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ESQUECIDOS
&
SUPERESTIMADOS
Capa
Folha de Rosto
Prefácio – Literatura e verdade
Epígrafe
Apresentação
Capítulo 1 – À espera de justiça
Figuras complexas
Diálogos e descrições
Problemas
Capítulo 2 – Escondido e desprezado
Teoria do engrossamento
Linguagem e primitivismo
Fantasmas
Resposta ao enigma
Capítulo 3 – Combate interminável
Misterioso defunto
“Celeiro agreste”
Síntese e ampliação
Vencer e não vencer
Capítulo 4 – Perseguido, mas brilhante
Ilusória liberdade
Torpezas e amor
Diálogos e oratória
Desafio à história
Excelência
Capítulo 5 – Perfumaria bilaquiana
Clichês e elogios
Hipérboles
Ritmo ternário
Pequenos escritores
Tédio
Capítulo 6 – A salvação pelo duplo
Contar ou mostrar
Artimanhas e personagens
Doppelgänger
Luta
Capítulo 7 – Retorno à querência
Alegoria e epizeuxe
Anáfora e humor
O narrador ideal
Capítulo 8 – Manual de literatice
Extravagâncias
Verborragia
Naturalismo
Pedido de desculpas
Capítulo 9 – Salvo da banalidade
Destemor e covardia
Linguagem
Apuro
Língua portuguesa
Capítulo 10 – Canalhice e afetação
Difamadores
Falsa elegância
“Espuma inconsistente”
Capítulo 11 – Salvo pela ironia
Ouro falso
Acidez
Capítulo 12 – Ideologia e azedume
Homem estéril
Morte e vida
Condenação
Naturalismo
Capítulo 13 – Psicopatia e racismo
Crítica involuntária
Miscigenação e decadência
Descrições
Diálogos e cantilena
Narciso e Don Juan
Capítulo 14 – Injustamente esquecido
Fisgar o leitor
O traçado
Desenlaces
Tempo e consciência
Capítulo 15 – Corrosivo e sempre contemporâneo
Audácia editorial
Sem artificialismos
Riso e desprezo
Retrato do Brasil
Literatura e demonologia
Fracos e fortes
Desequilíbrio
Gótico
Sarcasmo
Sintaxe e humor
Pré-modernista?
Capítulo 16 – O filho tardio de Alencar
Filas de adjetivos
Idealização e melodrama
Linguajar e esquematismo
Lacunas e romantismo
Bom humor e Iracema
Estilo bombástico
Dois gaúchos
Capítulo 17 – Sobriedade e sutileza
Papéis invertidos
Metáfora
Capítulo 18 – Equívocos e retórica
Escolhas repreensíveis
Debilidades
Sinceridade
Créditos
Sobre o Autor
Sobre a Obra
PREFÁCIO
Literatura e verdade
À espera de justiça
– Júlia Lopes de Almeida e A falência
Problemas
A falência , contudo, apresenta alguns traços naturalistas e
muitas vezes resvala para um romantismo sentimentalóide
– a pior escolha talvez seja comparar os olhos de Camila a
“duas nascentes de agonia, choravam sem cessar”.
Mas há outros elementos que destoam do conjunto. Em
certos trechos, o tema do feminismo se desvincula da
narração, ganha vida própria, e torna-se mero discurso
panfletário. Em outros, o narrador exagera no cromatismo e
acaba por criar pinturas de mau gosto:
Ao longe, a Serra dos Órgãos desenhava no céu os seus contornos de um
azul de ardósia. Para os lados da barra havia montes de prata fosca em que o
sol, cintilando nas pedras, escorria laivos de prata polida, e rochedos cor de
violeta espelhavam-se nágua; entre montanhas de um verdor intensíssimo.
Escondido e desprezado
– Emanuel Guimarães e A todo transe!...
Combate interminável
– Euclides da Cunha e Os Sertões
Síntese e ampliação
Os Sertões também está polvilhado de personagens que,
apesar de serem reais, ganham contornos próximos do
fantástico. Na terceira parte do livro, “A Luta”, encontramos
o coronel Moreira César, cuja “legenda de bravura” Euclides
desmonta com perfeita ironia, primeiro inserindo-o no
quadro maior da história do país, cuja “sentimentalidade
suspeita” está – até hoje – pronta a criar “heróis de quarto
de hora destinados à suprema consagração de uma placa à
esquina das ruas”. Tão lunático quanto Antônio Conselheiro,
Moreira César, servil à pior face do ditador Floriano Peixoto,
é apresentado como criminoso contumaz, responsável,
durante a Revolução Federalista, por um dos mais
sangrentos episódios, no qual ordenou prisões e
fuzilamentos sumários. Não por outro motivo o coronel é
escolhido para comandar a primeira tentativa séria de
debelar Canudos:
Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades.
Despontavam, efêmeras, individualidades singulares; e entre elas o coronel
César destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu passado
salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos.
Excelência
Desconheço se as escolhas estéticas de Coelho Neto foram
conscientes, mas sua obra nos afirma que ele recusou
seguir a via aberta por Machado de Assis com Memórias
póstumas de Brás Cubas , publicado em 1880, mais de duas
décadas antes do romance que aqui analisamos – e nem por
isso deixou de escrever “uma obra-prima indiscutível”,
como Wilson Martins [ 35 ] classifica, acertadamente,
Turbilhão .
Entre minhas certezas, só posso repetir o que o poetastro
Aurélio afirma no Capítulo 14 de Turbilhão , vociferando,
exaltado, em favor da “Arte Nova” que estaria a caminho,
“sonora e rica, luminosa e forte”, anunciando ter ele mesmo
no fundo da gaveta “dois poemas e um romance [...] cuja
tese era a emancipação da mulher, com um surdo protesto
contra o celibato clerical”. Por meio de Aurélio, Coelho Neto
ironiza o futuro, sem saber que tal predição se realizaria da
pior forma: numa tentativa de estraçalhar sua obra. Mas,
apesar das conseqüências nada desprezíveis,
comemoremos: o futuro não se realizou plenamente.
Perfumaria bilaquiana
– Olavo Bilac e suas crônicas
Ritmo ternário
A fraseologia bilaquiana guarda outra particularidade
maçante: a tríade de palavras encadeadas – esquemática
forma de acumulação. Certo jornalista é “o mais completo, o
mais brilhante e o mais popular”. Depois de ir aos
cinematógrafos, o autor se diz “derreado, tonto, moído”; e
afirma, sem perceber a importuna cacofonia, que seu
acompanhante “olhava, mirava, admirava, embevecido,
deliciado, enlevado”. O texto ganha ritmo de modinhas e o
leitor segue um bando de crianças, “lenta e ruidosa maré de
frescura, de mocidade, de animação”. Surge, de repente, o
perfil gerenciador de Bilac: “Administrar não é somente
gerir: é também, e principalmente, assistir, acudir, prover”.
Falando sobre a Revolta da Vacina, o cronista se transforma
num militante ecológico: “[...] a alcatéia arrancara, torcera,
espezinhara, destruíra todas as pobres árvores pequenas,
que, ainda fracas e humildes, dentro de suas frágeis grades
de ferro, só pediam, para crescer e dar sombra, um pouco
de sol ao céu, um pouco de umidade à terra e um pouco de
carinho aos homens”. O povo brasileiro, eis a irretorquível
certeza do cronista, “tem uma inteligência nativa,
exuberante, pronta”. E o ecologista retorna, agora para
somar obviedade ao discurso monótono: “Aves e borboletas
são felizes: em tendo um pedaço de céu azul, um bocado de
jardim verde, um raio tépido de sol, não pedem mais nada”.
Aferrado à receita medíocre, Bilac não descansa: “que vida
agoniada, inquieta, sobressaltada” exclama, nesse estilo
saltitante, referindo-se a Carlos Gomes; e conclui, decidido
a romper drasticamente o ritmo da frase, mas preservando
as rimas: “[...] numa perpétua luta com os editores, com os
empresários, com os cantores, e com os credores!”.
Em certa crônica, Bilac reclama, de forma surpreendente,
da “retórica que se encarrega de estragar tudo”.
Concluímos, então, que ele de fato não tinha consciência da
própria inabilidade.
Pequenos escritores
Canhestro no estilo, às vezes o cronista oferece
informações jocosas. Sua visão do sistema literário em
1905, por exemplo, repete-se, sem grandes modificações,
atualmente. Para ele, o Rio de Janeiro era
a capital de uma nação que, sobre todas as outras do continente, sempre
teve a primazia em cousas da Inteligência. [...] É ela que possui a literatura
mais vibrante, mais original, e mais forte.
Retorno à querência
– Simões Lopes Neto e Lendas do Sul
O narrador ideal
“A Mboitatá”, contudo, é a narrativa mais admirável.
Simões Lopes Neto conseguiu criar um exemplo perfeito de
sintetismo, construindo-o por meio de elementos que, de
forma reiterada, transportam-nos ao universo mítico. Numa
cosmologia primitiva, a longa noite está instaurada – e o
que veio antes dela permanecerá incógnito. O homem,
anulado diante do cosmo que se desorganizou, encontra-se
no anti-gênesis. Estamos in illo tempore : um passado
indefinido, em meio ao caos. A desordem absoluta, que
enche de pavor homens e animais, favorece o surgimento
do prodígio maléfico: a serpente que devora olhos.
O narrador assume o papel de quem detém uma verdade
ancestral. Há austeridade no narrar. E ele não permite
dúvidas ao dizer que “os homens viveram abichornados, na
tristeza dura”, usando o verbo no pretérito perfeito, de
maneira a salientar, semelhante a uma testemunha, os
fatos que se desenrolaram num tempo indeterminado.
Vejam com que habilidade o narrador rejeita, no início de
diferentes trechos, partes do seu próprio testemunho –
“Minto”, ele diz –, de maneira a intensificar a dramaticidade
do relato e inserir novos elementos, que desequilibram as
poucas certezas do leitor: por exemplo, na Parte II, o canto
do pássaro que “agüenta a esperança dos homens” – bela
figura, construída graças à acepção inusual do verbo.
A reflexão moral da Parte IV pausa a narrativa e enfatiza
seu caráter universal, destruindo a possibilidade de os
leitores reduzirem o impacto da mensagem ao microcosmo
rio-grandense. E, logo a seguir, ao retomar a linha mestra
do relato, o discurso se hiperboliza, a fim de materializar
ainda mais a cobra-grande e sua fome descomunal. Na
Parte VI, o “vai” anafórico cria o continuum , trecho síntese
que faz nascer a cobra, “uma luzerna, um clarão sem
chamas, [...] um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e
fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda
estavam vivos...”. Encontramo-nos, assim, em plena
“persuasão da continuidade”, para recordar a feliz
expressão de Northrop Frye.
A morte do ser mítico não diminui a intensidade do relato.
Ao contrário, é a conseqüência esperada, pois não há outro
destino possível a quem se alimenta do que está morto,
ainda que lhe reste alguma frágil luz. O sol renasce, então,
tímido, e lentamente a natureza recupera sua ordem. Mas a
luz da boitatá permanece como fantasmagoria ou malefício.
No entanto, aquilo que ainda causa medo serve também à
coragem:
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com
ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos
fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a
cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lha em cima,
e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo
numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se
de novo, com vagar, na aragem que ajuda.
Manual de literatice
– Antônio Sales e Aves de arribação
Pedido de desculpas
Nada se sustenta nesse livro. Devemos, portanto, à
conterraneidade ou a algum tipo especial de febre os
elogios que Rachel de Queiroz fez ao romance. Quanto a
Tristão de Athayde, ao festejar a reedição da obra, em 1929,
soube escrever um desses textos, tão comuns ainda hoje,
em que a falsa cordialidade brasileira sobrepuja a
necessária independência da crítica. Resta a Wilson Martins
o papel de única voz lúcida, por ter salientado o caráter
menor livro – “quanto ao estilo romanesco e à técnica
narrativa” – e o fato de Antônio Sales “não ter sabido
escrever o romance que soubera imaginar”.
Na verdade, o próprio autor tinha consciência de sua
imperícia. Publicado na forma de folhetim, no jornal Correio
da Manhã , do Rio de Janeiro, em 1902, Aves de arribação
ganhou o formato de livro em 1913, com uma “Nota ao
Leitor” algo melancólica:
Escrevi há muitos anos esta novela [...].
Desde então nunca mais a reli senão agora quando, animado por alguns
amigos, resolvi editá-la em volume.
Desta leitura verifiquei que muita coisa teria nela a modificar; mas preferi
deixar que apareça tal como saiu no jornal, salvo ligeiras correções.
A crítica encontrará, por certo, neste trabalho, muitas falhas e
inexperiências, que já são sensíveis para mim agora [...].
Salvo da banalidade
– Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas
Língua portuguesa
Encontram-se, claro, problemas no livro. Mas um conto
péssimo, “A bruxa dos marinhos” – de que se salva apenas o
diálogo final –, as irregularidades de “Nostalgias” –
principalmente o último parágrafo, de excessiva
adjetivação, preso ao desgastado tema do contraste entre
campo e cidade –, as longas e desnecessárias digressões de
“Gente da gleba” – que só confirmam a vocação do autor
para a narrativa curta – e a insipidez de “A madre de ouro”
não diminuem o vigor de Tropas e boiadas , não maculam
os trechos que assomam como inesperadas descobertas.
Saborosas expressões locais podem iluminar certas
passagens: “– Homem, a modo que já vão andando... Ah,
meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol
com a mão!...” ou “– Qual, isso é ainda efeito da beijoca que
dei ali atrás ao frasco de cachaça [...]”. A breve frase
consegue recriar um galope: “Engolimos num trago aquele
chão”. A correta inserção de um detalhe concede nova
perspectiva à cena: o fim iminente da festa, em “Mágoa de
vaqueiro”, é anunciado, no primeiro parágrafo, pela mesa
em que se encontram os “sobejos da ceia – frascos de licor
e o doce de buriti esparramando-se na toalha besuntada
[...]”; no conto “Gente da gleba”, “as botas esturradas de
mormaço ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo à
cozinha” revelam o vaqueiro que, apesar de livre para
entrar na casa-grande, baralha no seu íntimo dedicação e
subserviência. E não poderia faltar o perfeito sentido do riso
e da ironia, presente no conto “O Saci”.
A última narrativa, “Dias de chuva”, surge plena de
saudosismo. Não chega a ser um conto, mas destila
linguagem extraordinária, às vezes lírica: “A chuvarada
continuava aberta, naquele seu grande choro de
desconforto, ensopando os campos”. Aqui, estamos muito
além do que Wilson Martins chamou, ao se referir a Tropas e
boiadas , de “implicações apotegmáticas”. [ 45 ] O que
temos diante de nós é a língua portuguesa em seus
momentos límpidos. Inculta, talvez – e também por isso
capaz de produzir coisas belas.
[ 44 ] Capítulo 18 de Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça
Aranha) .
[ 45 ] História da Inteligência Brasileira , volume VI (1915-1933), 2ª edição, T. A.
Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 10
Canalhice e afetação
– João do Rio e
A correspondência de uma estação de cura
Ideologia e azedume
– Lima Barreto e
Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá
Psicopatia e racismo
– Afrânio Peixoto e Fruta do mato
Injustamente esquecido
– Valdomiro Silveira e Os caboclos
O traçado
Esses começos, capazes de prender nossa atenção,
anunciam outra das qualidades de Valdomiro Silveira: a de
criar narradores que se expressam com desembaraço,
colocando o leitor diante da cena viva, nítida. Como em “Por
mexericos”:
O Fernando, enlevado no trabalho, não viu quando lhe chegou à porta o
Chico Ferro: corria a plaina por um toro de peroba e, rasgando fitas e fitas
cor-de-rosa, punha gosto em ver que se enrolavam como uma trança
desfeita, pendiam para a banda e caíam no chão, entre os sarrafos e a
serragem [...].
Desenlaces
Valdomiro Silveira tinha a exata noção de como os finais
podem ser impactantes num conto, sejam eles o desfecho
clássico que Edgar Allan Poe advogava, com sua tese de
que o dénouement deve ser escrito antes de tudo, [ 60 ] ou
apresentem a perturbadora sensação de permanência – e
muitas vezes de irresolução – da narrativa tchekhoviana.
Em “Por mexericos”, Nhô Fernando, interrompido no
trabalho, ouve as reclamações de Chico Ferro com aparente
paciência – até correr o falastrão de sua oficina,
confirmando o velho ditado: “Cão que ladra não morde”. A
história do topetudo que se acovarda retorna no conto
“Valentia”, mais cômico, com Ana Triste – “pixaim repuxado
para as orelhas, à força de pente, remexido em caracóis e
todo besuntado de banha com essência de rosa” –
enfrentando o brigão Imbuava. No conto “Missa da Páscoa”,
a alegria antecipada, os cuidados da vaidade, os sonhos do
amor correspondido – maiores do que os da paixão
impossível – são destruídos de repente, restando apenas o
vazio num final em que a protagonista sequer tem a chance
de reagir. “Pinhã refugada” termina com o golpe de
insolência e desprezo sobre a prostituta que começa a
envelhecer, mas cuja inabalável dignidade se revela, em
meio a soluços, na última frase. Em “Desespero de amor”, a
confirmação do adultério é anunciada de forma sutil mas
inquestionável, também por meio de breve sentença.
Mas os causos de Valdomiro Silveira podem terminar sem
surpresa, ratificando a expectativa do leitor, que se vê,
contudo, cingido por uma nota lírica ou comovente: em
“Cena de Amor”, Chico Luís e Candoca, ambos feios, se
apaixonam, mas o gesto involuntário do final, da mão que
toca a trança da mulher – trança, aliás, sutilmente
anunciada parágrafos antes –, sintetiza a narrativa; o fecho
de “Hora quieta” chega a ser pueril, mas, graças à
espirituosa exclamação da jovem apaixonada, o leitor é
transferido a delicioso universo, no qual não há espaço para
angústias ou dúvidas existenciais – sentimento que se
repete em “Salvação”, por meio do saudosismo feliz do
velho e bom Albino. Em “Mamãe”, ao contrário, a dor
materna, subitamente revelada, expõe ao filho doente a
dimensão do seu próprio drama. De nada adianta a
Chiquinha Sabiá, protagonista do “Faiscador de Carumbé”,
sua devoção ao galanteador Zé Saúva; previsto, o desgosto
permite-lhe apenas aflitiva reação: “Agora (ela gaguejou um
tempinho), agora (e pôs-se a tremer os lábios), agora (e
desatou a chorar), agora só morrendo!”. O choro convulso e
o arrependimento dominam Lainha, em “Constância”,
quando esta percebe, tarde demais, que não fora fiel ao
próprio coração.
Tempo e consciência
O talento desse contista pode se revelar, ainda, na
composição dos diálogos. Em “Saudades do Natal”, as
memórias de Valério e Doninha se alternam – uma
verbalizada pelo apaixonado, outra, puro assentimento,
desfiando-se nas lembranças da silenciosa ouvinte.
Compõe-se, assim, o dueto no qual o amor, sobressaindo da
festa familiar, realimenta-se em emocionado continuum .
A fim de marcar o progresso da morféia, o tempo ganha
relevância em “Camunhengue”, mas avança segundo os
ciclos da natureza: ainda cai “uma neblina muito fria,
embora fosse tempo de milho verde”, quando Zeca Estevo
sai em busca do curandeiro; ao chegar “o tempo das águas,
com uma ventania nunca vista e um poder de tempestade
todo santo dia”, a esposa já se recusa a dormir com ele na
mesma cama; na estiagem, numa manhã de dezembro,
Zeca parte definitivamente, rejeitado por todos.
Narrativa concisa, “Cena de amor” revela, sob a trama em
que alguns encontraram apenas ingenuidade, a plena
abertura de Nhá Candoca à vida – apesar da feiúra, esta
mulher não se permite a mínima autocomiseração.
Semelhante força moral está presente em “Na tapera de
Nhô Tido”: Chico Pica-pau, o protagonista, passa da
inquietação e do desejo de vingança ao estupor que lhe
permite reencontrar o sentido da própria consciência.
Não há banalidade, portanto, em Valdomiro Silveira.
Abandonado por certos críticos num limbo nada honroso,
ele merece leitura atenta – inclusive para lembrarmos que a
literatura não deve espelhar apenas derrotismo, misantropia
e tédio.
Sobriedade e sutileza
– Amadeu Amaral e A pulseira de ferro
Metáfora
Esses comentários, no Capítulo X , representam apenas um
dos inúmeros trechos que contribuem para transformar
Veloso no personagem central da narrativa. Página a
página, o narrador torce com habilidade a trama, passa a
segundo plano o vigário, utiliza as calúnias sofridas pelo
padre para provocar no advogado a recordação pungente
do próprio passado – e Veloso, por sua personalidade
diligente e solícita, seu poder de análise, assume o
protagonismo da história.
O núcleo dessa mutação encontra-se no Capítulo IX , no
qual o advogado relata ao padre, para que lhe sirva de
exemplo, a história do ferreiro Manuel da Costa, morador de
Candeias, durante longos cinco anos dedicado a moldar, nas
horas de lazer, a delicada “pulseira de ferro”, presente que
dará a Raquel, sua jovem filha, por quem Veloso, já homem
maduro, se apaixona. A família, contudo, é destruída pelas
intrigas da população – e Veloso partilha da violência das
calúnias, responsáveis inclusive pelo suicídio de Raquel.
Essa experiência anterior é o drama que permite ao
advogado ironizar a indignação do padre, correta, sem
dúvida, mas desproporcional.
Pouco antes, depois de salientar que o vigário vive apenas
a “estréia de caluniado”, Veloso expusera, num diálogo
central, no Capítulo VIII , sua teoria sobre como a índole
violenta do homem depurou-se até se transformar em
difamação:
[...] O bruto ganhou em peçonha, em perversidade recolhida e fedorenta o
que perdeu em brutalidade esbarrondante e sadia: já não assalta nem
esquarteja o inimigo, amargura-lhe, comodamente, a existência; envenena-
lhe os prazeres, se os têm; agrava-lhe as dores e as melancolias, que as têm
pela certa; põe-lhe um sabor de lama na água que ele bebe, um cheiro
excrementício nos perfumes que ele respira; entra-lhe pelo corpo com o pão
que ele come, tornando-lho duro e dissaborido; precipita-se-lhe na torrente
do sangue, e queima-o em febre; fustiga-lhe as fibras recônditas dos nervos,
e chama-se insônia; põe-lhe nos olhos as lágrimas que ele deve estilar em
silêncio, às escondidas, e é então a amargura que mata. E ninguém escapa!
ninguém! [...]
Equívocos e retórica
– Jackson de Figueiredo e Literatura reacionária
Debilidades
Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de
literatura: se acerta ao dizer que “mais larga que a
categoria do belo é a do bem”, erra ao proclamar a
“absoluta superioridade da obra de arte católica em relação
a qualquer outra obra de arte”, como afirma no texto
dedicado a Henri Massis.
De fato, tem razão quando salienta que “o artista é um ser
moral”, que “o produto da sua atividade tem de refletir a
ordem da sua consciência” e que a arte precisa ser julgada
inclusive sob o aspecto ético – exercício que a crítica
literária contemporânea pretende esquecer quando
desvincula a obra literária da vida real, como se fosse
apenas híbrido conjunto de signos, produto de geração
espontânea. Mas nenhum desses acertos garante ao
escritor católico qualquer tipo de superioridade estética. Na
verdade, Jackson de Figueiredo mostra-se contraditório,
pois, semanas antes de fazer esses comentários, escreve a
respeito do jesuíta Leonel Franca e denuncia a “formidável
afirmação de mau gosto” da literatura católica brasileira...
De qualquer forma, não viveu o suficiente para ler a crítica
de Flannery O’Connor – no ensaio “Os romancistas católicos
e seus leitores” ( Mistery and Manners; occasional prose ) [
75 ] – àqueles que, “extasiados com sua condição cristã,
esquecem sua natureza de escritor”. Flannery recorda a tais
autores a história do lobo de Gubbio: convencido por São
Francisco de Assis a se tornar um lobo bom, nem por isso
muda sua natureza e passa a andar sobre duas patas. Mas
Jackson de Figueiredo poderia ter lido o ensaio “The Morality
of the Profession of Letters”, [ 76 ] de Robert Louis
Stevenson, para quem “algo ruim pobremente executado é
algo ruim do princípio ao fim”, não importando a religião ou
a teoria estética que o escritor segue.
Encontramos superficialidade e contradições também nos
artigos dedicados a contestar Ronald de Carvalho, como se
nosso ensaísta experimentasse algum tipo de dissociação.
Em 30 de janeiro de 1924, numa resposta cheia de dedos ao
autor de Pequena História da Literatura Brasileira , afirma
não querer
provocar polêmicas com ninguém desse nosso (quero dizer: brasileiro)
inquieto campo de letras, do qual, por muitos motivos, como já te tenho dito,
me julgo afastado.
Sinceridade
Se lermos Jackson de Figueiredo com uma pinça, ainda é
possível colher seus acertos. Sua crítica ao romantismo –
“cuja característica é a exaltação, até quando essa
exaltação seja a da mais depressiva melancolia, o que é
fácil apreender do mais ou menos ridículo profetismo de
todos os chefes românticos” – permanece instigante. No
artigo “Problemas de educação nacional e de instrução
pública”, publicado em maio de 1924, arremete contra
inominados intelectuais, denunciando o que sempre foi e
continua a ser regra entre nós:
A coisa que já parece a mais natural deste mesmo mundo [...] é alçar o colo
à petulância de um gaguejador de alguns nomes difíceis, roubados à técnica
de um forjador de novidades pedagógicas, e com armas tão fracas atirar-se
em cheio contra verdades que têm resistido ao arrojo de homens mais
prudentes e mais entendidos do que falam. Não raro esses pobres espíritos
são incapazes de filiarem no sistema filosófico originário as meias idéias que
agitam e os agitam. Não raro são absolutamente ignorantes do que
representam na história do pensamento humano as idéias que neles se
fizeram preconceitos.