluniadores, mas os
artífices do plano de abandonar a criança à porta da igreja.
Tratados, no início da narrativa, como parvos, eram, na
verdade, dissimulados, conhecedores da índole do vigário.
A essas qualidades somam-se outros personagens – o
ferino boticário Felisberto; o barbeiro Nicola; Camacho,
“polimórfico sábio” – e diálogos reveladores, que
impulsionam a história e substituem possíveis cansativas
descrições do narrador, como este, entre Veloso e
Felisberto, quando se anuncia a difamação em curso:
– Olá! Sirva-se de um cafezinho, descanse um pouco. Diga-me! como vai o
filho do padre?
Veloso estacou intrigado. E Felisberto explicou, passando-lhe uma xícara:
– Aquele mulatinho achado ali na igreja, outro dia, não sabe? que caiu do
céu por obra do Espírito Santo...
Ouviu-se uma risada geral. Veloso riu-se com os mais, sem exagero e sem
ruído, mas também sem constrangimento aparente, e informou:
– O pequeno vai bem.
– Saiu parecido com o pai?
Veloso, sem se desconsertar, tomando o seu café:
– Mas quem é o pai?
– Ora, ora, doutor Veloso...
– Quem é?
– Sou eu. Está ouvindo? Eu! Fui eu quem mandou largar o bodinho, de
manhã muito cedo, ali na porta da igreja; por uns excomungados de uns
pretos que ninguém viu, de quem ninguém dá notícia... Qual, “seu” dr.
Veloso, nisso tudo há grosso... milagre! Quem não vê que aí anda dedo... de
Deus!
Veloso sorriu, abanou a cabeça, olhou para o ar, tornou a sorrir, e saiu da
botica aterrado.

O narrador cumpre, graças à sua habilidade, o que


prometera no Prólogo: “[...] Uns amam nas histórias as
próprias histórias, e não querem delas senão o que pedem à
música – um pouco de esquecimento e de embriaguez”. É o
que Amadeu Amaral nos oferece nessa novela sóbria na
extensão, mas de enredo penetrante, pleno do que os
leitores desejam – exatamente o que muitos escritores de
hoje nos recusam.

[ 72 ] 11 volumes, Editora Hucitec / Secretaria de Cultura e Tecnologia do


Estado de São Paulo, 1976.
CAPÍTULO 18

Equívocos e retórica
– Jackson de Figueiredo e Literatura reacionária

O início da década de 1920 necessita de um estudo


aprofundado e livre das imposições teóricas marxistas, que
se tornaram, desgraçadamente, hegemônicas entre nós. Só
um espírito que não esteja disposto a, de forma cega,
enaltecer a mentalidade revolucionária poderá elaborar a
análise que Antônio Carlos Villaça esboçou em trechos d’ O
Pensamento Católico no Brasil , [ 73 ] ao recordar a
concomitância de fatos tão díspares quanto relevantes: em
meio às crises políticas dos governos Epitácio Pessoa e Artur
Bernardes, o surgimento da revista A Ordem , a fundação do
Partido Comunista Brasileiro e do Centro Dom Vital, a
Revolta dos 18 do Forte, início do Tenentismo, a Semana de
Arte Moderna, a Revolução Paulista de 1924 e o princípio da
Coluna Prestes – sem nos esquecermos, é claro, das
comemorações do Centenário da Independência, que
podem ou não se encontrar no substrato desses
acontecimentos.
É nesse contexto que surge, em 1924, Literatura
reacionária , de Jackson de Figueiredo, ele próprio fundador
do Centro Dom Vital, sob influência direta do então
arcebispo-coadjutor do Rio de Janeiro, dom Sebastião Leme
da Silveira Cintra. Reunião de quinze artigos publicados na
imprensa carioca entre dezembro de 1923 e maio de 1924,
o livro sintetiza o pensamento desse ensaísta que havia se
contraposto ao Tenentismo – em A reação do bom senso;
contra o demagogismo e a anarquia militar (1922) – e
tornara pública, em Pascal e a inquietação moderna (1922),
sua conversão à Igreja Católica.
Escolhas repreensíveis
Os artigos que compõem Literatura reacionária nascem da
oposição do autor ao que ele chama de “desmandos de um
romantismo político”; por meio desses textos, Jackson de
Figueiredo deseja apresentar a seus leitores
alguns aspectos dessa literatura de reação, anti-revolucionária, anti-
sentimental, anti-romântica, que vai, ora definidamente católica, ora
revestindo-se somente do senso prático social do catolicismo, não só
reduzindo a poeira dos abalados créditos das doutrinas individualistas e
materialistas, como, de alguns anos para cá, assentando já as bases de uma
remodelação social, consciente e positivamente inspirada nos ensinamentos
da Igreja.

À parte a índole onírica das afirmações – revelam o ideal do


autor, mas não a realidade – e do elogiável caráter anti-
revolucionário de Jackson de Figueiredo, que o impelia a
lutar em favor da legalidade e da ordem pública, os textos
descambam, muitas vezes, para uma defesa acrítica do
fascismo italiano, da ditadura de Primo de Rivera e do
Integralismo Lusitano, na figura do poeta António Sardinha.
Ao enaltecer a “Ordem” e a “Hierarquia”, Jackson de
Figueiredo chega a elogiar Augusto Comte – “gênio
realmente formidável” – e Charles Maurras, desconhecendo,
presumo, o tanto de pensamento agnóstico e anticatólico
que havia na obra do líder da Action Française .
Conseqüência fatal dessas escolhas, é possível entrever
laivos de anti-semitismo ao menos em dois artigos.
Há méritos, sem dúvida, em apresentar aos brasileiros, por
exemplo, a obra de Auguste Viatte, mas Jackson de
Figueiredo o faz numa linguagem que está sempre pronta a
cair no elogio fácil e no circunlóquio, tão caros à retórica
nacional:
O homem que [...] possui [...] o gênio da língua francesa, não foge, não
pode fugir às leis mesmas do pensamento daquela pátria espiritual, onde o
próprio ceticismo e a própria revolta como que guardam da harmonia de
suas tradições, pelo menos o aspecto exterior, como são exemplos um Saint-
Beuve, um Renan, um Rivarol, um Paul Louis Courier ou um Anatole.
Não bastasse a falsa correlação que abre o período – como
definir o “gênio da língua francesa”? E por qual motivo
quem o possui não pode fugir às imaginárias “leis do
pensamento” que a França supostamente detém? –, a
citação, num mesmo grupo, de Ernest Renan e Antoine de
Rivarol – o primeiro, reconhecido ateu, e o segundo, famoso
anti-revolucionário – demonstram, no mínimo, alguma
confusão.
No mesmo artigo, próximo do final, Jackson de Figueiredo
compõe uma sucessão de adjetivos inúteis, fechando o
trecho com nova generalização sobre o “espírito francês”:
Uma coisa, porém, é indiscutivelmente admirável na obra do ilustre crítico
suíço, e essa é a demonstração da superior humanidade do espírito
tradicional ou clássico, só completado, no Ocidente, pela magnitude do
Cristianismo, e de quanto esse espírito se identifica com o espírito francês.

Tal retórica dilui a força de uma idéia correta – a


importância do Cristianismo para a civilização. Reutilizada
em outro texto, transforma numa peça encomiástica,
simplesmente ilegível, o que poderia ser um estudo
provocativo sobre o padre Júlio Maria, defensor da doutrina
social de Leão XIII. Problema semelhante ocorre nesta
definição – mais vazia do que superficial – do “verdadeiro
poeta cristão”:
[...] Aquele em que realmente a poesia não é um acidente da sensibilidade,
mas um feliz resultado do contato de toda a totalidade humana, do eu, em
toda a sua complexidade, e o mundo.

Venerador do advérbio “máxime”, repetido de forma


cansativa, e de longas citações em francês, típicas do
eruditismo que até hoje nos assedia, Jackson de Figueiredo
não tem a vivacidade e a ironia do católico e anti-
republicano Carlos de Laet. [ 74 ] Seu texto enfada, como
nesta seqüência de elogios a Ronald de Carvalho:
[...] Tudo o mais já estava em “Luz Gloriosa”, como nos “Poemas e
Sonetos”: uma tranqüila exaltação diante de toda a beleza, assim do mundo
exterior como do interior, naquele, impressionando-te mais as cores vivas,
máxime o rubro e o amarelo, neste, que envolve aquele, uma certa cinza de
enfaro e desencanto, de que resulta que a tua obra se mantém sempre como
expressão da inquieta fortaleza de um mundo coroado de luzes e cores de
um crepúsculo matutino, que tanto evoca o heroísmo como a renúncia, que
tanto impele a amar a vida com ardor e entusiasmo, como a lastimá-la e, por
assim dizer, tangenciá-la nas asas da mais delicada mas, ao mesmo tempo,
da mais desoladora melancolia.

Debilidades
Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de
literatura: se acerta ao dizer que “mais larga que a
categoria do belo é a do bem”, erra ao proclamar a
“absoluta superioridade da obra de arte católica em relação
a qualquer outra obra de arte”, como afirma no texto
dedicado a Henri Massis.
De fato, tem razão quando salienta que “o artista é um ser
moral”, que “o produto da sua atividade tem de refletir a
ordem da sua consciência” e que a arte precisa ser julgada
inclusive sob o aspecto ético – exercício que a crítica
literária contemporânea pretende esquecer quando
desvincula a obra literária da vida real, como se fosse
apenas híbrido conjunto de signos, produto de geração
espontânea. Mas nenhum desses acertos garante ao
escritor católico qualquer tipo de superioridade estética. Na
verdade, Jackson de Figueiredo mostra-se contraditório,
pois, semanas antes de fazer esses comentários, escreve a
respeito do jesuíta Leonel Franca e denuncia a “formidável
afirmação de mau gosto” da literatura católica brasileira...
De qualquer forma, não viveu o suficiente para ler a crítica
de Flannery O’Connor – no ensaio “Os romancistas católicos
e seus leitores” ( Mistery and Manners; occasional prose ) [
75 ] – àqueles que, “extasiados com sua condição cristã,
esquecem sua natureza de escritor”. Flannery recorda a tais
autores a história do lobo de Gubbio: convencido por São
Francisco de Assis a se tornar um lobo bom, nem por isso
muda sua natureza e passa a andar sobre duas patas. Mas
Jackson de Figueiredo poderia ter lido o ensaio “The Morality
of the Profession of Letters”, [ 76 ] de Robert Louis
Stevenson, para quem “algo ruim pobremente executado é
algo ruim do princípio ao fim”, não importando a religião ou
a teoria estética que o escritor segue.
Encontramos superficialidade e contradições também nos
artigos dedicados a contestar Ronald de Carvalho, como se
nosso ensaísta experimentasse algum tipo de dissociação.
Em 30 de janeiro de 1924, numa resposta cheia de dedos ao
autor de Pequena História da Literatura Brasileira , afirma
não querer
provocar polêmicas com ninguém desse nosso (quero dizer: brasileiro)
inquieto campo de letras, do qual, por muitos motivos, como já te tenho dito,
me julgo afastado.

Logo a seguir, quase se desculpando pelas críticas frouxas


aos modernistas, repete a argumentação insípida:
É claro que tudo isso faço “de fora”, como de um campo para outro, isento
de paixão propriamente estética, sem fazer, portanto, concorrência a
nenhuma espécie de homem de letras, nem ao crítico literário, nem ao
poeta, nem ao ficcionista, em geral.
Sou pura e exclusivamente um católico, que aliás só atua pela pena, por
falta de outras capacidades mais positivas de homem de ação.

Contudo, dias depois, em 6 de fevereiro, ao escrever sobre


Perillo Gomes, parece ter esquecido a ladainha
inconvincente e a autodefinição algo melíflua, pois, ao
dissertar sobre a relação entre escritores e críticos literários,
assume claramente outra posição:
Note-se que quem está falando não pode ser suspeito aos nossos críticos,
em primeiro lugar, porque também já tem sido classificado entre eles, em
segundo lugar, porque algumas das suas mais sérias admirações, no meio
literário brasileiro, é por alguns dos nobres espíritos que, da minha geração e
da imediatamente anterior, se têm feito notáveis nessa lata missão
intelectual.
Por vezes, tem-se a impressão de que o combatente
despertará, como no final do artigo dedicado a Auguste
Viatte, em que tece observações a respeito dos futuristas –
“sereias de indisciplina e fuliginosas imaginações” –,
criticando o movimento estético que vem “ao Brasil cantar
de galo, como se não os houvera no terreiro...”. Mas Jackson
de Figueiredo não enfrenta o mais deslumbrado dos que
aderiam a tais idéias e prefere contemporizar: “Ninguém
nega a sinceridade nem o talento do Sr. Graça Aranha, que
aparece como chefe desses ‘envolvimentos’ futuristas”.
Em 2 de julho, no artigo “A lição de Paul Bureau”, parece,
por um momento, que finalmente abandonará o tom
impessoal, mas está acima de suas forças dar nome aos
bois:
E, ao contrário do que pensam muitos, julgo que chegou mesmo a hora em
que é necessário acabar, destruir, acabar de vez com umas certas
originalidades do nosso meio, que são piores que a pior imitação, e
redundam em incrível degradação da nossa vida social. Não se compreende,
realmente, que se arvorem em iracundos pedagogos, em duros mestres de
moral, em juízes de tudo quanto vive num dado meio, justamente os
indivíduos que nele nem se dão ao cuidado de fingir um certo amor à virtude
e algum horror ao vício. [...]

Sinceridade
Se lermos Jackson de Figueiredo com uma pinça, ainda é
possível colher seus acertos. Sua crítica ao romantismo –
“cuja característica é a exaltação, até quando essa
exaltação seja a da mais depressiva melancolia, o que é
fácil apreender do mais ou menos ridículo profetismo de
todos os chefes românticos” – permanece instigante. No
artigo “Problemas de educação nacional e de instrução
pública”, publicado em maio de 1924, arremete contra
inominados intelectuais, denunciando o que sempre foi e
continua a ser regra entre nós:
A coisa que já parece a mais natural deste mesmo mundo [...] é alçar o colo
à petulância de um gaguejador de alguns nomes difíceis, roubados à técnica
de um forjador de novidades pedagógicas, e com armas tão fracas atirar-se
em cheio contra verdades que têm resistido ao arrojo de homens mais
prudentes e mais entendidos do que falam. Não raro esses pobres espíritos
são incapazes de filiarem no sistema filosófico originário as meias idéias que
agitam e os agitam. Não raro são absolutamente ignorantes do que
representam na história do pensamento humano as idéias que neles se
fizeram preconceitos.

Descontados seus equívocos estéticos e políticos – estes


últimos o levaram, inclusive, segundo Wilson Martins, [ 77 ]
a trabalhar como chefe da censura no governo Artur
Bernardes –, Jackson de Figueiredo deixou ampla
correspondência, parte dela ainda inédita, cujo estudo pode
oferecer às novas gerações um perfil completo – distante,
em igual medida, do elogio desmesurado e da aversão
preconceituosa –, permitindo que surja o homem sincero,
que dizia só compreender plenamente o seu cristianismo
quando estava só.

[ 73 ] Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006.


[ 74 ] Ver, neste Esquecidos & superestimados , o Capítulo 11, “Salvo pela
ironia”.
[ 75 ] Seleção e edição de Sally e Robert Fitzgerald, Editora Farrar, Straus and
Giroux, 1969.
[ 76 ] Em The Art of Writing : http://classiclit.about.com/library/bl-
etexts/rlstevenson/bl-rlst-wri-2.htm.
[ 77 ] História da Inteligência Brasileira , volume VI (1915-1933), 2ª edição, T. A.
Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
Esquecidos & superestimados
Copyright © Rodrigo Gurgel
1ª edição – maio de 2014 – CEDET
Os direitos desta edição pertencem ao
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Gurgel, Rodrigo
Esquecidos e superestimados [recurso eletrônico]/ Rodrigo Gurgel – Campinas,
SP : Vide Editorial, 2014.
eISBN: 978-85-67394-25-1
1. Literatura Brasileira – Ensaios I. Rodrigo Gurgel II. Título
CDD – B869.45
Índice para Catálogo Sistemático
1. Literatura Brasileira – Ensaios – B869.45
Sobre o Autor

Crítico literário do jornal Rascunho , colaborador da Folha


de S. Paulo e colunista do site Mídia sem Máscara , Rodrigo
Gurgel é autor de Muita Retórica – Pouca Literatura (de
Alencar a Graça Aranha) , também publicado pela Vide
Editorial. Leitor crítico de editoras, agências literárias e
particulares, trabalha como coach literário, assessorando
escritores. Jurado do Prêmio Jabuti de 2009 a 2012, Gurgel
foi um dos dez vencedores do Concurso de Contos “Caderno
2”, do jornal O Estado de S. Paulo , em 2004.
Sobre a Obra

Permitam-me, caros leitores, fazer desta orelha não apenas


um texto de apresentação, mas um agradecimento sincērus
, genuíno, ao autor. Rodrigo Gurgel me fez voltar a ler crítica
literária em português brasileiro. Não é pouco.
Já havia reconhecido no seu Muita Retórica, Pouca
Literatura – de Alencar a Graça Aranha (Vide Editorial, 2012)
a ambição de escrever sobre literatura com a dose
adequada de paixão e rigor, de amor e conhecimento, da
necessária frieza e abertura para a descoberta (e
redescoberta) das preciosidades da literatura e crítica
literária brasileiras.
Ler os ensaios críticos de Rodrigo Gurgel é ser convidado
para um clube privado de conversação erudita e
estimulante; para um debate entre adultos que respeitam
mutuamente a inteligência e, num sentido mais amplo,
respeitam o próprio fato de canalizar adequadamente a
bênção, a maravilha e as virtudes de ser humano.
Neste Esquecidos & superestimados, Gurgel amplia a sua
ambição de, como ele mesmo afirmou ancorando-se em
Friedrich Schlegel, ser um leitor que rumina e que recusa
prazerosamente a tríade infernal apontada por Tzvetan
Todorov: formalismo, niilismo e solipsismo. Consegue sê-lo e
fazê-lo, para a nossa sorte.
Se há um elemento comum apontado por Gurgel nos
autores analisados nos 18 capítulos deste livro é o fato de
serem, positivamente, escritores de seu tempo, o que
significa dizer que são autores que refletem e trabalham
literariamente as virtudes e vicissitudes de sua época, e que
nos permitem não só conhecer e aprender com o passado,
mas compreender o legado benéfico e maléfico da
preservação e alteração de certos aspectos culturais,
considerando a cultura como o grande círculo dentro do
qual residem as dimensões literárias e políticas.
O doutor Samuel Johnson, ao falar sobre o grande John
Dryden, escreveu que “para julgar corretamente um autor,
devemos nos transportar para a sua época e investigar o
que eles esperavam de seus contemporâneos e quais eram
os instrumentos que utilizavam para criticá-los”. Gurgel o
faz, mas também tentando, como Edmund Wilson em O
Castelo de Axel , rastrear as origens de certas tendências
da literatura do passado – não apenas a da contemporânea
– para mostrar o seu desenvolvimento e legado, literário e
crítico, na literatura brasileira.
Graças à inteligência e ao trabalho de Gurgel, temos aqui,
pelas mãos da competente Vide Editorial , o segundo livro
desse intelectual que honra o legado e certa tradição
highbrow da crítica literária brasileira representada por
críticos como Álvaro Lins. Que vocês tenham o mesmo
prazer e aprendizado que eu tive, e que se orgulhem
também de o autor escrever de forma correta, aguçada e
bela no nosso tão vilipendiado idioma pátrio.
— Bruno Garschagen

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