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O espanto de Clarice Lispector

Tiago Amorim

Na sala de estar de uma casa comum de classe média, dois meninos brincam com
seus carrinhos de madeira. Eles simulam acidentes, fazem sons de buzina com a boca,
esfregam as pequenas rodas dos brinquedos sobre o tapete bege, que se estende do sofá de
três lugares até o móvel onde fica o rádio da família - a esta hora da manhã, desligado. Dentro
da fantasia inflamada, talvez não se apercebam nem do chiado vindo da cozinha, onde os
feijões estão quase cozidos para o almoço, nem do outro ruído que atravessa a mesma sala:
uma toada constante, ritmada e forte, saída da máquina de escrever que sua mãe tem sobre
o colo. Esta bela mulher, a quem ignoram momentaneamente, trabalha; ouve os agudos da
panela posta sobre o fogo, os uivos dos filhos em devaneio de aventura, o ataque dos
próprios dedos, longos e finos, contra as teclas de metal à sua frente, compondo a sua felicidade
clandestina1 ou uma crônica para o jornal do dia seguinte. É provável que, diferente de Virgínia,
raramente tenha um teto todo seu, apenas seu. Mas é escritora, e seu nome é Clarice.

Porém, não se engane o leitor: a cena acima descrita envolve de normalidade uma
trajetória que, vista mais de perto, bem perto do coração selvagem2 dessa mulher que escreve, é
uma espécie de epifania, paradoxal por acontecer em situações tão vulgares e, ao mesmo
tempo, estranhas à maioria de nós. Não que eu e você não possamos ver os filhos brincando
na sala, ou cozinhar feijões na panela de pressão: o que talvez nos falte seja o espanto diante
do que é “comum”, um olhar reverente para a vida que nos cerca, e que permite que a obra
de Clarice Lispector seja um monumento estranho bem no centro do que nos parece tão
familiar.

Porque uma das maiores escritoras brasileiras do século XX é pessoalmente marcada


pelas circunstâncias do estranhamento. O nascimento na Ucrânia, em 1920, a fuga ainda
pequena com a família para o Brasil, logo em seguida. A infância e adolescência muito pobres
no Nordeste; a morte da mãe; a mudança para o Rio de Janeiro, onde ingressou no curso de
Direito, tornou-se jornalista, casou-se com um diplomata. Os vários países por onde passou,
durante quase vinte anos, acompanhando o marido, sendo boa esposa, cuidando dos filhos.

1
Felicidade Clandestina, título de um conto e de uma de suas coletâneas.
2
Perto do coração selvagem, seu primeiro romance, publicado em 1943.
E escrevendo: em língua portuguesa, tomada como sua, feita, como Fernando Pessoa, a sua
pátria. Não é exagero dizer que Clarice foi uma estrangeira ao longo da vida, e que esta mesma
condição – de uma ucraniana judia longe de sua terra-natal -, foi sua possibilidade para um
olhar inaugural sobre as coisas.

Ler os contos, romances e crônicas de Clarice Lispector é ser posto diante de algo
incomum: muitas de suas histórias não são histórias, como se pode dizer dos clássicos com
começo, meio e fim. Fogem aos padrões literários, desrespeitam a linearidade com a qual os
leitores estão acostumados. Isto gera um efeito naquele que se interessa pelos seus textos:
torna-o um estrangeiro diante da vida, muitas vezes da própria vida comezinha que, em
princípio, conhece tanto. É assim com um ovo de galinha, tema de um conto inteiro de
Clarice; ou com os laços de família e como eles enredam suas partes, mães e filhas, genros e
sogros. Em Clarice, o aparentemente ordinário serve ao mergulho no mistério.

Daí que seus leitores se dividam entre fascinados e distantes. Há os que a consideram
uma “bruxa”, sedutora, intrigante porque, apesar da escrita simples e sem rodeios, tange as
realidades cotidianas e pessoais com mãos de mágica, capaz de desvelar (ou impingir?)
sentidos ocultos ao que soa previsível às gentes. E há os que a rechaçam pelos mesmos
motivos: porque lhe falta proximidade, familiaridade, a normalidade de outros autores. Isto
tudo é o mesmo que afirmar que, diante de seus escritos, nenhum leitor passa incólume.

Minha experiência como seu leitor também fica entre o encanto e a desconfiança.
Algumas vezes rejeito o que ela me aponta, não compactuo de suas percepções sobre a vida
humana – um tanto melancólica no mais das vezes. Outras, me conforto da sua poesia sobre
o comum, seu modo único de dizer, por exemplo, “estou procurando, estou procurando. Estou
tentando entender”3. Como escritor, não posso deixar de reconhecer a beleza de suas palavras,
tal como as encandeia, numa gramática própria, experimentada, arrancando da linguagem as
possibilidades para representar o que se oculta na trivialidade, nos personagens medianos,
nas insuspeitas pontes entre o mundo humano e o coração divino, tal como suporia seu
judaísmo místico.

Um pouco dessa “gramática da criação” de Clarice está ao alcance do público de


língua inglesa. Muito pelo trabalho de Benjamin Moser, autor de uma biografia (Why this
world4, 2009), e responsável por traduções e divulgações da obra da grande escritora brasileira,

3
Frase inaugural do romance “A paixão segundo G.H”.
4
Why this word: a biography of Clarice Lispector, Oxford University Press.
um leitor de Wisconsin ou Connecticut pode também ter a sua própria experiência com o
mundo de Clarice Lispector e, se for um fascinado, integrar a sua Legião Estrangeira5.

Deste lado do hemisfério, nós brasileiros ficamos felizes com a recepção dos seus
livros em outros territórios, as suas histórias contadas em outras línguas. Talvez esse milagroso
acontecimento auxilie naquilo que alguns de nós têm tentado, a muito custo, realizar: algo
como uma nova epifania do que somos, mesmo que nascida sob os mais diferentes
escombros. Talvez, ainda, isso permita que os outros olhem para nós e não vejam apenas
uma sala, ou crianças, ou uma máquina de escrever.

5
“A legião estrangeira”, coletânea de contos publicada em 1964.

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