Você está na página 1de 25

 

QUEM  É  GURDJIEFF?

por   Olavo  de  Carvalho

  O  diabo  também  tem os  seus


contemplativos,  como  Deus  tem os  d ' E l e .

THE   L O U D  OF  UNKNOWING

  N o  esoterismo islâm ico, diz-se


que   aquele  que se  apresenta  a uma c e r t a
1
' p o r t a ,  sem ter chegado a ela por uma
via   normal  e  legítima,  vê  essa  porta
fechar-se   diante  dele  e  obrigado   a
v o l t a r  para  t r á s ,  não,  e n t r e t a n t o ,  como
um  s i m p l e s  profano,  o que é  doravante
impôss fvê l, mas como  sãher  (  f e i t i c e i r o
ou   mágico  que  opera  no  domínio  das
p o s s i b i l i d a d e s   s u t i s d e ordem  i n f e r i o r  .
O  último  grau  de  h i e r a r q u i a  ' c o n t r a -
1
- i n i c i á t i c a   ê  ocupado pelos  chamados
1
'santos   de S a t i   (  a w l T y a  esh-Shaytán  ),
que são de  c e r t o  modo  o  inverso  dos
verdadei   ro s  santos  (  a w l T y a  er-Rahmin  ,
e que manifestam   também  a expressão
mais   completa  possível  da  ' e s p i r i t u a l i d a d e
as   a v e s s a s

RENÊ GUÊNON
 

Raramente al gué m menciona Gurdjieff   sem acrescentar,

l e v a n t a n d o  as sobrancelhas, que se   trata de uma   f i g u r a

"misteriosa",  "polêmica", e outras coisas do gênero.

Para  nós ele não é nada disso.  Quem  quer que  tenha

t i d o  a oportunidade de acesso aos ensinamentos  e s p i r i t u a i s

das  tradições reveladas  (1) não encontra a  menor   d i f i c u l d a d e

em  i d e n t i f i c á - l o  como   a q u i l o  que ele  verdadeiramente   é.

A  atmosfera  de   m i s t é r i o  em  torno do seu nome é  'apenas

fruto da   i g n o r â n c i a embora  nem  sempre  se  trate de  i g n o r â n c i a

n a t u r a l  e  i n a t a e sim de   i g n o r â n c i a   a r t i f i c i a l  e propositada-

mente fomentada pelos interessados na manutenção do mi st ér io .

A  "doutrina"

G u r d j i e f f   passou  por   m u i t a s  escolas esotéricas,

umas  autênticas,  outras degene radas, sem permanecer em

nenhuma delas por tempo sufic iente para alcançar qual quer

resultado  e s p i r i t u a l  apreciável   (  como  di z  Bayazfd  a l - B i s t ã m i

quem começa  a  a b r i r   um poço   a q u i depois outro  a l i não encontra

nada, ao passo que aq ue le que cava co nti nua ment e na mesma

d i r e ç ã o acaba por encontrar água abundante ).


 

No entanto, ele não   estasra  realmente interessado

em  resultados   e s p i r i t u a i s C dos q uais alguém  como ele está

— e  sabe  que está --  excluído ji  p r i o r i   e   i r r e m e d i a v e l m e n t e ),

e  l i m i t o u - s e  a  colher,  de   cada uma, certo número   de   técnicas

e  palav ras-c have , referentes   aos  aspectos mai s periféri cos

e vistosos da d ou tr in a, para com eles compor um amálga ma

denso,  opaco e obsauro, que veio a ser  conhecido como a

"doutrina Gurdjieff". (2) Ela é  constituída,  no  exterior,

de  algumas iscas para atrair  os  curiosos   e descontentes, e,

no  i n t e r i o r de uma série de camadas c oncêntricas de eni gma s

e charadas progressivamente   i n d e s l i n d ã v e i s até  chegar ã

escuridão total. Tais enigmas  são construídos  com  elementos

—   simbólicos, doutrinais  e   r i t u a i s  —   extraídos  d as

tradições  e s p i r i t u a i s   auten ticas, mas oferecidos numa ordem

propositadamente fa lsa  e com uma sucessão  de  pequenos   mas

crescentes desvi os, equívocos   e rodeios,  d e  modo   que o

emprego  das   técnicas deles derivadas  não possa   nunca levar

aos   resultados benéficos   que  deveria normalmente   produzir

numa via   e s p i r i t u a l  t r a d i c i o n a l .   O fascínio exercido   sobre

a mente dos   i n t e l e c t u a i s   ocid entai s pelo desafio de deci frar

o en igma Gurdjieff  ê praticamente  i r r e s i s t í v e l mas ele não

fo i   feito para   ser  decifrado,   e sim  para devorar   a  quem

acredite   na  p o s s i b i l i d a d e  de decifrá-lo. (3)

-  2 -
 

O estudo dessas "doutrinas" e a p rat ica desses

"métodos"  leva a um  estado  de  d ú v i d a  crescente  e cada  vez

m a i s   opressivo; e ã  medida que as trevas  se adensam  na sua

mente,  o estudante  não  raro cai na   i l u s i o  de  estar-se

"aprofundando" no   conhecimento, quando em   verdade está

afundando na ign orâ nci a e no esquecimento. Incent ivado

p e l a   crença dom ina nte no preconceito  "cartesiano" que

concede  i   d ú v i d a   a  p r i m a z i a  sobre a certeza, ele   a v a l i a

seu  avanço  no conhecimento  pelo  c r i t é r i o  subjetivo e

i n d i v i d u a l i s t a  d a s u a   p r ó p r i a   d i f i c u l d a d e   d e  entender  a s

questões, a o   invés   d e  guiar -se pelo  c r i t é r i o  t r a d i c i o n a l

d a  evidência e  u n i v e r s a l i d a d e  das  respostas;  e,  levado

também por um fundo de complexo de   i n f e r i o r i d a d e que os

instrutores G u r d j i e f f sabem  h a b i l m e n t e  explorar, e l e c a i

n a   a r m a d i l h a  d e   a v a l i a r paradoxalmente,   a  pretensa

l u m i n o s i d a d e   d a   doutrina p e l a   d e n s i d a d e d a sombra  q u e

ela   projeta sobre  a sua mente; o que va le dizer que a

sabedoria,  do  "mestre"  é   a v a l i a d a  p e l a   confusão  e

i m b e c i l i d a d e que produz  nos  d i s c í p u l o s ;  e ha  mesmo um

certo prazer masoquista no tom de  apatetada consternação

com que estes  se confessam constantemente  d r i b l a d o s  pelo

"mestre" e  frustrados  no seu   intento de  entender o que

está  se passando: "Mas  ele ê um bruxo "  dizem eles.

A   i l u s ã o  d e  poder  a l g u m   d i a   s a i r   desse emaranhado  e

tornar-se  por sua vez um bruxo  leva  o estudante a   permanecer

  ^i

- 3-
 

i n d e f i n i d a m e n t e sob o  fascmio  de   t a i s   "ensinamentos".  Sem

perceber  que o  "mestre"  é por sua vez otário nas mãos de

outro  m a i s  maligno, e assim por   d i a n t e  até o  cume  de uma

curiosa "hierarquia e s p i r i t u a l   as avessas";  sem dar-se

conta  de que  está sendo   i n d u z i d o  em erro pelas contradições

e  falsas pi stas propositadamente semeadas  ao   longo do caminho,

e também parc ialmen te premido pela ambição de descobrir algo

que  ni ngu ém jamais soube  ( sem  reparar que   isto  o  afasta para

sempre da  universalidade  do quod  omnibus, quod semper,

quod  u b i q u e  credita est, e o   a p r i s i o n a   irremediavelmente

na estreiteza subjetiva J ,  ele vai desenvolvendo um senso

crescente e exagerado  da  complexidade e  d i f i c u l d a d e  das

questões, até que as  verdades m ais corrique iras  e patentes

lhe   pareçam sujeitas  a  caução,  No  começo,   isto  pode

parecer  ate  mesmo  um  amparo contra o  tédio, uma  arma contra

a opressão da "vida cot idia na", contra a  t i r a n i a   das crenças

estabelecidas do mundo burguês; mas, l onge de  l i b e r t a r  o homem,

acaba  por   conduzi-lo a um  apalermado senso  da   impotência e

da  i m p o s s i b i l i d a d e  de  conhecer o que  quer que  seja,  até   mesmo

a sua   identidade i n d i v i d u a l   e os   laços de  sentimento que o

l i g a m  às  pessoas   m a i s  próximas. Embora este estranhamento

em face de  quase tudo  esteja nos  antfpodas  da   u n i v e r s a l i d a d e

tradicional que faz o  homem compreender   a  todos  os   seres

e   coisas como  se  fossem  letras ou  palavras no  "discurso

evidente"  (4) que  Deus  d i r i g e  sem  parar a  todas as  criaturas,

-  k
 

e  embora  esse   isolamento subjetivo se assemelhe antes

ã despersonalização esquizofrênica do que a  q u a l q u e r   estado

e s p i r i t u a l   conhecido nas  m í s t i c a s   t r a d i c i o n a i s o  homem

que chega a tal estado apega-se com certo o rg ul ho a seu

sentimento e passa a encarar  como   i n c o m p r e e n s i v o s e

profanos  a todos  os que não  sentem  como  ele, a  todos  os que

c o n t i n u a m  vendo  as coisas  com uma dose  n o r m a l  de  e v i d ê n c i a

e clareza. Chega um tempo em que ele sente   como  um  d o g m a t i s m o

tirânico e  i n t o l e r á v e l  a crença  de que os  olhos vêem,  a água

m o l h a  e as   g a l i n h a s  botam ovos.  E quando esta  r e b e l i ã o

contra o óbvio chega ao ponto de tornar-se uma   i n c o m p a t i b i -

l i d a d e   r a d i c a l  contra  o lato  de  dois mai s dois serem quatro,

então  ele  está preparado para abandonar o estágio de

d i s c í p u l o  e tornar-se por sua vez um   i n s t r u t o r Gurdjieff.

§ 2.

E x p l i c a ç ã o do efeito

Esse efeito é produto  da   r u p t u r a   p r o p o s i t a l  da  h a r m o n i a

entre   os   ritmos das   diferent es faculdades c o g n i t i v a s harmonia

que as práticas  t r a d i c i o n a i s do sufismo  particularmente, se

empenham   em  manter e fortalecer. (5) O  sufismo descreve set

f a c u l d a d e s   i n t e l e c t u a i s básic as, cada  q u a l   correspondendo

s i m b o l i c a m e n t e  a um planeta do sistema solar , portanto a um

d e t e r m i n a d o   c i c l o   o u   r i t m o  cósmico.  E   a s s i m   como  o s   c i c l o s

- 5 -
 

p l a n e t á r i o s  são de  duração diferente ( 28   anos para Saturno,

12   para  J ú p i t e r 28  d i a s   para a Lua, etc.  ), também as

diferentes faculdades  c o g n i t i v a s   funcionam segundo

"velocidades" diferentes, que no  entanto formam, juntas,

o  padrlo harmonioso do  conjunto. Esta harmon ia,  no


  •

macrocosmo,  é possfvel  porque  entre  os   v á r i o s  ciclos

existem certas analogias e s t r u t u r a i s - pelo fato de que,

grosso modo, 21  es se  d i v i d e m  em   i g u a l  número  de  fases.   Podemos

i l u s t r a r  essa  a n a l o g i a  dizendo que a Lua percorre em 28   d i a s

as mesmas  direções  do espaço que   Saturno percorre  em 28 anos,

i s t o   é, que em tempos diferen tes eles passam pelos mesmos

signos do  Zodíaco, de modo que  estes representam  a "medida"

das diferenças entre os doi s cic lo s, e portanto também

o  parâmetro  das  suas semelhanças ou o seu "ponto  de  junção".

Tais a na lo gi as também existem entre  as  v á r i a s

f a c u l d a d e s  cognitivas no   p s i q u i s m o humano.  N o   s i m b o l i s m o

tradicional o Sol corresponde  ã  p r i n c i p a l  faculdade, que é

a  i n t e l i g ê n c i a  pura  ( enquanto Me rcúri o, po r exemplo,

corresponde  ao  pensamento di scu rs ivo , Vênus  i  i m a g i n a ç ã o  e

memória, etc.  ). E,  assim como  as  direções  do espaço,  do

ponto de vi st a da Terra,  não  são demarcadas por outra coisa

senão pelo movimento aparente do  S o l a s s i m  também, segundo

o  sufismo, a  i n t e l i g ê n c i a  pura e supraformal  i n s t a u r a e  demarca

os padrões formai s, os moldes lógic os e  s i m b ó l i c o s  dentro

dos c[uaís  hão  de operar  as  d e m a i s   faculdades.

- 6 -
 

Deste  modo,  a contínu concentração da atenção

num objeto   único, transcendente  e em si mesmo supraformal

  Deus  ),  acompanhada  de  práticas  r i t u a i s  e  morais destinadas

a  e l i m i n a r a dispersão e   demais obstáculos psíquicos, eleva

todas  as  faculdades  em  direção ã  i n t e l i g ê n c i a  pura, fazendo

com que   todas as  modalidades de   representação formal concorram

obedientemente para  r e f l e t i r  o supraformal; desta maneira

a   imaginação, a  memória, o   raciocínio, etc.,  ao   invés de

se erguerem  como  obstáculos  ante  a verdade, transformam-se

em superfícies  t r a n s l ú c i d a s  pelas q u a i s  a verdade pura e

supraformal apreendida pela  i n t e l i g ê n c i a  passa  como  uma   l uz

através de um  c r i s t a l ;  e assim todas as potências da al ma

concorrem harmonicamente para a visão  i n t e l e c t u a l   de Deus,

assim como  no  macrocosmo  a harmonia do  sistema solar provém

dos   l í a m e s  das orbitas p l a n e t á r i a s  com o eixo solar.

O  diagrama  l mostra  a harmonização   dos ritmos de

diferente extensão  e  i g u a l   estrutura:

DIAGRAMA  l

_.  7  —
 

Se,  porém, ao  i n v é s   de  concentrarmos  a  i n t e l i g ê n c i a

num  objeto   ú n i c o  e   transcendente  (6) e de   d i s c i p l i n a r m o s

as faculdades para que obedeçam  ã  i n t e l i g ê n c i a , bombardearmos

q u a l q u e r das facu ldade s com um excesso  de estímulos  e

solicitações,  o resulta do será que os  ritmos   internos se

desconectarão  uns dos outros, e as   faculdades   não poderão   m a i s

colaborar entre  si. A  v í t i m a  deste processo passa a ter

d i f i c u l d a d e ,  p or exemplo,  de  s i m b o l i z a r   com a  i m a g i n a ç ã o

a q u i l o  que  compreendeu com o  pensamento  d i s c u r s i v o ,  ou de

f o r m u l a r   racionalmente a q u i l o   q u e   apreendeu  p e l a i m a g i n a ç ã o ,

ou   a i n d a   de  condensar  em   decisões,  em  atos  de  vontade, a q u i l o

q u e   compreendeu  o u imagin ou. ( 7 ) O  d i a g r a m a   ilustra

esquematicamente o que queremos dizer:

D I A G R A M A  ll

Pequenas  d i s r i t m i a s   entre  as  várias   faculdades são um

evento normal na   v i d a   d i á r i a ,  e podem  ser  vencidas seja  pelo

esforço   v o l u n t á r i o , seja   por uma ajuda supl emen tar dada a

alguma  das  faculdades  ( por exemplo, um  símbolo  v i s u a l   pode

ajudar a  i m a g i n a ç ã o  e   i n t e g r a r   um  conhecimento abstrato;

- 8 -
 

a   ingestão de um remédio homeopático pode ajudar  a

i m a g i n a ç ã o a  encontrar  os símbolos de que necessita,  um

m o v i m e n t o   r i t m a d o  pode ajudar a condensar o pensamento

num ato de vontade, etc.  ). A  a q u i s i ç ã o  de   q u a l q u e r

conhecimento novo requer também  uma defasagem momentânea,

que é  compensada  em   s e g u i d a  por uma harmonização  m a i o r

num  n í v e l   m a i s  a l t o  de integração.  (8) A  capacidade  de

aprendizado pode   s e r m u i t o a m p l i a d a  aumentan«io-&e  ei

t o l e r â n c i a   aos estados   de  defasagem.   I s t o  depende  do

conhecimento  d o u t r i n a i , bem como  da fé e da esperança,  que

sustentam o  esforço  nos momentos de ob scur idad e e

confusão passageira. O  esforço  m a i o r  e  m a i s   prolongado é

então recompensado   por um conhecimento  m a i s   profundo  ou

mais  seguro.   C  réde  ut i  n t e l l i  gás;  i n t e l l í g e  ut   credas;

"crê,  para entenderes; entende, para creres".

Mas  — e  a q u i   entra  o  gurdjieffianismo -- é possível

perverter inteiramente este   processo,  criando,  de um lado,

um  estado de defasagem crônica e crescente, e, de outro   lado,

estimulando a vítima mediante a atração  de uma pseudo-

-recompensa que se su bsti tua ao conhecimento e a   induza  a

buscar sempre   uma nova  defasagem,  uma nova dissonância,  um

novo desafio,   s m t r  jamais chegado   a  vencer  o  anterior.  (9)

A defasagem pode  ser produzida,  como vimos, p e l a

estimulação exagerada   das  faculdades inferiores   isto  é,

daquelas  por si   tem  de

- 9 -
 

como   sensações   sentimentos  ),  ainda p e l a

e s t i m u l a ç i o propositadamente incoerente   de   duas  o u m a i s  

faculdades.

Não   vamos descrever   a q u i   os processos  de   defasagem

a r t i f i c i a l  gerados   p e l a  escola Gurdjieff, porque   e l e s s ã o

bastantes conhecidos   —   evidentemente, sob o   rotulo  de

exercícios  para  a  integração   das faculdades superiores  do

homem.  Estudos   recentes provaram  que muit as seitas aberrantes

 pura amplia ção popular   gurdjieffismo   empregam

de i  i b e r a d a m e n t e  o  jogo  da   informaçio   e  contra-informação

p a r a   cri ar estados   de confusão  e  dependência  em  seus

d i s c f p u l o s  . G u r d j i e f f f o i ,  em nosso  século,  o pai de   todas

essas  técnicas.   Ao nomear-se "o  arauto   do bem   vindouro"

( The  He rã  l d of  the  Corning   Good   ),  


,ele mostrava estar

consciente da breve invasão do mundo pe la  p e s t i l ê n c i a   dos

Moon, Rajneesh,  etc

Só para  dar um exemplo   de como  a  coisa funciona, pode-se

i m a g i n a r o  quanto  de  defasagem   é possFvel gerar quando  se

  que  trace  com os pés uma

baseada  n a sucesslo 2 x 1   = 6 , 2 x 2 = 1 2 , 2 x 3 = 2 2 , a o

mesmo  tempo  qu e  recita  em voz alta a  seqüência   x =  l,

4 x 4 =  1 3 ,  
5 x 5 =  28; ou  quando  s e manda  a l g u é m  derrubar

um  grosso  p i n h e i r o   a golpes   de  colherinha  de café  ao mesmo tempo

que  decora  um  poema  e  recita interminavelmente   um man t rã.   São

realmente exercícios Gurdjie ff,   e o atrativo  qu e  eles despertam

- 10 -
 

em  m u i t a g en te r e s i d e   tão-somente na  expectativa   que

só se  c u m p r i r i a   se  t a i s e x e r c í c i o s   não   t i v e s s e m s i d o

concebidos   especialmente   para jamais chegar a um

d e s e n l a c e   f e l i z  e se não  fossem  c o n t i n u a m e n t e   s u b s t i t u í d o s

por  novos  e  m a i s i n t r i g a n t e s  "desafios". A   h a b i l i d a d e  do

i n s t r u t o r  Gurdjieff  r e s i d e  em   trocar   esses exercícios

( que podem ser  dados   i n c l u s i v e  sob a  forma   de   situações

v i v i d a s ,  sem que   n i n g u é m a v i s e  que se  trata de  exercícios ),

exatamente no momento  em que a   v í t i m a e s t a   a ponto   de   d e s i s t i r

e de confessar  sua  derrota.   I s t o c r i a  um estado  de permanente

a n s e i o   sem   satisfação:   a  a m p l i a ç ã o  da fome acaba  por

c o n s t i t u i r  u m  ersatz   d e   c o m i d a .   O   p r ó p r i o G u r d j i e f f   d i z i a

que era  preciso manter os  d i s c í p u l o s "ã   b e i r a   do  colapso

nervoso".  Certa   vez   G u r d j i e f f ,   fazendo-se  de   i r r i t a d o ,

p e r g u n t o u   a seus   d i s c í p u l o s :  "Vocês   pensam   que eu  estou

aqui   p a r a l h e s e n s i n a r  a masturbaçao?"   N e n h u m   dos presentes

fo i   s á b i o  o  bastante para   perceber  que a  ú n i c a   resposta

verdadeira era:   "Sim".  O excesso  masturbatõrio de desafios

sem  p r o v e i t o l e v a  a um estado que os gregos   d e n o m i n a v a m

h y b r i s ,  qu e  s i g n i f i c a   a  e s t e r i l i d a d e  a que é  l e v ad o a q u i l o

q u e , p e l o   exagero, esgotou  suas  p o s s i b i l i d a d e s   de   n a s c i m e n t o

h a r m ô n i c o  e   n o r m a l .  A  cada passo, o   a l u n o  é  c o n v i d a d o   a

avançar  m a i s  outro na  escala   da  e s t e r i l i d a d e .  A passagem

a um   grau cada   vez   m a i o r  de   c o m p l e x i d a d e   e  d i f i c u l d a d e  é

e x p l i c a d a  então  como  uma  ascensão na  h i e r a r q u i a e so t ér i ca ,

e a  s at i s f a ç ão a s s i m d a d a   ao  o r g u l h o  do d i s c í p u l o f u n c io n a

como uma compensação  para   a  d e r r o t a s o f r i d a p e l a   i n t e l i g ê n c i a

- 11 -
 

e  p e l a   vontade. O empedramento da  i n t e l i g ê n c i a  e a

i n f l a ç ã o orgu lhosa do ego são  os  c r i t é r i o s  de

"ascensão  e s p i r i t u a l nesta  s i n g u l a r "escola  mística".

Compreende-se então o   sentimento de  "aprofundamento"

que os  d i s c í p u l o s e xpe rim enta m, e também o fato de que se   a l g

l e g u e m  detentores de enormes  "segredos" ao  mesmo tempo

em que vão  dando mostras cada  vez  mais evidentes de

degenerescencia  i n t e l e c t u a l ,  que chegam  mesmo, em  casos

extremos,  ao  n f v e l   da estupidez . Numa curios a inversão

dos  processos  t r a d i c i o n a i s ,  onde o   desvelamento de

mistérios l e v a  a u m  estado  d e  e v i d ê n c i a ,  d e   p l e n i t u d e   d a

i n t e l i g ê n c i a ,  de  t r a n s p a r ê n c i a   do  r e a l ,  o que acontece

com as  v í t i m a s  G u r d j i e f f  é que  n e l a s  se desenvolve,  p e l a

opacidade crescente, um senso de amor ao segredo enquanto  tá .

£ que, ao  i n v é s  de terem desvendado   a l g u m segredo, ao

c o n t r á r i o :   3 que  era  patente aos  olhos  de  todos tornou-se

segredo  para elas. (10)   Como símbolo da  capacidade  de visão

e s p i r i t u a l , a  á g u i a   está  para os  m í s t i c o s   a s s i m   como  o

avestruz está para os  g u r d j i e f f i a no s .

O processo  acompanhado de um senso  igualmente

"secreto"  — de  i m p o t ê n c i a  e  revolta (  sobretudo de  r e v o l t a

contra   a  i n t e l i g ê n c i a  n o r m a l   capaz  de expressar-se  em   formas

transparentes  ), e ê deste senti ment o obscuro, rancoroso,

soturno,  qu e  provém a  impressão de   i n t e n s i d a d e  e m o c i o n a l

- 12 -
 

que  e s s a s  pessoas  t r a n s m i t e m ,  e que  não  raro  a s s u s t a  os

espectadores,  os  quais  caem  por su a vez no  t r á g i c o  engano

de   tomá-la  como  s i n a l  de  intensa  v i d a  interior e de

a c r e d i t a r   que  quem  pode  a t e m o r i z á - l o s  também  deve  ter

a l g o  para  lhes  e n s i n a r .  E  a s s i m  vai-se perpetuando o

engodo   (11), até  a t i n g i r - s e  o  ideal  da estupidez  p e r f e i t a

coroada  pelo  grau  máximo  de o r g u l h o ,  pretensão  arrogância.

  m  suma,  G u r d j i e f f  transforma ouro  em chumbo:  é um

professor  de  esquecimento,  um v i d e n t e  da  opacidade.  M a i s

que   um cego  guia  de  cegos,  ê um transmissor  de  cegueira.

Inversão  dos sfmbolos

Essa  alquimia  i n v e r t i d a  não nos espanta,   a l i á s ,

porque   não  é  somente  nisto que ele  toma  as coisas   às

avessas. Ele faz o mesmo  com um grande número   de  símbolos

t r a d i c i o n a i s .  Por   exemplo,  n s obras escritas  que

compendiam  a  ''doutrina gurd jie ffia na, Hussein   -- nome  do

neto  do  Profeta Mohammed   (  Maomê,  fundador   do   I s l a m  e,

a  do  sufismo;) -- passa a ser o nome  do neto de

Belzebu; Judas  é  apresentado   como   o ma ior santo  da

Cristandade ;  e o ser  humano  passa a ser um  corpo  que

nasce sem  alma (  sõ podendo   a d q u i r i r um a  mediante   s

exercícios Gurdjieff  e  mediante  -- é  claro -- uma certa

q u a n t i a em  d i n h e i r o   , ao passo  que nas doutrinas tra di-

c i o n a i s  a  alm a antecede lógi ca  e ontologicamente  o corpo,

- 13 -
 

que  nio é   m a i s  que sua   c r i s t a l i z a ç ã o p r o v i s ó r i a ;  e

a s s i m p o r  d i a n t e .

Tomar  as  coisas as avessas  é o   t r a b a l h o  por

e x c e l ê n c i a  do   Adversário ( ad  versus =  pelo  verso ),

ou, em árabe,   Shai  tan, que se traduz  h a b i t u a l m e n t e  como

Satã  — o que nio  quer  d i z e r  qu e  Gurdjieff seja   Satã, e

si m   apenas  um  satanist a. Prova de que ele não ê o

capeta em pessoa ê que seu   dei fri o   de grandez o  l e v o u

somente a rotular-se Belzebu, ao passo que Bel zeb u

se pro cla ma um segundo Deus.

Se ele   toma o  esquecimento como  conhecimento,

é de se  esperar que   tome  também  a fraqueza  como   força,

e seu famoso  h a n d b l e z o i n   —   corrente  s u t i l  de   energia

com que ele fascina va e pe rtu rba va profundam ente seus

d i s c í p u l o s  -- não é na  ver dad e senão  o efeito, s e n s í v e l

f i s i c a m e n t e , na  pele, de um certo  t i p o   de degeneração

c e l u l a r  provocada  p e l a  contínua quebra  d a  harmonia o r g â n i c a .

Esta  degeneração  a t i n g e   todos os  órgãos  do corpo -- na

a u t ó p s i a  de  G u r d j i e f f   não se encontrou um  ú n i c o   órgão

que não estivesse podre, numa curi osa inversão da  i n c o r r u p -

t i b i l i d a d e   dos  corpos  de  santos  — e seu efeito é tão

devastador que a  presença  do   doente provoca tremores,

c a l a f r i o s  e  sensação  de fraqueza  nas   pessoas presentes,  sem

que estas entendam o que se  passa.(12) Se   t a i s   pessoas,

ao  i n v é s   de comparecerem  ao  encontro predispostas a

- 14 -
 

defrontar-se com um  mestre , estivessem  a v i s a d a s

de que se tratava apenas de  alguém excepcionalmente

doente, essas sensações   não   s e r i a m   fantasiosamente

e x p l i c a d a s   como mostras  de  poder   e s p i r i t u a l ; na  verdade,

se  ha   a l g u m  poder nisso,  ele é do mesmo gênero daq uel e

que os leprosos e tube rculosos também possuem.

Esse estado não é somente  uma doença, mas o

resultado de certas   operações  que v is am precisamente a

c r i a r   u m a  capacidade  d e  gerar malestar, capacidade  q u e

c o n s t i t u i   a  base para   i n ú m e r a s  p r e s t i d i g i t a ço e s

posteriores. A  técnica ,   a r q u i c o n h e c i  da e   m i l h a r e s  de

vezes   d e n u n c i a d a   por  todas   as tradições, onsiste

sumariamente em cometer transgressões  metódicas e crescentes

a  todas as   l e i s morais,  n a t u r a i s   e  d i v i n a s   (  i n c l u i n d o  as

l e i s  da   l ó g i c a e da g r a m á t i c a  ), até que o  i n d i v í d u o  se

torne uma espécie  de  foco  e  compêndio  de  d e s e q u i l í b r i o s

e carências, apto   a arrastar  na  voragem   a quantos   se

aproximem, desavisados,  da   b e i r a   do  poço. E   c l a r o  que o

personagem   de  t a i s   operações   só se mantém  de pé, depois

de um  certo ponto, graças  àqueles que o cercam,   que  vlo

s e r v i n d o  de contrapeso aos seus   d e s e q u i l í b r i o s  ( ao  c o n t r a r i o

dos  grandes  místicos, que por  d e f i n i ç ã o  a p r e c i a m  a  v i d a

s o l i t á r i a ,   G u r d j i e f f j a m a i s   f i c a v a  sozinho  p o r  m a i s  d e

a l g u n s   m i n u t o s  ),  até  que ele s mesmos passem a nec ess ita r

de contrapesos por sua vez, o que   e x p l i c a a voracidade

- 15 -
 

com que as organizações   G u r d j i e f f  a l i c i a m  e consomem

d i s c í p u l o s ,  gerando com uma  rapi dez espantosa  m u l t i d õ e s

de  d e s e q u i l i b r a d o s , ao ponto de em  certos casos   l e v a n t a r

graves ameaças  ã ordem  s o c i a l  (  como  no  caso Rajneesh   ).

Daí  o  temor obsessivo  que os   g u r d j i e f f i a n o s   sempre  têm

de que os outros   lhes   roubem suas energi as . As ''técnicas

fornecidas  para e v i t a r  esse preten so roubo os colocam

então numa  a t i t u d e   de permanente suspeiçio e esp reit a,

e as   a r t i m a n h a s   mentais que  concebem para  l i v r a r - s e  de

seus supostos  i n i m i g o s  l h e s   dá o ar  vagamente  l u p i n o

—   entre assustadiço e  feroz  — de  quem não  pode  d o r m i r

em  paz.  E este sobressalto permanente  e neurótico,

tomado, para cúmulo  de   i n g e n u i d a d e ,  como   d o m í n i o d e s i

e  v i g f l i a  e s p i r i t u a l ,  é por sua vez gerador de novos e

intermináveis desequilíbrios.

O  processo funciona  m a i s  ou  menos  como  o

 moto  perpétuo descr ito  n o  c a p í t u l o   I I  d o s  Relatos  d e

Belzebu:  baseado no   p r i n c í p i o de que  tudo cai ( que ele

d e n o m i n a   lei de queda ),  basta, em cada  n í v e l  cósmico,

  r e t i r a r  as  resistências de baixo para que  tudo  c a i a

i n d e f i n i d a m e n t e a u m   plano q u a l i t a t i v a m e n t e  i n f e r i o r .

Quer se trate de uma resi stênc ia mo ra l, que r seja um ponto

fraco  q u a l q u e r  na  estrutura do pensamento  l ó g i c o  de um

i n d i v í d u o , o  g u r d j i e f f i a n i s m o  opera  p e l a   l i n h a  de  menor

r e s i s t ê n c i a , que  pode tornar  d i f í c i l   o  f á c i l , obscuro

- 16 -
 

o evi den te, pesado o   l e v e ,  e fazer  em   pouco tempo de

um   homem normal  um doente,  de  um  i n t e l e c t u a l  um  i d i o t a

e de um   homem decente  um   ladrio.  (13)  E uma inversão

completa  d a  escalada e s p i r i t u a l .  Como  d i z   w h i t a l l   N .  Perry,

 o mal não tem uma   r e a l i d a d e  p r ó p r i a ,  mas gruda-se como

uma sombra no   l a d o  escuro da manifestação, com a  ' g r a v i d a d e '

ou  sucção  do seu  p r ó p r i o  vazio .   (1*0

Quem   Gurdj  ie f  


f

Pelo que  dissemos até  agora, já é   possível  entender

q u e G u r d j  ieff   --   longe do que   gostariam de   i m a g i n a r aqueles

que  preferem  e x p l i c a r   tudo por motivações  s i m p l ó r i a s  

m a t e r i a l i s t a s ,  e que, a l i á s ,  na sua  i n c r e d u l i d a d e  aparente,

são as   m a i s  c r é d u l a s v í t i m a s  para o   g u r d j  ieff  i a n i smo —

não é um  s i m p l e s   charlatão no senti do corrente  e  humano

do termo.  Por outro  l a d o ,  não   sendo, obviamente, um

mestre  e s p i r i t u a l ,  e l e s ó  pode  c a i r   n a   categoria d a q u i l o

a que algumas tradições chamam  ascetas  do mal ; são  f i g u r a s

que, ao  l o n g o  da  h i s t ó r i a ,  em   tempos  n o r m a i s ,  permanecem

r e l a t i v a m e n t e obscuras e desconhecidas,  v i n d o  porém  ã  p l e n a

luz  do cenário  p ú b l i c o  em  épocas  de extrema decadência

e s p i r i t u a l   como  o f i m d o   I m p é r i o E g í p c i o , o s   ú l t i m o s  d i a s

de   Roma ou este nosso atormentado fim da Era  C r i s t ã .

- 17 -
 

Com toda a sua  a n o r m a l i d a d e , grosseria, m a ] T e i a

  estupidez, eles têm no entanto a sua função  no   conjunto

da economia  cósmica. Seu  p a p e l ,  dentro  da  d o u t r i n a

t r a d i c i o n a l   dos  c i c l o s  cósmicos, é promover e ace ler ar

o   fim . Retiradas as   t r a d i c i o n a i s   (  r i t u a i s

e   l e g a i s  ) que durante as  épocas  normais da   c i v i l i z a ç i o

os  mantinham a uma saudável  d i s t â n c i a   da humanidade comum,

e l e s  avançam p elos por tai s adentro, e fartam-se num

banquete  sangrento com as  almas dos  incautos. Poucos   slo

aqueles que,  d i a n t e   dessa invasão, se  l e m b r a m  de  b u s c a r

a b r i g o  junto as velhas e   i n f a l í v e i s  defesas  d a   r e l i g i ã o

t r a d i c i o n a l , defesas que, enquant o durem intact os os

r i t o s e pr ece ito s, permanecem eficazes até o  ú l t i m o

d i a ,  e  contra el as não  prevalecerão  as portas  do  inferno .

Ao  contrário:  a maioria, se não se entrega  como bois ao

matadouro, busca frágeis refúgios ã  sombra de  explicações

i d e o l ó g i c a s  e  evasivas  pseudocientTficas  de  moda,  que não

fazem senão  f a c i l i t a r   a i n d a m a i s  o trabalho do invasor.

Os  ascetas   do mal eqü ival em, tecnicamente

falando, aquil o que na  m i t o l o g i a grega  — e  também  no

B u d i s m o  --   recebe  o nome  de   tãs: são  seres que, mediante

esforços  e  sofrimentos aberrantes  --  voltados, nas palavras

do pró pr io Gurdji eff, contra a Naturez a, contra Deus --

conseguem tornar-se o pol o de vastos  d e s e q u i l í b r i o s  em

torno, arrastando a  m u i t o s   para a voragem da disso lução

- 18 -
 

total  e  i r r e m e d i á v e l  ( para a  q u a l ,  é claro, nã o existe

q u a l q u e r   recompensa  e s p i r i t u a l   ).

T a i s   f i g u r a s   nio apenas  não são nada  d i f í c e i s

de  i d e n t i f i c a r   -- exceto  para quem desconheça tudo das

d o u t r i n a s   t r a d i c i o n a i s ou já esteja  entorpecido por

a l g u m a  p r á t i c a   de   t i p o   G u r d j i e f f  — como também a

c a p a c i d a d e de   i d e n t i f i c á - l a s  e   e v i t i - l a s  ê  mesmo como  que

u m  r e q u i s i t o i n d i s p e n s á v e l  e   p r e l i m i n a r  q u e

desejem   s e g u i r   u m a v i a   e s p i r i t u a l   dentro  d o  quadro  d a s

r e l i g i õ e s   t r a d i c i o n a i s . Mu ito s santos  e m í s t i c o s d a s

grandes  r e l i g i õ e s , antes  de encontrar  seu caminho,

foram  v í t i m a s   de  t i t ã s t r a v e s t i  dos em mestres  e s p i r i t u a i s .

Santo Agostinho foi  enganado pelos man iqu eus , e o  maior

homem  e s p i r i t u a l   do  I s l a m em  nosso século, o  shei kh

a r g e l i n o  Ahmed  E l - ' A l a w y ,  disse mesmo que "jamais houve

um mestre  e s p i r i t u a l  a quem Deus não  pusesse  a prova,

m a n d a n d o - l h e - a i g u é m  que o  enganasse,  ostensivamente ou

p e l a s  costas".

§ 5.

P e r g u n t a   sem

F i n a l m e n t e ,   u m   aspecto interessante do  gurdjief-

f i a n i s m o -- e do  q u a l   os  p r ó p r i o s  g u r d j i e f f i a n o s ,  incapazes

d e   t i r a r  q u a l q u e r   conclusão mesmo  d o s   i n d í c i o s  m a i s  óbvios,

j a m a i s  se dão conta  — é o seguinte:

- 19 -
 

N o s e u   l i v r o  Relatos  d e   Belzebu, G u r d j i e f f  d i z

que o  r i t o  central do  C r i s t i a n i s m o , a  E u c a r i s t i a ,   fo i

u m   r i t o   d e  "magia antropofágica"   n o   q u a l  Jesus  t e r i a

dado pedaços  do seu  corpo  a comer e   g o l a d a s  do seu

sangue  a beber. Esta "informação"   é seguida de   severas

c r í t i c a s  ã Igreja C a t ó l i c a  por ter-se "esquecido do

s e n t i d o  o r i g i n á r i o   d o   rito".

E c laro que a interpretação dada por Gur dji eff

c o n t r a r i a a   l e t r a   dos Evangelhos  ( os  q u a i s  falam que

C r i s t o   p a r t i u p ão e  serviu vinho , e  chamou ao pão

"carne" e ao  v i n h o "sangue" );  é claro também que ela

fere  o mais elementar senso estético e  rebaixa o

s í m b o l o   t r a d i c i o n a l   a u m  l i t e r a l i s m o   p r o f a n a t õ r i o e

grotesco;  e é  claro também que ela é   i n c o m p a t í v e l   com

o  s i m b o l i s m o n ão somente cri stã o, mas  u n i v e r s a l , segundo

o  q u a l  o pão representa  a  d o u t r i n a exotérica e o  v i n h o

o s  conhecimentos  e s p i r i t u a i s .

Mas  o   m a i s   interessante é que   G u r d j i e f f  complementa

a  c r í t i c a  oferecendo  uma   a l t e r n a t i v a  ao  c r i s t i a n i s m o

decadente":  ele afirma que sua   p r ó p r i a  escola  não é   senão

  C r i s t i a n i s m o  esotérico", isto ê, o  C r i s t i a n i s m o o r i g i n á r i o

em sua   forma ma i s  pura  e i  n a l t e r a d a .

- 20 -
 

D i a n t e   destes dados, temos   o dever de  perguntar:

o s g u r d j i e f f i anos  e   s i m i l a r e s , sendo, como   se   i n t i t u l a m ,

"cristio  p r i m o r d i a i s ,  p r a t i c a m ou   não  p r a t i  cam  c) ri to

es sen c i i   jdo   Cri st i a n i sm o   p  r  i m o r d i ai" , n a   forma  em   que

eles  mesmos^   c>   descrevem?

Se não  p r a t i c a m ,  então seu pretenso   C r i s t i a n i s m o

 ê apenas teórico, sem   intere sse do que

q u a l q u e r c u r i o s i d a d e   acadêmica, d a q u e l a s   a q u e  eles

mesmos tanto  c r i t i c a m .

Se  p r a t i c a m ,  então  são  antropófagos.

- o -

E   não  há  m a i s  nada a  d i z e r   sobre este assunto.

- 21 -
 

NOTAS

(1)  Referimo-nos às   grandes  r e l i g i õ e s  universais,


fora  de  cujas   místicas é  i m p o s s í v e l  encontrar qua lque r
"ensinamento  e s p i r i t u a l que valha. Em outras palavras:
a  m í s t i c a , de qu al qu er natureza, requer a  f i l i a ç ã o
p r e l i m i n a r  a uma ortodoxia revelada -- por exemplo,
o  Catolicismo, o  Judaísmo, o  Budismo, o  I s l a m ,  em   suas

formulações   tradicionais -- e   fora disto só  é  possível


tropeçar  com   gurdjieffs e  coisas afins.

(2)  Tudo  o que  diremos  de  Cjurdjieff  a p l i c a - s e


igualmente a  seus   discípulos e continuadores, quer
aqueles que se apresentam formal mente como  discípulos,
quer aos que se  f i l i a m ao  "cisma"  de Uspensky, quer aos
que se  dissemin aram pelo mundo  sob  outros  rótulos e sem
l i g a ç ã o   v i s í v e l   com o  g u r d j i e f f i a n i s m o  ( Rajneesh,   Oshawa,
Pak  Subuh, etc.  ),  quer, f inal men te, àqueles que, na
m a i o r p i a d a   do século,  se denominam os seus  "mestres"

(  I d r i e s  Shah,   Ornar  'Ali   Shah,  etc.  . Em todos


esses  casos,  as   técnicas  e  "doutrinas" variam somente
em  estilo e cor  local.

(3)  Sobre  o caráter  premeditadamente  i n s o l ú v e ]


desses enigmas e  charadas, v. o  Cap.  l do nosso   l i v r o
O  Pseudo-Sufismo no  Ocidente.

 k Corão,   II 1-2. Sobre este tópico, v.,  de


u m   lado, Plot ino , Enéada  I I ,  Tratado  I I I § 7 , e , d e   outro,

o  s i m b o l i s m o das   letras no  sufismo, tal como exposto  em


Martin L i n g s ,  A   S u f i   Saint qf   the Twentieth Century, London,
A l l e n   &  Un wi n, 1973, Chap.  VI  I.

(5) V. Seyyed Hossei n Nas r, The  Long  Journey, em


Parábola, Vol.  X n? 1, feb. 1985.

- 22 -
 

(6) O  termo "objeto",  a q u i ,   deve   ser   e n t e n d i d o


em modo   f i g u r a d o ;  no processo da   realização  espiritual,

Deus  é Objeto e   S u j e i t o  ao mesmo  tempo.

(7) A   i n c o n c l u s i v i d a d e , a  d i f i c u l d a d e extrema


de  t i r a r   conclusões  das   p r e m i s s a s m a i s óbvia s, que é um
traço p r o e m i n e n t e  dos   d i s c í p u l o s  e egressos   de  t a i s

"ensinamentos",  e x p l i c a - s e a s s i m p e l o fato de que o


"tempo" do  r a c i o c í n i o   l ó g i c o se  t o r n a demasiado l ento

em face  da v e l o c i d a d e v e r t i g i n o s a em que  passa   a  operar


a  m e m ó r i a s e n s í v e l  ou  a f e t i v a , sobrecarregada  de  informações;
e n t r e d u a s p r e m i s s a s e uma  conclusio,  introduz-se uma
a v a l a n c h e   de  recordações  a u t o m á t i c a s  que  dseviam o
pensamento  do seu   objetivo.

(8)  Toda  i r r e g u l a r i d a d e p a r c i a l é  a s s i m

r e a b s o r v i d a  na  h a r m o n i a  do  todo.

(9)  Daí a  i d e a l i z a ç ã o da "busca  i n f i n i t a  do

conhecimento", que é a   i n v e r s ã o s a t â n i c a do conhecimento


i n  f i n i 
to.

(9a)   V.  F i o  Conway   and   J i m   S i e g e l m a n , S n a p p i n g .


A m e r i c a ' s  E p i d e m i c of  Sudden  P e r s o n a l i t y   Changes, Ney York,

L i p p r n c o t t ,   1978.

(10)  A  s e i t a  d e   I d r i e s  e   Ornar  ' A l i  S h a h , c u r i o s a

o r g a n i z a ç ã o  g u r d j i e f f i a n a   que se faz   p a s s a r   por uma  t a r í q a h


( escola  s u f i ,   i s t o  é, da  m í s t i c a   i s l â m i c a  ), chega   mesmo
ao  r e q u i n t e de   u s a r  o   l e m a ,  autenticamente  s u f i ,  de que
"o  s e g r e d o  se  p r o t e g e   a si  mesmo".  Os   d i s c í p u l o s não  percebem
que,   no  caso,  eles   protegem o segredo  contra o  assédio
d e l e s  mesmos,   incapacitando-se  a s s i m p a r a q u a l q u e r e n s i n a m e n t o

espi  ri  t u a l   r e a l .

- 23  -
 

(11)  Mas a  r a i v a  tem um dinamismo p r ó p r i o , e acaba


p o r  gerar,  n o   l u g a r   d a   i n t e l i g ê n c i a ,   u m a   m a l í c i a ,  u m a

a s t ü c i a   capaz  de todos  os  sofismas:  a  t r á g i c a   consolação


oferecida pela perda da  i n t e l i g ê n c i a  é a capacidade de
confundir,  embotar e  finalmente sufocar  a  i n t e l i g ê n c i a alheia.

(12)  Rom  Landau, famoso  repórter,  descreve estas


sensações,  que experimentou durante um encontro  com
G u r d j i e f f .   Tivemos pessoalmente  a ocasião nada memorável
de  s e n t i r   as mesmas coisas, em encontros com um notório
g u r d j i e f f i  ano  argentino, que   a l i á s   suspeitamos  ser   mesmo

um dos  inúmeros f i l h o s  que  Gurdjieff gerou  em  suas


d i s c í p u l a s no Castelo  do Prieuré.

(13Í  A mesma organizaçio mencionada na nota   confessa


abertamente  sua  técnica de   r e t i r a r   as  resistências morais
i n f e r i o r e s ,  após o que  seus  d i s c í p u l o s   se  tornam  d e l i n q ü e n t e s ,
l a d r õ e s  e  mentirosos" ( Cf. O  Sufismo no  Ocidente,
trad. bras., Ri o, Der vis h, 1983, que  ê o  "manual"  o f i c i a l

dessa  pseudo-tá  r i q a h .  )

(14)  W h i t a l l   N.   Perry,  G u r d j i e f f   i n the   L i g h t   of

T r a d i t i o n , Bedfont,  M i d d l e s e x ,   P e r e n n i a l  Books,  197Ü

(   2nd.  i.mpr. ,  1979  ), p. 53, n. 18.

Você também pode gostar