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A OBRA EM NEGRO

Título original: L’Œuvre au noir


© Éditions Gallimard, 1968

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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Y74o Yourcenar, Marguerite, 1903-1987


A obra em negro [recurso eletrônico] / Marguerite Yourcenar ; tradução Ivan
Junqueira. - 7. ed. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2018.
recurso digital (Clássicos de ouro)

Tradução de: L’oeuvre au noir


Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 9788520942314 (recurso eletrônico)

1. Ficção francesa. 2. Livros eletrônicos. I. Junqueira, Ivan. II. Título. III. Série.

18-47420 CDD: 843


CDU: 821.133.1-3
Sumário
Capa
Folha de rosto
Ficha catalográfica
Primeira parte. A vida errante
A grande estrada
As infâncias de Zênon
Os lazeres do verão
A festa em Dranoutre
A partida de Bruges
A opinião pública
A morte em Münster
Os Fuggers de Colônia
A conversa em Innsbruck
A carreira de Henrique-Maximiliano
As últimas viagens de Zênon
Segunda parte. A vida imóvel
O retorno a Bruges
O abismo
A doença do Prior
As desordens da carne
O passeio na duna
A ratoeira
Terceira parte. A prisão
O auto de acusação
Uma bela morada
A visita do Cônego
O fim de Zênon
Nota da autora
Sobre a autora
Colofão
Primeira parte
.

A vida errante
Nec certam sedem, nec propriam faciem, nec munus ullum peculiare
tibi dedimus, o Adam, ut quam sedem, quam faciem, quae munera
tute optaveris, ea, pro voto, pro tua sententia, habeas et possideas.
Definita ceteris natura intra praescriptas a nobis leges coercetur. Tu,
nullis angustiis coercitus, pro tuo arbitrio, in cuius manu te posui, tibi
illam praefinies. Medium te mundi posui, ut circumspiceres inde
commodius quicquid est in mundo. Nec te caelestem neque
terrenum, neque mortalem, neque immortalem fecimus, ut tui ipsius
quasi arbitrarius honorariusque plastes et fictor, in quam malueris
tute formam effingas…

Picco della Mirandola, Oratio de hominis dignitate


Não te dei face, nem lugar que te seja próprio, nem dom algum que
te faça particular, ó Adão, a fim de que tua face, teu lugar e teus
dons, tu os desveles, conquistes e possuas por ti mesmo. Natureza
definida de outras espécies em leis por mim estabelecidas. Mas tu,
a que nenhum confim delimita, por teu próprio arbítrio, entre as
mãos daquele que te colocou, tu te defines a ti mesmo. Te pus no
mundo, a fim de que possas melhor contemplar o que contém o
mundo. Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de
que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um
hábil escultor, descubras tua própria forma…
A grande estrada

Henrique-Maximiliano Ligre prosseguia através de pequenas etapas


seu itinerário rumo a Paris.
Disputas opunham o Rei ao Imperador, mas ele tudo ignorava.
Sabia apenas que a paz, velha de alguns meses, se desfazia agora
como um tecido já gasto pelo uso. Não constituía segredo para
ninguém o fato de que Francisco de Valois continuava a espreitar o
Milanês [1] como um amante a quem a amada desprezasse; sabia-se
de fonte segura que ele trabalhava em silêncio para equipar e reunir
junto às fronteiras do Duque de Savoia um novo exército,
encarregado de ir a Pavia soerguer seus baluartes perdidos.
Misturando citações dispersas de Virgílio aos áridos relatos de
viagem do banqueiro seu pai, Henrique-Maximiliano imaginava, para
além dos montes couraçados de gelo, colunas de cavaleiros que
desciam, como num sonho, rumo às regiões férteis e belas:
planícies ruivas, fontes borbulhantes onde bebiam alvos rebanhos,
cidades cinzeladas como escrínios, regurgitantes de ouro, de
especiarias e de couro trabalhado, ricas como empórios, solenes
como igrejas; jardins repletos de estátuas, salas apinhadas de
manuscritos raros; mulheres vestidas de seda à espera do grande
capitão; toda espécie de refinamentos no tempero e na
intemperança, e, sobre mesas de prata maciça, em frascos de vidro
de Veneza, o brando fulgor da malvasia.
Alguns dias antes, abandonara para sempre a casa paterna em
Bruges e seu futuro como filho de comerciante. Um sargento coxo,
que se vangloriava de haver servido na Itália do tempo de Carlos
VIII, contara-lhe uma noite, com gestos de pantomima, seus
grandes feitos, descrevendo-lhe ainda as jovens e os sacos de ouro
sobre os quais chegara a deitar as mãos durante a pilhagem das
cidades. Henrique-Maximiliano pagara-lhe na taberna uma jarra de
vinho pelas bazófias. Refletindo, consigo mesmo julgara que já era
tempo de avaliar por si próprio a esfericidade do mundo. O futuro
condestável hesitou entre alistar-se nas tropas do Imperador ou nas
do Rei de França, e acabou por submeter sua decisão ao que lhe
indicasse a cara ou a coroa; o Imperador perdeu. Uma criada
anunciou os preparativos de partida. Henrique-Justo aplicou então
alguns cascudos ao filho pródigo, acalmou-se em seguida diante de
seu caçula em camisola, sustentado por tiras de pano sobre o
tapete da sala de visitas, e desejou ironicamente ao primogênito que
bons peidos o impelissem quando em companhia daquela raça de
franceses desmiolados. Um pouco por bons sentimentos paternos,
muito por bravata, e para provar-se a si próprio que possuía
influência, prometeu escrever em data aprazada a seu agente
lionês, o Mestre Muzot, para recomendar o filho incontrolável ao
Almirante Chabot de Brion, então crivado de dívidas junto ao Banco
Ligre. Por mais que Henrique-Maximiliano sacudisse dos pés a
poeira da casa comercial familiar, não se é à toa o filho de um
homem que faz subir ou descer o preço das mercadorias e que
empresta aos príncipes. A mãe do futuro herói encheu-lhe os bolsos
de vitualhas e deu-lhe furtivamente o dinheiro para a viagem.
Ao passar por Dranoutre, onde o pai possuía uma casa de campo,
persuadiu o intendente a deixá-lo trocar o cavalo, que já coxeava,
por um belo animal da estrebaria do banqueiro. Revendeu-o logo
depois de passar por São Quintino, em parte porque a magnífica
montada fazia crescer como que por mágica os algarismos que os
taberneiros lhe lançavam nas contas, em parte porque esse
equipamento, muito rico, o impedia de fruir tanto quanto desejava os
prazeres da grande estrada. Para poupar seu pecúlio, que lhe
escorria por entre os dedos mais rápido do que se poderia crer,
comia com os carroceiros o toucinho rançoso e os grãos-de-bico
servidos em estalagens de baixa categoria; à noite, dormia sobre a
palha, mas perdia de bom grado, em rodadas de vinho e em jogos
de cartas, as somas que economizara ao evitar as melhores
estalagens. De tempos em tempos, em uma fazenda isolada, uma
viúva caridosa lhe oferecia pão e leito. Não esquecera a boa
literatura, tendo o cuidado de fornir os bolsos de pequenos volumes
encadernados em pele de ovelha, tomados por prévio direito de
herança à biblioteca de seu tio, o Cônego Bartolomeu Campanus,
que colecionava os livros. Ao meio-dia, estendido sobre a relva de
um prado, ria às gargalhadas de um epigrama de Marcial, ou ainda,
mais sonhador, cuspindo melancolicamente sobre a água de uma
charneca, sonhava com a dama sábia e discreta a quem dedicaria,
em sonetos à maneira de Petrarca, a alma e a vida. Meia hora
depois adormecia; as botas apontavam para o céu como torres de
igreja; os talos esguios das aveias eram como que uma companhia
de lansquenês, [2] enfiados em suas grosseiras e longas blusas
verdes; uma papoula semelhava uma bela jovem com as anáguas
amarrotadas. Em outros momentos, o jovem gigante esposava a
terra. As moscas o despertavam, ou então era o repicar dos sinos
de um campanário de aldeia; o gorro caído sobre a orelha, os ciscos
entre os cabelos amarelos, a esguia figura talhada em ângulo, toda
em riste, crestada pelo sol e a água fria, Henrique-Maximiliano
caminhava alegremente rumo à glória.
Trocava gracejos com os transeuntes e inteirava-se das
novidades. Desde La Fère, um peregrino o precedia ao longo da
estrada a uma distância de cem toesas. [3] Ele ia rápido. Aborrecido
por nada ter o que lhe falar, Henrique-Maximiliano apressou o
passo.
— Reze por mim em Compostela [4] — arriscou o jovial flamengo.
— Pois não é que você adivinhou — disse o outro. — É para lá
que eu vou.
O viandante voltou a cabeça sob o capuz de tecido marrom, e
Henrique-Maximiliano reconheceu Zênon.
O rapaz magro, de pescoço longo, parecia haver encorpado de um
côvado desde a última aventura de ambos na feira de outono. O
belo rosto, sempre muito pálido, parecia gasto, e acusava ele no
andar uma espécie de precipitação arisca.
— Salve, primo! — disse alegremente Henrique-Maximiliano. — O
Cônego Campanus esperou por você em Bruges durante todo o
inverno; o Magnífico Reitor de Lovaina inquieta-se com sua
ausência, e eis que você reaparece na curva fechada de um
caminho, como quem nem eu saberia dizer.
— O Abade Mitrado da Catedral de São Bavo, de Gand, arranjou-
me um emprego — disse Zênon com prudência. — Não lhe parece
um protetor digno de menção? Mas diga-me antes por que se você
faz de mendigo pelas estradas de França.
— Talvez você tenha algo a ver com isso — respondeu o mais
jovem dos peregrinos. — Renunciei à casa comercial de meu pai
como você à Escola de Teologia. Mas eis que agora você reincide e
troca o Magnífico Reitor pelo Abade Mitrado…
— O que você quer é troçar — disse o clérigo. — Sempre se
começa por ser o famulus [5] de alguém.
— Antes carregar o arcabuz — respondeu Henrique-Maximiliano.
Zênon lançou-lhe um olhar de desdém.
— Seu pai é bastante rico para comprar-lhe a melhor companhia
de lansquenês do César Carlos — disse —, caso achem vocês dois
que o negócio das armas seja uma conveniente ocupação de
homem.
— Os lansquenês que me poderia comprar meu pai encantam-me
tanto quanto lhe agradam os seus abades — retrucou Henrique-
Maximiliano. — E de resto, aliás, não há senão em França quem
sirva bem às damas.
O gracejo caiu no vazio. O futuro capitão afastou-se para comprar
de um camponês um punhado de cerejas. E sentaram-se ambos
junto às bordas de uma escarpa para saboreá-las.
— Você bem que se disfarçou de tolo — disse Henrique-
Maximiliano, observando atentamente o hábito do peregrino.
— Sim — assentiu Zênon. — Mas é que eu já estava farto dos
livros. Prefiro soletrar textos que se movem: mil algarismos romanos
e árabes; letras cursivas tanto da esquerda para a direita, como as
de nossos copistas, quanto da direita para a esquerda, como as dos
manuscritos orientais. Rasuras que são a peste ou a guerra.
Rubricas grafadas a sangue vivo. E signos por toda parte e, aqui e
ali, manchas ainda mais estranhas do que signos… Que vestes
poderiam ser mais cômodas ao anonimato nas estradas?…. Meus
pés rodopiam pelo mundo como insetos na espessura de um
saltério.
— Muito bem — comentou distraidamente Henrique-Maximiliano.
— Mas por que essa viagem a Compostela? Não o imagino sentado
entre os fradalhões nem a cantar pelas ventas.
— Ah! — exclamou o peregrino. — Que tenho eu a ver com esses
mandriões e preguiçosos? Mas o Prior dos Jacobitas de León é
amante da alquimia. Ele se correspondeu com o Cônego
Bartolomeu Campanus, nosso bondoso tio, insípido idiota que às
vezes se aventura, como que por descuido, para além dos limites
proibidos. O Abade de São Bavo, por sua vez, convenceu-o por
carta a colocar-me a par do que sabe. Devo apressar-me, pois ele é
velho. Temo que esqueça o que aprendeu e venha logo a morrer.
— Ele haverá de servir-lhe cebolas cruas, e você fará espumar
sua sopa de cobre temperada com enxofre. Bela receita! Espero
conseguir a custo mais baixo melhores pitanças.
Zênon levantou-se sem responder. E Henrique-Maximiliano,
cuspindo então pelo caminho os últimos carocinhos de cereja:
— A paz está sob ameaça, irmão Zênon. Os príncipes disputam
fatias de terra como os bêbados de taberna o fazem pelos pratos.
Aqui, a Provença, esse favo de mel; acolá, o Milanês, esse patê de
enguias. De tudo isso cairá sempre uma migalha de glória que
poderei mordiscar.
— Ineptissima vanitas [6] — disse secamente o jovem clérigo. —
Será que você ainda dá importância a esse tipo de falácia?
— Tenho agora dezesseis anos — respondeu Henrique-
Maximiliano. — Daqui a quinze, vejamos se não serei por acaso a
réplica de Alexandre. E, dentro de trinta, saberemos se fui ou não
outro César. Por que iria eu passar minha vida a medir cortes de
fazenda numa loja da Rua das Lãs? Trata-se de ser homem.
— Estou com vinte anos — calculou Zênon. — Pensando bem,
tenho pela frente meio século de estudos antes que este crânio se
transforme em caveira. É a Plutarco que você deve sua exaltação e
seus heróis, irmão Henrique. Para mim, trata-se de ser mais do que
um homem.
— Vou para o lado dos Alpes — disse Henrique-Maximiliano.
— Eu, para o lado dos Pireneus — aduziu Zênon.
Calaram-se. A estrada plana, ladeada de álamos, estendia diante
deles um fragmento do universo livre. O aventureiro do poder e o
aventureiro do saber caminhavam lado a lado.
— Observe — continuou Zênon. — Para além dessa aldeia, outras
aldeias; para além dessa abadia, outras abadias; para além dessa
fortaleza, outras fortalezas. E em cada um desses castelos de
ideias, desses casebres de opiniões superpostos aos casebres de
madeira e aos castelos de pedras, a vida enclausura os loucos e
rasga uma fenda para os sábios. Para além dos Alpes, a Itália. Para
além dos Pireneus, a Espanha. De um lado, a terra della Mirandola,
do outro, a de Avicena. E, mais para além, o mar; e, para além do
mar, em outras orlas de imensidão, a Arábia, o Peloponeso, a Índia,
as duas Américas. E em toda parte, os vales onde se abrigam os
simples, os rochedos onde dormem os metais, cada um
simbolizando um momento da Grande Obra, [7] as fórmulas mágicas
trincadas entre os dentes dos mortos, os deuses cada um com sua
promessa, as multidões em que cada um de nós se toma por centro
do universo. Quem seria suficientemente insano para morrer sem
pelo menos ter visto a torre de sua prisão? Veja, irmão Henrique,
sou de fato um peregrino. A estrada é longa, mas sou ainda muito
jovem.
— O mundo é grande — disse Henrique-Maximiliano.
— O mundo é grande — repetiu gravemente Zênon. — Praza
Àquele que É dilatar talvez o coração humano na medida de toda a
vida.
E outra vez se calaram. Ao fim de um momento, Henrique-
Maximiliano, meneando a cabeça, rebentou numa gargalhada:
— Zênon — disse —, lembra-se daquele seu amigo Colas Gheel,
o homem dos copos de cerveja, seu irmão segundo São João? Ele
deixou a fábrica de meu bom pai, onde aliás se morre de fome;
regressou a Bruges; perambulou pelas ruas, um rosário na mão,
rosnando padre-nossos pela alma de Tomás, cujo cérebro suas
máquinas perturbaram, e trata você de sequaz do Diabo, de Judas e
de Anticristo. Quanto a Perrotin, ninguém sabe onde está; Satã o
conquistou.
Uma sombria contração deformou o rosto do jovem clérigo e
envelheceu-o:
— Tudo isso não passa de frivolidades — disse. — Deixemos os
ignorantes. Eles são o que são: você herdará um dia o ouro em que
seu pai transforma a carne bruta. Não me fale de máquinas ou
pescoços partidos, e eu não lhe falarei nem de éguas estafadas
vendidas a crédito ao cavalariço de Dranoutre, nem das moças
seduzidas ou dos barris de vinho abertos por você durante o último
verão.
Henrique-Maximiliano, sem responder, assobiava distraidamente
uma canção de aventureiro. E não mais se ocuparam senão com a
condição das estradas e os preços das estalagens.

Separaram-se na encruzilhada seguinte. Henrique-Maximiliano


tomou a estrada principal, enquanto Zênon se enfiou por um atalho.
Súbito, o mais jovem dos dois se voltou e reuniu-se ao
companheiro, pondo a mão sobre os ombros do peregrino:
— Irmão — disse ele —, lembra-se de Wiwine, aquela menina
pálida que você defendeu um dia quando nós, bons patifes, lhe
beliscávamos as nádegas ao sair da escola? Ela o ama e pretende
ligar-se a você por um voto; outro dia mesmo, recusou a proposta
de um oficial da municipalidade. A tia esbofeteou-a e colocou-a a
pão e água, mas ela não fraquejou. E disse que, se for preciso,
esperará por você até o fim do mundo.
Zênon se deteve. Algo de indeciso cruzou-lhe o olhar e nele se
dissipou, como a umidade que se evapora sobre um braseiro.
— Tanto pior — disse. — O que há de comum entre mim e essa
moça esbofeteada? Além, um outro me espera. É a ele que me
dirijo.
E retomou o passo.
— Quem? — perguntou Henrique-Maximiliano, estupefato. — O
prior de León, aquele desdentado?
Zênon se voltou:
— Hic Zenon [8] — respondeu. — Eu mesmo.
As infâncias de Zênon

Vinte anos antes, Zênon viera ao mundo em Bruges na casa de


Henrique-Justo. A mãe se chamava Hilzonda, e o pai, Alberico de’
Numi, era um jovem prelado descendente de antiga linhagem
florentina.
Com seus longos cabelos, Messer Alberico de’ Numi brilhara na
corte dos Bórgias no ardor de sua primeira adolescência. Entre duas
corridas de touros na Praça de São Pedro, comprazia-se em falar
sobre cavalos e máquinas de guerra com Leonardo da Vinci, então
engenheiro de César. Depois, no sombrio tumulto de seus vinte e
dois anos, pertenceu ao restrito círculo de jovens fidalgos que a
apaixonada amizade de Miguel Ângelo honrava como um título.
Viveu aventuras que terminaram na ponta dos punhais; iniciou uma
coleção de peças e objetos remanescentes da Antiguidade greco-
romana; uma discreta relação com Júlia Farnese não trouxe danos à
sua fortuna. Em Sinigáglia, seus lances de astúcia, que ajudaram a
eliminar numa emboscada os adversários da Santa Sé, valeram-lhe
os favores do papa e de seu filho; prometeram-lhe de pronto o
Arcebispado de Nerpi; a repentina morte do Santo Padre adiou,
porém, essa promoção. Tal desapontamento, ou talvez um amor
contrariado cujo segredo jamais se soube, lançou-o por inteiro,
durante algum tempo, à mortificação e ao estudo.
Acreditou-se à primeira vista em alguma ambiciosa sutileza.
Todavia, esse homem imoderado estava possuído de um furioso
impulso de ascetismo. Dele se dizia que se estabelecera em Grotta-
Ferrata, na abadia dos monges gregos de São Nilo, no coração de
uma das mais ásperas solidões do Lácio, onde trabalhava, fiel à
meditação e à prece, em sua tradução latina da Vida dos
Anacoretas; foi necessária uma ordem expressa de Júlio II, que
estimava sua seca inteligência, para que ele se dispusesse a
continuar, na qualidade de secretário apostólico, os trabalhos da
Liga de Cambrai. Apenas recém-chegado, assumiu nas discussões
uma autoridade que se sobrepunha à do próprio delegado da Cúria
Romana. Os interesses da Santa Sé no desmembramento de
Veneza, com os quais ele não havia sonhado mais de duas vezes
em toda a vida, ocupavam-no agora por completo. Nos banquetes
que se ofereceram durante os trabalhos da Liga, Messer Alberico
de’ Numi, vestido de púrpura como um cardeal, impôs a
incomparável imponência que o tornou conhecido como o Único
pelos cortesãos romanos. Foi ele que, durante uma acalorada
controvérsia, ao colocar sua oratória ciceroniana a serviço de um
surpreendente ímpeto de convicção, conquistou a adesão dos
embaixadores de Maximiliano. Depois, como uma carta de sua mãe,
florentina agarrada ao dinheiro, lhe recordasse algumas dívidas a
serem cobradas aos Adornos de Bruges, decidiu recuperar
imediatamente essas quantias tão indispensáveis à sua carreira de
príncipe da Igreja.
Instalou-se então em Bruges, na casa de seu agente flamengo
Justo Ligre, que lhe ofereceu hospitalidade. Esse homem corpulento
era tão apaixonado pelo italianismo a ponto de imaginar que uma
ancestral sua, por ocasião de uma dessas viuvezes temporárias de
que sofrem as mulheres dos mercadores, deveria ter dado ouvidos
às conversas de um negociante genovês qualquer. Messer Alberico
de’ Numi consolou-se de só ser pago em letras de câmbio emitidas
pelos Herwarts de Augsburgo, fazendo com que o anfitrião
respondesse pela despesa com seus cães, falcões e pajens.
Situada ao lado de seus empórios, a Casa Ligre era mantida com
opulência principesca; comia-se ali do bom e do melhor; e ali melhor
ainda se bebia; e conquanto não lesse senão os registros de sua
indústria têxtil, Henrique-Justo muito se orgulhava de possuir livros.
Amiúde em viagem por montes e vales, em Tournai, em Malines,
onde fazia pagamentos antecipados à Regente; em Anvers, onde
acabara de associar-se em regime de partilha ao aventureiro
Lambrecht von Rechterghem no comércio da pimenta e outras
especiarias de além-mar; em Lyon, onde fazia questão de acertar
pessoalmente suas transações bancárias na Feira de Todos os
Santos, confiava ele o comando da família à sua jovem irmã
Hilzonda.
Sem demora, Messer Alberico de’ Numi enamorou-se dessa
menina de seios tímidos, de rosto fino, vestida em rígidos veludos
brocados que pareciam sustentá-la, e adornada, em dias de festa,
de joias que despertariam a cobiça de uma imperatriz. Pálpebras
nacaradas, quase róseas, engastavam-lhe os pálidos olhos
cinzentos; a boca, algo túmida, parecia sempre prestes a exalar um
suspiro, ou a primeira palavra de uma prece ou de um canto. E
talvez ninguém pensasse sequer em despi-la, tão difícil era imaginá-
la nua.
Por uma noite de neve que fazia sonhar mais intensamente com
tépidos leitos em quartos bem fechados, uma criada a quem Messer
Alberico subornara, introduziu-o à sala de banho onde Hilzonda
friccionava com polvilho os longos cabelos anelados que a cobriam
à semelhança de um manto. A menina escondeu o rosto, mas
abandonou sem luta o alvo e límpido corpo, qual uma amêndoa
imaculada, aos olhos, aos lábios e às mãos do amante. Nessa noite,
o jovem florentino bebeu da fonte interdita, domesticou as duas
cabritinhas gêmeas, ensinou àquela boca os jogos e as carícias do
amor. Quando raiou a aurora, uma Hilzonda enfim conquistada
entregou-se por completo e, pela manhã, raspando com a ponta das
unhas o níveo vidro do gelo, nele gravou, com a ajuda de um anel
de brilhantes, suas iniciais entrelaçadas às do amante, imprimindo
assim as marcas de sua felicidade na substância tíbia e
transparente, frágil decerto, mas não tanto quanto a carne e o
coração.
Seus deleites se acresciam de todos os prazeres do tempo e do
lugar: sábias músicas que Hilzonda executava ao pequeno órgão
hidráulico que lhe dera o irmão, vinhos fortemente rascantes,
quartos aquecidos, passeios de barco nos canais ainda azuis do
degelo, ou cavalgadas de maio pelos campos em flor. Messer
Alberico fruiu boas horas, mais amenas talvez do que as
proporcionadas por Hilzonda, a pesquisar nos tranquilos mosteiros
holandeses antigos manuscritos esquecidos; os eruditos italianos
aos quais comunicava seus trabalhos acreditavam que nele
ressurgia o gênio do grande Marsílio. [9] À noite, sentados diante do
fogo, os amantes contemplavam juntos uma grande ametista trazida
da Itália em que se viam Sátiros enlaçados a Ninfas, e o florentino
ensinava a Hilzonda as palavras que, em seu país, designavam as
coisas do amor. Compôs para ela uma balada em idioma toscano;
os versos que dedicou a essa filha de comerciantes poderiam
adequar-se à Sulamita do Cântico.
Foi-se a primavera; veio o verão. Um belo dia, uma carta de seu
primo João de Médicis, em parte cifrada, em parte redigida no tom
de pilhéria com que este temperava todas as coisas, a política, a
erudição e o amor, trouxe a Messer Alberico detalhes das intrigas
curiais e romanas de que o privara a estada em Flandres. Júlio II
não era imortal. Apesar dos idiotas e dos que recebiam generosos
salários, todos já comprados por Riário, o rico papalvo, o sutil
Médicis tramava havia muito e com extremo zelo sua eleição pelo
próximo conclave. Messer Alberico não ignorava que algumas de
suas entrevistas com os homens de negócios do Imperador não
haviam sido suficientes para desculpar aos olhos do atual Pontífice
a inconveniente prorrogação de sua ausência; sua carreira
dependia, de agora em diante, do primo tão papável. Haviam
brincado juntos nos terraços de Careggi; mais tarde, João o
introduzira à sua restrita e distinta plêiade de literatos algo bufões e
não menos alcoviteiros; Messer Alberico gabava-se de controlar
esse homem fino, mas de uma tibieza de donzela; ele o ajudaria a
sentar-se no trono de São Pedro; seria, um pouco à socapa, e
resguardando-se melhor, o ordenador de seu reino. E dedicou uma
hora a organizar sua partida.
Talvez fosse um homem sem alma. Talvez seus repentinos ardores
se confundissem com o transbordamento de uma inacreditável força
corpórea; talvez, esplêndido ator, ensaiasse sem cessar uma nova
maneira de sentir; ou antes tudo isso não passasse de uma
sequência de atitudes soberbas e violentas, arbitrárias, como as que
assumem as figuras de Buonarotti sob as abóbadas da Capela
Sistina. Lucca, Urbino, Ferrara, peões sobre o tabuleiro de xadrez
de sua família, lhe interrompiam de súbito as planas paisagens de
verdura e de água em que por um momento ele consentira em viver.
Finalmente, após empilhar nos cofres seus fragmentos de antigos
manuscritos e rascunhos de poemas de amor, de botas e esporas,
enluvado de couro e entoucado de feltro, mais do que nunca
cavaleiro e menos do que nunca prelado, achegou-se a Hilzonda
dando-lhe a entender que partiria.
Ela estava grávida. E sabia-o. Mas nada lhe disse. Frágil para
opor-se a seus ambiciosos projetos, era, todavia, muito orgulhosa
para se prevalecer de uma evidência que o talhe esguio e o ventre
raso não poderiam confirmar. Não lhe agradaria ser acusada de
mentirosa e, pouco menos pior, de se tornar inoportuna. Alguns
meses depois, entretanto, ao pôr no mundo um varão, julgou que
não tinha o direito de deixar Messer Alberico de’ Numi na ignorância
de que lhe propiciara um filho. Mal sabia escrever, e levou horas
para redigir uma carta, apagando com o dedo palavras inúteis;
afinal, após concluir a missiva, confiou-a a um mercador genovês de
toda confiança, então de partida para Roma. Messer Alberico jamais
lhe respondeu. Embora o genovês lhe assegurasse depois que ele
próprio entregara a mensagem, Hilzonda preferiu acreditar que o
homem a quem amava jamais a recebera.
Seu efêmero amor, logo seguido de brusco abandono, saciou a
jovem de volúpias e desgostos; enfastiada da carne e do fruto que
esta lhe dera, parecia estender ao filho a aborrecida reprovação que
a si própria fizera. Imóvel no leito de fêmea recém-parida, Hilzonda
olhava com indiferença as criadas enfaixarem a pequena massa
amorenada à luz das brasas da lareira. Como a bastardia fosse
então acidente comum, Henrique-Justo não encontrou dificuldades
em negociar para a irmã vantajosos casamentos, mas a lembrança
do homem a quem não mais amava foi o bastante para afastá-la do
incômodo burguês que o sacramento poderia ter posto junto dela
sob o edredom e sobre o travesseiro. Arrastava indiferente os
esplêndidos vestidos que o irmão fazia talhar nos mais caros tecidos
e estofos, e, antes por rancor para consigo própria do que por
remorso, Hilzonda se abstinha de vinhos, de iguarias refinadas, do
calor do fogo e, não raro, de roupas brancas. Comparecia
pontualmente aos ofícios religiosos; à noite, todavia, após o jantar,
se ocorria que um dos convidados de Henrique-Justo proclamasse a
libertinagem e as exações romanas, ela se detinha para melhor
entender seu bordado, rompendo às vezes maquinalmente um fio
de linha que logo emendava. Depois, os homens deploravam o
assoreamento do porto, que esvaziava Bruges e enriquecia outros
sítios mais acessíveis aos navios; zombava-se do engenheiro
Lancelot Blondeel, que, através da abertura de fossas e canais,
pretendia extirpar esses cálculos arenosos. Ou então circulavam
gracejos obscenos; alguém contava um caso, vinte vezes repisado,
de amante sôfrego, de marido enganado, de sedutor escondido
numa barrica ou de negociantes astutos a se lograrem uns aos
outros. Hilzonda ia à cozinha fiscalizar o que restara do jantar; e mal
arriscava uma olhadela para o filho, que chupava gulosamente o
seio de uma ama de leite.

Certa manhã, Henrique-Justo, ao retornar de uma de suas


viagens, apresentou-lhe um novo hóspede. Era um homem de
barbas grisalhas, tão simples e tão grave que, vendo-o, se poderia
pensar no vento salubre de um mar sem sol. Simão Adriansen temia
a Deus. A meia-idade que chegava e uma fortuna que se diria
honestamente ganha davam ao negociante zelandês dignidade de
patriarca. Enviuvara por duas vezes: duas fecundas donas de casa
lhe haviam sucessivamente ocupado o lar e o leito antes de
repousarem lado a lado no jazigo perpétuo da família, junto ao muro
de uma igreja de Middelburgo; os filhos, por sua vez, também
fizeram fortuna. Simão era desses cujo desejo inspira às mulheres
uma solicitude fraterna. Por julgar que Hilzonda era triste, adquiriu o
hábito de sentar-se junto dela.
Henrique-Justo nutria por ele fundo reconhecimento. O crédito
desse homem sustentara-o em momentos difíceis; respeitava Simão
a ponto de não se exceder na bebida quando em sua presença.
Contudo, a tentação dos vinhos era grande. E não tardou muito para
que confidenciasse ao hóspede os infortúnios de Hilzonda.
Como ela trabalhasse na sala, sob a janela, certa manhã de
inverno, Simão Adriansen dela se acercou e disse-lhe com
solenidade:
— Um dia, Deus revogará no coração humano todas as leis que
não forem as do amor.
Ela não compreendeu. Ele continuou:
— Um dia, Deus não aceitará outro batismo que não seja o do
Espírito nem outro sacramento matrimonial além daquele que
ternamente celebram os corpos.
Hilzonda pôs-se a tremer. E o homem gravemente suave começou
a lhe falar do sopro de uma nova sinceridade que percorria o
mundo, do engodo de toda lei capaz de complicar a obra de Deus,
da vinda de um tempo em que a simplicidade de amar seria igual à
simplicidade de crer. Em sua linguagem figurada como a das folhas
de uma Bíblia, as parábolas se misturavam à lembrança dos Santos
que, segundo ele, levaram a tirania romana a uma situação crítica;
falando em tom mais baixo, e não sem antes averiguar se as portas
estavam fechadas, confessou hesitar ainda em tornar público o seu
ato de fé anabatista, embora secretamente já repudiasse as pompas
caducas, os ritos inúteis e os sacramentos ilusórios. A dar-se-lhe
crédito, os Justos, vítimas e privilegiados, formavam de geração em
geração um pequeno grupo infenso aos crimes e às insânias do
mundo; o pecado estava apenas no erro; para os corações castos, a
carne era pura.
Falou depois do filho dela. O menino de Hilzonda, concebido fora
das leis da Igreja, e contra elas, parecia-lhe mais fadado do que
qualquer outro a receber e transmitir um dia a boa-nova dos Simples
e dos Santos. O amor da virgem precocemente seduzida pelo belo
demônio italiano de feições angélicas tornara-se aos olhos de Simão
uma misteriosa alegoria: Roma era a Prostituta da Babilônia a quem
a inocente fora sordidamente sacrificada. Por vezes, um crédulo
sorriso de visionário aflorava em seu largo e vigoroso rosto,
embebendo-lhe a voz calma com a entonação peremptória daquele
que se empenha em convencer-se e amiúde em lograr-se a si
próprio. Contudo, na pessoa do estrangeiro, Hilzonda só se
mostrava sensível à sua tranquila bondade. Ao passo que todos os
que rodeavam a jovem não lhe haviam até então revelado senão
escárnio, piedade ou uma simplória e grosseira indulgência, Simão
lhe dizia, falando do homem que a abandonara:
— Seu esposo.
E advertia solenemente que toda união é indissolúvel diante de
Deus. Hilzonda se aquietava ao ouvi-lo falar. Sempre triste, tornou-
se altiva. A casa dos Ligres, que o orgulho do comércio marítimo
blasonara com um navio, era tão familiar a Simão quanto sua
própria residência. O amigo de Hilzonda retornava a cada ano; ela o
aguardava e, mão na mão, conversavam sobre a igreja em espírito
que haveria de substituir a Igreja.

Por uma noite de outono, negociantes italianos lhe trouxeram


notícias. Messer Alberico de’ Numi, nomeado cardeal aos trinta
anos, fora assassinado em Roma durante uma orgia em uma das
vinhas dos Farneses. Os pasquins de maior circulação
responsabilizavam pelo crime o Cardeal Júlio de Médicis,
desgostoso da influência que seu parente passara a exercer sobre o
espírito do Santo Padre.
Simão escutou com desdém esses vagos ruídos emanados da
sentina romana. Uma semana depois, entretanto, um relatório
recebido por Henrique-Justo confirmou tais suspeitas. A aparente
tranquilidade de Hilzonda não autorizava conjecturar se, no íntimo,
ela se regozijava ou chorava.
— Ei-la viúva — disse-lhe prontamente Simão Adriansen com o ar
de terna solenidade que sempre assumia para com ela.
Contrariamente aos prognósticos de Henrique-Justo, partiu no dia
seguinte.
Seis meses depois, na data de costume, regressou e pediu-a em
casamento ao irmão.
Henrique-Justo fê-lo entrar na sala onde Hilzonda trabalhava. Ele
sentou-se ao seu lado. E disse-lhe:
— Deus não nos deu o direito de fazer sofrer suas criaturas.
Hilzonda interrompeu o bordado, deixando as mãos pousadas
contra a tela, e os longos dedos trêmulos sobre os ramos
inacabados do motivo faziam pensar nos arabescos entrelaçados do
futuro. Simão prosseguiu:
— Como poderia Deus nos dar o direito de nos fazermos sofrer um
ao outro?
A bela jovem ergueu para ele o rosto de criança enferma. Simão
ponderou:
— Você não é feliz nesta casa cheia de risos; a minha está repleta
de um grande silêncio. Venha.
Ela aceitou.
Henrique-Justo esfregava as mãos. Jacqueline, sua querida
mulher, desposada pouco após os dissabores de Hilzonda,
queixava-se ruidosamente por não haver sido aceita na família
senão depois de uma prostituta e do bastardo de um padre,
enquanto o sogro, o rico negociante tournaisiano [10] João Bell, valia-
se dessas lamúrias para adiar o pagamento do dote. E, de fato,
ainda que Hilzonda descuidasse do filho, o mais insignificante
chocalho que porventura se concedesse à criança concebida nos
lençóis da legitimidade punha em pé de guerra as duas mulheres.
De agora em diante, a loura Jacqueline poderia afogar-se o quanto
quisesse em toucas e babadouros bordados, além de permitir que,
nos dias de festa, seu truculento Henrique-Maximiliano
engatinhasse sobre a mesa, enfiando os pés dentro dos pratos.
Apesar de sua aversão às cerimônias religiosas, Simão consentiu
que as bodas fossem celebradas com certa pompa, já que fora este,
de modo inesperado, o desejo de Hilzonda. À noite, porém, quando
os noivos se retiraram para a câmara nupcial, Simão readministrou
à sua maneira o sacramento, cortando o pão ao meio e bebendo o
vinho com sua eleita. Ao contato desse homem, Hilzonda renascia
como um barco encalhado que a maré-cheia impelisse. Degustava o
mistério sem pudor dos prazeres permitidos e o modo pelo qual o
homem já vivido, curvado sobre suas espáduas, lhe acariciava os
seios, como se o amor fosse uma forma de bênção.
Simão Adriansen cuidava de Zênon; o menino, contudo,
empurrado por Hilzonda em direção ao rosto barbudo e enrugado,
no qual uma verruga pendia sobre o lábio, gritava, debatia-se e
ariscamente se furtava às mãos maternas e aos anéis que lhe
magoavam os dedos. E fugia. Encontravam-no à noite, escondido
no forno do fundo do jardim, pronto a morder o criado que o retirava
sorrindo de detrás de uma pilha de buxos. Quase desesperado pelo
esforço de domesticar o pequeno lobo, Simão decidiu deixá-lo em
Flandres. Ademais, era óbvio que a presença do menino agravava a
tristeza de Hilzonda.

Zênon cresceu para a Igreja. O clericato constituía para um


bastardo o mais seguro meio de viver comodamente e alcançar
honrarias. Além disso, a fúria de saber, que em boa hora o possuiu,
que os gastos com tinta de escrever e velas que ardiam até o raiar
da aurora não pareciam toleráveis ao tio senão no caso de um
noviço. Henrique-Justo confiou então o estudante aos cuidados do
cunhado, Bartolomeu Campanus, Cônego da Ordem de São
Donato, em Bruges. Esse sábio, consumido pela prece e pelo
estudo das letras, era tão suave que parecia já envelhecido.
Ensinou ele a seu aluno o latim, o pouco que sabia de grego e
alquimia, e instigou a curiosidade de Zênon pelas ciências com a
ajuda da História Natural de Plínio. O frio gabinete do cônego era
um refúgio ao qual se recolhia o jovem para escapar às vozes dos
agentes de venda que discutiam os preços dos tecidos ingleses, à
anódina sabedoria de Henrique-Justo, e às carícias das criadas
curiosas de frutos por amadurecer. Ali ele se libertava da servidão e
da pobreza da infância; aqueles livros e aquele mestre o tratavam
como homem. Zênon adorava o quarto atapetado de volumes, a
pena de ganso, o tinteiro de osso, utensílios de um novo
conhecimento, e a riqueza que consistia em aprender que o rubi
vem da índia, que o enxofre se combina ao mercúrio e que a flor
denominada lilium em latim chama-se krínon em grego e susannah
em hebraico. Percebeu depois que os livros divagam e mentem
como os homens, e que as prolixas explicações do cônego tinham
amiúde por objetivo fatos que, não os sendo, prescindiam de
qualquer explicação.
Suas amizades inquietavam: as companhias que Zênon escolhera
nessa época eram o barbeiro João Myers, homem hábil, sem rival
na sangria e no entalhe da pedra, mas de quem se suspeitava já
haver dissecado cadáveres, e certo tecelão chamado Colas Gheel,
lascivo e fanfarrão, com quem perdia horas e horas, melhor
empregadas no estudo e na prece, a combinar o movimento de
polias e manivelas. Esse homem rotundo, a um tempo ágil e
pesado, que gastava sem contar o dinheiro de que não dispunha,
passava por príncipe aos olhos dos aprendizes cujas despesas
pagava nos dias de quermesse. A sólida massa de músculos, de
cabelos ruivos e pele dourada, abrigava um desses espíritos ao
mesmo tempo quiméricos e circunspectos que se ocupam
continuamente em afiar, reajustar, simplificar e complicar qualquer
coisa. A cada ano, fábricas fechavam nos arredores da cidade; e
Henrique-Justo, que se jactava de manter as suas abertas por
caridade cristã, aproveitava o desemprego para diminuir
periodicamente os salários. Seus amedrontados operários, muito
felizes de possuírem ainda uma colocação e um relógio que cada
dia os chamava ao trabalho, viviam assim sob o signo de vagos
rumores de fechamento das fábricas, comentando com lástima a
circunstância de que em breve poderiam juntar-se aos grupos de
mendigos que, por aqueles tempos de carestia, assustavam os
burgueses e percorriam as estradas. Colas sonhava em aliviar o
peso dos esforços e aflições dessa gente através do uso de teares
mecânicos como os que estavam sendo experimentados aqui e ali,
sob grande sigilo, em Ypres, Gand, e Lyon, em França. Ele vira os
desenhos e os comunicara a Zênon; o estudante corrigiu alguns
números, encantou-se com as épuras, transformou o entusiasmo de
Colas pelos novos engenhos em mania compartilhada. De joelhos,
curvados lado a lado sobre um monte de ferragens, jamais se
fatigavam de se ajudarem a suspender um contrapeso, a ajustar
uma alavanca, a montar e a desmontar rodas que se engrenavam
umas nas outras; discussões intermináveis se estabeleciam em
torno da colocação de um eixo de roldana ou da lubrificação de uma
peça. A engenhosidade de Zênon superava de muito a de que era
capaz o lento cérebro de Colas Gheel, mas as rudes mãos do
artesão eram de uma destreza que maravilhava o aluno do cônego,
pela primeira vez entregue a outra coisa que não fossem os livros.
— Prachtig werk, mijn zoom, prachtig werk [11] — dizia
vagarosamente o contramestre, passando o pesado braço em torno
do pescoço do estudante.
À noite, após o estudo, Zênon reunia-se de novo em segredo com
o comparsa, arremessando um punhado de gravetos contra a
vidraça da taberna na qual o chefe da oficina costumava demorar-se
mais do que devia. Ou então, quase às escondidas, se esgueirava
até a esquina do entreposto deserto onde Colas residia com suas
máquinas. A grande peça era sombria; por medo do fogo, a vela
queimava no centro de uma bacia com água colocada sobre a
mesa, como um pequenino farol no meio de um minúsculo mar. O
aprendiz Tomás de Dixmude, que servia de faz-tudo ao chefe da
oficina, saltava como um gato, por divertimento, sobre os caixilhos
oscilantes, e caminhava na negra noite dos forros, balançando
numa das mãos uma lanterna ou um copo de cerveja. Colas Gheel
ria então a valer. Sentado sobre uma prancha, a revirar os olhos,
ouvia as divagações de Zênon, que galopavam dos átomos de
Epicuro à duplicação do cubo, e da natureza do ouro à tolice das
provas da existência de Deus. E um pequeno assobio de admiração
lhe escapava dos lábios. O escolar encontrava entre esses homens
enfiados em casacos de couro o que os filhos dos grãos-senhores
encontravam junto aos criados e moços de estrebaria: um mundo
mais rude e mais livre do que o seu, pois se movia mais abaixo,
longe dos preceitos e dos silogismos; a alternância tranquilizante de
trabalhos grosseiros e de fáceis indolências, o odor e o calor
humanos, uma linguagem de pragas e blasfêmias, de alusões e
provérbios, uma atividade que não consistia apenas em curvar-se
sobre um livro tendo à mão uma pena.
O estudante pretendia trazer do laboratório e da oficina aquilo com
que invalidar ou confirmar as asserções da escola: Platão de um
lado, Aristóteles de outro, eram tratados como simples negociantes
cujos pesos deviam ser aferidos. Tito Lívio não passava de um
tagarela; César, por mais sublime que fosse, estava morto. Dos
heróis de Plutarco, de cujo tutano se nutrira o Cônego Bartolomeu
Campanus juntamente com o leite dos Evangelhos, o rapaz não
guardava senão uma única coisa: que a audácia do espírito e da
carne os levara tão longe e tão alto quanto a continência e o jejum,
que conduzem, diz-se, os bons cristãos ao céu em que acreditam.
Para o cônego, a sabedoria sagrada e sua irmã profana se
amparavam uma na outra: no dia em que percebeu que Zênon
convertera em escárnio as piedosas fantasias do Sonho de Cipião,
compreendeu também que o aluno renunciara em segredo às
consolações do Cristo.
Entretanto, Zênon inscreveu-se na Escola de Teologia de Lovaina.
Seu ímpeto assombrava e aturdia; o recém-chegado, capaz de
sustentar imediatamente qualquer tese que fosse, adquiriu junto aos
condiscípulos extraordinário prestígio. A vida dos bacharéis era farta
e alegre; convidavam-no a banquetes nos quais ele só bebia água;
e, no bordel, as moças agradavam-lhe tanto quanto a um ser
delicado um prato de carnes viciadas. Admitia-se que se tratava de
um belo homem, mas a voz cortante dava medo; o brilho das
pupilas sombrias fascinava e incomodava a um só tempo. Corriam
rumores extravagantes sobre sua origem, os quais nunca se
preocupou em desmentir. Os adeptos de Nicolau Flamel cedo
reconheceram no estudante friorento, sempre sentado junto à lareira
a ler escondido, os signos de uma preocupação alquímica: uma
pequena sociedade de espíritos mais curiosos e inquietos do que os
outros acolheu-o entre seus pares. Antes mesmo do término do
curso, Zênon olhava de cima não apenas os doutores em toga de
peliça, curvados no refeitório em compenetrada postura,
pesadamente satisfeitos de seu espesso e pesado saber, mas
também os estudantes bulhentos e grosseiros, firmemente decididos
a não se instruírem senão o bastante para cavarem uma sinecura,
pobres-diabos cuja fermentação espiritual nada mais era do que um
surto repentino que desapareceria com a juventude. Pouco a pouco,
esse desdém se estendeu a seus próprios amigos cabalistas,
espíritos vazios, inflados de vento, empanzinados de palavras cujo
significado não entendiam e regurgitantes de fórmulas vãs. Concluía
com amargor que nenhuma dessas pessoas, nas quais a princípio
confiara, iria mais adiante em espírito ou em ato, ou mesmo tão
longe quanto ele.
Zênon morava no último andar de uma casa dirigida por um padre;
suspenso sob a escada, um letreiro advertia os pensionistas quanto
à obrigatoriedade de se reunirem para o ofício de Completas e
proibia-os, sob pena de multa, de ali trazerem mundanas e de se
aliviarem em outro local que não fosse a latrina. Mas nem os
odores, nem a fuligem da chaminé da lareira, nem a voz azeda da
governanta, nem as paredes crivadas por seus predecessores de
gracejos latinos e desenhos obscenos, nem as moscas pousadas
sobre os pergaminhos conseguiam arrancar de seus cálculos aquele
espírito para o qual cada objeto do mundo era um fenômeno ou um
signo. O bacharel conheceu, no sótão que ocupava, as dúvidas,
tentações, triunfos e derrotas, as lágrimas de ódio e de alegria que
verte a juventude, mas que a maturidade ignora e desdenha, e de
que não guardaria depois senão uma lembrança matizada de
esquecimento. Voltado de preferência para as paixões sensoriais
que mais se distanciam daquilo que experimenta e confessa a
maioria dos homens, aquelas que induzem ao sigilo, não raro à
mentira, por vezes ao desafio, esse Davi em luta com o Golias
escolástico julgou encontrar seu Jônatas na figura de um amigo
louro e indolente, que logo preteriu o tirânico camarada por
companheiros mais chegados aos vinhos e aos dados. Nada
transpareceu desse convívio subterrâneo, epidérmico e flagrante,
oculto como as entranhas e o sangue; seu término não teve outra
consequência senão a de fazer com que Zênon mergulhasse de
novo e com maior afinco nos estudos. Loura também era a
bordadeira Jeannette Fauconnier, moça extravagante, atrevida e
descarada, habituada a manter junto às saias uma escolta de
estudantes, e a quem o clérigo mimoseou, durante toda uma noite,
com uma braçada de zombarias e insultos. Zênon se gabava de
poder conseguir, se assim lhe agradasse, os favores da jovem em
menos tempo do que o necessário para galopar dos Halles à Igreja
de São Pedro: seguiu-se uma rixa que logo se transformou em
batalha campal, e a bela Jeannette, ela própria disposta a mostrar-
se generosa, concedeu ao agressor ferido um beijo de sua boca,
que, segundo o jargão da época, se chamava o frontispício da alma.
Pelo Natal, enfim, quando Zênon já não guardava outra lembrança
da aventura além de uma cicatriz no rosto, a sedutora esgueirou-se
uma noite até sua casa, galgou em silêncio a escada rangente e
escorregou devagarinho para dentro de seu leito. Zênon
surpreendeu-se com o corpo liso e coleante, hábil em fazer amor,
com o colo de pomba arrulhando em voz baixa, com os risos
abafados apenas o bastante para não despertar a governanta, que
dormia na peça vizinha. Não experimentou senão o misto de alegria
e receio que sente o nadador ao mergulhar em águas refrescantes e
pouco seguras. Durante alguns dias viram-no a passear
insolentemente ao lado da jovem perdida, afrontando as fastidiosas
admoestações do Reitor; todo apetite parecia-lhe advir dessa sereia
maliciosa e escorregadia; em menos de uma semana, porém, de
novo lançou-se inteiramente aos livros. Censuraram-no por
abandonar tão cedo a jovem por quem ele despreocupadamente
comprometera, ao longo de todo um trimestre, as honras do cum
laude. E seu desdém pelas mulheres o fez suspeitar do comércio
com os súcubos.
Os lazeres do verão

Como todo ano, naquele verão, um pouco antes de agosto, Zênon


partiu em busca do verde na casa de campo do banqueiro. Isso,
porém, não ocorreu mais, como outrora, nas terras que Henrique-
Justo sempre possuíra em Kuypen, na campanha brugesiana: o
homem de negócios tornara-se proprietário do patrimônio de
Dranoutre, entre Audenarde e Tournai, tendo-lhe remodelado a
antiga habitação senhorial após a partida dos franceses. A casa foi
restaurada em obediência ao estilo em voga, com pedestais e
cariátides de pedra. Cada vez mais o opulento Ligre procedia a
essas compras de bens ao sol, que atestavam de forma quase
arrogante a fortuna de um homem, dele fazendo, em caso de risco,
o burguês de mais de uma cidade. Em Tournaisis, arrendou, acre
por acre, as terras de sua mulher Jacqueline; perto de Anvers,
adquiriu o patrimônio de Gallifort, esplêndido anexo à sua sucursal
bancária da Praça de São Tiago, onde operava agora com Lázaro
Tucher, Tesoureiro-Mor de Flandres, proprietário de uma refinaria de
açúcar em Maestricht e de outra nas Canárias, diretor da alfândega
da Zelândia, detentor do monopólio de alúmen para as regiões
bálticas, assegurando-se, juntamente com os Fuggers, de um terço
dos lucros da Ordem de Calatrava; Henrique-Justo roçava cada vez
mais os poderosos deste mundo: a Regente, em Malines, lhe
oferecera em mãos o pão abençoado; o Senhor de Croy, seu
devedor de uma soma de treze mil florins, vinha de aceitar ser
padrinho do último filho do negociante, e já se combinara com essa
Excelência a data em que se realizaria, em seu castelo do Roeulx, a
cerimônia do batizado. Aldegonda e Constância, as duas filhas nem
sequer adolescentes do grande magnata, teriam um dia tantos
títulos quantas rendas adornavam agora as caudas de seus
vestidos.
Por não constituir para ele mais do que uma empresa anacrônica,
superada pela concorrência de suas próprias importações de
brocados de Lyon e de veludos da Alemanha, Henrique-Justo pouca
atenção dispensava agora à sua tecelagem em Bruges, tanto assim
que acabara de estabelecer nos arredores de Dranoutre, em plena
campina, oficinas rurais cujo funcionamento não se achava sujeito à
legislação da cidade. Ali vinham sendo montados, sob suas ordens,
perto de vinte teares mecânicos, fabricados durante o verão anterior
por Colas Gheel a partir dos desenhos de Zênon. O negociante
imaginava experimentar aqueles que trabalhavam a madeira e o
metal, que não bebiam nem vociferavam, que produziam quatro
vezes mais do que o normal e que jamais se valiam da alta nos
preços dos gêneros para reivindicar aumento de salário.
Por um dia fresco em que já se pressentia o outono, Zênon dirigiu-
se a pé àquela passamanaria de Oudenove. Desempregados em
busca de trabalho atravancavam a região; apenas dez léguas
separavam Oudenove dos pomposos esplendores de Dranoutre,
conquanto a distância bem pudesse ser a que se estende entre o
céu e o inferno. Henrique-Justo alojara um pequeno grupo de
artesãos e mestres de oficina procedentes de Bruges numa velha
construção, restaurada aqui e ali, à entrada da aldeia; o dormitório
transformou-se em pardieiro. Zênon não fez senão entrever Colas
Gheel, bêbado naquela manhã, enquanto seu pálido e moroso
aprendiz francês, chamado Perrotin, lavava as tigelas e vigiava o
fogo. Tomás, recém-casado com uma jovem da região, pavoneava-
se pela praça com uma japona de seda vermelha estreada no dia
das bodas. Um homenzinho vivaz e seco, um certo Thierry Loon,
tagarela de súbito promovido a mestre de oficina, mostrou a Zênon
as máquinas afinal montadas, mas que as manobras logo
emperravam, após nelas depositar-se a extravagante esperança de
ganhar mais e trabalhar menos. Contudo, outros problemas já
preocupavam o clérigo; aquelas estruturas e contrapesos não mais
o interessavam. Thierry Loon falava de Henrique-Justo com
reverência obsequiosa, embora lançasse a Zênon olhares de
soslaio, deplorando os víveres insuficientes, os casebres de madeira
e de estuque construídos às pressas pelos administradores do
negociante, as horas mais longas do que em Bruges, o relógio
municipal que não mais os governava. O homenzinho lamentava o
tempo em que os artesãos solidamente estabelecidos em seus
privilégios torciam o pescoço dos operários livres e afrontavam os
príncipes. As novidades não o assustavam; ele apreciava a
engenhosidade daquelas espécies de gaiolas nas quais cada
movimento conjugava simultaneamente pés e mãos a dois pedais e
duas alavancas; essa cadência muito rápida, porém, esgotava os
homens, e os comandos complicados exigiam mais cuidado e
atenção do que eram capazes os dedos e a cachola dos artesãos.
Zênon sugeriu alguns reajustes, mas o novo contramestre pareceu
não fazer caso deles. Thierry Loon sonhava apenas em livrar-se de
Colas Gheel, e encolhia os ombros ao referir-se ao favo flácido, ao
trapalhão cujas lucubrações mecânicas tinham afinal por objetivo
apenas extorquir dos homens mais trabalho e agravar a crise do
desemprego, ao bezerro no qual a devoção se alastrara como sarna
a partir do instante em que não tinha mais à sua disposição as
comodidades e os prazeres de Bruges, ao bêbado que, após
embriagar-se, assumia o ar contrito de um pregador de praça
pública. Essas pessoas quizilentas e estúpidas aborreceram o
clérigo; comparados a elas, os doutores forrados de arminho e
cintilantes de lógica recuperavam valor.

Os talentos mecânicos de Zênon lhe valiam pouca consideração


por parte da família, em cujo seio era desprezado por sua indigência
de bastardo e vagamente respeitado por sua futura condição de
padre. À hora da ceia, na sala, o clérigo escutava Henrique-Justo
arrotar pomposos adágios sobre o comportamento humano:
convinha sempre evitar as donzelas, por receio à gravidez; as
viúvas, porque elas nos devoram; e aumentar as rendas e orar a
Deus. O Cônego Bartolomeu Campanus, habituado a não exigir das
almas mais do que elas consentem em dar, não desaprovava essa
grossa sabedoria. Naquela manhã, os ceifeiros haviam encontrado
uma feiticeira a urinar maliciosamente no campo a fim de conjurar a
chuva sobre o trigo já parcialmente apodrecido por aguaceiros
intempestivos; lançaram-na ao fogo sem outra forma de processo;
escarnecia-se da sibila que julgara comandar as águas, mas que
não soube preservar-se das brasas. O cônego explicava que o
homem, ao infligir aos perversos o suplício das chamas, que dura
apenas um momento, não faz senão conformar-se à lei de Deus,
que os condena ao mesmo castigo, só que para sempre. Tais
conversas não interrompiam a ceia copiosa; Jacqueline, excitada
pelo verão, agraciava Zênon com seus atrativos de mulher honesta.
A roliça flamenga, embelezada por recentes partos, vaidosa de sua
tez e da alvura de suas mãos, conservava um viço de peônia. O
padre parecia não reparar nem no corpete entreaberto, nem nas
mechas louras que roçavam a nuca do jovem clérigo curvado sobre
uma página antes que se acendessem os candeeiros, nem no
sobressalto colérico do estudante que desdenhava as mulheres.
Cada filha do sexo era, para Bartolomeu Campanus, Maria e Eva
juntas, aquela que verte suas lágrimas e seu leite pela salvação do
mundo, e aquela que se abandona à serpente. Ele baixava os olhos
sem julgar.
Zênon saía caminhando a largas passadas. Com suas árvores
muito novas e pomposas incrustações calcárias ou cristalinas, o
terraço plano logo se confundia às pastagens e às terras destinadas
ao cultivo; um lugarejo de tetos baixos escondia-se sob moinhos
encarneirados. Mas já se fora o tempo em que Zênon poderia deitar-
se junto às fogueiras de São João, ao lado dos campônios da
herdade, como outrora em Kuypen, durante a clara noite que
inaugura o verão. Pelas noites frias não mais lhe seria possível
ceder a outro seu lugar no banco da forja, onde alguns camponeses,
sempre os mesmos, embruteciam ao calor, trocando entre si o
bagaço das novidades em meio ao zumbido das últimas moscas da
estação. Tudo agora o afastava deles: a gíria arrastada de aldeia, os
pensamentos apenas e a custo menos vagarosos e o temor
inspirado por um rapaz que fala latim e lê nos astros. Ele chegava
por vezes a arrastar o primo a aventuras noturnas. Descia até o
pátio, assobiando suavemente para acordar o companheiro.
Henrique-Maximiliano saltava o balcão, ainda intumescido pelo
pesado sono da adolescência, cheirando a cavalo e a suor após os
longos volteios da vigília. Mas a esperança de uma vagabunda com
quem embolar às margens de uma estrada ou de um clarete a
emborcar na taberna, em companhia dos carroceiros, logo o
reanimava. Os dois companheiros entravam pelos campos
cultivados, ajudavam-se mutuamente a pular as valetas, dirigiam-se
às fogueiras de um acampamento cigano ou ao rubro fulgor de uma
taberna distante. Ao retornar, Henrique-Maximiliano se gabava das
incursões que fizera, enquanto Zênon calava as suas. A mais tola
dessas aventuras foi aquela durante a qual, certa noite, o herdeiro
dos Ligres
deslizou furtivamente para dentro da estrebaria de um dos
cavalariços de Dranoutre e tingiu de rosa duas éguas cujo
proprietário, pela manhã, julgou estarem enfeitiçadas. Descobriu-se
também um belo dia que Henrique-Maximiliano gastara em uma
dessas saídas alguns ducados roubados ao opulento Justo: em
parte por brincadeira, em parte para pôr as coisas nos devidos
lugares, pai e filho se engalfinharam. Separaram-nos como se
separa um touro de seu novilho, atiçando um contra o outro no
curral de uma fazenda.
Contudo, na maioria das vezes, Zênon partia sozinho, de
madrugada, levando nas mãos suas tábulas, e perdia-se nas
campinas em busca não se sabe de que sabedoria diretamente
advinda das coisas. Não se cansava de sopesar ou estudar
curiosamente as pedras cujos contornos, polidos ou ásperos, e
cujos matizes de ferrugem ou musgo contam uma história, dão o
testemunho dos metais que as formaram, das substâncias ígneas
ou das águas que outrora precipitaram sua matéria ou lhes
coagularam a forma. Insetos escapuliam por debaixo delas,
estranhas bestas de um inferno animal. Sentado no cimo de um
outeiro, contemplando sob o céu cinzento as planícies tumefatas
aqui e ali pelas esguias colinas arenosas, ele meditava sobre os
tempos já extintos durante os quais o mar ocupara os amplos
espaços onde agora crescia o trigo, imprimindo-lhes no perfil o
desenho e a assinatura das vagas. Pois tudo muda — a forma do
mundo e as invenções da natureza irrequieta em que cada instante
dura séculos. Ou então, sua atenção tornada fixa e furtiva como a
de um caçador alerta, ele se voltava para as feras que correm, voam
e rastejam nas entranhas dos bosques, atento também ao
geométrico traçado que elas deixam atrás de si, a seu itinerário, sua
cópula, seu alimento, seus sinais e estratagemas, e à maneira pela
qual agonizam, quando atingidas pelo golpe de um bastão. Uma
simpatia aproximava-o dos répteis, sempre caluniados pelo mundo
ou pela superstição humana — frios, prudentes, meio subterrâneos,
enfeixando em cada um de seus anéis uma espécie de sabedoria
mineral.
Numa dessas noites, durante o mais quente da canícula, Zênon,
fiado nas instruções de João Myers, tomou a si a decisão de sangrar
um fazendeiro vítima de uma apoplexia, ao invés de esperar pela
incerta assistência do barbeiro. O Cônego Campanus deplorou tal
ignomínia; Henrique-Justo, vindo em socorro deste, lastimou em alto
e bom som os ducados que investira no custeio dos estudos do
sobrinho, caso fosse terminar entre um escalpo e um bacinete. O
clérigo suportava as admoestações com um silêncio rancoroso. A
partir desse dia, suas ausências se tornaram mais prolongadas.
Jacqueline atribuía-as a algum namorico com uma filha de
fazendeiro.
Certa vez, levando consigo alimento para vários dias, Zênon
aventurou-se até a floresta de Houthuist. Esses bosques constituíam
o que restara da aglomeração de grandes árvores da época pagã.
Estranhos desígnios escorriam de suas folhas. A cabeça erguida,
descortinando lá embaixo o verde e espesso tapete de agulhas, ele
voltava às especulações alquímicas que iniciara na escola, ou
apesar dela; redescobria então, em cada uma dessas pirâmides
vegetais, o hieróglifo hermético das forças ascendentes, o signo do
ar, que banha e nutre os belos seres silvestres, e o do fogo, cuja
virtualidade eles trazem dentro de si, mas que um dia poderá
destruí-los. Entretanto, tais ascensões somente o eram por haver
uma queda: sob seus pés, o povo cego e peregrino das raízes
imitava nas trevas a infinita divisão das vergônteas solares do céu,
orientando-se cautelosamente para não se sabe que nadir. Aqui e
ali, uma folha precocemente amarelecida denunciava sob o verde a
presença dos metais de que ela formara sua substância e cuja
transmutação ela operava. A ira do vento vergava os grandes
troncos como um homem sem destino. O clérigo sentia-se livre
como os animais e ameaçado como eles, equilibrado como a árvore
entre o mundo de baixo e o mundo de cima, também ele submisso
às pressões que o constringiam e que só cessariam após sua morte.
A palavra morte, porém, ainda era apenas uma palavra para esse
homem de vinte anos.
Ao cair o crepúsculo, ele observou no musgo o indício da
passagem de um carregamento de árvores derrubadas; um cheiro
de fumaça o conduziu, em meio às sombras da noite, a uma
choupana de carvoeiros. Três homens, um pai e os dois filhos,
carrascos das árvores, senhores e vassalos do fogo, obrigavam este
a consumir lentamente suas vítimas, transformando o úmido bosque
que freme e sibila em carvão, que guarda para sempre sua
afinidade com o princípio ígneo. Seus andrajos fundiam-se a seus
corpos quase etíopes, maquilados com cinza e fuligem. As barbas
brancas do pai e os louros cabelos dos filhos surpreendiam,
emoldurando aquelas faces negras e os negros peitos desnudos.
Tão solitários quanto os anacoretas, os três já haviam esquecido
tudo o que pertencesse ao século em que viviam ou que jamais
haviam conhecido. Pouco lhes importava quem reinasse em
Flandres, ou se era o ano de 1529 da Encarnação do Cristo. Antes
bafejando que falando, acolheram Zênon como animais da floresta
que abrigassem um outro de sua espécie; o clérigo não ignorava
que os três podiam matá-lo para roubar-lhe as roupas, ao invés de
aceitarem um pedaço de seu pão e de partilharem o caldo de ervas
deles. Tarde da noite, sufocando na choupana enfumaçada, Zênon
se levantou para a costumeira observação dos astros e evadiu-se
do ninho calcinado que parecia alvejar na escuridão. O lume dos
carvoeiros ardia em surdina, semelhando uma estrutura geométrica
tão perfeita quanto os fortins dos castores e as colmeias das
abelhas. Uma sombra se desenhava contra o fundo vermelho; o
mais jovem dos irmãos velava a massa incandescente. Zênon o
ajudou, com auxílio de um gancho, a separar as achas de lenha que
queimavam muito depressa. Vega e Deneb cintilavam entre as
copas das árvores; os troncos e os ramos escondiam as estrelas
cravadas na parte mais baixa do céu. O clérigo pensou em
Pitágoras, em Nicolau de Cusa, em certo Copérnico cujas teorias,
recentemente expostas na escola, eram acolhidas com entusiasmo
ou violentamente rechaçadas, e um movimento de orgulho
recordou-lhe a condição de membro da industriosa e agitada família
de homens que domestica o fogo, transforma a essência das coisas
e esquadrinha o itinerário dos astros.
Deixando os anfitriões sem mais cerimônia do que dispensaria aos
cabritos dos bosques, Zênon repôs-se imediatamente em marcha
como se o objetivo a que se propusera seu espírito se achasse
muito próximo e, ao mesmo tempo, houvesse ele falhado em
apressar-se para alcançá-lo. Sabia que acabara de mastigar os
últimos bocados de liberdade e que, dentro de poucos dias, lhe seria
necessário reconquistar o assento de um colégio, a fim de garantir
para o futuro um posto de secretário de bispo, encarregado de
cinzelar suaves frases latinas, ou alguma cátedra de teologia da
qual saberia como não deixar cair sobre seus ouvintes senão
propósitos aprovados ou permitidos. Por uma ingenuidade própria
de sua juventude, imaginava que, até então, ninguém abrigara no
peito tanto rancor para com a condição social do sacerdócio ou
levara tão longe a revolta e a hipocrisia. No momento, o grito de
alerta de um gaio e a verruma de um picanço eram os únicos ofícios
da manhã. Um excremento de animal fumegava delicadamente
sobre o musgo, indício da visita de uma fera noturna.
Já na estrada principal, reencontrou os rumores e os lamentos do
século. Camponeses excitados corriam com baldes e forcados: uma
grande fazenda isolada estava em chamas, incendiada por um dos
anabatistas que agora fervilhavam e misturavam o ódio dos ricos e
poderosos a uma forma particular de amor a Deus. Zênon se
compadecia desdenhosamente desses visionários que saltavam de
um barco apodrecido para um barco à deriva e de uma aberração
secular para uma nova mania; mesmo assim, a repugnância pela
espessa opulência que o rodeava, levou-o, malgrado seu, a ficar do
lado aos pobres. Um pouco adiante, encontrou um tecelão
despedido que carregava aos ombros o alforje do mendigo e que se
ia à procura de subsistência em outros sítios. E sentiu inveja do
indigente por julgá-lo menos constrangido do que ele próprio.
A festa em Dranoutre

Uma noite em que Zênon regressou à residência do tio como um


cão esquálido, após vários dias de ausência, a casa lhe surgiu ao
longe iluminada por tantas velas e archotes que julgou tratar-se de
um incêndio. Pesadas carruagens congestionavam a estrada.
Lembrou-se então de que Henrique-Justo esperava e negociava há
semanas uma visita real.
A Paz de Cambrai acabara de ser assinada. Chamavam-na a Paz
das Damas, porque duas princesas, que o Cônego Bartolomeu
Campanus comparava em seus sermões às Santas Mulheres das
Escrituras, haviam vagamente assumido a tarefa de curar as chagas
do século. A Rainha-Mãe de França, então dominada pela crença
em conjunções astronômicas nefastas, deixara afinal Cambrai para
recuperar o seu Louvre. A Regente dos Países Baixos, a caminho
de Malines, demorou-se por uma noite na casa de campo do
Tesoureiro-Mor de Flandres. Henrique-Justo convidou então as
personalidades ilustres do lugar, adquiriu por toda parte um pouco
das provisões de círios e vitualhas raras, trouxe de Tournai os
músicos do bispo e preparou um divertissement à moda antiga,
durante o qual Faunos vestidos de brocados e Ninfas em trajes de
seda verde ofereceriam a Madame Margarida uma ceia de que
constavam maçapães, frangipanas e compotas de frutas.

Zênon hesitou em entrar na sala, receoso de que as roupas


usadas e poeirentas, associadas ao cheiro do corpo há dias sem
banho, o fizessem perder a oportunidade de insinuar-se junto aos
poderosos deste mundo; pela primeira vez na vida, a adulação e a
intriga lhe pareceram artes nas quais cumpria ser exímio, e o posto
de secretário particular ou de preceptor de príncipe, preferível ao de
mestre-escola ou de barbeiro de aldeia. Depois, impeliu-o a
arrogância dos vinte anos, assim como a certeza de que a fortuna
de um homem depende de seu temperamento e da boa vontade dos
astros. Entrou e sentou-se junto à lareira, toda engrinaldada de
folhagens, e olhou em torno para aquele Olimpo humano.
As Ninfas e os Faunos vestidos à antiga eram os pimpolhos de
fazendeiros enriquecidos ou de senhores rudes aos quais o
Tesoureiro-Mor concedia negligentemente bicarem seus cofres;
Zênon reconhecia, sob as perucas e os disfarces, os cabelos louros
e os olhos azuis, e sob os laços e tufos das túnicas fendidas ou de
leve arregaçadas, as pernas algo pesadas das jovens, algumas das
quais o haviam ternamente excitado à sombra de um moinho. Mais
pomposo e sanguíneo que de costume, Henrique-Justo fazia as
honras de seu luxo de negociante. A Regente, trajada de negro,
miúda e roliça, mostrava no rosto a triste palidez das viúvas e os
lábios apertados da boa dona de casa que tudo vigia, não apenas a
roupa branca e as sobras da comida, mas principalmente o Estado.
Os panegiristas louvavam-lhe a piedade, o saber, a castidade que a
fez preferir às segundas núpcias as melancólicas austeridades da
viuvez; os detratores acusavam-na em surdina de amar as
mulheres, embora convindo que tal gosto é menos escandaloso
numa dama da nobreza do que nos homens o pendor contrário,
porque é mais belo, diziam eles, para uma mulher assumir a
condição viril do que para um homem imitar a mulher. As roupas da
Regente eram suntuosas, conquanto severas, como cabe a uma
princesa que se deve comportar de acordo com as insígnias
exteriores de sua situação real, mas que pouco se importa em
ofuscar ou agradar. Apenas beliscando guloseimas, escutava com
ouvidos complacentes os cumprimentos corteses que Henrique-
Justo misturava a gracejos picantes, fazendo-o como mulher
piedosa, que, no entanto, de modo algum afeta virtude ou
austeridade e que sabe ouvir sem se perturbar as conversas
licenciosas dos homens.
Já se haviam bebido vinhos do Reno, da Hungria e de França;
Jacqueline afrouxou as presilhas do corpete prateado e ordenou que
a ela viesse ter seu caçula, ainda não de todo desmamado e que
também estava sedento. Henrique-Justo e a mulher adoravam exibir
a criança mais nova que os rejuvenescia.
O seio entrevisto por entre as dobras da blusa encantou os
convidados.
— Não se pode negar — comentou Madame Margarida — que
aquele ali mamou leite de boa mãe.
Ela perguntou como se chamava a criança.
— Ainda não foi batizado — respondeu a flamenga.
— Chame-o então de Filisberto — sugeriu Madame Margarida —,
como meu senhor que foi ter a Deus.
Henrique-Maximiliano, que bebia além da conta, contava às
damas de honra feitos de armas que realizaria tão logo lhe
permitisse a idade.
— Não lhe faltarão ocasiões para batalhas — observou Madame
Margarida — neste século infeliz.
Ela se perguntava a si mesmo se o Tesoureiro-Mor concederia ao
Imperador aquele duodécimo empréstimo que lhe recusaram os
Fuggers e que serviria para cobrir os custos da última campanha, ou
talvez da próxima, pois nunca se sabe o que valem os tratados de
paz. Uma insignificante parcela dos noventa mil escudos bastaria
para adquirir sua capela de Brou, em Bresse, onde iria repousar um
dia para sempre ao lado de seu príncipe. Apenas o tempo de levar
aos lábios uma colher de prata dourada, e Madame Margarida reviu
em espírito o jovem mancebo desnudo, os cabelos grudados pelo
suor da febre, o peito intumescido pelos humores da pleurisia, mas
ainda belo como os Apolos da Fábula, que ela sepultara havia mais
de vinte anos. Nada a consolava, nem as cortesias do Amante
Verde, seu periquito das índias, nem os livros, nem o rosto suave de
sua terna companheira, Madame Laodâmia, nem os grandes
negócios, nem Deus, que é o apoio e o confidente dos príncipes. A
imagem do morto reingressou no tesouro da memória; o conteúdo
da colher espargiu sobre a língua da Regente um sabor de
entremets [12] gelados; ela reencontrou à mesa o lugar que jamais
abandonara, as mãos rubras de Henrique-Justo sobre a toalha
carmesim, os vistosos adereços de Madame d’Hallouin, sua dama
de honra, o pequenino agarrado ao seio da flamenga, e mais
adiante, instalado junto à lareira, um jovem de belo rosto arrogante
que comia sem prestar atenção aos demais.
— E aquele ali — perguntou ela — que faz companhia às brasas?
— Eis tudo o que tenho de filhos — respondeu com desgosto o
banqueiro, apontando para Henrique-Maximiliano e para o
pequerrucho sobre o seu lençol bordado.
Bartolomeu Campanus segredou à Regente a aventura de
Hilzonda, deplorando ao mesmo tempo os sentimentos heréticos
que agora a desviavam do bom caminho. Madame Margarida iniciou
então com o cônego uma daquelas discussões sobre a fé e as boas
obras, recomeçadas cada dia por pessoas cultas e piedosas da
época, sem que jamais esses debates ociosos servissem para
resolver o problema ou provar sua inanidade. Nesse momento,
ouviu-se um barulho à porta; timidamente, mas de uma só vez, um
grupo de pessoas entrou no aposento.
Os tecelões chegados a Dranoutre com um rico presente para
Madame eram parte dos divertimentos projetados para a festa.
Contudo, um tumulto ocorrido na antevéspera numa das oficinas
transformou o aperfeiçoamento técnico dos artesãos numa espécie
de sublevação desordenada. O dormitório de Colas Gheel lá estava
em peso para pedir que se perdoasse Tomás de Dixmude,
ameaçado de ir para a forca por haver destruído a golpes de martelo
os teares mecânicos recentemente montados e postos a funcionar.
O confuso grupo, engrossado por operários desempregados de
outros lugares e vagabundos das estradas, levou dois dias para
percorrer as poucas léguas que separavam a fábrica da casa de
recreio do negociante. Colas Gheel, que ferira as mãos ao defender
as máquinas, integrava, não obstante, o primeiro escalão de
peticionários. Zênon reconheceu a custo, na figura que resmungava
entre dentes, o sólido Colas de seus dezesseis anos. Segurando
pela manga um pajem que lhe oferecia amêndoas, Zênon soube
que Henrique-Justo se recusou a ouvir as queixas dos
descontentes, mas que lhes permitiu dormir num prado próximo e
comer o que lhes dessem os cozinheiros. Os criados vigiaram toda
a noite as despensas, a prataria, a adega e os moinhos. Entretanto,
os infelizes pareciam dóceis como carneiros que se levam à
tonsura; todos tiraram seus gorros, e os mais humildes se
ajoelharam.
— Perdão para Tomás, meu compadre! Perdão para Tomás a
quem minhas máquinas perturbaram o juízo — salmodiava Colas
Gheel. — Ele é muito jovem para ser dependurado na forca.
— O quê? — indagou Zênon. — Você defende o indigente que
deitou por terra nosso trabalho? Seu belo Tomás adorava dançar.
Pois que dance agora no céu.
A altercação em flamengo fez rir à solta o pequeno grupo de
damas de honra. Desconcertado, Colas deixou que suas pálidas
pupilas passeassem em derredor e persignou-se ao reconhecer
junto à lareira o jovem clérigo que outrora o chamava seu irmão
segundo São João.
— Deus me tentou — choramingou o homem de mãos enfaixadas
—, a mim que, como uma criança, brincava com polias e manivelas.
Um demônio indicou-me números e proporções, e de olhos
fechados construí uma forca de onde pende uma corda.
E recuou um passo, apoiando-se nos ombros do magro aprendiz
Perrotin.
Um homenzinho vivo como o mercúrio, em quem Zênon
reconheceu Thierry Loon, serpenteou até a Princesa para entregar-
lhe uma petição, a qual, com aparente distração, ela passou às
mãos de um gentil-homem de sua comitiva. O Tesoureiro-Mor
apressava-a obsequiosamente em direção à galeria vizinha, onde os
músicos ensaiavam para as damas um concerto em que as vozes
se misturavam ao som dos instrumentos.
— Toda traição à Igreja é cedo ou tarde rebelde a seu príncipe —
concluiu Madame Margarida ao levantar-se, rematando por fim,
através dessas palavras que condenavam a Reforma, sua conversa
calculadamente alongada com o cônego. Encaminhados sob a
vigilância do olhar de Henrique-Justo, alguns tecelões ofereceram à
augusta viúva um laço de pérolas bordado com seu monograma.
Com as pontas dos dedos cobertos de anéis, ela segurou
graciosamente o mimo dos artesãos.
— Veja, Madame — disse quase com prazer o negociante —, o
que se ganha em manter abertas por pura caridade fábricas que
trabalham com prejuízo. Esses campônios trazem aos ouvidos da
senhora disputas que seriam resolvidas com uma palavra por
qualquer juiz de aldeia. Se eu não me empenhasse pela honra de
nossos veludos e nossos estofos bordados…
Ajeitando os ombros, como sempre fazia quando sobre ela
baixava o peso dos assuntos públicos, a Regente advertiu então
gravemente sobre a necessidade de conter a insubordinação
popular num mundo já convulsionado pelas disputas dos príncipes,
o avanço dos turcos, as heresias que solapavam a Igreja. Zênon
não entendeu direito os cochichos do cônego convidando-o a
reaproximar-se de Madame. Um rumor de trinados e cadeiras
arrastadas misturava-se às exclamações dos operários.
— Não — disse o negociante, fechando atrás de si a porta da
galeria e encarando os homens como um cão de fila aos animais do
rebanho. — Nada de piedade para com Tomás, cujo pescoço será
partido como o foram meus teares. Será que a algum de vocês
agradaria saber que alguém quebrou a armação dos leitos de sua
casa?
Colas Gheel mugia como um boi que se sangra.
— Cale-se, amigo — disse com desprezo o rotundo negociante. —
Sua música estraga a que está sendo oferecida às damas.
— Você é sábio, Zênon! Seu latim e seu francês agradam mais do
que nossas vozes flamengas — disse Thierry Loon, que levava o
resto dos descontentes como um bom cantor conduz um coro. —
Explique-lhe que aumentam nossas tarefas e diminuem nossos
salários, e que o pó que sai desses engenhos nos faz escarrar
sangue.
— Se essas máquinas forem implantadas em nossas campinas,
estamos fritos — disse um tecelão. — Não fomos feitos para nos
debatermos entre duas rodas como esquilos numa jaula.
— Julgam vocês que eu me apaixono loucamente pela novidade,
como o faria um francês? — retrucou o banqueiro, misturando a
simplicidade de maneiras à severidade, como o açúcar ao vinho
azedo. — Todas as rodas e válvulas somadas não valem o braço de
uma pessoa honesta. Serei por acaso um bicho-papão? Mais
ameaças, mais queixas contra a multa pelas peças defeituosas e as
nódoas nas fibras; mais tolos pedidos de aumento de salário, como
se o dinheiro custasse tão pouco quanto bosta de cavalo, e mando
esses chassis servirem de moldura às aranhas! Seus contratos,
tomando por base os do ano passado, serão renovados para o
próximo ano.
— Tomando por base os do ano passado — condoeu-se uma voz
que já definhava. — Tomando por base os do ano passado, quando
um ovo custa agora mais caro do que se pagava por uma galinha na
última festa de São Martinho! Mais vale pegar um cajado e correr as
estradas.
— Morra Tomás e que se dane! — gritou um velho estrangeiro cujo
sotaque parecia tornar ainda mais selvagem seu ciciante francês. —
Os fazendeiros atiçaram seus cães contra mim, e os burgueses das
cidades nos caçam a pedradas. Prefiro meu catre no dormitório do
que o fundo de um fosso.
— Esses teares que vocês desprezam teriam feito de meu tio um
rei e de vocês príncipes — disse o clérigo de mau humor. — Mas
não vejo aqui senão um rico estúpido e pobres idiotas.
Um vozerio ameaçador irrompeu do pátio de onde o restante do
grupo podia ver os archotes da festa e a parte superior dos imensos
bolos confeitados. Uma pedra varou o azul de um vitral armoriado.
O negociante se protegeu rapidamente contra a chuva de granizos
azuis.
— Guardem suas pedras para esse vão sonhador! O palerma os
fez crer que poderiam descansar junto de uma bobina, nela
realizando o trabalho de oito mãos — disse com escárnio o obeso
Ligre, apontando o sobrinho que se encolhera junto à lareira. —
Perco o dinheiro do bolso e Tomás o seu pescoço. Ó, esse belo
projeto de néscio que não conhece senão seus livros!
O companheiro do fogo cuspiu sem responder.
— Quando Tomás viu que o tear funcionava noite e dia e
executava por si só a tarefa de quatro homens, ficou calado —
atalhou Colas Gheel —, mas ele tremia e suava como se estivesse
com medo. E foi dos primeiros a ser dispensado quando me
reduziram o grupo de aprendizes. E os moinhos rangiam sem
cessar, e todas as varetas de ferro continuavam a tecer sozinhas. E
Tomás ficava sentado ao fundo do dormitório junto da mulher com
quem se casara na primavera, e eu os ouvia tremer como aqueles
que sentem frio. Compreendi então que nossas máquinas eram um
flagelo comparável ao da guerra, da carestia dos víveres, dos
tecidos estrangeiros… E minhas mãos mereceram os golpes
recebidos… E digo que o homem deve trabalhar de boa-fé, como
antes dele o fizeram seus pais, e contentar-se com seus dois braços
e seus dez dedos.
— E o que você pensa que é — gritou Zênon, tomado de fúria —
senão uma máquina mal azeitada que se usa, depois se atira ao
ferro-velho e, por desgraça, ainda serve para engendrar outras?
Julgava-o um homem, Colas, e vejo apenas uma toupeira cega!
Estúpidos que não teriam nem fogo, nem vela, nem colher para o
caldo da sopa, se alguém não houvesse pensado por vocês, e a
quem uma bobina causaria medo, se lhes fosse mostrada pela
primeira vez! Retornem a seus dormitórios para apodrecerem em
grupos de cinco ou seis sob o mesmo teto, e rebentem sob seus
galões e tecidos de lã como o fizeram seus pais!
O aprendiz Perrotin armou-se com um hanap [13] deixado sobre a
mesa e investiu contra Zênon. Thierry Loon agarrou-o pelos punhos;
os uivos do aprendiz, que tartamudeava ameaças em dialeto
picardo, acompanhavam-lhe as contorções de cobra. De repente, a
voz tonitruante de Henrique-Justo, que acabara de despachar para
baixo um de seus mordomos, anunciou que estavam sendo abertos
no pátio alguns tonéis para beber à Paz. O monturo humano seguiu
Colas Gheel, que gesticulava com as mãos enfaixadas. Perrotin
acompanhou-os de longe, escapando com uma sacudidela aos
punhos de Thierry Loon. Algumas cabeças mais equilibradas
permaneceram sozinhas onde estavam, refletindo sobre os meios
de como aumentar, ao menos em algumas moedas, os salários dos
próximos contratos. Tomás e seus temores foram esquecidos. Já
não mais se cogitava de outra vez implorar à Regente,
comodamente instalada na sala vizinha. O homem de negócios era
a única instância que aqueles artesãos conheciam e respeitavam;
não viam Madame Margarida senão a distância, assim como só de
modo confuso e indiscriminado percebiam as baixelas de prata, as
alfaias, e sobre as paredes ou os corpos dos convidados os estofos
e fitas que eles próprios haviam tecido.
Henrique-Justo sorriu levemente do êxito de seu discurso e de sua
generosidade. Em suma, toda a algazarra não durara mais que o
tempo de execução de um moteto. Os teares mecânicos aos quais
conferia apenas uma diminuta importância acabavam de completar,
sem grandes gastos, a quantia de uma pechincha; disso se poderia
talvez auferir algum lucro no futuro, embora somente se, por
desgraça, a mão de obra se tornasse excessivamente cara ou
viesse a faltar. Zênon, cuja presença em Dranoutre inquietava o
negociante como o faria uma fagulha numa granja, iria passear
alhures suas fantasias e os olhos de fogo que perturbavam as
mulheres; e Henrique-Justo poderia então, quando bem lhe
aprouvesse, gabar-se, junto aos poderosos e influentes, de saber,
nesses tempos de agitação social, como conduzir a plebe, dando a
todos a impressão de que poderia ceder quanto a determinado
ponto, sem jamais fazê-lo.
Do vão de uma janela, Zênon contemplava lá embaixo as sombras
andrajosas misturadas aos criados e guardas de Madame. Os
archotes engastados nos muros iluminavam a pequena festa. O
clérigo distinguiu na turba Colas Gheel com os cabelos ruivos e os
trajes brancos. Pálido como as ataduras que lhe enfaixavam as
mãos, derreado junto a um barril, bebia avidamente o conteúdo de
um imenso copo.
— Ele sorve sua cerveja enquanto Tomás sua de angústia na
masmorra — murmurou com desprezo o clérigo. — E eu amava
esse homem… Raça de Simão Pedro.
— Paz — disse Thierry Loon imóvel ao seu lado. — Você não
sabe o que são o medo e a fome.
E cutucando-o com o cotovelo:
— Esqueça Colas e Tomás, e pense em nós de agora em diante.
Os nossos seguiriam você como o fio segue a naveta — cochichou-
lhe. — Eles são pobres, ignorantes, estúpidos, mas numerosos,
buliçosos como vermes, ávidos como ratos que farejam queijo… Os
teares lhes dariam prazer se não mais estivessem sós. Começa-se
por chamuscar uma casa de campo, e acaba-se por ocupar cidades
inteiras.
— Vá beber com os outros, bêbado! — disse Zênon.
E deixou a sala, enfiando pela escada deserta. No patamar em
sombras esbarrou em Jacqueline, que subia ofegante, segurando
nas mãos um molho de chaves.
— Aferrolhei a porta do celeiro. — Arquejou. — Sabe-se lá!
E agarrando a mão de Zênon para provar-lhe que o coração batia
em disparada:
— Fique um pouco, Zênon! Tenho medo.
— Peça proteção aos soldados da guarda — disse duramente o
jovem clérigo.
Pela manhã, o Cônego Campanus procurou o discípulo para
comunicar-lhe que Madame Margarida, antes de subir à carruagem,
já estava inteirada dos conhecimentos de grego e hebraico que
possuía o estudante, e manifestara o desejo de admiti-lo entre os
serviçais de sua comitiva. Contudo, o quarto de Zênon estava vazio.
Segundo a criadagem, partira ao amanhecer. A chuva que não
cessara de cair havia várias horas retardou um pouco a partida da
Regente. Os tecelões haviam tomado o rumo de Oudenove, de
modo algum descontentes, pois obtiveram afinal do Tesoureiro-Mor
um aumento de meio soldo por libra. Colas Gheel saboreava sua
cerveja debaixo de uma caixa-d’água. Quanto a Perrotin,
desaparecera às primeiras horas do dia. Soube-se depois que,
nessa noite, ele se desmandou em ameaças contra Zênon. E
também que muito se vangloriou de sua perícia em manipular uma
faca.
A partida de Bruges

Wiwine Cauwersyn ocupava na casa do tio, Cura da Igreja de


Jerusalém em Bruges, um quartinho forrado de carvalho polido.
Nele se via um modesto leito branco, um vaso de alecrim sobre o
peitoril da janela, um missal sobre o aparador: tudo era adequado,
limpo, tranquilo. Todos os dias, à hora da Prima, essa pequena e
bondosa sacristã antecipava-se aos primeiros devotos e ao mendigo
que reconquistava seu lugar de costume no canto do átrio; calçada
de feltro, ela saltitava sobre as lajes do coro, esvaziando a água das
jarras, brunindo cuidadosamente os candelabros e cibórios de prata.
O nariz pontiagudo, a palidez, a falta de jeito não inspiravam a
ninguém os ardentes propósitos que irrompem por si próprios à
passagem de uma bela jovem, conquanto sua tia Godoleva
comparasse ternamente seus cabelos louros ao ouro dos
couques [14] bem tostados e do pão bendito; toda a sua atitude era
religiosa e doméstica. Os antepassados, pintados em cobre polido
ao longo das paredes, congratulavam-se sem dúvida por vê-la tão
comportada.
Pois era de boa família. O pai, Thibaut Cauwersyn, antigo pajem
de Madame Maria de Borgonha, trouxera de volta para Bruges,
numa padiola, entre preces e lágrimas, sua jovem duquesa
mortalmente ferida. A imagem dessa caçada fatal jamais o
abandonou e, durante toda a vida, guardou pela senhora tão cedo
desaparecida um respeito enternecido que recordava o do amor.
Thibaut viajou, serviu o Imperador Maximiliano em Ratisbona e
retornou a Flandres para morrer. Wiwine dele se lembrava como um
homem corpulento que a sentava aos joelhos guarnecidos de couro
e cantarolava canções alemãs com voz entrecortada. A tia
Cleenwerk criou a pequena órfã. Era uma mulher bondosa, farta de
carnes, irmã e governanta do Cura da Igreja de Jerusalém;
preparava ela reconfortantes xaropes e delicadas compotas de
frutas. O Cônego Bartolomeu Campanus frequentava de bom grado
a casa impregnada do odor de piedade cristã e de boa cozinha. E
fez com que seu discípulo passasse também a frequentá-la. Tia e
sobrinha empanturravam o estudante de guloseimas sempre ainda
quentes do forno, lavavam-lhe os joelhos e as mãos esfolados numa
queda ou durante uma desordem, maravilhavam-se sem reservas
com seus progressos no latim. Mais tarde, durante as raras visitas
que o estudante de Lovaina fez a Bruges, o cura fechou-lhe as
portas por pressentir daquelas bandas um ar contaminado de
ateísmo e heresia. Wiwine, porém, soubera naquela manhã, por
uma bisbilhoteira, que há poucos instantes Zênon fora visto, todo
enlameado, dirigindo-se debaixo da chuva à oficina de João Myers,
e esperava agora tranquilamente que ele viesse vê-la na igreja.
Ele entrou sem fazer barulho pela porta baixa. Wiwine correu ao
seu encontro, as mãos ainda cheias pelas toalhas do altar, com
solicitude de criada ingênua.
— Estou de partida, Wiwine — disse ele. — Embrulhe-me aqueles
cadernos que escondi em seu armário. Virei buscá-los à noite.
— Como quiser, meu amigo — respondeu ela.
Ele devia ter chafurdado sob o aguaceiro na lama da campina,
pois as botas e a parte inferior das vestes estavam sujas de terra.
Parecia também que o haviam agredido, ou mesmo derrubado, pois
o rosto nada mais era que uma só contusão, e pela fímbria de uma
das mangas sulcava uma estria de sangue.
— Não é nada — disse ele. — Apenas uma briga. Já nem me
lembro dela.
Contudo, deixou-a limpar o melhor que pôde, com a ajuda de um
pano branco, os salpicos de lama que lhe enodoavam as roupas.
Confusa, Wiwine o achava tão belo quanto o sombrio Cristo de
madeira pintada que jazia ali perto sob um arco, e desdobrava-se ao
redor dele tal uma pequena e cândida Madalena.
Ofereceu-se para levá-lo à cozinha da tia Godoleva a fim de limpar
melhor as roupas e dar-lhe de comer favos de mel ainda quentes.
— Estou de partida, Wiwine — repetiu Zênon. — Vou ver se a
ignorância, o medo, a inépcia e a superstição verbal também
imperam para além daqui.
A linguagem veemente assustou-a: tudo o que era inusitado a
assustava. Entretanto, toda a cólera do homem agora adulto se
confundia para ela aos impetuosos arrebatamentos do estudante,
como se a lama e o sangue enegrecido lhe recordassem o Zênon
recém-saído das refregas de rua, o Zênon que fora seu amiguinho e
doce irmão quando ela tinha apenas dez anos. Wiwine repreendeu-
o com um tom de terna advertência:
— Como você fala alto na igreja!
— Deus não ouve nada — respondeu amargamente Zênon.
Ele não lhe explicou nem de onde viera, nem para onde iria, nem
de que escaramuça ou emboscada saíra, nem que mágoa o
afastava de uma existência doutoral forrada de arminho e honrarias,
nem que secretos desejos o arrastavam sem equipagem a estradas
pouco seguras, palmilhadas por andarilhos e vagabundos sem eira
nem beira, que o pequeno grupo formado pelo cura, por tia
Godoleva e por alguns criados prudentemente evitava quando de
uma incursão ao campo.
— Os tempos são difíceis — disse ela, repetindo as queixas
habituais da casa e do mercado. — E se outra vez você encontra
um malfeitor…
— Seja lá quem for, não serei eu que o temerei — retrucou Zênon
asperamente. — Não é tão difícil assim despachar alguém…
— Cristiano Merghelynk e meu primo João de Behaghel, que
estudam em Lovaina, preparam-se também para retornar à
universidade — insistiu ela. — Se você encontrá-los na
Hospedagem do Cisne…
— Que ambos definhem, se o pretendem, com os atributos da
pessoa divina — retrucou o jovem clérigo. — E se o cura, seu tio,
que me supõe ateu, ainda se inquieta com minhas opiniões, diga-lhe
que professo minha fé em um deus que não nasceu de uma virgem
e não ressuscitou no terceiro dia, e sim no reino deste mundo. Será
que você me entende?
— Eu o repetirei para ele sem entender — assentiu Wiwine com
doçura, mas sem sequer tentar reter o sentido dessas conversas tão
abstrusas para ela. — E como minha tia Godoleva tranca a porta na
hora do toque de recolher e esconde a chave sob o colchão,
deixarei seus cadernos sob o alpendre com algumas provisões para
a viagem.
— Não — disse ele. — Este é para mim um tempo de vigília e
jejum.
— Por quê? — redarguiu ela, procurando lembrar-se inutilmente
de que santo se festejava no calendário.
— Eu o prescrevi a mim mesmo — respondeu ele em tom de
gracejo. — Você nunca viu os peregrinos se prepararem para partir?
— Como lhe aprouver — disse ela, enquanto lágrimas lhe
embargavam a voz à ideia daquela estranha viagem. — E eu… eu
contarei as horas, os dias, os meses, como sempre faço durante
suas ausências.
— Que balada me recita agora você? — perguntou ele com um
tíbio sorriso. — A estrada que sigo não passará de novo por aqui.
Não sou daqueles que voltam atrás para rever uma jovem.
— Pois então — disse ela, erguendo para Zênon a pequena fronte
obstinada —, irei um dia até você em vez de você voltar para mim.
— Tormentos inúteis — retrucou ele, entrando como que por
divertimento nessa troca de réplicas. — Eu a esquecerei.
— Meu bom senhor — disse Wiwine —, as pessoas de minha
família estão sepultas sob essas lajes e sua divisa bordada na
almofada em que repousam a cabeça. Mais está em vós. Em mim
está mais do que retribuir o esquecimento com o esquecimento.
Ela se mantinha calma diante dele, pequena fonte insípida e
límpida. Ele não a amava em absoluto; a menina algo simples era
sem dúvida o mais tênue dos vínculos que o prendiam a seu curto
passado. No entanto, uma frágil piedade o dominou, misturada ao
orgulho de estar arrependido. Súbito, com o gesto impulsivo de um
homem que, no instante da partida, doa, atira fora ou consagra
alguma coisa, a fim de se conciliar com não se sabe que poderes —
ou, ao contrário, para deles se livrar —, Zênon tirou do dedo sua fina
aliança de prata, ganha no jogo de anéis com Jeannette Fauconnier,
e a depôs como um óbolo na mão que lhe era estendida. Não
contava jamais regressar. A menina não receberia dele senão a
esmola de um pequeno sonho.
Noite fechada, foi buscar sob o alpendre os cadernos, levando-os
em seguida à casa de João Myers. A maioria deles incluía excertos
de filósofos pagãos copiados sob grande sigilo nos tempos em que
se instruía em Bruges sob a vigilância do cônego. Continham
também certo número de opiniões escandalosas sobre a natureza
da alma e a inexistência de Deus; ou ainda citações dos Padres da
Igreja atacando o culto dos ídolos, citações cujo sentido fora
deturpado para demonstrar a vacuidade da devoção e das
cerimônias cristãs. Zênon permanecia bastante jovem para dar valor
a essas primeiras liberdades de estudante. Discutiu seus futuros
projetos com João Myers: este sustentava a opinião de que Zênon
deveria estudar na Faculdade de Medicina de Paris, que ele próprio
frequentara, mas sem ali ter chegado a defender tese ou recebido o
seu barrete. Além disso, Zênon se entusiasmava com a perspectiva
de longas viagens. O cirurgião-barbeiro guardou cuidadosamente os
cadernos do estudante no refúgio onde enfileirava suas velhas
garrafas e a provisão de roupas brancas. O clérigo não se deu conta
de que Wiwine colocara entre as folhas um talo de roseira brava.
A opinião pública

Soube-se mais tarde que, antes de tudo, passara ele algum tempo
em Gand, hospedado na casa do Abade Mitrado de São Bavo, que
se ocupava de alquimia. Julgaram depois vê-lo em Paris, na Rua da
Carvoaria, onde os estudantes dissecavam cadáveres em segredo e
adquiriam um como que sinistro aspecto de partidários do
pirronismo e da heresia. Outros, mais dignos de fé, asseguravam
que ele trazia nas mãos os diplomas que lhe conferira a
Universidade de Montpellier, fato que alguns desmentiam,
esclarecendo que ele não fizera senão inscrever-se no célebre
estabelecimento de ensino e que renunciara aos pergaminhos da
doutoração unicamente em favor da prática experimental,
desdenhando assim Galeno e Celso. Acreditou-se reconhecê-lo no
Languedoc na pessoa de um mágico que seduzia mulheres e, pela
mesma época, na Catalunha, sob o hábito de um peregrino
procedente de Montserrat e procurado por causa da morte de um
jovem numa hospedaria frequentada por vagabundos, marinheiros,
cavalariços, agiotas suspeitos de judaísmo e árabes
semiconvertidos. Sabia-se vagamente que ele se interessava por
especulações fisiológicas e anatômicas, e a história do menino
assassinado, que não constituía para os ignorantes ou os crédulos
mais do que uma instância de magia ou de negra libertinagem,
transformou-se entre os lábios dos mais doutos na de uma
intervenção cujo objetivo era transfundir sangue fresco para as veias
de um abastado hebreu enfermo. Mais tarde ainda, pessoas
chegadas de longas viagens e de mais longas mentiras, pretendiam
tê-lo visto na região dos sármatas, [15] entre os berberes e até
mesmo na corte do Grão-Dair. Uma nova fórmula de fogo grego,
utilizado em Argel pelo Paxá Khayr al-Dïn, mais conhecido por
Barba-Roxa, prejudicou seriamente, por volta de 1541, uma
emboscada espanhola; atribuiu-se-lhe a sinistra invenção, que,
segundo se dizia, o enriqueceu. Um monge franciscano, enviado em
missão à Hungria, encontrou em Buda um médico flamengo que se
abstinha de declinar o nome: era ele, sem dúvida. Sabia-se também
de fonte segura que teria sido chamado para uma consulta em
Gênova por Joseph Ha-Cohen, médico particular do Doge, mas que,
em seguida, teria insolentemente recusado o cargo desse judeu
punido com uma sentença de exílio. Como se considera que as
audácias da carne, amiúde com razão, acompanham as da
inteligência, atribuíram-lhe prazeres não menos insólitos do que
seus trabalhos, e sobre ele se divulgaram diversas histórias, que
variavam, bem entendido, segundo o gosto dos que difundiam ou
inventavam tais aventuras. Mas, dentre todas as ousadias, a mais
chocante talvez foi aquela que, dizia-se, o levara a aviltar a nobre
profissão de médico e consagrar-se de preferência à grosseira arte
da cirurgia, que lhe sujava as mãos de sangue e pus. Nada podia
subsistir se um espírito inquieto afrontava assim a boa ordem e os
bons costumes. Após um longo eclipse, acreditou-se revê-lo em
Basileia durante uma epidemia de peste negra: uma sequência de
inesperadas curas granjeara-lhe por aqueles anos a reputação de
taumaturgo. Pouco depois, entretanto, tais rumores de novo
cessaram. Esse homem parecia temer os tímbales da glória.

Por volta de 1539, recebeu-se em Bruges um pequeno tratado em


francês, impresso pelo editor Dolet, de Lyon, que trazia seu nome.
Era uma descrição pormenorizada das fibras tendinosas e das
válvulas cardíacas, seguida de um estudo sobre o papel que
desempenharia o ramo esquerdo do nervo vago no comportamento
desse órgão; Zênon afirmava aí que a pulsação correspondia ao
momento da sístole, contrariando assim a opinião dos catedráticos
da época. Discorria também sobre o estreitamento e o
espessamento das artérias em certas doenças devidas à idade
avançada. O cônego, que pouco sabia do assunto, leu e releu o
breve tratado, quase decepcionado por não encontrar nele nada que
justificasse os rumores de impiedade que circulavam em torno de
seu antigo aluno. Não importava que prático, parecia, poderia ter
escrito tal livro, que não se adornava sequer com uma única citação
latina. Bartolomeu Campanus muito observara na cidade,
encarapitado no lombo de sua boa mula, o cirurgião-barbeiro João
Myers, cada vez mais cirurgião e menos barbeiro, desde que a
consideração lhe viera com o correr dos anos. Pois esse Myers era
talvez o único habitante de Bruges que razoavelmente recebia, de
tempos em tempos, notícias do estudante agora transformado em
mestre. O cônego sentia-se às vezes tentado a aproximar-se desse
homem de baixa classe social; as conveniências, porém, pareciam
opor-se a que as primeiras aberturas partissem dele, e Myers tinha
reputação de finório e zombeteiro.
Toda vez que um acaso lhe trazia algum eco relativo a seu
discípulo de outros tempos, o cônego dirigia-se imediatamente à
casa do Cura Cleenwerk, velho amigo seu. Conversavam ambos à
noite, na sala de visitas da cúria, às vezes cruzada por tia Godoleva
ou pela sobrinha, sempre trazendo nas mãos um prato ou um
candeeiro; nem uma nem outra lhes prestavam atenção, pois não
tinham o hábito de escutar as conversas dos dois religiosos. Wiwine
deixara para trás a idade dos namoricos infantis; guardava ainda a
delgada aliança, na qual se via impresso um florão, numa pequena
caixa que continha pérolas de vidro e agulhas, ignorando que a tia
reservava para ela sérios projetos. Enquanto as duas mulheres
dobravam a toalha de mesa e arrumavam a louça, Bartolomeu
Campanus tornava e retornava ao velho cura para trazer-lhe
aquelas insignificantes migalhas de informação que valiam,
considerando-se toda a vida de Zênon, o que vale a unha para a
totalidade do corpo. O cura balançava a cabeça, não esperando
senão o pior daquele espírito louco de impaciência, saber inútil e
orgulho. O cônego defendia timidamente o discípulo a quem
formara. Pouco a pouco, entretanto, Zênon ia deixando de ser para
eles uma pessoa, um rosto, uma alma, um homem que vivia alhures
em algum ponto da circunferência terrestre; tornava-se um nome,
menos que um nome, a esmaecida etiqueta de um frasco no qual
lentamente apodreciam umas poucas memórias incompletas e
extintas de seu próprio passado. Eles ainda conversavam; na
verdade, porém, já o esqueciam.
A morte em Münster

Simão Adriansen envelhecia. Ele o percebia menos pela fadiga do


que por uma espécie de gradual serenidade. Sentia-se agora como
um piloto quase surdo que só de modo confuso capta o rumor da
tempestade, mas que continua a avaliar com a mesma acuidade a
força das correntes, das marés e dos ventos. Durante toda a vida,
caminhou de uma riqueza menor a uma riqueza maior: o ouro afluía
às suas mãos; abandonara a residência familiar em Middelburgo por
uma casa edificada graças a seus bons serviços num cais
recentemente construído em Amsterdã, à época em que obtivera
nesse porto a concessão para importar especiarias. Em sua
residência, vizinha à Schreijerstoren, [16] como no interior de um
sólido cofre, os tesouros de além-mar estavam reunidos e
ordenados. Mas Simão e a mulher, cerceados por tal esplendor,
residiam no último andar, em um pequeno quarto desnudo como a
cabine de um navio, e todo esse luxo não servia senão à
consolação dos pobres.
Para estes, as portas estavam sempre abertas, o pão sempre
cozido, os candeeiros sempre acesos. Esses andrajosos nada mais
eram do que mutuários incapazes de pagar o que deviam ou
enfermos que os asilos superlotados se recusavam a aceitar, aos
quais se somavam atores famintos, marinheiros afogados em
aguardente e o refugo carcerário amontoado sobre os pelourinhos,
cujos componentes exibiam nas costas as marcas do chicote. Assim
como Deus, que nos quer a todos caminhando sobre a Sua terra e
nos regozijando por Seu sol, Simão Adriansen não escolhia, ou
antes, por aversão às leis humanas, escolhia os que passam pelos
piores momentos. Vestidos com roupas quentes pelas mãos do
próprio mestre, os amedrontados indigentes sentavam-se à sua
mesa. Músicos dissimulados na galeria vertiam em seus ouvidos um
antegozo do Paraíso; para receber seus hóspedes, Hilzonda se
paramentava com esplêndidos vestidos que mais ainda realçavam o
valor de suas esmolas e servia os pratos com ajuda de uma esguia
concha de prata.
Como Abraão e Sara, como Jacó e Raquel, Simão e a mulher
viveram em paz por doze anos, o que não os impediu de terem suas
queixas. Diversos recém-nascidos, ternamente queridos e cuidados,
morreram uns após os outros. Simão inclinava sempre a cabeça e
dizia:
— O Senhor é pai. Ele sabe o que convém às crianças.
E esse homem de fato piedoso ensinava a Hilzonda a doçura da
resignação. Mas restava-lhe sempre uma ponta de tristeza. Por fim,
uma filha nasceu e vingou. Desde então, Simão Adriansen e
Hilzonda viveram sob o signo de um espírito fraternal.
Seus navios singravam todas as margens do mundo em direção
ao porto de Amsterdã; Simão, porém, pensava na grande viagem
que termina para todos nós, ricos ou pobres, pelo naufrágio em uma
praia desconhecida. Os navegadores e os geógrafos que com ele se
debruçavam sobre os portulanos e executavam as cartas para seu
uso, eram-lhe menos caros do que os aventureiros a caminho de um
outro mundo, predicantes andrajosos, profetas escarnecidos e
apupados em praça pública, um Jan Matthyjs, padeiro alucinado, um
Hans Bockhold, dançarino ambulante que Simão encontrou certa
noite semicongelado na soleira da porta de uma taberna e que
punha a serviço do Reino do Espírito pantomimas de feira. Dentre
eles, mais humilde do que todos, dissimulando seu grande saber,
voluntariamente embrutecido para que mais espontânea descesse
sobre ele a inspiração divina, um havia que se destacava sob suas
vestes de peles e que se chamava Bernardo Rottmann, outrora o
mais querido discípulo de Lutero e que blasfemava agora contra o
homem de Wittenberg, esse falso justo que acariciava com uma das
mãos o repolho dos ricos e com a outra a cabra dos pobres,
flacidamente sentado entre a verdade e o erro.
A arrogância dos Santos, a forma imprudente pela qual
arrancavam em imaginação os bens aos burgueses e os títulos aos
ilustres para distribuí-los à sua maneira haviam atraído sobre eles a
cólera pública; ameaçados de morte ou de imediata expulsão, os
Bons mantinham na casa de Simão conciliábulos de marinheiros
numa embarcação à deriva. A esperança, contudo, despontava ao
longe como um véu: Münster, onde Jan Matthyjs conseguira instalar-
se com êxito após expulsar o bispo e os oficiais da municipalidade,
convertera-se na Cidade de Deus, onde, pela primeira vez sobre a
terra, os cordeiros teriam um asilo. Inutilmente, as tropas imperiais
tentavam subjugar essa Jerusalém dos deserdados; todos os
pobres do mundo cerrariam fileiras em torno de seus irmãos; grupos
iriam de cidade em cidade pilhando os vergonhosos tesouros das
igrejas e derrubando os ídolos; sangrar-se-ia o rotundo Martinho em
sua pocilga da Turíngia, o Papa em sua Roma. Simão ouvia tudo
aquilo cofiando as barbas brancas: seu temperamento de homem
habituado ao perigo induzia-o a aceitar sem perturbar-se os imensos
riscos dessa piedosa aventura; a tranquilidade de Rottmann e os
gracejos de Hans dissolveram-lhe as últimas dúvidas; aquietaram-
no do mesmo modo que, quando a bordo de um de seus navios que
levantavam âncora no período das tempestades, o faziam a
seriedade do capitão e o bom humor do gajeiro. Foi de coração
confiante que, uma noite, ele observou seus miseráveis comensais
a enterrar os gorros até os olhos e a envolver o pescoço com trapos
aproveitados de uma echarpe de lã, caminhando lado a lado sobre
lama e neve, prontos a se arrastar juntos até a Münster de seus
sonhos.
Um dia, afinal — ou antes uma noite —, por uma fria aurora de
fevereiro, Simão subiu ao quarto onde Hilzonda repousava hirta e
imóvel em seu leito, iluminada por uma diminuta lamparina.
Chamou-a em voz baixa, certificou-se de que não dormia, sentou-se
vagarosamente ao pé da cama e, como um negociante que confere
com a mulher as contas do dia, a pôs a par dos conciliábulos que se
vinham realizando na pequena sala do andar térreo. Não se
entediara, ela também, de viver numa daquelas cidades onde o
dinheiro, a carne e a vaidade desfilavam grotescamente em praça
pública, onde o infortúnio humano parecia estar cristalizado nas
pedras, nos ladrilhos, em objetos inúteis e estorvantes, sobre os
quais não mais lateja o Espírito? Quanto a ele próprio, bem, ele se
propunha abandonar, ou antes vender (pois a troco de que iria
esperdiçar sem um fruto sequer um bem que pertence a Deus?) sua
casa e suas posses em Amsterdã para, enquanto ainda lhe restasse
tempo, instalar-se a bordo da Arca de Münster, já tão cheia que
ameaçava rachar, e onde seu amigo Rottmann saberia arranjar-lhe
um teto e algo de comer. Deu a Hilzonda um prazo de quinze dias
para que refletisse sobre esse projeto, em cuja raiz se encontravam
a miséria, o exílio, talvez a morte, mas também a oportunidade de
estar entre os primeiros a saudar o Reino do Céu.
— Quinze dias, mulher — repetiu ele. — Nem uma hora a mais,
pois o tempo urge.
Hilzonda se aprumou nos cotovelos e fixou nele os olhos de súbito
muito abertos:
— Os quinze dias já se passaram, meu marido — disse com uma
espécie de tranquilo desdém por tudo aquilo que deixaria atrás de
si.
Simão louvou-a por estar sempre antecipando-se de um salto em
seu caminho para Deus. Sua veneração pela companheira resistira
ao desgaste do dia a dia. Era voluntariamente que esse homem já
entrado em anos negligenciava as imperfeições, as sombras, os
defeitos visíveis que afloravam, contudo, à superfície da alma, para
preservar apenas, nos seres de sua eleição, o que talvez de mais
puro possuíssem ou aquilo que aspiravam vir a ser. Sob a piedosa
aparência dos profetas que eles abrigavam dentro de si, Simão
vislumbrava santos. Enternecido desde o primeiro encontro pelos
olhos claros de Hilzonda, não se apercebia ruga apenas dissimulada
que lhe vincava a boca triste. A mulher franzina e alquebrada
tornara-se para ele um grande Anjo.

A venda da casa e dos móveis foi o último bom negócio feito por
Simão. Como sempre, sua indiferença para com o dinheiro
resguardava-lhe a fortuna, evitando-lhe ao mesmo tempo os erros
devidos ao receio de perder e os que resultam da pressa em ganhar
muito. Os exilados voluntários deixaram Amsterdã cercados pelo
respeito de que, apesar de tudo, desfrutam os ricos, ainda que
tomem escandalosamente o partido dos pobres. Um barco
transportou-os a Deventer, de onde seguiram em carroças através
das colinas cobertas de folhas jovens da Guéldria. O grupo se
deteve nas estalagens da Vestfália para degustar um presunto
defumado; a estrada para Münster adquiria para esses moradores
da cidade um aspecto de passeio campestre. Uma criada de nome
Joana, a quem Simão venerava por já haver sido torturada em razão
de sua fé anabatista, acompanhava Hilzonda e a criança.
Bernardo Rottmann recebeu-os às portas de Münster em meio a
um aglomerado de carroças, sacos e barris. A instalação da nova sé
lembrava a caótica atividade de certas vésperas de festa. Enquanto
as duas mulheres faziam descer do veículo um berço e peças de
roupa, Simão escutava as explicações do Grande Restaurador:
Rottmann era calmo; assim como a turba por ele doutrinada que
arrastava pelas ruas hortaliças e madeiras dos campos vizinhos, ele
contava com a ajuda de Deus. Não obstante, Münster precisava de
dinheiro. E mais ainda necessitava do apoio dos pequenos, dos
insatisfeitos, dos indignados dispersos pelo mundo, que não
esperavam libertar-se do jugo de todas as idolatrias senão através
da primeira vitória do novo Cristo. Simão continuava rico, dispondo
de créditos restituíveis em Lübeck, em Elbing e até na Jutlândia ou
na longínqua Noruega; era seu dever recuperar tais somas que
pertenciam apenas ao Senhor. Ao longo das estradas, saberia
transmitir aos corações piedosos a mensagem dos Santos
revoltados. Sua reputação como homem de responsabilidade e de
dinheiro, suas roupas de fino tecido e de couro macio o tornariam
capaz de ser ouvido em lugares aos quais um pregador em farrapos
jamais teria acesso. Esse rico convertido era o melhor emissário do
Conselho dos Pobres.
E Simão percorreu esses itinerários. Era preciso ser rápido para
escapar às ciladas dos príncipes e dos padres. Tendo abraçado
apressadamente a mulher e a filha, partiu imediatamente, levado
pela mula mais descansada que vinham de trazer às portas da Arca.
Alguns dias depois, as pontas de ferro das espadas dos lansquenês
afloraram no horizonte; as tropas do príncipe-bispo acamparam ao
redor da cidade sem tentar o assalto, mas dispostas a permanecer
ali o tempo que fosse necessário para submeter pela fome os
indigentes.
Bernardo Rottmann instalou Hilzonda e a filha na casa do
Burgomestre Knipperdolling, que era em Münster o mais antigo
protetor dos Puros. Esse obeso homem plácido e cordial tratava-a
como irmã. Sob a influência de Jan Matthyjs, que modelava um
novo mundo como outrora amassava seus pães num porão de
Haarlem, todas as coisas da vida se tornavam diferentes, fáceis,
simplificadas. Os frutos da terra pertenciam a todos como o ar e a
luz de Deus; os que dispunham de roupa branca, louças ou móveis,
os levavam para a rua a fim de que fossem partilhados com os
demais. Amando-se com um rigoroso amor, todos se ajudavam, se
criticavam, se vigiavam uns aos outros para advertir-se de seus
pecados; as leis civis estavam abolidas, abolidos os sacramentos; o
açoite punia os blasfemos e os deslizes carnais; as mulheres
ocultas em véus insinuavam-se aqui e ali como grandes anjos
inquietos, e ouviam-se na praça os soluços das confissões públicas.
A pequena cidadela dos Bons, sitiada pelas tropas católicas, vivia
no fervor de Deus. Sermões ao ar livre reanimavam todas as noites
a coragem de cada um; Bockhold, o Santo preferido, era o que mais
atraía a todos porque suavizava a visão das imagens sangrentas do
Apocalipse com seus gracejos de ator. Os enfermos e os primeiros
feridos do cerco, deitados sob as arcadas da praça durante a tépida
noite de verão, misturavam os gemidos às agudas vozes de
mulheres que imploravam a ajuda do Pai. Hilzonda era das mais
fervorosas. De pé, esguia, pontiaguda como uma flama, a mãe de
Zênon denunciava as ignomínias romanas. Medonhas visões
enchiam-lhe os olhos enevoados de lágrimas; derreando-se sobre si
própria, de súbito retorcida como um grande círio muito delgado,
Hilzonda chorava de contrição, ternura e esperança pela morte.
O primeiro luto público foi a morte de Jan Matthyjs, abatido durante
um ataque ensaiado contra o exército do bispo, quando ia à frente
de trinta homens e de um batalhão de anjos. Hans Bockhold, a
cabeça cingida por uma coroa real, montado num cavalo que se
ajaezara com uma manta sacerdotal, foi sem demora proclamado
Profeta do Rei no adro da igreja; ergueu-se um estrado sobre o qual
o novo Davi se pavoneava toda manhã, decidindo sem apelação
assuntos da terra e do céu. Algumas incursões bem-sucedidas,
durante as quais se reviraram as cozinhas do bispo, delas trazendo-
se um espólio de porcos e galinhas, foram festejadas sobre o
estrado ao som de pífanos; Hilzonda ria como todos os outros
quando os auxiliares de cozinha do inimigo, feitos prisioneiros,
viram-se obrigados, antes de serem mortos pela multidão a socos e
pontapés, a preparar as iguarias do repasto.
Pouco a pouco, tinha lugar uma transformação no íntimo das
almas, como aquela que, certas noites, converte insensivelmente
um sonho em pesadelo. O êxtase conferia aos Santos um titubeante
caminhar de bêbados. O novo Cristo-Rei ordenava, jejum após
jejum, que se poupassem os víveres todavia estocados nas adegas
e celeiros da cidade; às vezes, porém, se uma barrica de arenques
marinados exalava excessivo mau cheiro, ou se apareciam nódoas
à superfície dos presuntos, todos então se empanturravam.
Extenuado e enfermo, Bernardo Rottmann guardava o leito e
endossava, sem dizer palavra, as decisões do novo Rei,
contentando-se em pregar ao povo reunido sob sua janela o Amor
que consome toda a escória terrestre e a esperança no Reino de
Deus. Knipperdolling fora solenemente promovido do posto de
burgomestre, já então abolido, ao de carrasco; esse homem
untuoso, de pescoço avermelhado, respirava o bem-estar no
exercício das novas funções, como se, toda a vida, sonhasse em
segredo com a profissão de açougueiro. Matava-se muito; o Rei
eliminava os frouxos e relaxados antes que infectassem os demais;
além disso, cada morte economizava uma ração. Conversava-se
sobre suplícios na casa em que Hilzonda residia, assim como
outrora, em Bruges, se discutia sobre a taxa das lãs.
Por humildade, Hans Bockhold consentia em que o chamassem de
João de Leyde, do nome de sua cidade natal, quando das
assembleias terrestres, embora diante de suas fiéis tomasse outro
nome, inefável, pois sentia dentro de si força e ardor sobre-
humanos. Dezessete esposas lhe testemunhavam o inesgotável
vigor de Deus. O medo ou a vaidade por coisas ínfimas levam os
burgueses a entregarem ao Deus vivo suas mulheres como se lhe
entregassem peças de ouro; indigentes arrancadas aos mais
sórdidos bordéis disputavam a honra de servirem aos prazeres
conjugais do Rei. Certo dia, foi ele à casa de Knipperdolling para
entreter-se com Hilzonda. Ela empalideceu ao contato daquele
homenzinho de olhos vivos, cujas mãos ávidas e curiosas, como as
de um alfaiate, lhe desabotoavam o corpete. Ela se lembrou então
(e não desejava lembrar-se) de que nos tempos de Amsterdã,
quando não passava de um dançarino faminto que se sentava à sua
mesa, esse homem aproveitara para bolinar-lhe as coxas no
momento em que ela se inclinava sobre ele com um prato nas
mãos. Hilzonda cedeu nauseada aos beijos da boca úmida, mas
todo o asco logo se transformou em êxtase; as derradeiras
decências da vida caíram como trapos, ou como a pele morta que
se raspa nos banhos públicos; submersa no hálito quente e insípido,
Hilzonda deixava de existir, e com ela os receios, os escrúpulos, os
dissabores de Hilzonda. Ao seu lado, o Rei se maravilhava do corpo
esguio cuja magreza parecia, dizia ele, fazer sobressair no mais alto
grau as benditas formas da mulher, os longos seios pendentes e o
ventre arqueado. Habituado às vagabundas ou às matronas sem
graça, o dançarino se extasiava com os refinamentos de Hilzonda:
as frágeis mãos pousadas sobre o doce tufo que lhe crescia no
monte de Vênus lembravam ao Rei as de uma dama que
distraidamente as deixasse sobre seu regalo ou seu carlin [17]
frisado. O Rei recapitulava para si próprio: desde a idade de
dezesseis anos, ele já se sabia Deus. Sofrera um primeiro ataque
de epilepsia na loja do alfaiate onde exercia as funções de aprendiz
e de onde o expulsaram; durante as crises e a ejeção da baba, ele
ascendia ao céu. Experimentara outra vez a convulsão que se
confundia com Deus nos bastidores da companhia ambulante na
qual desempenhava o papel de farsante espancado; numa granja,
onde pela primeira vez possuíra uma jovem, compreendeu que
Deus era a carne que freme, os corpos desnudos para os quais a
pobreza não existe mais do que a riqueza, o grande fluxo de vida
que leva em si também a morte e que corre como sangue de anjo.
Ele sustentava tais propósitos mediante um pretensioso jargão de
ator, esmaltado com erros de gramática dignos de um filho de
camponês.
Por diversas noites consecutivas, levou-a consigo a fê-la sentar-se
entre as Mulheres do Cristo à mesa do banquete. A multidão se
comprimia de encontro às mesas até fazê-las estalar; os esfaimados
abocanhavam o pescoço e os pés de galinha que o Rei se dignava
a lançar-lhes, implorando-lhe que os abençoasse. O pulso dos
jovens Profetas que serviam de guardas do corpo do Rei continha a
turba desordenada. Divara, rainha em exercício, egressa de um
local de má fama em Amsterdã, mastigava placidamente, exibindo a
cada bocado que engolia os dentes e a língua; tinha ela um ar de
vaca indolente e sadia. De quando em vez, o Rei erguia as mãos e
punha-se a rezar, e uma palidez teatral embelezava-lhe o rosto
cujas maçãs pareciam pintadas. Ou então soprava no nariz de um
conviva para comunicar-lhe o Espírito Santo. Certa noite, fez
Hilzonda entrar na sala dos fundos, e levantou-lhe as saias para
mostrar aos jovens Profetas a branca nudez da Igreja. Uma rixa
eclodiu entre a nova rainha e Divara, que, no vigor dos vinte anos,
chamou-a de velha. As duas mulheres se engalfinharam sobre as
lajes, arrancando uma à outra punhados de cabelos; o Rei as
pacificou, acalentando-as nessa noite em seu coração.

Um élan de atividade sacudia por instantes aquelas almas loucas


e embrutecidas. Hans decretou a imediata demolição das torres, dos
campanários e de quaisquer saliências que, nas empenas da
cidade, sobressaíssem às demais, insultando assim a igualdade que
deve reinar em todos diante de Deus. Esquadrões de homens e
mulheres, acompanhados de crianças chilreantes, precipitaram-se
pelas escadas das torres; nuvens de ardósia e saraivadas de tijolos
despencaram sobre o solo, danificando as cabeças dos transeuntes
e os telhados das casas mais baixas; reduziu-se à metade o teto da
Catedral de São Maurício, cujos santos de cobre ficaram suspensos
como fantoches entre a terra e o céu; arrancaram-se as vigas e as
traves, abrindo assim nas residências de antigos senhores
abastados enormes fendas por onde penetravam a chuva e a neve.
Uma velha que se lamentava ante a iminência de ficar congelada
em seu quarto aberto aos quatro ventos foi expulsa da cidade; o
bispo recusou-se a acolhê-la em seu acampamento; ouviram-na
gritar durante algumas noites ao longo dos fossos.
Ao cair a tarde, os trabalhadores interrompiam as atividades e
deixavam que as pernas pendessem no vazio, o pescoço ainda
retesado, buscando no céu os sinais do fim dos tempos. Mas as
cores sanguíneas desmaiavam no ocidente; o crepúsculo
degradava-se do vermelho ao cinzento, depois ao negro, e os
demolidores extenuados regressavam ao interior de seus casebres
para deitar-se e dormir.

Uma inquietação que lembrava a do júbilo impelia as pessoas a


errar pelas ruas em ruínas. Do alto das muralhas fortificadas,
lançavam avidamente os olhos sobre o campo aberto a que não
tinham acesso, como o fazem os viajantes por sobre o mar perigoso
que lhes circunda a embarcação; as náuseas da fome comparavam-
se às que se experimentam quando nos aventuramos ao largo.
Hilzonda ia e vinha sem cessar pelas mesmas vielas, as mesmas
passagens abobadadas e as mesmas escadas que subiam às
pequenas torres, ora sozinha, ora arrastando pela mão a filha. Os
sinos da fome repicavam em sua cabeça vazia; sentia-se leve, viva
como os pássaros que se moviam sem descanso entre as flechas
da igreja, desfalecida, sim, mas qual uma mulher no limiar do
orgasmo. Às vezes, colhendo um como que caramelo de gelo
dependurado na fímbria de um púlpito, entreabria os lábios e sugava
essa fonte de frescor. As pessoas à sua volta pareciam
experimentar a mesma perigosa euforia; a despeito das querelas
que irrompiam por um naco de pão, por um repolho já podre, uma
espécie de ternura que fluía dos corações fundia numa só massa os
miseráveis e esfaimados. Já havia algum tempo, entretanto, os
insatisfeitos ousavam levantar a voz; não mais se matavam os
débeis: eles eram muitos.
Joana comunicou à sua senhora os sinistros rumores que
começavam a circular sobre o estado da carne que se distribuía à
população. Hilzonda comia sem entender direito. Alguns se
vangloriavam de haver degustado as entranhas de um ouriço-
caxeiro, de um rato, ou, o que era ainda pior, como no caso de
burgueses que se tinham na conta de pessoas austeras, se
gabavam de repente de proezas sexuais de que pareciam
incapazes aqueles esqueletos e fantasmas. Ninguém mais se
deitava para mitigar as necessidades do corpo enfermo; por fadiga,
não mais se enterravam os mortos, e o gelo transformava os
cadáveres amontoados nos pátios em despojos limpos que não
mais exalavam mau cheiro. Ninguém comentava os casos de peste
que sem dúvida ocorreriam a partir dos primeiros calores de abril;
não se contava durar até lá. Ninguém tampouco se referia às
manobras de aproximação do inimigo, metodicamente ocupado em
aterrar os fossos, nem ao assalto que se julgava iminente. O rosto
dos fiéis adquirira a expressão esfoliada de cães irrequietos que
pareciam não ouvir por detrás de suas orelhas o estalo do chicote.
Um dia, afinal, Hilzonda, de pé sobre a muralha fortificada, viu um
homem ao seu lado a chamar-lhe a atenção com os braços para
alguma coisa. Uma extensa coluna se movia entre as ondulações da
planície; fileiras de cavalos pisoteavam a terra enlameada do
degelo. Ecoou um grito de alegria; fragmentos de hinos se evolaram
de peitos exauridos: não seriam então os exércitos anabatistas
recrutados na Holanda e na Guéldria de que tanto falavam Bernardo
Rottmann e Hans Bockhold, os irmãos que afinal chegavam para
salvar seus irmãos? Logo, porém, os regimentos confraternizaram
com as tropas episcopais que sitiavam Münster; o vento de março
fazia tremular os estandartes em meio aos quais qualquer um
poderia reconhecer a bandeira do Príncipe de Hesse; esse luterano
se unia aos idólatras para dizimar o povo dos Santos. Alguns
homens conseguiram fazer rolar muralha abaixo um bloco de pedra,
esmagando assim os sapadores que trabalhavam ao pé de um
bastião. O petardo disparado por um vigia derrubou um estafeta do
príncipe. Os sitiantes responderam com uma arcabuzada que fez
vários mortos. Ninguém a seguir tentou mais nada. Mas o esperado
assalto não ocorreu naquela noite, como tampouco nas noites
seguintes. Cinco semanas transcorreram numa inércia de letargia.
Bernardo Rottmann desde há muito repartira suas últimas
provisões e o conteúdo de seus frascos de remédio; o Rei, como era
de seu hábito, lançava pela janela punhados de cereais para o povo,
mas sem distribuir o resto de suas reservas escondidas sob o
assoalho. Dormia muito. Submergia trinta e seis horas num sono
cataléptico antes de ir por uma última vez rezar na praça quase
deserta. Já há algum tempo renunciara às visitas noturnas que fazia
à casa de Hilzonda; suas dezessete esposas, ignominiosamente
expulsas, haviam sido substituídas por uma menina que mal entrara
na puberdade, um pouco gaga, dotada do dom da profecia, a quem
ele ternamente chamava de sua passarinha branca e de sua
pombinha da arca. Abandonada pelo Rei, Hilzonda não sentia nem
desgosto, nem insatisfação nem surpresa; diluiu-se para ela a
fronteira entre o que havia sido e o que não fora; parecia que não
mais se lembrava de haver sido tratada por Hans como sua amante.
Tudo, porém, permanecia lícito: ela chegou a esperar noite adentro
o retorno de Knipperdolling, curiosa para ver se poderia excitar
aquela massa de carne; ele passou sem dirigir-lhe o olhar,
resmungando, ocupado em outra coisa que não mulheres.
Na noite em que as tropas do bispo entraram na cidade, Hilzonda
acordou por volta da meia-noite com os gritos de uma sentinela
degolada. Duzentos lansquenês, guiados por um traidor, alcançaram
a cidade por uma de suas galerias subterrâneas. Um dos primeiros
a serem alertados, Bernardo Rottmann pulou para fora do leito de
enfermo e precipitou-se para a rua com as fraldas da camisa a
dançar-lhe grotescamente ao longo das pernas magras; foi então
misericordiosamente abatido por um húngaro que não entendera
direito as ordens do bispo, as quais determinavam que se
capturassem vivos os cabeças da rebelião. Surpreendido em seu
sono, o Rei combateu de quarto em quarto, de corredor em
corredor, com coragem e agilidade de gato encurralado por cães de
fila; ao fim do dia, Hilzonda viu-o passar pela praça despojado de
seus ouropéis de teatro, nu até a cintura, dobrado em dois sob os
golpes do açoite. Empurraram-no a pontapés para dentro de uma
jaula na qual ele tinha por hábito trancafiar os descontentes e os
fracos antes de julgá-los. Knipperdolling, meio tonto da pancada, foi
abandonado como morto sobre um banco. Por todo o dia, os
pesados passos dos soldados ecoaram na cidade; esse ritmo
cadenciado indicava que, na praça forte dos loucos, o bom senso
reimplantara seu império sob a égide daqueles que sacrificam suas
vidas por um salário bem-estipulado, bebem e comem a horas
certas, pilham e violentam sempre que lhes surge a ocasião, mas
que têm em algum lugar uma velha mãe, uma esposa econômica,
um pequeno rincão de terra ao qual retornarão para aí viverem
estropiados e envelhecerem, que vão à missa quando os obrigam a
tanto e creem em Deus com sábia moderação. Recomeçaram os
suplícios, agora decretados pela autoridade legitimamente
constituída e igualmente aprovados pelo Papa e por Lutero. Os
miseráveis em farrapos, macilentos, com as gengivas gangrenadas
pela fome, davam aos bem-nutridos cavaleiros germânicos a
impressão de vermes asquerosos que seria simples e correto
esmagar.
Após a primeira desordem, a vindita pública elegeu como domicílio
a Praça da Catedral, debaixo do estrado no qual o Rei celebrara as
sessões de seu tribunal. Os agonizantes compreendiam vagamente
que as promessas do Profeta afinal se realizavam para eles,
diversamente do que se imaginara, como sempre ocorre com as
profecias: o mundo de suas atribulações chegava ao fim; dali
partiriam eles naturalmente rumo ao grande céu vermelho. Alguns
poucos maldiziam o homem que os arrastara a essa sarabanda da
redenção. Outros, no fundo mais fundo de si mesmos, não
ignoravam que desde há muito desejavam morrer, como a corda
excessivamente esticada deseja apenas romper-se.
Hilzonda aguardou sua vez até a noite. Pusera o mais belo vestido
que lhe restava; suas tranças estavam crivadas de alfinetes de
prata. Afinal, surgiram quatro soldados; eram brutos honestos que
cumpriam seu ofício. Ela segurou pela mão a pequena Marta, que
se pôs a chorar, e disse-lhe:
— Venha, meu anjo, vamos ver a Deus.
Um dos homens lhe arrancou a inocente e empurrou-a para
Joana, que a apertou contra seu corpete negro. Hilzonda seguiu-os
sem uma palavra. Ia tão depressa que os carrascos tiveram de
estugar o passo. Para não estrebuchar, ela imobilizou as duas mãos
com os longos panos de seu vestido de seda verde, que lhe davam
o ar de quem caminha sobre as ondas. Chegada ao estrado,
Hilzonda reconheceu confusamente entre os mortos pessoas a
quem conhecera, uma das antigas rainhas… Deixou-se tombar
então sobre aquele monturo ainda quente e estendeu o pescoço.

A viagem de Simão transformava-se em via crucis. Seus principais


devedores despacharam-no sem qualquer pagamento, com receio
de encher o bolso ou o alforje anabatista; escorriam advertências da
boca dos velhacos e dos avaros. Seu cunhado Justo Ligre declarou-
se incapaz de reapresentar sem atraso as volumosas somas
depositadas por Simão em seu escritório comercial de Anvers;
ademais, ele se gabava de administrar melhor os bens de Hilzonda
e da filha desta do que um idiota que fazia causa comum com os
inimigos do Estado. Simão cruzou de cabeça baixa, como um
mendigo desempregado, o portal esculpido e dourado como um
cofre daquela casa comercial que ajudara a fundar. Falhara também
na missão de pedinte: apenas alguns miseráveis se deixaram
sangrar em proveito de seus Irmãos. Incomodado duas vezes pela
autoridade eclesiástica, pagou para escapar à prisão. Ao cabo,
Simão continuava o homem rico que seus florins protegiam. Uma
parte das magras quantias assim recuperadas foi roubada por um
ladrão numa estalagem de Lübeck onde ele caíra vítima de uma
congestão cerebral.
Seu estado de saúde obrigava-o a caminhar por pequenas etapas,
o que só lhe permitiu alcançar as cercanias de Münster na
antevéspera do assalto. A esperança de penetrar na cidade sitiada
esvaiu-se. Mal recebido, mas não molestado, no acampamento do
príncipe-bispo, a quem já prestara serviços, Simão conseguiu alojar-
se numa fazenda muito próxima aos fossos e às muralhas cinzentas
que o separavam de Hilzonda e da filha. Comia na mesa de madeira
clara da fazendeira em companhia de um juiz convocado em virtude
do processo eclesiástico que em breve seria aberto, um oficial do
bispo e diversos trânsfugas escapados de Münster, os quais nunca
se cansavam de denunciar as loucuras e os crimes do Rei. Mas
Simão ouvia apenas em parte os relatos dos traidores que
vilipendiavam agora os mártires. No terceiro dia consecutivo à
tomada da cidade, obteve afinal permissão para entrar em Münster.
Simão caminhava a custo ao longo das ruas patrulhadas pela
tropa, lutando contra o sol e o vento seco da manhã de junho,
buscando confusamente encontrar seu caminho numa cidade que
não conhecia senão de ouvir falar. Sob uma arcada do Grande
Mercado reconheceu Joana, sentada nos degraus de uma porta e
tendo aos joelhos a criança. A menina gritou quando o estrangeiro
se aproximou para abraçá-la; sem dizer palavra, Joana fez sua
reverência de criada. Simão empurrou a porta de fechaduras
arrombadas e percorreu os cômodos vazios do térreo,
esquadrinhando a seguir os dos andares de cima.
Já na praça, dirigiu-se à esplanada das execuções. Uma tira de
brocado verde pendia do estrado; ele reconheceu ao longe o corpo
de Hilzonda, esmagado sob uma pilha de cadáveres. Sem demorar-
se (ou deixar que o fizesse sua curiosidade) junto ao corpo cuja
alma se libertara, Simão reuniu-se de novo à criada e à filha.
Um pastor cruzou a rua com sua cabra, um balde e o banquinho
da ordenha, anunciando leite; uma taberna instalada na casa em
frente reiniciava suas atividades. Joana recolheu alguns dos
liards [18] de que se munira Simão para encher outra vez as taças de
estanho. O fogo crepitava na lareira; já bem cedinho ouvia-se o
retinir de uma colher nas mãos da menina. A vida doméstica
lentamente se recompunha ao redor deles, inundando pouco a
pouco a casa devastada, tal como a maré-cheia encobre uma praia
onde estivessem espalhados despojos, tesouros naufragados e
caranguejos da lama. A criada preparou para o patrão o leito de
Knipperdolling, a fim de mitigar-lhe a fadiga por haver ele outra vez
subido os degraus da escada. Ela agora não respondia senão com
um acre silêncio às perguntas que lhe fazia o velho enquanto sorvia
devagar sua cerveja quente. Quando afinal Joana falou, o que lhe
saiu dos lábios foi uma torrente de torpezas e obscenidades que
sabiam ao mesmo tempo a esgoto e a Bíblia. O Rei não fora jamais
para a velha hussita senão um indigente a quem se concedia comer
na cozinha e que ousou dormir com a mulher do patrão. Após dizer
tudo o que queria, pôs-se a limpar ruidosamente o assoalho com um
grande aparato de escovas, tinas e esfregões encharcados.
Ele dormiu pouco nessa noite, mas, contrariamente ao que
supunha a criada, o sentimento que o feria não era nem o da
indignação nem o do ultraje, e sim o daquele mal mais terno que se
conhece pelo nome de piedade. Sufocado na noite tépida, Simão
pensava em Hilzonda como numa jovem a quem perdera. Aceitava
o fato de que a deixara atravessar sozinha aquela difícil passagem,
dizendo depois a si mesmo que cada um tem seu quinhão, sua
parte que não é senão a sua do pão da vida e da morte, e que era
justo haver Hilzonda comido desse pão à sua maneira e à sua hora.
Ainda uma vez, ela o precedera, pois chegara antes dele aos
últimos horrores. Ele continuava a apoiar os fiéis contra a Igreja e o
Estado que os esmagaram; Hans e Knipperdolling haviam vertido
seu sangue; poderia esperar-se outra coisa num mundo de sangue?
Desde mais de quinze séculos o Reino de Deus sobre a terra, que
João, Pedro e Tomé devem ter visto com seus olhos de homens
vivos, fora indolentemente relegado ao fim dos tempos pelos
negligentes, os apáticos e os hábeis. O Profeta ousara proclamar
aqui mesmo o Reino que está no céu. Ele indicava o caminho, ainda
que porventura houvesse tomado a estrada errada. Para Simão,
Hans continuava um Cristo, no sentido em que cada homem pode
ser um Cristo. Suas loucuras pareciam menos ignóbeis do que os
prudentes pecados dos fariseus e dos sábios. O viúvo não se
indignava por haver Hilzonda buscado nos braços do Rei as alegrias
que ele, Simão, havia muito já não lhe proporcionava: os Santos
libertos de si próprios fruíram até o abuso a felicidade que nasce da
comunhão dos corpos, e esses corpos libertos das injúrias do
mundo, já então mortos para tudo, conheceram sem dúvida, em
seus braços e carícias, uma forma mais ardente de comunhão das
almas. A cerveja aliviava o peito do velho, facilitando-lhe a calma
resignação através da qual se insinuavam a fadiga e uma lancinante
e sensual bondade. Ao menos Hilzonda estava em paz. Sob a luz
do candeeiro que ardia à cabeceira da cama, ele via errar sobre os
lençóis as moscas que, naquele instante, abundavam em Münster;
talvez estivessem pousadas sobre aquele pálido rosto; Simão
sentia-se em conformidade com aquela podridão. De súbito, a ideia
de que a carne do Novo Cristo se achava toda manhã exposta às
tenazes e ao ferro em brasa daquela espantosa tortura apoderou-se
dele, revolvendo-lhe as entranhas; acorrentado ao ridículo Homem
das Dores, ele recaía no inferno dos corpos consagrados a tão
pouca alegria e a tantos males; sofria com Hans assim como
Hilzonda gozara com ele. Durante toda a noite, sob aqueles lençóis,
naquele quarto de conforto irrisório, tropeçou na imagem do Rei
enjaulado vivendo numa praça, tal como um homem de pé
gangrenado tropeça e fere sem querer o membro enfermo. Suas
preces não mais distinguiam entre o mal que aos poucos lhe
constrangia o coração, sacudindo as fibras da espádua e descendo
até o pulso esquerdo, e as tenazes na gordura do braço e ao redor
das tetas de Hans.
Tão logo conseguiu reunir forças suficientes para dar alguns
passos, Simão se arrastou até a jaula do Rei. Os moradores de
Münster já estavam fartos desse espetáculo, mas as crianças,
aglomeradas junto às barras de ferro, continuavam a lançar no
interior da jaula alfinetes, bosta de cavalo e pedaços de ossos
pontiagudos, sobre os quais o prisioneiro era obrigado a andar com
os pés descalços. Como outrora o faziam no salão de festas, os
guardas afastavam delicadamente a canalha: Monsenhor von
Waldeck pretendia fazer com que o Rei permanecesse vivo até a
execução, prevista o mais tardar para meados do verão.
Acabara-se de reenjaular o prisioneiro após uma sessão de
torturas; enrodilhado a um canto, ele ainda tremia. Um odor fétido se
desprendia do casaco e das chagas. O homenzinho conservara,
porém, os olhos vivos e a envolvente voz de ator.
— Eu corto, eu coso, eu alinhavo — cantarolava o supliciado. —
Não passo de um aprendiz de alfaiate… Vestes de pele… A bainha
de um vestido sem costuras… Não golpeie o trabalho de…
De repente se deteve, lacônico, lançando em torno uma olhadela
furtiva de alguém que, ao mesmo tempo, quer preservar seu
segredo e em parte divulgá-lo. Simão Adriansen afastou os guardas
e conseguiu introduzir o braço por entre as grades da jaula.
— Deus o proteja, Hans — disse, estendendo-lhe a mão.
Simão regressou à casa como que extenuado por uma longa
viagem. Desde sua última saída grandes modificações se
registraram, devolvendo a Münster, pouco a pouco, a monótona
fisionomia habitual. A catedral pulsava com o rumor dos cantos
sacros. O bispo reinstalara, a dois passos do palácio episcopal, sua
amante, a bela Júlia Alt, cuja discrição jamais permitiu qualquer
escândalo. Simão aceitava tudo isso com a indiferença de alguém
que se encontrasse prestes a deixar a cidade, e o que ali ocorria
não mais o preocupava. Sua grande bondade de outrora, contudo,
secara como uma fonte. Tão logo chegou em casa, enfureceu-se
com Joana, que esquecera de providenciar pena, tinteiro e papel,
como lhe havia ordenado. Assim que estes foram conseguidos,
Simão sentou-se e escreveu à irmã.
Fazia já treze anos que não se comunicava com ela. A boa
Salomé se casara com o caçula da poderosa casa dos banqueiros
Fuggers. Parcialmente deserdado pelos seus, Martinho refez uma
pequena fortuna com suas próprias mãos; residia em Colônia desde
o início do século. Simão pediu-lhe que cuidasse da criança.
Salomé recebeu a carta em sua casa de campo de Lusdorf, onde
supervisionava em pessoa o quaradouro que lhe alvejava as roupas.
Deixando às criadas a tarefa de cuidar dos lençóis e da fina roupa
branca, pediu sua carruagem sem sequer avisar ao banqueiro, que
pouco participava da vida doméstica, e, após amontoar víveres e
cobertores, seguiu em direção a Münster através de uma região
assolada pelos últimos distúrbios.
Encontrou Simão recolhido ao leito, a cabeça amparada num velho
capote dobrado em quatro que ela logo substituiu por uma
almofada. Com a obstinada boa vontade das mulheres que se
empenham em reduzir a doença e a morte a uma anódina fieira de
pequenos males sem importância, a visitante e a criada envolveram-
se numa troca de opiniões relativas ao regime alimentar, à roupa de
cama e ao assento da latrina. Com o frio olhar do agonizante, Simão
reconheceu a irmã, mas se aproveitou da condição de enfermo para
retardar de um instante a fadiga que lhe causavam as boas-vindas
habituais. Afinal levantou-se, trocando com Salomé o beijo de
costume. Readquiriu em seguida o discernimento de homem de
negócios para enumerar os bens que reverteriam a Marta e aqueles
que valiam a pena recuperar o mais cedo possível para ela. Os
créditos estavam discriminados num oleado ao alcance de sua mão.
Os outros filhos, já estabelecidos — alguns em Lisboa, outros em
Londres, e outros, ainda, à frente de uma impressora em Amsterdã
—, não tinham necessidade nem desses sobejos de bens terrestres,
nem de sua bênção; Simão deixava tudo à filha de Hilzonda. O
velho parecia haver esquecido as promessas feitas ao Grande
Restaurador para conformar-se outra vez aos costumes do mundo
ao qual renunciara e que já agora não mais tentava reformar. Ou
talvez, abdicando assim de princípios mais caros que a própria vida,
fruísse até a última gota o amargo prazer de desligar-se de tudo.
Salomé acariciou a criança, enternecendo-se com suas perninhas
magras. Ela não conseguia articular três frases sem invocar a ajuda
da Virgem e de todos os santos de Colônia: Marta seria educada
pelos idólatras. Isso era duro, mas não tão duro quanto o furor de
alguns, o torpor de outros, não tão duro quanto a velhice que
impede o esposo de satisfazer a esposa, não tão duro quanto
encontrar já mortos aqueles que foram deixados com vida. Simão
esforçava-se por pensar no Rei em sua jaula de agonia; os
tormentos de Hans, porém, já não significavam hoje o que haviam
significado ontem; tornavam-se suportáveis, tal como se tornava
suportável no peito de Simão a dor que com ele morria. Rezava,
conquanto algo lhe dissesse que o Eterno não mais lhe exigia que o
fizesse. Simão fez ainda um esforço para rever Hilzonda, mas o
rosto da morta já se havia dissolvido. Retrocedeu a instantes mais
longínquos, à época das bodas místicas em Bruges, do pão e do
vinho partilhados em segredo, e do corpete chanfrado em meia-lua
que deixava adivinhar um pendente e puro seio. Mas isso também
se apagou; Simão reviu a primeira mulher, aquela boa alma com
quem tomava a fresca em seu jardim de Flessingue. Assustadas por
um profundo suspiro, Salomé e Joana acudiram. Sepultaram-no na
Igreja de São Lamberto após uma missa cantada.
Os Fuggers de Colônia

Os Fuggers ocupavam em Colônia, no conjunto de habitações que


circundavam o adro da Igreja de São Gereão, uma pequena casa
sem luxo onde tudo concorria para o conforto e a paz. Um aroma de
doces e de aguardente de cereja por ali fluía sem cessar.
Salomé gostava de permanecer à mesa após os demorados
repastos servidos com arte, limpando os lábios com um guardanapo
de fino tecido adamascado; de cingir com uma corrente de ouro sua
generosa cintura e o pescoço róseo; de usar bons estofados cuja lã
cardada e urdida com cuidados reverenciosos guarda algo do doce
calor de ovelhas ainda vivas. Os escapulários discretamente
erguidos atestavam-lhe sem qualquer rigidez a modéstia de mulher
honesta. Os dedos sólidos tocavam o pequeno órgão portátil
instalado na sala de visitas; quando jovem, sua bela voz flexível era
sempre requisitada para entoar os madrigais e motetos que se
cantavam na igreja; ela adorava as tramas de sons tanto quanto a
de seus bordados. Mas comer era afinal o grande assunto: o ano
litúrgico, piamente observado, se alternava com um ano culinário,
com uma estação de pepinos e compotas de frutas, de queijo
branco ou de arenque fresco. Martinho era homem magro e de
pequeno porte que a cozinha da mulher jamais conseguira engordar.
Formidável nos negócios, esse pastor alemão se transformava
dentro de casa em inofensivo cão fraldiqueiro. Suas maiores
audácias domésticas consistiam, quando à mesa, em creditar
anedotas licenciosas na conta das criadas. O casal tinha um filho,
Sigismundo, que embarcara aos dezesseis anos com Gonzalo
Pizarro para o Peru, onde o banqueiro fizera importantes depósitos
de capital. Não mais esperavam revê-lo, lá que as coisas não iam
bem ultimamente em Lima. Uma filha ainda pequena suavizava a
perda; Salomé contava sorrindo a tardia gravidez, devida um pouco
às novenas, um pouco aos efeitos do molho de alcaparras. A
menina e Marta eram quase da mesma idade; as duas primas
partilhavam o mesmo leito, os mesmos brinquedos, os mesmos
saudáveis castigos e, mais tarde, as mesmas lições de canto e os
mesmos adereços.
Ora rivais, ora compadres, o corpulento Ligre e o franzino
Martinho, o javalizinho de Flandres e a doninha renana, se vigiavam,
se aconselhavam a distância, vitoriosos ou derrotados desde mais
de trinta anos. Prezavam-se conforme seu justo e verdadeiro valor,
coisa que não poderiam fazer nem os basbaques deslumbrados
com sua fortuna, nem os príncipes a que serviam e dos quais se
serviam. Martinho sabia vagamente o que representavam em
dinheiro as fábricas, as oficinas, os estaleiros, os domínios quase
senhoriais em que Henrique-Justo investira seu ouro; o luxo maciço
do flamengo fornecia a Martinho matéria para bons cálculos e,
também, duas ou três consideráveis habilidades, sempre as
mesmas, de que se valia o velho Justo para contornar os casos
mais difíceis. De sua parte, Henrique-Justo, bom servidor que
entregava reverenciosamente à Regente dos Países Baixos as
somas necessárias às suas compras de quadros italianos e aos
seus piedosos compromissos, esfregava as mãos ao saber que o
Eleitor Palatino ou o Duque da Baviera davam como garantia suas
joias e mendigavam junto a Martinho um empréstimo a taxas de
juros dignas das que cobravam os judeus da usura; ele louvava, não
sem uma ponta de sarcástica piedade, o rato que roía discretamente
a substância do mundo ao invés de espedaçá-la, o homúnculo
insensível às riquezas que se veem, se tocam e se confiscam, mas
cuja assinatura ao pé de uma folha valia tanto quanto a de Carlos V.
Surpreenderam-se esses personagens tão dignos de respeito por
parte dos poderosos da época, quando os declararam mais
perigosos para a ordem constituída do que o turco infiel ou o
camponês revoltado; com a absorção no imediato e no detalhe que
lhes caracteriza a espécie, os próprios judeus não duvidavam da
perturbadora influência que exerciam seus sacos de ouro e seus
registros contábeis. E não obstante, sentados no escritório, vendo
delinear-se à contraluz a rígida silhueta de um cavaleiro que
dissimula sob sua majestática postura o receio de ser recusado pela
sociedade, ou o suave perfil de um bispo impaciente por concluir
sem muito gasto as torres de sua catedral, acontecia-lhes sorrir.
Para outros o barulho dos sinos ou das bombardas, as mulheres
nuas ou vestidas de brocado; para eles a substância indecorosa e
sublime, aviltada ao extremo, adorada ou chocada ao rés do chão,
semelhante às partes interditas em que pouco se fala e nas quais
muito se pensa, a substância amarela sem a qual Madame Impéria
não abriria as pernas no leito do Príncipe, nem Monsenhor poderia
pagar as pedrarias de sua mitra, o Ouro, cuja escassez ou
abundância decide se a Cruz fará ou não a guerra ao Crescente.
Esses capitalistas sentiam-se todo-poderosos em matéria de
realidades.

Assim como Martinho em relação a Sigismundo, o truculento Ligre


se decepcionara com seu primogênito. Nada lhe chegara em dez
anos de Henrique-Maximiliano, salvo alguns pedidos de dinheiro e
um ou outro volume de versos franceses, desovados sem dúvida na
Itália, entre duas campanhas. À exceção de tudo o que fosse
deplorável, nada poderia vir daquelas bandas. O homem de
negócios vigiava de perto o seu caçula a fim de evitar novos
aborrecimentos. Assim que Filisberto, seu filho do coração, chegou
à idade em que se sabe como separar o joio do trigo, ele o fez
embarcar para Colônia a fim de aprender as astúcias bancárias com
Martinho, o infalível. Aos vinte anos, Filisberto era adiposo; uma
rudeza espontânea aflorava sob suas maneiras cuidadosamente
aprendidas; os olhinhos cinzentos faiscavam nas fendas sempre
semicerradas das pálpebras. Esse filho do Tesoureiro-Mor da Corte
de Malines poderia fingir-se de príncipe; era ele exímio, ao contrário,
em flagrar os erros cometidos nos cálculos dos amanuenses; dia e
noite, numa sala mal-iluminada dos fundos, onde os escriturários
iam aos poucos perdendo a vista, ele averiguava os D, os M, os X e
os C combinados aos L e aos I para formar os números, pois
Martinho desprezava a numeração arábica, sem todavia negar-lhe a
utilidade nos casos de extensas adições. O banqueiro aos poucos
se acostumava ao rapaz taciturno. Quando a asma ou os tormentos
da gota o faziam pensar nos últimos fins, ouvia-se-lhe dizer à
mulher:
— Esse palerma untuoso me substituirá.
Filisberto parecia absorto em seus registros e raspadores de
pergaminho. Percebia-se, porém, uma ponta de ironia sob suas
pálpebras; reexaminando às vezes os negócios do patrão, chegava
a se dizer que, após Henrique-Justo e Martinho, um mais ladino que
o outro, este mais feroz que aquele, haveria um dia alguém a quem
chamariam Filisberto, o hábil. Não fora ele quem aceitara, contra
uma irrisória taxa de juros de dezesseis por libra, pagáveis em
quatro vezes quando da realização das quatro grandes feiras
comerciais, a amortização das dívidas de Portugal.
Ele vinha sempre aos domingos para participar das reuniões que
se celebravam durante o verão sob a parreira e durante o inverno na
sala de visitas. Um prelado citava frases latinas; Salomé,
concentrada no jogo de gamão com uma vizinha, comentava cada
bom lance com um dito renano; Martinho, que fizera as duas jovens
aprenderem francês, dele também se servia quando se lhe impunha
exprimir ideias mais fluidas e mais elevadas que as dos dias úteis.
Conversava-se sobre a guerra da Saxônia e suas consequências
sobre os descontos bancários, os avanços das tendências heréticas
e, conforme a estação do ano, as vendas e o carnaval. O braço
direito do banqueiro, um genebrino sentencioso chamado Zebedeu
Crêt, preferia ficar à parte por não suportar o odor dos cachimbos e
dos vinhos. Esse Zebedeu, que não negava de todo o fato de haver
deixado Genebra logo em seguida à descoberta de um negócio
relacionado à gerência de casas de tavolagem e à confecção ilícita
de cartas de baralho, atribuía tais infrações a seus amigos libertinos,
à época justamente punidos, e não escondia o desejo de retornar
mais dia menos dia ao aprisco da Reforma. O prelado protestava,
brandindo o dedo em que se via um anel de pedra violeta; alguém,
para gracejar, recitava as pequenas sátiras em verso de Teodoro de
Bèze, belo rapaz mimado pelo irreprochável Calvino. Iniciava-se
então uma arenga para decidir se o Consistório era ou não
desfavorável aos privilégios dos homens de negócios, mas no fundo
ninguém se surpreendia de que um burguês pudesse acomodar-se
aos dogmas promulgados pelos magistrados de sua boa cidade.
Após a ceia, Martinho atraía ao vão de uma janela um conselheiro
áulico ou o enviado secreto do Rei de França. O galante parisiense
sugeria logo aproximar-se das damas.
Filisberto dedilhava um alaúde; Benedita e Marta erguiam-se de
mãos
dadas. Os madrigais extraídos do Livro dos amantes falavam de
cordeiros, de flores e de Dona Vênus, mas essas árias então em
voga serviam para acompanhar as palavras dos cânticos entoados
pela ralé anabatista ou luterana, as quais os representantes da
Igreja vinham de condenar com veemência em seus sermões.
Benedita substituía involuntariamente pelo versículo de um salmo a
estrofe de uma canção de amor. Muito inquieta, Marta lhe fazia
sinais para que se calasse; as duas jovens sentavam-se outra vez
lado a lado, e não mais se ouvia outro estribilho que não fosse o dos
sinos da Igreja de São Gereão a tanger o ângelus do fim da tarde. O
gordo Filisberto, que tinha talento para a dança, oferecia-se às
vezes para ensinar a Marta os novos passos que aprendera; ela
prontamente recusava, pois dançar lhe parecia brincadeira de
criança.

As duas primas se amavam com um claro amor angelical. Salomé


não tivera coragem de privar Marta da companhia de sua ama de
leite, e a velha hussita transmitira à filha de Simão seu temor e sua
austeridade. Joana já sentira medo; o temor a transformara
exteriormente numa velha mulher semelhante a todas as demais,
que toma água benta na igreja e beija o Agnus Dei. Mas no íntimo
de si subsistia o ódio aos demônios em dalmática de brocado, aos
bezerros de ouro e aos ídolos de carne. A velha frágil, a quem o
banqueiro não tivera a bondade de distinguir das desdentadas que
lhe lavavam os pratos e tigelas nos fundos da casa, rosnava a tudo
um eterno Não. A crer nela, o mal se desenvolvia secretamente na
casa, empanzinado de satisfação e bem-estar qual uma ninhada de
ratos no fofo recheio de penas de um edredom. Escondia-se no baú
da Dama Salomé e no cofre-forte de Martinho, nos tonéis de vinho
da adega e no caldo que resta no fundo das panelas, no frívolo
rumor dos concertos dominicais, nas pastilhas do boticário e na
relíquia de Santa Apolônia para curar dores de dentes. A velha não
ousava investir abertamente contra a Mãe de Deus em seu nicho da
escada, conquanto a ouvissem praguejar acerca do óleo que se
queima para nada diante das bonecas de pedra.
Salomé se alarmava ao ver Marta, aos dezesseis anos, ensinar
Benedita a desdenhar as caixas de botões e agulhas cheias de
preciosas bugigangas trazidas de Paris ou de Florença, ou a fazer
pouco de Papai Noel e das canções que o anunciavam, de vestidos
novos e de pato recheado. Para a boa mulher, o céu e a terra não
tinham problemas. A missa era uma ocasião para que todos se
edificassem moralmente, um espetáculo, um pretexto para que ela
pudesse exibir sua capinha forrada de inverno ou sua jaqueta de
seda de verão. Maria e o Menino, Jesus Crucificado, Deus em sua
nuvem pavoneavam-se no Paraíso e nas paredes das igrejas; a
experiência ensinava através de que Virgem se poderia ter, neste ou
naquele caso, o maior número de oportunidades de ser atendido.
Nas crises domésticas, a Prioresa das Ursulinas, sempre capaz de
dar bons conselhos, era de bom grado consultada, o que não
impedia Martinho de mofar das freiras. É verdade que as vendas de
indulgências haviam indevidamente abarrotado as arcas do Santo
Padre, mas a operação que consiste em depositar créditos na conta
de Nossa Senhora e dos santos para cobrir os déficits do pecador
era tão lógica quanto as transações do banqueiro. As
extravagâncias de Marta eram creditadas a uma compleição
doentia; era monstruoso imaginar que uma criatura finamente
educada pudesse perverter a terna companheira, levá-la a
frequentar os ímpios que se mutilam e se queimam, e renunciar,
para intrometer-se nas disputas da Igreja, ao modesto silêncio que
assenta tão bem às jovens.
Joana nada podia fazer além de indicar às suas jovens patroas,
com voz algo demente, os caminhos do erro; santa, mas ignorante,
incapaz de recorrer às Escrituras, das quais em seu jargão
neerlandês ela não repetia senão alguns fragmentos sabidos de cor,
não lhe cabia revelar o bom caminho. Conquanto a educação liberal
que lhe dera Martinho houvesse desenvolvido sua inteligência,
Marta devorava em segredo os livros em que se fala de Deus.
Perdida numa selva de seitas, aterrorizada por não dispor de
nenhum guia espiritual, a filha de Simão temia renunciar aos velhos
trâmites em favor de um novo erro. Joana não lhe havia ocultado
nem a infâmia da mãe, nem o deplorável fim do pai escarnecido e
atraiçoado. A órfã sabia que, ao voltarem as costas às aberrações
romanas, os pais não fizeram senão avançar numa estrada que não
levava ao céu. Essa virgem bem guardada, que jamais descera à
rua sem a escolta de uma criada, tremia à ideia de engrossar o
grupo de exilados choramingas e de indigentes em êxtase que
perambulavam de cidade em cidade, difamados pelas pessoas de
bem e que terminavam sempre os seus dias sobre a palha, ora das
masmorras, ora das fogueiras. A idolatria chamava-se Caribde, mas
a revolta, a miséria, o perigo e a abjeção atendiam pelo nome de
Cila. [19] Prudentemente, o piedoso Zebedeu tirou-a do impasse: um
texto de João Calvino, emprestado sob promessa de segredo pelo
suíço circunspecto, e lido à noite à luz de uma vela, com precauções
semelhantes às que tomavam as outras jovens ao decifrar uma
mensagem de amor, proporcionou à filha de Simão a imagem de
uma fé isenta de todo erro, infensa a qualquer fraqueza, estrita em
sua própria liberdade, de uma rebelião transformada em Lei. A dar-
se-lhe crédito, a pureza evangélica ia de par em Genebra com a
prudência e a sabedoria burguesas: os dançarinos que rebolavam
como pagãos atrás das portas fechadas e os pirralhos gulosos que
chupavam impudicamente durante a prédica seu açúcar e seus
confeitos eram surrados até sangrar; os dissidentes banidos; os
jogadores e os libertinos, condenados à morte; e os ateus, claro
está, destinados à fogueira. Longe de ceder aos impulsos lascivos
de seu sangue, como o untuoso Lutero, que contraiu núpcias ao sair
do claustro nos braços de uma freira, o laico Calvino esperou muito
tempo até casar-se com uma viúva no mais casto dos matrimônios;
ao invés de engordar à mesa dos príncipes, Mestre João
surpreendia pela frugalidade seus hóspedes da Rua dos Cônegos;
seu trivial incluía apenas o pão e os peixes do Evangelho, aqui
materializados nas trutas e féras [20] do lago, que não custavam
pouco, aliás.
Marta doutrinou a companheira, que a repetia em todas as coisas
do espírito, quite assim a lhe servir de exemplo para as coisas da
alma. Benedita era toda luz; um século antes, teria fruído no claustro
a felicidade de existir apenas para Deus; sendo agora os tempos
que eram, essa cordeirinha iria encontrar na fé evangélica a relva
verde, o sal e a água pura. À noite, no quarto sem aquecimento,
desprezando o edredom e o travesseiro, Marta e Benedita, sentadas
lado a lado, reliam a Bíblia em voz baixa. Suas faces coladas uma à
outra pareciam não ser senão a superfície através da qual duas
almas se tocassem. Para virar a folha, Marta esperava por Benedita
ao fim de cada página e, se por acaso a menor adormecia na santa
leitura, puxava-lhe docemente os cabelos. A casa de Martinho,
entorpecida de bem-estar, dormia seu pesado sono. Solitário, como
a lamparina que alumia as Virgens recatadas, velava numa câmara
alta, no coração das duas jovens silenciosas, o frio ardor da
Reforma.
Todavia, Marta ainda não ousava abjurar em alto e bom som as
torpezas papistas. Achava outros pretextos para furtar-se à missa
de domingo, e sua falta de coragem lhe pesava como o pior dos
pecados. Zebedeu aprovava tal circunspecção: Mestre João, antes
de qualquer outro, pondo os discípulos em guarda contra todo
escândalo inútil, teria censurado Joana por soprar a chama da
lamparina colocada ao pé da Virgem da escada. A delicadeza de
sentimentos impedia Benedita de afligir ou inquietar os seus, mas
Marta se recusou, numa tarde do dia de Todos os Santos, a rezar
pela alma de seu pai, que, no lugar em que se encontrava, não tinha
mais necessidade de seus Aves. Tamanho excesso de dureza
consternou Salomé, que não compreendia como se pudesse
recusar ao pobre morto o óbolo de uma prece.

Martinho e a mulher planejavam de longa data unir a filha ao


herdeiro dos Ligres. Falavam sobre o assunto no leito,
tranquilamente aninhados entre lençóis guarnecidos de ricos
debruns. Salomé contava nos dedos as peças do enxoval, as peles
de marta e mantas bordadas. Ou então, por julgar que o pudor de
Benedita a tornava esquiva às alegrias do casamento, buscava na
memória a fórmula de um bálsamo afrodisíaco a que recorriam as
famílias para untar, na noite de núpcias, o corpo das jovens
esposas. Quanto a Marta, encontrar-lhe-iam um negociante bem-
visto na praça de Colônia, ou mesmo um cavaleiro fortemente
endividado, a quem Martinho faria generosamente a entrega das
hipotecas que lhe gravassem as terras.
Filisberto dedicava à herdeira do banqueiro os cumprimentos de
praxe. As primas, porém, usavam os mesmos gorros e atavios; ele
as confundia, e Benedita parecia divertir-se em provocar
travessamente tais equívocos. Ele proclamava sob juramento para
que todos ouvissem: a filha valia seu peso em ouro, e a sobrinha no
máximo um punhado de florins.
Quando o contrato estava prestes a ser firmado, Martinho chamou
a filha em seu gabinete para fixar a data das bodas. Nem alegre
nem triste, Benedita, pondo um basta aos abraços e às ternas
efusões da mãe, subiu ao quarto para se juntar a Marta. A órfã falou
em fugir; um barqueiro talvez concordasse em conduzi-las até
Basileia, onde bons cristãos as ajudariam sem dúvida a vencer a
etapa seguinte. Entornando sobre a mesa a areia do tinteiro,
Benedita nela escavou pensativamente com o dedo o sulco de um
rio. A manhã despontava; ela passou lentamente a mão sobre o
mapa que acabara de traçar; quando a areia de novo se nivelou
sobre a superfície polida, a prometida de Filisberto levantou-se,
suspirando:
— Sou muito fraca.
Marta não lhe propôs então que fugissem, contentando-se em
mostrar-lhe, com a ponta do dedo indicador, o versículo em que se
tratava de abandonar os seus para seguir o Senhor.
O frio da manhãzinha obrigou-as a buscar refúgio no leito.
Castamente deitadas uma nos braços da outra, consolavam-se
misturando as próprias lágrimas. Depois, como se a juventude
houvesse recuperado a sua primazia, começaram ambas a zombar
dos olhinhos e das gordas bochechas do noivo. Os pretendentes
propostos a Marta não eram melhores; Benedita a fez rir ao
descrever o negociante meio careca, o fidalgote de província
enclausurado em suas clangorosas ferragens nos dias de torneio,
ou o filho do burgomestre, um palerma ataviado como os manequins
que se enviavam de França aos costureiros, com seu chapéu de
plumas e sua braguilha abolida. Marta sonhou nessa noite que
Filisberto, aquele saduceu, aquele amalecita [21] de coração
incircunciso, conduzia Benedita numa caixa que vogava sozinha
pelo Reno.

O ano de 1549 iniciou-se sob chuvas que destruíram a semeadura


dos hortelões e fazendeiros; uma cheia do Reno inundou as adegas,
onde maçãs e barris pela metade flutuavam sobre as águas turvas.
Em maio, os morangos ainda verdes apodreciam nos bosques e as
cerejas nos pomares. Martinho fez distribuir a sopa aos pobres sob
o pórtico da Igreja de São Gereão; a caridade cristã e o medo de
que eclodisse alguma arruaça inspiravam ao burguês essas
espécies de esmolas. Tais males, no entanto, nada mais eram do
que a antecipação de uma calamidade infinitamente mais terrível.
Vinda do Oriente, a peste entrara na Alemanha pela Boêmia.
Viajava sem pressa, ao som dos sinos, como uma imperatriz.
Debruçada sobre o copo do beberrão, soprando a vela do sábio
recolhido entre seus livros, ajudando o sacerdote na missa,
escondida como uma pulga sob a blusa das prostitutas, a peste
trazia à vida de todos um fator de insolente igualdade, um acre e
perigoso fermento de aventura. O dobre dos sinos coagulava no ar
um insistente rumor de festa fúnebre: os basbaques aglomerados ao
pé dos campanários não cessavam de olhar lá em cima a silhueta
do sineiro, ora agachado, ora suspenso, pondo todo o peso sobre o
grande cone de bronze.
Martinho entrincheirou-se em seu gabinete como se o fizesse
contra um ladrão. A dar-se-lhe ouvidos, a melhor profilaxia consistia
em beber moderadamente o Johannisberg [22] de boa data, em evitar
as raparigas e os companheiros da roda de cerveja, em não aspirar
o odor das ruas e, sobretudo, em não se informar quanto ao número
de mortos. Joana continuava a ir ao mercado ou a descer para jogar
fora o lixo da casa; seu rosto sulcado de cicatrizes e o sotaque
estrangeiro já de muito haviam indisposto os vizinhos; por aqueles
dias nefastos, a desconfiança se convertia em ódio, e falava-se à
sua passagem em semeadoras de peste e feiticeiras. Confessasse
ou não, a velha criada se regozijava com a chegada do flagelo de
Deus; essa sinistra alegria poderia ser lida em sua figura; parecia-
lhe sublime encarregar-se junto a Salomé, gravemente atingida pelo
mal, de executar perigosas tarefas de limpeza a que se recusavam
as outras criadas; a patroa a repelia entre gemidos como se a boa
mulher, ao invés de uma moringa, lhe trouxesse uma foice e uma
ampulheta.
No terceiro dia, Joana não mais reapareceu à cabeceira da
enferma, a quem Benedita fazia então engolir os remédios e repor
entre os dedos o rosário que a todo instante ela deixava cair.
Benedita amava a mãe, ou talvez ignorasse que poderia não amá-
la. O fato, porém, é que ela sofrera com sua tola e grosseira
piedade, com seus mexericos de alcova, com suas graças de ama
de leite que se compraz em lembrar aos meninos já crescidos a
época do tatibitate, das mamadeiras e dos cueiros. A vergonha por
essas impaciências inconfessadas não fez senão com que ela
aumentasse seu zelo de enfermeira. Marta trazia as bandejas e as
mudas de roupa de cama, mas cuidava de nunca entrar no quarto.
Não se obtivera êxito em procurar os serviços de um médico.

Na noite seguinte à morte de Salomé, Benedita, deitada ao lado da


prima, começou por sua vez a sentir os primeiros sintomas do mal.
Uma sede insuportável a queimava; conseguiu, contudo, distrair-se
imaginando o cervo bíblico que bebia da fonte de águas cristalinas.
Uma pequena tosse convulsa lhe arranhava a garganta; ela a
retinha o máximo de que era capaz para não perturbar o sono de
Marta. Benedita já levitava, as mãos postas, prestes a desprender-
se do leito guarnecido de balaústres, para ascender afinal ao amplo
e claro Paraíso, lá onde estava Deus. Os cânticos evangélicos
haviam emudecido; o rosto fraternal dos santos reaparecia entre as
cortinas; do alto do céu, Maria estendia os braços sob as dobras do
azul, imitada em seu gesto pelo belo Menino bochechudo de dedos
róseos. Benedita lastimava em silêncio suas falhas: uma disputa
com Joana acerca de uma coifa rasgada, sorrisos em resposta às
olhadelas de rapazes que passavam sob sua janela, uma ânsia de
morrer para a qual concorriam a preguiça, a impaciência de subir ao
céu e o desejo de não ter mais de escolher entre Marta e os seus,
entre duas formas de falar a Deus. Marta deu um grito ao perceber o
rosto devastado da prima aos primeiros albores da manhã.
Benedita se deitava nua, conforme o costume. Implorou que lhe
deixassem ao alcance da mão a blusa há pouco dobrada, e
inutilmente tentou ajeitar o cabelo em desalinho. Marta a atendia,
com um lenço sobre o nariz, consternada pelo horror que sentia pelo
corpo infectado. Uma vaga umidade inundava o quarto; ao perceber
que a enferma estava fria, Marta acendeu o fogareiro apesar do
calor que fazia nessa época do ano. Com voz rouca, que lembrava a
de sua boa mãe na véspera, Benedita pediu um rosário que Marta
lhe estendeu com a ponta dos dedos. De súbito, observando com
malícia infantil os olhos aterrorizados da companheira sob o lenço
umedecido em vinagre, disse:
— Não tenha medo, prima — disse gentilmente. — O gordinho
galante que dança o passe-pied [23] ainda será seu.
E virou-se para a parede como era de seu hábito quando queria
dormir.
O banqueiro permanecia quieto em seu quarto; Filisberto
regressara a Flandres, onde passaria o mês de agosto com o pai;
Marta, abandonada pelas criadas que não se arriscavam até o
segundo pavimento, gritou-lhes que ao menos chamassem por
Zebedeu, que adiara em alguns dias a viagem para a sua cidade
natal a fim de fazer face à urgência dos negócios. Ele concordou em
aventurar-se ao patamar e revelou uma solicitude digna. Os
médicos do lugar estavam ou exaustos, ou apavorados com a
epidemia, ou, ainda, firmemente decididos a não contaminar seus
doentes habituais, aproximando-se do leito dos pestosos; corriam,
porém, notícias de que acabara de chegar a Colônia um homem de
grande conhecimento e perícia, disposto a estudar os efeitos do mal
no próprio sítio onde este ocorrera. Todo o possível seria feito para
persuadi-lo a atender Benedita.
Esse atendimento custou a chegar. Enquanto isso, a jovem
definhava. Apoiada no alizar da porta, Marta a velava a distância.
Muitas vezes, todavia, voltava ao pé do leito da enferma para fazê-la
ingerir algum líquido com suas mãos trêmulas. Benedita não o fazia
senão a muito custo; o conteúdo do vidro escorria sobre o leito. Vez
por outra, ouvia-se-lhe a tosse curta e seca, semelhante ao latido de
um pequeno cão; sempre que isso ocorria, Marta baixava os olhos a
contragosto, procurando à roda de suas saias o barbet [24] da casa,
pois se recusava a crer que aquele uivo de animal pudesse sair de
boca tão suave. Para não mais ouvi-lo, decidiu sentar-se no
patamar. Durante algumas horas, Marta lutou contra o terror que lhe
inspirava essa morte, cujos preparativos se faziam sob seus olhos e
— o que era ainda pior — contra o pânico de ser ela própria também
infectada pela peste como se o é pelo pecado. Benedita não era
mais Benedita, mas uma inimiga, um animal, um objeto perigoso
que seria arriscado tocar. Pela noite, não aguentando mais, desceu
até a soleira da porta para esperar a chegada do médico.

Ele perguntou se era a casa dos Fuggers e entrou sem cerimônia.


Era um homem alto e magro, de olhos encovados, que trajava o
sobretudo vermelho dos médicos que haviam aceitado cuidar dos
pestosos e, em virtude disso, renunciado a atender doentes
comuns. A tez morena dava-lhe o ar de um estrangeiro. Subiu
rapidamente os degraus; Marta, pelo contrário, ralentava a
contragosto o andar. De pé no espaço entre a cama e a parede, ele
levantou os lençóis e descobriu o corpo franzino sacudido de
espasmos sobre o colchão imundo.
— Todas as criadas me abandonaram — disse Marta, esforçando-
se por explicar o estado da roupa de cama.
Ele respondeu com um vago movimento de cabeça, ocupado que
estava em apalpar delicadamente os gânglios da virilha e das axilas.
A pobrezinha murmurava ou como que cantarolava debilmente entre
duas tossidelas roufenhas, nas quais Marta julgou reconhecer uma
ponta de frivolidade misturada a uma cantiga de lamento pela visita
do bom Jesus Cristo.
— Ela delira — disse Marta como que mal-humorada.
— É, sem dúvida — respondeu ele distraidamente.
O homem vestido de vermelho recompôs os lençóis e, como se
fosse concluir, tomou o pulso da enferma e ouviu-lhe os batimentos
à altura da jugular. Pingou depois algumas gotas de um elixir na
colher e introduziu-a habilmente na comissura de seus lábios.
— Não abuse da coragem — disse a Marta, apercebendo-se que
esta sustinha com grande repugnância a nuca da enferma. — Só
neste instante é preciso que você lhe segure a cabeça ou as mãos.
Ele enxugou-lhe dos lábios um pouco de líquido fétido e
avermelhado com ajuda da ponta de um pano de linho, lançando-o
em seguida às brasas do fogareiro. A colher e as luvas de que se
utilizara tiveram o mesmo destino.
— Não vai lancetar nenhum dos tumores? — inquiriu ela, temendo
que o médico apressado omitisse alguma providência necessária, e
empenhando-se, sobretudo, por retê-lo próximo ao leito.
— Claro que não — respondeu à meia-voz. — Os vasos linfáticos
estão apenas intumescidos, e ela morrerá sem dúvida antes que
eles se enfartem. Non est medicamentum… [25]A força vital de sua
irmã desceu a um nível mínimo. Quando muito, poderemos aliviar as
dores.
— Não sou a irmã — protestou Marta de repente, como se esse
esclarecimento a escusasse dos temores que ela própria sentia. —
Meu nome é Marta Adriansen, e não Marta Fugger. Sou a prima.
Ele não lhe concedeu mais que uma olhadela e concentrou-se na
observação dos efeitos do remédio. Menos agitada, a doente
parecia sorrir. Ele ministrou pela noite uma segunda dose do elixir. A
presença desse homem, embora nada prometesse, transformava
num quarto comum o que fora para Marta desde a aurora um lugar
de terror. Já na escada, tirou a máscara de que se servira junto à
cabeceira da enferma, como era de costume. Marta o acompanhou
até o último lance da escada.
— Você diz que se chama Marta Adriansen — observou ele de
repente. — Quando jovem, conheci um homem que tinha esse
nome. Sua mulher chamava-se Hilzonda.
— Eram meu pai e minha mãe — disse Marta como que
constrangida.
— Ainda vivem?
— Não — respondeu ela, baixando a voz. — Estavam em Münster
quando o bispo tomou a cidade.
Ela abriu a porta da rua, trancada com fechaduras tão
inexpugnáveis quanto as de um cofre-forte. Uma lufada de ar
penetrou no suntuoso e opressivo vestíbulo. O crepúsculo se
tornara cinzento e chuvoso.
— Volte lá para cima — disse ele afinal com uma espécie de fria
bondade. — Sua compleição parece robusta, e a peste já não faz
agora novas vítimas. Aconselho que proteja as narinas com um
pano branco embebido em álcool (não confio muito em vinagre) e
que vele até o fim a moribunda. Seus temores são naturais e
razoáveis, mas a vergonha e o remorso não são males menores.
Ela se voltou, as faces em fogo, remexeu na bolsa que trazia
presa à cintura e escolheu afinal uma moeda de ouro. O gesto de
pagar restabelecia as distâncias e a alçava a uma categoria mais
alta que a do andarilho que ia de burgo em burgo, ganhando o
sustento à cabeceira dos pestosos. Sem olhá-la ele guardou a
moeda no bolso do sobretudo e saiu.
De novo sozinha, Marta foi até a cozinha procurar um frasco com
álcool. O aposento estava vazio; as criadas se achavam sem dúvida
na igreja a resmungar litanias. Achou sobre a mesa uma fatia de
patê e comeu-a devagar, aplicando-se deliberadamente em
restabelecer suas forças. Por precaução, obrigou-se também a
mastigar um pouco de alho. Quando enfim decidiu subir ao segundo
pavimento, Benedita parecia ressonar, e as contas do rosário
escorregavam de quando em vez sob seus dedos. Após uma
segunda dose do elixir, ela melhorou. Uma recaída a levou pela
manhã.

Marta viu-a ser enterrada no mesmo dia com Salomé no claustro


do Convento das Ursulinas, e como que lacrada sob uma mentira.
Ninguém jamais saberia que Benedita quase tomara o estreito
caminho para o qual a impelia a prima e quase avançara com ela
rumo à Cidade de Deus. Marta sentia-se espoliada, traída. Os casos
de peste se faziam raros, mas, ao caminhar pelas ruas quase
desertas, continuava a proteger-se cautelosamente sob as dobras
do casaco. A morte da prima não fizera senão com que aumentasse
o seu furioso desejo de continuar a viver, levando-a a não renunciar
de modo algum àquilo que ela era e àquilo que ela tinha, a fim de
que não terminasse seus dias como um desses embrulhos frios que
se colocam sob uma laje de igreja. Benedita morrera certa de sua
salvação pelos padre-nossos e pelos Aves; Marta não tinha razões
para alimentar essa mesma confiança por sua própria conta;
parecia-lhe por vezes pertencer à raça daqueles aos quais a
sentença divina condena antes do nascimento e cuja própria virtude
consiste numa forma de pertinácia que não agrada a Deus. De que
virtude, aliás, se tratava? Em presença do flagelo, ela se portara de
modo pusilânime; nada fazia crer que, em presença do carrasco, se
mostrasse mais fiel ao Eterno do que o foi na época da peste àquela
inocente a quem julgara amar com tanto carinho. Razão de sobra
para retardar o quanto possível o veredicto pelo qual não se
reclama.
Dedicou todos os seus esforços para empregar, ainda naquela
noite, novas criadas, esquecendo-se das que se foram e não
voltaram, ou então dispensando-as quando de seu retorno. Lavou-
se tudo com fartura de água, espalhando-se depois sobre o
assoalho ervas aromáticas misturadas a agulhas de pinho. Foi
durante essa faxina que se descobriu o cadáver de Joana,
esquecida de todos, em seu casebre de criada; Marta não teve
tempo de chorá-la. O banqueiro reapareceu, convenientemente
atormentado por esses desenlaces, não obstante disposto a
organizar pacificamente sua existência de viúvo numa casa dirigida
por alguma governanta de sua escolha, nem tagarela nem
barulhenta, nem muito jovem nem de todo muito repugnante.
Ninguém, nem mesmo ele, tinha dúvidas de que sua excelente
esposa o tiranizara durante a vida inteira. De agora em diante,
apenas ele decidiria quando levantar-se, a que horas lhe serviriam
as refeições e em que dia iria ao médico, e ninguém o interromperia
mais, caso lhe desse na telha alongar para alguma camareira a
história da moça e do rouxinol.
Martinho ansiava por desembaraçar-se da sobrinha a quem a
peste fizera sua única herdeira, mas a quem não desejava de modo
algum ver diante de si a presidir sua mesa. Obteve uma permissão
em vista de um casamento entre primos germanos, e o nome de
Marta substituiu o de Benedita no contrato matrimonial.
Ciente dos projetos do tio, Marta desceu ao escritório onde
Zebedeu se achava entregue a seus afazeres. A fortuna do suíço
estava feita; não podendo a guerra com a França arrastar-se por
muito mais tempo, o amanuense, instalado em Genebra, serviria
doravante a Martinho como testa de ferro nas transações deste com
seus aristocráticos devedores franceses. Zebedeu realizara durante
a época da peste alguns lucros por conta própria, o que o ajudaria a
reaparecer em seu país como um burguês considerado a quem se
perdoaram os pecadilhos da juventude. Marta encontrou-o às voltas
com um judeu, inexcedível na arte da usura e dos pequenos prazos
mutuários, que resgatara discretamente para Martinho os créditos e
os bens móveis das vítimas da epidemia, e sobre o qual recairia,
caso necessário, todo o opróbrio desse lucrativo comércio. Ele o
dispensou à chegada da herdeira.
— Tome-me por esposa — disse-lhe Marta à queima-roupa.
— Mais devagar — retrucou o amanuense, procurando uma saída.
Ele se casara ainda jovem com uma moça de baixa classe social,
padeira na região onde se estendem os pastos da caça, quando
intimado pelas lágrimas desta e os gritos da família, após a única
indiscrição amorosa de sua vida. Uma convulsão vencera de há
muito a resistência de seu único filho; Zebedeu concedera uma
pequena pensão à mulher, e tudo fazia para manter a distância essa
doméstica de olhos orlados de vermelho. O crime de bigamia,
porém, não era desses que se cometem levianamente.
— Se você me der ouvidos — argumentou ele —, deixará em paz
este servidor e não pagará tão caro por dois tostões de
arrependimento… Apraz-lhe tanto assim ver o dinheiro de Martinho
ser consumido em refeições de igreja?
— Viverei até o fim de meus dias na terra de Canaã?
— A mulher forte, quando no interior da morada do Ímpio, pode aí
fazer imperar a Justiça — retorquiu o amanuense, tão habituado
quanto ela ao estilo das Escrituras.
Via-se claramente que ele não cuidava de se indispor com os
poderosos Fuggers. Marta baixou a cabeça; a prudência do
amanuense fornecia-lhe boas razões para submeter-se, razões
estas que, sem o saber, ela havia procurado. Essa jovem austera
padecia de um vício de gente velha: amava o dinheiro pela
segurança que ele traz e a consideração que acarreta. O próprio
Deus a distinguira com o dedo para viver entre os poderosos deste
mundo; Marta não ignorava em absoluto que um dote como o seu
decuplicava-lhe a autoridade de esposa, e a comunhão de duas
fortunas é um dever a que não se deve furtar uma jovem sensata.

Empenhou-se, contudo, em evitar qualquer mentira. Quando de


seu primeiro encontro com Filisberto, disse-lhe a herdeira:
— Talvez você ainda não saiba que abracei a santa fé evangélica.
Contava decerto com reprovações. Seu rotundo prometido
contentou-se em responder, meneando a cabeça:
— Perdoe-me, mas tenho muito a fazer. As questões teológicas
são por demais espinhosas.
E nunca mais voltou a falar dessa confissão. Tornava-se difícil
saber se ele era singularmente perspicaz ou apenas muito lerdo.
A conversa em Innsbruck

Henrique-Maximiliano olhava a chuva cair sobre Innsbruck.


O Imperador ali se instalara para acompanhar os debates do
Concílio de Trento, que, como todas as assembleias convocadas
para decidir alguma coisa, ameaçava encerrar-se sem nada
resolver. Não se falava na corte senão em teologia e direito
canônico; as caçadas sobre as encostas lamacentas das montanhas
pouco atraíam um homem habituado a perseguir o cervo nas férteis
campinas lombardas; e o capitão, contemplando a chuva besta a
escorrer sobre as lajes, entregava-se, no mais íntimo de seu
coração, ao prazer de praguejar em italiano.
Ele bocejava vinte e quatro horas por dia. O glorioso César Carlos
parecia ao flamengo uma espécie de louco triste, e sua pompa
espanhola lhe conferia o aspecto de uma dessas armaduras
emperradas e polidas sob as quais se sua nos dias de parada e às
quais todo velho soldado prefere uma pele de búfalo. Ao ingressar
na carreira das armas, Henrique-Maximiliano não se dera conta do
tédio que vegeta nos períodos de folga, e esperava resmungando
que a paz carunchosa cedesse lugar à guerra. Por felicidade, os
repastos imperiais incluíam frangos em abundância, assados de
cabrito e patê de enguias; para distrair-se, comia copiosamente.
Uma noite em que, sentado numa taberna, o bravo soldado lutava
por enfiar num soneto os tenros peitinhos de cetim branco de Vanina
Cami, sua amiguinha napolitana, aconteceu-lhe ser ferido pelo sabre
de um húngaro, a quem ele provocara numa querela ao gosto
alemão. Essas disputas que terminavam na ponta da espada faziam
parte de sua personagem; ademais, eram-lhe tão necessárias, por
temperamento, quanto a um artesão ou a um camponês as brigas à
base de socos ou pontapés. Mas dessa vez o duelo, iniciado por
injúrias em latim macarrônico, teve curta duração; o húngaro não
passava de um borra-botas que se refugiou atrás das generosas
carnes da hospedeira; tudo terminado com um ruído de choro de
mulher e de louças quebradas, o capitão, aborrecido, sentou-se
outra vez na esperança de recomeçar a polir suas quadras e
tercetos.
Contudo, seu furor rítmico havia cessado. A cutilada na face o
incomodava, muito embora não quisesse admiti-lo; e o lenço logo
tinto de sangue, com o qual ele próprio envolvera a cabeça à guisa
de bandagem, dava-lhe o ar ridículo de um homem vitimado por
alguma congestão. Aboletado diante de um guisado ao molho de
pimenta, a comida não lhe falava ao coração.
— O senhor deveria ver um cirurgião — aconselhou o taberneiro.
Henrique-Maximiliano respondeu que todos os cirurgiões não
passavam de burros de carga.
— Conheço um de grande perícia — disse o estalajadeiro. — Mas
é esquisito e não atende a ninguém.
— Pois eis minha chance — disse o capitão.
Chovia sem parar. O taberneiro, de pé na soleira da porta, olhava
as calhas gotejantes. De súbito:
— É só falar no bicho do mato… — disse ele.
Um homem friorento, enfiado num sobretudo, um pouco recurvo
sob o capuz castanho, esgueirava-se rente às valetas da rua.
Henrique-Maximiliano gritou:
— Zênon!
O homem se voltou. Entreolharam-se através da vitrine na qual se
amontoavam doces, tortas, empadas e frangos assados. Henrique-
Maximiliano julgou ler na fisionomia de Zênon uma inquietação
semelhante à do medo. Ao reconhecer o capitão, o alquimista
acalmou-se. E avançou um passo para dentro da sala de teto baixo:
— Você está ferido? — perguntou.
— Como se vê — disse o outro. — Pois já que você não subiu
ainda ao céu dos alquimistas, faça-me a esmola de uma linha para
costurar-me esse talho e de umas gotas de vulnerário, à falta do
elixir da eterna juventude.
Seus gracejos eram amargos. Parecia-lhe singularmente penoso
constatar o quanto Zênon envelhecera.
— Não atendo a mais ninguém — disse o médico.
Mas suas suspeitas se haviam dissipado. Ele entrou na sala,
imobilizando atrás de si com os punhos o batente da porta
basculante que estalava sob o vento.
— Perdoe-me, irmão Henrique — disse ele. — Estimo muito revê-
lo. Mas sou obrigado a evitar os importunos.
— Quem não tem os seus? — ponderou o capitão, pensando em
seus credores.
— Venha à minha casa — disse o alquimista após alguma
hesitação. — Estaremos lá mais à vontade do que nessa taberna.
Os dois saíram juntos. A chuva despencava em rajadas. Fazia um
daqueles tempos em que o ar e a água sublevados pareciam
converter o mundo num grande e triste caos. O capitão entrevia no
alquimista um princípio de fadiga e de desassossego. Zênon
empurrou com os ombros a porta de uma habitação de teto baixo.
— O estalajadeiro me alugou muito caro esta oficina abandonada
onde vivo quase a salvo dos curiosos. É ele que assim consegue o
ouro.
O aposento era difusamente iluminado pelo rubor de um fogo
brando, sobre o qual uma infusão qualquer fervia num pote de argila
refratária. A bigorna e as tenazes do ferrador que anteriormente
ocupara o casebre davam um ar de câmara de tortura ao interior
sombrio. Uma pequena escada móvel conduzia ao jirau, onde sem
dúvida Zênon dormia. Um jovem criado de cabelos ruivos e nariz
curto parecia ocupar-se de algo num dos cantos. Zênon deu-lhe
folga pelo resto do dia depois de lhe haver recomendado que antes
trouxesse a bebida. Em seguida, pôs-se a procurar entre seus
lençóis o que estivesse mais limpo. Quando afinal o ferimento de
Henrique-Maximiliano foi pensado, disse-lhe o alquimista:
— Que faz nesta cidade?
— Faço o espião — respondeu singelamente o militar. — O
Senhor de Estrosse encarregou-me aqui de uma missão secreta
acerca dos assuntos da Toscana; o fato é que ele namora Siena
com o rabo do olho, não se conforma de estar exilado de Florença e
espera aí recuperar um dia o terreno perdido. Supõem que vim
recorrer à prática dos banhos termais, das ventosas e dos
sinapismos da Alemanha, e faço aqui minha corte ao Núncio, que
estima por demais os Farneses para ter em apreço os Médicis e
que, pelo que lhe toca, faz sem convicção sua corte a César. Tanto
faz jogar aqui como no tarô da Boêmia.
— Conheço o Núncio — disse Zênon. — Sou um pouco seu
médico, um pouco seu alquimista; ele não confiaria senão a mim a
tarefa de fundir seu dinheiro em meu parco fogo de brasas. Você já
reparou como esses homens de cabeça caprina se parecem com o
bode e com a antiga Quimera? Monsenhor fatura pequenos versos
jocosos e escolhe a dedo seus pajens. Se me coubesse talento para
tanto, teria eu muito a ganhar como intermediário dele.
— Que faço eu aqui senão intervir em favor de terceiros? —
argumentou o capitão. — E é isso o que todos fazem; este cuida
das mulheres, ou de outra coisa, aquele da Justiça e aqueloutro de
Deus. O mais honesto é aquele que vende a carne, e não as ilusões
do álcool. Mas não levo assim tão a sério os assuntos de meu
pequeno negócio, essas cidades já vendidas duas vezes, essas
lealdades venéreas, esses contextos corrompidos. Onde um amante
de intrigas encheria os bolsos, eu quando muito esvazio os meus
nas mudas de cavalos e nas estalagens. Morreremos pobres.
— Amen — disse Zênon. — Sente-se.
Henrique-Maximiliano permaneceu de pé junto ao fogo; um vapor
úmido se evolava de suas vestes. Sentado sobre a bigorna, Zênon
contemplava as brasas inflamadas, deixando que as mãos
pendessem entre os joelhos.
— Sempre o companheiro do fogo, Zênon — disse-lhe o primo.
O jovem criado ruivo trouxe o vinho e retirou-se assobiando. O
capitão continuou, servindo-se da bebida:
— Lembra-se das apreensões do Cônego da Ordem de São
Donato? Seus Prognósticos sobre as coisas futuras lhe terão
confirmado os mais negros temores; seu opúsculo sobre a natureza
do sangue, que absolutamente não li, lhe deverá ter parecido mais
digno de um barbeiro do que de um filósofo; e seu Tratado do
mundo físico o terá feito chorar. Ele o exorcizaria, se por desgraça
você retornasse a Bruges.
— Ele faria pior — replicou Zênon com uma careta. — Todavia,
tive o cuidado de envelopar meu pensamento com todas as
circunlocuções que lhe fossem convenientes. Pus aqui uma
maiúscula, ali um Nome; consenti até mesmo em atravancar minha
frase com um pesado aparato de Atributos e Substâncias. Enfim,
paramentei-me dessa verborragia como se o fizesse em relação às
nossas calças e camisas; elas protegem aquele que as veste, e não
importa se, por debaixo, se está tranquilamente nu.
— Elas estorvam — disse o soldado de fortuna. — Jamais olhei
para um Apolo nos jardins do Papa sem invejá-lo por estar nu à
vista de todos, tal como o fez sua mãe Latona. Só se está bem
quando se é livre, e esconder nossas opiniões é ainda mais penoso
do que cobrir a própria pele.
— Estratégias de guerra, capitão! — disse Zênon. — Vivemos
dentro delas como vocês em suas sapas e trincheiras. Ao cabo, nos
vangloriamos de um mal-entendido que modifica tudo, como um
sinal negativo discretamente colocado diante de uma soma; planeja-
se obter aqui e ali, com uma palavra mais ousada, o equivalente a
um piscar de olhos, ao farfalhar das folhas da videira ou à queda da
máscara tão depressa recomposta como se de nada fosse feita. Um
jogo de cartas sorteia nossos leitores; os tolos nos acreditam; outros
tolos, julgando-nos mais tolos do que eles, nos deixam de lado; os
que restam, escapam a esses labirintos, aprendendo a pular ou a
contornar o obstáculo da mentira. Muito me surpreenderei se,
mesmo nos textos mais sagrados, não se encontrarem idênticos
subterfúgios. Lido dessa forma, qualquer livro se transforma num
receituário de mágicos e feiticeiros.
— Você exagera quanto à hipocrisia dos homens — disse o
capitão, dando de ombros. — A maioria pensa muito pouco para
pensar dúbio.
E acrescentou meditativamente, enchendo de novo o copo:
— Por estranho que seja, o Vitorioso César Carlos crê nesse
momento desejar a paz, assim como Sua Majestade Cristianíssima.
— O que é o erro, e seu sucedâneo, a mentira — prosseguiu
Zênon —, senão uma espécie de Caput Mortuum [26] uma
substância inerte sem a qual a verdade excessivamente volátil não
poderia ser triturada no almofariz humano?… Esses medíocres
pensadores põem seus semelhantes nas nuvens e dão gritos de
indignação a seus contrários; mas se nossos pensamentos forem de
fato de distinta espécie, eles lhes escapam; não mais os veem,
assim como um animal enraivecido logo deixa de ver sobre o piso
de sua jaula um objeto insólito que não consegue espedaçar nem
engolir. Poderíamos dessa forma nos tornar invisíveis.
— Aegri somnia [27] — disse o capitão. — Não entendo você.
— Serei eu por acaso Servet, aquele asno — replicou
selvagemente Zênon —, para arriscar-me a ser queimado numa
pequena fogueira em praça pública em honra de não sei que
interpretação de um dogma, quando estou em vias de concluir meus
trabalhos sobre os movimentos diastólicos e sistólicos do coração,
que me interessam muito mais? Se afirmo que três são um ou que o
mundo foi salvo na Palestina, não posso inscrever nessas palavras
um sentido secreto dentro do sentido exterior, furtando-me assim ao
tormento de haver mentido? Muitos cardeais (eu os conheço) assim
o fazem para escapar a situações embaraçosas, e é isso o que
fazem certos doutores que trazem agora sobre a cabeça um halo
celeste. Grafo como qualquer outro as quatro letras do augusto
Nome, mas o que ponho nele? Tudo, ou seu Demiurgo? O que É,
ou o que não é, ou o que é não o sendo mais, como o vazio e o
negror da noite? Entre o Sim e o Não, entre o A favor e o Contra,
restam ainda imensos espaços subterrâneos onde o mais acuado
dos homens poderia viver em paz.
— Seus críticos não são assim tão idiotas — disse Henrique-
Maximiliano. — Esses senhores de Basileia e o Santo Ofício, em
Roma, entendem você o bastante para condená-lo. Para eles, você
não passa de um ateu.
— Tudo que não é como eles parece-lhes contra eles — comentou
amargamente Zênon.
E, enchendo de novo uma taça, bebeu por sua vez avidamente o
ácido vinho alemão.
— Graças a Deus! — exclamou o capitão. — Os carolas de
qualquer espécie não meterão mais o nariz em meus versinhos de
amor. Jamais me exponho senão a perigos simples: os golpes que
recebo numa batalha, as febres na Itália, a sífilis das jovens com
quem me deito, os piolhos nas estalagens e, acima de tudo, os
credores. Não me arrisco mais com a gentalha de gorro ou de
barrete, com tonsura ou sem tonsura, pois que não me agrada a
caça ao porco-espinho. Nem sequer refutei aquele poltrão imbecil
do Robertello de Udine, que julgou encontrar erros na minha
tradução de Anacreonte e que não passa de um estúpido em grego
ou em qualquer outra língua. Prezo a ciência como qualquer outro,
mas pouco se me dá que o sangue desça ou suba pela veia cava;
basta-me saber que ele esfria quando se morre. E se a Terra gira…
— Ela gira — disse Zênon.
— E se a Terra gira, não me preocupo muito nesse momento em
saber sobre que ponto dela me encontro, e menos ainda me
preocuparei quando estiver deitado. Em matéria de fé, acreditarei no
que irá decidir o Concílio, se é que decidirá alguma coisa, da
mesma forma que comerei esta noite o que preparar o taberneiro.
Aceito meu Deus e minha época como se me apresentam, embora
preferisse viver no século em que se adorava Vênus. Não desejarei
inclusive privar-me, em meu leito de morte, de me voltar, se assim
exigir o coração, para Nosso Senhor Jesus Cristo.
— Você é como um homem que consente de bom grado em
acreditar que na casa do vizinho sempre há uma mesa e dois
bancos, pois o resto pouco lhe importa.
— Irmão Zênon — disse o capitão —, acho-o magro, cansado,
algo selvagem e vestido com uma túnica tão miserável que nem
meu criado usaria. Valeu a pena estudar durante vinte anos para
chegar à dúvida, que por si só cresce em todas as cabeças bem-
formadas?
— Sem comentário — respondeu Zênon. — Suas dúvidas e sua fé
são bolhas de ar à superfície, mas a verdade que se deposita em
nós, como o sal na retorta durante uma destilação arriscada,
pertence a esse lado da explicação e da forma, muito quente ou
muito fria para a boca dos homens, muito sutil para que possa ser
grafada pela letra escrita, e mais valiosa do que ela.
— Mais valiosa do que o Augusto Sílabo?
— Sim — assentiu Zênon.
Ele baixava a voz contrariado. Nesse momento, um monge
mendicante bateu à porta e logo se foi com algumas moedas que
lhe proporcionara a generosidade do capitão. Henrique-Maximiliano
voltou e sentou-se outra vez ao pé do fogo; também ele falava em
voz baixa.
— Conte-me mais de suas viagens — sussurrou.
— Por quê? — perguntou o filósofo. — Não lhe falarei dos
mistérios do Oriente; eles não existem de modo algum, e você não é
daqueles basbaques que vivem a dizer tolices no Harém do Grão-
Senhor. Cedo aprendi que essas diferenças de clima de que tanto
se fala pouco valem se comparadas ao fato de que o homem, em
quaisquer circunstâncias, tem sempre dois pés e duas mãos, um
membro viril, um ventre, uma boca e dois olhos. Atribuem-me
viagens que absolutamente não fiz; eu mesmo me atribuí algumas
delas por subterfúgio e para estar tranquilamente alhures, e não
onde supõem que eu esteja. Já me supuseram na Tartária na
mesma época em que eu desfrutava a paz em Point-Saint-Esprit, no
Languedoc. Mas subamos mais alto: pouco após minha chegada a
León, meu prior foi expulso de sua abadia por seus próprios
monges, que o acusaram de judaísmo. E a verdade é que sua velha
cabeça estava repleta de estranhas fórmulas extraídas ao Zohar, [28]
relativas às correspondências entre os metais, as hierarquias
celestes e os astros. Eu aprendera em Lovaina a desprezar a
alegoria, farto que estava dos exercícios pelos quais se simbolizam
os fatos, com o inconveniente de, logo em seguida, articular-se algo
a partir desses símbolos como se eles fossem fatos. Mas não há
ninguém tão tolo que não tenha qualquer coisa de sábio. De tanto
levar ao fogo suas retortas, meu prior acabou por descobrir algumas
práticas secretas, das quais me tornei herdeiro. A seguir, na Escola
de Montpellier, não me ensinaram quase nada: Galeno, para aquela
gente, passou à condição de ídolo a quem se sacrifica a natureza;
quando refutei certas noções galênicas, as quais o barbeiro João
Myers já sabia estarem baseadas na anatomia do macaco, e não na
do homem, meus doutos eruditos preferiram acreditar que a espinha
dorsal se havia modificado desde os tempos do Cristo a acusar seu
oráculo de leviandade ou erro.
“Entretanto, havia ali alguns cérebros intrépidos… Tínhamos falta
de cadáveres, considerando-se que os preconceitos públicos são o
que são. Um certo Rondelet, médico miúdo e enfezado, tão cômico
quanto seu nome, perdera na véspera o filho atacado de escarlatina,
um estudante de vinte e dois anos com quem eu colhia plantas para
o herbário em Grau-du-Roi. No recinto impregnado de vinagre em
que dissecamos aquele morto, que não era mais o filho ou o amigo,
mas apenas um belo exemplar da máquina humana, experimentei
pela primeira vez a sensação de que a mecânica, de um lado, e a
Grande Arte, de outro, não fazem senão aplicar ao estudo do
universo as verdades que nos ensinam nossos corpos, nos quais se
repete a estrutura do Todo. Não seria bastante toda uma vida para
cotejar um com o outro este mundo em que estamos e este mundo
que somos. Os pulmões eram o fole que reanima a brasa; o pênis,
uma arma de arremesso; o sangue nos meandros do corpo era a
água circulante das canaletas de um jardim oriental; o coração,
conforme se adotasse esta ou aquela teoria, era a bomba ou o
braseiro; o cérebro, o alambique em que se destila uma alma…”
— Recaímos na alegoria — disse o capitão. — Se por meio disso
pensa você que o corpo é a mais sólida das realidades, então diga-
o.
— De modo algum — retrucou Zênon. — Este corpo, nosso reino,
parece-me às vezes composto de um tecido frouxo e tão fugidio
quanto uma sombra. Me seria menos espantoso rever minha mãe,
que já morreu, do que reencontrar na esquina de uma rua teu rosto
envelhecido, cuja boca sabe ainda meu nome, mas cuja substância
se reconstituiu mais de uma vez ao longo de vinte anos, e na qual o
tempo alterou a cor e retocou a forma. Quanto frumento se produziu,
quantas bestas viveram e morreram para sustentar este Henrique
que é e não é aquele que conheci há vinte anos. Mas voltemos às
viagens… Point-Saint-Esprit, onde as pessoas espreitavam por
detrás dos postigos os feitos e as atitudes do novo médico, nem
sempre era um mar de rosas, e a Eminência com quem eu contava
deixou Avignon por Roma… Minha sorte se materializou sob a
forma de um renegado que assegurava em Argel a remonta das
cavalariças do Rei de França: esse honesto corsário quebrou as
pernas a dois passos de minha porta, e como paga a meus
cuidados médicos ofereceu-me uma passagem em sua tartana.
Sou-lhe grato até hoje. Meus trabalhos sobre balística valeram-me
na Barbária a amizade de Sua Alteza, assim como a ocasião para
estudar as propriedades da nafta e sua combinação à cal viva,
tendo em vista a construção de foguetes a serem lançados pelos
navios de sua frota. Ubicumque idem: [29] os príncipes desejam
engenhos para aumentar ou preservar seu poderio; os ricos, ouro, o
que os leva a aceitar por algum tempo o preço de nossos fornos; os
indolentes e os ambiciosos querem saber o futuro. Todavia, arranjei-
me como pude. O maior ganho provinha ainda de um doge
caquético ou de um sultão enfermo: o dinheiro rolava; uma casa me
abrigava em Gênova, perto de São Lourenço, ou em Pera, [30] no
setor cristão. Forneciam-me os instrumentos de minha arte e, dentre
eles, o mais raro e precioso de todos: a permissão para que eu
pensasse e agisse à minha moda. Depois vinham as intrigas dos
invejosos, os sussurros dos néscios acusavam-me de blasfemar
contra o seu Alcorão ou o seu Evangelho; depois era um complô no
qual corria eu o risco de estar implicado; e, enfim, o dia em que mais
vale gastar o último sequin [31] para adquirir um cavalo ou alugar um
barco. Passei vinte anos nessas pequenas peripécias a que os
livros chamam de aventuras. Matei alguns de meus pacientes por
um excesso de audácia que curou outros. Uma recaída ou uma
melhora importavam-me sobretudo enquanto confirmação de um
prognóstico ou prova da eficácia de um método terapêutico. Ciência
e contemplação não são em absoluto suficientes, irmão Henrique,
se não se transmutam em poder: o povo tem razão quando vê em
nós os adeptos de uma magia branca ou negra. Fazer durar o que
passa, adiantar ou atrasar a hora prescrita, apoderar-se dos
segredos da morte para lutar contra ela, servir-se de fórmulas
naturais para ajudar ou frustrar a natureza, dominar o mundo e o
homem, refazê-los, talvez criá-los…
— Há dias em que, relendo meu Plutarco, digo de mim para mim
que é muito tarde, e que o mundo e o homem já foram — ponderou
o capitão.
— Miragens — replicou Zênon. — Assim é tanto com as suas
idades de ouro quanto com as de Damasco e de Constantinopla,
que são belas a distância; é preciso percorrer-lhes as ruas para ver
seus leprosos e cães estropiados. O seu Plutarco me ensinou que
Heféstion teimava em comer nos dias de dieta como o primeiro
doente a sentar-se à mesa, e que Alexandre bebia como um velho
soldado germânico. Poucos bípedes desde Adão mereceram o
nome de homens.
— Você é médico — disse o capitão.
— Sim — assentiu Zênon. — Entre outras coisas.
— Você é médico — repetiu o flamengo teimoso. — Imagino que
se deixa de recoser os homens como se deixa de descosê-los. Você
não se cansa de levantar à noite para cuidar dessa mísera
gentalha?
— Sutor, ne ultra… [32] — recomeçou Zênon. — Tomei pulsos,
examinei línguas, estudei urinas, e não almas… Não me cabe
decidir se este avarento retorcido de cólicas merece viver por mais
dez anos ou se é bom que aquele tirano morra. Mesmo o pior ou o
mais tolo de nossos pacientes ainda nos instrui, e suas gosmas não
são menos infectas do que as de um homem sagaz ou de um justo.
Cada noite passada à cabeceira de quem quer que esteja enfermo
me recoloca diante de questões que foram deixadas sem resposta:
a dor e seus fins, a benignidade da natureza ou sua indiferença, e
se a alma sobrevive ao naufrágio do corpo. As analogias que me
pareciam outrora haver decifrado os segredos do universo,
parecem-me agora semear à sua volta novas possibilidades de erro
quando tendem a conferir a essa obscura Natureza aquele plano
preestabelecido que outras atribuem a Deus. Não digo que eu
duvidasse; duvidar é diferente. Eu prosseguia a investigação até o
ponto em que cada noção se dobrava em minhas mãos como se
retorce uma retorta. No instante em que eu subia pela escada de
uma hipótese sentia também espedaçar-se sob meu peso o
indispensável SE… Paracelso e seu sistema de correspondências
pareceram-me haver aberto à nossa arte uma estrada triunfal;
recolocavam em prática, porém, as superstições que nos vinham
das aldeias. O estudo dos horóscopos não me parecia mais tão
vantajoso quanto o fora de outras vezes para a escolha de remédios
e a predição de acidentes mortais; compreendi muito bem que
somos feitos da mesma matéria dos astros; não se deve, contudo,
inferir daí que eles nos determinem ou nos possam predispor.
Quanto mais eu pensava nisso, mais nossas ideias, nossos ídolos,
nossas práticas ditas santas, assim como as nossas visões que
passam por inefáveis, pareciam-me engendradas tão somente por
distúrbios da máquina humana, tal como o ar expelido pelas narinas
ou pelas partes baixas, o suor e a água salgada das lágrimas, o
sangue branco do amor, as lamas e os excrementos do corpo.
Irritava-me que o homem desperdiçasse assim sua própria
substância em projetos quase sempre nefastos, falasse em
castidade antes de haver desmontado a máquina do sexo,
discutisse o livre-arbítrio ao invés de pesar as mil razões obscuras
que o fazem piscar se bruscamente lhe aproximo um bastão dos
olhos, especulasse sobre o inferno antes de haver questionado mais
de perto a morte.
— Conheço a morte — disse, bocejando, o capitão. — Entre o tiro
de arcabuz que me derrubou em Cérisoles e a rajada de aguardente
que me ressuscitou há um buraco negro. Não fosse a garrafa do
sargento, eu estaria ainda dentro desse buraco.
— Concordo — disse o alquimista —, sem dúvida tudo isso diz
muito em favor da noção de imortalidade, bem como contra ela. Em
primeiro lugar, o que se retira dos mortos é o movimento; depois o
calor; em seguida, mais ou menos rapidamente, segundo os
agentes a que eles estão submetidos, a forma. Será que o
movimento e a forma da alma, eles também, e não sua substância,
é que se extinguem com a morte?… Eu estava em Basileia na
época da peste…
Henrique-Maximiliano interrompeu-o para dizer que vivia então em
Roma, e que a peste o detivera na casa de uma cortesã.
— Eu estava em Basileia — prosseguiu Zênon. — Saiba você que
por pouco não conheci em Pera a Monsenhor Lorenzino de Médicis,
o Assassino, aquele a quem, por escárnio, o povo chama de
Lorenzaccio. Esse príncipe deserdado espionava assim como você,
irmão Henrique, e foi encarregado pelos franceses de uma missão
secreta junto à corte do Império Otomano. Gostaria de haver
conhecido naquela época esse homem de grande coração. Quatro
anos depois, ao passar por Lyon, onde fora entregar meu Tratado do
mundo físico ao infeliz Dolet, meu editor, encontrei-o
melancolicamente abancado na sala dos fundos da estalagem. O
acaso o fizera vítima, por aqueles dias, de um atentado por parte de
um sicário florentino; dispensei-lhe os melhores cuidados e pusemo-
nos a discutir ociosamente as loucuras do imperador turco e dos
nossos. Esse homem perseguido propunha-se, não obstante,
retornar à sua Itália natal. Antes de nos separarmos, dele ganhei um
pajem caucasiano que lhe cedera Sua Alteza, em troca de um
veneno do qual esperava morrer caso caísse nas mãos do inimigo,
sem fugir assim ao estilo que sempre lhe caracterizou a vida. Faltou-
lhe a ocasião para testar a minha mistura, pois foi enviado desta
para a melhor numa ruela escura de Veneza pelo mesmo
espadachim que falhara em fisgá-lo em França. Mas restou-me seu
servo… Vocês poetas fizeram do amor uma enorme impostura: o
que nos cabe parece sempre menos belo do que as rimas que se
engastam como duas bocas seladas por um beijo. Entretanto, que
outro nome dar a essa flama que ressuscita como Fênix de suas
próprias cinzas, essa necessidade de reencontrar à noite o rosto e o
corpo que se deixaram pela manhã? Pois certos corpos, irmão
Henrique, refrescam como a água, e conviria indagar por que são os
mais ardentes os que mais o fazem. Não surpreende, pois, que Aleí
viesse do Oriente, como meus unguentos e eletuários; jamais, ao
longo das estradas lamacentas ou nos albergues enfumaçados da
Alemanha, insinuou-me ele a injúria de parecer saudoso dos jardins
do Grão-Senhor e de suas fontes que cintilavam ao sol…
Encantava-me sobretudo o silêncio a que nos reduzia o abismo
entre dois idiomas. Eu sei o árabe dos livros, mas do turco só o
necessário para perguntar que caminho tomar; Aleí falava turco e
um pouco de italiano; de seu idioma natal, apenas algumas palavras
retornavam-lhe em sonhos… Após tantas prostitutas tagarelas e
impudentes voluntárias que me couberam por má sorte, tocava-me
enfim o duende ou o ondino que o vulgo nos concede como
auxiliares…
“Ora, por uma tarde sombria, em Basileia, no ano da peste negra,
encontrei no quarto meu servo prostrado pelo flagelo. Preza você a
beleza, irmão Henrique?”
— Sim — disse o flamengo. — A feminina. Anacreonte é bom
poeta e Sócrates um homem de indiscutível estatura ética e
intelectual, mas não compreendo em absoluto que se renuncie aos
tenros e róseos contornos da carne, aos abundantes corpos tão
diferentes dos nossos nos quais se penetra como conquistadores
que entrassem numa cidade florida de alegria e para eles
engalanada. E se essa alegria mente ou se nos ilude essa gala, que
importa? Os unguentos, os cabelos frisados, os perfumes cujo uso
deporia contra um homem… Eu gozo pela língua das mulheres. Por
que iria eu procurar vielas suspeitas, quando tenho diante de mim
uma estrada cheia de sol onde posso caminhar com honra? Ao
diabo com essas faces que logo se enrugam, e que melhor seria se
oferecerem ao barbeiro do que ao amante!
— Quanto a mim — disse Zênon — agrada-me sobretudo todo
aquele prazer algo mais secreto que um outro, aquele corpo
semelhante ao meu que reflete minha lascívia, aquela agradável
ausência de tudo o que acrescenta ao gozo os pequenos trejeitos
das cortesãs e o jargão dos petrarquianos, as túnicas bordadas da
Signora Lívia e os escapulários de Madame Laura, aquele convívio
que não se justifica de modo algum hipocritamente pela
perpetuação da sociedade humana, mas que nasce de um desejo e
passa com ele, e ao qual, se aí floresce algum amor, não será em
absoluto por que a isso me dispuseram na véspera os refrões em
voga… Ocupei naquela primavera um quarto de albergue às
margens do Reno, insuflado pelo tumulto das águas salobras; era
preciso gritar para que nos ouvissem: somente a custo se escutava
o som de uma indolente viola cujas cordas ordenava ao meu criado
que dedilhasse quando eu estivesse cansado, pois a música sempre
me pareceu a um só tempo um medicamento específico e uma
festa. Mas Aleí não me esperava aquela noite, com uma lanterna na
mão, perto da estrebaria onde eu abrigava a minha mula. Irmão
Henrique, você deplorou, suponho, o destino das estátuas laceradas
pela picareta e corroídas pela terra; você atacou o Tempo que
maltrata a beleza. Todavia, posso imaginar de mim para mim que o
mármore, exausto de haver por tão longo tempo guardado a
aparência humana, se regozijasse por reverter simplesmente à
condição de pedra… A criatura, ao contrário, teme o retorno à
substância informe… Já na soleira da porta, um odor nauseante me
advertiu, e não me iludiam nem aqueles espasmos da boca que
aspirava e regurgitava a água que a garganta não mais engolia,
como tampouco aquele sangue que expeliam os pulmões enfermos.
Mas o que se chama alma ainda subsistia, e cintilavam ainda os
olhos de cão confiante que jamais duvida de que o venha socorrer o
dono… Decerto não era a primeira vez que minhas poções se
revelavam inúteis, mas cada morte não fora até então senão um
peão perdido em minha partida de médico. Mais ainda, à força de
combater Sua Majestade Negra, estabelece-se entre nós e ela uma
espécie de obscura cumplicidade; um capitão acaba assim por
descobrir e admirar a tática do inimigo. Chega sempre um momento
em que nossos doentes se apercebem de que A conhecemos o
suficiente para nos resignarmos por eles ao inevitável; enquanto
ainda imploram e se debatem, eles leem em nossos olhos um
veredito que aí jamais desejariam ver. É preciso amar alguém para
nos apercebermos do escândalo em que consiste a morte de uma
criatura… Faltou-me coragem, ou pelo menos aquela
impassibilidade que nos é tão necessária. Minha profissão pareceu-
me inútil, o que é quase tão absurdo quanto acreditá-la sublime.
Não que eu sofresse: ao contrário, sabia que era de todo incapaz de
me figurar a dor daquele corpo que se contorcia diante de meus
olhos; meu criado morria como ao fundo de um outro reino. Chamei
então por alguém, mas o estalajadeiro negou-se a me ajudar.
Levantei o cadáver para colocá-lo sobre o assoalho e esperar a
chegada dos coveiros que, logo pela manhã, eu iria procurar;
queimei cada minúsculo fragmento do colchão de palha no fogão de
aquecimento de meu quarto. O mundo de dentro e o mundo de fora,
o macrocosmo e o microcosmo eram ainda os mesmos que nos
tempos das dissecções em Montpellier, mas aquelas grandes rodas
que se encaixavam umas às outras retornavam ao vazio absoluto;
aquelas frágeis engrenagens já não me encantavam mais…
Envergonho-me ao confessar que a morte de um criado foi o
bastante para produzir em mim tão negra revolução, mas não se
aborreça, irmão Henrique, e, além disso, não sou mais um jovem:
tenho mais de quarenta anos. Estava farto de meu ofício de
remendão de corpos; uma náusea apoderou-se de mim à simples
ideia de voltar pela manhã a tomar o pulso do Senhor o Almotacé, a
tranquilizar Madame a Comendadora, ou a olhar à contraluz o urinol
do Senhor o Pastor. Prometi-me, aquela noite, que jamais voltaria a
tratar de alguém.
— O taberneiro d’O Cordeiro de Ouro pôs-me a par dessa fantasia
— disse gravemente o capitão. — Mas você trata da gota do
Núncio, e eis aqui em minha face seu fio de linho e seu emplastro.
— Seis meses se passaram — explicou Zênon, que desenhava
com a ponta de um tição algumas figuras nas cinzas. — A
curiosidade renasce, assim como o desejo de pôr em prática o
talento que se possui, e o de socorrer, caso se possa, os
companheiros que se engajaram conosco nessa estranha aventura.
A visão daquela negra noite está ainda em meu encalço. À força de
silenciar sobre essas coisas, acaba-se por esquecê-las.
Henrique-Maximiliano levantou-se, aproximando-se da janela, e
observou:
— Continua a chover.
Continuava a chover. O capitão tamborilava sobre o vidro. De
repente, voltando-se de novo para o anfitrião:
— Você sabia que Sigismundo Fugger, meu parente de Colônia,
foi mortalmente ferido numa batalha no país dos incas? Diz-se que
ele tinha cem cativas, cem corpos de cobre vermelho com diversas
incrustações de coral e cabelos oleosos que recendiam a
amêndoas. Quando percebeu que ia morrer, Sigismundo ordenou
que cortassem as cem cabeleiras das prisioneiras e as espargissem
sobre um leito, pois queria deitar-se para entregar a alma sobre
aquele tosão que sabia a canela, a suor e a mulher.
— Custo a crer que essas tranças tão belas estivessem livres de
piolhos — disse com azedume o filósofo.
E adivinhando um movimento irritado do capitão:
— Já sei o que você pensa. Sim, algumas vezes ternamente catei
piolhos em cachos negros.
O flamengo continuava a andar a esmo, menos, parecia, para
desemperrar as pernas do que para despertar seus pensamentos.
— Seu humor se aperfeiçoa — disse ele, voltando afinal a instalar-
se no átrio —, sua narrativa de ainda há pouco me predispõe a
meditar sobre minha vida. Não me lastimo em absoluto; mas tudo
difere daquilo em que eu havia acreditado. Sei que não tenho o
estofo de um grande capitão, mas vi de perto os que passam por sê-
lo: eles bem que me surpreenderam. Corri por gosto uma boa terça
parte de meus dias na Península; o tempo é melhor do que em
Flandres, mas come-se pior. Meus poemas não lograram sobreviver
ao papel no qual meu editor os imprimiu às minhas expensas,
quando por acaso tive os meios de me oferecer, como outro
qualquer, um frontispício e uma falsa folha de rosto. Os louros de
Hipocrene não são para mim; não atravessarei os séculos
encadernado em vaqueta. Mas quando me dou conta de quão
poucos leem a Ilíada, de Homero, aceito com a maior boa vontade a
circunstância de ser pouco lido. As Damas me amaram; mas
raramente eram aquelas pelo amor das quais eu pudesse haver
dado minha vida… (Contudo, olho-me de alto a baixo: que
arrogância supor que as belas por quem suspiro desejem minha
pele…) A Vanina, de Nápoles, da qual sou quase esposo, é sem
dúvida ótima moça, mas seu aroma não é o do âmbar, e suas ruivas
franjas encaracoladas nada têm a ver com ela. Regressei a meu
país natal para lá passar algum tempo: minha mãe havia morrido.
Que Deus a tenha! A boa mulher queria bem a você. Meu pai baixou
aos infernos, suponho, com seus sacos de ouro. Minha irmã me
recebeu bem, mas ao fim de oito dias compreendi que era hora de
partir. Ocorre-me lamentar não haver engendrado herdeiros
legítimos, mas não desejaria meus sobrinhos como filhos. Alimento
ambições como outro qualquer; se, porém, um poderoso do
momento nos recusa uma carta de mercê ou uma tença, que alegria
deixar a sala de espera sem agradecer a Monsenhor, e andar de
bom grado pelas ruas com as mãos nos bolsos vazios… Muito
desfrutei a vida: agradeço ao Eterno que cada ano traga seu
contingente de jovens casadouras e que se produza o vinho a cada
outono; digo-me às vezes que tenho levado a boa vida de um cão
ao sol, com brigas a granel e alguns ossos para roer. Todavia,
acontece-me raramente abandonar uma amante sem aquele
pequeno suspiro de alívio do escolar que sai da escola, e creio
deveras que será um suspiro desse mesmo gênero o que exalarei
ao morrer. Você fala de estátuas; não sei de prazer mais
extravagante do que esse de contemplar a Vênus de mármore,
aquela que meu amigo o Cardeal Caraffa conserva em sua galeria
napolitana: suas alvas formas são tão belas que expurgam do
coração qualquer desejo profano e dão vontade de chorar. Mas
basta que me esforce por contemplá-la uma metade de quarto de
hora, e nem meus olhos nem meu espírito a veem mais. Irmão
Zênon, há em quase todas as coisas terrestres não sei que borra ou
ressaibo que nos desgosta, e os raros objetos que por acaso
revelam a perfeição das partes são mortalmente tristes. A filosofia
não é meu forte, mas por vezes me digo que Platão tinha razão. E o
Cônego Campanus também. Deve existir alhures não sei o quê que
nos excede em perfeição, um bem cuja presença nos confunde e
cuja falta nos é intolerável.
— Sempiterna Temptatio [33] — sentenciou Zênon. — Digo-me
quase sempre que nada no mundo, salvo uma ordem eterna ou uma
bizarra veleidade da matéria em fazer algo melhor do que ela
própria, explica por que me empenho cada dia em pensar com um
pouco mais de clareza do que na véspera.
Ele permanecia sentado, o queixo pendido, no quarto inundado
pelo úmido crepúsculo. O rubor da fornalha tingia-lhe as mãos
manchadas de ácido, sulcadas aqui e ali por pálidas cicatrizes de
queimaduras, e via-se que ele considerava atentamente esses
estranhos prolongamentos da alma, essas grandes ferramentas de
carne que nos permitem entrar em contato com tudo.
— Louvado seja eu! — exclamou ele, afinal, numa espécie de
exaltação na qual Henrique-Maximiliano pôde reconhecer aquele
Zênon ébrio de devaneios mecânicos partilhados com Colas Gheel.
— Não deixarei jamais de maravilhar-me com o fato de que essa
carne sustentada pelas vértebras, esse tronco unido à cabeça pelo
istmo do pescoço e que dispõe simetricamente à sua volta os
membros superiores e inferiores, contenham — e talvez produzam
— um espírito que tira partido de meus olhos para ver e de meus
movimentos para tatear… Conheço-lhe os limites, e sei que lhe
faltará tempo para ir mais longe, do mesmo modo que lhe faltará
força, se porventura lhe for concedido tempo. Mas ele existe, e,
neste momento, ele é Aquele que É. Sei que ele se engana, erra,
interpreta quase sempre mal as lições que recebe do mundo, mas
sei também que tem em si a capacidade de conhecer e, por vezes,
de corrigir seus próprios erros. Percorri pelo menos uma parte desta
esfera onde estamos; estudei o ponto de fusão dos metais e a
reprodução das plantas; observei os astros e esquadrinhei o interior
dos corpos. Sou capaz de extrair desse tição que levanto a noção
de peso e dessas chamas a noção de calor. Sei que não sei o que
não sei; invejo aqueles que sabem muito, mas sei que eles terão
como eu de medir, pesar, deduzir, desconfiar das deduções que
realizaram, considerar no falso o que é verdadeiro e cogitar no
verdadeiro a eterna mistura com o falso. Jamais me obstinei em
acreditar numa ideia por temor à desordem em que, sem ela, viria
eu a cair. Nunca temperei um fato verdadeiro com o molho da
mentira para que sua digestão se me tornasse mais cômoda.
Jamais distorci os pontos de vista do adversário para vencê-lo mais
facilmente ao nível da razão, nem mesmo, durante nosso debate
sobre o antimônio, os que defendeu Bombast, que não soube
sequer agradecer-me. Ou antes, sim: surpreendo-me por havê-lo
feito, e advirto-me cada vez como se adverte um criado desonesto
que não nos restitui a confiança senão sob promessa de que irá
melhorar; sonhei meus sonhos; não os tomo por outra coisa senão
sonhos. Evitei fazer da verdade um ídolo, preferindo batizá-la com o
nome mais humilde de exatidão. Meus êxitos e riscos não são os
que se imaginam; há outras glórias para além da glória e outras
fogueiras para além da fogueira. Quase triunfei ao desafiar as
palavras. Morrerei um pouco menos tolo do que quando nasci.
— Muito bem — disse, bocejando, o guerreiro. — Mas o clamor
público lhe atribui um êxito mais palpável. Você faz ouro.
— Eu, não — disse o alquimista —, mas outros o farão. É uma
questão de tempo e de aparelhos adequados para levar a
experiência a bom termo. Que são alguns séculos?
— Muito tempo, se se trata de pagar a despesa d’O Cordeiro de
Ouro — replicou galhofeiramente o capitão.
— Fazer ouro será talvez um dia tão fácil quanto soprar o vidro —
continuou Zênon. — À força de cravarmos os dentes na casca das
coisas, acabaremos decerto por descobrir a razão secreta das
afinidades e dos atritos… Que é um fuso mecânico ou uma bobina
que se reabastece de linha… e todavia essa cadeia de diminutas
conquistas nos poderia levar mais longe do que o foram Magalhães
e Américo Vespúcio em suas viagens. Irrito-me ao pensar que a
criatividade humana se eclipsou após a invenção da primeira roda,
da primeira torre, da primeira forja; cuidam todos apenas de
diversificar os usos do fogo roubado ao céu. No entanto, bastaria
um mínimo de aplicação para deduzir de alguns princípios simples
toda uma série de engenhosas máquinas próprias ao
desenvolvimento da sabedoria e do poder humanos — engenhos
que, utilizando apenas o movimento, produziriam o calor, condutos
que propagariam o fogo como outros transportam a água e que
fariam reverter, em benefício das destilarias e das fundições, o
dispositivo dos antigos hipocaustos e termas orientais… Riemer
acreditou, em Ratisbona, que o estudo das leis do equilíbrio
permitiria construir, tanto para os tempos de guerra quanto de paz,
veículos que flutuassem no ar e se locomovessem debaixo d’água.
Nossa pólvora para canhões, que relega ao nível de brinquedos de
crianças os explosivos de Alexandre, nasceu assim das
especulações de um cérebro…
— Alto lá — protestou Henrique-Maximiliano. — Quando nossos
pais acenderam o estopim pela primeira vez, julgou-se que a
ruidosa descoberta iria subverter a arte da guerra e abreviar os
combates por falta de combatentes. Não é nada disso, por Deus!
Mata-se demais (e tenho minhas dúvidas de que esse demais é
ainda mais) e meus soldados manuseiam o arcabuz em lugar da
balestra. Mas a velha coragem, a velha covardia, a velha astúcia, a
velha disciplina e a velha insubordinação continuam a ser o que
eram, e com elas a arte de avançar, de recuar ou de ficar onde se
está, de infundir o medo e de parecer não senti-lo. Nossos homens
de guerra insistem ainda em plagiar Aníbal e em compulsar Vegécio.
Continuamos, como outrora, a nos arrastar atrás do traseiro dos
mestres.
— Há muito tempo sei que uma onça de inércia vale mais do que
um alqueire de sabedoria — retrucou Zênon de mau humor. — Não
ignoro que a ciência seja para vocês, príncipes, apenas um arsenal
de expedientes menos sérios do que seus torneios, seus penachos
e suas cartas de mercê. E no entanto, irmão Henrique, conheço aqui
e ali, nos vários cantos da Terra, cinco ou seis indigentes mais
loucos, mais desprovidos e mais suspeitos do que eu, e que
sonham em segredo com um poder mais terrível do que todos
aqueles que detém o César Carlos. Se Arquimedes tivesse um
ponto de apoio, teria não apenas conseguido erguer o mundo, mas
o lançado ao abismo como uma concha estilhaçada… E para ser
franco, em Argel, quando das bestiais atrocidades turcas, ou ainda
diante do espetáculo promovido pelas loucuras e furores que por
toda parte tumultuavam nossos reinos cristãos, eu me disse mais de
uma vez que custear, instruir, enriquecer ou instrumentar nossa
espécie não passava talvez de uma tácita aceitação da
mediocridade na desordem universal que implantamos, e que será
de bom grado, e não por desgraça, que um Faetonte possa um dia
atear fogo à Terra. Quem sabe se algum cometa não acabará por
sair de nossos alambiques? Quando percebo até que ponto nos
levam nossas especulações, irmão Henrique, quase não me
surpreendo de que nos queimem.
E erguendo-se de súbito:
— Fui informado de que as perseguições causadas por meus
Prognósticos tornaram-se agora mais ferozes. Nada se decidiu
ainda contra mim, mas os próximos dias exigem que eu esteja
prevenido. Raramente durmo nesta oficina, preferindo passar a noite
nas mais inviáveis hospedarias. Vamos sair juntos, mas se você
perceber a olhadela de certos curiosos, tenha o bom senso de
afastar-se de mim logo na soleira da porta.
— Por quem me toma você? — disse o capitão, demonstrando
talvez mais desenvoltura do que possuía.
E tornou a abotoar sua túnica, praguejando contra os espiões que
metiam o nariz nos assuntos de outrem. Zênon vestiu o sobretudo
que acabara de secar. Antes de sair, os dois dividiram o que restara
do vinho no fundo de uma bilha. O alquimista fechou a porta e
escondeu a enorme chave debaixo de uma viga onde o criado
saberia encontrá-la. A chuva cessara. Caía a noite, mas os tíbios
reflexos do poente dardejavam ainda sobre a neve que deslizara
havia pouco das encostas das montanhas sobre a ardósia dos tetos
cinzentos. Sem deter o passo, Zênon perscrutava as esquinas
sombrias.
— Estou curto de dinheiro — disse o capitão. — Mas se precisar
de algum…
— Não, irmão — disse o alquimista. — Em caso de perigo, o
Núncio me proverá do que for preciso para fazer as trouxas. Guarde
os trocados para aliviar seus próprios males.
Uma carruagem escoltada por guardas, que sem dúvida conduzia
alguma ilustre personalidade ao palácio imperial de Ambras,
assomou com estrépito ao fundo da rua estreita. Eles se encolheram
para dar-lhe passagem. O barulho passou; disse Henrique intrigado:
— Nostradamus em Paris predisse o futuro e exerce em paz sua
medicina. O que censuram em você?
— Ele confessa que o faz graças a uma ajuda de cima e de baixo
— comentou o filósofo, limpando os salpicos de lama com o avesso
da manga. — Esses senhores, ao que tudo indica, consideram
ainda mais ímpia a hipótese que se apresenta sem qualquer
disfarce e a ausência de todo aparato de anjos ou demônios nos
caldeirões que borbulham… Depois, as estrofes de Michel de Notre-
Dame, as quais não desprezo, mantêm acesa a curiosidade dos
loucos através do anúncio de calamidades públicas e de mortes
reais. Quanto a mim, as presentes preocupações do Rei Henrique II
tocam-me muito pouco para que eu tente projetar seu futuro êxito…
Ocorreu-me uma ideia durante as viagens que realizei: à força de
percorrer as estradas do espaço, de saber Aqui que o Lá me
aguardava, conquanto para ali ainda não me dirigisse, decidi
aventurar-me à minha maneira pelos itinerários do tempo. Abolir o
abismo entre a predição categórica do calculador de eclipses e o
diagnóstico já mais flutuante do médico, arriscar-me cautelosamente
a amparar a premonição e a conjectura uma na outra, traçar
naquele continente onde ainda não vivemos a carta dos oceanos e
das terras já emersas… Essa tentativa exauriu-me.
— Caberá a você o mesmo destino do Doutor Fausto das
marionetes de feira — disse por gracejo o capitão.
— Qual o quê! — replicou o alquimista. — Deixe às velhas essa
fábula ingênua do pacto e da perdição do douto doutor. Um Fausto
de fato teria outras opiniões sobre a alma e o Inferno.
Os dois já não se preocupavam mais em evitar as poças e
margeavam agora o cais, tendo Henrique-Maximiliano se aboletado
próximo à ponte. Súbito:
— Onde passará você a noite? — perguntou.
Zênon lançou um olhar de esguelha ao companheiro:
— Não sei ainda — disse circunspecto.
E de novo reinou o silêncio. De repente, Henrique-Maximiliano se
deteve, tirou do bolso um caderninho de notas e começou a ler à luz
de uma vela colocada por detrás de um grande globo cheio de água
defronte à vitrine de um ourives que trabalhava até mais tarde nessa
noite:
… Stultissimi, inquit Eumolpus, tum Encolpii, tum Gitonis
aerumnae, et precipue blanditiarum Gitonis non immemor, certe
estis vos qui felices esse potestis, vitam tamen aerumnosam degitis
et singulis diebus vos ultro novis torquetis cruciatibus. Ego sic
semper et ubique vixi, ut ultimam quamque lucem tanquam non
redituram consumarem, id est in summa tranquillitate…
— Deixe-me traduzir isso — disse o capitão —, pois penso que,
para você, o latim da farmácia expurgou o outro. Esse velho
debochado, Eumolpo, dirige aos dois pequenos, Encolpo e Giton,
propostas que julguei dignas de serem recolhidas em meu breviário:
“Tolos que vocês são, disse Eumolpo, lembrando-se dos males de
Encolpo e de Giton, e sobretudo das gentilezas deste último. Vocês
poderiam ser felizes e, não obstante, levar uma vida miserável,
submetidos cada dia a uma tortura pior que a da véspera. Quanto a
mim, vivi cada vinte e quatro horas como se o dia que eu estivesse
vivendo devesse ser o último, isto é, com toda a tranquilidade.”
Petrônio — explicou ele — é um dos meus santos intercessores.
— O bonito da coisa — aprovou Zênon — é que seu autor nem
sequer imagina que o último dia de um sábio possa ser vivido de
outra forma que em paz. Faremos o possível para nos lembrar disso
quando chegar a nossa hora.
Após dobrar uma esquina, os dois desembocaram diante de uma
capela iluminada onde se celebrava uma novena. Zênon dispôs-se a
entrar.
— Que irá fazer você no meio desses carolas? — perguntou o
capitão.
— Já não lhe expliquei? — respondeu Zênon. — Tornar-me
invisível.
E esgueirou-se para trás da cortina de couro que pendia do pórtico
do templo. Henrique-Maximiliano demorou-se por um instante, deu
meia-volta e afastou-se assobiando seu velho refrão:

Éramos dois companheiros


Que íamos para além dos montes.
Pensávamos ter boa acolhida…

Já em casa, encontrou uma mensagem do Senhor Strozzi dando


por findas as investigações secretas relativas aos assuntos
sienenses. Henrique-Maximiliano julgou que os eventos eram
favoráveis à guerra, ou talvez seus serviços houvessem
desagradado ao marechal florentino, levando assim Sua Excelência
a convocar outro agente. Durante a noite a chuva recomeçou,
seguindo-se pouco depois uma nevasca. Pela manhã, as malas já
prontas, o capitão partiu à procura de Zênon.
As casas vestidas de branco faziam pensar em rostos que
escondessem seus segredos sob a uniformidade de uma cogula.
Henrique-Maximiliano reencontrou com prazer O Cordeiro de Ouro,
cujo vinho era bom. O taberneiro convidou-o para um trago,
informando-o de que o criado de Zênon viera pela manhã devolver a
chave e pagar o aluguel da oficina. Por volta do meio-dia um oficial
da Inquisição encarregado de prender Zênon solicitou ao taberneiro
que lhe prestasse ajuda. Mas sem dúvida um demônio preveniu a
tempo o alquimista. Nada encontrou-se em sua casa de mais
insólito que uma pilha de frascos de vidro cuidadosamente
estilhaçados.
Henrique-Maximiliano levantou-se precipitadamente, deixando
sobre a mesa a sua paga. Alguns dias depois, ganhava ele outra
vez a Itália pelo Vale do Brenner.
A carreira de Henrique-Maximiliano

Ele brilhara em Cérisoles, aí defendendo algumas precárias


fortificações milanesas com tanto gênio, agradava-lhe dizer, quanto
revelara o falecido César para impor-se como senhor do mundo;
Blaise de Montluc não escondia ser-lhe grato por suas belas
palavras que falavam ao coração dos homens. Sua vida se resumira
em servir alternadamente ao Rei Cristianíssimo e ao Rei Católico,
mas a alegria francesa se casava melhor com seu humor. Poeta, ele
se desculpava pela fragilidade de suas rimas, alegando as
preocupações que lhe custavam as campanhas militares; capitão,
explicava seus erros táticos invocando a poesia que lhe povoava o
cérebro; estimado alhures tanto por um quanto por outro ofício, a
reunião de ambos jamais lhe trouxera qualquer fortuna. Suas
andanças pela Península desiludiram-no da Ausônia de seus
sonhos; aprendera a desconfiar das cortesãs romanas depois de se
haver divertido à mesa com elas, e a escolher com cuidado os
melões nas barracas do Trastevere, atirando negligentemente suas
cascas verdes às águas do Tibre. Não ignorava que o Cardeal
Maurício Caraffa não o tinha senão na conta de soldado
absolutamente medíocre, a quem, em tempos de paz, se concedia a
esmola de um posto mal-remunerado de capitão da guarda; sua
amante Vanina, em Nápoles, conseguira manhosamente arrancar-
lhe uma boa soma para uma criança que talvez não fosse dele;
pouco importava. Madame Renata de França, cujo palácio era o
Hospital dos Deserdados, lhe teria oferecido de boa vontade uma
sinecura em seu Ducado de Ferrara, mas ela aí acolhia o primeiro
esfarrapado que lhe aparecesse, contanto que o mesmo com ela se
embriagasse bebendo o vinho picante dos Salmos. O capitão nada
tinha a ver com essas pessoas. Vivia cada vez mais com sua
soldadesca e exatamente como ela, vestindo toda manhã a túnica
remendada com o mesmo prazer de quem revê um velho amigo,
admitindo alegremente não banhar-se senão com a água da chuva,
dividindo, com sua malta de aventureiros picardos, mercenários
albaneses e exilados florentinos, o toucinho rançoso, a palha
mofada e as carícias do vira-latas que os acompanhava. Contudo,
essa vida rude não era desprovida de deleites. Restavam-lhe o
amor pelos belos nomes antigos que dignificam o mais insignificante
rincão da Itália com o ouro em pó ou os despojos purpúreos de uma
grande recordação; o prazer de deambular pelas ruas — ora à
sombra, ora ao sol —, de interpelar em toscano uma bela jovem, à
espera de um beijo ou de uma rajada de injúrias, de beber nas
fontes deixando que seus dedos respingassem as gotículas sobre
as lajes empoeiradas, ou, ainda, de decifrar de soslaio uma fímbria
de inscrição latina ao mijar distraidamente sobre um marco de
pedra.
Não herdara ele da opulência paterna senão algumas partes da
refinaria de Maestricht, cujos dividendos raramente encontravam o
caminho de seus bolsos, e um dos menores latifúndios da família,
um certo lugar chamado de Lombardia, em Flandres, cujo nome por
si só fazia rir aquele homem que tivera o privilégio de percorrer de
cima a baixo toda a verdadeira Lombardia. Os capões e os feixes de
lenha daquela senhoria serviriam para alimentar os fornilhos e a
fogueira de seu irmão; era isso mesmo: aos dezesseis anos,
renunciara alegremente ao seu direito de primogenitura em troca do
prato de lentilhas do soldado. As breves e cerimoniosas cartas que
por vezes recebia do irmão menor quando de um falecimento ou de
uma boda, concluíam sempre, é verdade, por ofertas de ajuda em
caso de necessidade, mas Henrique-Maximiliano sabia muito bem
que, quando as formulava, ninguém ignorava em absoluto que
antecipadamente ele já se precavera contra elas. Filisberto Ligre,
aliás, quase nunca deixava de aludir às enormes obrigações e aos
vultosos desembolsos que lhe impunham o lugar de membro do
Conselho dos Países Baixos, de sorte que, afinal, era o capitão,
sempre imune a quaisquer deveres ou preocupações, que parecia
bancar o homem rico e, no caso de penúria dos cofres, o único
responsável pelo ouro do qual teria sido vergonhoso tirar uma parte.
O soldado de fortuna visitou os seus apenas uma única vez. Muito
o exibiram então, como se fosse o caso de asseverar a todos que,
no fim das contas, aquele filho pródigo era ainda apresentável. O
próprio fato de que esse agente secreto do Marechal de Estrosse
estivesse há pouco sem emprego tangível e sem qualquer patente
militar conferia-lhe uma espécie de prestígio, como se este se
tornasse considerável à força da obscuridade. Os alguns anos que o
separavam de seu irmão mais moço o convertiam, e ele o sabia, em
relíquia de uma outra época; Henrique-Maximiliano julgava-se algo
primitivo ao lado daquele homem jovem, prudente e gelado. Pouco
antes de sua partida, Filisberto lhe confidenciou que o Imperador, a
quem as fitas da coroa não custavam caro, outorgaria de bom grado
um título às terras da Lombardia caso os talentos militares e
diplomáticos do capitão fossem doravante postos a serviço do único
Sacro Império. Sua recusa ofendeu: supondo-se que Henrique-
Maximiliano desdenhasse arrastar atrás de si uma cauda de tais
proporções, o título em pauta se anexaria à galeria de antigas
glórias da família. Henrique-Maximiliano sugeriu ao irmão que
enfiasse essas glórias onde bem lhe aprouvesse. Ele já não
suportava mais os esplêndidos forros lavrados do patrimônio de
Steenberg, que seu irmão caçula preferia agora aos de Dranoutre,
mais antiquados, mas cujas pinturas de temas extraídos à mitologia
pareciam grosserias a esse homem habituado ao que de mais fino
havia na arte italiana. Para ele, já era mais do que suficiente ver sua
enfadonha cunhada adornada de joias, assim como o bando das
irmãs e cunhados estabelecidos nos solares da vizinhança, com
suas crianças endiabradas trazidas sempre no freio por trêmulos
preceptores. As pequenas desavenças, as intrigas, os insípidos
compromissos que povoavam o pensamento daquelas pessoas
faziam-no reavaliar a sociedade dos soldados e das vivandeiras, na
qual, pelo menos, se podia praguejar e arrotar sem problemas, e
que era, quando muito, uma escuma, e não uma escumalha
dissimulada.
Do Ducado de Módena, onde seu companheiro Lanza del Vasto
conseguira arranjar-lhe emprego, mas onde a manutenção da paz
lhe custava os últimos trocados, Henrique-Maximiliano espreitava o
resultado de suas negociações relativas aos assuntos toscanos:
finalmente induzidos pelos agentes de Strozzi a se rebelarem contra
as tropas imperiais, os patriotas sienenses imediatamente
contrataram uma guarnição francesa encarregada de defendê-los
contra Sua Majestade Germânica. Henrique retornou ao serviço do
Senhor de Montluc: afinal, um posto equivalia a um ganho
inesperado que não se podia desprezar. O inverno era rigoroso;
sobre as muralhas das praças fortificadas, os canhões amanheciam
cobertos por um delgado lençol de gelo; as azeitonas e a camada
coriácea que revestia as parcas rações salgadas repeliam o apetite
dos franceses. O Senhor de Montluc só se apresentava em público
depois de borrifar com vinho suas bochechas macilentas, como um
ator que se polvilha de talco antes de entrar em cena, e dissimulava
sob o dorso da mão enluvada os bocejos da fome. Henrique-
Maximiliano dizia em versos burlescos como enfiar no espeto do
churrasco a própria Águia imperial; na verdade, tudo aquilo não
passava de artifícios e réplicas teatrais, como se vê em Plauto ou
nos espetáculos de feira dos comediantes e saltimbancos de
Bérgamo. A Águia devoraria mais uma vez os pequenos gansos
italianos após haver aplicado aqui e ali bons golpes ao presunçoso
galo francês; alguns bravos morreriam, o que era de seu ofício; o
Imperador faria entoar um Te Deum pela vitória de Siena; e novos
empréstimos, negociados tão sabiamente quanto um tratado entre
dois príncipes soberanos, submeteriam ainda mais Sua Majestade à
Casa Ligre (que, aliás, já há alguns anos adotara discretamente
outro nome) ou a algum escritório rival de Anvers ou da Alemanha.
Vinte e cinco anos de guerra e de paz armada haviam ensinado ao
capitão em que consiste o avesso das cartas.
Contudo, esse flamengo subnutrido deslumbrava-se com os jogos,
os risos, os cortejos galantes das damas da nobreza sienense que
desfilavam na praça fantasiadas de Ninfas ou de Amazonas em
cotas de cetim rosa. As fitas de seda, os pendões coloridos, as
saias deleitosamente levantadas pelo vento norte que rodopiava nas
esquinas de ruas sombrias semelhantes a trincheiras, reanimavam
as tropas e, em menor grau, os burgueses desconcertados pelo
marasmo dos negócios e pelo custo de vida. O Cardeal de Ferrara
punha nas nuvens a Signora Fausta, se bem que a tramontana
exibisse a pele arrepiada de suas generosas espáduas desnudas; o
Senhor de Ternes fixava o preço da Signora Fortinguerra, que, do
alto das muralhas fortificadas, exibia gloriosamente ao inimigo suas
esguias pernas de Diana; Henrique-Maximiliano estava enfeitiçado
pelas tranças louras da Signora Piccolomini, beleza orgulhosa,
conquanto desfrutasse sem constrangimentos sua doce condição de
viúva. Ele se prendera a essa deusa por uma arfante paixão de
homem maduro. Quando das bazófias ou das confidências, o
homem d’armas não se privava de adotar entre esses senhores o ar
discretamente glorioso de amante satisfeito, ou seja, aquele
mosaico de trejeitos ineptos cujo valor ninguém ignora, mas que se
aceitam entre companheiros que haverão de querer também ser
caridosamente ouvidos no dia em que porventura desejarem
vangloriar-se de ilusórias conquistas. Ele sabia, contudo, que a bela
viúva zombava dele com seus pretendentes. Jamais fora belo, como
tampouco era jovem; o sol e o vento davam à sua tez os tons
recozidos de um tijolo sienense; sentado aos pés de sua dama, em
transe amoroso, ocorria-lhe por vezes que as artimanhas de
enamorado, de um lado, e de coquette, de outro, não pareciam
menos tolas do que as de dois exércitos que se defrontassem, e
que, na verdade, seria de todo preferível vê-la nua abraçada a um
jovem Adônis igualmente nu, ou então entregar-se aos pequenos
prazeres com uma criada qualquer, do que fazer com que aquele
esplêndido corpo aceitasse o inaceitável peso do seu. À noite,
porém, deitado sob seus ralos cobertores, ele se lembrava de
repente de um pequeno movimento daquela mão esguia coberta de
anéis, um jeito bem dela de arrumar os cabelos, e, reacendendo a
vela, Henrique-Maximiliano escrevia, lanceado de pungentes
ciúmes, versos complicados.

Um dia em que as despensas de Siena estavam ainda mais vazias


— se é que o poderiam estar — do que de costume, ele ousou
presentear sua loura Ninfa com algumas fatias de um presunto
adquirido após grandes dificuldades. A jovem viúva estava reclinada
em seu leito, protegida do frio por uma colcha, brincando
distraidamente com a borla de ouro de uma almofada. Ela se
endireitou, as pálpebras de súbito um pouco trêmulas, e
rapidamente, com um gesto quase furtivo, inclinou-se para o doador
e beijou-lhe as mãos. Ele sentiu um frêmito de felicidade que jamais
lhe proporcionaram as mais arrebatadas ternuras de sua eleita. E
saiu mansamente para deixá-la comer em paz.

Ele se perguntara amiúde de que forma e em que circunstâncias


morreria: de um tiro de arcabuz que o deixaria esfacelado numa
poça de sangue, o corpo depois solenemente conduzido entre os
pomposos farrapos das lanças espanholas, lastimado pelos
príncipes e pranteado por seus irmãos de armas, enterrado afinal
sob uma eloquente inscrição latina ao pé de um muro de igreja; de
um golpe de espada durante um duelo em defesa da honra de sua
dama; de uma facada numa rua sombria; de uma recaída da sífilis
contraída em outros tempos; ou, ainda, já ultrapassada a cota dos
sessenta, de um ataque apoplético em algum castelo onde teria
arranjado um lugar de escudeiro para terminar seus dias? Anos
antes, quando vítima da malária, resmungando sobre o catre de
uma estalagem em Roma, a dois passos do Panteão, ele se
consolara com a circunstância de vir a morrer naquele país de
paixões febris, imaginando que, depois de tudo, os mortos estariam
ali em melhor companhia do que alhures; aqueles pedestais de
abóbadas entrevistas de sua lucarna, ele os povoara de águias,
colunas derruídas, veteranos em lágrimas, tochas que iluminavam
os funerais de um imperador que não era propriamente ele, mas
uma espécie de grande homem de cuja essência participava.
Através dos dobres dos sinos da febre terçã, acreditara ouvir o som
de lancinantes pífanos e de solenes trombetas que anunciavam ao
mundo o trespasse do príncipe; ele sentira em seu próprio corpo o
fogo que consome o herói e o conduz ao céu. Aqueles mortos,
aquelas exéquias imaginárias foram sua verdadeira morte, seu
verdadeiro enterro. Henrique-Maximiliano sucumbiu durante uma
expedição forrageira na qual seus cavaleiros se empenharam em
destruir, a dois passos das muralhas fortificadas, um celeiro em mau
estado de conservação; o cavalo do capitão resfolegava
alegremente sobre o solo atapetado de ervas secas; o ar fresco de
fevereiro estava agradável sobre as encostas das colinas, em
comparação com o das ruas de Siena, sempre obscuras e varridas
pelo vento. Um ataque inesperado das tropas imperiais pôs em
debandada o inimigo, que deu meia-volta e fugiu em direção às
muralhas; Henrique-Maximiliano perseguiu seus comandados sob
uma chuva de pragas e blasfêmias. Uma bala o atingiu à altura da
espádua; ao cair, sua cabeça chocou-se contra uma pedra. Ainda
teve tempo de sentir o espasmo que lhe sacudiu o corpo, mas não a
morte. Sua montada caracoleou sem rumo pelos campos, onde um
espanhol a capturou, levando-a a passo miúdo para o acampamento
de César. Dois ou três soldados partilharam entre si as armas e as
roupas do defunto. Trazia ele no bolso da túnica surrada o
manuscrito de seu Emblema do corpo feminino; essa coletânea de
pequenos versos impregnados de ternura e alegria, com a qual
esperava ele alcançar um pouco de glória, ou pelo menos algum
sucesso junto às damas, terminou no fundo de uma vala,
amortalhada com ele sob algumas pás de terra. Uma divisa que ele
gravara nem bem nem mal em honra da Signora Piccolomini
permaneceu por muito tempo visível sobre as bordas do poço de
Fontebranda.
As últimas viagens de Zênon

Era uma dessas épocas em que a razão humana se encontra


aprisionada em um círculo de chamas. Após escapar de Innsbruck,
Zênon vivera algum tempo confinado em Wurzburg em companhia
de seu discípulo Bonifácio Kastel, que praticava a arte hermética
numa casinha às margens do Meno, cujos glaucos reflexos
inundavam as vidraças. Mas a inércia e a imobilidade lhe pesavam,
e Bonifácio não era em absoluto homem de se arriscar muito tempo
por um amigo em perigo. Zênon partiu então para a Turíngia e, em
seguida, foi até a Polônia, onde se engajou como cirurgião nos
exércitos de Sigismundo, que se preparava, com a ajuda dos
suecos, para expulsar os moscovitas da Curlândia. Ao fim de dois
invernos de campanha, a curiosidade por novas plantas e novos
climas levou-o a embarcar para a Suécia em companhia de um
certo Capitão Guldenstarr, que o apresentou a Gustavo Vasa. O Rei
andava à procura de um homem de arte capaz de aliviar as dores
que lhe deixavam no corpo alquebrado a umidade dos campos e o
frio das noites passadas sobre o gelo quando dos tempos
aventurosos de sua juventude, as sequelas de antigos ferimentos e
do mal-francês. Zênon ratificou seu talento ao preparar uma poção
revigorante para o monarca, aborrecido de haver festejado o Natal
com sua jovem terceira esposa no Castelo de Vadstena. Por todo o
inverno, com os cotovelos fincados no peitoril de uma alta janela,
entre o céu frio e as planuras geladas do lago, dedicou-se ele a
compulsar as posições das estrelas susceptíveis de trazer a
felicidade ou o infortúnio à casa dos Vasas, ajudado nessa tarefa
pelo jovem Príncipe Érico, que nutria pelas ciências ocultas uma
fome doentia. Inutilmente, Zênon o fazia ver que os astros
influenciam nossos destinos, mas não os decidem, e que tão
pujante e misterioso quanto aqueles, pois que regula nossa vida e
obedece a leis mais complexas do que as nossas, é o astro
vermelho que pulsa na noite do corpo, suspenso em seu cárcere de
carne e ossos. Érico, porém, era daqueles que preferem receber
seu destino de fora, fosse por orgulho, pois achava belo que o
próprio céu se ocupasse de sua sorte, fosse por indolência, para
não ter de responder nem pelo bem nem pelo mal que trazia em si.
Acreditava nos astros da mesma forma que, a despeito da fé
reformada que recebera do pai, orava aos santos e aos anjos.
Seduzido pela tentação de exercer influência sobre uma alma da
realeza, o filósofo testava aqui e ali o efeito de uma instrução, de um
conselho, mas os pensamentos alheios como que submergiam num
lodaçal dentro do jovem cérebro que dormia por detrás daqueles
pálidos olhos cinzentos. Quando o frio se tornava quase intolerável,
o discípulo e o filósofo se achegavam ao enorme fogo cativo sob o
pano da chaminé da lareira, e Zênon nunca deixava de maravilhar-
se com o fato de que o calor benfazejo, o demônio domesticado que
aquecia docilmente uma caneca de cerveja colocada sobre as
cinzas, fosse o mesmo deus inflamado que circula nos céus. Em
outras noites, Érico não aparecia, ocupado com seus irmãos em
beber nas tabernas em companhia de mundanas, e o filósofo, caso
os prognósticos daquela noite se revelassem funestos, os corrigia
então com um dar de ombros.
Poucas semanas antes da festa de São João, ele se permitiu
interromper por algum tempo suas funções e subir outra vez rumo
ao Norte, a fim de observar por si mesmo os efeitos do dia polar.
Ora a pé, ora a cavalo ou de barco, Zênon errou de paróquia em
paróquia, fazendo-se entender graças à língua do pastor em cuja
casa sobrevivia ainda o uso do latim eclesiástico, recolhendo por
vezes fórmulas eficazes junto aos curandeiros de aldeia que
conheciam as virtudes das ervas e dos musgos da floresta, ou entre
os nômades que tratavam suas doenças com banhos, fumigações e
a interpretação de sonhos. Tão logo regressou à corte de Upsala,
onde Sua Majestade Sueca abria a assembleia de outono, Zênon se
apercebeu de que o ciúme de um confrade alemão o havia
indisposto com o Rei. O velho monarca temia que seus filhos
utilizassem os cômputos astrológicos de Zênon para calcular
exatamente a duração da vida do pai. Zênon contava com o apoio
do herdeiro do trono, que dele se fizera amigo e quase discípulo,
mas, quando reencontrou Érico por acaso num dos corredores do
castelo, o jovem príncipe cruzou por ele sem vê-lo, como se o
filósofo houvesse adquirido subitamente o poder de tornar-se
invisível. Zênon embarcou em segredo num navio de pesca do Lago
Malar, através do qual alcançou Estocolmo e, daí, Kalmar,
navegando em seguida para a Alemanha.
Pela primeira vez na vida, sentia a necessidade de conservar os
pés dentro do traçado de seus passos, como se sua existência se
movesse ao longo de uma órbita preestabelecida, à semelhança das
estrelas errantes. Lübeck, onde já exercera com sucesso a
medicina, reteve-o apenas por alguns meses. Adviera-lhe o desejo
de imprimir em França suas Proteorias, das quais se ocupara de
modo intermitente a vida inteira. O filósofo não se preocupava com o
fato de expor aí uma doutrina qualquer, e sim com o de estabelecer
uma nomenclatura dos conceitos e juízos humanos, indicando-lhes
os vínculos com o acaso, os encaixes, os secretos tangenciamentos
e latentes conexões. Em Lovaina, onde interrompeu seu itinerário,
ninguém o reconheceu sob o nome de Sebastião Theus, no qual
extravagantemente se disfarçara. Tal como os átomos de um corpo
que incessantemente se renova, embora guarde até o fim suas
matrizes e verrugas, os mestres e discípulos haviam mudado por
mais de uma vez, mas o que Zênon ouviu, ao aventurar-se numa
sala de aula, não lhe pareceu muito distinto daquilo que ali outrora
havia impacientemente — ou, ao contrário, febrilmente — escutado.
De nada lhe valeria observar, numa passamanaria recentemente
instalada nos arredores de Audernade, máquinas em tudo
semelhantes às que construíra na juventude com Colas Gheel e que
funcionavam ao gosto dos interessados. Mas escutou com
indisfarçável curiosidade a descrição detalhada que lhe fez um
algebrista da faculdade. Esse professor, que por exceção não
desprezava os problemas práticos, convidou o sábio estrangeiro
para o jantar e o manteve à noite sob seu teto.
Em Paris, Ruggieri, que Zênon revira outrora em Bolonha,
acolheu-o de braços abertos; o factótum da Rainha Catarina
procurava um assistente firme, capaz de assumir o compromisso de
responder por ele em caso de perigo e de ajudá-lo a medicar os
jovens príncipes ou predizer-lhes o futuro. O italiano levou Zênon ao
Louvre para apresentá-lo à sua real senhora, a quem se dirigia no
idioma de seu país, não sem dispensar-lhe mesuras e sorrisos
forçados. A Rainha examinou o estrangeiro com seus olhos
faiscantes, dos quais se valia com habilidade, assim como, ao
gesticular, se comprazia em fazer cintilar os diamantes que trazia
nos dedos. Suas mãos acetinadas por pomadas, um pouco
intumescidas, agitavam-se como marionetes no regaço de seda
negra. Ela deixou cair sobre o rosto o sucedâneo de um véu de
crepe ao falar do acidente fatal que três anos antes causara a morte
do finado monarca:
— Tivesse eu compreendido melhor seus Prognósticos, nos quais
vejo agora cálculos sobre a duração da vida comumente outorgada
aos príncipes! E teríamos talvez evitado ao falecido Rei o ferro da
lança que me tornou viúva… Porque penso — acrescentou ela com
graça — que o senhor tem parte nessa obra dita perigosa pelos
cérebros fracos e que se atribui a um certo Zênon.
— Falemos como se eu fosse este Zênon — disse o alquimista. —
Speluncam exploravimus… [34] Vossa Alteza sabe tanto quanto eu
que o futuro está prenhe de uma ninhada de ocorrências mais
numerosas do que pode dar à luz. E não é de modo algum
impossível ouvir mexer algumas delas no fundo do útero do tempo.
Mas só o acontecimento decide qual dessas larvas é viável e chega
a bom termo. Jamais negociei rebentos prematuros no mercado das
catástrofes e das venturas.
— Depreciava assim sua arte junto à Sua Majestade Sueca?
— Não tenho por que mentir à mais sagaz mulher de França.
A Rainha sorriu.
— Parla per divertimento — protestou o italiano algo inquieto de
ver um companheiro aviltar sua ciência. — Questo honorato viatore
ha studiato anche altro che cose celes’ti; sa le virtudi di veleni e
piante benefiche di altre parti che possano sanare gli accessi
auricolari del Suo Santissimo Figlio. [35]
— Posso drenar um abscesso, mas não curar o jovem Rei — disse
laconicamente Zênon. — Vi de longe Sua Majestade na galeria à
hora da audiência: não é preciso muita arte para reconhecer a tosse
e a transpiração de um doente dos pulmões. O céu felizmente lhe
deu mais de um filho.
— Deus nô-lo conserve! — exclamou a Rainha, fazendo
maquinalmente o sinal da cruz. — Ruggieri colocará o senhor perto
do Rei, e contamos com seu talento para aliviar pelo menos em
parte os sofrimentos dele.
— Quem aliviará os meus? — perguntou asperamente o filósofo.
— A Sorbonne ameaça impedir a divulgação de minhas Proteorias,
que nesse momento um editor da Rua de São Tiago imprime. Pode
a Rainha evitar que a fumaça de meus escritos queimados em praça
pública venha incomodar-me em meu pobre alojamento do Louvre?
— Aqueles senhores da Sorbonne condenariam minhas
intervenções em suas querelas — respondeu evasivamente a
italiana.
Antes de dispensá-lo, informou-se longamente sobre as condições
do sangue e das vísceras do Rei da Suécia. A soberana pensava às
vezes em casar um de seus filhos com uma princesa do Norte.

Tão logo concluída a visita ao pequeno Rei enfermo, os dois


saíram juntos do Louvre e rumaram para o cais. Sempre
caminhando, o italiano vertia um fluxo de anedotas da corte.
Preocupado, Zênon interrompeu-o:
— Conto com você para certificar-me de que esses emplastros
sejam aplicados durante cinco dias seguidos à pobre criança.
— Não fará você mesmo isso? — indagou surpreso o charlatão.
— Claro que não! Não vê que ela não levantará sequer um dedo
para livrar-me do perigo a que me levaram minhas obras? Não
almejo a honra de ser detido na comitiva dos príncipes.
— Peccato! [36] — disse o italiano. — Sua aspereza saberia
agradar.
E de súbito, detendo-se em meio à multidão, segurando o
companheiro pelo braço e baixando a voz:
— E questi valeni? Sarà vero che ne abbia tanto e quanto? [37]
— Não me faça crer que a opinião pública tem razão quando o
acusa de enviar desta para melhor os inimigos da Rainha!
— Puro exagero — pilheriou Ruggieri. — Mas por que Sua
Majestade não teria seu arsenal de venenos assim como tem seus
arcabuzes e bombardas? Considere que ela é viúva, estrangeira em
França, tratada de Jezebel pelos luteranos, de Herodíade pelos
católicos, e que tem cinco filhos menores para criar.
— Que Deus a proteja! — replicou o ateu. — Se me recuso a usar
venenos, é para o meu bem, e não para o da Rainha.

Não obstante, Zênon instalou-se na casa de Ruggieri, cuja


loquacidade parecia distraí-lo. Desde que Etienne Dolet, seu
primeiro editor, fora estrangulado e lançado ao fogo por suas
opiniões subversivas, o filósofo não mais publicara em França. Ele
mesmo acompanhava com muito mais cuidado a impressão de seu
livro numa oficina da Rua de São Tiago, corrigindo aqui e ali uma
palavra, ou uma noção expressa por uma palavra, eliminando uma
ambiguidade ou, por vezes, contrariado, aduzindo uma outra que lhe
era oposta. Uma noite, à hora da ceia, que ele saboreava sozinho
na casa de Ruggieri, enquanto o italiano cumpria seus afazeres no
Louvre, Mestre Langelier, seu atual editor, chegou sobressaltado
para informá-lo de que, decididamente, fora expedida uma ordem no
sentido de suspender a tiragem das Proteorias e destruí-la pela mão
do carrasco. O negociante lastimava a perda de suas mercadorias
sobre as quais inutilmente a tinta secava. Uma epístola com uma
dedicatória à Rainha-Mãe poderia talvez reparar tudo à última hora.
Durante toda a noite, Zênon escreveu, rasurou, escreveu
novamente, outra vez rasurou. De manhãzinha, levantou-se de sua
cadeira, espreguiçou-se, bocejou e lançou ao fogo as folhas e a
pena de que se servira.
Mal teve tempo de arrumar algumas roupas e o estojo de médico,
tendo sido o resto de sua bagagem cautelosamente deixado em
Senlis numa água-furtada de hospedaria. Ruggieri ressonava no
sótão entre os braços de uma jovem. Zênon enfiou por debaixo da
porta do amigo um bilhete no qual anunciava sua partida para o
Languedoc. Na verdade, optara por regressar a Bruges e aí deixar-
se esquecer.
Um objeto trazido da Itália pendia da parede do estreito vestíbulo.
Era um espelho florentino emoldurado em escamas, formado pela
combinação de uma vintena de espelhinhos convexos, semelhantes
às células hexagonais das colmeias das abelhas, cada um por sua
vez incluso em sua minúscula moldura circular, que um dia fora a
carapaça de um animal vivo. Sob o reflexo grisalho de uma aurora
parisiense, Zênon contemplou-o. E nele percebeu vinte figuras
reduzidas e refletidas pelas leis da óptica, vinte imagens de um
homem com um gorro de peliça, de tez argilosa e macilenta, de
olhos cintilantes que eram, eles próprios, espelhos. Esse homem em
fuga, encerrado num mundo que de fato era o seu, apartado de
seus semelhantes que também fugiam em mundos paralelos,
recordou-lhe a hipótese de Demócrito: uma série infinita de
universos idênticos onde vive e morre uma série de filósofos
prisioneiros. Essa fantasia o fez sorrir amargamente. As vinte
pequenas personagens do espelho também sorriram, cada um para
si. Ele as viu depois virarem a cabeça até o meio e se
encaminharem para a porta.
Segunda parte
.

A vida imóvel
Obscurum per obscurius
Ignotum per ignotius

Divisa alquímica
Ir para o obscuro e o desconhecido
por aquilo que é ainda mais obscuro
e desconhecido.
O retorno a Bruges

Em Senlis, Zênon conseguiu lugar na carruagem do Prior dos


Franciscanos de Bruges, que regressava de Paris, onde fora assistir
ao capítulo geral de sua Ordem. Esse religioso era mais instruído do
que seu hábito poderia sugerir, curioso das pessoas e das coisas, e
de modo algum desprovido de um certo conhecimento do mundo; os
dois viajantes conversaram sem nenhum constrangimento,
enquanto os cavalos lutavam contra o áspero vento das planícies
picardas. Zênon pouco se preocupou em esconder ao companheiro
sua verdadeira identidade e as perseguições de que seu livro era
objeto; a fineza do prior era tal que seria cabível, aliás, perguntar-lhe
se não saberia mais em pensamento sobre o Dr. Sebastião Theus
do que julgou ele cortês que o percebessem. A travessia de Tournai
foi retardada pela presença de uma multidão que congestionava as
ruas; após colher algumas informações, pareceu-lhe que aquelas
pessoas se dirigiam para ver enforcar um certo alfaiate chamado
Adriano, convertido ao calvinismo. Sua mulher era igualmente
culpada, mas, como se considerasse indecente que uma criatura do
belo sexo ficasse dependurada em pleno céu com as saias
drapejando sobre a cabeça dos transeuntes, decidiu-se pelo antigo
costume de enterrá-la viva. Essa brutal estupidez horrorizou Zênon,
que, aliás, disfarçou a repulsa por detrás de uma impassível
máscara facial, pois tinha por regra jamais deixar transparecer seus
sentimentos relativamente a tudo o que se referisse às disputas
entre o Missal e a Bíblia. Embora detestasse convenientemente as
manifestações heréticas, o prior considerou o castigo algo rude, e
essa prudente observação fez com que se desencadeasse em
Zênon, com relação a seu companheiro de viagem, aquele impulso
quase excessivo de simpatia que causa a menor opinião moderada
expressa por um homem cuja posição ou indumentária não
autorizariam que dele se esperasse tanto.
A carruagem deslizou novamente em plena planície, e o prior
falava agora de outra coisa, que Zênon supunha ainda sufocar sob o
peso das pás de terra. De repente, ele se deu conta de que
transcorrera um quarto de hora e de que a criatura cujas angústias
sentia em seu espírito já deixara, ela própria, de senti-las.
Viam-se ao longe as grades e balaustradas da propriedade de
Dranoutre; o prior mencionou de passagem Filisberto Ligre, que, a
dar-se-lhe crédito, exercia agora uma influência quase absoluta no
Conselho da nova Regente, ou Governante, que conduzia os
destinos dos Países Baixos. Fazia já muito tempo que a opulenta
família Ligre deixara Bruges; Filisberto e sua mulher viviam quase
continuamente em sua propriedade de Pradelles, no Brabante, onde
se sentiam mais à vontade para desempenhar seu papel de lacaios
junto aos senhores estrangeiros. Esse patriótico desprezo pelo
espanhol e suas sequelas fez com que Zênon apurasse melhor os
ouvidos. Pouco adiante, os guardas-valões toucados de ferro e em
calções de couro exigiram arrogantemente os salvos-condutos dos
viajantes. O prior entregou-os com um desdém gelado.
Decididamente, algo mudara em Flandres. Na Praça Central de
Bruges, os dois afinal se separaram com recomendações e mútuas
ofertas de serviço para o futuro. O prior tomou um coche de aluguel
e rumou para o seu convento, enquanto Zênon, satisfeito por
desemperrar as pernas após a longa imobilidade que lhe impusera a
viagem, colocou seus embrulhos debaixo do braço. Surpreendeu-se
com o fato de locomover-se sem qualquer embaraço pelas ruas da
cidade que não revia há mais de trinta anos.
Zênon prevenira de sua chegada a João Myers, o antigo mestre e
companheiro, que já lhe propusera por diversas vezes dividir com
ele sua confortável casa situada no Velho Cais do Bosque. Uma
criada com uma lanterna recebeu o visitante à soleira da porta. Ao
cruzar o vão da mesma, Zênon roçou ostensivamente o corpo da
matrona enfadonha que não arredava pé para dar-lhe passagem.
João Myers estava sentado em sua poltrona com as pernas
gotosas estendidas a uma conveniente distância do fogo. O dono da
casa e o visitante reprimiram habilmente, cada um de seu lado, um
movimento de surpresa: o seco João Myers se transformara num
rotundo velhinho, cujos olhos vivos e o sorriso astuto se perdiam por
entre rugas de carne rósea; o brilhante Zênon de outros tempos era
um homem algo selvagem de pelos grisalhos. Quarenta anos de
prática permitiram ao médico brugesiano acumular aquilo de que
necessitava para viver comodamente; sua mesa e sua adega eram
boas, muito boas mesmo, para o regime de um gotoso. A criada,
Catarina, a quem ele outrora infernizara um pouco, era muito
bronca, mas diligente, fiel, de poucas palavras, e jamais acolhia na
cozinha os galantes apreciadores de petiscos e vinhos antigos. João
Myers serviu ao visitante alguns de seus gracejos favoritos sobre o
clericato e os dogmas; Zênon se lembrava de que no passado os
julgara divertidos; agora pareciam-lhe extremamente insípidos;
todavia, pensando outra vez no alfaiate Adriano, em Tournai, no
editor Dolet, em Lyon, e no cirurgião Servet, em Genebra, disse com
seus botões que, numa época em que a fé conduzia ao furor, o
ceticismo expresso pelo bom velhinho sob forma de humor grosseiro
tinha lá o seu preço; por estar mais familiarizado com o
procedimento que consiste em negar tudo — para ver se se pode
em seguida reafirmar alguma coisa —, e em desfazer tudo — para
ver depois tudo se refazer em outro plano ou de outra forma —,
Zênon já não se sentia capaz dos risos fáceis. Superstições se
misturavam bizarramente na casa de João Myers àquele pirronismo
de cirurgião-barbeiro. Este se gabava de curiosidades herméticas,
conquanto seus trabalhos na matéria não passassem de brinquedos
de criança; Zênon evitou a custo deixar-se arrastar a explicações
sobre a tríade inefável ou mercúrio lunar, que lhe pareciam algo
estafantes para a noite de chegada. No tocante à medicina, o velho
João se mostrava guloso de novidades, uma vez que, por cautela,
só a praticara de acordo com os métodos que aprendera; esperava
de Zênon um medicamento específico para a sua gota. Quanto aos
escritos suspeitos do visitante, o velho não temia, caso a verdadeira
identidade do Dr. Sebastião Theus viesse a ser descoberta, que o
barulho feito em torno deles pudesse afligir muito o seu autor em
Bruges. Na cidade atenta às querelas de meias paredes, sofrendo
em virtude dos bancos de areia de seu porto como um doente em
razão de seus cálculos, ninguém se daria o trabalho de folhear seus
livros.
Zênon estendeu-se sobre o leito que para ele se preparara no
quarto do andar superior. A noite de outubro era fria. Catarina entrou
com um tijolo aquecido no vestíbulo e envolveu-o em trapos de lã.
Ajoelhada no espaço entre a cama e a parede, enfiou o tépido
pacote sob as cobertas, tocou os pés do viajante, depois os
tornozelos, massageando-os demoradamente, e de súbito, sem uma
palavra, cobriu de ávidas carícias o corpo nu. À luz do coto da vela
colocada sobre uma arca, a visão da mulher flutuava para além do
tempo, tangenciando a da criada que, cerca de quarenta anos
antes, ensinara-lhe a fazer amor. Ele não a impediu de deitar-se
vagarosamente a seu lado sob a manta. A criatura de carnes fartas
era como a cerveja e o pão dos quais cada um tira com indiferença
o seu bocado, sem aversão e sem volúpia. Quando Zênon acordou,
ela já se ocupava no térreo de suas obrigações de criada.
Catarina não levantou os olhos para ele durante todo o dia; serviu-
o, porém, copiosamente à hora das refeições com uma espécie de
grosseira solicitude. Zênon trancou a porta do quarto na noite
seguinte, e ouviu os pesados passos da criada a se afastar depois
de haver tentado, sem nenhum ruído, abrir o trinco. Ela não se
comportou no dia seguinte de modo diferente do que o fizera na
véspera; parecia-lhe que Catarina se instalara definitivamente entre
os objetos que povoavam sua existência, como os móveis e os
utensílios da casa do médico. Por descuido, uma semana depois,
ele esqueceu de trancar a porta: ela entrou com um sorriso idiota,
levantando bem alto as saias para que se apreciassem seus
pesados atrativos. O grotesco da tentação venceu-lhe a resistência
dos sentidos. Jamais experimentara ele dessa forma a pujança
bruta da própria carne, independentemente da pessoa, do rosto, dos
contornos do corpo e até mesmo de suas preferências carnais. A
mulher que ofegava sobre seu travesseiro era uma lêmure, uma
lâmia, uma dessas criaturas de pesadelo que se veem nos capitéis
de igreja, só a muito custo capaz, parecia-lhe, de servir-se da
linguagem humana. Em pleno orgasmo, entretanto, uma ladainha de
palavras obscenas, que ele não mais tivera ocasião de ouvir nem de
empregar em flamengo desde a idade escolar, transbordou aos
borbotões da boca asquerosa, o que o levou então a tapá-la com o
dorso das mãos. Na manhã seguinte, a repulsa levantou-lhe a
cabeça; não lhe apetecia comprometer-se com essa criatura como
não apetece a ninguém consentir em deitar-se numa enxerga
suspeita de estalagem. Não mais esqueceu de trancar todas as
noites a porta.
Zênon não pretendia demorar-se na casa de João Myers senão o
tempo necessário para que amainasse a tempestade desencadeada
pelo embargo e a destruição de seu livro. Contudo, parecia-lhe às
vezes que iria permanecer em Bruges até o fim de seus dias, fosse
porque a cidade lhe servisse de secreto alçapão quando do término
de cada uma de suas viagens, fosse porque uma espécie de inércia
o impedisse de partir. O impotente João Myers confiou-lhe alguns
dos pacientes de que ainda cuidava; a exígua clientela jamais
poderia despertar a inveja dos outros médicos da cidade, como
ocorrera em Basileia, onde Zênon levara ao cúmulo da exasperação
os seus confrades, ao ensinar publicamente sua arte para um
círculo seleto de estudantes. Dessa vez, suas relações com os
colegas restringiam-se a esporádicas consultas durante as quais o
Sr. Theus se dispunha polidamente a acatar os conselhos dos mais
velhos ou dos mais ilustres, ou mesmo a entabular breves
conversas que versavam apenas sobre o vento e a chuva, ou
qualquer outro incidente local. As entrevistas com os doentes
giravam, bem entendido, em torno dos próprios doentes. Muitos
deles jamais haviam ouvido falar de um tal de Zênon; ele não era
para os outros senão o eco, como se diz, dos ruídos do passado. O
filósofo que há pouco dedicara um opúsculo à essência e às
propriedades do tempo pôde constatar que suas ideias cedo
submergiam no pântano da memória dos homens. Aqueles trinta e
cinco anos poderiam ter sido meio século. Dos costumes ou normas
que vigoravam ou sobre os quais se discutia em seus tempos de
escola, dizia-se hoje que sempre haviam existido. Dos fatos que
então abalaram o mundo, ele não mais se ocupava. Os mortos que
dele distavam cerca de vinte anos já se haviam confundido com os
de uma geração anterior. A opulência do velho Ligre deixara
algumas lembranças; discutia-se, contudo, se tivera ele um ou dois
filhos. Existia também um sobrinho, ou um bastardo de Henrique-
Justo, que saíra da linha. O pai do banqueiro passava por haver
sido Tesoureiro de Flandres, como seu filho, ou relator junto ao
Conselho da Regente, como o Filisberto de hoje. Da casa dos
Ligres, há muito desocupada, o pavimento ao rés do chão fora
alugado aos artesãos; Zênon revisitou a fábrica que fora outrora o
domínio de Colas Gheel; uma cordoaria a ocupava agora. Nenhum
dos artesãos se lembrava mais daquele homem que se embriagava
logo aos primeiros goles de cerveja, mas que, diante das desordens
de Oudenove ou do enforcamento de seu protegido, procedera, à
sua maneira, como um líder e um príncipe. O Cônego Bartolomeu
Campanus ainda vivia, mas saía pouco, acometido pelos males que
chegam com a velhice; por sorte, João Myers nunca fora chamado
para atendê-lo. Todavia, Zênon evitava cautelosamente a Igreja de
São Donato, onde o antigo mestre assistia ainda aos ofícios numa
das cadeiras do coro.
Também por cautela escondera ele num cofrezinho de João Myers
seu diploma de Montpellier, no qual estava impresso seu verdadeiro
nome, trazendo consigo apenas um pergaminho adquirido por acaso
à viúva de um charlatão alemão de nome Gott, que sem perda de
tempo — e para melhor embaralhar as cartas — Zênon latinizara em
Theus. Com a ajuda de João Myers, inventou em torno desse
desconhecido uma dessas biografias confusas e banais,
semelhantes a certas residências cujo principal mérito é permitir que
se entre ou saia por diversas portas. Para torná-la mais verossímil,
acrescentou-lhe episódios de sua própria vida cuidadosamente
escolhidos para não causar espanto ou intrigar alguém, e cuja
investigação, caso a ela se procedesse, não levaria a nada. O Dr.
Sebastião Theus nascera em Zutphen, no Bispado de Utrecht, filho
natural de uma mulher da região e de um médico de Bresse adido à
casa de Madame Margarida d’Áustria. Educado em Clèves, às
expensas de um protetor que se quis anônimo, ele pensara
inicialmente em ingressar, nessa mesma cidade, num convento dos
agostinianos, mas o gosto pela profissão paterna o seduziu; estudou
na Universidade de Ingolstadt, depois em Estrasburgo, exercendo a
medicina durante algum tempo nessa última cidade. Um embaixador
da Savoia levou-o a Paris e a Lyon, de modo que pôde ver um
pouco a França e a corte. De volta à Alemanha, cogitara instalar-se
outra vez em Zutphen, onde sua boa mãe ainda vivia, mas onde
também, conquanto nada comentasse sobre isso, teria de aturar os
adeptos da religião que se dizia reformada, que por lá agora
fervilhavam. Foi então que, para sobreviver, decidiu aceitar o posto
de substituto que lhe propusera João Myers, que outrora conhecera
seu pai em Malines. Admitia ele também haver sido cirurgião nos
exércitos do rei católico da Polônia, embora tivesse o cuidado de
predatar esse engajamento de uma boa dezena de anos. Por fim,
enviuvara da filha de um médico de Estrasburgo. Tais fábulas — às
quais não recorria, é bom que se diga, senão em caso de perguntas
indiscretas — muito divertiam o velho Myers. O filósofo, porém,
sentia por vezes amoldar-se-lhe ao rosto a delgada máscara do Dr.
Theus. Aquela vida imaginária bem que poderia ter sido a sua.
Alguém lhe perguntou um dia se chegara a encontrar um tal de
Zênon durante suas viagens. Foi quase sem mentir que respondeu
que não.
Pouco a pouco, do cinza dos dias monótonos começaram a
emergir relevos ou a visualizar-se pontos de referência. Toda noite,
à hora da ceia, João Myers discorria pormenorizadamente sobre a
crônica dos interiores que Zênon visitara pela manhã, contava uma
anedota cômica ou trágica, em si mesma banal, mas que
descortinava na cidade sonolenta tantas tramas ou intrigas quantas
se pudessem imaginar no Grande Harém, tanta lascívia quanto num
bordel de Veneza. Temperamentos, caracteres afloravam daquelas
vidas uniformes de pessoas donas de sólidas rendas e tesoureiros
da Igreja; estabeleciam-se grupos, formados como em toda parte
graças ao mesmo apetite pelo lucro ou pela intriga, à mesma
devoção pelo mesmo santo, aos mesmos males e mesmos vícios.
As desconfianças dos pais, as travessuras dos filhos, as agruras
entre velhos cônjuges não diferiam das que se viam na família Vasa
ou entre os príncipes da Itália, e, para contrastar, a extrema
modéstia dos desafios conferiam às paixões uma desassombrada
franqueza. Aquelas vidas entrelaçadas faziam com que o filósofo
avaliasse o preço de uma existência sem vínculos. As opiniões em
nada diferiam dos seres: logo se cristalizavam numa categoria
previamente estabelecida. Adivinhavam-se aqueles que atribuiriam
todos os males do século aos libertinos ou aos reformados, e para
quem Sua Excelência a Governante tinha sempre razão. Na
verdade, Zênon teria podido levar a cabo, para eles, as suas
maledicências, inventando no lugar deles a mentira acerca do mal-
italiano por eles contraído na juventude, a dissimulação ou o
pequeno sobressalto ofendido quando cobrava a João Myers
honorários esquecidos. Sem receio de perder ele apostava, sem
jamais enganar-se, no que de todo modo sairia da forma de waffle…
O único local da cidade em que lhe parecia arder um pensamento
livre era, paradoxalmente, a cela do Prior dos Franciscanos.
Continuara a frequentá-lo na qualidade de amigo e, logo em
seguida, na de médico. Essas visitas eram raras, pois nem um nem
outro dispunha muito de tempo que lhes justificasse a assiduidade.
Zênon escolheu o religioso para confessor, se porventura um dia lhe
parecesse necessário ter um. O prior era muito comedido no tocante
às homilias devotas. Seu requintado e elegante francês descansava
o ouvido do guisado flamengo. A conversação tudo abrangia, exceto
os assuntos da fé, mas eram sobretudo as questões públicas que
mais de perto atraíam o homem de oração. Extremamente ligado a
alguns senhores que se empenhavam em lutar contra a tirania
estrangeira, ele os louvava, receando sempre para a nação belga
um banho de sangue. Quando Zênon o pôs a par dessas
perspectivas, o velho Myers deu de ombros: sempre se vira os
pequenos se deixarem tosquiar e os grandes se apoderarem da lã.
Todavia, era deplorável que o espanhol falasse em estabelecer
novos impostos sobre os víveres, e para cada um deles uma taxa de
um por cento.

Sebastião Theus regressava tarde à habitação do Velho Cais do


Bosque, pois à sala de visitas superaquecida preferia o ar úmido
das ruas e as longas caminhadas para além das muralhas da
cidade, junto à orla dos campos cinzentos. Por uma tardinha,
recolhendo-se à época em que a noite caía mais cedo, divisou ele
no vestíbulo o vulto de Catarina, ocupada em inspecionar os lençóis
no baú colocado sob a escada. Ela não interrompeu o que estava
fazendo para iluminar-lhe o aposento, como era seu hábito,
aproveitando-se sempre do mesmo ângulo do corredor para roçar
furtivamente o tecido de seu capote. Na cozinha o fogo estava
apagado. Zênon tateou no escuro até acender uma vela. O corpo
ainda morno do velho João Myers jazia sobre a mesa da sala
vizinha. Catarina entrou com o lençol que acabara de escolher.
— O patrão morreu de uma congestão — disse.
Ela recordava as lavadoras de mortos, sempre cobertas por um
véu negro, que Zênon vira em atividade nas residências de
Constantinopla quando ali servia ao sultão. A morte do velho médico
não chegou a surpreendê-lo. O próprio João Myers já esperava que
sua gota acabasse por lhe comprometer o coração. Algumas
semanas antes, fizera diante do notário da paróquia um testamento
vazado nos piedosos termos habituais, pelo qual legava seus bens a
Sebastião Theus, e a Catarina um dos quartos do sótão da casa até
o fim de seus dias. O filósofo olhou mais de perto o rosto
convulsionado e túrgido do morto. Um odor suspeito, uma nódoa
castanha no canto da boca despertaram-lhe a desconfiança; subiu
até o quarto e revistou seu cofre. O conteúdo de um pequenino
frasco de vidro baixara de um dedo. Zênon lembrou-se de que uma
noite mostrara ao velho Myers a mistura de venenos e tóxicos
vegetais que encontrara num laboratório de Veneza. Um leve ruído
fê-lo voltar a cabeça; Catarina o observava de pé sob o vão da
porta, como decerto já o fizera através da meia-porta de sua
cozinha, quando mostrara ele a seu mestre alguns daqueles objetos
conseguidos ao longo de suas viagens. Zênon agarrou-a pelo braço;
ela caiu de joelhos, deixando jorrar uma confusa torrente de
palavras e lágrimas:
— Voor u heb ik het gedaan! [38] — repetia ela entre soluços.
Desvencilhou-se rispidamente da criada e desceu para velar o
morto. À sua maneira, o velho Myers degustara sabiamente a vida;
seus males não eram assim tão insuportáveis que ele não pudesse
gozar ainda por alguns meses sua doce existência: um ano talvez,
ou dois, na melhor das hipóteses. O crime idiota o frustrava sem
razão do modesto prazer de estar no mundo. O velho jamais lhe
quisera outra coisa que não fosse o bem: Zênon sentia-se tomado
de uma amarga e atroz piedade por ele. Invadia-o com relação à
assassina uma raiva inútil que o próprio morto, sem dúvida, não
sentiu com a mesma intensidade. João Myers sempre utilizara seu
talento, que não era pouco, para ridicularizar as inépcias deste
mundo; ao apressar-se em enriquecer um homem que não lhe dava
a menor atenção, a criada devassa lhe fornecera assunto para um
bom conto, se porventura ele tivesse vivido. Assim como estava,
deitado serenamente sobre a mesa, parecia distante cem léguas de
sua própria desventura; pelo menos, o antigo cirurgião-barbeiro
zombara sempre daqueles que imaginam que ainda se pensa ou se
padece quando já não mais se caminha nem se digere.

Sepultaram-no na Paróquia de São Tiago. De volta das exéquias,


Zênon percebeu que Catarina levara sua bagagem e seu estojo de
médico para o quarto do patrão; acendera o fogo e arrumara
cuidadosamente o grande leito. Sem nada dizer acerca de suas
roupas e objetos pessoais, retornou ao aposento que ocupara desde
a chegada. Tão logo entrou em sua posse, Zênon renunciou aos
bens herdados, através de ato lavrado em cartório, em favor do
antigo Asilo de São Cosme, situado na Rua Longa e adjacente ao
Convento dos Franciscanos. Na cidade em que não mais
fulguravam as grandes fortunas de outrora, as doações piedosas se
faziam raras; a generosidade do Sr. Theus foi muito apreciada,
como ele já esperava. A casa de João Myers seria de agora em
diante um asilo para velhos enfermos; Catarina ali residiria na
qualidade de criada. O dinheiro em moeda corrente seria utilizado
para restaurar uma parte das construções do vetusto Asilo de São
Cosme; nas salas ainda habitáveis, o Prior dos Franciscanos, dos
quais dependia a instituição, encarregou Zênon de instalar um
dispensário para os pobres do quarteirão e os camponeses que
afluíam à cidade em dias de mercado. Dois monges foram
designados para ajudá-lo no laboratório. Esse cargo era ainda muito
pouco prestigioso para atrair sobre o Dr. Theus a inveja de seus
confrades; por hora, o nicho estava seguro. A velha mula de João
Myers foi recolhida à estrebaria do asilo, e o jardineiro do convento
encarregado de cuidar dela. Armou-se um leito para Zênon num dos
cômodos do andar superior, para onde ele levou parte dos livros do
antigo cirurgião-barbeiro; sua comida era preparada no próprio
refeitório do convento.

Todo o inverno foi dedicado à mudança de quarteirão e aos novos


arranjos por ela acarretados; Zênon persuadiu o prior a deixá-lo
instalar uma estufa à moda alemã, e forneceu-lhe alguns
esclarecimentos sobre o tratamento dos reumáticos e sifilíticos pelo
vapor quente. Seus conhecimentos mecânicos facilitaram-lhe a
montagem dos condutos e a econômica alimentação de um
fogareiro. Rua das Lãs… Um ferreiro se instalara nas antigas
estrebarias dos Ligres; Zênon para lá se dirigia às tardinhas, limava,
pregava, soldava, martelava, em perpétua consulta com o mestre-
ferreiro e seus auxiliares. Os rapazes do quarteirão, que ali se
reuniam para passar o tempo, maravilhavam-se com a habilidade de
suas mãos magras.
Foi durante esse período sem incidentes que o reconheceram pela
primeira vez. Achava-se só no laboratório, como costumava ficar
após a partida dos dois monges; era dia de mercado, e o cortejo
habitual dos pobres se estendera desde a hora da nona. Alguém
ainda batia à porta; era uma velha que vinha todos os sábados
vender sua manteiga na cidade e que queria do médico um remédio
para a sua ciática. Zênon procurou sobre a prateleira um pote de
argila cheio de um poderoso revulsivo, dela se aproximando em
seguida para explicar-lhe como usar o medicamento. Súbito,
percebeu em seus olhos de um azul lavado uma expressão
surpreendentemente alegre que lhe permitiu também reconhecê-la.
A mulher trabalhara nas cozinhas da casa dos Ligres à época em
que ele era apenas uma criança. Greta (de repente, lembrou-se de
seu nome) era casada com o criado que o reconduziu à casa após
sua primeira fuga. Zênon se recordava de que ela o tratava com
bondade quando ele se escondia em meio às suas panelas e
terrinas; permitia-lhe sentar-se à mesa para comer o pão ainda
quente e a massa crua que seria posta no forno. A velhinha estava
prestes a deixar que lhe escapasse uma exclamação quando Zênon
pôs-lhe o dedo sobre os lábios. Greta tinha um filho carreteiro que
fizera na época contrabando com a França; seu pobre velho, agora
quase paralítico, tivera de ajustar contas com o senhor do local em
virtude de algumas sacas de maçãs roubadas do pomar anexo à
sua fazenda. Ela sabia que às vezes é oportuno encontrar, mesmo
quando se trata de um rico ou de um nobre, espécies humanas nas
quais ainda incluía Zênon. Ela se calou, e, ao sair, beijou-lhe as
mãos.
O incidente deveria inquietá-lo, pois evidenciava o risco a que
diariamente se expunha de ser outra vez reconhecido; muito ao
contrário, sentiu o filósofo uma tal satisfação que a ele próprio
surpreendeu. Sempre se dizia que havia, próximo às muralhas da
cidade, para os lados de São Pedro do Cais, uma fazendola na qual
poderia pernoitar em caso de perigo, bem como um carreteiro cujo
cavalo e cuja carroça poderiam ser úteis. Mas tudo não passava de
pretextos que ele a si próprio se concedia. A criança na qual ele não
mais pensava, o ser pueril que era ao mesmo tempo razoável e, em
certo sentido, absurdo assinalar ao Zênon de hoje, deles alguém se
lembrava com tal intensidade que fora capaz de reconhecê-los nele,
e o sentimento de sua própria existência estava assim como que
revigorado. Entre ele e uma criatura humana formara-se um vínculo,
por mais diminuto que fosse, uma conexão que não passava pelo
espírito, como em suas relações com o prior, nem, como seria o
caso dos episódicos contatos sensuais que ainda se permitia, pela
carne. Greta voltou quase todas as semanas para tratar de suas
mazelas de velha; era raro que não lhe trouxesse algum presente:
manteiga enrolada numa folha de repolho, um pedaço de bolo que
ela mesma preparava com massa folhada, açúcar-cande, ou um
punhado de castanhas. Ela o observava com seus velhos olhinhos
travessos. Havia entre ambos a intimidade de um segredo bem
guardado.
O abismo

Pouco a pouco, tal como um homem que absorve todo dia um certo
alimento finito para através dele ser modificado em sua essência e
mesmo em sua forma, engorda ou emagrece, extrai dessas iguarias
uma força, ou contrai, ao ingeri-las, males que desconhece,
mudanças quase imperceptíveis se operavam em Zênon, fruto dos
novos hábitos que adquirira. Contudo, a diferença entre o ontem e o
hoje se anulava a partir do instante em que o filósofo para ela
volvesse os olhos: exercia a medicina, como sempre o fizera, e
pouco importava se o fazia em benefício de príncipes ou de
indigentes. Sebastião Theus era um nome fictício, e seus direitos ao
de Zênon não eram dos mais tangíveis. Non habet nomen proprium:
[39] ele era um desses homens que não deixam de se assustar até o
fim pelo fato de terem um nome, como alguém, ao mirar-se num
espelho, se assusta por ter um rosto, e por ser precisamente aquele
rosto. Sua existência era clandestina e sujeita a certos
constrangimentos: sempre o fora. Silenciava sobre os pensamentos
que lhe eram mais caros; sabia de longa data que aquele que se
expõe através de suas palavras e pontos de vista não passa de um
tolo, quando é tão fácil deixar que os outros se sirvam de nossa
garganta ou de nossa língua para articular sons. Suas raras crises
verbais poderiam ser comparadas aos acessos lúbricos de um
homem casto. Vivia pouco menos do que enclausurado em seu
Asilo de São Cosme, prisioneiro de uma cidade, e nessa cidade de
um quarteirão, e nesse quarteirão de uma dezena de quartos que se
abriam, de um lado, para a horta e as dependências de um
convento, e, de outro, para uma parede nua. Suas peregrinações,
agora muito menos frequentes, em busca de espécies botânicas,
iam e vinham pelos mesmos campos cultivados e os mesmos
caminhos à beira dos mesmos canais, os mesmos bosquezinhos e
as fímbrias das mesmas dunas, e ele sorria, não sem amargura,
dessas idas e vindas de inseto que circula incompreensivelmente
sobre um palmo de terra. Contudo, o estreitamento do lugar, as
repetições quase mecânicas dos mesmos gestos ocorriam toda vez
que se ajustavam as faculdades em vista do cumprimento de uma
única tarefa delimitada e útil. Sua vida sedentária o acabrunhava
como uma sentença de encarceramento que houvesse por cautela
pronunciado contra si mesmo; a sentença, porém, continuava
revogável: muitas outras vezes, e sob outras céus, ele se reduzira
de forma semelhante — momentaneamente ou, supunha, para
sempre — àquele homem que tem em toda parte ou em parte
alguma direitos de cidadão. Nada fazia crer que ele não reiniciasse
de um dia para outro a existência errante que fora sua sina e sua
escolha. E, todavia, seu destino se agitava; um deslizamento se
operava à sua revelia. Como alguém que nadasse contra a corrente
numa noite escura, faltavam-lhe sinais para calcular exatamente o
grau de deriva.
Ainda há pouco, ao reencontrar seu caminho no emaranhado de
vielas de Bruges, julgou que aquela pausa à beira das grandes
estradas da ambição e do saber lhe proporcionaria algum descanso
após as agitações de trinta e cinco anos. Esperava fruir a inquieta
segurança de um animal que se tranquiliza com a modéstia e a
obscuridade do covil que escolheu para viver. Enganava-se. Aquela
existência imóvel borbulhava no mesmo lugar; o sentimento de uma
atividade quase terrível engrossava como as águas de um rio
subterrâneo. A angústia que o estrangulava era distinta da que
sente o filósofo perseguido por seus livros. O tempo, que imaginara
devesse pesar em suas mãos como um lingote de chumbo, fugia e
se fragmentava como os grãos do mercúrio. As horas, os dias e os
meses não mais obedeciam às divisões dos relógios, como
tampouco ao movimento dos astros. Parecia-lhe por vezes haver
permanecido toda a vida em Bruges, e não raro para ali haver
regressado na véspera. Os lugares também se moviam: as
distâncias estavam abolidas como os dias. Aquele açougueiro,
aquele pregoeiro que anunciava o preço dos víveres, poderiam
muito bem estar em Avignon ou em Vadstena; aquele cavalo
açoitado, ele o vira cair ao solo nas ruas de Andrinopla; [40] aquele
bêbado iniciara em Montpellier suas pragas e vômitos; aquela
criança que chorava nos braços de uma ama nascera em Bolonha
há vinte e cinco anos; aquela missa do domingo, à qual jamais
faltara, ele ouvira-lhe o Introito numa igreja da Cracóvia cinco
invernos antes. Pensava pouco nos incidentes de sua vida
pregressa, já diluídos como sonhos. Às vezes, sem razão aparente,
revia aquela mulher grávida a quem permitira abortar, apesar do
juramento hipocrático, para evitar-lhe uma morte ultrajante quando
voltasse para os braços do marido ciumento, num burgo do
Languedoc, ou a careta de Sua Majestade Sueca ao ingerir uma
poção, ou seu criado Aleí ao ajudar sua mula ao passar pelo vau de
um córrego, entre Ulm e Constança, ou o primo Henrique-
Maximiliano, que talvez já estivesse morto. Um caminho fundo, onde
as poças não secam, mesmo em pleno verão, recordou-lhe um certo
Perrotin que o espreitara sob a chuva, à beira de uma estrada
solitária, no dia seguinte ao de uma discussão cujos motivos não
mais eram claros. Ele reanimava dois corpos abraçados na lama,
uma lâmina caída na terra, e Perrotin esfaqueado por seu próprio
punhal a escorregar-lhe da mão, convertido ele mesmo em lama e
terra. Essa velha história não mais importava, e menos ainda
importaria se aquele cadáver flácido e quente fosse o de um clérigo
de vinte anos de idade. Este Zênon, que caminhava
apressadamente sobre as lajes escorregadias de Bruges, sentia
trespassar-lhe, como lhe trespassava as vestes puídas o vento
vindo do largo, o fluxo de milhares de seres que já repousavam
naquele ponto da esfera, ou que para ali viriam quando da
catástrofe a que chamamos o fim do mundo; esses fantasmas
percorriam absortos o corpo do homem que ainda não os admitia
vivos dentro de si, ou que não mais existiria a partir do instante em
que o estivessem. Os desconhecidos que pouco antes encontrara
na rua, percebidos de relance e logo resgatados pela massa informe
do que já passou, engrossavam sem cessar aquele bando de larvas.
O tempo, o lugar, a substância perdiam os atributos que para nós
constituem suas fronteiras; a forma nada mais era do que a casca
espedaçada da substância, enquanto esta definhava num vazio que
não era seu contrário; o tempo e a eternidade não eram senão uma
mesma coisa, como um veio de água negra que sulca as entranhas
de uma vasta e imutável superfície. Zênon se abismava nessas
visões como um cristão que meditasse sobre Deus.
As ideias também deslizavam. O ato de pensar o interessava
agora mais do que os duvidosos produtos do próprio pensamento.
Examinava-se a si mesmo ao pensar, tal como teria contado com o
dedo sobre o pulso os batimentos da artéria radial, ou auscultado
sob as costelas o vaivém de sua respiração. Durante toda a vida
admirara-se dessa faculdade que têm as ideias de se aglomerarem
friamente como cristais em estranhas e inúteis figuras, de se
desenvolverem como tumores devorando a carne que os concebe,
de assumirem monstruosamente as feições de pessoas humanas,
como essas massas inertes que certas mulheres dão à luz, e que
não são, afinal, senão a matéria que sonha. Um razoável número
dos produtos do espírito, aliás, apenas se constitui de disformes
bezerros de prata. [41] Outras noções, mais próprias e justas,
forjadas como que por um mestre de obras, eram as dos objetos
que nos iludem à distância; não se pode deixar de admirar seus
ângulos e paralelas; não obstante, não eram elas senão as grades
atrás das quais se enclausura o próprio entendimento, e a ferrugem
da falsidade já corroía essas abstratas ferragens. Por instantes,
tremia-se como se no limiar de uma transmutação: um pouco de
ouro parecia faiscar no cadinho do cérebro humano; não se
chegava, contudo, senão a uma equivalência; como nas
experiências desonestas através das quais os alquimistas da corte
se esforçavam por demonstrar a seus clientes principescos que
haviam descoberto alguma coisa, o ouro ao fundo da retorta era
apenas o de um mísero ducado passado de mão em mão e que o
alquimista pusera ali antes da fusão. Os conceitos morriam como os
homens: ao longo de meio século, ele vira muitas gerações de
ideias reverterem ao pó.
Uma metáfora mais fluida nele se insinuava, fruto de suas antigas
travessias marítimas. O filósofo que tentara considerar em sua
totalidade o entendimento humano via por debaixo dele um plasma
submetido a curvas calculáveis, estriado de correntes com as quais
se podem elaborar o mapa, sulcado de profundas rugas pelas
pressões atmosféricas e pela densa inércia das águas. Assim
também ocorria com as imagens assumidas pelo espírito, como as
grandes formas nascidas da água indiferenciada que arremetem ou
se revezam à superfície do abismo; cada conceito afinal se anulava
em seu próprio contrário, como duas vagas que, ao se chocarem,
sucumbem numa única e mesma espuma branca. Zênon olhava
fugir essa onda desordenada, levando como despojos o pouco de
verdades sensíveis de cuja existência não duvidamos. Por vezes,
parecia-lhe entrever sob o fluxo uma substância imóvel, que seria
para as ideias o que as ideias são para as palavras. Mas nada
provava que esse substrato fosse a derradeira camada, nem que
essa fixidez não ocultasse, afinal de contas, um movimento rápido
demais para o intelecto humano. Desde que renunciara a confiar de
viva voz seu pensamento (ou a consigná-lo por escrito) ao balcão
dos livreiros, essa desmama induzira-o a descer mais
profundamente do que nunca em busca de conceitos puros. Agora,
em favor de um exame mais percuciente, renunciara
temporariamente aos próprios conceitos; retinha o espírito, como se
retém a respiração, para melhor ouvir o ruído das rodas que giram
tão depressa que não se percebe estarem elas girando.

Do mundo das ideias, passara ao mundo mais opaco da


substância contida e delimitada pela forma. Recolhido em seu
quarto, Zênon não mais empregava as vigílias no afã de adquirir
visões mais exatas dos vínculos entre as coisas, preferindo dedicá-
las a uma meditação não formulada acerca da natureza dessas
mesmas coisas. Corrigia assim o vício do entendimento que
consiste em apreender os objetos para deles se servir ou, ao
contrário, em rejeitá-los, sem penetrar mais além na substância
individuada de que são feitos. Assim, a água fora para ele uma
bebida que sacia e um líquido que lava, uma parte integrante de um
universo criado pelo Demiurgo cristão de que lhe falara o Cônego
Bartolomeu Campanus ao discorrer sobre o Espírito que flutua à
superfície das águas, o elemento essencial da hidráulica de
Arquimedes ou da física de Tales, ou ainda o signo alquímico de
uma das forças que atuam para baixo. Ele calculara deslocamentos
e medira doses, esperara que gotículas se formassem no tubo das
cucúrbitas do alambique. Agora, renunciando por algum tempo à
observação — que exteriormente distingue e singulariza — em favor
da visão interior do filósofo hermético, deixava que a água, presente
em tudo, inundasse o quarto como a maré do dilúvio. O baú e o
escabelo flutuavam; as paredes rebentavam sob a pressão da água.
Ele cedia ao fluxo que aceita todas as formas e se recusa a deixar-
se coagir por elas, experimentando a mudança de estado da imensa
superfície que se torna lixívia e da chuva que se converte em neve,
e fazia seus a imobilidade temporária do gelo ou o deslizamento da
gota translúcida que escorria inexplicavelmente em sentido oblíquo
pela vidraça, fluido desafio à aposta dos calculistas. Renunciava às
sensações de quente ou de frio que estão vinculadas ao corpo. A
água o levava como um cadáver tão indiferentemente quanto o faria
com uma braçada de algas. Imerso em sua carne, aí redescobria o
elemento aquoso, a urina na bexiga, a saliva na borda dos lábios, a
água presente no líquido do sangue. Depois, restituído ao elemento
do qual todo o tempo ele se sentira uma parcela, voltava sua
meditação para o fogo, gozando em si o calor moderado e devoto
que compartilhamos com os animais que caminham e os pássaros
que cruzam o céu. Pensava o filósofo no fogo devorador das febres,
o qual muitas vezes em vão ele tentara apagar, e percebia o ávido
impulso da chama que nasce, a rubra alegria do braseiro e sua
agonia em cinzas negras. Ousando ir mais longe, sentia-se unido ao
implacável ardor que destrói tudo o que toca; sonhava com
fogueiras, tais como as que vira por ocasião de um auto de fé numa
pequena cidade de León, durante o qual pereceram quatro judeus
acusados de haver hipocritamente abraçado a religião cristã sem
antes renunciarem à prática dos ritos herdados de seus pais, além
de um herético que negava a eficácia dos sacramentos. Ele
imaginava aquela dor demasiado aguda para a linguagem humana;
ele era aquele homem que tinha em suas narinas o odor de sua
própria carne queimando; ele tossia, envolto por uma fumaça que
não se evolava de seu ser ainda vivo, e via uma perna enegrecida
que se punha absolutamente ereta, as articulações lambidas pelas
chamas, como um ramo que se retorcesse sob o pano da chaminé
de uma lareira; deixava-se penetrar ao mesmo tempo da ideia de
que o fogo e a madeira são inocentes. Recordava-se, no dia
seguinte ao do auto de fé celebrado em Astorga, de haver
caminhado com o velho monge alquimista Dom Blas de Vela pela
área calcinada que lhe evocava a dos carvoeiros; o sábio jacobita
inclinara-se para recolher cuidadosamente entre os tições extintos
pequenos ossos leves e alvadios, procurando entre eles o luz [42] da
tradição hebraica, que resiste às chamas e serve de semente para a
ressurreição. Zênon sorrira outrora dessas superstições de
cabalista. Suando de angústia, erguia a cabeça e, caso fosse a noite
bastante clara, contemplava através da vidraça, com uma espécie
de álgido amor, o inacessível fogo dos astros.

Quer como fosse, a meditação o reconduzia ao corpo, seu


principal objeto de estudo. Sabia que seu instrumental de médico
compunha-se em partes iguais de destreza manual e de fórmulas
empíricas, também elas coadjuvadas por achados experimentais
que, por sua vez, conduziam a conclusões teóricas sempre
provisórias: um grama de observação lógica valia nessas matérias
mais do que uma tonelada de sonhos. E, todavia, após tantos anos
dedicados à investigação anatômica da máquina humana, desistira
de aventurar-se mais audaciosamente à exploração do reino
limitado por fronteiras de pele, no qual nos julgamos príncipes, mas
onde somos apenas prisioneiros. Em Eyoub, o dervixe Darazi, de
quem se fez amigo, dera-lhe a conhecer os métodos por ele
adquiridos na Pérsia junto aos monges de um convento herético,
pois Maomé, assim como Cristo, jamais deixou de ter dissidentes.
Recomeçou em seu sótão de Bruges pesquisas anteriormente
desenvolvidas ao fundo de um pátio onde rumorejava uma fonte.
Elas o conduziam mais longe do que quaisquer outras de suas
experiências ditas in anima vili. [43] Deitado de costas, contraindo os
músculos da barriga, dilatando a caixa torácica onde vai e vem o
animal assustado a que chamamos coração, inflava
cuidadosamente os pulmões, reduzia-se conscientemente a não
mais do que um saco de ar que se equilibrava com as forças do céu.
Darazi o aconselhara também a respirar até as raízes do ser.
Realizara ainda com o dervixe a experiência contrária, a dos
primeiros efeitos causados pela asfixia lenta. Erguia o braço,
admirando-se de que o comando fosse dado e recebido, sem saber
exatamente que mestre melhor dotado do que ele referendava essa
ordem: por mil vezes, de fato, observara que a vontade
simplesmente pensada — e ela o fora com todo o poder mental nele
acumulado — não era mais capaz de fazê-lo pestanejar ou franzir o
cenho do que o seriam as enérgicas censuras dirigidas a uma
criança por não haver conseguido fazer com que pedras se
movessem. Era necessária a tácita aquiescência de uma parte de si
já mais vizinha ao abismo do corpo. Meticulosamente, como quem
separa as fibras de um talo, ele separava umas das outras as
diversas formas da vontade.
Ajustava o melhor que podia os complexos movimentos de seu
cérebro ao trabalho, assim como um operário tateia cautelosamente
as engrenagens de uma máquina que ele não montou e cujas
avarias não saberia reparar: Colas Gheel era mais afeito a seus
teares mecânicos do que ele, com sua inteligência, aos delicados
movimentos de sua máquina de ponderar as coisas. Seu pulso,
cujos batimentos assiduamente estudou, ignorava todas as ordens
que enviasse sua faculdade pensante, mas se agitava sob o efeito
de receios ou dores às quais seu intelecto não se curvava. O
engenho do sexo obedecia à sua masturbação, mas essa prática
deliberadamente realizada o lançava por momentos num estado que
sua vontade não mais controlava. Da mesma forma, por uma ou
duas vezes na vida, a fonte das lágrimas jorrara escandalosamente,
apesar de seus esforços em contrário. Mais alquimistas do que ele
próprio jamais o fora, suas tripas operavam a transmutação de
despojos de animais ou de plantas em matéria viva, separando sem
sua ajuda o inútil do útil. Ignis inferiores naturae: [44] aquelas espirais
de lama castanha sabiamente enoveladas, ainda fumegantes de
fermentações que se adequavam a seu molde, aquele pote de argila
cheio de um fluido amoniáceo e nitrado, constituíam a prova visível
e fétida do trabalho realizado em laboratórios aos quais não temos
acesso. Parecia a Zênon que o nojo dos refinados e o riso sujo dos
ignorantes se deviam menos ao fato de que esses objetos nos
ofuscam os sentidos, do que ao nosso pavor diante da inelutável e
secreta rotina do corpo. Imerso ainda mais fundo nessa opaca noite
interior, dirigia a atenção para o estável arcabouço dos ossos
dissimulados sob a carne, que durariam mais do que ele e que
seriam, dentro de alguns séculos, as únicas testemunhas capazes
de atestar que ele vivera. Zênon se fundia ao interior da matéria
mineral que os constituía e que se mostrava refratária a suas
paixões ou a suas emoções de homem. Fazendo em seguida baixar
outra vez sobre si, como um pano de boca, sua carne provisória,
via-se estendido, como se fosse uma única peça, sobre o grosseiro
lençol do leito, ora dilatando voluntariamente a imagem que se fazia
daquela ilha de vida que era seu domínio, aquele continente mal-
explorado de que seus pés representavam os antípodas, ora, ao
contrário, reduzindo-se apenas a um único ponto no imenso Todo.
Utilizando fórmulas de Darazi, tentava fazer com que sua
consciência deslizasse do cérebro para outras regiões do corpo,
mais ou menos como se desloca numa província longínqua a capital
de um reino. Procurava projetar aqui e ali alguns clarões nas trevas
de tais galerias.
Outrora, com João Myers, ele zombava dos devotos que veem na
máquina humana a prova irretorquível de um Deus-Operário; no
entanto, o respeito dos ateus pela fortuita obra-prima que é, aos
olhos de cada um deles, a natureza do homem, parecia-lhe também
agora belo motivo de riso. Esse corpo tão pródigo em poderes
obscuros era imperfeito: ele mesmo, em seus momentos de
audácia, surpreendera-se sonhando sobre os meios de como
descobrir um autômato menos rudimentar do que nós. Virando e
revirando sob a mira de seu olho interior o pentagrama de nossos
sentidos, ousara postular outras estruturas, mais sábias, nas quais
se refletiria mais cabalmente o universo. A relação das nove portas
da percepção abertas na opacidade do corpo, que em outros
tempos lhe recitara Darazi, estalando umas após outras as falanges
de seus dedos amarelados, parecia-lhe agora uma grosseira
tentativa de classificação de anatomista meio bárbaro; todavia, ela
despertara sua atenção para a precariedade dos canais de que
dependemos para conhecer e viver. Nossa insuficiência era tal que
bastava obstruir dois orifícios para abolir o mundo dos sons, e duas
outras vias de acesso para que reinasse a noite. Que uma mordaça
vedasse três dessas aberturas, tão próximas umas das outras que a
palma de uma mão pode fazê-lo sem esforço, e tudo estaria
acabado para o animal cuja vida depende de um sopro. O incômodo
invólucro que era preciso lavar, encher, reaquecer junto ao fogo ou
sob a pele de uma besta abatida, fazer deitar à noite como uma
criança ou um velho imbecil, servia contra ele de refém para toda a
natureza e, pior ainda, para toda a sociedade dos homens. Seria
graças a essa carne e a esse couro que ele haveria talvez de sofrer
os horrores da tortura; seria o debilitamento dessas energias que o
impediria um dia de concluir coerentemente a imagem esboçada.
Se, às vezes, considerava como suspeitas as operações de seu
espírito, que ele isolava por comodidade do restante de sua matéria,
era sobretudo porque esse enfermo dependia dos serviços do
corpo. Já se cansara dessa mistura de fogo instável e de sólida
argila. Exitus rationalis: [45] uma tentação se oferecia, tão imperiosa
quanto o prurido carnal; um desgosto, talvez uma vaidade, o impelia
ao gesto que tudo conclui. Balançava gravemente a cabeça, como
diante de um doente que reclamasse muito cedo um remédio ou um
alimento. Seria sempre tempo de perecer com esse incômodo
suporte, ou de continuar sem ele uma vida incorpórea ou
imprevisível, não necessariamente mais privilegiada do que a que
levamos na carne.

A rigor, quase a contragosto, esse peregrino ao fim de um


percurso de mais de meio século obrigava-se pela primeira vez na
vida a recompor em pensamento os caminhos palmilhados,
distinguindo o fortuito do deliberado ou do necessário, empenhando-
se em fazer a escolha entre o pouco que parecia advir de si e o que
pertencia ao acervo comum de sua condição de homem. Nada era
inteiramente semelhante, nem de todo contrário, àquilo que ele
inicialmente quisera ou previamente pensara. O erro nascia ora da
ação de um elemento de cuja presença não suspeitara, ora de um
descuido no cômputo do tempo, que se revelara mais retráctil ou
mais dilatável do que nos relógios. Aos vinte anos, acreditara-se
livre das rotinas e dos preconceitos que paralisam nossos atos e
põem antolhos ao entendimento; sua vida, porém, consistira, a partir
de então, em conquistar pouco a pouco a liberdade cuja soma
julgara à primeira vista possuir. Não se é tão livre quanto se deseja,
quanto se quer, quanto se julga, talvez quanto se vive. Médico,
alquimista, artífice e astrólogo, trajava ele, de bom ou de mau grado,
o uniforme de seu tempo; deixara que o século lhe impusesse certas
ondulações ao intelecto. Por ódio à hipocrisia, mas também por obra
de um deplorável azedume de humor, envolvera-se em
controvérsias e polêmicas em que um fátuo Sim se opunha a um
Não imbecil. Esse homem sempre em guarda surpreendera-se por
julgar mais odiosos os crimes e mais tolas as superstições das
repúblicas ou dos príncipes que ameaçavam sua vida ou que lhe
queimavam os livros; inversamente, chegara a exagerar o mérito de
um idiota mitrado, coroado ou aureolado, cuja benevolente proteção
lhe permitisse passar das ideias aos atos. O desejo de harmonizar,
modificar ou reger um segmento da natureza das coisas colocara-o
a reboque dos grandes deste mundo, levando-o a edificar castelos
de cartas ou a produzir fantasias. Efetuava a soma de suas
quimeras. No Grande Harém, a amizade do poderoso e infeliz
Ibrahim, vizir de Sua Alteza, fizera-o acreditar no êxito de seu
projeto de saneamento dos pântanos situados ao redor de
Andrinopla; desejara ardentemente realizar uma reforma racional do
Hospital dos Janízaros, sob seus cuidados, começara-se a
recuperar aqui e ali os preciosos manuscritos dos médicos e
astrônomos gregos, outrora obtidos pelos sábios árabes e que, em
meio a muita mixórdia, continham às vezes uma verdade por
descobrir. Havia sobretudo um certo Dioscórides, no qual se
encontraram alguns fragmentos, mais antigos, de Cratevas, [46] que
se descobriu pertencerem ao judeu Amon, colega seu junto ao
sultão… Mas a sangrenta queda de Ibrahim lançara tudo aquilo por
terra, e o pesar que lhe causara essa catástrofe, após tantas outras,
levara-o a perder até a lembrança daqueles desastrosos começos
de empreendimento. Dera de ombros quando os pusilânimes
burgueses de Basileia se recusaram finalmente a conceder-lhe uma
cátedra, assustados pelos rumores que o faziam sodomita e
feiticeiro. (Ele fora, cada qual a seu tempo, tanto um quanto outro,
mas as palavras não correspondem aos fatos; traduzem apenas a
opinião que o rebanho tem dos fatos.) Não obstante, um pertinaz
gosto de fel vinha-lhe à boca quando da simples menção àquelas
pessoas. Em Augsburgo, lamentara amargamente haver chegado
muito tarde para obter o lugar de médico das minas que lhe daria a
oportunidade de observar as doenças dos operários que
trabalhavam no subsolo, submetidos às poderosas influências
metálicas de Saturno e Mercúrio. Entrevira ali possibilidades de
curas e combinações espantosas. Decerto percebia muito bem que
tais ambições haviam sido úteis, transportando-lhe por assim dizer o
espírito de um lugar a outro: é sempre melhor não se aproximar logo
das imobilidades eternas. Vistas a distância, essas turbulências lhe
causavam, todavia, o efeito de uma tempestade de areia.
Outro tanto se passava no complicado domínio dos prazeres
carnais. Os que escolhera eram os mais secretos e perigosos, pelo
menos em território cristão e à época em que o acaso o fizera vir ao
mundo; talvez não os houvesse procurado senão porque essa
dissimulação e essas defesas provocavam uma brutal ruptura dos
costumes, um mergulho no mundo que borbulha subjacente ao
visível e ao permitido. Ou talvez essa opção o mantivesse preso a
apetências tão simples e inexplicáveis quanto aquelas que se tem
por um fruto mais do que por outro: pouco lhe importava. O
essencial era que suas libertinagens, assim como suas ambições,
haviam sido, em suma, episódicas, como se lhe fosse natural
esgotar rapidamente o que as paixões podiam dar ou ensinar. O
estranho magma que os pregadores designavam com o termo, de
modo algum mal escolhido, luxúria (pois bem que se tratava,
parece, de uma exuberância da carne a exaurir suas forças),
desafiava o exame pela diversidade de substâncias que o
compunham e que, por sua vez, se fragmentavam em outros
elementos pouco simples. O amor aí se incluía, talvez mais
raramente do que se dizia, mas o próprio amor não era uma noção
pura. Esse mundo dito de baixo se comunicava com o que de mais
tênue havia na natureza humana. Assim como a mais crassa
ambição era ainda um sonho do espírito que se esforça por
harmonizar ou modificar as coisas, a carne em suas audácias fazia
suas as curiosidades do espírito e fabulava como lhe aprouvesse
fazê-lo; o vinho da luxúria extraía sua força dos sumos da alma com
a mesma destreza de que se valia para sugar os do corpo. O apetite
de uma carne jovem estava quase sempre quimericamente
associado ao inútil projeto de que um dia se formasse o discípulo
perfeito. Outros sentimentos aí se misturavam (atestam-no, sem
confessar, todos os homens). Frei Juan, em León, e François
Rondelet, em Montpellier, foram irmãos que se perderam ainda
jovens; ele tivera por seu criado Aleí e, mais tarde, por Gerhart, em
Lübeck, a solicitude de um pai por seus filhos. Essas paixões tão
arraigadas pareceram-lhe uma parte inalienável de sua liberdade de
homem: agora, era sem elas que se sentia liberto.
As mesmas reflexões se aplicavam a algumas mulheres com as
quais mantivera convívio carnal. Pouco se preocupava em
retroceder às causas dessas breves ligações, talvez mais marcantes
do que as outras, pois que as desenvolvera menos
espontaneamente. Seria o súbito desejo diante dos traços
particulares de um corpo uma necessidade desse profundo repouso
que por vezes a fêmea concede, como é de praxe, ou ainda, melhor
dissimulada do que uma afeição ou um vício, uma obscura
preocupação em testar o efeito dos ensinamentos herméticos sobre
o casal perfeito que recria em si o antigo andrógino? Mais valeria
dizer, com toda a boa-fé, que o acaso, naqueles dias, assumira a
imagem de mulher. Trinta anos antes, em Argel, e por compaixão
para com sua desolada juventude, ele adquirira uma jovem de boa
cepa criada por piratas numa praia dos arredores de Valencia;
calculara que logo se pudesse devolvê-la à Espanha. Mas, na
modesta casinha do litoral berbere, estabelecera-se entre eles uma
intimidade que muito se assemelhava à do casamento. Fora a única
vez que mantivera um caso com uma virgem; guardava de sua
primeira relação menos a lembrança de uma vitória do que a de
uma criatura a quem se vira na obrigação de tranquilizar e curar.
Durante algumas semanas, Zênon esteve servido de cama e mesa
por aquela beldade algo enfadonha que por ele nutria a gratidão que
se tem por um santo de igreja. Foi sem remorso que a confiou aos
cuidados de um padre francês prestes a embarcar para Port-
Vendres com um pequeno grupo de cativos de ambos os sexos
restituídos às suas famílias e aos seus países de origem. A módica
soma em dinheiro de que a proveu lhe permitiria regressar por
cômodos itinerários à sua terra natal… Mais tarde, junto às
muralhas de Buda, concederam-lhe como sua parte no saque uma
jovem e rude húngara; aceitou-a para não chamar muita atenção
sobre si num acampamento em que seu nome e seu aspecto já o
singularizavam e onde, não importava o que pensasse consigo
mesmo dos dogmas da Igreja, seria de todo conveniente resignar-se
à inferioridade de sua condição de cristão. Jamais cogitaria de
abusar do direito de guerra caso não tivesse ela se mostrado tão
ávida em desempenhar o seu papel de presa do inimigo. Pareceu-
lhe que nunca havia saboreado melhor os frutos de Eva… Naquela
manhã, entrara na cidade na condição de membro da comitiva dos
oficiais do sultão. Pouco tempo depois de regressar ao
acampamento, informaram-no de que, em sua ausência, se
transmitira uma ordem no sentido de que todos se desvencilhassem
dos escravos e dos bens móveis que atravancavam o exército;
cadáveres e fardos de estofo flutuavam ainda à superfície do rio… A
imagem daquele corpo ardente tão cedo resfriado o afastara por
longo tempo de qualquer aliança carnal. Depois, estaria ele de volta
às incandescentes planícies povoadas de estátuas de sal e de anjos
com longos cachos…

No Norte, a dama de Frösö acolhera-o nobremente quando do


retorno de suas peregrinações à orla das regiões polares. Tudo nela
era belo: o talhe esguio, a tez clara, as mãos hábeis em dispor
ataduras sobre as chagas e enxugar o suor provocado pelas febres,
o desembaraço com que caminhava sobre o tapete úmido da
floresta, arregaçando tranquilamente no vau dos córregos o vestido
de tecido grosso e deixando à mostra as pernas nuas. Iniciada na
arte das feiticeiras da Lapônia, ela o conduzira consigo às
choupanas dispersas nas margens dos pântanos onde se
praticavam fumigações e banhos mágicos acompanhados de
cantos… À noite, em seu pequeno solar de Frösö, ela lhe oferecera
à mesa, coberta por uma toalha branca, o pão de centeio e o sal, as
favas e a carne magra; e deitara-se no espaçoso leito com um
sereno impudor de esposa. Era viúva, e esperava escolher por
marido na festa de São Martinho um fazendeiro disponível da
vizinhança, a fim de evitar que a propriedade revertesse à tutela dos
irmãos mais velhos. Não restava a Zênon senão exercer sua arte
naquela província ampla como um reino, escrever seus tratados
junto ao calor de um fogareiro, subir durante a noite à pequena torre
para observar os astros… Entretanto, após oito ou dez dias de
verão, que não são ali mais do que um único dia sem sombras,
retomou seu caminho rumo a Upsala, para onde a corte se
transferira, ainda na esperança de prolongar os dias de vida que
restavam ao monarca e de fazer do jovem Érico aquele rei-discípulo
que é a última quimera dos filósofos.

Contudo, o próprio esforço de evocar aquelas personagens lhes


dilatava a importância, além de superestimar a da aventura carnal.
O rosto de Aleí não lhe reaparecia com mais frequência do que os
dos soldados desconhecidos que enregelavam nas estradas da
Polônia e que, por falta de tempo e de recursos, não pudera tentar
salvar. A burguesinha adúltera de Pont-Saint-Esprit repugnara-lhe
com a esfericidade de seu ventre, dissimulado sob um tufo de
pregas e rendas, seus cabelos que se anelavam em torno das
feições chupadas e macilentas, suas ridículas e grosseiras mentiras.
O filósofo se irritara com as olhadelas que ela lhe enviezava do
fundo de sua angústia, pois desconhecia outros meios de seduzir
um homem. E, todavia, arriscara por essa criatura seu bom renome
de médico; a pressa de agir rápido, antes que voltasse o marido
ciumento, o miserável despojo da cópula humana que era preciso
enterrar sob uma oliveira do jardim, a compra, a preço de ouro, do
silêncio das criadas que haviam velado madame e lavado os lençóis
manchados de sangue — tudo aquilo, afinal, criara entre ele e a
infeliz uma intimidade de cúmplices, e acabara por conhecê-la
melhor do que um amante à sua amante. A dama de Frösö fora
inteiramente benéfica, mas não mais do que a padeira de pele
bexiguenta que o socorrera uma noite em que estava sentado em
Salzburgo sob o alpendre de sua loja. Foi após sua fuga de
Innsbruck; ele estava exausto e transido de frio, depois de haver
percorrido trechos de péssimos caminhos sob a neve. Ela observara
por detrás das persianas de sua vitrine aquele homem encolhido
sobre o pequeno banco de pedra e, tomando-o sem dúvida por
algum mendigo, ofereceu-lhe um pedaço de pão ainda quente.
Depois, cautelosamente, recolocara a gazua que prendia as portas
basculantes. Ele não ignorava que aquela desconfiança benigna
também pudesse, se fosse o caso, brindá-lo com um tijolo ou com
uma vassourada. Ela não era senão uma das faces da bondade.
Aliás, a amizade ou a aversão valiam afinal tão pouco quanto as
carícias carnais. As pessoas que acompanharam ou cruzaram sua
vida, sem nada perderem de suas particularidades distintas,
confundiam-se no anonimato da distância, como árvores de uma
floresta que, vistas de longe, pareciam adentrar-se umas nas outras.
O Cônego Campanus se dissolvia no alquimista Riemer, cujas
doutrinas não obstante abominava, e até mesmo no finado João
Myers, que, se ainda vivesse, teria igualmente oitenta anos. O primo
Henrique com sua pele de búfalo e Ibrahim enfiado num cafetã, o
Príncipe Érico e Lorenzaccio, com o qual passara ele em outros
tempos algumas noites memoráveis em Lyon, não eram senão faces
diferentes de um mesmo prisma, que era o homem. Os atributos do
sexo contavam menos do que poderiam supor a razão e a
antirrazão do desejo: a dama de Frösö poderia ter sido um
companheiro; Gerhart tivera delicadezas de menina. Eram todos
criaturas das quais se acercara, depois abandonara, durante a
existência, como aquelas figuras espectrais, jamais vistas mais de
uma vez, mas de uma especificidade e de um realce quase terríveis,
que se destacam sob a noite das pálpebras no instante anterior ao
sono e ao sonho, e que ora passam e fogem com a rapidez de um
meteoro, ora se diluem nelas próprias sob a fixidez do olhar interior.
Leis matemáticas mais complexas e ainda mais desconhecidas do
que as do espírito ou dos sentidos presidiam esse vaivém de
fantasmas.
O contrário era também verdadeiro. A rigor, os acontecimentos
eram apenas pontos fixos, ainda que fossem deixados atrás de si os
do passado e que uma esquina escamoteasse os do futuro, e da
mesma forma se distanciavam das pessoas. A recordação nada
mais era do que um olhar pousado de tempos em tempos sobre
seres interiorizados, mas que não dependiam da memória para
continuar a existir. Em León, onde Dom Blas de Vela o fizera
envergar temporariamente o hábito de noviço jacobita, a fim de ficar
em melhores condições de acompanhá-lo em suas atividades
alquímicas, um monge de sua idade, Frei Juan, fora seu
companheiro de enxerga no convento congestionado onde os
recém-chegados partilhavam a dois ou três o feno do catre e o
cobertor. Zênon chegara a ser acometido por uma tosse pertinaz
entre as paredes através das quais se esgueiravam o vento e a
neve. Frei Juan dispensara os melhores cuidados a seu
companheiro, trazendo-lhe os caldos que conseguia furtar do irmão
encarregado da cozinha. Um amor perfectissimus florescera por
algum tempo entre os dois jovens religiosos, e as blasfêmias e
abjurações de Zênon eram como se não o fossem para aquele terno
coração pungido por uma devoção especial ao Apóstolo Bem-
Amado. Quando Dom Blas — expulso por seus monges, que nele
viam um perigoso feiticeiro cabalista — desceu o íngreme caminho
do mosteiro, vociferando maldições, Frei Juan optou por
acompanhar em sua desgraça o velho homem do qual, todavia, não
era nem o eleito nem o discípulo. Para Zênon, o golpe de Estado
monástico constituíra, ao contrário, a oportunidade de romper para
sempre com uma profissão nauseante e de ir, sob o hábito secular,
instruir-se alhures de ciências menos viscosas em matéria de
sonhos. Que seu mestre houvesse ou não observado rituais
judaicos, pouco importava ao jovem clérigo, para quem, segundo a
audaciosa fórmula transmitida às ocultas por gerações e gerações
de estudantes, a Lei cristã, a Lei mosaica e a Lei maometana nada
mais eram do que Três Imposturas. Sem dúvida, Dom Blas morrera
na estrada ou nas masmorras de algum tribunal eclesiástico; seriam
necessários trinta e cinco anos para que seu antigo aluno
reconhecesse em sua loucura uma inexplicável sabedoria. Quanto a
Frei Juan, se ainda vivesse em qualquer parte, teria agora perto de
sessenta anos. Sua imagem fora voluntariamente dissipada com as
daqueles meses passados sob o capuz e a cogula. E, no entanto,
Frei Juan e Dom Blas penavam ainda através do caminho
pedregoso, sob o áspero vento de abril, e não era preciso que
alguém se lembrasse para que estivessem eles por lá. Percorrendo
a charneca, tramando com seu condiscípulo projetos para o futuro,
François Rondelet coexistia com François deitado nu sobre a mesa
de mármore do anfiteatro universitário, e o Dr. Rondelet, explicando
a articulação do braço, parecia, mais do que a seus alunos, dirigir-se
ao próprio morto, e argumentar através do tempo com um Zênon
envelhecido. Unus ego et multi in me. [47] Nada alterava aquelas
estátuas em seus lugares, postadas para sempre sobre uma
superfície imóvel que seria talvez a eternidade. O tempo não era
senão um indício que as unia umas às outras. Existia um vínculo: os
serviços que não se prestaram a umas eram prestados a outras;
não se dera amparo a Dom Blas, mas socorrera-se em Gênova a
Joseph Ha-Cohen, que não deixara de considerar os outros como
cristãos imundos. Nada terminava: os mestres ou os confrades dos
quais recebera ele uma ideia ou graças a quem desenvolvera uma
outra, contrária, perseguiam surdamente sua irreconciliável
controvérsia, cada um aferrado à sua concepção do mundo como
um mágico ao interior de seu círculo. Darazi, que buscava um deus
mais próximo de si do que sua veia jugular, discutiria até as últimas
consequências com Dom Blas por que Deus era o Um-não-
manifesto, e João Myers riria em surdina da palavra Deus.

Há quase meio século servia-se ele de seu espírito como de uma


cunha para alargar o melhor que pudesse os interstícios da parede
que em toda parte nos confina. As fendas aumentavam, ou melhor:
parecia-lhe que a parede perdia sua solidez, mas sem deixar de ser
opaca, como se se tratasse de uma muralha de fumaça, ao invés de
um arcabouço de pedra. Os objetos renunciavam ao seu papel de
acessórios utilitários. Como um colchão já sem crina, deixavam
exaurir sua substância. Uma floresta se instalava no quarto. Aquele
escabelo, medido pela distância que separa do chão o traseiro de
um homem sentado, aquela mesa que serve para escrever e comer,
aquela porta que comunica um cubo de ar delimitado por tabiques
com um cubo de ar vizinho, perdiam as razões de ser que lhes dera
um artesão, para não serem agora mais do que troncos ou ramos
arrancados como santos supliciados de retábulos de igreja, repletos
de folhas espectrais e de pássaros invisíveis, gemendo ainda sob
tempestades há muita amainadas, e onde o cepilho deixara aqui e
ali o visgo da seiva vegetal. Aquela capa e aqueles trajes
dependurados num prego sabiam a sebo, a leite e a sangue.
Aquelas botas e sandálias que gretavam à beira da cama se haviam
movido quando insufladas pela respiração de um boi estendido
sobre a relva, e um porco esfolado grunhia baixinho na gordura com
a qual um sapateiro as untara. A morte violenta estava em toda
parte, tanto num açougue quanto num patíbulo. Um pato degolado
gritava na pena que seria utilizada para grafar sobre velhos
pergaminhos ideias que se supunham dignas de perdurar para
sempre. Tudo já fora outra coisa: aquela camisa que lhe alvejavam
as irmãs bernardinas fora um campo de linho mais azul do que o
céu, assim como um feixe de fibras postas de molho no fundo de um
canal. Aqueles florins em seu bolso, com a efígie do finado
Imperador Carlos, haviam sido trocados, dados e roubados,
pesados e gastos mil vezes antes de que por um instante ele os
acreditasse seus, e essas reviravoltas entre mãos avaras ou
pródigas eram breves se comparadas à inerte duração do próprio
metal, injetado nas veias da terra antes da vinda de Adão. As
paredes de tijolos se convertiam na lama que um dia viriam a ser. O
anexo do Convento dos Franciscanos, em cujo interior ele se
achava razoavelmente protegido e a salvo do frio, deixava de ser
uma casa, esse lugar geométrico do homem, sólido abrigo
destinado mais ao espírito do que ao corpo. Ela não era senão uma
choupana na floresta, uma tenda à beira de uma estrada, um trapo
de estofo lançado entre nós e o infinito. As telhas filtravam a bruma
e os astros incompreensíveis. Mortos às centenas a ocupavam,
assim como vivos tão perdidos quanto mortos; dúzias de mãos
haviam instalado aquelas vidraças, moldado aqueles tijolos e
serrado aquelas tábuas, pregado, costurado ou colado: seria tão
difícil reencontrar o operário ainda vivo que tecera aquele
revestimento de estofo quanto evocar um morto. As pessoas ali se
abrigaram como larvas em seu casulo, e lá continuariam a abrigar-
se depois dele. Bem escondidos, senão de todo invisíveis, um rato
por detrás de um tabique, um inseto a roer por dentro uma viga
apodrecida, percorriam por caminhos que não os dele os espaços
cheios e vazios daquilo a que ele chamava o seu quarto… Ele
erguia os olhos. No teto, uma viga inclinada trazia um milhar: 1491.
À época em que aquilo fora gravado para fixar uma data que não
mais importava a ninguém, ele ainda não existia, como tampouco a
mulher que o dera à luz. Inverteu os algarismos, como de
brincadeira: o ano de 1941 depois da Encarnação do Cristo. Tentava
imaginar aquele ano sem relação com sua própria existência, e do
qual não se sabia senão uma coisa: que ele existiria. Caminhava
agora sobre seu próprio pó. O tempo, contudo, existia como o fruto
do carvalho: ele não sentia aquelas datas talhadas por mãos
humanas. A Terra girava alheia ao calendário juliano ou à era cristã,
cumprindo sua órbita sem começo nem fim como um anel sem
ranhuras. Zênon lembrou-se de que se estava então, segundo o
calendário turco, no ano 973 da Hégira, embora Darazi tivesse
contado em segredo a partir da era de Chosroés. [48] Passando do
ano ao dia, sonhou que, naquele momento, o sol nascia sobre os
tetos de Pera. O quarto inclinava-se; as tiras de couro do estrado
gemiam como amarras de um cais; o leito deslizava do ocidente
para o oriente, ao contrário do movimento aparente do céu. A
certeza de repousar com estabilidade em algum sítio do solo belga
nada mais era do que um derradeiro equívoco; o ponto do espaço
em que ele se achava seria submergido dentro de uma hora pelo
mar e suas ondas, e o mesmo ocorreria pouco depois com as
Américas e o continente asiático. Aquelas regiões às quais ele não
iria superpunham-se abismo adentro do Asilo de São Cosme. O
próprio Zênon se dissipava como cinza ao vento.
Solve et coagula… [49] Ele sabia o que significava essa ruptura das
ideias, esse colapso no âmago das coisas. Quando jovem clérigo,
lera ele em Nicolau Flamel a descrição do opus nigrum [50] a
tentativa de dissolução e calcinação das formas que constitui a
etapa mais difícil da Grande Obra. Dom Blas de Vela lhe afirmara
amiúde solenemente que a operação se daria por si mesma,
quisesse ele ou não, quando as condições se fizessem propícias. O
clérigo meditara impacientemente sobre esses adágios que lhe
pareciam extraídos não se sabe de que sinistro e talvez verídico
formulário. A separação alquímica, tão perigosa que os filósofos
herméticos a ela só se referiam através de palavras ambíguas, tão
difícil que vidas inteiras se haviam consumido em vão no afã de
realizá-la, ele a confundira outrora com uma fácil rebelião. Depois,
rejeitando o confuso amontoado de quimeras tão antigas quanto a
ilusão humana, guardando de seus mestres alquimistas apenas
algumas fórmulas pragmáticas, resolvera dissolver e coagular a
matéria no sentido de uma experimentação feita com o corpo das
coisas. Agora, os dois ramos da parábola se enlaçavam; cumprira-
se a mors filosofica: [51] o pesquisador queimado pelos ácidos da
pesquisa era a um tempo sujeito e objeto, frágil alambique e, ao
fundo do recipiente, o precipitado negro. A experiência que se
supunha confinada ao laboratório estendera-se a tudo. Poder-se-ia
concluir daí que as etapas subsequentes da aventura alquímica
fossem algo distintas do que apenas sonhos, e que um dia ele
também teria acesso à pureza da Obra em Branco, depois ao triunfo
conjugado do espírito e dos sentidos que caracteriza a Obra em
Vermelho? Do fundo da fenda nascia uma Quimera. Por audácia ele
o afirmara, como outrora por audácia o negara. De súbito, ele se
imobilizava, puxando abruptamente suas próprias rédeas. A primeira
etapa da Obra demandara toda a sua vida. Faltavam-lhe tempo e
forças para ir adiante, supondo que tivesse um caminho aberto à
sua frente, e que por este pudesse passar um homem. Ou o
apodrecimento das ideias, a morte dos instintos, o esfacelamento de
formas quase intoleráveis à natureza humana seriam rapidamente
acompanhados pela morte real — e seria curioso ver de que forma
isso ocorreria —, ou o espírito, afinal resgatado dos domínios da
vertigem, retomaria as rotinas habituais, dotado apenas de
faculdades mais livres e como que mais purificadas. Seria belo ver
as suas consequências.
Ele começava a vê-las. As tarefas do dispensário não o fatigavam:
sua mão e sua destreza jamais se revelaram tão firmes. Os
indigentes andrajosos que esperavam pacientemente cada manhã a
abertura do asilo eram tratados com tanta arte quanto o foram
outrora as pessoas importantes do lugar. A total ausência de
ambição ou de receio permitia-lhe aplicar mais livremente seus
métodos, e quase sempre com bons resultados: essa aplicação
integral excluía a piedade. Sua compleição naturalmente seca e
nervosa parecia revigorada pelo avanço dos anos; ele não sentia
tanto frio; parecia insensível ao gelo do inverno; um reumatismo
contraído na Polônia não mais o atormentava. Já não padecia dos
acessos periódicos de uma febre terçã que trouxera de sua viagem
ao Oriente. Comia com indiferença o que um dos irmãos designados
pelo prior para o asilo lhe trazia do refeitório, ou escolhia na
estalagem alguma coisa barata. A carne, o sangue, os miúdos, tudo
aquilo que palpitasse ou vivesse o repugnava nesse período de sua
vida, pois o animal morre com a mesma dor que o homem, e não lhe
apetecia digerir agonias. Desde a época em que degolara com suas
próprias mãos um porco num açougue de Montpellier, para verificar
se nele havia ou não coincidência entre a pulsação da artéria e a
sístole do coração, deixara de considerar útil empregar dois termos
diferentes para designar o animal que se abate e o homem que se
mata, o animal que se arrebenta e o homem que morre. Suas
preferências alimentares recaíam sobre o pão, a cerveja, as papas e
mingaus que conservam algo do sabor profundo da terra, as
verduras aquosas, os frutos frescos, as subterrâneas e suculentas
raízes. O estalajadeiro e o frade encarregado da cozinha
maravilhavam-se de suas abstinências, cujo propósito lhes parecia
piedoso. Às vezes, porém, punha-se a comer pensativamente um
pedaço de tripa ou uma fatia de fígado sangrento, a fim de provar a
si mesmo que sua aversão por esse tipo de alimento provinha do
espírito, e não de um capricho gastronômico. Jamais cuidara de
seus trajes: por distração ou negligência, eles não eram renovados.
No âmbito erótico, continuava a ser o médico que recomendara
outrora a seus clientes os benefícios do amor, como em outras
ocasiões se lhes prescreve o vinho. Esses ardentes mistérios
pareciam-lhe ainda, com relação a muitos de nós, a única via de
acesso àquele reino ígneo de que somos talvez ínfimas centelhas,
mas essa sublime ascensão era efêmera, e no fundo ele duvidava
de que um ato tão sujeito às rotinas da matéria, tão dependente do
instrumental gerado pela carne, pudesse diferir de uma dessas
experiências que se devem realizar para logo em seguida esquecer.
A castidade, que outrora ele entendia nos termos de uma
superstição a ser combatida, parecia-lhe agora uma das faces de
sua serenidade; Zênon degustava o frio conhecimento que temos
dos seres quando não mais os desejamos. Certa ocasião,
entretanto, seduzido por um encontro, entregou-se outra vez a tais
jogos, e surpreendeu-se com seu próprio vigor. Enfureceu-se certo
dia com um monge velhaco que vendia na cidade os unguentos do
dispensário, mas sua cólera era mais deliberada do que instintiva.
Chegou mesmo a se permitir um acesso de vaidade logo após uma
operação bem-realizada, tal como se deixa um cão espojar-se na
relva.

Uma manhã, durante um de seus passeios de herbolário, uma


ocorrência insignificante e quase grotesca fê-lo refletir; o episódio
exerceu sobre ele o efeito comparável ao de uma revelação que
ilumina para um devoto algum sagrado mistério. Saíra da cidade ao
romper o dia em direção à orla das dunas, levando consigo uma
lupa que, sob suas especificações, lhe fizera um oculista de Bruges
e que lhe serviria para examinar de perto as radículas e as favas
das plantas recolhidas. Por volta do meio-dia, adormeceu
humildemente numa depressão da areia, a cabeça pousada sobre o
braço e a lupa, que lhe escorregara das mãos, caída sob seu corpo,
entre os gravetos de uma moita ressequida. Ao despertar, julgou
perceber diante de seu rosto um animal de assombrosa mobilidade,
um inseto ou molusco que se locomovia na sombra. Sua forma era
esférica; a porção central, de um negro úmido e cintilante, estava
circunscrita por uma zona de um branco róseo ou baço; filamentos
franjados atravessavam-lhe a periferia, emergindo de uma espécie
de flácida carapaça castanha, estriada de fendas e ondulada de
intumescências. Uma vida quase espantosa pulsava no interior
daquela coisa frágil. Num átimo, antes mesmo de que sua visão
pudesse articular-se em pensamento, reconheceu o filósofo que
aquilo que via nada mais era que seu próprio olho refletido e
ampliado pela lupa, atrás da qual a relva e a areia formavam um
amálgama metálico semelhante ao do aço de um espelho. O filósofo
se ergueu imerso em devaneio. Ele se vira vendo-se a si próprio;
furtando-se às rotinas das perspectivas habituais, contemplara de
muito perto o pequeno e imenso órgão, próximo e contudo estranho,
vivo mas vulnerável, dotado de um imperfeito e todavia prodigioso
poder, do qual ele dependia para ver o universo. Nada havia de
teórico a extrair da visão que bizarramente dilatou sua consciência
de si e, ao mesmo tempo, sua noção dos múltiplos objetos que
compõem este si. Como o olho de Deus em certas gravuras, aquele
olho humano tornou-se um símbolo. O importante era recolher o
pouco que o olho filtraria do mundo antes de que ele escurecesse,
controlar o seu testemunho e, se possível, corrigir os seus erros. Em
certo sentido, o olho contrabalançava o abismo.

Ele começava a sair do negro desfiladeiro. Na verdade, daí já


saíra mais de uma vez. E daí voltaria ainda a sair. Os compêndios
consagrados à aventura do espírito enganavam-se ao atribuir a este
fases sucessivas: ao contrário, estas se fundiam umas nas outras;
tudo estava subordinado a enredos e a infinitas repetições. A
investigação operada pelo espírito girava em círculo. Outrora, em
Basileia, assim como em outros lugares, passara ele pela mesma
noite. As mesmas verdades haviam sido reaprendidas por diversas
vezes. A experiência era cumulativa: o passo dado adiante se
tornava mais firme; o olho via mais longe quando imerso em certas
trevas; o espírito constatava pelo menos certas leis. Como ocorre a
um homem que escala uma montanha, ou desce talvez suas
encostas, ele se alçava e caía no mesmo lugar; quando muito, a
cada laçada, o mesmo abismo se abria ora à direita, ora à esquerda.
A escalada não era mensurável senão pelo ar que se rarefazia e
pelos novos cumes que apontavam por detrás daqueles que
pareciam interceptar o horizonte. Mas a ideia de ascensão ou de
queda era falsa: os astros latejavam tanto embaixo quanto em cima;
ele não se achava mais próximo do fundo do vórtice do que de seu
centro. O abismo se situava, a um só tempo, para além da esfera
terrestre e no interior da abóbada óssea. Tudo parecia ocorrer no
âmago de uma infinita série de curvas fechadas.

Pôs-se de novo a escrever, conquanto sem nenhuma intenção de


dar a lume suas produções. De todos os tratados de medicina
antiga, Zênon sempre admirara o Livro III das Epidêmicas de
Hipócrates pela exata descrição de casos clínicos, com seus
sintomas, sua evolução diária e suas formas de manifestação.
Dispunha de um registro análogo no que concernia aos doentes
tratados no Asilo de São Cosme. Qualquer médico que lhe
sobrevivesse saberia tirar proveito desse diário redigido por um
prático que exercera a medicina em Flandres ao tempo em que
reinara Sua Majestade Católica Filipe II. Um projeto mais audacioso
ocupou-o durante algum tempo: o de um Liber Singularis, no qual
consignaria minuciosamente tudo o que sabia de um homem, que
era ele próprio, sua compleição, sua conduta, seus atos confessos
ou secretos, fortuitos ou intencionais, seus pensamentos e até
mesmo seus sonhos. Reduzindo o plano demasiado ambicioso,
restringiu-se a um único ano vivido por esse homem e, depois, a um
único dia: a copiosa matéria ainda lhe escapava, e logo se deu
conta de que de todos os seus passatempos era esse o mais
perigoso. E a ele renunciou. Às vezes, para se distrair, anotava
pretensas profecias que, na verdade, satirizavam os erros e as
monstruosidades de seu tempo, dando-lhes o inusitado aspecto de
uma novidade ou de um prodígio. Quando se oferecia a ocasião, e à
guisa de entretenimento, comunicava ao organista da Igreja de São
Donato, do qual se tornara amigo desde a época em que extirpara
um tumor benigno de sua mulher, alguns de seus bizarros enigmas.
O organista e a esposa quebravam a cabeça na tentativa de
decifrar-lhes o significado, como nas adivinhações, e riam-se depois
sem conseguir descobrir-lhes a malícia.
Um dos objetivos que o ocupou durante esses anos foi uma
plantação de tomate, raridade botânica produzida por uma muda
que a muito custo obtivera de um exemplar único trazido do Novo
Mundo. Essa preciosa planta, que ele guardava em seu laboratório,
motivou-o a reiniciar seus antigos estudos sobre a circulação da
seiva vegetal; com o auxílio de uma tampa que impedia a
evaporação da água derramada sobre a argila de um recipiente, e
realizando toda manhã acuradas pesagens, conseguiu, depois de
muito esforço, medir quantas onças líquidas eram cada dia
absorvidas pelas propriedades de embebição da planta; tentou
depois calcular algebricamente até que altura essa faculdade podia
elevar os fluidos no interior de um tronco ou de um caule.
Correspondia-se sobre o assunto com o sábio matemático que o
acolhera em Lovaina cerca de seis anos antes. Ambos trocavam
fórmulas entre si, e Zênon aguardava sempre com impaciência suas
respostas. Começara também a cogitar de novas viagens.
A doença do Prior

Numa segunda-feira de maio, dia da festa do Preciosíssimo Sangue,


Zênon, como de hábito, comia sua refeição na hospedagem do
Grande Cervo, sentado à parte em seu habitual e sombrio cantinho.
As mesas e os bancos próximos às janelas que davam para a rua
estavam, ao contrário, apinhados de fregueses, pois dali se podia
ver passar a procissão. Uma caftina que mantinha em Bruges uma
célebre casa — e que, em virtude de sua generosa compleição,
ganhara o apelido de Abóbora — ocupava uma das mesas em
companhia de um homenzinho macilento que passava por seu filho
e de duas mulheres do estabelecimento. Zênon conhecia a Abóbora
graças às recriminações de uma jovem tísica que vinha por vezes
pedir-lhe um remédio para a tosse. A criatura não se cansava de
falar nas vilezas da patroa, que a explorava e lhe roubava a fina
roupa de cama.
Um grupelho de guardas-valões, dispensados das alas que
haviam formado junto ao pórtico da igreja, entrou para comer. A
mesa da Abóbora agradou ao oficial, que ordenou a seus ocupantes
que a desimpedissem. Ao jovem e às duas prostitutas não foi
necessário dizê-lo duas vezes, mas a Abóbora, empanzinada de
soberba, recusou-se a abandoná-la. Empurrada violentamente por
um dos guardas, enganchou-se à mesa, virando os pratos; uma
bofetada do oficial lanhou-lhe o obeso rosto argiloso com um sulco
lívido. Uivando, mordendo, agarrando-se aos bancos e ao batente
da porta, deixou-se afinal arrastar e ser enxotada pelos guardas; um
deles, por galhofa, cutucou-lhe o traseiro com a ponta de sua
espada. Instalado no lugar que conquistara, o oficial ordenou com
desdém à criada que limpasse o assoalho.
Ninguém se mexeu de onde estava. Alguns sorriram por
pusilânime complacência; a maioria, ao contrário, desviou os olhos
ou praguejou, o nariz enfiado no prato. Zênon observou a cena com
uma náusea de fastio: a Abóbora fora escarnecida diante de todos;
a supor que se pudesse enfrentar a brutalidade dos soldados, a
ocasião não poderia ser pior, e o defensor da rotunda criatura não
teria colhido senão pesados gracejos. Soube-se depois que a
caftina fora espancada por atentar contra a ordem pública e
devolvida à sua residência. Oito dias após, fazia ela, como de
costume, as honras de seu bordel, exibindo para quem quisesse ver
as cicatrizes que lhe deixaram.
Quando Zênon foi visitar o prior, que repousava então em seu
quarto, cansado por haver seguido a pé a procissão, decidiu colocá-
lo a par do incidente, relatando-lhe o que vira com os próprios olhos.
O religioso suspirou, pousando diante de si uma chávena de tisana.
— Aquela mulher é o refugo de seu sexo — disse ele —, e de
forma alguma o censuro por não haver interferido. Mas teríamos nós
protestado contra tamanha indignidade se se tratasse de uma
santa? Essa Abóbora é o que é, e, no entanto, tinha ela a justiça a
seu favor, vale dizer, Deus e seus anjos.
— Deus e seus anjos não intervieram a favor dela — disse
evasivamente o médico.
— Longe de mim pôr em dúvida os santos prodígios das Escrituras
— retrucou o religioso com certa ênfase —, mas nos dias que
correm, meu amigo, e já vivi sessenta anos, jamais vi Deus intervir
diretamente em nossos assuntos terrestres. Deus nos delega seus
poderes. Ele não age senão através de nós, pobres homens.
O prior procurou na gaveta de uma escrivaninha duas folhas nas
quais se lia uma escrita de letras miúdas e apertadas, entregando-
as ao Dr. Theus.
— Veja — disse ele. — Meu afilhado, o Senhor de Withem, um
patriota, mantém-me a par de atrocidades das quais só nos
inteiramos muito tarde, quando a emoção já se dissipou, ou logo em
seguida, quando já adoçada com mentiras. Nossa imaginação é
muito precária, senhor meu médico. Inquietamo-nos, e não sem
razão, ao sabermos que uma caftina foi espancada, uma vez que
essas sevícias foram consumadas diante de nossos olhos, mas
monstruosidades que se cometem a dez léguas daqui não me
impedem de beber até a última gota esta infusão de malva.
— A imaginação de Vossa Reverência é bastante poderosa para
fazer tremer-lhe as mãos e entornar esse resto de tisana —
observou Sebastião Theus.
O prior enxugou com o lenço o hábito de lã cinzenta.
— Cerca de trezentos homens e mulheres declarados rebeldes a
Deus e ao príncipe foram executados em Armentières — murmurou
ele como que de má vontade. — Continue a ler, meu amigo.
— Os pobres de que trato já sabem dos resultados das
escaramuças de Armentières — respondeu Zênon, devolvendo a
carta às mãos do prior. — Quanto aos demais abusos de que essas
páginas estão cheias, são a base das conversas do mercado e das
tavernas. Essas notícias voam ao rés do chão. Os burgueses e os
homens ilustres, resguardados em suas sólidas mansões
aquecidas, nada mais ouvem do que vagos rumores.
— De fato — assentiu o prior com uma cólera melancólica. —
Ontem, após a missa, ao encontrar-me no adro da Igreja de Nossa
Senhora com meus confrades de clericato, ousei abordar assuntos
públicos. Não houve uma só daquelas santas pessoas que não
aprovasse os fins, não os meios, dos tribunais de exceção, ou que
pelo menos não protestasse senão timidamente contra seus
sangrentos abusos. Excluo o Cura de Saint-Gilles, que declarou
sermos capazes de queimar nossos heréticos sem que o
estrangeiro nos venha ensinar como fazê-lo.
— Está de acordo com as boas tradições — disse Sebastião
Theus com um sorriso.
— Serei eu menos fervoroso cristão e piedoso católico? —
exclamou o prior. — Não se navega a vida inteira numa bela
embarcação sem odiar os ratos que lhe roem os porões. Mas o
fogo, o ferro e a sepultura servem apenas para endurecer aqueles
que os infligem, os que acorrem como a um teatro e os que os
suportam. Os obstinados fazem assim papel de mártires. Zomba-se,
senhor meu médico. O tirano dá sempre um jeito de trucidar nossos
compatriotas sob o pretexto de vingar Deus.
— Vossa Reverência aprovaria essas execuções se as julgasse
eficazes para restabelecer a unidade da Igreja?
— Não me tente, meu amigo. Sei apenas que nosso pai Francisco,
que morreu dando tudo de si para apaziguar as discórdias civis,
autorizou que nossos fidalgos flamengos se empenhassem em
saldar um compromisso.
— Esses mesmos senhores acreditaram poder solicitar ao Rei a
retirada dos editais que publicavam o anátema lançado contra o
herético do Concílio de Trento — disse dubitativamente o médico.
— E por que não? — exclamou o prior. — Aqueles editais
protegidos pelas tropas são um ultraje às nossas liberdades civis.
Todo insatisfeito é rotulado de protestante. Deus me perdoe!
Provavelmente suspeitarão de que até mesmo aquela caftina tenha
tendências evangélicas… No tocante ao Concílio, você sabe tanto
quanto eu quais pesos as discretas vontades de nossos príncipes
depuseram sobre suas deliberações. O Imperador Carlos se
preocupava acima de tudo com a unidade do Império, o que é
natural. O Rei Filipe sonha com a supremacia das Espanhas. Hélas!
Se eu não tivesse me apercebido em boa hora de que toda a
política da corte nada mais é do que astúcia e contra-astúcia, abuso
de palavra e abuso de força, não teria talvez encontrado em mim a
necessária piedade para trocar o mundo pelo serviço de Nosso
Senhor.
— Vossa Reverência terá decerto experimentado grandes reveses
— disse o Dr. Theus.
— Qual nada! — replicou o prior. — Fui cortesão bem-visto pelo
senhor, negociador mais hábil do que mereciam meus parcos
talentos, esposo afortunado de uma boa e piedosa mulher. Terei
sido sem dúvida um privilegiado neste mundo de infortúnios.
Sua fronte estava úmida de suor, o que pareceu ao médico um
sintoma de fraqueza. Ele voltou para o Dr. Theus um semblante
preocupado:
— Não diz você que os humildes de que cuida acompanham com
simpatia os movimentos da pretensa Reforma protestante?
— Nada disse nem observei de semelhante — ponderou
cautelosamente Sebastião. — Vossa Reverência não ignora que
aqueles que mantêm opiniões comprometedoras normalmente
sabem guardar silêncio — aduziu com uma ponta de ironia.
— Não há dúvida de que a frugalidade evangélica tem atrativos
para alguns desses pobres. Contudo, se a maioria é de bons
católicos, não o será senão por hábito.
— Por hábito — repetiu dolorosamente o religioso.
— Para mim — observou com frieza o Dr. Theus, preferindo
alongar-se para dar o tempo necessário a que as emoções do prior
se acalmassem —, tudo não passa da eterna confusão em que
transcorrem os assuntos humanos. O tirano aterroriza os corações
dotados de bons sentimentos, mas ninguém nega que Sua
Majestade reine legitimamente nos Países Baixos ou que sustente
uma avó que foi a herdeira e o ídolo de Flandres. Não discuto se é
justo que se legue um povo como uma credência; nossas leis são
assim. Os fidalgos que por demagogia usam o nome de Gueux [52]
são como Janos, [53] traidores para o Rei do qual são os vassalos,
heróis e patriotas aos olhos da multidão. Por outro lado, as
discórdias entre os príncipes e as dissidências entre as cidades são
tais que até mesmo os espíritos austeros ainda preferem as
exações do estrangeiro à desordem que se seguiria à sua derrota. O
espanhol persegue brutalmente os supostos reformados, mas a
maioria dos patriotas é de bons católicos. Esses reformados se
ufanam da austeridade de seus costumes, conquanto o líder que os
conduz em Flandres, o Senhor de Brederode, [54] seja um patife
devasso. A Governante, que tudo faz para conservar seu lugar,
acena com a supressão dos tribunais da Inquisição e anuncia ao
mesmo tempo o estabelecimento de outras cortes de justiça que
enviarão os heréticos à fogueira. A Igreja insiste caridosamente para
aqueles que se confessam in extremis não serem condenados
senão à morte ordinária, levando assim os infelizes ao perjúrio e ao
mau uso dos sacramentos. Os evangelistas, por sua vez, degolam
quando podem os miseráveis remanescentes do anabatismo. O
Estado eclesiástico de Liège (que, por definição, está do lado da
Santa Igreja) enriqueceu mediante o público fornecimento de armas
às tropas reais, fazendo o mesmo sub-repticiamente com relação
aos Gueux. Todos odeiam os militares a soldo do estrangeiro, e
tanto mais que, por ser esse soldo irrisório, recobram-no às custas
dos cidadãos, embora os bandos de salteadores que percorrem os
campos graças aos tumultos levem os burgueses a reclamar a
proteção das lanças e das alabardas. Esses burgueses, ciosos de
suas imunidades e privilégios, agastam-se por princípio com a
nobreza e a monarquia, mas os heréticos são recrutados pela
maioria junto às camadas mais baixas da população — e todo
burguês detesta os pobres. Em meio a essa zoada de gritos e
palavras, a esse estrondo de armas, e, por vezes, a esse bom
tilintar de moedas, o que ainda menos se ouve são os gritos dos que
são espedaçados ou supliciados. Assim é o mundo, senhor prior.
— Durante a missa cantada — disse melancolicamente o superior
— rezei (é de praxe) pela prosperidade da Governante e de Sua
Majestade. Pela Governante, ainda vá que seja: Madame é uma
mulher excepcional e que tenta conciliar o machado e o cepo. Mas
deverei rezar também por Herodes? Será necessário pedir a Deus
pela prosperidade do Cardeal de Granvelle em seu retiro, que, aliás,
é falso, e de onde ele continua a nos fustigar? A religião nos obriga
a respeitar as autoridades constituídas, e não o desobedeço.
Contudo, a própria autoridade também é coisa que se delega, e
quanto mais se rebaixa, mais assume fisionomias degradantes e
abjetas nas quais se imprime grotescamente o traço de nossos
crimes. Deverei então fazer uso de minhas preces pela salvação
dos guardas-valões?
— Em todo caso, Vossa Reverência poderá sempre implorar a
Deus que ilumine os que nos governam — observou o médico.
— Tenho sobretudo a necessidade de que ele me ilumine a mim —
ponderou compungido o franciscano.
Zênon desviou o assunto para as necessidades e as despesas do
asilo, pois a conversa sobre as questões públicas agitava muito o
religioso. No momento de se despedir, porém, o prior o reteve,
fazendo-lhe um sinal para que fechasse por prudência a porta de
sua cela.
— Não tenho por que lhe aconselhar circunspecção — disse ele.
— Considere que ninguém está tão por cima ou tão por baixo para
evitar suspeitas e injúrias. Que ninguém saiba de nossas conversas.
— A menos que eu fale com minha sombra — disse o Dr. Theus.
— Você é íntimo deste convento — lembrou o religioso. —
Lembre-se bem de que há nesta cidade, e mesmo entre estas
paredes, um bom número de pessoas às quais pouco importaria
acusar o Prior dos Franciscanos de insubordinação ou de heresia.

Essas conversas se repetiram com extrema frequência. O prior


dava a impressão de estar sempre ávido. Esse homem tão
respeitado parecia a Zênon tão solitário e ameaçado quanto ele. A
cada visita, o médico via mais claramente no rosto do religioso os
indícios de um mal indefinível que minava suas forças. A angústia e
a piedade provocadas no prior pela miséria de sua época poderiam
ser a única causa daquele inexplicável declínio; talvez, ao contrário,
elas fossem apenas o efeito, e também o indício de uma
constituição demasiado abalada para suportar os males do mundo
com a robusta indiferença típica de quase todos os homens. Zênon
persuadiu Sua Reverência a utilizar diariamente um fortificante
misturado ao vinho; o prior o bebia para agradá-lo.
Também o médico tomara gosto pelo intercâmbio de palavras
corteses e, não obstante, isentas de mentiras. Contudo, sempre
saía dali com a sensação de uma vaga impostura. Mais de uma vez,
como alguém constrangido a falar em latim na Sorbonne, teve de
adotar, para se fazer entender, uma linguagem que não era a sua e
que lhe pervertia o pensamento, ainda que a dominasse à perfeição
no tocante às inflexões e às sutilezas fraseológicas; no caso, a
linguagem de um cristão obsequioso, senão devoto, e do súdito leal,
mas algo alarmado com o atual estado de coisas do mundo. Mais de
uma vez, e levando em conta mais por respeito do que por
prudência certos pontos de vista do prior, admitira aceitar premissas
a partir das quais, no íntimo de si, se teria recusado a elaborar o que
quer que fosse; desprezando suas próprias preocupações, ele se
impusera mostrar uma única face de seu espírito, sempre a mesma,
aquela que refletia seu amigo. Essa dissimulação inerente às
relações humanas — e que, para ele, se transformara numa
segunda natureza — o perturbava no livre intercâmbio entre dois
homens desinteressados. O prior se teria surpreendido ao constatar
quão exíguo era o espaço reservado nas cogitações solitárias do Dr.
Theus aos assuntos que ambos debatiam em sua cela. Não que as
desgraças dos Países Baixos deixassem Zênon indiferente, mas é
que ele vivera por demais próximo a um mundo de sangue e de fogo
para sentir diante daquelas novas provas da insânia humana o
mesmo pasmo de dor do Prior dos Franciscanos.
Quanto a seus próprios riscos, estes lhe pareciam por hora antes
minimizados do que ampliados pelas perturbações públicas.
Ninguém pensava no insignificante Sebastião Theus. A
clandestinidade que os adeptos da magia juram preservar no
interesse de sua ciência o envolvia pela força das coisas; na
verdade, ele era invisível.
Numa tarde desse mesmo verão, à hora do toque de recolher,
subiu ele ao sótão após haver passado a chave na porta. Como de
costume, o asilo fechava à hora do ângelus: somente uma vez, por
ocasião de uma epidemia durante a qual o Hospital de São João
ficara apinhado de doentes, o médico tomara para si a
responsabilidade de instalar algumas enxergas e de abrigar os
enfermos numa das salas do andar de baixo. Frei Lucas,
encarregado de lavar o piso de ladrilhos, acabava de se retirar com
suas selhas e estopas. De repente, Zênon escutou chocar-se contra
sua vidraça um punhado de cascalhos, o que o fez lembrar-se dos
tempos de outrora, quando reencontrava Colas Gheel após o toque
do sino que repicava ao cair a tarde. O médico se vestiu e desceu.
Era o filho do ferreiro da Rua das Lãs. Esse Josse Cassel contou-
lhe que um primo, natural de Saint-Pierre-lez-Bruges, quebrara a
perna devido ao coice de um cavalo que conduzia para ser ferrado
em casa do tio; ele jazia em péssimo estado numa pequena peça
situada por detrás da ferraria. Zênon muniu-se do que lhe pareceu
necessário e acompanhou Josse pelas ruas. À altura de uma
encruzilhada, toparam ambos com uma sentinela, que os deixou
passar sem maiores problemas quando Josse lhe explicou estar à
procura de um cirurgião para seu pai, que acabara de esmagar dois
dedos com uma martelada. A mentira deu o que pensar ao médico.
A vítima estava estendida sobre um leito improvisado; era um
camponês de seus vinte anos, uma espécie de lobo ruivo, os
cabelos grudados à face pelo suor, meio desfalecido pelo sofrimento
e pelo sangue que perdera. Zênon administrou-lhe um revigorante e
examinou o estado da perna; em dois pontos, os ossos haviam
perfurado a carne, que pendia em frangalhos. Nada no acidente
parecia dever-se ao impacto de um coice; em parte alguma era
visível a marca de cascos. Num caso assim, a prudência requeria a
amputação; o ferido, porém, ao perceber que o médico flambava a
lâmina de sua serra, reanimou-se e começou a gritar; o ferreiro e o
filho a custo permaneciam menos inquietos, temendo ambos que, se
a intervenção malograsse, pudessem ter um morto a que enterrar.
Mudando de ideia, Zênon decidiu tentar então reduzir a fratura.
O rapaz nada lucrou com isso: o esforço de esticar a perna para
repor os ossos no lugar fê-lo gritar como se o submetessem à
tortura; o cirurgião teve de rasgar o ferimento a navalha e nele
introduzir a mão para procurar as lascas de osso. Em seguida, lavou
toda a superfície atingida com um vinho forte que o ferreiro
guardava numa bilha. Pai e filho se desdobravam na tarefa de
improvisar talas e ataduras. Sufocava-se na pequena peça, tendo os
dois homens vedado todas as frinchas para que ninguém ouvisse os
gritos do ferido.
Zênon deixou a Rua das Lãs na mais absoluta incerteza quanto
aos resultados da operação. O rapaz estava quase em choque, e
apenas o vigor da juventude lhe concedia uma chance remota. O
médico veio vê-lo nos dias seguintes, ora pela manhãzinha, ora
após fechar o asilo, para irrigar as partes lesionadas com um
vinagre que limpava o pus e outras secreções fétidas. Untou-as
depois com água de rosas para neutralizar o excesso de
ressecamento e a inflamação das bordas do ferimento. Evitava o
mais que podia os horários noturnos, quando suas idas e vindas
pudessem ser percebidas. Ainda que pai e filho insistissem na
história do coice, ficou tacitamente entendido que o melhor seria
silenciar sobre o assunto.
Por volta do décimo dia formou-se um abscesso; a carne tornou-se
esponjosa, e a febre, que não abandonara o ferido, subiu como uma
chama. Zênon submeteu-o a uma severa dieta. Han delirava,
implorando por comida. Certa noite, os músculos se contraíram com
tamanha violência que a perna rompeu a tala. Zênon admitiu que,
por uma condenável piedade, não apertara o bastante as duas ripas
da tala; seria de novo preciso reajustar os ossos e reduzir a fratura.
O sofrimento poderia ser pior do que por ocasião dos primeiros
socorros; dessa vez, porém, imerso por Zênon numa nuvem de
ópio, o ferido suportou-o melhor. Ao cabo de uma semana, os
drenos haviam purgado o abscesso, e a febre se dissipou através
de abundantes suadouros. Zênon retirou-se da ferraria de coração
leve, com o sentimento de haver contado com a Fortuna sem a qual
é vã toda e qualquer perícia. Durante três semanas, em meio a suas
outras preocupações e afazeres, parecia-lhe haver continuamente
colocado todas as suas forças a serviço daquela cura. Esse zelo
perene lembrava muito o que o prior costumava definir como o
estado de oração.

Contudo, certas confissões haviam escapado dos lábios do ferido


durante seu delírio. Josse e o ferreiro acabaram por admitir e
confirmar de bom grado a comprometedora história. Han viera de
um lugarejo pobre dos lados de Zevecote, a três milhas de Bruges,
onde há pouco haviam ocorrido sangrentos incidentes que ninguém
ignorava. Tudo começara com um predicante cujas palavras
inflamaram a aldeia; os camponeses, descontentes com o cura a
quem não satisfaziam os dízimos que vinha deles recebendo,
invadiram a igreja de martelo em punho, quebrando as estátuas do
altar e a virgem que saía durante as procissões, surripiando ainda
as túnicas bordadas, o manto e a auréola de latão de Nossa
Senhora, bem como as modestas relíquias da sacristia. Um
regimento comandado por um certo Capitão Julián Vargaz logo
apareceu para reprimir a baderna. A mãe de Han, em cuja casa se
encontrou uma peça de cetim bordada em pérolas, foi morta a
pancadas após as violências de praxe, conquanto sua idade já não
mais condissesse inteiramente com tais práticas. O restante das
mulheres e crianças foi escorraçado e se dispersou pelos campos.
Enquanto se procedia na praça ao enforcamento de alguns varões
do povoado, o Capitão Vargaz, atingido na testa por um tiro de
arcabuz, caía por terra, deixando vazios os estribos de sua sela. O
disparo partira de uma pequena janela situada no telhado de um
celeiro; os soldados remexeram e esquadrinharam os montes de
feno sem encontrar ninguém, e afinal se deleitaram ante o
espetáculo do fogo que logo em seguida ali atearam. Certos de que
haviam grelhado o assassino, retiraram-se da aldeia, levando
consigo o cadáver de seu capitão debruçado sobre uma sela e
algumas cabeças de gado que acharam por bem confiscar.
Han saltara do telhado e, na queda, fraturara a perna. Serrando os
dentes de dor, arrastou-se então sob um monturo de palha e detritos
junto às margens de um charco e aí ficou escondido até que os
soldados se fossem, temendo que o fogo pudesse propagar-se a
seu mísero refúgio. Pela noite, camponeses de uma fazenda
vizinha, que vieram sondar o que recolher aqui e ali do que restara
na aldeia, localizaram-no pelos gemidos que ele não mais
conseguia reprimir. Por sorte, aqueles animais de rapina não eram
tão maus quanto se poderia supor, e decidiram colocar Han sob o
toldo de uma carroça, deixando-o junto à casa de seu tio. Ele
chegou já desfalecido. Pieter e o filho alegraram-se por ninguém
haver percebido que a caleça entrara no pátio da Rua das Lãs.
A história de sua morte no celeiro em chamas colocava-o a salvo
de perseguições, mas essa segurança dependia do silêncio dos
camponeses, que, de um momento para outro, poderiam falar por
bem, e sobretudo por mal. Pieter e Josse arriscaram suas vidas ao
abrigarem um rebelde e um destruidor de imagens, e não era menor
o perigo que corria o médico. Seis semanas depois, o convalescente
cabritava com ajuda de muletas, mas as aderências da cicatriz
ainda o faziam sofrer cruelmente. Pai e filho imploraram ao médico
que os livrasse do rapaz, que, ademais, não era desses aos quais
alguém facilmente se afeiçoasse; sua longa reclusão tornara-o
rabugento e choramingas; já não se aguentava mais ouvi-lo repetir
sem cessar sua única proeza, e o ferreiro, que o detestava por
haver ele bebido seu precioso vinho e sua cerveja, irritou-se ao
saber que o vadio pedira a Josse que lhe providenciasse uma
jovem. Zênon ponderara que Han estaria mais seguro na grande
cidade de Anvers, de onde talvez pudesse, já então inteiramente
restabelecido, reunir-se na outra margem do Escalda aos pequenos
grupos de rebeldes do Capitão Henrique Thomaszoom e do Capitão
Sonnoy, que, de suas embarcações emboscadas aqui e ali ao longo
das costas da Zelândia, fustigavam com maior eficácia as tropas
reais.
Pensou no filho da velha Greta, que, no desempenho de suas
funções de carreteiro, fazia toda semana uma viagem para
transportar seus sacos e fardos. Este, parcialmente advertido de
que deveria guardar silêncio sobre o fato, concordou
prazerosamente em levar consigo o rapaz, deixando-o em boas
mãos; seria necessário, ainda, um pouco de dinheiro para a viagem.
Não obstante sua impaciência para se ver livre do sobrinho, Pieter
Cassel confessou não mais dispor de um cêntimo sequer para
custear tal despesa; Zênon nem isso possuía e, após alguma
hesitação, decidiu recorrer ao prior.

O santo homem terminava de rezar sua missa na capela contígua


à cela que ocupava. Após o Ite, missa est [55] e as preces de ação
de graças, Zênon solicitou ao religioso um minuto de atenção e
contou-lhe sem rodeios toda a aventura.
— Você correu nisso tudo um grande risco — disse gravemente o
prior.
— Apesar da confusão que reina neste mundo, há imposições que
me parecem bastante claras — replicou o filósofo. — Tenho por
ofício cuidar dos outros.
O prior aquiesceu.
— Ninguém chorou por Vargaz — prosseguiu ele. — Lembra-se,
meu caro, dos insolentes soldados que apinhavam as ruas quando
você chegou a Flandres? Sob vários pretextos, dois anos após o
término da guerra com a França, o Rei ainda nos impunha a
presença desse exército. Dois anos! Esse Vargaz reassumira aqui a
tarefa de continuar a nos infligir as brutalidades que o tornaram
odioso aos franceses. Não se pode louvar de todo o jovem Davi das
Escrituras sem aplaudir o menino de que você cuidou.
— Convém salientar que ele tem boa pontaria — observou o
médico.
— Eu preferiria acreditar que Deus guiou a mão dele. Mas um
sacrilégio é um sacrilégio. Esse Han admite que participou da
destruição das imagens?
— Ele o afirma, mas percebo sobretudo nessas bazófias a
expressão inconfessa do remorso — comentou prudentemente
Sebastião Theus. — E do mesmo modo interpreto certas palavras
que lhe escaparam durante o delírio. Não serão alguns predicantes
que irão fazer com que esse rapaz esqueça suas antigas Ave Maria.
— Julga que esses remorsos não têm fundamento?
— Vossa Reverência considera-me um luterano? — perguntou o
filósofo com um leve sorriso.
— Não, meu amigo, receio apenas que você não tem fé suficiente
para ser herético.
— Todos suspeitam de que as autoridades imponham predicantes
falsos ou verdadeiros às aldeias — atalhou de pronto o médico,
desviando cautelosamente a conversa para outra coisa que não
fosse a ortodoxia de Sebastião Theus. — Nossos governantes
planejam esses abusos para em seguida maltratar mais à vontade a
população.
— É claro que não ignoro as tramoias do Conselho de Espanha —
declarou o religioso com certa impaciência. — Mas por que deveria
eu lhe prestar contas de meus escrúpulos? Sou o último a desejar
que um infeliz queime numa fogueira por sutilezas teológicas que
não entende. Mas há nessas agressões à Nossa Senhora uma
violência que cheira a Inferno. Ainda que se tratasse de um desses
Sãos Jorges ou de uma dessas Santas Catarinas cuja existência é
posta em dúvida pelos doutores da Igreja e que despertam
ingenuamente a piedade do povo… Será porque nossa Ordem
exalta muito particularmente essa altíssima deusa (um poeta que li
na minha juventude assim a chamava) e a afirma imune ao pecado
de Adão, ou serei de tal forma sensível à lembrança de minha pobre
esposa, que usava com graça e humildade esse belo nome…
Nenhum crime contra a fé me transtorna tanto quanto uma ofensa a
essa Maria que carregou em si a Esperança do mundo, a essa
criatura recompensada desde a aurora dos tempos e que é nossa
advogada no céu…
— Creio compreendê-lo — disse Sebastião Theus, ao ver as
lágrimas aflorarem aos olhos do prior. — Sofre porque um
camponês grosseiro ousa erguer a mão contra a mais pura forma de
que se reveste, segundo Vossa Reverência, a Bondade divina. Os
judeus (privei com médicos desse povo) assim também me falavam
de sua Shekinah, [56] que significa a ternura de Deus… É bem
verdade que para eles ela permanece uma face invisível… Mas já
que se dá ao Inefável a aparência humana, não vejo por que não
devêssemos atribuir-lhe certos traços femininos, sem o que
reduziríamos pela metade a natureza das coisas. Se os animais da
floresta têm alguma ideia dos mistérios sagrados (e quem sabe lá o
que se passa no íntimo das criaturas?), imaginam decerto, ao lado
do Cervo divino, uma corça imaculada. Essa noção confunde o
prior?
— Não mais do que a imagem do Cordeiro sem mácula. E Maria,
não será ela também a puríssima Pomba?
— Tais emblemas, entretanto, têm seus perigos — ponderou
meditativamente Sebastião Theus. — Meus confrades alquimistas
empregam as imagens do Leite da Virgem, do Corvo Negro, do
Leão Verde Universal e da Cópula Metálica para designar
operações de sua arte sempre que a virulência ou a sutileza destas
ultrapassa o poder de comunicação das palavras humanas. A
consequência disso é que os espíritos grosseiros se ligam a tais
simulacros e que os mais esclarecidos, ao contrário, desprezam um
saber que, todavia, vai muito além, mas que lhes parece submerso
num lodaçal de sonhos… Não levarei mais adiante a comparação.
— O problema é insolúvel, meu amigo — disse o prior. — Vá eu
dizer aos infelizes que a coifa de ouro de Nossa Senhora e seu
manto azul não passam de um inexpressivo símbolo dos
esplendores do céu, e o céu, por sua vez, de uma reles gravura do
Bem invisível, e concluirão eles que não creio nem em Nossa
Senhora nem no céu. Não seria isso uma mentira ainda pior? A
coisa significada autentica o signo.
— Voltemos ao rapaz de quem cuidei — insistiu o médico. —
Vossa Reverência não imagina que esse Han julgou abater a
advogada que a Misericórdia divina designou para nos assistir
durante toda a eternidade? Ele rachou apenas uma tora de madeira
enfeitada por uma túnica de veludo que um predicante lhe
apresentou como um ídolo, e ouso dizer que essa impiedade, que
com razão consterna o prior, terá parecido ao jovem Han em
conformidade ao bom senso elementar que ele recebeu do céu.
Esse camponês não ofendeu mais o instrumento da salvação do
mundo do que, ao matar Vargaz, julgou estar vingando a nação
belga.
— Todavia, ele fez ambas as coisas.
— Tenho cá minhas dúvidas — disse o filósofo. — Somos eu e
Vossa Reverência que tentamos dar um sentido às ações violentas
de um camponês de vinte anos.
— Empenha-se tanto assim em que esse menino escape às
perseguições, senhor meu médico? — perguntou bruscamente o
prior.
— Além do fato de que minha própria segurança está em jogo,
prefiro que não se atire às chamas minha obra-prima — replicou em
tom de gracejo Sebastião Theus. — Mas não se trata do que possa
pensar o prior.
— Tanto melhor — disse o religioso. — Aguardará assim mais
tranquilamente os acontecimentos. Não me apraz de modo algum
estragar sua obra, amigo Sebastião. Você encontrará nessa gaveta
aquilo de que necessita.
Zênon apanhou o porta-níqueis escondido sob a roupa de cama e
dele retirou parcimoniosamente algumas moedas de prata. Ao repô-
lo no lugar, seus dedos se enlearam numa peça de tecido grosseiro
da qual
fez ele o que pôde para se desvencilhar. Era um silício no qual
secavam aqui e ali coágulos embaraçado. O prior desviou a cabeça
como que embaraçado.
— A saúde de Vossa Reverência não me parece suficientemente
boa para que se lhe permitam práticas tão duras.
— Ao contrário, eu gostaria de redobrá-las — protestou o religioso.
— Seus afazeres, caro Sebastião — continuou ele —, não lhe
concederão o tempo necessário para refletir sobre as desgraças
públicas. Tudo o que se divulga está muito próximo da verdade. O
Rei acaba de reunir no Piemonte um exército sob as ordens do
Duque de Alva, o vencedor de Mühlberg, que a Itália tem na conta
de um homem de ferro. Esses vinte mil homens, com suas bestas
de carga e sua parafernália, transpõem agora os Alpes para em
seguida cair impiedosamente sobre nossas desgraçadas
províncias… Lamentaremos talvez mais cedo do que supúnhamos a
perda do Capitão Julián Vargaz.
— Eles se apressam antes de que as estradas sejam bloqueadas
pela neve do inverno — disse o homem que um dia escapara de
Innsbruck através dos caminhos da montanha.
— Meu filho é lugar-tenente do Rei, e será um milagre que não se
encontre na companhia do duque — comentou o prior com o tom de
alguém que se obriga a uma penosa confissão. — Estamos todos
comprometidos com o mal.
Uma tosse que já o incomodara por diversas vezes novamente o
acometeu. Sebastião Theus tomou-lhe o pulso, reassumindo as
funções de médico.
— As preocupações talvez expliquem a má aparência do prior —
disse após um silêncio. — Mas essa tosse que persiste já há alguns
dias e essa crescente magreza têm causas que são de meu dever
investigar. Vossa Reverência me consentirá examinar-lhe amanhã a
garganta com a ajuda de um instrumento adequado?
— O que lhe aprouver, meu amigo — disse o prior. — A umidade
desse verão chuvoso é sem dúvida responsável pela angina. Pode
verificar por sua própria conta que não tenho febre.
Han partiu nessa mesma noite com o carreteiro na qualidade de
cavalariço. O fato de ainda claudicar um pouco conferiu-lhe até mais
realismo nesse papel. Seu guia deixou-o em Anvers, na casa de um
corretor dos Fuggers, secretamente favorável às novas ideias, que
residia próximo ao porto que o empregou na tarefa de abrir e fechar
as tampas dos caixotes de especiarias. Pelo Natal, soube-se que o
rapaz, já inteiramente recuperado da fratura da perna, embarcara
como carpinteiro a bordo de um negreiro que se aprestava para
seguir rumo à Guiné. Esses tipos de navios precisavam sempre de
artesãos aptos não apenas a reparar as avarias do casco, mas
também a construir ou a substituir tabiques ou a confeccionar
golilhas e peias, bem como capazes de manusear armas de fogo
em caso de motins. Por ser o salário compensador, Han preferira
esse emprego ao soldo sempre incerto que lhe ofereciam o Capitão
Thomaszoon e seus Amotinados do Mar.

Voltara o inverno. Em virtude de sua rouquidão, já agora crônica, o


prior renunciara espontaneamente aos sermões que costumava
pregar nas quatro semanas que antecedem o Natal. Sebastião
Theus conseguira de seu paciente que este, após o jantar,
repousasse no leito por uma hora a fim de poupar suas forças, ou
pelo menos na poltrona, que há pouco consentira ele fosse instalada
em sua cela. Não dispondo esta, como era de costume, nem de
lareira nem de fogareiro, Zênon convenceu-o, conquanto a muito
custo, de ali manter aceso um braseiro.
Ele o encontrou nessa tarde, os óculos a escorregar-lhe nariz
abaixo, ocupado em verificar alguns números. O administrador do
convento, Pedro de Hamaere, ouvia de pé as observações do
superior. Zênon sentia em relação a esse religioso, ao qual não
dirigira a palavra por mais de umas dez vezes em toda a vida, uma
hostilidade que ele intuía ser recíproca; Pedro de Hamaere retirou-
se após beijar a mão de Sua Reverência com uma de suas
genuflexões a um tempo altivas e servis. As novidades do dia eram
particularmente sombrias. O Conde de Egmont e seu companheiro,
o Conde de Hornes, encarcerados em Gand há cerca de três meses
sob acusação de alta traição, acabavam de ter recusado o
julgamento que, a cargo de seus pares, provavelmente lhes
pouparia as vidas. A cidade não cessava de comentar a ignomínia
em que consistia essa denegação de justiça. Zênon evitou falar
primeiro dessa iniquidade, ignorando se o prior dela já tomara
conhecimento. Contou-lhe, ao contrário, o grotesco epílogo da
história de Han.
— O magnânimo Pio II condenou em tempos idos as atividades
dos negreiros, mas quem lhe deu ouvidos? — lamentou o religioso
com ar fatigado. — É certo que temos entre nós injustiças ainda
mais prementes… Sabe-se lá o que pensam na cidade acerca da
indignidade cometida contra o conde?
— Deplora-se-lhe mais do que nunca o fato de ele ter dado crédito
às promessas do Rei.
— Lamoral tem um grande coração, mas pouco juízo — disse o
prior com mais calma do que dele esperava Zênon. — Um bom
árbitro jamais se fia em quem quer que seja.
Ele tomou docilmente as gotas adstringentes que lhe prescrevera
o médico. Este o olhava com uma secreta tristeza: Zênon não
acreditava nas virtudes daquele remédio por demais anódino, e
procurava em vão um específico mais poderoso para a angina do
prior. A ausência de febre levara-o a afastar a hipótese de uma
tuberculose. Um pólipo na garganta talvez explicasse a rouquidão, a
tosse persistente, a crescente dificuldade em respirar e engolir.
— Obrigado — disse o prior, devolvendo-lhe o copo vazio. — Não
me deixe sozinho tão cedo hoje, amigo Sebastião.
Falaram de coisas e pessoas. Zênon sentara-se a pequena
distância do religioso para evitar-lhe forçar a voz. Este retornou de
repente à sua principal preocupação:
— Uma iniquidade gritante como essa de que acaba de ser vítima
Lamoral traz consigo toda uma sequência de injustiças igualmente
sombrias, mas que permanecem desapercebidas — insistiu ele,
poupando a respiração. — O porteiro do conde foi detido logo após
e estropiado a golpes de barra de ferro na esperança de que dele se
obtivessem algumas confissões. Rezei minha missa esta manhã em
intenção da alma daqueles dois nobres, e não há em Flandres, sem
dúvida, uma única casa em que não se reze pela salvação de
ambos, seja neste mundo ou no outro. Mas quem pensa em rezar
pela alma desse miserável, o qual, aliás, nada pôde confessar, pois
tudo ignorava a respeito dos segredos do fidalgo a que servia? Não
lhe deixaram inteiros sequer um osso ou uma veia…
— Vejo bem o que aí se insinua — comentou Sebastião Theus. —
Vossa Reverência faz o elogio de uma humilde lealdade.
— Não se trata absolutamente disso — redarguiu o prior. — Esse
porteiro era um prevaricador que enriqueceu, diz-se, às custas de
seu patrão. Parece também que conservava em seu poder um
quadro que o duque recebera ordens de adquirir para Sua
Majestade, um de nossos sortilégios flamengos no qual se veem
demônios grotescos que supliciam os condenados. Nosso Rei ama
a pintura… Que esse homem haja ou não dito alguma coisa, aliás,
não tem a menor importância, pois a causa do conde já estava
julgada. Contudo, tenho para mim que esse mesmo conde morrerá
justamente de uma machadada sobre um cadafalso forrado de
negro, consolado pelo luto da populaça que nele via, com justiça,
um amante da nação belga, após haver recebido as desculpas do
carrasco que o executará, e acompanhado pelas preces do capelão
que o enviará ao céu…
— Agora compreendo — disse o médico. — Vossa Reverência
afirma que, a despeito de todos os lugares-comuns dos filósofos, a
categoria e o título proporcionam a seus detentores certas
vantagens palpáveis. Seja lá como for, vale a pena ser um nobre de
Espanha.
— Não me expliquei bem — murmurou o prior. — É porque aquele
homem foi menor, nulo, ignóbil, dotado apenas de um corpo
acessível à dor e de uma alma pela qual até mesmo Deus verteu o
seu sangue, que me detenho a considerar sua agonia. Soube que
ao fim de três horas, ainda o ouviam gritar.
— Acautele-se, senhor prior — disse Sebastião Theus, estreitando
em suas mãos a do religioso. — Esse miserável padeceu por três
horas, mas por quantos dias e quantas noites haverá Vossa
Reverência de recordar essa agonia? O senhor se atormentará mais
do que esse desgraçado o foi pelos carrascos.
— Cale-se — retrucou o prior balançando a cabeça. — A dor do
porteiro e a ira de seus algozes inundam o mundo e ultrapassam o
tempo. Nada pode impedir que não hajam elas merecido por um
instante o eterno olhar de Deus. Cada tormento e cada mal são
infinitos em sua essência, meu amigo, assim como infinitos são eles
em quantidade.
— O que diz Vossa Reverência da dor, poderia dizer também da
alegria.
— Eu sei… Tive também minhas alegrias… Toda alegria inocente
é uma migalha que nos restou do Éden… Mas a alegria não precisa
de nós, Sebastião. É a dor que requer a nossa caridade. No dia em
que afinal nos foi revelada a dor das criaturas, a alegria tornou-se
tão impossível quanto ao Bom Samaritano pernoitar numa
hospedagem com vinho e jovens enquanto junto a si o seu ferido
sangrava. Nem mesmo compreendo mais a serenidade dos santos
na Terra nem sua beatitude no Céu…
— Se percebo alguma coisa no tocante à linguagem da devoção, o
prior atravessa agora sua noite escura.
— Eu o conjuro, meu amigo, não reduzamos essa angústia a não
sei que piedosa prova no caminho da perfeição, o qual, aliás, não
julgo percorrer… Contemplemos antes a noite escura dos homens.
Hélas! As pessoas receiam enganar-se quando se queixam da
ordem das coisas! E, entretanto, meu amigo, como ousaremos
enviar a Deus almas a cujas faltas aduzimos o desespero e a
blasfêmia, em consequência dos tormentos que obrigamos os
corpos a suportar? Por que permitimos que a obstinação, a
imprudência e o rancor se insinuem nas disputas de doutrina que,
como a do Santo Sacramento pintada por Sanzio [57] nos aposentos
do Santo Padre, não se deveriam desenrolar senão em pleno
céu?… Pois, afinal de contas, se o Rei se houvesse dignado ouvir
no ano passado o protesto de nossos fidalgos; se, quando éramos
crianças, o Papa Leão houvesse recebido com bondade um
ignorante monge agostiniano… Que pretendia este, ademais, senão
aquilo de que todas as nossas instituições sempre necessitaram,
quero dizer, reformas… Esse camponês ofuscou-se ante os
excessos que a mim mesmo me chocaram quando visitei a corte de
Júlio III; ele não errou ao censurar em nossas Ordens uma
opulência que nos embaraça e que não se encontra a serviço de
Deus…
— O prior não nos ofusca com seu luxo — interrompeu com um
sorriso Sebastião Theus.
— Tenho todas as comodidades de que preciso — disse o
religioso estendendo as mãos sobre as cinzas ainda fumegantes.
— Que Vossa Reverência, por grandeza de alma, não deixe a
melhor parte ao adversário — ponderou reflexivamente o filósofo. —
Odi hominem unius libri: [58] Lutero divulgou uma idolatria do Livro
bem pior do que certas práticas por ele consideradas supersticiosas,
e a doutrina da salvação pela fé avilta a dignidade humana.
— Concordo — disse o prior, assustado —, mas, no fim das
contas, veneramos todos, como ele, as Escrituras, e arruinamos
nossas parcas virtudes aos pés do Salvador.
— Decerto, Vossa Reverência, e é isso talvez o que torna esses
ásperos debates incompreensíveis para um ateu.
— Não insinue o que não desejo ouvir — murmurou o prior.
— Pois então me calo — disse o filósofo. — Constato apenas que
os senhores reformados da Alemanha que jogam bola com as
cabeças de camponeses revoltados valem o mesmo que os
lansquenês do duque, e que Lutero fez o jogo dos príncipes da
mesma forma que o Cardeal de Granvelle.
— Ele optou pela ordem, como todos nós — replicou algo fatigado
o prior.
Lá fora, a neve caía em rajadas. Assim que o médico se levantou
para regressar ao dispensário, o superior o fez ver que poucos
doentes se arriscariam a ir até lá com um tempo tão ruim, e que o
frade-enfermeiro seria suficiente para qualquer emergência.
— Deixe-me confidenciar-lhe o que eu ocultaria a um homem de
igreja, assim como você me informaria, antes do que a um confrade,
sobre alguma audaciosa conjectura anatômica — prosseguiu o prior
com dificuldade. — Não posso mais, meu amigo… Sebastião, mil e
seiscentos anos terão em breve decorrido desde a Encarnação do
Cristo, e adormecemos sobre a Cruz como se o fizéssemos sobre
um travesseiro… Dir-se-ia mesmo que, como a Redenção já ocorreu
de uma vez por todas, resta apenas nos acomodarmos ao mundo
que aí está, ou, quando muito, cuidar cada um de sua exclusiva
salvação. Claro está que exaltamos a Fé; levamo-la a passear e a
pavonear-se pelas ruas; sacrificamos-lhe, se necessário for, mil
vidas, inclusive a nossa. Desmesuradamente, festejamos também a
Esperança; vendemo-la com extrema frequência a peso de ouro aos
fiéis. Contudo, quem se preocupa com a Caridade, exceto alguns
santos, e estremeço ainda ao pensar nos exíguos limites dentro dos
quais eles a exercem… Mesmo em minha idade, e debaixo deste
hábito, minha compaixão, tão plena de ternura, pareceu-me amiúde
um vício de minha natureza contra o qual conviria lutar… E digo-me
a mim mesmo que, se um de nós fosse submetido ao martírio, não
pela Fé, que dispõe de muitos testemunhos, mas pela Caridade, se
um de nós subisse ao patíbulo ou fosse içado sobre um feixe de
lenha no lugar ou pelo menos ao lado da mais horrenda das vítimas,
nos encontraríamos talvez numa outra terra e sob um novo céu… O
pior patife ou o mais pernicioso herético nunca será mais inferior a
mim do que o sou a Jesus Cristo.
— O que o prior imagina muito se assemelha àquilo que nós,
alquimistas, chamamos a via seca ou a via rápida — comentou
gravemente Sebastião Theus. — Trata-se, em suma, de transformar
tudo com um só golpe, e às custas de nossas precárias forças… É
um caminho arriscado, senhor prior.
— Nada receie — disse o enfermo com uma espécie de sorriso
encabulado. — Não sou mais do que um pobre mortal, e conduzo
sofrivelmente sessenta monges… Estarei arrastando-os em sã
consciência a não sei que desventura? Não será qualquer um que
há-de abrir com um sacrifício as portas do céu. A oblação, se ela
ocorre, deverá ser feita de outra forma.
— Ela a si própria se gera quando a hóstia está pronta — divagou
em alto e bom som Sebastião Theus, pensando nas secretas
atitudes de defesa dos filósofos herméticos.
O prior olhou-o com estupefação:
— A hóstia… — disse ele, piedosamente, degustando essa
inefável palavra. — Afirma-se que os senhores alquimistas fazem de
Jesus Cristo a pedra filosofal, e do sacrifício da missa o equivalente
à Grande Obra.
— Alguns o dizem — observou Zênon, repondo sobre os joelhos
do prior uma colcha que caíra ao chão. — Mas que podemos
deduzir de tais equivalências a não ser que o espírito humano
possui uma certa inclinação…
— Duvidamos — disse o prior com a voz de súbito vacilante —,
havemos duvidado… Por quantas noites repeli a ideia de que Deus
não paira acima de nós senão como um tirano ou um monarca
implacável, e que o ateu que o nega é o único dentre os homens
que não blasfema… Depois, sobrevém-me um clarão; a doença é
uma abertura. Se nos enganássemos ao postular Sua onipotência e
ao ver em nossas misérias o produto de Sua vontade? Se nos
coubesse conseguir que Seu reino afinal viesse a nós? Eu disse há
pouco que Deus nos delega poderes; irei mais longe, Sebastião.
Talvez não seja Ele em nossas mãos senão uma pequena chama
que nos cabe alimentar e impedir que se apague; talvez sejamos
nós o ponto culminante ao qual Ele se eleva… Quantos infelizes que
se indignam com a noção de Sua onipotência acorreriam do fundo
da indigência que os corrói se os chamássemos para que viessem
em socorro da fraqueza de Deus?
— Mas isso não tem nada a ver com os dogmas da Santa Igreja.
— Não, meu amigo; abjuro de antemão tudo o que poderia rasgar
um pouco mais a túnica inconsútil. Deus reina onipotente, admito-o,
no mundo dos espíritos, enquanto nós estamos aqui, no mundo dos
corpos. Sim, nesta Terra sobre a qual Ele caminhou, como foi que O
vimos, senão como um inocente sobre a palha, em tudo semelhante
aos recém-nascidos que jazem sobre a neve em nossas aldeias da
Campine [59] devastadas pelas tropas do Rei, como um vagabundo
que não tivesse uma pedra sequer em que repousar a cabeça,
como um supliciado suspenso numa encruzilhada e que a si mesmo
se perguntasse, também, por que Deus o abandonara? Cada um de
nós é fraco, mas é um consolo imaginar que Ele está mais
impotente e mais desanimado ainda, e que nos cabe engendrá-Lo e
salvá-Lo nas criaturas… Perdoe-me — disse ele tossindo. — Acabo
de lhe fazer o sermão que não mais posso pregar do púlpito.
Deixou recair sobre o espaldar da poltrona sua cabeça maciça e
como que de súbito vazia de pensamentos. Sebastião Theus
inclinou-se ternamente sobre o religioso e abotoou-lhe a sotaina.
— Refletirei sobre as ideias que o prior se empenhou em expor-me
— disse. — Antes de retirar-me, posso em troca lhe transmitir uma
hipótese? Os filósofos do nosso tempo postulam, na maioria das
vezes, a existência de uma Anima Mundi, [60] sensível e mais ou
menos consciente, da qual participam todas as coisas; eu mesmo
sonhei com as surdas cogitações das pedras… E, todavia, os únicos
fatos conhecidos parecem indicar que o sofrimento, e,
consequentemente, a alegria, e pela mesma razão o bem e o que
chamamos mal, a justiça, e o que para nós é a injustiça, e enfim, de
uma ou de outra forma, o entendimento, que serve para distinguir
esses contrários, existem apenas no mundo do sangue e, talvez, da
seiva vegetal, da carne sulcada por filetes nervosos como se por
uma rede de relâmpagos, e (quem sabe?) do caule que se orienta
em direção à luz, seu Bem Supremo, que padece com a falta de
água e se retrai com o frio, ou resiste o melhor que pode às iníquas
usurpações de outras plantas. Todo o resto — quero dizer, o reino
mineral e o dos espíritos —, se de fato existe, é talvez insensível e
tranquilo, para além de nossas alegrias e tristezas, ou para aquém
destas. Nossas tribulações, senhor prior, provavelmente serão
apenas uma ínfima exceção na oficina universal, o que poderia
explicar a indiferença dessa substância imutável a que devotamente
chamamos Deus.
O prior conteve um arrepio.
— O que você diz me apavora — sussurrou ele. — Mas, se assim
o for, estaremos aí reintegrados mais do que nunca ao mundo dos
grãos que se moem e do Cordeiro que sangra. Vá em paz,
Sebastião.

Zênon cruzou novamente a arcada que ligava o convento ao Asilo


de São Cosme. A neve, varrida pelo vento, se amontoava aqui e ali
em jazidas alvadias. Já no interior da habitação, seguiu direto rumo
ao pequeno quarto onde colocara nas prateleiras de uma estante os
livros herdados a João Myers. O velho possuía um tratado de
anatomia publicado vinte anos antes por André Vesálio, que, como
Zênon, pugnara contra a rotina galênica em favor de um
conhecimento mais completo do corpo humano. Zênon encontrara
uma única vez o célebre médico, que desde então fizera uma bela
carreira na corte antes de morrer de peste no Oriente; escudado em
sua especialidade médica, Vesálio não temera outras perseguições
que não fossem as dos fâmulos, as quais, aliás, não lhe faltaram.
Também ele furtara cadáveres; e formara do homem interior uma
ideia baseada nos ossos que conseguira surripiar sob os patíbulos e
junto às cinzas das fogueiras, ou, mais indecente ainda, obtida
graças aos embalsamentos de altas personalidades, das quais se
extraem às escondidas um rim ou o conteúdo de um testículo
substituído por um chumaço de fios de linho, sem que depois nada
revele que esses preparados provenham de Suas Altezas.
Colocando o in-fólio sob a luz da lamparina, Zênon procurou a
lâmina em que se reproduzia um corte de esôfago e de laringe com
a artéria traqueal: o desenho lhe pareceu um dos mais toscos do
grande anatomista, mas Zênon não ignorava que Vesálio, como ele
próprio, deveria ter sido obrigado amiúde a trabalhar muito depressa
sobre exemplares de carne já em putrefação. De repente, seu dedo
identificou o lugar em que supunha desenvolver-se, na garganta do
prior, aquele pólipo que, mais dia menos dia, sufocaria por completo
o doente. Tivera na Alemanha a oportunidade de dissecar o corpo
de um vagabundo que morrera vítima do mesmo mal; essa
lembrança e o exame feito com a ajuda do speculum oris [61]
induziam-no a diagnosticar, com base nos obscuros sintomas da
doença do prior, a ação nefasta de uma parcela de carne que
devorava aos poucos as estruturas vizinhas. Poder-se-ia dizer que a
ambição e a violência, tão estranhas ao caráter do religioso,
estavam emboscadas naquele recanto de seu corpo, de onde
destruiriam afinal esse homem que só conhecia e praticava o bem.
Se ele não estivesse de todo enganado, João-Luís de Berlaimont,
Prior dos Franciscanos de Bruges, antigo guarda-florestal-mor da
Rainha Viúva Maria da Hungria, ministro plenipotenciário nas
negociações do Tratado de Crespy, morreria dali a alguns meses,
estrangulado por aquele nódulo que se avolumava no fundo de sua
garganta, a menos que o pólipo, em seu trajeto, rompesse uma veia,
afogando o infeliz em seu próprio sangue. Exceção feita à
possibilidade, jamais desprezível, de uma morte acidental que, por
assim dizer, se antecipasse à própria doença, o destino do santo
homem estava tão selado quanto o fato de haver ele cumprido a sua
vida.
O mal, por demais interno, era inacessível à ação do escalpelo ou
do cautério. As únicas chances de prolongar a vida do amigo
consistiam em fortalecer-lhe a saúde mediante uma cautelosa dieta;
era preciso imaginar como obter alimentos pastosos, ao mesmo
tempo leves e ricos, que ele fosse capaz de engolir sem muito
esforço quando seu sofrimento evoluísse a ponto de tornar
indigeríveis as refeições do convento; conviria também poupar-lhe
as sangrias e purgações habitualmente realizadas pelos médicos,
as quais, na maior parte dos casos, nada mais fazem do que
esgotar barbaramente a substância humana. Quando chegasse a
hora de mitigar-lhe sofrimentos insuportáveis, os opiáceos seriam
eficazes, e não haveria mal algum em continuar a distraí-lo uma vez
ou outra com medicamentos inócuos, já que estes lhe evitariam a
angústia de sentir-se entregue a seu mal. A arte do médico nada
mais podia por enquanto.
Zênon soprou a chama da lamparina. A neve cessara de cair, mas
sua alvura mortalmente fria inundava o quarto; os tetos inclinados
do convento faiscavam como vidro. Um único planeta alaranjado
tremeluzia ao sul com um lampejo baço na constelação de Touro,
não muito distante da esplêndida Aldebarã e das líquidas Plêiades.
Havia muito que o filósofo renunciara a ocupar-se de temas
astrológicos, associando nossas relações àquelas longínquas
esferas, por demais confusas para que delas se possam inferir
certos cálculos e previsões, ainda que, de quando em vez, se
impusessem estranhos resultados. Com os cotovelos fincados no
peitoril da janela, Zênon mergulhava, contudo, em sombrios
devaneios. Não ignorava que, tomando-se por base a data de
nascimento de ambos, tanto o prior quanto ele tinham tudo a temer
daquela posição de Saturno.
As desordens da carne

Desde alguns meses, Zênon tinha por frade-enfermeiro um jovem


franciscano de dezoito anos, que substituía vantajosamente o
bêbado que lhe furtava os bálsamos e do qual conseguira afinal
livrar-se. Frei Cipriano era um camponês que havia ingressado no
convento aos quinze anos, que sabia apenas o latim necessário à
missa e que não falava senão o grosseiro flamengo de sua aldeia.
Surpreendiam-no amiúde a cantarolar pregões que devia ter
aprendido quando conduzia os bois. Cipriano conservava ainda
hábitos infantis, como enfiar a mão às escondidas no frasco cheio
de açúcar que servia para adoçar as poções calmantes preparadas
à base de água e de xarope. Mas o rapaz indolente possuía uma
destreza invulgar para aplicar um emplastro ou enrolar uma atadura;
nenhuma chaga ou ferida, nenhum abscesso o assustavam ou
nauseavam. As crianças que procuravam o dispensário deliciavam-
se com seu sorriso. Zênon costumava encarregá-lo de reconduzir às
suas casas os doentes cujo passo vacilante o impedia de deixá-los
caminhar sozinhos pelas ruas da cidade; com o nariz empinado,
degustando o rumor e o movimento da rua, Cipriano corria do asilo
ao Hospital de São João, emprestando remédios ou pedindo-os
emprestados, conseguindo um leito para algum indigente que não
se poderia deixar morrer sobre a dureza das lajes ou, à falta de
coisa melhor, persuadindo um fiel do quarteirão a abrigar o
andrajoso. No início da primavera, criou ele um problema ao roubar
pilriteiros para enfeitar a Bondosa Virgem que ficava sob a arcada,
numa época em que o jardim do convento não se encontrava ainda
florido.
Sua cabeça oca estava repleta de superstições herdadas aos
idiotas da aldeia: era preciso impedi-lo de colocar sobre as feridas
dos doentes a imagem de um soldo com um santo milagreiro.
Acreditava no lobisomem que uiva pelas ruas desertas, e via em
toda parte feiticeiros e bruxas. A dar-se-lhe crédito, o ofício divino
não poderia ser realizado sem a discreta presença de um desses
devotos de Satã. Quando lhe cabia ajudar sozinho a missa na
capela vazia, desconfiava do oficiante, ou pressentia um mágico
invisível dissimulado nas sombras. Sustentava também que, em
certos dias do ano, o padre estava obrigado a imaginar feiticeiros, o
que se poderia conseguir recitando às avessas as orações do
batismo, e fornecia como prova o fato de que sua madrinha o
arrancara às pressas da pia batismal ao perceber que o Senhor
Cura segurava o breviário de cabeça para baixo. Protegia-se
evitando os contatos, ou erguendo a mão sobre indivíduos suspeitos
mais acima do que estes o haviam feito em relação a ele. Certo dia,
tendo-lhe Zênon por acaso tocado as costas, deu um jeito de, logo a
seguir, roçar-lhe o rosto.
Nessa manhã, após o Domingo da Pascoela, estavam ambos
juntos no laboratório. Sebastião punha em dia seu arquivo. Cipriano
empilhava languidamente grânulos de cardamomo. De vez em
quando, suspendia sua tarefa para bocejar.
— Você dorme de pé — disse bruscamente o médico. — Devo
crer que passou a noite inteira a rezar?
O rapaz sorriu com um ar malicioso:
— Os Anjos se reúnem à noite — disse após olhar de esguelha
em direção à porta. — A galheta de vinho passa de mão em mão; a
bacia está pronta para o banho dos Anjos. Eles se ajoelham diante
da Bela que os abraça e os beija; a criada da Bela lhe desfaz as
longas tranças, e ambas ficam nuas como no Paraíso. Os Anjos
levantam suas vestes de lã e admiram-se a si próprios vestidos
apenas com a pele que Deus lhes deu; os círios queimam e se
extinguem, e todos obedecem ao desejo de seus corações.
— Belas histórias você me conta! — disse o médico com
desprezo.
Mas uma surda inquietação o invadiu. Ele conhecia aqueles
apelos angélicos e imagens docemente lascivas: constituíram a
característica de seitas esquecidas que todos afirmavam haver sido
extintas em Flandres a ferro e fogo fazia já mais de meio século.
Quando ainda criança, sob o pano da chaminé da Rua das Lãs,
lembrava-se de haver ouvido falarem em voz baixa das assembleias
em que os fiéis se entregavam aos prazeres da carne.
— Onde você colheu essas asneiras perigosas? — disse ele
severamente. — Procure ocupar-se com melhores devaneios.
— Não são histórias — replicou o rapaz com um ar ofendido. —
Quando Mynheer [62] quiser, Cipriano o tomará pela mão, e haverá
ele de ver e de tocar os Anjos.
— Você quer é se divertir — disse Sebastião Theus com resoluta
firmeza.
Cipriano voltou à sua tarefa de empilhar os cardamomos. Vez por
outra, levava às narinas um dos grânulos negros para melhor
aspirar o bom aroma da especiaria. Aconselhava a prudência que
não se levassem em conta as palavras do rapaz, mas a curiosidade
de Zênon foi maior:
— E onde e quando se celebram essas pretensas orgias
noturnas? — insistiu algo irritado. — Não é tão fácil deixar o
convento à noite. Alguns monges, eu sei, pulam o muro…
— Esses são os tolos — retrucou Cipriano com um ar de desdém.
— Frei Floriano descobriu uma passagem através da qual os Anjos
vão e vêm. Ele adora Cipriano.
— Guarde seus segredos — atalhou violentamente o médico. —
Que garantia tem de que não o trairei?
O rapaz balançou levemente a cabeça.
— Mynheer não desejaria prejudicar os Anjos — insinuou ele com
uma cúmplice impudência.
Um golpe na aldraba da porta os interrompeu. Zênon foi abri-la
com um sobressalto que não mais sentira desde o tempo dos
alarmas de Innsbruck. Era apenas uma menina portadora de um
lupo eritematoso, que aparecia sempre velada de negro, não por
vergonha de seu mal, mas porque Zênon observara que a luz a
piorava. Foi um alívio receber e tratar a infeliz. Outros miseráveis se
seguiram. Nenhuma conversa suspeita foi mantida durante alguns
dias entre o médico e o enfermeiro, mas Zênon via agora o
mongezinho com outros olhos. Um corpo e uma alma inquietantes e
sedutores viviam sob aquele hábito. Ao mesmo tempo parecia-lhe
que uma fenda se abrira no solo de seu retiro. Sem confessá-lo a si
próprio, aguardava a ocasião de saber algo mais sobre tudo aquilo.
Esta se ofereceu no sábado seguinte. Sentados a uma mesa,
ambos se ocupavam a limpar instrumentos após o asilo haver
cerrado suas portas. As mãos de Cipriano se moviam
diligentemente entre as agudas pinças e os cortantes bisturis. De
repente, firmando-se nos cotovelos em meio às ferragens, trauteou
ele em surdina uma antiga e enigmática ária:

Chamo e sou chamado,


Bebo e sou bebido,
Como e sou comido,
Danço, e todos cantam,
Canto, e todos dançam.

— Será ainda aquele pregão? — perguntou bruscamente o


médico.
Na verdade, reconhecera os versículos excomungados de um
evangelho apócrifo, pois os ouvira recitados por hermetistas que
lhes atribuíam poderes ocultos.
— É o cântico de São João — disse inocentemente o rapaz.
E, inclinando-se sobre a mesa, continuou num tom de terna
confidência:
— Chegou a primavera, a pomba suspira, o banho dos Anjos é
sempre tépido. Eles dão-se as mãos e cantam quase em sussurro,
com medo de serem tomados por malignos e mordazes. Ontem,
Frei Floriano trouxe um alaúde, e tocou baixinho músicas tão doces
que nos fizeram chorar.
— São muitos nessa aventura? — indagou meio a contragosto
Sebastião Theus.
O rapaz contou nos dedos:
— Há Quirino, meu amigo, e o noviço Francisco de Bure, que tem
um rosto claro e uma bela voz clara. Mateus Aerts vem uma vez ou
outra — prosseguiu, acrescentando ainda dois nomes que o médico
não conhecia — e Frei Floriano quase nunca falta à assembleia dos
Anjos. Pedro de Hamaere jamais comparece, mas os ama.
Zênon não compreendia a menção a este último, tido por muito
austero. Criara-se entre eles uma hostilidade desde que o
administrador se opusera às restaurações em São Cosme e tentara
repetidas vezes cortar as verbas do asilo. Por um instante, pareceu-
lhe que as estranhas confidências de Cipriano nada mais eram do
que uma artimanha de Pedro para lançá-lo em desgraça. O rapaz,
porém, continuou:
— A Bela não vem sempre, mas apenas quando os malignos e
mordazes não lhe fazem medo algum. Sua criada morena traz
envolto numa toalha branca o pão bento das bernardinas. Não há
entre os Anjos nem vergonha, nem ciúme, nem interdição relativos
ao doce uso do corpo. A Bela concede a todos os que a solicitam o
consolo de seus beijos, embora não ame senão a Cipriano.
— Como você a chama? — quis saber o médico, desconfiando
pela primeira vez de um nome e de um rosto sob o que lhe parecera
até então não passar das idealizações amorosas de um rapaz
privado do convívio com as jovens, já que deveria renunciar aos
prazeres que, sob os salgueiros, lhe proporcionasse porventura uma
camponesa qualquer.
— Nós a chamamos Eva — disse docemente Cipriano.
Um punhado de carvões queimava dentro de um escalfador sobre
o peitoril da janela. Dele costumava-se servir para derreter a goma
dos colírios. Zênon segurou o rapaz pela mão e arrastou-o até a
pequena chama. Por um longo tempo, o médico conservou-lhe o
dedo sob a massa incandescente. Cipriano empalideceu, mordendo
os lábios já descorados para não gritar. A palidez de Zênon era
apenas pouco menor. Depois, largou-lhe a mão.
— Como suportará você em toda a extensão de seu corpo a
mesma chama? — disse ele em voz baixa. — Encontre prazeres
menos arriscados do que suas assembleias angélicas.
Com a mão esquerda, Cipriano apanhara sobre uma prateleira um
frasco contendo óleo de lírio, do qual se utilizou para untar a parte
queimada. Zênon ajudou-o silenciosamente a enfaixar o dedo.
Nesse instante, Frei Lucas entrou com uma bandeja destinada ao
prior, na qual toda noite se levava para ele uma poção calmante.
Zênon se encarregou da tarefa, e subiu sozinho em direção ao
quarto do religioso. Na manhã seguinte, todo o incidente parecia
apenas um pesadelo, mas ele reviu Cipriano na sala, ocupado em
lavar o pé de uma criança que se machucara. Trazia ainda sua
atadura. Em vista do que ocorrera, e sempre com a mesma
intolerável angústia, Zênon desviou o olhar da cicatriz que ficara
naquele dedo queimado. Cipriano parecia tudo fazer para exibi-la
quase sedutoramente aos olhos do médico.

As especulações alquímicas na cela de São Cosme foram


substituídas pelo vaivém ansioso de um homem que vê o perigo e
busca uma saída. Pouco a pouco, como objetos que emergissem da
bruma, os fatos afloravam à superfície das divagações de Cipriano.
O banho dos Anjos e suas licenciosas assembleias se explicavam
de modo absolutamente natural. O subsolo de Bruges era uma
trama de passagens subterrâneas que se comunicavam de loja em
loja e de adega em adega. Apenas uma casa abandonada se erguia
entre as dependências do Convento dos Franciscanos e as que
compunham o das Bernardinas; Frei Floriano, meio pedreiro, meio
pintor, conseguira descobrir, em seus trabalhos de restauração da
capela e dos claustros, antigas termas ou velhas lavanderias
convertidas por aqueles loucos numa câmara secreta e num suave
retiro. Esse Floriano era um velhaco de vinte e quatro anos cuja
primeira juventude fora passada em deixar que seus passos
errassem alegremente pelo país, retratando os nobres em seus
castelos e os burgueses em suas mansões urbanas, dos quais
recebia em troca comida e uma enxerga para dormir. Os distúrbios
ocorridos em Anvers, em virtude dos quais fora evacuado o
convento no qual subitamente tomara ele o hábito, levaram-no a
instalar-se entre os franciscanos de Bruges. Afável, talentoso, de
boa estampa, estava sempre rodeado por um grupo de noviços que
esvoaçavam rente a seus calcanhares. Pois esse cabeça-tonta
pudera encontrar em toda parte um remanescente daqueles
Mendicantes ou daqueles Frades do Espírito Santo exterminados no
início do século, conquistando-os como que por contágio, através da
linguagem floreada e dos apelos seráficos que, em seguida,
transmitira a Cipriano. A menos que o jovem camponês não tivesse
ele mesmo contraído aquele perigoso jargão a partir das crendices
de sua aldeia, como os germes de uma peste esquecida que
continuam a proliferar secretamente no fundo de um armário.

Desde a doença do prior, Zênon observara no convento uma


tendência à irregularidade e à desordem: os ofícios de trevas eram,
dizia-se, vagamente acompanhados apenas por alguns frades; todo
um grupo resistia surdamente às reformas estabelecidas pelo prior
de acordo com as recomendações do Concílio; os monges mais
indolentes odiavam João-Luís de Berlaimont pela austeridade de
que ele próprio dava o exemplo; os mais rígidos, ao contrário, o
desprezavam por sua bondade considerada excessiva. Facções já
se dividiam em vista da eleição do próximo superior. As ousadias
dos Anjos eram sem dúvida favorecidas por esse clima de
interregno. O espantoso era que um homem prudente como Pedro
de Hamaere os deixasse correr o risco mortal representado pelas
assembleias noturnas e lhes permitisse a loucura, ainda maior, de
ali introduzirem duas jovens, mas, sem dúvida alguma, Pedro nada
recusava a Floriano e a Cipriano.
A uma primeira vista, parecera a Sebastião Theus que as próprias
jovens não passavam de astuciosos cognomes, ou de simples
fantasias. Depois, entretanto, lembrou-se de que muito se falava no
quarteirão de uma donzela de boa família que, pela época do Natal,
se hospedara entre as bernardinas durante uma das ausências de
seu pai, um magistrado do Conselho das Flandres, órgão que
prestava contas a Valladolid. Sua beleza, seus ricos adereços, a tez
morena e os brincos de sua criadinha alimentavam os mexericos
das lojas e das ruas. A Senhorita de Loos saía com sua moreninha
para ir às igrejas ou fazer compras no passamaneiro ou na
confeitaria. Nada impedia que Cipriano, durante uma de suas
escapadas à cidade, houvesse trocado olhares — e, depois,
palavras — com ambas, ou que Floriano, ao restaurar os afrescos
do coro, houvesse encontrado um meio de atraí-las para si próprio
ou para o amigo. Duas jovens audaciosas poderiam muito bem
deslizar à noite, por um dédalo de corredores, até as assembleias
noturnas dos Anjos, fornecendo à imaginação destes, empanzinada
de imagens das Escrituras, uma Sulamita e uma Eva.

Poucos dias após as revelações de Cipriano, Zênon dirigiu-se à


loja do confeiteiro da Rua Longa para comprar um vinho de hipocraz
que entrava em um terço na fórmula da poção do prior. Idelette de
Loos escolhia iguarias e doces no balcão. Era uma jovem de apenas
quinze anos, delgada como um caniço, com longos cabelos de um
louro quase branco e olhos límpidos como água de fonte. A
cabeleira esmaecida e os olhos de água cristalina recordaram-lhe o
adolescente que fora seu companheiro inseparável em Lübeck. Era
na época em que este se dedicava com o pai, o sábio Egídio
Friedhof, rico ourives da Breitenstrasse, também ele um perito nas
artes do fogo, a certos testes relativos ao engaste e à proporção
segundo a qual deveriam os metais nobres entrar na formação de
uma liga. Aquele menino afeito à reflexão fora, a um só tempo, um
delicioso bem-amado e um discípulo estudioso… Gerhart
apaixonara-se pelo alquimista a ponto de querer acompanhá-lo em
suas viagens à França, e o pai consentira que ele iniciasse assim
seu giro pela Alemanha; mas o filósofo temia, com relação ao rapaz
franzino, a rudeza das estradas e seus demais riscos. Aqueles
contactos em Lübeck, semelhantes a uma espécie de veranico de
São Martinho em sua vida errante, reapareciam-lhe, não mais
reduzidos a um seco resíduo de memória como as lembranças
carnais que ele outrora evocara ao meditar sobre si próprio, mas
capitosos como um vinho pelo qual seria preciso, acima de tudo,
não se deixar embriagar. Eles o reaproximavam, quisesse ou não o
filósofo, da irresponsável turba dos Anjos. Mas outras recordações
turbilhonavam ao redor do rostinho de Idelette: algo de audacioso e
de obstinado na Senhorita de Loos projetava para além das franjas
do esquecimento aquela Jeannette Fauconnier, querida dos
estudantes de Lovaina e que fora sua primeira conquista de homem;
a arrogância de Cipriano não lhe parecia mais tão pueril ou tão
inconsequente. Sua memória se distendeu para retroceder a regiões
ainda mais distantes; o fio, contudo, se rompeu; a moreninha ria
trincando confeitos e, ao sair, Idelette brindou o desconhecido de
madeixas grisalhas com um dos sorrisos com que agraciava todos
os transeuntes. Seu ostentoso vestido obstruía a estreita porta da
loja; e o confeiteiro, que não podia ver um rabo de saia, fez notar a
seu cliente com que graça e destreza sabia a donzela arranjar
apenas com uma das mãos a cascata de suas saias, deixando à
mostra os tornozelos e dispondo sobre as coxas as belas
ondulações do estofo.
— Jovens que exibem suas formas dão a entender a todos que
estão famintas não apenas de brioches — disse ele maliciosamente
ao médico.
O gracejo era desses que se trocam apenas entre homens. Zênon
sorriu conscienciosamente.
O vaivém noturno recomeçava: oito passos entre a cama e o baú,
doze da janelinha à porta — ele usava o assoalho para percorrer o
que já se convertera no espaço destinado ao passeio de um
prisioneiro. Sempre soubera que algumas de suas paixões,
assimiladas à heresia da carne, poderiam custar-lhe o destino
reservado aos hereges, isto é, a fogueira. Os homens se
acostumam à ferocidade das leis de seu tempo, assim como às
guerras deflagradas pela estupidez humana, à desigualdade das
condições sociais, ao péssimo policiamento das estradas e à incúria
das cidades. Era evidente que se podia queimá-lo por haver amado
Gerhart, assim como se podia tostá-lo por ler a Bíblia na versão da
Vulgata. Essas leis inoperantes pela própria natureza do que
pretendiam punir não se aplicavam nem aos ricos nem aos
poderosos: em Innsbruck, o Núncio gabava-se de versos obscenos
que poderiam levar à fogueira um pobre monge; jamais se vira um
senhor feudal ser lançado às chamas por haver seduzido seu
pajem. Essas leis seviciavam indivíduos mais anônimos, embora o
próprio anonimato fosse um abrigo: apesar dos anzóis, das redes e
dos cestos, a maioria dos peixes prossegue nas negras profundezas
das águas seu roteiro sem vestígios, sem jamais se preocupar com
os de sua espécie que se contorcem ensanguentados no tombadilho
de um barco. Mas sabia ele, também, que bastaria o rancor de um
inimigo, um instante de fúria e de insânia de um louco, ou
simplesmente a inepta intolerância de um juiz, para condenar os que
talvez fossem inocentes. A indiferença convertia-se em ódio e a
semicumplicidade em execração. Sentira ele durante toda a vida
esse temor associado a muitos outros. Contudo, toleramos menos
facilmente com relação aos outros o que aceitamos
convenientemente quando se trata de nós próprios.
Aqueles tempos conturbados incitavam à delação em qualquer
esfera de atividade humana. A arraia-miúda, secretamente seduzida
pelos destruidores de imagens, degustava avidamente qualquer
escândalo capaz de aviltar as poderosas Ordens cujas riquezas e
austeridade ela censurava. Em Gand, alguns meses antes, nove
monges agostinianos, suspeitos com ou sem razão de amizades
sodomitas, foram queimados após torturas inauditas, para satisfazer
a excitação de basbaques amotinados contra pessoas da Igreja; o
receio demonstrado por cada um de parecer abafar um assunto
escandaloso impedira a todos de se limitarem, como o recomendava
a sabedoria, às penas disciplinares impostas pela própria Ordem. A
situação dos Anjos era ainda mais grave. Os jogos de amor com as
duas jovens, que talvez diluíssem aos olhos do homem da rua
aquilo que se julgava a torpe nódoa da aventura, expunham ainda
mais, pelo contrário, aqueles desgraçados. A Senhorita de Loos
convertera-se no alvo em direção ao qual convergia a sórdida
curiosidade do povo; o segredo das assembleias noturnas dependia
agora da tagarelice feminina ou de uma inconveniente gravidez.
Mas o maior risco estava nas convocações angélicas, naqueles
círios, naqueles rituais infantis com vinho e pão bentos, naquelas
declamações de versículos apócrifos dos quais ninguém, nem
mesmo seus autores, jamais compreenderam coisa alguma,
naquela nudez, enfim, que, no entanto, quase nada diferia da que
exibiam rapazes que porventura brincassem junto às margens de
um brejo. Irregularidades que decerto exigiam mortificações
levariam à morte aqueles corações insanos e aquelas cabeças
ocas. Ninguém seria suficientemente sensato para julgar muito
natural que crianças ignorantes, ao descobrirem extasiadas as
delícias da carne, recorressem a frases e a imagens sagradas que
nelas desde sempre se inculcaram. Assim como a doença do prior
estabelecia com exatidão quase total a data e a natureza de seu fim,
Cipriano e seus companheiros pareciam a Zênon tão perdidos
quanto se já estivessem a uivar em meio às chamas.
Sentado à sua mesa, garatujando vagamente algarismos ou sinais
às margens de uma anotação, ele se dizia que seu próprio esquema
de defesa era singularmente vulnerável. Cipriano dele fizera um
confidente, senão mesmo um cúmplice. Qualquer interrogatório um
pouco mais minucioso revelaria quase inevitavelmente seu nome e
sua personalidade reais, e não o reconfortaria ser detido antes por
ateísmo que por sodomia. Jamais esquecia os cuidados prestados a
Han e as precauções tomadas para subtraí-lo à justiça, que
poderiam a qualquer instante indigitá-lo como rebelde passível de
enforcamento. O mais prudente seria partir, e tão logo quanto
possível. Mas ele se impunha, no momento, não deixar a cabeceira
do prior.

João-Luís de Berlaimont morria lentamente, de acordo com o que


se sabia sobre a evolução habitual de sua doença. Tornara-se de
uma magreza quase héctica, que mais ainda ressaltava naquele
homem outrora de compleição robusta. Por lhe haver aumentado a
dificuldade de engolir, Sebastião Theus fazia com que a velha Greta
inventasse alimentos leves, sucos e xaropes, que ela preparava
segundo antigas receitas um dia utilizadas para o gáudio da cozinha
da casa dos Ligres. Embora o doente se esforçasse em tomá-los
com prazer, não os roçava senão com a fímbria dos lábios, e Zênon
suspeitava de que o religioso padecesse de uma fome incessante.
O desaparecimento da voz era quase total; o prior só falava o
necessário com seus subordinados e seu médico. No mais, apenas
escrevia seus desejos ou suas ordens em pedacinhos de papel que
mantinha junto ao leito, mas, como observou certa vez a Sebastião
Theus, não tinha mais grande coisa a escrever ou a dizer.
O médico pedira que se informasse ao enfermo o menos possível
sobre os acontecimentos exteriores, evitando-lhe o relato das
barbaridades cometidas pelo Tribunal das Arruaças, que ordenava a
execução de sevícias em Bruxelas. Contudo, as novidades
pareciam filtrar-se e chegavam a seus ouvidos. Em meados de
junho, o noviço encarregado dos cuidados corporais para com o
prior lembrava a Sebastião Theus o dia em que, pela última vez, se
lhe aplicara o banho de talco que refrescava sua pele e parecia
devolver-lhe por algum tempo um certo bem-estar. O prior voltou
para eles o rosto triste e murmurou com esforço:
— Foi uma segunda-feira, seis, no dia em que os dois condes
subiram ao patíbulo.
Algumas lágrimas escorreram em silêncio por suas faces
macilentas. Zênon soube depois que João-Luís de Berlaimont era
aparentado a Lamoral pelo lado de sua finada esposa. Alguns dias
depois, o prior confiou ao médico uma palavra de consolo para com
a viúva do conde, Sabina de Baviera, que a inquietação e a dor
haviam deixado, dizia-se, a um palmo da sepultura. Tendo
Sebastião Theus levado o bilhete para entregá-lo a um mensageiro,
Pedro de Hamaere, que atravessava um corredor, interpôs-se,
temendo que uma imprudência de seu superior pudesse colocar em
risco o convento. Zênon estendeu-lhe o papelucho com desdém. O
administrador devolveu-o após dele tomar conhecimento: nada
havia de comprometedor nas condolências enviadas à ilustre viúva
e nos votos do prior. Madame Sabina era tratada com deferência
pelos próprios oficiais do Rei.

De tanto pensar no que fazer para ocupá-lo, Zênon se convenceu


de que bastaria, para evitar o pior, incumbir Frei Floriano de
restaurar também as capelas. Entregues a si próprios, Cipriano e os
noviços não ousariam repetir suas assembleias noturnas, e não
seria impossível, por outro lado, alertar as bernardinas no sentido de
que vigiassem melhor os passos de duas jovens. Por depender a
transferência de Floriano apenas do prior, o médico decidiu-se por
confiar a este o pouco que seria preciso para levá-lo a agir sem
demora. E aguardou um dia em que o doente se sentisse menos
mal.
Aconteceu ser este uma certa tarde, no princípio de julho, em que
o bispo viera pessoalmente saber das novidades junto ao prior.
Monsenhor acabara de partir; João-Luís de Berlaimont, trajando
ainda o hábito, estava deitado em seu leito, e o esforço despendido
para receber condignamente o hóspede parecia haver-lhe devolvido
momentaneamente o ânimo e as forças. Sebastião viu sobre a mesa
uma bandeja quase intacta.
— Você haverá de agradecer àquela boa mulher — disse o
religioso com voz menos sumida do que de hábito. — Comi pouco,
não há dúvida — acrescentou quase brincando —, mas nada há de
mal em que um monge se obrigue ao jejum.
— O bispo terá decerto concedido uma dispensa ao prior — disse
o médico no mesmo tom de gracejo.
O prior sorriu.
— Monsenhor é muito cultivado, e tenho-o na conta de um homem
bondoso, embora estivesse eu entre os que se opuseram à sua
nomeação pelo Rei, que passou por cima de nossos velhos
costumes. Tive muito prazer em recomendar-lhe o meu médico.
— Não almejo outro cargo — disse Sebastião Theus de bom
humor.
O rosto do doente já revelava fadiga.
— Não quero me queixar, Sebastião — sublinhou pacientemente,
agastado como sempre quando começava a falar de seus próprios
males. — Meus sofrimentos são bastante suportáveis. Mas há
consequências algo penosas. Assim, hesito em receber a Santa
Comunhão… Não seria conveniente que uma tosse ou um soluço…
Se algum paliativo pudesse atenuar um pouco essa angina…
— A angina pode ser curada, senhor prior — mentiu o médico. —
Muito esperamos desse belo verão…
— Sem dúvida — comentou distraidamente o prior —, sem
dúvida…
Estendeu o punho esquálido. Por encontrar-se o monge que
montava guarda à porta da cela momentaneamente fora de seu
posto, Sebastião Theus disse que acabara de avistar por acaso Frei
Floriano.
— Sim — assentiu o prior, tentando demonstrar talvez que ainda
se lembrava do nome de seus subordinados. — Encarregamo-lo de
restaurar os afrescos do coro. Faltam verbas para comprar imagens
mais novas…
Parecia acreditar que o monge dos pincéis e das palhetas
houvesse chegado na véspera. Apesar dos boatos que corriam
pelos corredores do convento, Zênon julgava João-Luís de
Berlaimont na posse de suas faculdades, mas estas se
encontravam, por assim dizer, interiorizadas. De súbito, o prior fez-
lhe um sinal para que se inclinasse, como se lhe fosse cochichar um
segredo; este, porém, não se referia ao problema do frade-pintor.
— … A oblação de que falamos certa vez, amigo Sebastião… Mas
nada há que sacrificar… Pouco importa que um homem de minha
idade viva ou morra…
— Importa-me a mim que o prior viva — respondeu com firmeza o
médico.
Mas este renunciara a solicitar-lhe ajuda. Qualquer recurso corria
o risco de converter-se em delação. Aqueles segredos poderiam
escapar por inadvertência de uma boca fatigada; seria até possível
que esse homem ao fim de suas forças desse prova de um rigor
que, em outros tempos, não era de sua índole. Ademais, o episódio
do bilhete atestava que o prior não era mais senhor em sua própria
casa.

Zênon fez ainda uma tentativa para assustar Cipriano. Relatou-lhe


a desgraça dos agostinianos de Gand, sobre a qual, aliás, o frade-
enfermeiro devia saber alguma coisa. O resultado foi apenas o que
ele já esperava.
— Os agostinianos são uns animais — disse laconicamente o
jovem franciscano.
Três dias depois, entretanto, aproximou-se do médico com um ar
inquieto:
— Frei Floriano perdeu um talismã que ele tinha de uma egípcia —
tartamudeou Cipriano todo confuso. — É possível que grandes
males possam advir daí. Se Mynheer, com os poderes que tem…
— Não sou comerciante de amuletos — replicou Sebastião Theus,
dando-lhe as costas.

No dia seguinte, durante a noite de sexta-feira para sábado, o


filósofo trabalhava em meio a seus livros quando um objeto leve foi
lançado pela janela aberta. Era uma varinha de aveleira. Zênon
acercou-se da sacada. Uma sombra cinzenta, da qual não
vislumbrou senão vagamente o rosto, as mãos e os pés descalços,
mantinha-se lá embaixo numa atitude de apelo. Ao fim de um
instante, Cipriano se foi e desapareceu sob a arcada.
Zênon voltou trêmulo a sentar-se à mesa. Um violento desejo
apoderou-se dele, ao qual de antemão sabia que não cederia, como
em outros casos, apesar de uma resistência todavia mais forte,
alguém sabe antecipadamente que se abandonará. Não se tratava
de acompanhar aquele irresponsável a qualquer vaga orgia ou
magia noturna. Mas, nesta vida sem descanso, diante do lento ritual
de ruína que se cumpria na carne do prior, e talvez em sua alma, um
impulso o subjugava no sentido de esquecer junto a um corpo jovem
e ardente os poderes do frio, da perdição e da noite. Devia-se ver na
teimosia de Cipriano a preocupação de atrair um homem
considerado útil e tido como dotado, ademais, de poderes ocultos?
Seria um exemplo a mais da eterna sedução de Alcibíades em
relação a Sócrates? Uma ideia mais insana aflorou ao espírito do
alquimista. Seria possível que seus próprios desejos, mortificados
em proveito de pesquisas mais sábias do que as da carne,
adquirissem exteriormente a ele aquela forma nociva e infantil?
Extinctis luminibus: [63] ele soprou a chama da lamparina. Inutilmente
— como anatomista, e não como amante —, tentava reproduzir com
desprezo as travessuras daquelas crianças sensuais. Repetiu para
si mesmo que a boca, na qual se destilam os beijos, nada mais é do
que a caverna da mastigação, e que a lembrança dos lábios que se
acaba de morder rejeita com desdém as bordas de um copo.
Inutilmente, imaginou alvas larvas enlaçadas umas às outras ou
pobres moscas seduzidas pelo mel. Quer como fosse, Idelette e
Cipriano, Francisco de Bure e Mateus Aerts eram belos. A terma
abandonada era de fato uma câmara mágica; a grande chama
sensual a tudo transmutava como a do atanor alquímico, e valia que
por ela se corresse o risco da que emerge das fogueiras. A alvura
dos corpos nus latejava como as fosforescências que denunciam as
virtudes ocultas das pedras.
A revulsão veio pela manhã. A pior devassidão no fundo de uma
pocilga valia mais do que as momices dos Anjos. Embaixo, na
enfermaria pardacenta, diante de uma velha que vinha todo sábado
tratar de suas chagas varicosas, repreendeu ele cruelmente a
Cipriano por haver deixado cair a caixa de ataduras. Nada de
insólito se lia naquele rosto de pálpebras algo intumescidas. A visita
noturna podia não haver passado de um sonho.

Mas os sinais enviados pelo grupo matizavam-se agora de


hostilidade e ironia. Certa manhã, ao entrar no laboratório, o filósofo
encontrou como evidência sobre a mesa um desenho demasiado
hábil para as mãos de Cipriano, que mal se servia da pena para
assinar o nome. O espírito fantástico de Floriano estava presente no
amontoado de figuras. Era um desses jardins das delícias que se
encontravam de quando em vez entre as telas dos pintores, e nos
quais as pessoas de bem viam a sátira do pecado, e outras, mais
malignas, a quermesse, [64] ao contrário, das ousadias carnais. Uma
bela entrava numa bacia para banhar-se em companhia de seus
namorados. Dois amantes se abraçavam por detrás de uma cortina,
denunciados apenas pela posição de seus pés descalços. Um
jovem afastava, com a ajuda de suas mãos carinhosas, os joelhos
de um bem-amado que se lhe assemelhava tanto quanto um irmão.
Da boca e do orifício secreto de um rapaz prosternado subiam rumo
ao céu delicadas florações. Uma moreninha levava a passear numa
baixela uma framboesa gigante. O prazer assim alegorizado
tornava-se um jogo mágico, uma perigosa risada. Pensativamente, o
filósofo rasgou a folha.
Dois ou três dias depois, outra brincadeira lasciva o aguardava:
arrancara-se de um armário algumas velhas botinas que se usavam
para atravessar o jardim coberto de lama ou de neve; os calçados,
bem à mostra, cavalgavam-se sobre o assoalho numa desordem
obscena. Zênon destroçou-os com um pontapé; o gracejo era
grosseiro. Mais inquietante foi um objeto que ele encontrou certa
noite em seu próprio quarto. Era um seixo sobre o qual um rosto e
atributos femininos, ou talvez hermafroditas, haviam Sido
canhestramente bosquejados; o calhau estava envolto numa mecha
de cabelos louros. O filósofo queimou os cachos e atirou
desdenhosamente na gaveta aquela espécie de boneca enfeitiçada.
Cessaram as perseguições; ele não mais se dignou a falar com
Cipriano. E começara já a acreditar que as loucuras dos Anjos
acabariam passando por si mesmas, pela simples razão de que tudo
passa.

Os infortúnios públicos tornaram-se clientes do Asilo de São


Cosme. Aos pacientes habituais misturavam-se agora visitantes que
raramente se viam duas vezes: camponeses que arrastavam
consigo um heteróclito aparato de objetos amontoados às vésperas
de uma fuga ou recolhidos de uma casa que se incendiara,
cobertores chamuscados, edredons que deixavam à mostra suas
plumas, baterias de cozinha ou panelas parcialmente destruídas.
Mulheres traziam crianças em trouxas de pano encardido. Esses
camponeses escorraçados de lugarejos sediciosos,
sistematicamente despovoados pelas tropas, sofriam quase todos
as consequências dos espancamentos e das contusões; seu grande
mal, porém, era sempre e simplesmente a fome. Alguns cruzavam a
cidade em rebanhos transumantes, ignorando qual seria a próxima
etapa; outros dirigiam-se às casas de parentes instalados nessa
região menos atingida, tendo ainda animais e um teto. Com a ajuda
de Frei Lucas, Zênon deu um jeito de obter pão para distribuir aos
mais necessitados. Dentre os menos lastimosos, embora mais
inquietos, e que viajavam geralmente sós, ou em pequenos grupos
de dois ou três, reconheciam-se homens de profissão ou de ofício
vindos das cidades do interior e que, sem dúvida, estavam sendo
procurados pelo Tribunal do Sangue. Esses fugitivos trajavam boas
roupas burguesas, mas os sapatos em frangalhos, os pés inchados
e cobertos de bolhas denunciavam as longas caminhadas às quais,
devido a seus hábitos sedentários, não estavam acostumados;
estes silenciavam sobre seu destino; Zênon, contudo, sabia, pela
velha Greta, que pescadores partiam quase todos os dias de pontos
isolados do litoral, levando esses patriotas rumo à Inglaterra ou à
Zelândia, conforme o que lhes permitiam o vento ou os seus
próprios recursos. Deles se cuidava sem nada questionar.
Sebastião Theus pouco via o prior, mas já podia agora fiar-se em
dois monges que haviam afinal aprendido pelo menos os rudimentos
da arte de tratar de alguém. Frei Lucas era homem sereno, cônscio
de seus deveres e cujo espírito não ia muito além do que lhe exigia
a urgência do trabalho a ser feito. Quanto a Cipriano, não se podia
dizer que fosse destituído de uma atenciosa bondade.

Fora preciso desistir de mitigar com a ajuda de opiáceos os males


do prior. Este recusara certa noite a poção calmante.
— Compreenda-me, Sebastião — murmurou ele angustiadamente,
temendo sem dúvida uma reação do médico. — Não seria desejável
estar cochilando no momento em que… Et invenit dormientes… [65]
O filósofo aquiesceu com um aceno de cabeça. Seu papel junto ao
moribundo consistia, de agora em diante, em fazê-lo sorver algumas
colheradas de um caldo ou em ajudar o frade-enfermeiro a soerguer
o corpo esquálido que já beirava a sepultura. Ao chegar tarde a São
Cosme, Zênon se deitava sem se despir sempre à espera de uma
crise de asfixia à qual o superior não sobreviveria.

Uma noite, julgou ouvir passos apressados a se aproximarem de


sua cela ao longo das lajes do corredor. Levantou-se
precipitadamente e abriu a porta. Não havia nada nem ninguém.
Não obstante, correu em direção à cela do prior.
João-Luís de Berlaimont mantinha-se ereto, sentado no leito,
amparado por almofadas e travesseiros. Os grandes olhos abertos
voltaram-se para o médico, banhados no que pareceu a este uma
solicitude sem limites.
— Parta, Zênon! — articulou ele. — Após minha morte… — Um
violento acesso de tosse o interrompeu.
Confundido, Zênon virara-se instintivamente para ver se o
enfermeiro, sentado em seu escabelo, poderia ter ouvido. Mas o
velhinho dormitava, bamboleando a cabeça. Esgotado, o prior caiu
de lado sobre os coxins, assaltado por uma espécie de torpor
convulso. Zênon inclinou-se em sua direção, o coração batendo
forte, tentado a despertá-lo para dele obter uma palavra ou um olhar
a mais. Duvidava dos testemunhos de seus sentidos, e mesmo dos
de sua razão. Ao cabo de um instante, sentou-se junto ao leito.
Depois de tudo o que ali ocorrera, não era impossível que o prior lhe
houvesse desde sempre sabido o nome.
O doente se agitava em meio a débeis espasmos. Zênon
massageou-lhe longamente os pés e as pernas, como outrora o
ensinara a fazer a dama de Frösö. Esse tratamento valia por todos
os opiáceos. Ele próprio acabou por adormecer à beira do leito, a
cabeça entre as mãos.
Pela manhã, o médico desceu ao refeitório para tomar uma tigela
de sopa quente. Pedro de Hamaere aí se encontrava. O grito do
prior reativara quase supersticiosamente todo o esquema de alerta
do alquimista. Ele chamou o administrador à parte e disse-lhe à
queima-roupa:
— Espero que tenha controlado as loucuras de seus amigos.
Ia falar da respeitabilidade e da segurança do convento. Pedro de
Hamaere poupou-lhe esse ridículo.
— Desconheço toda essa história — respondeu abruptamente.
E afastou-se em meio a um frenético estrépito de sandálias.

O prior recebeu nessa noite a Extrema-Unção pela terceira vez. A


pequena peça e a capela contígua estavam apinhadas de monges
empunhando círios. Alguns choravam; outros limitavam-se a assistir
à cerimônia com decoro. Parecia que o doente, meio entorpecido,
esforçava-se por respirar o menos penosamente possível, olhando
como que sem ver as pequenas chamas amarelas. Quando as
preces dos agonizantes chegaram ao fim, os assistentes saíram em
fila, deixando atrás de si apenas dois monges com seus rosários.
Zênon, que se mantivera à parte, retomou o lugar de costume.
O tempo das comunicações verbais, mesmo as mais breves, já
terminara; o prior restringia-se a pedir por sinais um pouco de água,
ou o urinol colocado na quina da cama. No âmago desse mundo em
ruínas, como um tesouro sob um monturo de escombros, parecia a
Zênon que subsistia ainda um espírito com o qual seria possível
talvez manter um contacto para além das palavras. Insistia em
segurar o pulso do doente, e esse tíbio toque dava-lhe a impressão
de que seria suficiente para transfundir ao prior um pouco de sua
força, e para dele receber em troca um pouco de serenidade. De
vez em quando, o médico, recordando a tradição segundo a qual a
alma de um homem que parte flutua acima dele tal uma centelha
envolta na bruma, perscrutava a penumbra, mas o que via nada
mais era provavelmente do que o reflexo de uma vela acesa na
vidraça. De manhãzinha, Zênon retirou a mão; era chegado o
momento de deixar que o prior avançasse sozinho rumo às
derradeiras portas, ou talvez, ao contrário, acompanhado das
figuras invisíveis que deveria ter conjurado em sua agonia. Pouco
depois, o enfermo pareceu agitar-se próximo ao despertar; os dedos
da mão esquerda pareciam procurar vagamente alguma coisa sobre
o peito, no lado onde outrora, sem dúvida, João-Luís de Berlaimont
trouxera o seu Tosão de Ouro. Zênon entreviu sobre o travesseiro
um escapulário cuja tira de pano se desprendera. Colocou-a no
lugar; o moribundo nele apoiou os dedos com um ar de
contentamento. Seus lábios se moveram em silêncio. No afã de
escutar melhor, Zênon acabou por ouvir, repetido sem dúvida pela
milésima vez, o fim de uma prece:
— … nunc et in hora mortis nostrae. [66]
Transcorreu uma meia hora; ele pediu aos dois monges que se
ocupassem dos últimos cuidados com o corpo.
Assistiu aos funerais do prior de uma das naves laterais da igreja.
A cerimônia atraíra muita gente. Zênon reconheceu no primeiro
plano o bispo e, muito próximo dele, apoiado numa bengala, um
velho quase paralítico, conquanto ainda robusto, que outro não era
senão o Cônego Bartolomeu Campanus, o qual, com o correr dos
anos, adquirira garbo e imponência. Sob seus capuzes, os monges
não se distinguiam uns dos outros. Francisco de Bure agitava o
turíbulo; tinha ele, de fato, uma fisionomia de anjo. A auréola ou a
tinta viva do manto de uma santa cintilava aqui e ali nos afrescos
restaurados do coro.
O novo prior era personagem bastante apagado, mas de extrema
piedade, e que passava por hábil administrador. Corria o boato de
que — aconselhado por Pedro de Hamaere, que muito trabalhara
por sua eleição —, iria ele em breve provavelmente fechar o Asilo
de São Cosme, considerado muito dispendioso. Talvez o religioso
houvesse sido também alertado quanto aos serviços prestados aos
fugitivos do Tribunal das Arruaças. Todavia, nenhuma observação
se fizera ao médico. Pouco se lhe dava: Zênon estava decidido a
desaparecer tão logo terminassem as exéquias do prior.
Dessa vez, ele nada levaria consigo. Deixaria para trás seus livros,
que não consultava, aliás, senão em raras ocasiões. Seus
manuscritos não eram nem tão valiosos, nem tão comprometedores
que tivesse de esconder em sua bagagem, ao invés de legá-los
qualquer dia às chamas do fogareiro do refeitório. Por ser verão,
resolveu renunciar ao sobretudo e às roupas contra o frio; um
simples capote sobre seus melhores trajes seria o bastante.
Guardaria numa sacola seus instrumentos envoltos num pedaço de
pano, assim como alguns medicamentos raros e custosos. À última
hora, aí colocaria também as duas velhas pistolas, que sempre
trazia nos coldres presos ao arção da sela. Cada detalhe dessa
redução de tudo ao essencial fora objeto de longas deliberações.
Não lhe faltava dinheiro: além do pouco que economizara para a
viagem somado aos magros vencimentos que lhe pagara o
convento, Zênon recebera, alguns dias antes da morte do prior, um
embrulho trazido pelo velho frade-enfermeiro, que continha a bolsa
da qual, tempos atrás, retirara o médico algumas moedas para Han.
E dela o prior não mais se servira desde então.
A primeira ideia que lhe ocorreu foi a de pedir emprestada a caleça
do filho de Greta para seguir até Anvers, daí escapulindo rumo à
Zelândia ou à Guéldria, já então abertamente insurrectas contra a
autoridade real. Mas se suspeitas recaíssem sobre ele após a
partida, melhor seria que a velhinha e o filho não ficassem
comprometidos com alguma coisa. O filósofo resolveu então ir a pé
até o litoral, e aí providenciar para si um barco.

Às vésperas de sua partida, Zênon trocou pela última vez algumas


palavras com Cipriano, a quem encontrara a cantarolar no
laboratório. O rapaz mostrava um ar de serena satisfação que o
exasperou.
— Apraz-me que você tenha renunciado a seus prazeres durante
esse período de luto — disse-lhe de supetão.
— Cipriano há muito não mais frequenta as assembleias noturnas
— respondeu o jovem monge com o jeito infantil que tinha de falar
como se se tratasse de outra pessoa. — Ele agora se encontra com
a Bela a sós em pleno sol.
Não se fez de muito rogado para esclarecer que descobrira um
jardim abandonado ao longo do canal cuja grade forçara, e no qual
Idelette ia por vezes encontrá-lo. A moreninha montava guarda,
escondida por detrás de um muro.
— Já pensou em não comprometer a Bela? Sua vida pode
depender de uma tagarelice de mulher grávida.
— Os Anjos não concebem nem dão à luz — replicou Cipriano
com o tom seguro de alguém que repete fórmulas decoradas.
— Ah! Abandone essa linguagem de herege — respondeu o
médico irritado.

Na noite que antecedeu sua saída da cidade, ceou, como


frequentemente fazia, com o organista e sua boa mulher. Após a
refeição, este o levou consigo, como de costume, para fazê-lo ouvir
os trechos que iria executar domingo seguinte nos grandes órgãos
da Igreja de São Donato. O ar enclausurado nos tubos sonoros
ecoava na nave deserta, mais harmonioso e pujante do que
qualquer voz humana. Durante toda a noite, deitado pela última vez
no leito de sua cela em São Cosme, Zênon deixou-se levar e
enlevar por um certo moteto de Roland de Lassus, [67] pensando em
seus futuros projetos. Era inútil partir muito cedo, pois as portas da
cidade só se abriam quando despontava o dia. Escreveu um bilhete
onde explicava que um de seus amigos enfermos numa localidade
vizinha o chamara com urgência, e que podiam esperá-lo de volta,
sem susto, em menos de uma semana. É sempre necessário cuidar
dos meios para um eventual regresso. Quando Zênon se esgueirava
cautelosamente do asilo, a rua já estava inundada por uma
nevoenta aurora de verão. O confeiteiro, ao reabrir a porta de sua
loja, foi o único a vê-lo sair.
O passeio na duna

Chegou à Porta de Damme [68] quando se levantavam as


pontiagudas grades de ferro e baixava-se a ponte levadiça. Os
guardas o saudaram polidamente; estavam habituados àquelas
saídas matinais do herbolário; seu embrulho não chamou atenção.
Caminhava a passos rápidos às margens de um canal; era a hora
em que os hortelões chegavam à cidade para vender seus legumes;
muitos deles o conheciam e desejaram-lhe bons ventos; um homem
que se dirigia justamente ao asilo para tratar de uma hérnia afligiu-
se ao saber que o médico ia ausentar-se; o Dr. Theus assegurou-lhe
que estaria de volta pelo fim da semana, mas doeu-lhe pregar essa
mentira.

Descortinava-se diante dele uma dessas belas manhãs em que o


sol pouco a pouco abre caminho por entre as brumas. Invadia-lhe
um bem-estar tão ativo que se diria estar próximo da alegria.
Parecia ser este o bastante para que o filósofo deixasse atrás de si,
com um dar de ombros, as angústias e aflições que haviam agitado
aquelas últimas semanas, dirigindo-se a passo firme rumo ao ponto
do litoral onde encontraria um barco. A manhã enterrava os mortos;
o ar livre dissipava o delírio. A uma légua de distância, Bruges
poderia estar situada em outro século ou em outra esfera. Ele se
surpreendia de como pudera deixar-se aprisionar durante cerca de
seis anos no Asilo de São Cosme, algemado a uma rotina
conventual pior que a condição de eclesiástico que o horrorizara aos
vinte anos, exagerando a importância de pequenas intrigas e de
pequenos escândalos inevitáveis entre quatro paredes. Parecia-lhe
quase haver insultado as infinitas possibilidades da existência ao
renunciar tão longamente ao grande mundo aberto. Os passos do
espírito, trilhando um caminho pelo avesso das coisas, conduziam
infalivelmente a profundezas sublimes, mas tornavam impossível o
próprio exercício de ser. Por muito tempo, impedira ele que a
felicidade se fizesse presente no momento, deixando que o acaso
se convertesse na parte que lhe cabia, ignorando onde dormiria à
noite ou como ganharia o seu pão da semana. A transformação era
um renascimento e quase uma metempsicose. O movimento
alternado das pernas bastava para alegrar a alma. Seus olhos
limitavam-se apenas a dirigir-lhe a marcha, rejubilando-se com o
belo verdor da relva. O ouvido registrava com satisfação o relincho
de um potro a galope ao longo de uma sebe ou o ranger de rodas
de uma caleça. Uma total liberdade nascia da partida.
Aproximava-se do burgo de Damme, antigo porto de Bruges, onde
outrora, antes da invasão da areia nesse trecho do litoral, aportavam
os navios de grande calado. Aqueles tempos de atividade já
pertenciam ao passado; vacas pastavam onde antes eram
desembarcados os fardos de lã. Zênon lembrou-se de haver ouvido
o engenheiro Blondeel suplicar a Henrique-Justo que adiantasse
uma parte das verbas necessárias para deter o avanço da areia; o
milionário de pouca visão repelira o homem cuja perícia poderia ter
salvo a cidade. Os avarentos nunca agem de outra forma.
Parou no local para comprar um pedaço de pão. As casas
burguesas entreabriram suas portas. Uma matrona rosa e branca
sob sua coifa taful soltou um barbet que se afastou alegremente,
farejando a relva, antes de imobilizar-se por um instante na postura
contrita dos cães que satisfazem suas necessidades, para em
seguida reiniciar seus saltos e brincadeiras. Um grupo de crianças
tagarelas seguia rumo à escola, todas graciosas e roliças como
pintarroxos em suas vivas plumagens. Todavia, estavam ali os
súditos do Rei de Espanha que iriam um dia dar dores de cabeça
àqueles franceses velhacos. Um gato cruzou a rua, recolhendo-se à
estalagem que o abrigava, com os pés balouçantes de um
passarinho a lhe saírem pela goela. Um delicioso aroma de massas
e frituras emanava da confeitaria, misturado ao odor insípido do
açougue vizinho; a proprietária enxaguava a soleira da porta
manchada de sangue. O tradicional patíbulo da forca erguia-se fora
do burgo, no topo de um pequeno outeiro coberto de ervas, mas o
corpo que lá pendia estava há tanto tempo exposto à chuva, ao sol
e ao vento que quase adquirira a doçura das velhas coisas legadas
ao abandono; a brisa brincava fraternalmente em seus andrajos de
cores esmaecidas. Uma companhia de besteiros saía para caçar
tordos; eram bons burgueses folgazões que se divertiam e
conversavam, dando-se tapinhas nas costas; cada um levava a
tiracolo um alforje, que em breve estaria repleto de parcelas de vida
que um momento antes cantavam em pleno céu. Zênon apertou o
passo. Seguiu sozinho por algum tempo através de uma estrada
que serpenteava entre duas pastagens. O mundo inteiro parecia
constituir-se apenas de céu pálido e relva verde, saturado de seiva,
que se agitava sem cessar ao nível do solo como uma onda. Por um
instante, evocou o conceito alquímico da viriditas [69] — a inocente
fenda do ser que se desenvolve tranquilamente como a natureza
das coisas, raminho de vida em estado puro —, renunciando depois
a qualquer noção abstrata para entregar-se de todo à simplicidade
da manhã.
Ao fim de um quarto de hora, encontrou um pequeno capelista que
caminhava à sua frente com um fardo às costas; trocaram ambos
uma saudação; o homem se queixava de que o negócio ia mal,
tantas eram as aldeias do interior do país que haviam sido
saqueadas pelos soldados. Ali, pelo menos, era calmo; não se
renunciava a grande coisa. Zênon prosseguiu e viu-se outra vez
sozinho. Por volta do meio-dia, sentou-se para comer um pouco de
pão sobre uma escarpa da qual já se divisava a linha indistinta do
mar.
Um viandante munido de uma longa vara veio sentar-se ao seu
lado. Era um cego que também tirou algo da sacola para matar a
fome. O médico admirou-se da destreza com que o homem de olhos
esbranquiçados se desvencilhou da cornamusa que trazia às
costas, desafivelando a correia e depondo delicadamente o
instrumento sobre a relva. O cego se regozijava pela beleza do dia.
Ganhava a vida fazendo dançar os rapazes e as moças nas
estalagens e tavernas ou nos pátios de fazenda; dormiria aquela
noite em Heyst, onde tocaria no domingo, fazendo o mesmo depois
em Sluys: graças a Deus, havia sempre bastante juventude para
que em toda parte dela tirasse ele seu proveito, e às vezes seu
próprio rejuvenescimento. Mynheer o acreditaria? Encontravam-se
aqui e ali mulheres que se agradavam dos cegos; não cabia
exagerar a desgraça de não se possuir mais olhos. Como muitos de
seus irmãos de infortúnio, o cego usava e abusava do verbo ver: via
que Zênon era um homem na força de seus anos e tinha educação;
via que o sol ainda estava a pino; via que o vulto que passava na
vereda por detrás deles era o de uma mulher algo enferma que
carregava aos ombros uma canga de cujas extremidades pendiam
dois baldes. Aliás, nem tudo era falso naquelas gabolices: foi ele
quem primeiro percebeu uma cobra que coleava através da relva.
Ele mesmo se encarregou, com o auxílio de seu cajado, de matar o
repugnante animal. Zênon despediu-se deixando-lhe a esmola de
um liard, e seguiu em frente coroado por uma auréola de bênçãos.
O caminho circundava uma fazenda de consideráveis dimensões;
era a única nessas paragens em que já se sentia sob os pés o
chiado da areia. A propriedade apresentava bom aspecto, com as
terras interligadas aqui e acolá por bosques de aveleiras, o muro
margeando um canal e o pátio sombreado por tílias, onde a mulher
da canga, já desatrelada, descansava sobre um banco,
conservando perto suas duas selhas. Zênon hesitou, depois passou.
O lugar, dito Oudebruges, pertencera aos Ligres; talvez fosse ainda
da família. Cinquenta anos atrás, sua mãe e Simão Adriansen,
pouco antes das bodas, haviam ido até ali recolher para Henrique-
Justo o aluguel do pequeno latifúndio; a visita fora uma festa de
prazer. Sua mãe sentara-se à margem do canal, deixando
mergulhar nas águas os pés descalços e que, vistos assim,
pareciam ainda mais brancos. Ao comer, Simão deixava espargir
migalhas sobre a barba grisalha. A jovem mulher descascara para o
filho um ovo cozido e lhe dera o precioso invólucro. A brincadeira
consistia em correr no sentido do vento sobre dunas muito próximas
umas das outras, conservando na palma da mão o leve objeto, que
dali escapulia para adejar diante dele, pousando por um instante,
como um pássaro, de modo que era continuamente necessário
tentar recapturá-lo ao longo de um trajeto que se contorcia numa
série de curvas interrompidas e retas quebradas. Parecia-lhe às
vezes que toda a sua vida se resumira naquela brincadeira.
Avançava agora menos rapidamente sobre o solo mais fofo. A
estrada subia e descia através das dunas, sulcadas apenas por
trilhas sobre a areia. Cruzou a seguir com dois soldados, que, sem
dúvida, integravam a guarnição de Sluys, e deu graças por estar
armado, pois qualquer soldado que se encontre num lugar deserto
torna-se facilmente um bandido. Mas ambos contentaram-se em
rosnar uma saudação tedesca, parecendo muito felizes quando
Zênon lhes respondeu no mesmo idioma. Do cimo de uma elevação,
divisou afinal a aldeia de Heyst, com sua paliçada, e em cuja baía
flutuavam quatro ou cinco barcos. Outros balouçavam em mar
aberto. O lugarejo às margens da imensidão possuía, em escala
reduzida, todas as comodidades essenciais à cidade grande: um
mercado coberto, que atendia sem dúvida ao comércio do peixe,
uma igreja, um moinho, uma esplanada com um patíbulo, casas de
teto baixo e amplos celeiros. A estalagem A Bela Pombinha, que
Josse lhe indicara como ponto de conexão dos fugitivos, era um
pardieiro ao pé da duna, com um pombal em que se fincara uma
vassoura à guisa de tabuleta, o que valia dizer que a mísera
hospedagem era também um sórdido bordel. Seria preciso num
lugar desses vigiar a bagagem e o dinheiro que trazia consigo.
Por entre os lúpulus do jardinzinho, um freguês já bastante tocado
bebia sua cerveja. Uma mulher gritou algo para o bêbado por uma
janelinha do primeiro pavimento, recolhendo depois a cabeça
desgrenhada e assomando de novo ao peitoril, sem dúvida apenas
para exigir-lhe uma boa quantia. Josse fornecera a Zênon a senha,
que ele mesmo obtivera de um amigo. O filósofo entrou e saudou o
seu mundo. A sala ordinária estava enfumaçada e negra como uma
caverna. A dona do estabelecimento, acocorada diante do fogão,
preparava uma omelete, auxiliada por um rapazola que segurava os
foles. Zênon sentou-se a uma das mesas e disse, contrariado por ter
de recitar a frase feita, como um ator de teatro ambulante:
— Quem quer o fim…
— … quer os meios — completou a mulher virando-se para ele. —
De onde vem você?
— Foi Josse quem me enviou.
— Ele nos envia muita gente — insistiu a mulher com um
fulgurante piscar de olhos.
— Não tenho a menor intenção de enganá-la — disse o filósofo,
descontente por entrever, ao fundo da sala, um sargento de gorro
emplumado que esvaziava seu copo. — Conheço as regras do jogo.
— Então, o que veio fazer entre nós? — protestou a bela
estalajadeira. — Não se incomode com Milo [70] — continuou ela,
apontando com o polegar para o soldado. — É o namorado de
minha irmã. Tudo bem com ele. Aceita comer alguma coisa?
A pergunta era quase uma ordem. Zênon aceitou comer alguma
coisa. A omelete era para o sargento; a estalajadeira trouxe numa
tigela um guisado sofrível. A cerveja era boa. Zênon descobriu que o
militar era albanês e que atravessara os Alpes na garupa das tropas
do duque. Falava um flamengo matizado de italiano diante de cujas
particularidades idiomáticas a estalajadeira parecia sentir-se à
vontade. Queixava-se de haver tiritado todo o inverno, e os
proveitos não correspondiam em absoluto ao que se dissera no
Piemonte, pois os luteranos passíveis de serem saqueados e
espoliados deixavam menos do que lá se havia prometido para
aliciar as tropas.
— É tal e qual — disse a estalajadeira. — Jamais se ganha o que
os outros julgam que se ganha. Mariken!
Mariken desceu, a cabeça envolta num xale, e sentou-se ao lado
do sargento. Comeram ambos com as mãos no mesmo prato. Ela
lhe introduzia na boca bons pedaços de toucinho que tirava da
omelete. O menino dos foles se eclipsara.
Zênon empurrou a tigela e dispôs-se a pagar.
— Para que tanta pressa? — perguntou displicentemente a bela
estalajadeira. — Meu homem e Niclas Bambeke virão cear daqui a
pouco. Comem isso aí sempre frio, pobres criaturas do mar!
— Gostaria de ver logo o barco.
— São vinte liards pela carne, cinco pela cerveja e cinco ducados
pelo laissez-passer do sargento. O leito está incluído. Eles não
içarão as velas antes de amanhã de manhã.
— Já tenho meu salvo-conduto — protestou o viajante.
— Não há salvo-conduto que satisfaça às exigências de Milo —
replicou a dona do estabelecimento. — Aqui, o Rei Filipe é ele.
— Ele ainda não me confirmou o embarque — objetou Zênon.
— Nada de pechinchas! — engrossou o albanês, erguendo a voz
ao fundo da sala. — Não vou derrear-me dia e noite sobre a
paliçada para ver quem parte ou quem não parte.
Zênon pagou o que se pedia. O filósofo tomara o cuidado de enfiar
numa bolsa apenas aquilo de que iria necessitar em dinheiro, para
que não se julgasse estar ele escondendo algo mais consigo.
— Como se chama o barco?
— Como chamamos isto aqui — informou a bela estalajadeira. —
A Bela Pombinha. Não seria nada bom que ele se enganasse
quanto a isso, hein, Mariken?
— Na verdade, não — disse a jovem. — Com Os Quatro Ventos
eles se perderiam na bruma e dariam diretamente em Vilvorde.
A piada pareceu por demais espirituosa às duas mulheres, e o
próprio albanês a compreendeu o bastante para rir às gargalhadas.
Vilvorde era um lugar situado no interior do país.
— Você pode deixar aqui seus embrulhos — observou a
estalajadeira de bom humor.
— Como também embarcá-los imediatamente — retrucou Zênon.
— Que sujeito desconfiado — disse zombeteiramente Mariken
enquanto ele saía.
Zênon quase esbarrou à soleira da porta no cego que viera fazer
dançar a juventude. Este o reconheceu e saudou-o
obsequiosamente.

A caminho do cais, deparou-se com um pelotão de soldados que


retornava à estalagem. Um deles perguntou-lhe se vinha d’A Bela
Pombinha; ante sua resposta afirmativa, deixaram-no passar. Milo
de fato reinava por ali.
A Bela Pombinha marítima era um barco de porte bastante
avantajado e cujo casco bojudo, em virtude da maré baixa, estava
encalhado na areia. Zênon pôde aproximar-se dele o bastante sem
molhar os pés. Dois homens trabalhavam nas enxárcias com o
menino que há pouco acionava os foles junto ao fogo da taverna;
um cão brincava entre as pilhas de cordas. Mais além, numa poça,
uma pasta sanguinolenta de cabeças e caudas de arenques
atestava que se trouxera de alhures o produto da pesca. Um dos
homens desceu à terra ao perceber a chegada do viajante.
— Sou Jans Bruynie — disse ele. — Josse envia o senhor à
Inglaterra? É preciso ainda saber o que pretende pagar.
Zênon compreendeu que o menino fora enviado até ali por uma
questão de cautela. Deviam ter especulado sobre o seu grau de
opulência.
— Josse falou-me em dezesseis ducados.
— Meu senhor, isso é quando há muita gente. Outro dia, eu tinha
onze pessoas. Mais de onze, já não seria a mesma coisa.
Dezesseis ducados por luterano, bem, isso equivalia a cento e
setenta e seis. Não digo que por um homem apenas…
— Não pertenço em absoluto à religião reformada — interrompeu
o filósofo. — Tenho em Londres uma irmã casada com um
comerciante…
— Temos fartura dessas irmãs — disse ironicamente Jans Bruynie.
— É comovente ver as pessoas se arriscarem de repente ao enjoo
para abraçar seus familiares.
— Faça seu preço — insistiu o médico.
— Por Deus, meu senhor, não quero dissuadi-lo de fazer uma
viagem à Inglaterra. A mim, a travessia me desagrada muitíssimo.
Considerando-se que se está como em guerra…
— Ainda não — disse o filósofo, acariciando a cabeça do cão que
acompanhara o dono até a praia.
— Mas são favas contadas — retrucou Jans Bruynie. — A viagem
é permitida, pois ainda não está proibida, embora não de todo
autorizada. No tempo da Rainha Maria, a mulher de Filipe, a coisa ia
bem. Com o devido respeito, queimavam-se os hereges como aqui.
Agora, tudo vai mal: a rainha é bastarda e emprenha às escondidas.
Ela se diz virgem, mas é para debochar de Nossa Senhora.
Estripam-se os padres naquele país e caga-se nos vasos sagrados.
Isso não se faz. Prefiro pescar perto da costa.
— Pode-se pescar também em alto-mar — observou Zênon.
— Quando se pesca, volta-se quando bem se entende; se vou à
Inglaterra, é uma viagem que pode durar… O vento, o senhor sabe,
e uma calmaria… E se curiosos se misturarem à minha carga, uma
caça esquisita que se leva ao partir, e, ao voltar… Certa vez,
inclusive — acrescentou ele, baixando a voz —, transportei pólvora
de mosquete para o Senhor de Nassau. Era perigoso navegar
naquele dia em minha casquinha de noz.
— Há outros barcos — arriscou negligentemente o filósofo.
— É só dar uma olhada, senhor. O Santa Bárbara trabalha quase
sempre conosco, está com uma avaria: nada feito. O São Bonifácio
tem tido aborrecimentos… Há barcos no mar, é claro, mas só o
diabo sabe quando voltam… Se não tiver pressa, pode ir dar uma
espiada em Blakenberghe ou em Wenduyne, mas os preços de lá
são os mesmos daqui.
— É aquele ali? — perguntou Zênon, apontando para uma
embarcação mais leve, sobre a qual um homenzinho cozinhava sua
comida placidamente instalado na popa.
— Os Quatro Ventos? Vá nele, se assim deseja — disse Jans
Bruynie.
Zênon refletia, sentado numa carcaça abandonada. O focinho do
cão repousava sobre seus joelhos.
— De qualquer forma, partirá ao amanhecer?
— Para a pesca, meu bom senhor, para a pesca. É claro, se
tivesse chegado a falar em cinquenta ducados…
— Quarenta — disse com firmeza Sebastião Theus.
— Que seja por quarenta e cinco. Não quero arrancar a pele de
um freguês. Se nada tem de mais urgente do que rever sua irmã em
Londres, por que não aguardar dois ou três dias pela Pombinha…
Fugitivos que têm fogo no rabo, ora, está cheio deles por aí… Não
pagará senão a sua cota.
— Prefiro partir já.
— Sem dúvida… E é mais prudente, pois suponhamos que o
vento mude… Já acertou com o pombo que elas mantêm na
estalagem?
— Se se trata dos cinco ducados que me extorquiram…
— Não é de nossa conta — disse com desdém Jans Bruynie —,
as mulheres se arrumam com ele para que não haja aborrecimentos
em terra firme. Olá, Niclas — gritou para seu camarada —, eis o
passageiro!
Um homem sanguíneo, de ombros enormes, se debruçou à
escotilha.
— É Niclas Bambeke — declarou o patrão. — Há também Michiel
Sottens, mas foi cear na taverna. Quer comer conosco n’A
Pombinha? Deixe seus embrulhos.
— Precisarei deles à noite — disse o médico, protegendo a sacola
de que Jans queria apoderar-se. — Sou cirurgião e trago comigo
meus instrumentos — acrescentou para justificar o peso do saco,
que, de outra forma, poderia levantar suspeitas.
— O senhor cirurgião leva também armas de fogo — comentou
sarcasticamente o patrão, percebendo de esguelha as coronhas de
metal que emergiam dos bolsos do médico.
— Trata-se de um homem prudente — disse Niclas Bambeke
saltando do barco. — Mesmo no mar, há gente que não presta.
Zênon os seguiu de volta à estalagem. Próximo à esquina do
mercado, desviou-se, dando-lhes a entender que ia apenas urinar.
Os dois continuaram a andar, discutindo animadamente sobre
alguma coisa, escoltados pelo cão e pelo menino que corriam em
círculos. Zênon contornou o mercado e logo alcançou a praia.

Anoitecia. A duzentos passos, uma capela parcialmente em ruínas


afundava na areia. Ele examinou o interior. Uma enorme poça
deixada pela última maré alta invadia a nave com estátuas corroídas
pelo sal. O prior, sem dúvida, ali não se recolheria nem rezaria.
Zênon abrigou-se sob o pórtico, repousando a cabeça sobre a
mochila. Percebiam-se à direita os cascos sombrios dos barcos,
com uma lanterna acesa na popa d’Os Quatro Ventos. O viajante
pensava no que faria quando chegasse à Inglaterra. A primeira
coisa seria evitar que o confundissem com algum espião papal sob
o disfarce de refugiado. Viu-se a deambular pelas ruas de Londres,
pedindo um posto de cirurgião da Armada ou, na casa de um
médico, um lugar análogo ao que ocupara junto a João Myers. Nada
sabia de inglês, mas uma língua se aprende depressa, e, além
disso, com o latim se ia longe. Com um pouco de sorte, poder-se-ia
arrumar emprego na casa de um grão-senhor interessado em
afrodisíacos ou em remédios que lhe aliviassem a gota. Ele tinha o
costume dos salários generosos, embora nunca pagos, do lugar
mais honroso ou menos honroso da mesa, conforme o humor que
animasse Milorde ou Sua Alteza neste ou naquele dia, das disputas
com os charlatães do lugar, hostis ao charlatão estrangeiro. Em
Innsbruck ou em outros lugares, já vira tudo isso. Seria preciso
lembrar-se também de jamais referir-se ao Papa senão com horror,
assim como a João Calvino, e de considerar o Rei Filipe ridículo,
como o era em Flandres a Rainha da Inglaterra.
A lanterna d’Os Quatro Ventos se aproximou, balançando na mão
de um homem que caminhava em sua direção. O pequeno mestre
careca parou diante de Zênon, que parcialmente se ergueu.
— Vi quando o senhor veio descansar sob o pórtico. Minha casa
fica logo ali; se Vossa Senhoria receia o sereno…
— Estou bem aqui — respondeu Zênon.
— Sem pretender ser muito curioso, posso perguntar a Vossa
Senhoria quanto eles cobram para a Inglaterra?
— Deve saber os preços deles.
— Não é que os censure, Vossa Senhoria. Mas a estação é curta:
após o dia de Todos os Santos, é preciso que o senhor se dê conta
de que nem sempre é cômodo largar as velas. Mas, ao menos, que
sejam honestos… Será que não lhe ocorre de modo algum que por
esse preço eles não o conduzirão até Yarmouth? Não, senhor, eles
o baldearão lá adiante, com os pescadores de alto-mar, e Vossa
Senhoria recomeçará então a pagar novas despesas.
— É um sistema como outro qualquer — comentou distraidamente
o viajante.
— Vossa Senhoria não cogitou em absoluto de que é arriscado
para um homem de sua idade partir sozinho com três espertalhões?
Um golpe de remo é fácil de ser aplicado. Eles vendem as roupas
aos ingleses, e ninguém viu nem soube de nada.
— Veio propor-me seguir para a Inglaterra a bordo d’Os Quatro
Ventos?
— De modo algum, senhor, meu barco não tem condições para
tanto. E até mesmo a Frísia [71] fica muito longe. Mas se se trata
apenas de mudar de ares, deve o senhor saber muito bem que a
Zelândia escapole por assim dizer das mãos do Rei. Aquilo ali
fervilha de Gueux desde que o próprio Senhor de Nassau
comissionou o Capitão Sonnoy… Conheço as fazendas onde se
abastecem os Senhores Sonnoy e de Dolhain… Que profissão
exerce Vossa Senhoria?
— Trato meus semelhantes — disse o médico.
— Vossa Senhoria terá a bordo das fragatas daqueles cavalheiros
a ocasião de tratar de belos corpos e de belas entranhas. E volta-se
em algumas horas quando se sabe de que lado sopra o vento.
Pode-se partir até antes da meia-noite; Os Quatro Ventos dispensa
águas profundas para navegar.
— Como evitará as patrulhas de Sluys?
— Conhece-se muita gente, senhor. Tenho amigos. Mas Vossa
Senhoria deverá renunciar a seus bons trajes e vestir-se como um
pobre marinheiro… Se por acaso alguém sobe a bordo…
— Não me fez ainda seu preço.
— Quinze ducados seria muito para Vossa Senhoria?
— O preço convém. Está certo de que no escuro não encalhará
em Vilvorde?
O homenzinho careca fez uma careta de abominação.
— Calvinista de merda, vá! Devorador da Santíssima Virgem! Foi
A Bela Pombinha que o levou a crer nisso?
— Apenas repeti o que me disseram — respondeu laconicamente
Zênon.
O homem se afastou praguejando. Dez passos adiante, fez meia-
volta, virando a lanterna. A carranca furiosa dera lugar a uma
fisionomia servil.
— Vejo que Vossa Senhoria está a par das novidades —
recomeçou ele untuosamente —, mas não se deixe enganar. Vossa
Senhoria haverá de escusar-me por ter sido um pouco exaltado,
mas não tenho nada a ver com a captura do Senhor de Battenbourg.
Não se tratava sequer de um piloto daqui… E depois, o ganho não
tinha nem comparação: o Senhor de Battenbourg era uma gorda
fatia. Vossa Senhoria estará tão seguro a bordo de meu barco
quanto na casa de sua santa mãe…
— Basta — disse Zênon. — Seu barco pode largar as velas à
meia-noite; posso trocar de roupa em sua casa, que fica aqui ao
lado, e seu preço é quinze ducados. Deixe-me em paz.
Mas o homenzinho não era desses que desanimam facilmente. Ele
não o obedeceu senão depois de haver assegurado à Sua Senhoria
que esta, no caso de sentir excessiva fadiga, poderia refazer-se à
vontade em sua casa e partir apenas na noite seguinte. Milo fazia
vista grossa; ele não estava mancomunado com Jans Bruynie.
Afinal só, Zênon se perguntou como teria tratado com atenção
aqueles velhacos caso adoecessem, já que, de bom grado, os teria
matado sãos. Quando a lanterna foi recolocada em seu devido lugar
na popa d’Os Quatro Ventos, ele se levantou. A noite encobria-lhe
os movimentos. O médico percorreu lentamente um quarto de légua
em direção a Wenduyne, com seu embrulho debaixo do braço. Seria
o mesmo, sem dúvida, em qualquer parte. Era impossível saber qual
daqueles dois fanfarrões mentia, ou se por acaso diziam ambos a
verdade. Podia ser também que ambos mentissem, e que tudo não
passasse de uma rivalidade entre dois miseráveis. Quem quisesse
que o resolvesse.
Uma duna lhe eclipsou as luzes de Heyst, ainda muito próxima,
todavia. Escolheu um desvão ao abrigo da brisa, e bem acima da
linha da maré alta, que já se pressentia, mesmo no escuro, pela
umidade da areia. A noite de verão era tépida. Haveria sempre
tempo para refletir de manhãzinha. Cobriu-se com o casaco. A
bruma escondia as estrelas, à exceção de Vega, próxima ao zênite.
O mar sussurrava seu eterno murmúrio. Dormiu sem sonhos.
O frio despertou-o antes do amanhecer. Um palor embebia o céu e
as dunas. A maré montante quase lambia seus sapatos. Tinha
arrepios, mas o frio já trazia a promessa do belo dia de verão.
Friccionando suavemente as pernas entorpecidas pela imobilidade
noturna, olhava o mar disforme dar à luz suas ondas logo
dissolvidas. O rumor que perdura desde o início do mundo crescia
sem cessar. Ele deixou escorrer entre os dedos um punhado de
areia. Calculus: [72] com essa fuga de átomos começavam e
acabavam todas as cogitações sobre os números. Fora preciso,
para esfarelar assim as rochas, um número de séculos superior ao
dos dias contidos nos relatos da Bíblia. Desde seus tempos de
jovem, a meditação dos antigos filósofos o ensinara a olhar do alto
aqueles míseros seis mil anos que constituem tudo o que os judeus
e os cristãos admitem conhecer da venerável ancestralidade do
mundo, por eles medida através da curta duração da memória
humana. Camponeses de Dranoutre lhe haviam mostrado nas
turfeiras imensos troncos de árvores que supunham haver sido
trazidos até ali pelas marés do Dilúvio, mas houvera outras
inundações pela água além daquela à tona da qual boiava a história
de um patriarca amante do vinho, assim como houvera outras
destruições pelo fogo além da grotesca catástrofe de Sodoma.
Darazi falara de miríades de séculos que não constituem senão o
tempo de uma respiração infinita. Zênon calculou que, no próximo
dia vinte e quatro de fevereiro, se ainda estivesse com vida,
completaria cinquenta e nove anos. Contudo, esses onze ou doze
lustros eram como aquele punhado de areia: a vertigem dos
grandes números emanava delas. Durante mais de um bilhão e
meio de instantes, vivera ele aqui e ali sobre a Terra, enquanto Vega
girava nos arredores do zênite e o mar sussurrava seu murmúrio em
todas as praias do mundo. Cinquenta e oito vezes, ele vira a relva
da primavera e a plenitude do verão. Pouco importava que um
homem dessa idade vivesse ou morresse.
O sol já ia alto quando do cimo da duna ele avistou A Bela
Pombinha enfunar as velas e fazer-se ao largo. O tempo era
propício à viagem. A pesada embarcação se afastava mais
rapidamente do que jamais se poderia imaginar. Zênon voltou a
deitar-se em seu ninho de areia, deixando que o calor lhe dissipasse
qualquer vestígio de lassidão noturna, contemplando seu sangue
rútilo através das pálpebras cerradas. Avaliava suas chances como
se estas fossem de um outro. Armado como estava, poderia obrigar
o patife sentado junto ao leme d’Os Quatro Ventos a desembarcá-lo
numa praia qualquer frequentada apenas pelos Amotinados do Mar;
saberia, ao contrário, como estourar-lhe a cabeça com uma bala se
o velhaco revelasse a menor intenção de pensar em algum vaso de
guerra do Rei. Servira-se sem remorso daquele mesmo par de
pistolas para despachar um albanês que tentara assaltá-lo certa vez
na floresta búlgara, do mesmo modo que, após haver frustrado a
emboscada de Perrotin, se sentira ainda mais homem. Contudo, a
ideia de ser obrigado a esfacelar o cérebro do miserável parecia-lhe
agora repugnante, e nada mais. A perspectiva de engajar-se como
cirurgião nas tripulações dos Senhores Sonnoy ou de Dolhain era
boa; fora para esse lado que encaminhara Han na época em que os
patriotas, meio piratas, não possuíam ainda a autoridade e os
recursos que viriam a adquirir às custas de novos distúrbios. Um
posto junto a Luís de Nassau não estava excluído: o fidalgo decerto
carecia de bons médicos a seu serviço. A existência de guerrilheiro
ou de corsário pouco diferia da que ele vivera nos exércitos da
Polônia ou na frota turca. Forçado ao pior, bem que se poderia
manejar por algum tempo o cautério ou o escalpelo nas tropas do
duque. E no dia em que a guerra lhe desse vontade de vomitar,
restaria a esperança de alcançar a pé um canto do mundo em que,
no momento, não graçasse a mais feroz das loucuras humanas.
Nada daquilo era inexequível. Mas era preciso lembrar-se de que,
no fim das contas, ele não seria talvez jamais perturbado em
Bruges.
Zênon bocejou. Essas alternativas não o interessavam mais.
Descalçou os sapatos pesados de areia, enfiando satisfeito os pés
naquele tépido e fluido lençol, buscando e encontrando mais abaixo
o frescor marinho. Tirou a roupa, depôs cuidadosamente sua
bagagem sobre ela e os sapatos, e correu em direção ao mar. A
maré já baixava: com água pelas canelas, atravessou poças
resplandecentes e abandonou-se ao ritmo das ondas.
Nu e só, as circunstâncias dele se desprendiam como o fizera ele
com seus trajes. Transformava-se de novo no Adão Cadmo dos
filósofos herméticos, situado no centro das coisas, em quem se
resolve e ganha voz aquilo que em toda parte perdura difuso e
impronunciado. Nada tinha nome nessa imensidão: absteve-se de
cogitar se o pássaro que pescava, oscilando sobre uma crista-de-
onda, era uma gaivota, ou se o estranho animal, que agitava num
marisma membros tão distintos dos que possui o homem, era uma
estrela-do-mar. A maré continuava a baixar, deixando atrás de si
conchinhas cujas espirais eram tão puras quanto as de Arquimedes;
o sol subia imperceptivelmente, reduzindo aquela sombra humana
sobre a praia. Pleno de um reverente pensamento que o teria levado
à morte em todos os lugares públicos de Maomé ou de Cristo,
imaginou que os mais adequados símbolos do hipotético Bem
Supremo são ainda aqueles que absurdamente se consideram os
mais pagãos, e aquele globo ígneo, o único Deus visível para as
criaturas que sem ele se extinguiriam. Da mesma forma, o mais real
dos anjos era aquela gaivota que, mais do que os Serafins e os
Tronos, trazia em si a evidência de existir. Nesse mundo sem
fantasmas, a própria ferocidade era pura: o peixe que ondulava sob
a vaga nada mais seria, dentro em breve, do que um sangrento
petisco no bico do martim-pescador, conquanto o pássaro não
atribuísse pretextos perversos à sua fome. A raposa e a lebre, a
astúcia e o medo residiam na duna sobre a qual ele dormira, mas o
assassino não se enquadrava em leis promulgadas outrora por uma
raposa astuciosa ou recebidas de uma raposa-deus: a vítima não se
julgava punida por seus crimes e não invocava, ao morrer, a
lealdade a seu príncipe. A violência das ondas estava isenta de
cólera. A morte, sempre obscena entre os homens, era natural
naquele ermo. Um passo a mais na fronteira entre o fluido e o
líquido, entre a areia e a água, e o ímpeto de uma vaga mais forte
do que as outras o faria perder o pé; essa agonia tão breve e sem
testemunhas seria pouco menos do que a morte. Ele abominaria
talvez um dia um fim como este. Mas tal possibilidade existia tanto
quanto a dos projetos relativos à Inglaterra ou à Zelândia,
engendrados pelos temores da véspera ou por ameaças futuras
ausentes desse momento luminoso, planos concebidos pelo espírito
e não uma necessidade que se impõe ao ser. Não soara ainda a
hora do desenlace.
Voltou ao lugar onde deixara as roupas, as quais demorou um
pouco a encontrar, pois já as cobria uma fina camada de areia. O
recuo do mar alterara em pouco tempo as distâncias. O rastro de
seus passos sobre a orla úmida fora imediatamente sorvido pelas
ondas; sobre a areia seca, o vento apagava todos os indícios. Seu
corpo lavado esquecera a fadiga. Uma outra manhã à beira-mar
recordava-lhe por si só a desse dia, como se o interlúdio da areia e
da água perdurasse há dez anos: durante sua permanência em
Lübeck, estivera um dia na foz do Rio Trave, em companhia do filho
do ourives, a fim de recolher o âmbar do Báltico. Os cavalos
também se banharam; livres das selas e das mantas de lã,
molhados pela água do mar, eles se haviam tornado outra vez
criaturas que existiam por si mesmas, ao invés das dóceis montadas
habituais. Um dos fragmentos de âmbar continha um inseto
aprisionado na resina; o médico contemplara como se de uma
janelinha o animálculo enclausurado numa idade da Terra à qual ele
não tinha nenhuma possibilidade de acesso. Sacudiu a cabeça,
como se costuma fazer para espantar uma abelha importuna: Zênon
revia agora com maior frequência momentos extintos de seu próprio
passado, não por remorso ou por nostalgia, mas porque os tabiques
do tempo pareciam haver desmoronado. O dia passado em
Travemunde estava incluso na memória como se no interior de uma
matéria quase imperecível, relíquia de uma estação em que a vida
foi vivida. Se ele existisse por mais dez anos; aconteceria o mesmo
com relação ao dia que ele agora vivia.
Zênon repôs sem prazer sua carapaça humana. Um resto de pão
dormido e seu cantil cheio até a metade pela água de uma cisterna
lembraram-no de que seu itinerário seria até o fim percorrido entre
os homens. Era preciso mantê-los a distância, mas também
continuar a deles se servir e a servi-los. Ajeitou o alforje sobre os
ombros e amarrou pelos cordões os sapatos à cintura, a fim de se
conceder por mais algum tempo o prazer de caminhar descalço.
Evitando Heyst, que lhe causara o efeito de uma úlcera sobre a bela
epiderme da areia, tomou o caminho das dunas. Do topo de uma
elevação mais próxima, voltou-se para ver o mar. Os Quatro Ventos
flutuava ainda junto à paliçada; outras embarcações se haviam
reaproximado do porto. Uma vela no horizonte parecia tão pura
quanto uma asa; talvez fosse a do barco de Jans Bruynie.

Caminhou cerca de uma hora à margem das veredas demarcadas.


Numa espécie de vale entre dois montículos semeados de ásperas
ervas, o filósofo percebeu que vinha ao seu encontro um grupo de
seis pessoas: um velho, uma mulher, dois homens maduros e dois
rapazes armados com porretes. O velho e a mulher avançavam a
custo pelo terreno alagadiço. Todos vestiam trajes burgueses da
cidade. Parecia que os componentes do grupo preferiam passar
sem despertar atenção. Todavia, responderam ao cumprimento de
Zênon, logo tranquilizados pelo interesse que lhes concedia o
viandante polido e que falava o francês. Os dois jovens vinham de
Bruxelas; eram patriotas católicos que tentavam unir-se às tropas do
Príncipe de Orange. O restante do grupo era calvinista; o velho, que
fora mestre-escola em Tournai, fugia para a Inglaterra em
companhia dos dois filhos; a mulher que lhe enxugava a fronte com
um lenço era sua nora. O longo percurso a pé era por demais
rigoroso para que o pobre homem pudesse suportá-lo; ele se sentou
por um instante sobre a areia para tomar fôlego; os demais o
rodearam.
A família reunira-se em Eeclo aos dois rapazes de Bruxelas: o
mesmo perigo e a mesma fuga tornavam companheiras essas
pessoas que foram outrora inimigas. Os rapazes falavam com
admiração do Senhor de La Marck, que jurara deixar crescer a
barba até que os condes fossem vingados; ele se refugiara nos
bosques com os seus, e enforcava sem piedade cada espanhol que
lhe caísse nas mãos: era de homens dessa têmpera que se
precisava nos Países Baixos. Zênon ouviu também dos fugitivos
bruxelenses os detalhes da captura do Senhor de Battenbourg e de
dezoito fidalgos de sua comitiva atraiçoados pelo piloto que os
conduzia à Frísia: essas dezenove pessoas foram encarceradas na
fortaleza de Vilvorde e decapitadas. Os filhos do mestre-escola
empalideceram ao ouvir o relato, inquietando-se com o que os
aguardava à beira-mar. Zênon acalmou-os: Heyst parecia um local
seguro, contanto que cada um pagasse seu dízimo ao capitão do
porto; quaisquer fugitivos corriam pouco risco de terminar como os
príncipes. Ele se informou se os tournaisianos estavam armados;
estavam: a própria mulher trazia um punhal. Aconselhou-os a não
se separarem de modo algum: juntos, não tinham muito o que temer
quanto à possibilidade de serem roubados durante a travessia;
todavia, combinaram eles entre si não dormir senão com um olho na
estalagem e na coberta do barco. Quanto ao homem d’Os Quatro
Ventos, não inspirava muita confiança, mas os dois truculentos
bruxelenses saberiam sem dúvida como subjugá-lo e, uma vez na
Zelândia, as chances de encontrar os bandos insurrectos pareciam
boas.
O mestre-escola mantinha-se a custo de pé. Por sua vez inquirido,
Zênon esclareceu que era médico na região e que também cogitara
de fazer a travessia. As perguntas não foram muito além; seus
problemas não os interessavam. Ao separar-se deles, o médico deu
ao professor um frasco contendo gotas que, por algum tempo,
poderiam devolver-lhe o fôlego. Ele se despediu muito grato.
Zênon os acompanhou com os olhos a caminhar na direção de
Heyst e, de súbito, decidiu segui-los. Com muitos, a viagem tornava-
se menos arriscada; poderiam mesmo, durante os primeiros dias,
ajudar-se mutuamente do outro lado. Após caminhar atrás deles
uma centena de passos, o filósofo ralentou-os, deixando aumentar a
distância que o separava do grupelho. A ideia de rever face a face
Milo ou Jans Bruynie inundou-o antecipadamente de uma exaustão
insuportável. Deteve-se de vez e enfiou rumo às terras do interior.
Zênon voltou a pensar nos lábios cianóticos e na respiração curta
do velho mestre-escola. O professor que abandonara a carreira,
desafiando o gládio, o fogo e a água para proclamar bem alto sua fé
na predestinação da maioria dos homens ao Inferno, parecia-lhe um
belo espécime da demência universal; mas, para além de tais
insânias dogmáticas, pulsavam sem dúvida entre as irrequietas
criaturas humanas aversões e ódios oriundos de sua mais recôndita
natureza e que, no dia em que caísse de moda a prática do
extermínio por motivos religiosos, cumpririam eles de outra forma o
seu curso. Os dois patriotas bruxelenses pareciam mais sensatos;
esses rapazes que arriscavam a pele pela liberdade se jactavam,
não obstante, de serem súditos leais ao Rei Filipe; a dar-se-lhes
crédito, tudo iria bem, desde que fosse possível se
desembaraçarem do duque. As doenças do mundo eram mais
inveteradas do que tudo aquilo.
Em pouco tempo, alcançou Oudebruges e, dessa vez, entrou no
pátio da fazenda. A mesma mulher lá estava: de cócoras, arrancava
a erva para alguns coelhos presos no interior de um grande cesto.
Uma criança de saias compridas girava ao seu redor. Zênon pediu
um pouco de leite e alguma comida. Ela se levantou com uma
careta e pediu que ele mesmo tirasse do poço a vasilha de leite ali
colocada para refrescá-lo; suas mãos reumáticas acionavam com
dificuldade a manivela. Enquanto Zênon manobrava a polia, a
mulher entrou na casa e de lá trouxe queijo branco e um quarto de
torta. Desculpou-se pela qualidade do leite, que era ralo e meio
azulado.
— A velha vaca está quase seca — disse ela. — Como que
exausta de dar. Quando a levamos ao touro, ela o rejeita. Seremos
em breve obrigados a comê-la.
Zênon perguntou se a fazenda pertencia ainda à família Ligre. Ela
o encarou com um ar desconfiado.
— O senhor não é de modo algum por acaso o procurador? Nada
devemos antes da festa de São Miguel.
Tranquilizou-a: andava por ali por prazer, à procura de espécies
botânicas, e logo regressaria a Bruges. Como supusera o filósofo, a
fazenda pertencia a Filisberto Ligre, o proprietário de Dranoutre e de
Oudenove, figura de destaque no Conselho das Flandres. Como
explicava a boa mulher, as pessoas ricas têm todas elas uma
enfiada de nomes e títulos.
— Eu sei — disse ele. — Sou da família.
Ela não fez cara de quem acreditasse. Aquele viandante a pé nada
tinha de propriamente magnífico. Ele disse ter vindo uma vez à
fazenda, mas há muito, muito tempo. Estava quase tudo como
antes, embora um pouco menor.
— Se veio, eu estava por aqui — replicou a mulher. — Há mais de
cinquenta anos que não arredo o pé desse lugar.
Parecia-lhe que, após a refeição sobre a relva, se haviam deixado
algumas sobras aos camponeses, mas ele já não mais se lembrava
de suas fisionomias. A mulher sentou-se perto dele no banco; o
filósofo a pusera no caminho das recordações.
— Os patrões vinham algumas vezes naquele tempo — continuou
ela. — Sou a filha do antigo fazendeiro; havia onze vacas. No
outono, enviava-se à casa deles, em Bruges, uma caleça cheia de
potes com manteiga salgada. Agora, não é mais a mesma coisa;
deixaram que tudo desmoronasse… E depois, quanto a minhas
mãos, incomodam-me quando tenho de trabalhar com a água fria.
Ela as pousara sobre os joelhos, entrecruzando os dedos
deformados. Zênon aconselhou-a a mergulhar todo dia as mãos na
areia quente.
— A areia, não é o que falta por aqui — disse ela.
O menino continuava a rodopiar no pátio como um pião que
emitisse ruídos incompreensíveis. Talvez fosse um retardado. Ela o
chamou, e uma infinita ternura iluminou-lhe o rosto amargurado
assim que ela o viu trotar em sua direção. Cuidadosamente, ela
enxugou as bolhas de saliva que escorriam pelo canto dos lábios
dele.
— Eis meu Jesus — disse ela docemente. — Sua mãe trabalha
nos campos com os dois que ela alimenta.
Zênon perguntou pelo pai. Era o dono do São Bonifácio.
— O São Bonifácio teve problemas — comentou ele com ar de
quem sabia alguma coisa.
— Tudo já se arranjou — disse a mulher —, ele vai trabalhar para
Milo. É bom que ganhe algo: de todos os meus meninos, resta-me
apenas um casal. Pois tive dois maridos, senhor — prosseguiu ela
—, e couberam-nos aos três dez meninos. Oito estão sob a terra.
Tanta atribulação para nada… O caçula trabalha com o moleiro nos
dias de vento, de modo que sempre se tem pão para comer. E tem
também direito às sobras. A terra aqui não presta para o trigo.
Zênon olhou para o celeiro em ruínas. No alto da porta, alguém
fixara outrora, como era hábito, um mocho, sem dúvida abatido por
uma pedrada e ali pregado ainda vivo; o que restara de suas plumas
ondulava na brisa.
— Por que supliciou aquele pássaro que lhe era benéfico? —
perguntou ele, apontando com o dedo para a grande ave de rapina
crucificada. — Esses animais comem os ratos que devoram o trigo.
— Não sei em absoluto, senhor — respondeu a mulher —, mas é
o costume. E depois, seu pio anuncia a morte.
Zênon nada respondeu. Ela desejava obviamente perguntar-lhe
alguma coisa.
— Esses fugitivos, senhor, que o São Bonifácio os leve para o
outro lado… Sem dúvida, é proveitoso para toda a região. Hoje
mesmo, houve seis aos quais vendi o que comer. E depois, há os
que dão pena de ver… Mas, se mesmo assim eles insistem, é um
tráfico honesto. As pessoas que escapam, não é por uma ninharia…
O duque e o Rei devem saber muito bem o que fazem.
— Não é obrigada a se informar quanto a essa gente — insinuou o
viajante.
— Lá isso é verdade — ela assentiu sacudindo o queixo.
Ele colhera sobre o monte de ervas alguns raminhos que enfiava
por entre as ripas trançadas do cesto e dava de mastigar aos
coelhos.
— Se os animais lhe agradam, senhor — continuou ela num tom
obsequioso. — Estão gordinhos, tenros, no ponto… Poderão ser
temperados no domingo. São apenas cinco soldos por cabeça.
— Eu? — disse ele, surpreso.
— Senhor — insistiu a mulher, com os olhos súplices — não há
comida senão para os animais domésticos… Com isso e mais três
soldos pela refeição frugal que o senhor comeu, poderei pedir a
minha nora que vá buscar uma dose de aguardente n’A Bela
Pombinha. Bem que é preciso, de vez em quando, reanimar o
coração. Beberemos generosamente à sua saúde.
Ela não dispunha sequer de uma moeda para dar-lhe o troco de
um florim. Ele estava em dúvida. Pouco importava. O contentamento
a rejuvenescera: além do mais, talvez se tratasse daquela jovem de
quinze anos que se curvara em reverências quando Simão
Adriansen lhe dera alguns soldos. Ele pegou seu alforje e dirigiu-se
rumo às grades da cerca com os cumprimentos de praxe.
— Não os esqueça, senhor — disse ela estendendo-lhe o cesto.
— Isso alegrará sua dama: não existem iguais na cidade. E já que o
senhor pertence um pouco à família, diga-lhes que consertem a
casa antes do inverno. Chove dentro dela o ano inteiro.
Zênon se foi, o cesto debaixo do braço, como um camponês que
se dirige ao mercado, ganhando depois a campina. Sentou-se então
à beira de uma valeta e enfiou cautelosamente a mão dentro do
cesto. Demoradamente, quase com volúpia, acariciou os animais de
pelo macio, de dorso flexível, de flancos tenros sob os quais
pulsavam os corações em disparada. Sem nenhum receio, os
coelhos continuavam a comer; ele se perguntava que visão do
mundo e de si mesmos se espelhava em seus bojudos olhos
ariscos. Levantou a tampa e os deixou ganhar os campos. Fruindo
da liberdade que lhes concedera, viu desaparecerem em meio às
urzes os coelhos lascivos e vorazes, os arquitetos de labirintos
subterrâneos, as criaturas tímidas, mas que brincavam com o
perigo, desarmadas, exceto pela força e pela agilidade de sua
espinha dorsal, indestrutíveis somente por sua inesgotável
fecundidade. Se conseguissem escapar às armadilhas, aos
porretes, às fuinhas e aos gaviões, continuariam a saltar e a brincar
ainda por algum tempo; sua pele embranqueceria sob a neve
durante o inverno; recomeçariam na primavera a nutrir-se da
suculenta relva verde. Empurrou com o pé o cesto para dentro da
valeta.
O resto da viagem transcorreu sem incidentes. Dormiu nessa noite
sob um dossel de árvores, chegando cedo no dia seguinte às portas
de Bruges. Como sempre, o corpo da guarda o saudou
respeitosamente.
Já dentro da cidade, a angústia momentaneamente abafada
aflorou à superfície; a contragosto, apurou o ouvido para escutar o
que conversavam os transeuntes, mas nada percebeu de insólito
quanto àqueles jovens frades ou que guardasse alguma relação
com os amores de uma mocinha da nobreza. Ninguém comentava
absolutamente nada sobre um médico que cuidava dos rebeldes e
que se disfarçara sob um nome fictício. Chegou ao asilo a tempo de
ajudar Frei Lucas e Frei Cipriano, que se desdobravam ante a
impaciência dos doentes. O bilhetinho deixado antes de sua partida
rolava sobre a mesa; amassou-o entre os dedos; sim, seu amigo de
Ostende estava melhor. Nessa noite, ele se permitiu degustar na
estalagem uma ceia mais longa e requintada do que de costume.
A ratoeira

Mais de um mês transcorreu sem novidades. Ele ouvira dizer que o


asilo fecharia suas portas pouco antes do Natal, mas o Sr.
Sebastião Theus partiria dessa vez sabidamente para a Alemanha,
onde já vivera e exercera a medicina. No início, e sem mencionar
publicamente as regiões conquistadas pelo luteranismo, Zênon se
propunha retornar a Lübeck. Seria agradável rever o judicioso
Egídio Friedhof e reencontrar Gerhart homem-feito. Talvez lhe fosse
possível obter o cargo de diretor do Hospital do Espírito Santo que o
opulento ourives outrora quase lhe assegurara.
De Ratisbona, seu confrade alquimista, Riemer, a quem Zênon
acabara de dar notícias sobre si, lhe anunciava um inesperado e
auspicioso acontecimento. Um exemplar das Proteorias, poupado
pelas eufóricas fogueiras parisienses, viajara até a Alemanha; um
doutor de Wittenberg vertera a obra para o latim, e sua publicação
fizera renascer em torno do filósofo um burburinho de glória. O
Santo Ofício se inquietara, como antes também a Sorbonne, mas o
sábio de Wittenberg e seus confrades, muito ao contrário,
descobriram nos textos maculados de heresia aos olhos dos
católicos a aplicação do princípio do livre exame; e os aforismos que
explicavam o milagre pelo efeito ela fé sobre o miraculado pareciam,
a um só tempo, adequados ao combate das superstições papistas e
à defesa de sua própria doutrina da fé redentora. As Proteorias
tornavam-se nas mãos deles um instrumento levianamente
falseado, mas tais ambiguidades devem ser previstas sempre que
um livro existe e atua sobre o espírito dos homens. Seria mesmo o
caso de oferecer a Zênon, se acaso lhe descobrissem o paradeiro,
uma cátedra de filosofia natural na universidade saxônica. A
honraria não afastava o risco, e seria prudente declinar do convite
em favor de outras tarefas menos comprometedoras; entretanto, o
contato direto com intelectuais era tentador após aquele longo
debruçar-se sobre si mesmo, e ver ressurgir repentinamente das
cinzas uma obra que se supunha morta fazia com que o filósofo
sentisse em todas as suas fibras a alegria de uma ressurreição.
Paralelamente, o Tratado do Mundo Físico, negligenciado desde a
catástrofe de que Dolet fora vítima, reaparecera graças a um editor
de Basileia, onde tudo levava a crer que haviam cessado as ásperas
disputas de outros tempos. A presença corpórea de Zênon tornava-
se quase ociosa: suas ideias enxameavam sem ele.
Desde o seu regresso de Heyst, não mais ouvira falar do grupelho
dos Anjos. Evitava a qualquer preço as conversas particulares com
Cipriano, de modo que o fluxo das confidências fora detido. Certas
medidas que Sebastião Theus desejara levar ao conhecimento do
antigo prior, para evitar que um desastre se abatesse sobre todos,
acabaram por cumprir-se naturalmente. Frei Floriano partiria em
breve para Anvers, onde agora se reconstruía o convento queimado
pelos destruidores de imagens; ficaria ali encarregado de pintar os
afrescos dos arcos das abóbadas do claustro. Pedro de Hamaere
encontrava-se de visita a diversas filiais da Província, onde punha
em dia as contas. A nova administração ordenara obras nos
subsolos do convento; certos trechos que ameaçavam ruir foram
condenados, o que privava os Anjos de seu refúgio secreto. As
reuniões noturnas haviam praticamente cessado; imprudências
escandalosas revertiam sem dúvida, de agora em diante, à
categoria de furtivos e banais pecadilhos de claustro. Quanto aos
encontros entre Cipriano e a Bela no jardim abandonado, a época
do ano não lhes era muito propícia, e Idelette talvez preferisse agora
um namorado mais prestigioso do que um jovem monge.
Todas essas razões talvez justificassem a sombria atitude que
adotara Cipriano. Não mais cantava seus refrões de camponês e
cumpria suas tarefas com um ar de morna apatia. Sebastião Theus
supusera de início que o frade-enfermeiro, assim como Frei Lucas,
estivesse aflito com o próximo fechamento do asilo. Certa manhã,
percebeu que o rosto do rapaz estava sulcado por lágrimas.
Ele o fez entrar no laboratório e fechou a porta. Encontravam-se
ambos a sós como o estiveram no dia seguinte ao Domingo da
Pascoela, à época das temerárias confidências de Cipriano. Zênon
foi o primeiro a falar:
— A Bela engravidou? — perguntou de chofre.
— Nunca mais a vi — respondeu o rapaz com a voz estrangulada.
— Ela se tranca com a moreninha no quarto e diz-se doente para
dissimular a barriga.
Ele explicou que as únicas notícias que recebera lhe haviam
chegado da boca de uma irmã, em parte subornada pela oferta de
pequenos mimos, em parte comovida com a situação da Bela da
qual ela se encarregava de cuidar. Mas era difícil qualquer
comunicação com essa simplória que atingia as raias da parvoíce.
As passagens secretas de outrora não mais existiam e, de qualquer
forma, as duas jovens agora assustadas por uma sombra não mais
ousavam ensaiar escapadas noturnas. Frei Floriano, é claro,
dispunha como pintor de acesso ao oratório das bernardinas, mas
lavara as mãos nesse caso.
— Estamos brigados — acrescentou sombriamente Cipriano.
As mulheres aguardavam o parto de Idelette para a época da festa
de Santa Ágata. O médico calculou que seria necessário esperar
ainda cerca de três meses. Por esse tempo, ele já estaria há muito
em Lübeck.
— Não se desespere — disse ele, esforçando-se por lutar contra o
acabrunhamento do jovem monge. — A perícia e a coragem das
mulheres são grandes em assuntos dessa natureza. Se as
bernardinas descobrissem a tragédia, não teriam nenhum interesse
em alardeá-la. Um recém-nascido é facilmente alojado num
campanário e confiado à caridade pública.
— Esses potes e frascos estão cheios de pós e de raízes — disse
Cipriano, trêmulo de agitação. — O medo a matará se alguém não
vier ajudá-la. Se Mynheer quisesse…
— Não vê que é tarde demais e que de forma alguma tenho
acesso a ela? Não acrescentemos a tantos transtornos mais uma
sangrenta desgraça.
— O Cura de Ursel deixou o hábito e fugiu para a Alemanha com
sua amiguinha — insinuou subitamente Cipriano. — Não
poderíamos de algum modo…
— Com uma jovem desse nível social e nesse estado, vocês
seriam reconhecidos antes de sair da Zona Franca de Bruges. Não
pense mais nisso. Mas ninguém se espantará de que um jovem
franciscano percorra as estradas a mendigar seu pão. Vá sozinho.
Posso arranjar-lhe alguns ducados para a viagem.
— Não posso — disse Cipriano entre soluços.
Ele se deixara cair sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. Zênon
o contemplava com infinita compaixão. A carne era um trapo ao qual
aquelas duas crianças estavam presas. Acariciou afetuosamente a
cabeça tonsurada do jovem monge, e saiu da sala.

O castigo veio mais cedo do que se esperava. Perto do dia de


Santa Lúcia, ele se achava na estalagem quando ouviu seus
vizinhos de mesa comentarem uma novidade em meio àqueles
cochichos excitados que nada de bom prenunciam, pois que se trata
quase sempre do infortúnio de alguém. Uma jovem da nobreza que
se hospedava entre as bernardinas estrangulara um prematuro,
conquanto viável, que acabara de dar à luz. O crime só fora
descoberto graças à criadinha moura da donzela, que fugira
espavorida do quarto de sua patroa e deambulara como louca pelas
ruas. Pessoas de bem, também impelidas por uma honesta
curiosidade, recolheram a moreninha; em seu linguajar difícil de
compreender, acabara por explicar tudo. A partir daí, não fora mais
possível às religiosas impedir que a maledicência encurralasse sua
pensionista. Pesados gracejos sobre o sangue ardente das
mocinhas da nobreza e sobre os segredinhos das freiras se
misturavam às exclamações indignadas. Na medíocre existência da
cidadezinha, onde até mesmo os ecos dos grandes acontecimentos
só chegavam quase inaudíveis, esse escândalo era mais palpitante
do que uma velha história de igreja incendiada ou de protestantes
enforcados.
Quando Zênon deixou a estalagem, viu passar na Rua Longa
Idelette escondida ao fundo de uma caleça da guarda. Estava muito
pálida, de uma palidez de parturiente, embora suas faces e olhos
faiscassem de febre. Alguns a olhavam com piedade; a maioria a
apupava, excitada. O confeiteiro e sua mulher incluíam-se entre
estes. A populaça do quarteirão se desforrava dos esplêndidos
vestidos e das extravagantes despesas da bela boneca. Duas das
pupilas da Abóbora, que por acaso ali se encontravam, eram as
mais excitadas, como se a donzela lhes fosse prejudicar o métier.
Zênon regressou à casa com o coração oprimido, como se
acabasse de ver uma corça abandonada à sanha dos galgos.
Procurou por Cipriano no asilo, mas o jovem monge ali não mais se
encontrava, e Zênon não ousou perguntar por ele, com receio de
torná-lo suspeito.
Esperava ainda que Idelette, ao ser interrogada pelo preboste ou
pelo escrivão, tivesse a presença de espírito de inventar um
namorado imaginário. Mas aquela criança que todas as noites
mordera as mãos para não gritar, com medo de que seus gemidos
despertassem a atenção de alguém, estava ao fim de sua coragem.
Ela falou e chorou copiosamente, não ocultando nem os encontros
com Cipriano às margens do canal, nem as brincadeiras e os
risinhos na assembleia dos Anjos. O que mais horrorizou os
escribas que registravam as confissões — e depois o público, que
delas recolheu os ecos — foi o consumo do pão bento e do vinho
roubado ao altar, comido e bebido à luz dos cotos de círios. As
abominações da carne pareciam agravar-se de não se sabia que
sacrilégios. Cipriano foi preso no dia seguinte; depois chegou a vez
de Francisco de Bure, de Floriano, de Frei Quirino e dos outros dois
noviços envolvidos. Mateus Aerts também foi detido, mas
imediatamente posto em liberdade após um veredicto de erro de
pessoa. Um de seus tios era almotacé da Zona Franca de Bruges.

Durante alguns dias, o Asilo de São Cosme, já parcialmente


fechado, pois supunha-se que o médico estivesse de partida para a
Alemanha, foi tomado por uma alvoraçada turba de curiosos. Frei
Lucas lhes torcia o nariz; ele se recusava a acreditar em tudo aquilo.
Zênon os tratava desdenhosamente ao responder-lhes as
perguntas. Uma visita de Greta o emocionou quase às lágrimas: a
velhinha limitara-se a balançar a cabeça afirmando ser tudo muito
triste.
Ele a manteve durante todo o dia perto de si, rogando-lhe que
lavasse e remendasse sua roupa de cama. E pediu asperamente a
Frei Lucas que fechasse as portas do asilo antes da hora;
costurando ou passando a ferro junto a uma janela, a velhinha o
tranquilizava ora com seu silêncio fraterno, ora com suas conversas
impregnadas de uma serena sabedoria. Contou-lhe pequenos
episódios que ele ignorava acerca de Henrique-Justo, sórdidas
mesquinharias ou intimidades obtidas de bom grado ou à força das
criadas; afora isso, fora homem de grande bravura, revelando-se em
seus bons dias brincalhão e até mesmo generoso nas gorjetas.
Lembrava-se ela, também, do nome e da fisionomia de numerosos
parentes dos quais Zênon nada sabia: assim, a velhinha era capaz
de recitar toda uma lista de irmãos e irmãs precocemente falecidos,
escalonados entre Henrique-Justo e Hilzonda. Ele imaginou por um
momento o que poderiam ter sido aqueles destinos cedo
interrompidos, aqueles rebentos da mesma árvore. Pela primeira
vez na vida, escutou atentamente um longo relato referente a seu
pai, de quem conhecia o nome e a história, mas sobre o qual nada
ouvira em sua infância que não fossem amargas alusões. Aquele
jovem cavaleiro italiano, prelado para manter as aparências e
satisfazer suas ambições e as da família, promovera festas, exibira
com arrogância pelas ruas de Bruges sua capa de veludo vermelho
e suas esporas de ouro, possuíra uma adolescente tão jovem (mas
afinal menos desgraçada) quanto a Idelette dos dias de hoje, e daí
resultaram os trabalhos, as aventuras, as meditações, os projetos
que completavam agora cinquenta e oito anos de existência. Tudo
neste mundo — o único a que temos acesso — era mais estranho
do que o hábito que nos leva a acreditar nele. Finalmente, Greta
guardou no bolso a tesoura, as linhas e o estojo de agulhas,
fazendo ver a Zênon que sua roupa estava em ordem para a
viagem.
Assim que a velhinha o deixou, o médico aqueceu o fogareiro para
o banho de água e vapor por ele mesmo instalado num recanto do
asilo, à semelhança do que fizera outrora em Pera, mas do qual
pouco se servira para seus doentes, amiúde avessos a essas
preocupações. Entregou-se então a longas abluções, aparou as
unhas e escanhoou-se meticulosamente. Muitas vezes, por
necessidade nos corpos de tropa ou quando em trânsito pela
estrada principal, para melhor se disfarçar alhures ou pelo menos
para não atrair sobre si a curiosidade dos que o vissem contrariar a
moda, deixara crescer a barba, mas preferia agora a nitidez de um
rosto nu. A água e a barrela recordaram-lhe o banho
ritualisticamente tomado quando de sua chegada a Frösö. A própria
Sign Ulfsdatter o preparara, segundo o costume das mulheres de
seu país. Ela se portara com uma dignidade de rainha ao
desempenhar aquele papel de criada. Reviu em pensamento a
grande cuba guarnecida de cobre e o desenho das toalhas
bordadas.
Foi detido no dia seguinte. Para escapar à tortura, Cipriano
confessara tudo o que dele se exigiu, e muito mais. Daí resultou
uma ordem de prisão contra Pedro de Hamaere, que se encontrava
então em Audenarde. Quanto a Zênon, o testemunho do jovem
monge era para desgraçá-lo: segundo este, o médico fora desde o
início o confidente e o cúmplice dos Anjos. Teria sido ele quem
fornecera a Floriano os amavios necessários à sedução de Idelette
por Cipriano, tendo sugerido mais tarde as poções negras que a
levaram a abortar a criança. O acusado fantasiara entre ele e o
médico uma intimidade proibida em lei. Zênon teve depois a ocasião
de meditar sobre tais alegações, que invertiam diametralmente o
sentido dos fatos: a hipótese mais plausível era a de que, já em
desgraça, tentara o rapaz inocentar-se, lançando toda a culpa sobre
outrem; ou talvez, por haver desejado conseguir de Sebastião
Theus certos favores e carícias, houvesse acabado por acreditar
que os recebera. Sempre se é vítima de uma armadilha qualquer:
tanto fazia que fosse esta ou aquela.
De qualquer modo, Zênon estava pronto. Entregou-se sem opor
resistência. Ao chegar ao cartório do Tribunal, surpreendeu a todos
declinando o seu verdadeiro nome.
Terceira parte
.

A prisão
Non è viltà, ne da viltà procede
S’alcun, per evitar più crudel sorte,
Odia la propria vita e cerca morte…

Meglio è morir all’anima gentile


Che supportar inevitabil danno
Che lo farria cambiar animo e stile.
Quanti ha la morte già tratti d’affanno!
Ma molti ch’hanno il chiamar morte a vile
Quanto talor sia dolce ancor non sanno.

Júlio de Médicis
Não é vileza, e nem dela resulta,
Se alguém, para fugir à dura sina,
Odeia a vida e face à morte exulta…

Melhor será morrer de alma serena


Do que sofrer a irreparável pena
Que o faria alterar estilo e vida.
São muitos os que à morte dão guarida!
Mas quantos há que desesperam ao ir-se
Por não saber quão doce é despedir-se.
O auto de acusação

Não permaneceu senão por uma noite na prisão da cidade. Logo no


dia seguinte o transferiram, não sem certas deferências, para um
quarto que dava para o pátio do antigo cartório, com janelas
guarnecidas por sólidas grades e pesado ferrolho na porta, mas que
oferecia quase todas as comodidades que um detento de classe
pode esperar. Recentemente, ali estivera recolhido um almotacé
acusado de malversar os dinheiros públicos e, há algum tempo
atrás, um senhor capturado a preço de ouro aos franceses; nada
poderia ser mais conveniente do que tal lugar de detenção. A noite
passada no cárcere fora o bastante, aliás, para que Zênon
apanhasse uma carga de pulgas e piolhos dos quais levou vários
dias para se livrar. Para sua surpresa, permitiram-lhe trazer a roupa
de cama; ao fim de alguns dias, devolveram-lhe até mesmo a
escrivaninha. Recusaram-lhe, porém, qualquer tipo de livro.
Passados mais alguns dias, recebeu autorização para passear
diariamente no pátio ora coberto de gelo, ora enlameado, em
companhia do patife que lhe coubera como carcereiro. Um medo,
entretanto, não o abandonava — o da tortura. Sempre escandalizara
a esse homem, cujo ofício era tratar dos outros, o fato de que se
pagassem a certos indivíduos para atormentar metodicamente seus
semelhantes. Há muito que já se precavinha, não contra castigos
físicos, pouco piores para ele dos que aqueles que padece um
ferido quando operado por um cirurgião, mas contra o horror de que
fossem conscientemente infligidos. Acostumava-se gradualmente à
ideia de sentir medo. Se chegasse um dia a gemer, a gritar ou a
denunciar levianamente alguém, como Cipriano, a ignomínia caberia
àqueles que obtivessem êxito na tentativa de desconjuntar a alma
de um homem. Mas essa provação tão temida não chegou a ser-lhe
imposta. Poderosas proteções obviamente a impediram. Não
evitaram elas, todavia, que o terror do ecúleo persistisse quase até
o fim em algum recanto de seu espírito, levando-o a refrear um
sobressalto sempre que se abria a porta do quarto.
Alguns anos antes, chegando em Bruges, julgara Zênon encontrar
dissolvida na ignorância e no esquecimento a lembrança que dele
tinham. Lançara nisso os fundamentos de sua incerta segurança.
Mas um espectro de sua pessoa deveria subsistir aninhado ao fundo
da memória de cada um; em virtude do escândalo, reaparecera
mais real do que o homem que por ali circulara indiferentemente
durante tanto tempo. Imprecisões, dir-se-iam, coagulavam-se de
repente, amalgamadas às grosseiras imagens do mágico, do
renegado, do sodomita, do espião a serviço do estrangeiro, que
sempre e em qualquer lugar povoam as imaginações ignaras.
Ninguém identificara Zênon sob o fantasma de Sebastião Theus;
todo mundo o reconhecia retrospectivamente. Ninguém jamais lera
outrora seus escritos em Bruges; seriam eles, sem dúvida, melhor
folheados a partir de então, e o fato de saber que esses textos
haviam sido condenados em Paris e malvistos em Roma permitia
agora a qualquer um depreciar aqueles perigosos formulários
esotéricos. Alguns curiosos mais perspicazes deveriam haver desde
logo desconfiado, é claro, de sua identidade; Greta não era a única
a ter olhos e memória. Mas essas pessoas se calaram, o que
parecia fazer delas antes amigas do que inimigas, ou talvez
aguardassem apenas o momento de abrir a boca. Zênon sempre
desconfiou da possibilidade de que alguém houvesse alertado o
Prior dos Franciscanos, ou se este, ao contrário, ao oferecer em
Senlis condução em sua carruagem a um viandante, já não sabia do
caso do filósofo autor de uma obra polêmica que se queimara em
praça pública. Inclinava-se pela segunda hipótese, guardando o
maior reconhecimento possível para com aquele homem de bom
coração.
Fosse como fosse, sua desgraça mudara de fisionomia. Deixara
de ser o obscuro coadjuvante de uma orgia em que se envolveram
um punhado de noviços e dois ou três maus frades; tornava-se outra
vez o protagonista de sua própria aventura. As peças do auto de
acusação se multiplicavam; pelo menos, no entanto, não seria ele a
insignificante personagem varrida a toda pressa por uma justiça
sumária, como o teria sido Sebastião Theus. Seu processo corria o
risco de arrastar-se em virtude de espinhosas questões de
competência. Os magistrados burgueses julgavam em última
instância os crimes de direito comum, mas o bispo insistia em dar a
palavra final quando de uma intrincada causa de ateísmo e heresia.
Essa pretensão chocava, vinda de um homem recém-instalado pelo
Rei numa cidade onde até então se passara sem bispado; esse
homem assemelhava-se a um sequaz da Inquisição sabiamente
implantado em Bruges. Na verdade, o prelado se propunha justificar
brilhantemente sua autoridade ao conduzir o processo de modo
equânime. O Cônego Campanus, apesar da idade, se desgastou ao
extremo no caso; propôs (e afinal conseguiu) que dois teólogos da
Universidade de Lovaina, na qual o acusado obtivera seu grau de
doutor em direito canônico, fossem admitidos na qualidade de
auditores; ignorava-se se essa manobra fora executada de acordo
com os interesses do bispo ou contra ele. Uma opinião apaixonada,
que tomara corpo em alguns espíritos exaltados, era a de que o
destino de um ímpio, que se comprazia a tal ponto em confundir as
doutrinas, dependia diretamente do Tribunal do Santo Ofício, e que
seria conveniente enviá-lo, sob forte guarda, para refletir em algum
cárcere do Convento de Santa-Maria-no-Minerva, em Roma. As
pessoas sensatas, ao contrário, sustentavam que se deveria julgar
ali mesmo o incréu nascido em Bruges e que regressara sob nome
fictício à cidade, onde sua presença no seio de uma comunidade
cristã favorecera as desordens. Aquele tal de Zênon que passara
dois anos na corte de Sua Majestade Sueca seria talvez um espião
das potências nórdicas; não se esqueciam também de que ele
outrora se hospedara entre os turcos infiéis; tratava-se de saber se
ali ele apostasiara ou não, como insinuavam os rumores que sobre
esse fato corriam. Instaurava-se assim um desses processos cujos
múltiplos indícios de culpabilidade os condicionam a prolongar-se
por anos a fio e servem de abscesso de fixação para os humores de
uma cidade.
Em meio àquele zum-zum, as alegações que levaram à detenção
de Sebastião Theus passavam ao segundo plano. O bispo, em
princípio contrário às acusações de magia, desprezava a história
dos filtros amorosos, por ele considerada como frívola, mas certos
magistrados burgueses nisso piamente acreditavam, e para a ralé o
picante da coisa estava era ali. Pouco a pouco, como em todos os
processos que por algum tempo excitam os basbaques, percebia-se
que se delineavam em dois planos distintos dois casos
estranhamente inseparáveis: a causa tal como se apresenta aos
jurisconsultos e aos eclesiásticos cujo dever é julgá-la, e a causa tal
como a inventa a multidão sequiosa de monstros e vítimas. O
tenente encarregado das perseguições ao criminoso eliminara logo
de início a intimidade com o grupelho adâmico e beatífico dos Anjos;
as imputações de Cipriano eram contestadas pelos outros seis
encarcerados; não conheciam o médico senão de o verem passar
sob as arcadas do convento ou na Rua Longa. Floriano gabava-se
de haver seduzido Idelette sob a promessa de beijos, de ternas
canções e de danças em que se dão as mãos, sem que houvesse
necessidade de recorrer às raízes de mandrágora; o próprio crime
de Idelette invalidava a história da poção abortiva, que a donzela
jurava santamente jamais haver solicitado ou recusado; enfim, e
melhor ainda, Zênon parecia a Floriano um sujeito já idoso,
dedicado, é verdade, à feitiçaria, mas hostil à malignidade das
brincadeiras dos Anjos, e que se empenhava em separar Cipriano
do grupo. Podia-se, quando muito, concluir daqueles testemunhos
incongruentes que o suposto Sebastião Theus soubera por seu
enfermeiro qualquer coisa sobre as orgias na terma, sem haver
cumprido seu dever, que era o de denunciá-las.
Uma odiosa intimidade com Cipriano continuava plausível, mas a
vizinhança não vacilava em reconhecer os bons hábitos e as
inegáveis virtudes do médico; havia mesmo não se sabia o que de
ambíguo e obscuro numa reputação tão ímpar. Inquiriu-se quanto à
questão de sodomia que excitava a curiosidade dos juízes: de tanto
investigar-se, supôs-se descobrir o filho de um enfermo de João
Myers com o qual o réu mantivera laços de amizade no início de sua
estada em Bruges; mas tudo ficou nisso, por respeito a uma família
de bom nome, e aquele jovem cavalheiro, bastante reputado por sua
bela aparência, estava há muito em Paris, onde concluía os
estudos. A descoberta fez rir a Zênon: a ligação entre ambos
limitara-se à troca de livros. De relações mais indignas, se as houve,
nenhum indício restara. Mas o filósofo preconizara amiúde em seus
escritos a experiência com os sentidos e o agenciamento de todas
as possibilidades do corpo, preceito do qual se pode inferir a prática
dos mais negros prazeres. A suposição permanecia, mas, à falta de
provas, recaía-se no crime de opinião.
Outras acusações eram, se assim se pode dizer, mais
imediatamente perigosas. Os próprios franciscanos imputavam ao
médico o fato de haver transformado o asilo em ponto de reunião de
fugitivos que se furtavam à justiça. Frei Lucas foi extremamente
providencial acerca desse assunto, assim como de muitos outros;
sua opinião era das mais transparentes: tudo era falso nesse caso.
Havia muita fantasia acerca das dissipações ocorridas na terma;
Cipriano nada mais era do que um tolo que se deixara ludibriar por
uma lindíssima jovem; o médico era irrepreensível. Quanto aos
fugitivos rebeldes ou calvinistas, se alguns chegaram a cruzar a
soleira da porta do asilo, não traziam qualquer identificação
pendurada no pescoço, e as pessoas ocupadas tinham mais o que
fazer do que enfiar o nariz onde não eram chamadas. Tendo
pronunciado assim o mais longo discurso da sua vida, ele se retirou.
Frei Lucas prestou a Zênon um outro notável serviço. Ao arrumar o
asilo deserto, tropeçou no calhau com a figura humana ali esquecido
pelo filósofo, e lançou às águas do canal esse objeto que de modo
algum deveria ser encontrado onde estava. O organista, ao
contrário, foi prejudicial ao acusado; não havia decerto mal nenhum
em dizê-lo, mas foi como se lhes aplicasse um golpe, a ele e à sua
esposa, saber que Sebastião Theus não era Sebastião Theus. A
mais nociva alusão foi a que fez o organista às profecias cômicas
das quais ambos tanto riram; foram elas encontradas em São
Cosme, num armário embutido do quarto onde o filósofo guardava
os livros, e os inimigos de Zênon delas souberam aproveitar-se.

Enquanto os escrivães recopiavam com os talhes grossos e finos


das letras as vinte e quatro peças do auto de acusação acumuladas
contra Zênon, a aventura de Idelette e dos Anjos chegava ao fim. O
crime da Senhorita de Loos era flagrante e sua pena, a morte; nem
mesmo a presença do pai poderia salvá-la, e este, detido com
outros flamengos como refém na Espanha, recebeu tarde demais a
notícia de sua desventura. Idelette teve um bom e piedoso fim.
Anteciparam de alguns dias a execução, a fim de que esta não
coincidisse com os festejos do Natal. A opinião pública dera uma
guinada: comovidos pela atitude de arrependimento e pelos olhos
lacrimosos da Bela, todos lamentavam a sorte da jovem de quinze
anos. De acordo com o costume, Idelette deveria ser queimada viva
por infanticídio, mas suas origens nobres valeram-lhe no sentido de
que fosse decapitada. Por azar, o carrasco, compungido diante do
pescoço delicado, não conseguiu executar o golpe como devia: teve
de desferi-lo por três vezes, e escapou, justiça seja feita, sob uma
saraivada de tamancos e uma tempestade de repolhos lançados
dos cestos do mercado.
O processo dos Anjos estendeu-se por muito mais tempo: lutava-
se por obter confissões que permitissem descobrir ramificações
secretas, as quais talvez remontassem à seita dos Frades do
Espírito Santo, exterminada no início do século e que, pretendia-se,
confessara e praticara semelhantes desatinos. Mas o doido do
Floriano era corajoso; altivo até mesmo quando torturado, declarou
nada dever aos ensinamentos heréticos de um tal Grande Mestre
Adâmico Jacob van Almagien, ademais judeu, e morto cerca de
cinquenta anos antes. Era apenas a si próprio — e sem teologia —
que devia a descoberta do puro paraíso das delícias corpóreas.
Todas as tenazes do mundo não o fariam falar de outro modo. O
único a escapar à pena de morte foi Frei Quirino, que recorreu à
insistência de fingir-se de louco o tempo todo, mesmo em meio às
torturas, tendo sido, em virtude disso, isolado como tal. Os cinco
outros condenados, assim como Idelette, tiveram um fim cristão. Por
intercessão de seu carcereiro, que tinha por hábito realizar
negociações desse gênero, Zênon pagou aos carrascos para que os
jovens fossem estrangulados antes de serem lambidos pelas
chamas, pequeno acordo muito em voga e que arredondava
oportunamente o magro salário dos algozes. O estratagema deu
certo com Cipriano, Francisco de Bure e um dos noviços; ele os
salvou do pior, sem lhes haver podido poupar, é bom que se diga, o
pavor de que foram previamente tomados. Ao contrário, a
combinação falhou no caso de Floriano e do outro noviço, aos quais
o carrasco não teve tempo de prestar discretamente o socorro;
ouviram-lhes os gritos durante quase meia hora.
O administrador do convento ficara à parte, mas estava morto.
Imediatamente recambiado de Audenarde e encarcerado em
Bruges, conseguira ele, por intermédio de amigos que possuía na
cidade, fazer com que um veneno letal lhe chegasse às mãos.
Conforme o costume, incineraram o defunto, já que não mais se
podia queimá-lo vivo. Zênon jamais apreciara esse personagem
cauteloso, mas era preciso reconhecer que Pedro de Hamaere
soubera subjugar seu destino e terminar seus dias como um
homem.
Zênon conheceu todos os detalhes pelo carcereiro, que não tinha
papas na língua; o velhaco se desculpava pelo contratempo advindo
no que concernia aos dois outros condenados; propunha, inclusive,
devolver uma parte do dinheiro, ainda que não se pudesse culpar
ninguém pelo ocorrido. O filósofo deu de ombros. Couraçava-o uma
indiferença mortal: o importante era administrar suas forças até o
fim. Nessa noite, porém, não conseguiu dormir. Esquadrinhando seu
pensamento à procura de um antídoto contra aquele horror,
imaginou que Cipriano e Floriano haviam sido lançados às chamas
para salvar alguém: como sempre, a atrocidade estava menos nos
fatos do que na inépcia humana. De súbito, fixou-se numa
lembrança: quando jovem, vendera ao Emir Nurreddin sua fórmula
do fogo líquido, utilizado numa batalha naval em Argel e que, desde
então, talvez continuasse a ser empregado. O ato era em si mesmo
banal: qualquer pirotécnico o teria feito. A invenção, que carbonizara
centenas de homens, chegara mesmo a dar a impressão de ser um
progresso na arte da guerra. Fúria por fúria, as violências de um
combate, no qual cada um dos participantes tanto mata quanto
morre, não se comparavam, é claro, à metódica abominação de um
suplício ordenado em nome de um Deus de bondade; não obstante,
ele próprio, Zênon, compactuara também como autor e cúmplice de
ultrajes infligidos à mísera carne do homem, e foram necessários
trinta anos para que lhe adviesse um remorso que provavelmente
faria sorrir almirantes e príncipes. Mais valia sair logo desse inferno.

Não se podia deplorar que os teólogos encarregados de enumerar


as proposições impertinentes, heréticas ou declaradamente ímpias,
extraídas aos textos do acusado, não houvessem cumprido
honestamente sua tarefa. Obtivera-se na Alemanha a tradução das
Proteorias; as outras obras se encontravam na biblioteca de João
Myers. Para total espanto de Zênon, o prior tivera em suas mãos os
Prognósticos sobre as coisas futuras. Reunindo a estas aquelas
proposições — ou melhor, as críticas que elas continham —, o
filósofo entregou-se ao deleite de esboçar o mapa das opiniões
humanas naquele ano da graça de 1569, ao menos no que se
referia às abstrusas regiões pelas quais deambulara seu espírito. O
sistema de Copérnico não fora proscrito pela Igreja, conquanto os
mais entendidos dentre os que ostentavam colarinhos rendilhados e
barretes de clérigo balançassem a cabeça com um ar malicioso,
assegurando que o mesmo em breve o seria; a afirmação que
consiste em colocar o Sol — e não a Terra — no centro do universo,
tolerada sob condição de ser exposta como tímida hipótese, não
contrariava menos Aristóteles, a Bíblia e, mais ainda, a humana
necessidade de situar nosso habitáculo no meio do Todo. Era
natural que um ponto de vista que se afastasse das óbvias
evidências do bom senso não agradasse ao vulgo: sem ir mais
longe, Zênon sabia por si próprio o quanto a noção de uma Terra
que se move desarticula os hábitos que cada um de nós se impõe
para viver; entusiasmara-se por pertencer a um mundo que não
mais consistia apenas no pardieiro humano; a maioria se nauseava
diante desse alargamento. Pior ainda do que a ousadia de substituir
a Terra pelo Sol no centro das coisas, o erro de Demócrito — isto é,
a crença na infinitude dos mundos, que desloca o próprio Sol de seu
lugar privilegiado e nega a existência de um centro — parecia à
maior parte dos espíritos uma negra afronta aos dogmas religiosos.
Longe de projetar-se impetuosamente, como o filósofo, estilhaçando
a esfera das estrelas fixas naqueles frios e ardentes espaços, o
homem aí se sentia perdido, e o audacioso que se arriscasse a
demonstrar-lhe a existência tornar-se-ia um trânsfuga. As mesmas
regras se aplicavam ao domínio ainda mais escabroso das ideias
absolutamente puras. O erro de Averróis, a hipótese de uma
divindade que atuasse friamente no interior de um mundo eterno,
parecia privar o devoto do acesso a um deus feito à sua imagem e
que reservasse ao homem apenas suas cóleras e bondades. A
eternidade da alma, o erro de Orígenes, causava indignação por
reduzir a uma insignificância a aventura imediata: ao homem bem
que seduzia a perspectiva de que se abrisse diante dele uma
imortalidade feliz ou infeliz cuja responsabilidade lhe cabia, mas não
a de que se desdobrasse por toda parte um transcurso eterno no
qual fosse ele tudo, sem de fato sê-lo. O erro de Pitágoras, que
permitia atribuir aos animais uma alma semelhante à nossa em
natureza e essência, horrorizava ainda mais o bípede sem plumas
que se atribui a condição de único ser vivo a durar para sempre. O
enunciado do erro de Epicuro, ou seja, a hipótese de que a morte é
um fim, conquanto o mais condizente com o que observamos junto
aos cadáveres e nos cemitérios, ofendia de modo frontal não
apenas nossa avidez de estar no mundo, mas o orgulho que nos
assegura merecermos nele estar. Consideravam-se todas essas
opiniões como insultuosas a Deus; na verdade, nelas censurava-se
sobretudo a circunstância de abalarem a importância do homem.
Era, pois, natural que levassem à prisão, ou a coisa ainda pior, os
seus propagandistas.
Que se regredisse das ideias puras aos tortuosos caminhos da
conduta humana, e o medo, mais ainda que o orgulho, se tornava o
primeiro móvel das execrações. A ousadia do filósofo que
preconizava a livre prática dos sentidos e lidava sem
constrangimento com os prazeres carnais, exasperava a multidão,
sujeita nesse plano a muito de superstição e de hipocrisia. Pouco
importava se o homem que ali se expunha fosse ou não mais
austero e por vezes mesmo mais casto do que seus intransigentes
detratores; admitira-se que nenhum fogo ou suplício terrestre seria
capaz de punir licença tão atroz, justamente porque a audácia do
espírito parecia agravar a do próprio corpo. A indiferença do sábio,
para quem todo país é pátria e toda religião um culto legítimo à sua
maneira, irritava também a malta dos prisioneiros; se o filósofo
renegado, que não renegava todavia nenhuma de suas crenças
verdadeiras, era para todos um bode expiatório, isso somente se
poderia explicar pelo fato de que cada um deles, certo dia,
secretamente ou às vezes mesmo sem sabê-lo, almejara escapar
do círculo em que agonizava encarcerado. O rebelde que se
levantava contra seu príncipe causava entre as pessoas pacatas
algo daquela mesma fúria invejosa: seu Não lhes exasperava o
contínuo Sim. Mas os piores dentre os monstros que pensam
singularmente eram aqueles que praticavam alguma virtude:
infundiam muito mais temor quando não se podia desprezá-los de
todo.
De occulta philosophia: [73] a insistência de certos juízes sobre as
práticas esotéricas às quais ele outrora ou recentemente se
dedicara induziu o réu (que, para poupar as forças, quase não
pensava) a refletir sobre o irritante assunto que o preocupara
secundariamente durante toda a vida. Sobretudo nesse terreno, os
pontos de vista dos eruditos contradiziam os que defendia o vulgo.
Aos olhos do rebanho, o mágico era ao mesmo tempo reverenciado
e odiado por seus poderes, que se supunham imensos: também ali
a inveja mantinha seus ouvidos atentos. Foi com decepção que não
se conseguiu encontrar, na pequena biblioteca de Zênon, senão a
obra de Agrippa de Nettesheim, volume que também possuíam o
Cônego Campanus e o bispo, além de um outro, mais recente, de
Gian-Battista della Porta, que Monsenhor igualmente mantinha
sobre a mesa. Mas como insistissem sobre a matéria, o bispo, por
uma questão de equidade, permitiu que se interrogasse o acusado.
Ao passo que para os tolos a magia era uma ciência do
sobrenatural, esse sistema, ao contrário, inquietava o prelado na
medida em que negava o milagre. Com relação a esse ponto, Zênon
foi quase sincero. O universo dito mágico estava constituído de
atrações e repulsões que obedeciam a leis ainda misteriosas, mas
de modo algum necessariamente inacessíveis ao entendimento
humano. Dentre as substâncias conhecidas, o ímã e o âmbar
pareciam as únicas a revelar parcialmente aqueles segredos que
ninguém ainda explorara e que um dia, talvez, tudo elucidariam. O
grande mérito da magia, e da alquimia sua filha, era o de postular a
unidade da matéria, tanto assim que certos filósofos do alambique
julgaram poder compará-la à luz e ao raio. Enveredava-se assim por
um caminho que ia longe, mas cujos perigos eram reconhecidos por
todos os adeptos dignos desse nome. As ciências mecânicas, com
as quais Zênon muito se envolvera, se assemelhavam àquelas
diligências, no que concernia ao seu esforço no sentido de
transformar o conhecimento das coisas em poder sobre as coisas e,
indiretamente, sobre o homem. Em certo sentido, tudo era magia:
magia a ciência das ervas e dos metais, que permitia ao médico
influenciar a doença e o doente; mágica a própria doença, que se
impõe ao corpo qual uma possessão de que este às vezes não
deseja curar-se; mágico o poder dos sons agudos e graves que
agitam a alma ou, ao contrário, a pacificam; mágica, sobretudo, a
virulenta pujança das palavras, quase sempre mais fortes do que as
coisas, e que explica as afirmações do Sepher Yetsira, [74] para não
dizer do Evangelho Segundo São João. A névoa encantatória que
envolve os príncipes e se evola das cerimônias religiosas era magia,
e magia os negros cadafalsos e os lúgubres tambores das
execuções, que fascinavam e atemorizavam mais os basbaques do
que as vítimas. Mágicos, enfim, o amor e o ódio, que imprimem em
nossos cérebros a imagem de um ser ao qual consentimos que nos
frequente.
Monsenhor sacudiu pensativamente a cabeça: um universo
organizado dessa forma não deixava mais espaço à vontade
pessoal de Deus. Zênon concordou, embora sabendo o risco que
corria. Trocaram-se depois alguns argumentos sobre o que é a
vontade pessoal de Deus, por que agentes intermediários ela se
manifesta e se é necessária à operação dos milagres. O bispo, por
exemplo, nada encontrava de impertinente ou deplorável na
interpretação que o autor do Tratado do mundo físico dera aos
estigmas de São Francisco, apresentados por ele como efeitos
extremos do poderoso amor que em toda parte modela o amante à
semelhança do amado. A indecência de que se tornara culpado o
filósofo era a de fornecer essa explicação como exclusiva, e não
como inclusiva. Zênon negou havê-lo feito. Endossando, por uma
espécie de cortesia de dialético, o mesmo ponto de vista que
sustentava o adversário, Monsenhor lembrou em seguida que o mui
piedoso Cardeal Nicolau de Cusa desencorajara outrora o
entusiasmo criado em torno das imagens miraculosas e das hóstias
que sangram; esse venerável sábio (que postulara também um
universo infinito) parecia haver quase aceito por antecipação a
doutrina de Pomponazzi, para quem os milagres nada mais são do
que o resultado da força da imaginação, como Paracelso e Zênon
pretendiam que o fossem as aparições da magia. Mas o santo
cardeal, que soubera conter da melhor maneira possível os
equívocos dos hussitas, talvez calasse hoje opiniões tão
audaciosas, para de modo algum parecer dar respaldo aos hereges
e ímpios mais numerosos do que em seu tempo.
Zênon não pôde senão concordar: os ventos eram decerto menos
favoráveis do que nunca à liberdade de opinião. Chegou mesmo a
acrescentar, devolvendo ao bispo sua cortesia dialética, que dizer
de uma aparição que ela ocorre apenas na imaginação não significa
que seja imaginária no sentido vulgar do termo: os deuses e os
demônios que nos habitam são bastante reais. O bispo franziu o
sobrolho ante o primeiro desses plurais, mas, como era letrado,
sabia ser necessário tolerar certas coisas às pessoas que leram lá
seus autores gregos e latinos. A essa altura, o médico insistia em
descrever a solícita atenção com que suportara durante todo tempo
as alucinações de seus doentes: o mais real dos seres acabava por
achar uma saída, e às vezes um autêntico céu e um verdadeiro
inferno. Para chegar à magia, e a quaisquer outras doutrinas
análogas, não é de modo algum apenas contra a superstição que se
deve lutar, e sim contra o compacto ceticismo que nega
temerariamente o invisível e o inexplicado. Sobre esse ponto, o
prelado e Zênon mostraram-se de acordo sem subterfúgios.
Abordaram-se por fim as quimeras de Copérnico: esse terreno
inteiramente conjectural não implicava perigo teológico para o réu.
Quando muito, podia-se acusá-lo de presunção por haver
apresentado como a mais plausível uma obscura teoria que
contrariava as Escrituras. Sem se igualar a Lutero e Calvino nas
denúncias de ambos contra um sistema que convertia em escárnio a
história de Josué, o bispo o julgava menos admissível para os bons
cristãos do que o de Ptolomeu. Fez, além disso, uma objeção
matemática extremamente justa baseada nas paralaxes. Zênon
conveio em que restavam muitas coisas a provar.

Ao retornar à sua casa, isto é, à prisão, e sabendo muito bem que


as consequências daquela doença carcerária lhe seriam fatais,
Zênon, exausto de sutilezas e sofismas, se preparava para refletir o
menos possível. Melhor seria ocupar seu espírito com tarefas
maquinais que lhe evitassem mergulhar no terror ou na cólera: ele
mesmo era o paciente que se tratava de sustentar e de evitar que
desesperasse. Seu conhecimento de línguas veio-lhe em socorro:
aprendera os três ou quatro idiomas cultos que se ensinavam na
escola e achava-se em vias de familiarizar-se com meia dúzia de
diferentes linguagens vulgares. Ele deplorara amiúde carregar
consigo aquela bagagem de vocábulos de que não mais se servia:
havia algo de grotesco em saber o som ou o sinal gráfico dos quais
se utiliza alguém para designar a ideia da verdade ou a ideia da
justiça em dez ou doze línguas. Essa mixórdia transformou-se em
passatempo: organizou listas, formas de grupos, confrontou
alfabetos e regras gramaticais, entretendo-se por vários dias com o
projeto de um idioma lógico, tão puro quanto a notação musical,
capaz de exprimir ordenadamente todos os fatos possíveis.
Concebeu linguagens cifradas, como se houvesse alguém a quem
remeter mensagens secretas. As matemáticas também lhe foram
úteis: avaliava para além da abóbada do cárcere a declinação dos
astros; e refez minuciosamente os cálculos relativos à quantidade
de água absorvida e evaporada a cada dia pela planta que, sem
dúvida, agonizava agora em seu laboratório.
Voltou a pensar longamente nas máquinas voadoras e flutuantes,
nos registros de sons por mecanismos que imitavam a memória
humana e dos quais ele e Riemer haviam outrora projetado os
dispositivos, chegando ainda a esboçar-lhes os perfis em seus
cadernos de apontamentos. Mas dominara-o uma desconfiança
quanto ao fato de que se devesse ou não acrescentar essas peças
artificiais aos membros do homem: pouco importava que se
submergisse no oceano sob um sino de ferro e couro ou que o
mergulhador, reduzido a seus únicos recursos, sufocasse debaixo
das ondas: ou, ainda, que se ascendesse ao céu com o auxílio de
pedais e engrenagens ou que permanecesse o corpo humano
aquela pesada massa que cai como uma pedra. Pouco importava,
sobretudo, que se descobrisse um meio de gravar a palavra, que já
não enchia o mundo senão com seu ribombo de mentira.
Fragmentos de tabelas alquímicas decoradas em León emergiram
subitamente do esquecimento. Auscultando ora a memória, ora o
juízo, obrigou-se a reconstituir ponto por ponto algumas de suas
intervenções cirúrgicas: aquela transfusão de sangue, por exemplo,
que ele tentara por duas vezes. O primeiro teste fora além de sua
expectativa, mas o segundo levara à morte súbita, não do que doara
sangue, mas daquele que o recebera, como se realmente houvesse
entre os dois líquidos vermelhos que fluíam de indivíduos diferentes
ódios e amores sobre os quais nada sabemos. As mesmas
afinidades e as mesmas idiossincrasias explicavam sem dúvida, nas
cópulas, a esterilidade ou a fecundidade. Essa última palavra fê-lo
retroceder, contra a vontade, até Idelette conduzida pela guarda.
Abriam-se fendas em suas defesas tão bem-estruturadas: certa
noite, sentado à mesa, enquanto contemplava vagamente a chama
da vela, lembrou-se de repente dos jovens monges lançados à
fogueira, e o horror, a piedade, a angústia, e uma cólera que se
originava do ódio, fizeram-no, apesar do constrangimento, verter
uma torrente de lágrimas. Já não sabia muito bem o que ou quem o
fazia chorar de tal forma. A prisão o enfraquecia.
Quando à cabeceira dos doentes, tivera ele amiúde a ocasião de
ouvir os sonhos que lhe contavam. Também sonhara seus sonhos.
Quase sempre, as pessoas se contentavam em extrair dessas
visões presságios às vezes reais, pois que estas revelam os
segredos de quem dorme; argumentava, contudo, o médico que tais
jogos do espírito entregue a si próprio poderiam sobretudo nos
instruir sobre a maneira através da qual a alma percebe as coisas.
Enumerava as qualidades da substância onírica: a leveza, a
intangibilidade, a incoerência, a total liberdade no que respeita ao
tempo, a mobilidade das formas da pessoa, que faz com que cada
um seja muitos e que muitos se reduzam a um, o sentimento quase
platônico da reminiscência, a sensação quase insuportável de uma
necessidade. Essas categorias espectrais muito se assemelhavam
àquilo que os ocultistas pretendiam saber sobre a existência de um
além-túmulo, como se o mundo da morte prolongasse através da
alma o mundo da noite. Entretanto, a própria vida, contemplada por
um homem às vésperas de abandoná-la, adquiria, ela também, a
insólita instabilidade e a bizarra disposição dos sonhos. Ele
transitava de um ao outro, como da sala do cartório em que o
interrogavam à sua cela bem trancafiada, e desta ao pátio coberto
de neve. Viu-se à porta de uma exígua torrezinha onde Sua
Majestade Sueca o instalara em Vadstena. Um grande alce que o
Príncipe Érico perseguira na véspera pela floresta mantinha-se à
sua frente, imóvel e paciente como os animais que esperam por
socorro. O sonhador sentia que lhe incumbia esconder e salvar a
criatura selvagem, mas sem saber através de que meios fazê-la
transpor a soleira daquela pousada humana. O alce era de um
negro luzidio e úmido, como se ali houvesse chegado através das
águas de um regato. De outra vez, Zênon estava no interior de um
barco que saía da foz de um rio em direção ao largo. Era um belo
dia de sol e vento. Centenas de peixes se esgueiravam e nadavam
em torno da roda da proa, ora levados pela correnteza, ora a ela se
adiantando, saindo da água doce para as águas salgadas, e tanto
aquela migração quanto aquela partida estavam cheias de alegria.
Mas sonhar tornava-se inútil. As coisas adquiriam de si mesmas as
cores que só revelam nos sonhos, e que lembram o verde, a
púrpura e o branco puros das nomenclaturas alquímicas: uma
laranja, que veio um dia luxuosamente ornamentar-lhe a mesa,
cintilou durante muito tempo como uma bolha de ouro; seu aroma e
sabor foram também uma mensagem. Muitas vezes, julgou ouvir
uma música solene que recordava a dos órgãos, se esta pudesse
expandir-se em silêncio; era antes o espírito, e não o ouvido, que
captava esses sons. Roçou o dedo nas tênues asperezas de um
tijolo coberto de líquen e acreditou que explorava universos. Certa
manhã, ao circular pelo pátio em companhia do guarda Gil
Rombaut, viu sobre o calçamento irregular uma camada de gelo
translúcido sob a qual corria e pulsava um veio d’água. A fina
corrente procurava e descobria seu declínio.
Pelo menos uma vez, hospedou uma aparição diurna. Um belo e
triste menino de dez anos de idade instalara-se em seu quarto. Todo
vestido de negro, possuía o aspecto de um infante saído de um
desses castelos que se visitam em sonhos, mas Zênon o teria
julgado real se súbita e silenciosamente o houvesse encontrado ali
sem ter tido como entrar e caminhar. Contudo, esse menino que
com ele se parecia não era o que crescera na Rua das Lãs. Zênon
sondou seu passado, que incluía poucas mulheres. Convivera
cautelosamente com Casilda Pérez, e pouco se preocupara ao
restituir à Espanha aquela pobre jovem grávida das obras de seu
espírito. A prisioneira que lhe coube junto às muralhas de Buda
morreria pouco depois, e Zênon dela não se recordava senão por
esse motivo. As outras mulheres não foram senão como que
prostitutas às quais o haviam lançado os acasos da estrada: pouco
apreciara esses embrulhos de saias e de carne. No entanto, com a
dama de Frösö fora diferente: ela o amara o bastante para desejar
oferecer-lhe um abrigo duradouro; quisera essa mulher dar-lhe um
menino; jamais soube o filósofo se ela realizara ou não a promessa
que suplanta o desejo do corpo. Seria possível que aquele jorro de
sêmen, atravessando a noite, houvesse resultado nessa criatura,
prolongando e talvez multiplicando sua essência, graças ao ser que
era e não era ele? Zênon experimentou um sentimento de infinita
exaustão e, a contragosto, de orgulho. Se assim o fosse, parte da
responsabilidade lhe cabia, como desde sempre lhe coubera, aliás,
por seus escritos e seus atos; ele não sairia do labirinto senão
quando do fim dos tempos. O filho de Sign UIfsdatter, o filho das
noites brancas, possível entre os possíveis, contemplava o homem
esgotado com seus olhos atônitos, mas graves, como prestes a
colocar-lhe questões às quais Zênon de modo algum saberia
responder. Era difícil dizer qual deles olhava o outro com mais
piedade. A visão se desfez de um golpe, assim como se formara. O
filósofo impôs-se não mais pensar sobre isso; tudo não passara,
sem dúvida, de uma alucinação de prisioneiro.
O guarda noturno, um tal de Hermann Mohr, era homem truculento
e taciturno, que dormia com um olho só ao fundo do corredor e que
parecia não cultivar outras paixões que não fossem as de azeitar e
polir os ferrolhos. Mas Gil Rombaut era um velhaco agradável. Ele
vira o mundo, tendo exercido a profissão de ambulante e feito a
guerra; sua inesgotável tagarelice punha Zênon a par do que se
dizia e se fazia na cidade. Era ele que distribuía os sessenta soldos
diários concedidos ao prisioneiro, como a todos os detentos de
condição honrosa, ou mesmo nobre. Ele o empanzinava de
vitualhas, sabendo muito bem que seu pensionário nelas somente a
custo tocaria, e que aquelas massas e peixes salgados iriam
terminar na mesa do casal Rombaut e de seus quatro filhos. A
abundância de comida e sua roupa de cama cuidadosamente
alvejada pela Senhora Rombaut pouco comoviam o filósofo, que
entrevira o inferno da masmorra pública; contudo, uma certa
camaradagem se estabelecera entre ele e o folgazão, pois esse tipo
de relacionamento não tarda muito a surgir quando um homem traz
a outro seu alimento, leva-o a passear, faz-lhe a barba e esvazia-lhe
o urinol. As reflexões do patife eram um agradável antídoto contra o
estilo teológico e jurídico: Gil não tinha lá muita certeza quanto à
existência de um Bom Deus, visto o mísero estado deste mundo cá
de baixo. As desgraças de Idelette lhe proporcionaram uma lágrima:
era uma pena que não houvessem deixado viver tão bela mocinha.
Achava ridícula a aventura dos Anjos, conquanto afirmando que
cada um se diverte como pode, e que gosto e cor não se discutem.
No que lhe dizia respeito, adorava as jovens, o que constitui um
prazer menos arriscado, mais terno, embora por vezes lhe houvesse
causado problemas dentro de casa. Quanto aos assuntos de ordem
pública, que se danassem. Zênon e ele jogavam cartas; Gil ganhava
sempre. O médico medicava a família Rombaut. Uma boa parte do
bolo folhado que Greta deixou no cartório no Dia de Reis para
Zênon encheu os olhos daquele tratante, que o confiscou em
proveito dos seus, o que, aliás, não chegava em absoluto a
constituir um ato condenável, já que, de uma ou de outra forma, o
prisioneiro tinha fartura de comida. Zênon jamais saberia que Greta
lhe dera aquela tímida prova de fidelidade.
Quando chegou a hora, o filósofo defendeu-se bastante bem.
Certas acusações afinal formuladas eram inconsistentes: ele
decerto não abraçara no Oriente a fé maometana; e não fora
circuncidado. Desculpar-se, porém, por haver servido ao bárbaro
infiel numa época em que suas frotas e exércitos combatiam o
Imperador, era tarefa mais espinhosa; Zênon fez ver que, como filho
de um florentino, mas estabelecido e praticando àquela época a
medicina no Languedoc, ele se considerava então um partidário do
Rei Cristianíssimo, que mantinha boas relações com o Império
Otomano. O argumento não era lá muito sólido, mas fábulas
bastante propícias ao acusado se haviam divulgado sobre aquela
visita ao Levante. Zênon teria sido um dos agentes secretos do
Imperador no país dos berberes, e apenas a discrição lhe selara os
lábios. O filósofo não contradisse esse conceito, bem como alguns
outros não menos romanescos, a fim de não desanimar amigos
desconhecidos que, obviamente, os faziam circular. Os dois anos
passados junto ao Rei da Suécia eram ainda mais danosos, posto
que mais recentes, e nenhum sobejo de lenda poderia embelezá-
los. Tratava-se de saber se vivera como um católico naquele país
suposto reformado. Zênon negou haver abjurado, mas não
acrescentou que ouvia as prédicas, embora o fizesse com a menor
assiduidade possível. A censura por espionagem em benefício do
estrangeiro voltou à tona; o acusado se fez mal ver ao argumentar
que, se tivesse a preocupação de ensinar e transmitir alguma coisa
a alguém, se instalaria sempre numa cidade menos à margem dos
grandes negócios do que Bruges.
Contudo, era precisamente a longa estada de Zênon em sua
cidade sob um nome falso que vincava a testa dos juízes; viam-se
abismos nesse procedimento. Que um incrédulo condenado pela
Sorbonne se furtasse a seus amigos por alguns meses na casa de
um cirurgião-barbeiro, pouco notado por sua piedade cristã, era
admissível, mas que um homem hábil, que exercera a prática do
ocultismo junto à realeza, adotasse por tanto tempo a existência
pouco rendosa de um médico de asilo, era por demais estranho
para que se pudesse considerá-lo inocente. Para isso, o réu não
tinha resposta: ele mesmo não compreendia por que permanecera
tanto tempo em Bruges. Por uma espécie de decoro, não aludiu ao
afeto que o ligara cada vez mais estreitamente ao finado prior: de
resto, esta não lhe parecia senão uma dentre outras razões. Quanto
às relações abomináveis com Cipriano, o acusado simplesmente as
negou, mas todos se aperceberam de que faltava à sua linguagem a
virtuosa indignação capaz de convencê-los do contrário. Não
voltaram mais às cargas que anteriormente lhe fizeram por haver
cuidado e restabelecido as energias dos fugitivos da justiça em São
Cosme; o novo Prior dos Franciscanos, por julgar sadiamente que
seu convento já se desgastara demais em virtude de todos os
acontecimentos, insistiu para que não se reavivassem de modo
algum em torno do médico os rumores de deslealdade. O
prisioneiro, que até então se comportara de modo irrepreensível,
explodiu em cólera quando Pedro Le Cocq, o procurador de
Flandres, voltando à velha questão acerca das influências
impróprias e mágicas, fez ver a todos que a fátua predileção de
João-Luís de Berlaimont pelo médico se poderia explicar por um
malefício. Após expor ao bispo que, em certo sentido, tudo é magia,
Zênon enfureceu-se por aviltar-se daquela forma o intercâmbio entre
dois espíritos livres. O reverendíssimo bispo não relevou a aparente
contradição.
Em matéria de doutrina, o acusado foi tão ágil quanto pode sê-lo
um homem atado a poderosas teias de aranha. A questão da
infinidade dos mundos preocupava mais particularmente os dois
teólogos convocados como auditores; discutiu-se longamente se
infinito e ilimitado significam a mesma coisa. O torneio sobre o
assunto da eternidade da alma — ou de sua sobrevivência apenas
parcial ou apenas temporal que de fato corresponderia para o
cristão a uma pura e simples mortalidade — durou ainda mais:
Zênon lembrou ironicamente a definição aristotélica das partes da
alma, que os doutores árabes depois inteligentemente refinaram.
Postulava-se a imortalidade da alma vegetativa ou da alma animal,
da alma racional ou da alma intelectual, e afinal da alma profética,
ou de uma entidade que subjaz a todas essas? Em dado momento,
fez ver que algumas de suas hipóteses remetiam, em suma, à teoria
hilemórfica de São Boaventura. Negou-se a consequência, mas o
Cônego Campanus, que assistia aos debates e se lembrou de haver
ensinado outrora a seu aluno tais sutilezas escolásticas, inflou de
orgulho ante tal argumentação.
Foi durante essa sessão que se leram — algo lentamente demais
na opinião dos juízes, que estimavam já saber o bastante para julgar
— os cadernos nos quais, quarenta anos antes, transcrevera Zênon
fragmentos de pagãos ou de notórios ateus, ou ainda de Padres da
Igreja que se contradiziam uns aos outros. Por acaso, João Myers
conservara cuidadosamente aquele arsenal de escolar. Esses
argumentos por demais repisados enervaram também o acusado e
Monsenhor, mas os não teólogos com eles mais ainda se chocaram
do que com as audácias das Proteorias, muito abstrusas para serem
facilmente compreendidas. Enfim, sob um lúgubre silêncio,
procedeu-se à leitura das Profecias cômicas, as quais Zênon
regalara outrora ao organista e à sua mulher como inofensivas
adivinhações. Aquele mundo grotesco, análogo ao que se pode ver
nas telas de certos pintores, pareceu repentinamente terrível. Em
meio ao desconforto que a loucura inspira, ouviu-se a história da
abelha que se despoja de sua cera para homenagear os mortos
privados de seus olhos, ante quem inutilmente se consomem os
círios, e que também estão destituídos de orelhas capazes de
escutar as súplicas e de mãos capazes de consagrar. O próprio
Bartolomeu Campanus empalideceu à menção dos povos e dos
príncipes da Europa que choravam e gemiam, a cada equinócio da
primavera, por um rebelde outrora condenado no Oriente, ou ainda
à menção dos patifes e dos loucos que ameaçavam ou prometiam
em nome de um Senhor mudo e invisível, do qual, sem quaisquer
provas, se diziam intendentes. Tampouco ninguém riu da imagem
dos Santos Inocentes degolados e trespassados cada dia, apesar
de seus lastimáveis balidos, nem da que representa homens
adormecidos sobre plumas de pássaros e conduzidos ao céu dos
sonhos, nem dos ossinhos dos mortos que decidem a sorte dos
vivos sobre tábuas de madeira manchadas pelo sangue da vinha,
nem dos estômagos fendidos nas duas extremidades e
dependurados sobre andas, espargindo sobre o mundo um sujo
vento de palavras e digerindo a Terra em sua moela. Para além da
intenção blasfematória — visível em mais de um trecho — acerca
das instituições cristãs, sentia-se em tais lucubrações uma recusa
ainda mais completa e que deixava na boca uma náusea indefinida.
A leitura causara também ao filósofo o efeito de uma amarga
regurgitação, e sua suprema melancolia provinha de que os
auditores se indignassem contra o audacioso que revelava, em seu
absurdo, a pobre condição humana, e não contra essa própria
condição, a qual tinham eles, embora em pequeno grau, o poder de
modificar. Tendo o bispo sugerido que se deixassem de lado
aquelas frivolidades, o doutor em teologia Hieronymus van
Palmaert, que evidentemente detestava o acusado, retornou aos
fragmentos coligidos por Zênon, e opinou que o artifício de extrair de
antigos autores assertivas ímpias e nocivas era ainda mais malévolo
do que uma afirmação frontal. Monsenhor considerou abusivo esse
ponto de vista. A fisionomia apoplética do doutor se congestionou, e
perguntou aos gritos por que o arrancaram de suas ocupações para
dar um parecer sobre faltas em matéria de bons costumes e de
doutrina que não fariam hesitar por um instante qualquer juiz de
aldeia.
Dois fatos extremamente prejudiciais ao acusado ocorreram
durante essa sessão. Uma mulher volumosa e de traços grosseiros
se apresentou em estado de intensa agitação. Era a antiga criada
de João Myers, Catarina, que logo se aborrecera de ter a seu
encargo os enfermos instalados por Zênon na casa do Velho-Cais-
do-Bosque e que agora lavava a louça para a Abóbora. Acusou o
médico de haver envenenado João Myers com suas panaceias;
empenhando-se por desgraçar o prisioneiro, Catarina confessou
haver ajudado Zênon nessa tarefa. O infame excitara previamente
seus sentidos através de poções venenosas, de sorte que seu corpo
e sua alma dele se tornaram escravos. Catarina pormenorizava os
prodigiosos detalhes de seu intercâmbio carnal com o médico; era
de crer que nesse meio tempo sua intimidade com as pupilas e os
clientes da Abóbora muito a haviam instruído. Zênon negou
resolutamente haver envenenado o velho Myers, mas admitiu que,
por duas vezes, tivera a mulher em seu leito. As uivantes e
pantomímicas confissões de Catarina logo reanimaram o agônico
interesse dos juízes; a cena provocou tremendo impacto sobre o
público que se comprimia à entrada da sala; todos os sinistros
rumores acerca do feiticeiro foram outro tanto confirmados. Mas a
bruaca, empurrada para trás, não arredava pé; fizeram-na calar-se;
insultando os juízes, foi ela afinal atirada porta afora e enviada ao
hospício, onde pôde destrambelhar-se à vontade. Os magistrados,
todavia, estavam perplexos. O fato de Zênon haver renunciado à
herança do cirurgião-barbeiro provava seu desinteresse e
descaracterizava qualquer móvel do crime; por outro lado, contudo,
o remorso poderia ter-lhe inspirado essa conduta.
Enquanto se deliberava, uma denúncia ainda mais terrível,
considerando-se a presente situação dos assuntos públicos, chegou
aos juízes através de uma carta anônima. A mensagem provinha
obviamente dos vizinhos do velho ferreiro Cassel. Nela se
assegurava que o médico, durante dois meses, ia diariamente à
ferraria para tratar de um ferido que outro não era senão o
assassino do finado Capitão Vargaz; o mesmo médico, com muita
habilidade, criara também as condições que permitiram ao
delinquente evadir-se da cidade. Para a sorte de Zênon, Josse
Cassel, que poderia prestar valioso depoimento sobre o fato,
encontrava-se na Guéldria a serviço do Rei, como integrante do
regimento do Senhor de Landes, sob cujas ordens se alistara.
Abandonado, o velho Pieter se mudara furtivamente, sem pagar o
aluguel ou quaisquer outras dívidas, e retornara a uma aldeia em
que possuía alguns bens, mas ninguém sabia ao certo onde. Zênon
negou a acusação, como convinha, e encontrou inesperadamente
um aliado no preboste, que já havia consignado em seus registros a
morte do assassino de Vargaz num celeiro de feno, e se preocupava
com o fato de que se viesse a acusá-lo por haver negligentemente
instruído aquele caso já distante. Não foi absolutamente possível
descobrir o autor da carta, e os vizinhos de Josse, quando
interrogados, deram respostas evasivas, assim-assim: ninguém, em
seu juízo perfeito, poderia admitir que se esperasse dois anos para
denunciar semelhante crime. Mas a acusação era grave, e mais a
agravava o fato de haver ele socorrido fugitivos no asilo.
Para Zênon, o processo em quase nada diferia de uma daquelas
partidas de cartas disputadas com Gil, as quais, por distração ou
indiferença, perdia sempre. Assim como as quinas de um retângulo
de papelão colorido que arruínam ou enriquecem os jogadores,
cada peça do jogo legal tinha um valor arbitrário; exatamente como
num lance em que nada se ganha ou numa aposta da zanga,
convencera-se de que deveria tomar suas precauções, queimar as
cartas ou passá-las de mão, pôr-se em guarda e mentir. A verdade,
se fosse dita, confundiria, aliás, todo mundo. Ela se distinguia
pouquíssimo da mentira. Onde quer que ele dissesse o verdadeiro,
este incluiria o falso: ele não abjurara nem a religião cristã nem a fé
católica, mas o faria, se preciso fosse, com tranquila e sã
consciência, e talvez até se convertesse ao credo luterano se, como
esperava, retornasse um dia à Alemanha. Zênon negava, e com
razão, as relações carnais com Cipriano; contudo, cobiçara, uma
noite, aquele corpo agora eclipsado; em certo sentido, as alegações
daquela criança infeliz eram menos falsas do que o próprio Cipriano,
ao fazê-las, talvez o acreditasse. Ninguém mais o acusava de haver
proposto a Idelette uma poção abortiva, e ele negava honestamente
havê-lo feito, embora cônscio da restrição mental de que a
socorreria se ela o implorasse a tempo, coisa que o levava a
lastimar-se por não ter podido evitar-lhe assim a deplorável sorte.
Por outro lado, onde suas contestações nada mais eram
literalmente do que a expressão de uma mentira, como no caso da
assistência médica dada a Han, a estrita verdade não teria sido
menos mentirosa. Os serviços prestados aos rebeldes não
provavam — como o julgavam o procurador, com indignação, e os
patriotas, com admiração — que ele houvesse aderido à causa
destes últimos: ninguém, em meio àqueles ferrenhos opositores,
compreendera sua fria devoção de médico. As escaramuças com os
teólogos até que tiveram lá o seu encanto, mas ele estava farto de
saber que não existe nenhum acordo duradouro entre aqueles que
investigam, pesam, dissecam e se orgulham de ser capazes de
pensar amanhã distintamente de hoje, e os que creem ou afirmam
crer, e obrigam seus semelhantes, sob pena de morte, a fazer o
mesmo. Uma tediosa irrealidade reinava nos colóquios em que as
perguntas e as respostas não mais se encaixavam. Adveio-lhe
adormecer durante uma das últimas sessões; um tapa de Gil
chamou-o à ordem. Na verdade, um dos juízes também dormia.
Este acordou certo de que a sentença de morte já fora dada, o que
fez rir a todos, inclusive o acusado.

Não apenas no tribunal, mas também na cidade, as opiniões se


distribuíram desde o início em complexos esquemas. A posição do
bispo não era clara, embora encarnasse obviamente a moderação,
senão mesmo a indulgência. Sendo Monsenhor ex officio um dos
sustentáculos do poder real, inúmeras pessoas do lugar o
acompanhavam nessa atitude; Zênon tornava-se quase o protegido
da ordem. Mas certas denúncias contra o prisioneiro eram tão
graves que a moderação, no que lhe dizia respeito, tinha lá os seus
riscos. Os parentes e amigos que Filisberto Ligre mantinha na
cidade hesitavam: afinal de contas, o réu era da família, mas
duvidavam se seria esta uma razão para defendê-lo ou arruiná-lo.
Ao contrário, os que haviam padecido sob o tacão das implacáveis
manobras dos banqueiros Ligres incluíam Zênon em sua área de
rancor: esse nome os enfurecia. Os patriotas que fervilhavam entre
os burgueses e constituíam a melhor parte da arraia-miúda
deveriam apoiar o infeliz que se tinha na conta de haver socorrido
seus semelhantes; alguns realmente o fizeram, mas a maioria
desses entusiastas se inclinava para as doutrinas evangélicas e se
arrepiava, acima de tudo, ante a mais leve suspeita de ateísmo ou
de devassidão; de resto, odiavam os conventos, e o tal de Zênon
lhes parecia haver estado em Bruges associado aos monges.
Solitários, alguns homens, amigos desconhecidos do filósofo,
ligados a ele por simpatias cujos motivos eram distintos para cada
um, empenhavam-se discretamente em ser-lhe de alguma valia,
sem atrair sobre si a atenção da Justiça, da qual todos tinham
razões para desconfiar. Não deixavam passar nenhuma
oportunidade de embaralhar as coisas, valendo-se da confusão para
obter qualquer ganho que pudesse beneficiar o prisioneiro ou, pelo
menos, ridicularizar seus perseguidores.
O Cônego Campanus lembrou-se por muito tempo de que, no
princípio de fevereiro, pouco antes da sessão fatídica em meio à
qual irrompeu Catarina, os senhores juízes permaneceram por um
momento à soleira da porta do cartório empenhados em trocar
pontos de vista após a saída do bispo. Pedro Le Cocq, que era em
Flandres o braço direito do Duque de Alva, observou que se
perderam quase seis semanas em futilidades, quando teria sido
mais simples aplicar as sanções previstas em lei. Não obstante, ele
se regozijava pelo fato de que processo tão despido de importância,
pois que não se relacionava a nenhum dos grandes interesses
daqueles dias, houvesse oferecido ali mesmo uma diversão das
mais úteis ao público: a ralé de Bruges se inquietava menos com o
que ocorria em Bruxelas no Tribunal das Arruaças, na medida em
que se preocupava com o Senhor Zênon. Ademais, não seria mal,
naquele momento em que todos censuravam à Justiça sua pretensa
arbitrariedade, mostrar que em Flandres ainda se sabia, no tocante
à matéria legal, como observar as normas. Baixando a voz,
acrescentou ele que o reverendíssimo bispo fizera sábio uso da
legítima autoridade que alguns sem razão lhe contestavam, mas
convinha talvez distinguir entre o homem e a função: Monsenhor
guardava certos escrúpulos dos quais seria preciso livrar-se caso
desejasse continuar a fazer as vezes de juiz. A populaça apreciaria
muito ver queimar aquele indivíduo; é sempre perigoso privar um
mastim do osso que se fez dançar sob seus olhos.
Bartolomeu Campanus não ignorava que o influente procurador se
achava bastante endividado junto àquilo que, em Bruges,
continuava a chamar-se o Banco Ligre. Enviou no dia seguinte um
mensageiro a seu sobrinho Filisberto e a Dama Marta, sua mulher,
solicitando-lhes providências no sentido de que Pedro Le Cocq
vislumbrasse algum aspecto favorável ao prisioneiro.
Uma bela morada

A suntuosa residência de Forestel fora construída há muito pouco


tempo por Filisberto e sua mulher em estilo italiano; muito se
admiravam as fileiras de cômodos com seu assoalho luzidio e altas
janelas que se abriam para o parque, onde, nessa manhã de
fevereiro, caíam a chuva e a neve. Pintores influenciados pela arte
peninsular haviam recoberto o teto das salas com a magnificência
de belas cenas da história profana e da mitologia clássica: a
generosidade de Alexandre, a clemência de Tito, Danaé inundada
pela chuva de ouro e Ganimedes ascendendo aos céus. Um
escritório florentino guarnecido de marfim, jaspe e ébano, para o
qual três reinados haviam contribuído, estava ornamentado de
colunetas torsas e de nus femininos que os espelhos multiplicavam;
molas faziam abrir gavetas secretas. Filisberto, porém, era muito
ladino para confiar seus papéis de Estado a essas armadilhas tão
intrincadas como o interior de uma consciência, e quanto às cartas
de amor, jamais as escrevera, nem recebera, pois suas paixões,
aliás extremamente moderadas, dirigiam-se àquelas lindas jovens
às quais não se escreve. Na lareira decorada com medalhões que
representavam as Virtudes Cardeais, o fogo ardia entre duas frias e
luzentes pilastras; grossos troncos cortados à floresta vizinha eram,
em meio a tamanho esplendor, os únicos objetos naturais que não
haviam sido polidos, aplainados ou envernizados pela mão de um
artífice. Dispostos sobre um bufê, alguns volumes exibiam suas
lombadas em pergaminho ou em marroquim gravadas a ouro fino;
eram obras de devoção que ninguém folheava; havia muito que
Marta sacrificara A instituição cristã, de Calvino, por ser esse livro
herético, como polidamente a fizera ver Filisberto, bastante
comprometedor. O próprio Filisberto possuía uma coleção de
tratados genealógicos e, numa gaveta, um belo exemplar de Aretino
que, de vez em quando, mostrava a seus hóspedes, enquanto as
senhoras conversavam sobre joias e flores de canteiro.
Uma impecável ordem reinava em todas as peças, que acabavam
de ser arrumadas após a recepção da véspera. O Duque de Alva e
seu ajudante de campo, Lancelote de Berlaimont, aceitaram cear e
pernoitar ali depois de uma inspeção à região de Mons; por estar o
duque muito fatigado para subir as grandes escadarias, prepararam-
lhe o leito numa das salas do primeiro pavimento, sob um toldo de
tapeçaria que o abrigava do ar encanado e que se sustinha com o
apoio de lanças e troféus de prata; já não havia indício desse leito
de repouso heroico em que o insigne visitante deploravelmente mal
conciliara o sono. A conversa durante a ceia fora a um tempo
concreta e cautelosa; falara-se dos assuntos públicos num tom de
pessoas que deles participam e sabem a que se ater; por uma
questão de bom gosto, não se insistira, aliás, sobre coisa alguma. O
duque revelava inteira confiança quanto à situação na Baixa
Alemanha e em Flandres: os distúrbios estavam sob controle; a
monarquia espanhola não tinha a temer que se lhe arrebatassem
Middelburgo ou Amsterdã, assim como, de resto, Lille ou Bruxelas.
Ele podia pronunciar o seu Nunc dimittis, [75] e implorava ao rei que
lhe desse um substituto. Não era mais jovem, e sua tez lhe atestava
os distúrbios hepáticos; a falta de apetite do duque obrigara os
anfitriões a refrearem sua fome. Lancelote de Berlaimont, todavia,
comeu muito à vontade, sempre contando detalhes da vida de
caserna. O Príncipe de Orange fora derrotado; era lastimável para a
disciplina das tropas que estas recebessem seus soldos com
tamanha irregularidade. O duque franziu o sobrolho e mudou de
assunto; parecia-lhe pouco estratégico expor naquele instante as
chagas pecuniárias da causa real. Filisberto, que sabia
perfeitamente a quanto se elevava o déficit, preferiu também que de
modo algum se falasse de dinheiro à mesa.

Assim que os hóspedes partiram em meio à aurora nevoenta,


Filisberto, contrariado por ter de apresentar despedidas tão
matinais, subiu de volta ao quarto e enfiou-se na cama, onde
preferia trabalhar em virtude de sua perna gotosa. Para sua mulher,
ao contrário, que se levantava sempre ao amanhecer, essa hora
nada tinha de insólito. Marta caminhava com seu passo regular
pelos cômodos vazios, ajeitando aqui e ali sobre uma arca um
bibelô de ouro ou de prata ligeiramente deslocado por algum criado,
ou raspando com a unha sobre um consolo algum imperceptível
pingo de cera. Ao fim de um momento, um secretário lhe trouxe lá
de cima a carta já aberta do Cônego Campanus. Uma pequena nota
irônica de Filisberto a acompanhava, indicando que ela aí
encontraria novidades sobre seu primo e um seu irmão.
Sentada em frente à lareira, protegida do calor das chamas
crepitantes por um guarda-fogo bordado, Marta inteirou-se da longa
missiva. As folhas, tomadas por uma escrita negra e miúda,
roçavam-se umas às outras em suas mãos magras que emergiam
de punhos rendilhados. Interrompeu logo a leitura e pôs-se a
imaginar. Bartolomeu Campanus informara-lhe sobre a existência
daquele irmão uterino desde sua chegada a Flandres ainda recém-
casada; o cônego recomendara-lhe mesmo que rezasse por aquele
ímpio, ignorando que Marta se abstinha de fazê-lo. A história desse
filho ilegítimo fora para ela uma nódoa a mais em sua mãe já tão
suja. Não lhe fora difícil identificar o filósofo-médico, que se tornara
célebre pela assistência prestada aos pestosos da Alemanha com
um homem vestido de vermelho que ela recebera à cabeceira de
Benedita, e que a inquirira tão estranhamente sobre seus finados
pais. Muitas vezes pensara naquele temível viandante, e sobre ele
meditara. Tanto quanto Benedita em seu leito de morte, ele a vira
nua: o desconhecido adivinhara o vício mortal de pusilanimidade
que ela trazia em si, invisível a todos aqueles que a tomavam por
uma mulher de fibra. A ideia de sua existência lhe era um espinho.
Fora ele o rebelde que ela não soubera ser; enquanto ele errava
pelas estradas do mundo, seu caminho a levara apenas de Colônia
a Bruxelas. Agora, estava prisioneiro no cárcere obscuro que
outrora ela temera abjetamente para si própria; o castigo que o
ameaçava parecia-lhe justo: ele vivera à sua maneira; os riscos que
corria agora eram de sua escolha.
Ela voltou a cabeça, incomodada por um vento frio: o fogo a seus
pés não conseguia aquecer senão uma pequena parte da grande
sala. Aquele frio gelado era o que se pressente, parece, à
passagem de um fantasma: o homem agora tão próximo de seu fim
fora sempre um fantasma para ela. Mas não havia nada atrás de
Marta além do esplêndido salão e do vazio. O mesmo vazio
suntuoso reinara em sua vida. As únicas recordações um pouco
ternas eram as daquela Benedita que Deus lhe roubara, supondo-se
que houvesse um Deus, e da qual ela sequer soubera cuidar até o
fim; a fé evangélica que lhe ardera durante a juventude, ela a
sufocara: dela restava tão somente um punhado de cinzas. Há mais
de vinte anos que não a abandonava a certeza de sua danação; fora
tudo o que guardara Marta da doutrina de que não ousara se
confessar adepta em voz alta. Contudo, a noção de seu próprio
inferno terminara por adquirir algo de sereno e fleugmático: sabia-se
condenada como se sabia mulher de um homem rico ao qual unira
sua fortuna, e mãe de um doidivanas apto quando muito a esgrimir e
a beber em companhia de jovens fidalgos, ou ainda como sabia que
Marta Ligre morreria um dia. Tornara-se virtuosa sem maior esforço,
jamais possuindo amantes dos quais teria tido de desvencilhar-se;
os tímidos ardores de Filisberto deixaram de se dirigir a ela após o
nascimento do filho único, de modo que não lhe restou sequer
dedicar-se à prática dos prazeres permitidos. Só estava a par de
desejos que, por vezes, lhe haviam pulsado sob a pele; e menos os
subjugara do que os desdenhara, como se trata com desdém
qualquer efêmera indisposição do corpo. Fora para com o filho uma
mãe justa, sem conseguir vencer a insolência natural do rapaz nem
de por ele se fazer amar; dela se dizia ser dura até a crueldade com
a criadagem, mas era preciso fazer-se respeitar por aquela
gentalha. Sua atitude na igreja era edificante, mas no fundo
desprezava aquelas momices. Se esse irmão que ela não vira
senão uma única vez vivera seis anos sob um nome falso, ocultando
seus vícios e exercendo virtudes hipócritas, isso era pouco se
comparado ao que ela fizera a vida inteira. Pegou a carta do cônego
e subiu ao quarto de Filisberto.
Como sempre, logo que entrava nos aposentos do marido, franziu
os lábios com desdém ao constatar suas falhas de comportamento e
de regime. Filisberto afundava em macios travesseiros que lhe eram
prejudiciais à gota, como não menos o era sua caixinha particular de
amêndoas e confeitos. Ele teve tempo de enfiar sob as cobertas um
Rabelais que mantinha sempre à mão para se distrair entre dois
ditados. Ela sentou-se, o busto muito ereto, numa cadeira colocada
bem longe do leito. Marido e mulher trocaram algumas palavras
sobre a visita da véspera; Filisberto elogiou Marta pelo excelente
arranjo do repasto, no qual, por azar, o duque pouco tocara. Ambos
lamentaram sua má aparência. Em atenção ao secretário que punha
em ordem seus papéis antes de copiá-los na peça vizinha, o obeso
Filisberto observou reverenciosamente que muito se falava da
coragem dos rebeldes executados por ordem do duque (dobrava-se,
aliás, o número deles), mas nunca o bastante da força desse
homem de Estado e de guerra agonizando sob os arreios por causa
de seu senhor. Marta aquiesceu com um sinal.
— Os assuntos públicos me parecem menos tranquilos do que crê
o duque, ou não quer fazê-lo crer — acrescentou ele mais
secamente assim que a porta se fechou. — Tudo dependerá do
pulso de seu sucessor.
Ao invés de responder, Marta perguntou-lhe se achava de fato
necessário suar debaixo de tantos edredons.
— Necessito dos bons conselhos de minha mulher sobre outras
coisas que não os meus travesseiros — disse Filisberto com o leve
tom de escárnio que sempre adotava para com ela. — Leu a carta
de nosso tio?
— É um assunto bastante sujo — comentou Marta com hesitação.
— Todos os assuntos nos quais a Justiça mete o nariz o são, e
assim ela os torna quando não o são — ponderou o conselheiro. —
O cônego, que toma a coisa muito a peito, julga talvez que é demais
duas execuções públicas numa só família.
— Todos sabem que minha mãe morreu em Münster vítima das
desordens — disse Marta, cujos olhos enegreceram de cólera.
— É tudo o que importa que se saiba, e eu mesmo a aconselhei
que o fizesse gravar no muro de uma igreja — replicou Filisberto
com suave ironia. — Mas falo agora do filho dessa irrepreensível
mãe… É certo que o procurador de Flandres figura em nossos livros
como devedor de uma grande quantia — quero dizer, entre os
herdeiros Tuchers — e que poderia considerar oportuno que se
apagassem certos registros… Mas o dinheiro não resolve tudo, pelo
menos não tão facilmente quanto o creem os que, como o cônego,
pouco dispõem dele. A coisa me parece por demais adiantada, e Le
Cocq terá talvez suas razões para ir em frente. Tudo isso a
incomoda muito?
— Suponha que não conheço esse homem — respondeu
friamente Marta, que, ao contrário, se lembrava muito bem do
momento em que o estrangeiro tirara no sombrio vestíbulo da casa
dos Fuggers sua máscara oficial de médico da peste. Mas era certo
que ele sabia sobre ela mais do que ela sabia a respeito dele, e, de
qualquer forma, esse recanto de seu passado era daqueles que
diziam respeito apenas a ela, e Filisberto a ele não tinha direito de
acesso.
— Entenda que nada tenho contra meu primo e seu irmão, o qual
desejaria muito que estivesse aqui para tratar de minha gota —
ponderou o conselheiro, acomodando-se em suas almofadas. —
Mas que ideia o levou a enfiar-se em Bruges como uma lebre sob o
ventre dos cães e, ainda por cima, sob um nome fictício que só
poderia enganar os tolos… O mundo nos pede apenas um pouco de
discrição e um pouco de prudência. De que serve publicar opiniões
que desagradam à Sorbonne e ao Santo Padre?
— É duro carregar o silêncio — disse subitamente Marta como se
a contragosto.
O conselheiro olhou-a com uma expressão de malicioso espanto.
— Muito bem — disse ele —, ajudemos o tal fulano a cair fora.
Mas compreenda que se Pedro Le Cocq concordar com isso, torno-
me eu o seu devedor, e não ele o meu, e que se porventura não
estiver ele em absoluto de acordo, serei obrigado a engolir um não.
É possível que o Senhor de Berlaimont me agradeça por evitar um
fim escandaloso a um homem que o pai dele protegia, mas, ou
redondamente me engano, ou ele pouco se incomoda com o que se
passa em Bruges. Que sugere minha querida mulher?
— Nada que pudesse você censurar-me após o acontecimento —
replicou ela secamente.
— Pois muito bem — disse o conselheiro com a satisfação de um
homem que vê afastar-se a ocasião de uma pendenga. — Já que
minhas mãos gotosas me impedem de segurar a pena, terá você a
complacência de escrever por mim a nosso tio recomendando-nos
às suas santas orações…
— Sem tocar na questão principal? — perguntou pertinentemente
Marta.
— Nosso tio é bastante fino para compreender uma omissão —
ratificou ele inclinando a cabeça. — O que importa é que o
mensageiro não volte de mãos vazias. Você terá decerto provisões
de boca a enviar para a Quaresma (patês de peixe calhariam muito
bem), e algum retalho de tecido para sua igreja.
Marido e mulher trocaram um olhar. Ela admirava a circunspecção
de Filisberto, como outras mulheres admiram seu homem pela
coragem ou a virilidade. Tudo ia tão bem que ele teve a imprudência
de acrescentar:
— Todo o mal vem de meu pai, que educou esse sobrinho
bastardo como um filho. Criado numa família obscura e sem
frequentar a escola…
— Você fala sobre esse assunto de bastardos como homem de
experiência — retrucou ela com um acre sarcasmo.
Ele pôde sorrir à vontade, pois ela já lhe voltara as costas e se
aproximava da porta. O filho natural que lhe dera uma camareira (e
que, aliás, talvez não fosse dele) antes facilitara do que
comprometera suas relações conjugais. Ela retornava sempre
àquela única afronta, ignorando outras mais consideráveis sem dizer
palavra e (quem sabe?) sem sequer dar por elas. Ele a chamou:
— Tenho uma surpresa para você — disse ele. — Recebi essa
manhã algo melhor do que um mensageiro de meu tio. Eis aqui as
cartas que homologam o erguimento das terras de Steenberg em
viscondado. Você sabe que fiz Steenberg substituir Lombardia, já
que esse título corria o risco de fazer rir um filho e neto de
banqueiros.
— Ligre e Foulcre soam muito bem a meus ouvidos — disse ela
com um orgulho frio, afrancesando, como era de hábito, o
sobrenome dos Fuggers.
— Esses nomes fazem pensar um pouco demais nas etiquetas
dos sacos de dinheiro — observou o conselheiro. — Vivemos numa
época em que um belo nome é indispensável para impor-se numa
corte. É preciso uivar com os lobos, minha cara mulher, e gritar com
os pavões.
Assim que Marta saiu, ele esticou a mão para a sua caixinha de
confeitos e encheu a boca. Filisberto não engolia aquela história de
seu desdém pelos títulos: todas as mulheres adoram o falso brilho.
Algo lhe desagradava um pouco no sabor dos confeitos. Era uma
pena que nada se pudesse fazer por aquele libertino sem se
comprometer.
Marta desceu a escadaria principal. Embora contra a sua vontade,
o título novo em folha soava agradável a seus ouvidos; de qualquer
modo, seu filho lhe seria grato um dia. Em comparação, a carta do
cônego perdeu a importância. A resposta a ser escrita era uma
tarefa enfadonha; voltou a pensar com azedume que, em suma,
Filisberto tudo fazia à sua moda, e que ela, a vida inteira, fora
apenas a rica intendente de um homem rico. Por uma estranha
contradição, aquele irmão que ela abandonava à própria sorte
achava-se nesse momento mais próximo dela do que seu marido e
seu filho único: com Benedita e sua mãe, ele fazia parte de um
mundo secreto no qual ela estava enclausurada. Em certo sentido,
ela se condenava nele. Marta chamou o administrador para ordenar-
lhe que reunisse os presentes a serem enviados pelo mensageiro,
que se empanturrava na cozinha.
O administrador tinha um pequeno assunto sobre o qual desejaria
falar a Madame. Uma esplêndida ocasião se oferecia. Como
Madame não ignorava, os bens do Senhor de Battenbourg haviam
sido confiscados após a sua execução. Estavam ainda sob
sequestro, e a venda em benefício do Estado só deveria ser
efetuada depois do pagamento de suas dívidas pessoais. Não se
podia dizer que os espanhóis não fizessem as coisas de acordo com
as regras. Mas, graças ao antigo porteiro do supliciado, ele tivera
conhecimento da existência de um lote de tapeçarias que não
constava do inventário e do qual se poderia dispor à parte. Eram
belos Aubussons que representavam episódios da História Sagrada,
como A adoração do Bezerro de Ouro, A negação de São Pedro, O
incêndio de Sodoma, O bode expiatório, Os hebreus lançados à
fornalha ardente. O meticuloso administrador guardou sua listinha
na algibeira. Madame comentara justamente que adoraria renovar o
jogo de tapeçarias do Salão de Ganimedes. E, de qualquer modo,
essas peças se valorizariam com o tempo.
Ela refletiu por um instante e concordou com um leve movimento
do queixo. Não eram motivos profanos, como aqueles a que
Filisberto se devotava um pouco demais. E ela bem que já vira as
tapeçarias no palácio do Senhor de Battenbourg, onde produziam
um efeito extraordinariamente nobre. Era um assunto a não
desprezar.
A visita do Cônego

Após o jantar que se seguiu à condenação de Zênon, o filósofo foi


informado de que o Cônego Bartolomeu Campanus o aguardava na
saleta do cartório do Tribunal. Desceu em companhia de Gil
Rombaut. O cônego pediu ao carcereiro que os deixasse a sós.
Para maior segurança, Rombaut deu uma volta na chave antes de
sair.
O velho Bartolomeu Campanus sentara-se pesadamente numa
poltrona de espaldar alto próxima a uma mesa, deixando no chão
suas duas bengalas. Em sua honra, acendeu-se na lareira um
reconfortante fogo, cujo clarão supria a luz avara e fria dessa tarde
de fevereiro. O largo rosto do cônego, sulcado por centenas de
pequeninas rugas, parecia quase róseo sob a luz, mas Zênon
percebeu-lhe os olhos congestionados e o tremor contido dos lábios.
Ambos hesitavam quanto à maneira de iniciar o diálogo. O cônego
fez um vago movimento para levantar-se, mas sua idade e seus
achaques colocavam essa cortesia fora de questão, e ele não
estava absolutamente certo de que não houvesse algo de
inconveniente nessa deferência para com um condenado. Zênon
guardou a distância de alguns passos.
— Optime pater [76] — disse ele, retomando um tratamento a que
recorria para chamar o cônego nos tempos de escola —, agradeço-
lhe os pequenos e grandes préstimos durante meu cativeiro. Logo
adivinhei de onde vinham tais atenções. Sua visita é uma das que
eu não esperava.
— Por que você não se revelou mais cedo? — perguntou o ancião
com uma afetuosa censura. — Você sempre teve menos confiança
em mim do que naquele cirurgião-barbeiro.
— O senhor se surpreende de que eu seja desconfiado? —
replicou o filósofo.
Zênon esfregava cadenciadamente os dedos entorpecidos.
Embora bem-situado no andar de cima, seu quarto era de uma
umidade insidiosa nesse tempo de inverno. Sentou-se numa cadeira
colocada próxima ao fogo e estendeu a palma das mãos.
— Ignis noster [77] — disse ele com doçura, empregando uma
fórmula alquímica que Bartolomeu Campanus fora o primeiro a
ensinar-lhe.
Um calafrio trespassou o cônego.
— Minha parte nos serviços que se tentaram prestar-lhe reduz-se
a muito pouco — observou este, esforçando-se por empostar a voz.
— Talvez você se recorde de que uma grave desavença indispusera
Monsenhor contra o antigo Prior dos Franciscanos. Mas essas duas
santas pessoas acabaram por estimar-se. O falecido prior, no seu
leito de morte, o recomendou ao reverendíssimo bispo. Monsenhor
se ateve a que você fosse julgado com equidade.
— Eu o agradeço — disse o condenado.
O cônego percebeu uma ponta de ironia na resposta.
— Lembre-se de que não cabia apenas a Monsenhor proferir o
veredicto. Ele recomendou até o fim a indulgência.
— Não é o que sempre recomenda o costume? — disse Zênon
com certo azedume. — Ecclesia abhorret a sanguine. [78]
— Era sincero dessa vez — replicou cônego, ferido. — Mas,
infelizmente, os crimes de ateísmo e de impiedade são flagrantes, e
assim quis você que fossem. Em matéria de direito comum, nada,
graças a Deus, ficou provado contra você, mas você como eu sabe
que dez presunções equivalem a uma convicção para o povo, e
mesmo para a maioria dos juízes. Antes de tudo, as acusações
daquele deplorável menino, de que sequer desejo lembrar o nome,
o prejudicaram muito…
— Mas o senhor não me imagina misturado aos risos e às
brincadeiras na terma à luz de círios roubados?
— Ninguém o imaginou — disse gravemente o cônego. — Não se
esqueça de que há outras formas de cumplicidade.
— É estranho que para nossos cristãos as pretensas desordens
da carne constituam o mal por excelência — observou
pensativamente Zênon. — Ninguém pune com ódio e repugnância a
brutalidade, a selvageria, a barbárie, a injustiça. Ninguém se
lembrará amanhã de achar obscenas as pessoas de bom coração
que virão contemplar meus estertores entre as chamas.
O cônego cobriu o rosto com uma das mãos.
— Perdoe-me, pai — disse Zênon. — Non decet. [79] Não
cometerei mais a indecência que consiste em mostrar as coisas
como elas são.
— Ousaria eu dizer que o que confunde na aventura de que você
se tornou a vítima é a estranha solidariedade para com o mal —
ponderou o cônego quase em voz baixa. — A impureza sob todas
as formas, infantilidades talvez intencionalmente sacrílegas, a
violência contra um inocente recém-nascido e, por fim, aquela
violência contra si próprio, a pior de todas, cometida por esse Pedro
de Hamaere. Confesso que, de início, todo esse negro assunto me
parecera desmesuradamente ampliado pelos inimigos da Igreja,
senão mesmo inventado por eles. Mas um cristão e um monge que
se suicida é um mau cristão e um mau monge, e esse crime não é
decerto o primeiro crime dele… Não me consola encontrar seu
grande saber misturado a tudo isso.
— A violência cometida contra o filho por aquela infeliz muito se
assemelha à de um animal que devora pouco a pouco um membro
para furtar-se à armadilha na qual a crueldade dos homens o faz
cair — disse amargamente o filósofo. — Quanto a Pedro de
Hamaere…
Ele se conteve prudentemente ao dar-se conta de que a única
coisa que enaltecera naquele homem fora justamente a sua morte
voluntária. Em sua total destituição de condenado, restava-lhe ainda
uma oportunidade a preservar com todo o cuidado e um segredo a
guardar.
— O senhor não veio aqui para reconstituir diante de mim o
processo de alguns desgraçados — disse ele. — Empreguemos
melhor esses preciosos momentos.
— A governanta de João Myers causou-lhe também imenso
prejuízo — recomeçou tristemente o cônego com a teimosia das
pessoas muito idosas. — Ninguém desonraria aquele perverso, o
qual, aliás, eu cria bastante esquecido. Mas a suspeita de veneno a
repôs em todas as bocas. Tenho escrúpulos em preconizar a
mentira, mas o melhor teria sido negar qualquer relação carnal com
essa criada desavergonhada.
— Admira-me que uma das mais temerárias ações de minha vida
haja sido a de deitar-me por duas noites com uma criada — disse
Zênon com escárnio.
Bartolomeu Campanus suspirou: o homem que ele tão
carinhosamente amava parecia entrincheirado.
— Você jamais saberá com que peso seu naufrágio pesa em
minha consciência — arriscou ele, tentando uma nova abordagem.
— Não falo de seus atos, sobre os quais pouco sei, e que quero crer
inocentes, embora o confessionário me ensine que os piores
pecados podem aliar-se a virtudes como as suas. Falo dessa fatal
rebelião do espírito que transformaria em vício a própria perfeição, e
da qual talvez haja eu, sem pretendê-lo, lhe inculcado os germes.
Como o mundo mudou, e como as ciências e a Antiguidade
pareciam benéficas no tempo em que eu estudava letras e artes…
Quando penso que fui o primeiro a ensinar-lhe essas Escrituras que
você despreza, pergunto-me se um mestre mais firme ou mais culto
do que eu era…
— Não se aflija, optime pater — disse Zênon. — A rebelião que o
inquieta estava em mim, ou talvez em nosso século.
— Seus desenhos de bombas voadoras e de veículos
impulsionados pelo vento que faziam rir os juízes levaram-me a
pensar em Simão, o mágico — disse o cônego, erguendo para ele
olhos inquietos. — Mas pensei também nas quimeras mecânicas da
sua juventude, que só produziram confusão e tumulto. Hélas! Foi
naquele dia que obtive da Regente para você a segurança de um
lugar que lhe teria aberto uma carreira de glórias…
— Ela me levaria possivelmente ao mesmo ponto por outros
caminhos. Sabemos menos sobre os itinerários e o fim de uma vida
humana do que sobre suas migrações o pássaro.
Perdido num devaneio, Bartolomeu Campanus revia o clérigo de
vinte anos. Era dele que o cônego queria salvar o corpo, ou pelo
menos a alma.
— O senhor não deve atribuir maior valor do que eu a essas
fantasias mecânicas, que não são, em si mesmas, nem fastas nem
nefastas — continuou desdenhosamente Zênon. — Ocorre com elas
o mesmo que com os achados do alquimista que o afastam da
ciência pura, mas que às vezes a ativam ou a fecundam. Non
cogitat qui non experitur. [80] Mesmo na arte do médico, à qual
particularmente me apliquei, a invenção vulcânica e alquímica
desempenha seu papel. Mas confesso que, sendo a raça humana o
que sem dúvida continuará a ser até o fim dos séculos, não é
aconselhável que se habilitem loucos para destruir o mecanismo
das coisas e furiosos para subir ao céu. Quanto a mim, e na
condição em que o Tribunal me colocou — acrescentou com um riso
seco que horrorizou Bartolomeu Campanus —, vim repreender
Prometeu por haver dado o fogo aos mortais.
— Vivi oitenta anos sem desconfiar até onde ia a malignidade dos
juízes — disse com indignação o cônego. — Jerônimo van Palmaert
se regozijou quando ordenaram que você fosse explorar seus
mundos infinitos, e Le Cocq, esse rato de esgoto, sugeriu por
zombaria que o enviassem para combater Guilherme de Nassau
num bombardeiro celeste.
— Ele não perde por esperar. Essas quimeras se concretizarão no
dia em que a espécie humana a elas se dedicar tão obstinadamente
quanto o fez para construir seus Louvres e suas catedrais. Ele
descerá do céu, o Rei dos Terrores, com seus exércitos de
gafanhotos e seus brinquedos de hecatombe… Ó besta cruel! Nada
restará sobre a terra, sob a terra ou dentro da água que não seja
perseguido, arruinado ou destruído… Abre-te abismo eterno, e
engole enquanto é tempo a raça dissoluta…
— O quê? — perguntou o cônego alarmado.
— Nada — respondeu distraidamente o filósofo. — Eu recitava
para mim mesmo uma das minhas Profecias grotescas.
Bartolomeu Campanus suspirou. A angústia fora muito forte para
aquele cérebro todavia sólido. A proximidade da morte o fazia
delirar.
— Você perdeu inteiramente sua fé na sublime excelência do
homem — disse ele sacudindo tristemente a cabeça. — Começa-se
por duvidar de Deus…
— O homem é um empreendimento que tem contra si o tempo, a
necessidade, a sorte e o imbecil e sempre crescente primado dos
números — disse mais pausadamente o filósofo. — Os homens
matarão o homem.
Ele caiu num longo silêncio. Aquele acabrunhamento pareceu um
bom indício ao cônego, que nada mais temia senão a intrepidez de
uma alma demasiado segura de si, couraçada a um só tempo contra
o arrependimento e o medo. Prosseguiu cautelosamente:
— Devo então acreditar, como disse você ao bispo, que a Grande
Obra não tem para você outro objetivo que não seja o de
aperfeiçoar a alma humana? Se assim é — continuou num tom
involuntariamente decepcionado —, estaria você mais perto de nós
do que Monsenhor e eu ousamos crer, e aqueles mágicos arcanos,
que jamais contemplei a não ser de longe, se reduzem àquilo que a
Santa Igreja ensina diariamente aos fiéis.
— Sim — disse Zênon. — Há mil e seiscentos anos.
O cônego ficou indeciso quanto a uma ponta de sarcasmo que
essa resposta poderia conter. Mas os instantes eram preciosos. E
foi em frente.
— Meu querido filho, será que imagina que vim aqui para sustentar
com você um debate cuja ocasião já passou? Tenho melhores
razões para estar aqui. Monsenhor observou-me que não se trata,
no seu caso, de falar propriamente em heresia, como o seria em
relação àqueles detestáveis sectários que hoje combatem a Igreja,
mas de impiedades sábias cujo perigo só é evidente para os doutos.
O reverendíssimo bispo assegurou-me que suas Proteorias,
condenadas justamente por rebaixarem nossos santos dogmas ao
nível de vulgares noções disseminadas até entre os piores idólatras,
poderiam outrossim servir a uma nova Apologética: bastaria que as
mesmas proposições demonstrassem em nossas verdades cristãs o
coroamento das intuições infusas na natureza humana. Você sabe
tanto quanto eu que tudo não passa de uma questão de direção…
— Creio compreender para onde se encaminha esse discurso —
disse Zênon. — Se a cerimônia de amanhã for substituída pela de
uma retratação…
— Não espere tanto — replicou o cônego com prudência. — Não é
a liberdade que lhe oferecem. Mas Monsenhor se empenharia por
obter seu confinamento in loco carceris [81] numa casa religiosa da
escolha dele; suas futuras comodidades dependerão das garantias
que você haverá de saber como dar à boa causa. Você sabe que as
prisões perpétuas são aquelas das quais se dá quase sempre um
jeito de sair.
— Seus socorros chegam tarde demais, optime pater — murmurou
o filósofo. — Melhor fora amordaçar antes meus acusadores.
— Não nos gabamos por lisonjear o procurador de Flandres —
disse o cônego, engolindo em seco o azedume que lhe causara a
inútil interferência junto aos abastados Ligres. — Um homem dessa
espécie condena da mesma forma que um cão se lança à sua
presa. Tivemos de deixar seguir os trâmites, quites para utilizarmos
em seguida os poderes que nos restam. As ordens menores que
outrora você recebeu o condicionam às censuras da Igreja, mas
também lhe asseguram proteções que a grosseira justiça secular
não oferece. Se lhe interessa a verdade, tremi até o fim com medo
de que você, por provocação, fizesse alguma confissão
irreparável…
— Teria o senhor, entretanto, que me admirar, se eu a tivesse feito
por contrição.
— Eu ficaria grato se você não confundisse o Tribunal de Bruges
com as sessões da penitência — disse o cônego, impaciente. — O
que conta aqui é que o deplorável Frei Cipriano e seus cúmplices se
contradisseram, que estamos livres da lavadora de louça por havê-
la trancafiado entre os loucos, e que se eclipsaram os maledicentes
que o acusavam de haver cuidado do assassino de um capitão
espanhol… Os crimes que só dizem respeito a Deus são de nossa
alçada.
— O senhor inclui entre as perversidades essa assistência
prestada a um ferido?
— Meu parecer não importa — disse evasivamente o cônego. —
Minha opinião, se você quer saber, é a de que todo serviço prestado
ao próximo deve ser considerado meritório, mas a ele se associa, no
seu caso, uma rebelião, que de resto jamais o é. O finado prior, que
às vezes pensava mal, muito terá aplaudido, sem dúvida, essa
caridade sediciosa. Congratulemo-nos, ao menos, por não ter sido
possível fornecer a prova.
— Fariam-no sem esforço se seus bons ofícios não me
houvessem poupado a tortura — disse o prisioneiro com um dar de
ombros. — Fico-lhe desde já agradecido.
— Estamos resguardados pela máxima Clericus regulariter
torquari non potest per laicum [82] — proferiu o cônego com o ar de
um homem que registra um triunfo. — Todavia, lembre-se de que,
com relação a certos pontos, como no caso dos costumes, você
permanece enfaticamente suspeito, e terá de apresentar-se novis
supervenientibus inditiis. [83] E o mesmo ocorrerá em matéria de
rebelião. Pense o que lhe aprouver com relação aos poderes deste
mundo, mas entenda que os interesses da Igreja e os da ordem não
deixarão de ser um só interesse enquanto os rebeldes tiverem parte
com a heresia.
— Compreendo tudo isso — disse o condenado, inclinando a
cabeça. — Minha precária segurança dependeria inteiramente da
boa vontade do bispo, cuja força poderá minguar, ou alterar-se o
seu ponto de vista. Nada garante que, dentro de seis meses, não
esteja eu exatamente tão próximo às chamas quanto agora.
— Não é um temor contra o qual você deveria ter-se precavido a
vida inteira? — perguntou o cônego.
— Na época em que o senhor me ensinava os rudimentos das
letras e das ciências, um fulano qualquer, a quem se culpou por um
crime falso ou verdadeiro, foi queimado em Bruges, e um de nossos
criados contou-me seu suplício — disse o prisioneiro à guisa de
resposta. — Para que o espetáculo se tornasse mais interessante,
amarraram-no ao poste com uma longa corrente, o que lhe permitiu
correr todo esbraseado até cair de cara no chão ou, para ser franco,
nas brasas. Digo-me com frequência que esse suplício poderia
servir de alegoria à condição de um homem que se deixa quase
livre.
— Julga você que não nos achamos todos na mesma situação? —
perguntou o cônego. — Tive uma existência calma e, ouso dizer,
inocente, mas não se vive oitenta anos sem saber o que seja o
constrangimento.
— Calma, sim — disse o filósofo. — Inocente, não.
Apesar do esforço de ambos, o diálogo entre eles readquiria
sempre o tom quase quizilento dos antigos debates que
sustentavam mestre e aluno. O cônego, resolvido a tolerar tudo,
rezou interiormente para que lhe fossem concedidas as palavras
que convencem.
— Iterum peccavi [84] — disse Zênon afinal com uma voz mais
pausada. — Mas não se admire, meu pai, de que suas bondades
possam parecer uma armadilha. Meus poucos encontros com o
reverendíssimo bispo não me provaram que ele seja um homem
cheio de piedade.
— Nem o bispo o ama nem Le Cocq o odeia — disse o cônego,
reprimindo as lágrimas. — Só eu… Mas, além de você não passar
de um peão na partida que se disputa entre eles — prosseguiu o
cônego num tom mais sereno —, Monsenhor não é desprovido de
vaidade humana. e vangloria-se de recambiar para Deus um ímpio
capaz de persuadir seus semelhantes. A cerimônia de amanhã será
para a Igreja uma vitória mais sensível do que o seria sua morte.
— O bispo deve levar em conta que as verdades cristãs teriam em
mim um apologeta muito comprometido.
— É aí que você se engana — replicou o ancião. — As razões que
levam um homem a retratar-se são logo esquecidas, mas seus
escritos perduram. Nesse momento, alguns de seus amigos veem
na sua permanência suspeita em São Cosme a humilde penitência
de um cristão que se arrepende por haver vivido em erro e muda de
nome para entregar-se obscuramente às boas obras. Deus me
perdoe — acrescentou ele com um tímido sorriso — se eu mesmo
não citei o exemplo de Santo Aleixo, que voltou disfarçado de
mendigo para viver no palácio onde nascera.
— Santo Aleixo arriscava-se a cada instante a ser reconhecido por
sua piedosa esposa — gracejou o filósofo. — Minha força de alma
não teria ido tão longe.
Bartolomeu Campanus franziu o cenho, novamente chocado com
essa petulância. Zênon leu no velho rosto uma dor que lhe deu
pena. Continuou suavemente:
— Minha morte parecia certa, e nada mais eu tinha a fazer senão
mergulhar por algumas horas in summa serenitate… [85] A supor-me
capaz disso — prosseguiu com um aceno amigável de cabeça que
pareceu estapafúrdio ao cônego, mas que se dirigia a um passante
a ler Petrônio numa rua de Innsbruck. — Mas o senhor me tenta,
meu pai: vejo-me a explicar com toda sinceridade a meus leitores
que o camponês que pilheriava pelo fato de possuir em seu trigal
infinidades de Jesus Cristo é um bom tema para gracejos, mas que
o pândego seria decerto mau alquimista, ou ainda que os ritos e os
sacramentos da Igreja têm tantas e às vezes mais virtudes do que
meus medicamentos específicos. Não lhe digo que creio — aduziu
ele, prevendo um movimento de alegria por parte do cônego —, digo
que o simples não deixou de me parecer uma resposta, o que não
significa que eu esteja prestes a pronunciar um simples sim.
Enclausurar o inacessível princípio das coisas no interior de uma
Pessoa talhada à imagem do homem parece-me ainda uma
blasfêmia, e no entanto sinto à minha revelia não sei que deus
presente nessa carne que amanhã será fumaça. Ousarei dizer que é
esse deus que me obriga a lhe dizer não? Não obstante, toda a
percepção do espírito repousa em fundamentos arbitrários: por que
não aqueles outros? Toda doutrina que se impõe às multidões dá
garantias à inépcia humana: não seria diferente se, por acaso,
Sócrates tomasse amanhã o lugar de Maomé ou do Cristo. Mas se é
assim — disse ele, passando a mão sobre a fronte com uma súbita
fadiga —, por que renunciar à salvação do corpo e às delícias do
acordo mútuo? Parece-me que foi já há séculos que considerei e
reconsiderei tudo isso…
— Deixe-me guiá-lo — disse quase ternamente o cônego. — Só
Deus será juiz do grau de hipocrisia que conterá amanhã sua
retratação. Você não é você mesmo: o que você toma por uma
mentira talvez seja uma autêntica profissão de fé que se formula à
sua revelia. A verdade tem segredos para insinuar-se numa alma
que não mais se entrincheira contra ela.
— Diga o mesmo da impostura — ponderou com calma o filósofo.
— Não, meu pai excelente, tenho às vezes mentido para viver, mas
começo a perder minha aptidão para a mentira. Entre o senhor e
nós, entre as ideias de Jerônimo van Palmaert, as do bispo e as
suas, de um lado, e as minhas, de outro, há aqui e ali algum
parentesco, frequente compromisso e jamais vínculo constante. São
como curvas traçadas a partir de um plano comum, que é o intelecto
humano, mas logo se afastam para em seguida se reaproximarem,
depois outra vez se distanciam umas das outras, cruzando-se às
vezes em suas trajetórias ou, ao contrário, confundindo-se com um
segmento destas, mas com o qual ninguém sabe se elas se reúnem
ou não em um ponto para além de nosso horizonte. É falso declará-
las paralelas.
— Você diz nós — murmurou o cônego com uma espécie de
pavor. — E no entanto está só.
— É verdade — observou o filósofo. — Felizmente, não disponho
de listas de nomes para fornecê-las a quem quer que seja. Cada um
de nós é seu único mestre e seu único adepto. A experiência se
refaz a cada instante a partir de nada.
— O finado Prior dos Franciscanos, que, por menos que lhe
custasse, era um bom cristão e um religioso exemplar, não pôde
saber que abismo de rebelião escolheu você para viver — disse
quase acrimoniosamente o cônego. — Você lhe terá sem dúvida
muito e frequentemente mentido.
— O senhor se engana — retrucou o prisioneiro, lançando um
olhar quase hostil a esse homem que o quisera salvar. — Nós nos
reencontrávamos para além das contradições.
Zênon se levantou como se lhe coubesse dar por terminada a
visita. A mágoa do ancião transformou-se em cólera.
— Sua obstinação é uma fé ímpia da qual você se julga o mártir —
disse com indignação. — Você parece querer obrigar o bispo a lavar
as mãos…
— Essa expressão é infeliz — observou o filósofo.
O ancião se curvou para apanhar as duas bengalas que lhe
serviam de muletas, arrastando rumorosamente sua poltrona. Zênon
inclinou-se e estendeu-as a ele. O cônego pôs-se de pé com
esforço. O carcereiro Hermann Mohr, à espreita no corredor, e
alertado pelo ruído de passos e cadeiras que se removiam, já girava
a chave na fechadura, julgando encerrada a entrevista, mas
Bartolomeu Campanus elevou a voz e gritou-lhe que esperasse um
momento. A porta entreaberta se fechou.
— Cumpri mal minha missão — disse o velho padre com repentina
humildade. — Sua insistência me horroriza, pois equivale a uma
completa insensibilidade no que toca à sua alma. Saiba você ou
não, é apenas o falso pudor que o faz preferir a morte à
admoestação pública que antecede a retratação…
— Com círio aceso, e resposta em latim ao discurso latino de
Monsenhor — disse sarcasticamente o prisioneiro. — Seria, admito,
passar por maus momentos…
— A morte também — respondeu profundamente magoado o
ancião.
— Confesso-lhe que, num certo grau de loucura, ou de sabedoria
ao contrário, me parece pouco importante que seja eu ou qualquer
outro que se queime — disse o prisioneiro —, como tampouco que
essa execução ocorra amanhã ou daqui a dois séculos. Não me
vanglorio de que sentimentos tão nobres resistam diante do aparato
do suplício: veremos em breve se trago realmente em mim aquela
anima stans et non cadens [86] que nossos filósofos definem. Mas
talvez se tenha em excessivo apreço o grau de firmeza de que dá
prova um homem que morre.
— Minha presença só contribui para endurecê-lo — disse
dolorosamente o velho cônego. — Antes de deixá-lo, entretanto,
quero chamar sua atenção para um benefício legal que
cuidadosamente lhe reservamos e do qual você talvez não se tenha
dado conta. Não ignoramos que você fugiu outrora de Innsbruck
após ser prevenido em segredo de uma ordem de prisão expedida
pela autoridade local. Guardamos silêncio sobre esse fato, que o
colocaria, se viesse à tona, na desastrosa condição de fugitivus, [87]
o que tornaria difícil, senão impossível, sua reconciliação com a
Igreja. Não teria você nesse caso o que temer com relação a certas
inúteis sujeições… Você dispõe ainda pela frente de toda uma noite
para refletir…
— Tudo isso me prova que, durante a vida inteira, fui muito mais
espionado do que eu supunha — disse melancolicamente o filósofo.
Ambos se encaminharam lentamente em direção à porta que o
carcereiro reabrira. O cônego aproximou o seu rosto ao do
condenado.
— No que concerne à dor física — disse ele —, posso garantir-lhe
que, de qualquer modo, você nada tem a temer. Monsenhor e eu
tomamos todas as precauções…
— Agradeço-lhe — respondeu Zênon, lembrando-se com
amargura de que fizera inutilmente o mesmo por Floriano e um dos
noviços.
Uma pesada fadiga se apoderou do velho homem. A ideia de dar
fuga ao prisioneiro passou-lhe pela cabeça; ela era absurda; não se
devia pensar nisso. Quisera conceder a Zênon sua bênção, mas
temia que não fosse bem-recebida, e pela mesma razão não se
atreveu a abraçá-lo. Zênon, por seu turno, fez um movimento para
beijar a mão do velho mestre, mas se conteve, receando que o
gesto mostrasse algo de servil. O que o ancião tentara pelo filósofo
não conseguira fazer com que este o amasse.

Para chegar ao cartório, com todo aquele mau tempo, o cônego


recorrera a uma liteira; os carregadores transidos de frio o
esperavam lá fora. Hermann Mohr insistiu para que Zênon subisse à
sua cela antes de reconduzir o visitante até à soleira da porta.
Bartolomeu Campanus viu seu antigo aluno galgar os degraus da
escada em companhia do carcereiro. O porteiro do cartório, abrindo
e fechando uma após outra uma série de portas, ajudou em seguida
o eclesiástico a subir na liteira e correu sobre ele a cortina de couro.
Com a cabeça apoiada num coxim, Bartolomeu Campanus recitava
ardorosamente as orações dos agonizantes, embora esse ardor
fosse apenas maquinal; as palavras rolavam-lhe entre os lábios sem
que seu pensamento pudesse acompanhá-las. O trajeto do cônego
passava pela Praça Central. A execução ali teria lugar no dia
seguinte, se a noite entrementes não aconselhasse o prisioneiro, e
Bartolomeu Campanus duvidava disso por conhecer aquele orgulho
luciferino. Ele se recordou de que, um mês antes, os supostos Anjos
haviam sido supliciados fora da cidade, nos arredores da Porta da
Santa Cruz, pois os crimes carnais eram considerados como tão
abomináveis que sua punição devia ser quase clandestina; a morte
de um homem culpado por impiedade e ateísmo constituía, ao
contrário, um espetáculo sob todos os aspectos edificante para o
povo. Pela primeira vez em sua vida, essas providências devidas à
sabedoria dos antepassados pareceram discutíveis ao ancião.
Era véspera da Terça-Feira Gorda; o povo em festa já tomava as
ruas, fazendo e dizendo as impertinências habituais. O cônego não
ignorava que o anúncio de um suplício se somava, nesse caso, à
excitação da canalha. Por duas vezes, foliões pararam a liteira e
abriram a cortina para olhar o que havia lá dentro, frustrando-se sem
dúvida por não encontrarem alguma bela dama a quem assustar.
Um desses tolos trazia uma máscara que imitava a caratonha de um
bêbado e regalou Bartolomeu Campanus com gritos desconexos; o
segundo introduziu sem nada dizer entre as cortinas uma face lívida
de fantasma. Atrás dele, um mascarado com cabeça de porco
tocava uma ariazinha de flauta.
Assim que chegou à soleira de sua porta, o ancião foi recebido
solicitamente por sua sobrinha adotiva, Wiwine, a quem tomara
como governanta por ocasião da morte do Cura Cleenwerck e que o
esperava, como sempre, no pequeno passo abobadado de sua casa
bem aquecida, espiando por um postigo se o tio viria cedo para
cear. Wiwine, que engordara e se tornara tola como sua tia
Godoleva, já recebera, aliás, seu quinhão de esperanças e
decepções terrestres: noivaram-na tardiamente com um primo
chamado Nicolau Cleenwerck, pequeno senhor feudal das cercanias
de Caestre que possuía boas propriedades imobiliárias e exercia a
cobiçada função de bailio de Flandres; por azar, aquele prometido
tão prendado se afogara pouco antes das bodas ao atravessar o
açude de Dickenbusch na época do degelo. A cabeça de Wiwine
não conseguia refazer-se do golpe; contudo, continuara a zelosa
dona de casa e a hábil cozinheira, como outrora sua tia; ninguém a
superava no preparo de vinhos cozidos e compotas de frutas.
Bartolomeu Campanus tentara inutilmente por aqueles dias fazer
com que a sobrinha adotiva rezasse por Zênon, de quem ela não
mais se lembrava, mas conseguira persuadi-la, uma vez ou outra, a
arranjar uma cesta com vitualhas para um pobre prisioneiro.
O cônego recusou a carne assada que Wiwine lhe preparara e
subiu logo para deitar-se. Tremia de frio; ela providenciou então um
braseiro cheio de cinzas ainda quentes. Ele custou a conciliar o
sono sob seu edredom bordado.
O fim de Zênon

Quando a porta da cela se fechou às suas costas com um grande


ruído de ferragens, Zênon puxou pensativamente o escabelo e
sentou-se diante da mesa. Ainda havia luz, e o obscuro cárcere das
alegorias alquímicas era, no seu caso, uma prisão bastante clara.
Através da malha miúda da grade que protegia a janela, uma alvura
plúmbea subia do pátio coberto de neve. Antes de ser substituído
pelo guarda da noite, Gil Rombaut, como sempre, deixara numa
bandeja a ceia do prisioneiro; ela era naquela noite mais copiosa
ainda do que de costume. Zênon a rejeitou: parecia-lhe absurdo e
quase obsceno transformar esses alimentos em quilo e sangue que
não mais utilizaria. Mas tomou distraidamente alguns goles de
cerveja numa caneca de estanho e bebeu licor amargo.
Sua entrevista com o cônego pusera fim àquilo que, desde a
sentença da manhã, fora para ele a solenidade da morte. Seu
destino, supostamente selado, oscilava de novo. A oferta que
recusara permanecia válida algumas horas depois: um Zênon capaz
de acabar por dizer sim se acoitava em algum canto de sua
consciência, e a noite que em breve se escoaria, poderia dar ao
pobre-diabo alguma vantagem sobre si próprio. Bastava que uma
chance em mil subsistisse: o futuro, tão curto e para ele tão fatal, daí
extraía, apesar de tudo, um elemento de incerteza que era a própria
vida, e, por uma estranha dispensa, que ele já observara à
cabeceira de seus doentes, a morte conservava assim uma espécie
de ilusória irrealidade. Tudo flutuava: tudo flutuaria até o último
suspiro. E, no entanto, sua decisão fora tomada: ele reconhecia isso
menos nos sublimes signos da coragem e do sacrifício do que em
não se sabe qual obstinada forma de recusa que parecia fechá-lo
como um bloco às influências externas, e quase à própria sensação.
Instalado em seu próprio fim, já era Zênon in aeternum. [88]
Por outro lado, enroscada por assim dizer detrás da resolução de
morrer, estava uma outra, mais secreta, e que cuidadosamente ele
ocultara do cônego, a de morrer pelas próprias mãos. Mas ali,
também, uma imensa e estafante liberdade ainda lhe restava: podia
voluntariamente agarrar-se a essa decisão ou renunciar a ela, fazer
o gesto que tudo termina ou, ao contrário, aceitar aquela mors
ignea [89] em quase nada distinta da agonia de um alquimista que
incendeia por descuido sua longa túnica nas brasas de um atanor.
Essa escolha entre a execução e a morte voluntária, suspensa na
ponta de uma fibrila de sua substância pensante, não mais oscilava
entre a morte e uma espécie de vida, como o fizera a de aceitar ou
recusar retratar-se, pois que concernia ao meio, ao lugar e ao
momento exato. Cabia-lhe decidir se seus dias terminariam na
Praça Central, em meio aos apupos da multidão, ou tranquilamente
entre aquelas paredes cinzentas. Cabia-lhe, em seguida, atrasar ou
antecipar de algumas horas o supremo ato, de escolher, se
quisesse, ver raiar o sol de uma certa manhã de 18 de fevereiro de
1569, ou de expirar na véspera, antes que fosse noite fechada. Com
os cotovelos sobre os joelhos, imóvel, quase sereno, fitava diante de
si o vazio. Como no olho de um furacão, quando perigosamente se
estabelece uma calmaria, nem o tempo nem o espírito se moviam
mais.
O sino da Igreja de Nossa Senhora soou: ele contou as badaladas.
Súbito, eclodiu uma revolução: a calmaria cessou, levada pela
angústia como por um vento que redemoinha em círculos. Restos
de imagens se retorciam naquela tempestade, arrancados ao auto
de fé em Astorga trinta e sete anos antes, aos recentes pormenores
do suplício de Floriano, aos encontros fortuitos com os horrendos
resíduos da justiça punitiva nas encruzilhadas de cidades por onde
ele passara. Dir-se-ia que a novidade do que estava por vir atingia
subitamente dentro dele o entendimento do corpo, fornecendo cada
sentido a sua quota de horror: viu, saboreou, farejou e ouviu o que
seriam no dia seguinte, na Praça do Mercado, os incidentes de seu
fim. A alma carnal, mantida prudentemente à parte das deliberações
da alma racional, aprendia de repente e por dentro o que Zênon lhe
ocultara. Algo nele se rompeu como uma corda; sua saliva secou;
os pelos dos pulsos e do dorso da mão se eriçaram; seus dentes
batiam. Essa desordem jamais experimentada por ele assustou-o
mais do que todo o resto de sua desventura: apertando com ambas
as mãos as mandíbulas, respirando longamente para deter o
coração, conseguiu reprimir essa espécie de sublevação do corpo.
Era demais: urgia pôr termo a isso antes que uma ruína de sua
carne ou de sua vontade o tornasse incapaz de remediar seus
próprios males. Riscos, não previstos até então e que impediam
uma resolução racional, apresentavam-se em tropel a seu espírito
outra vez lúcido. Lançou à sua própria situação o olhar do cirurgião
que procura em torno de si seus instrumentos e avalia suas
chances.
Eram quatro horas; sua refeição fora servida, e a cortesia chegou
ao ponto de lhe deixarem a vela de sempre. O chaveiro que o
trancafiara quando de sua volta da sala do cartório só reapareceria
após o toque de recolher, passando em seguida mais uma vez
quando amanhecesse. Tudo indicava, pois, que lhe caberia a
escolha de dois longos intervalos durante os quais realizar sua
tarefa. Mas essa noite diferia das outras: uma inoportuna mensagem
podia vir do bispo ou do cônego, o que implicaria reabrir a porta;
uma feroz piedade punha às vezes junto ao condenado um frade
qualquer ou o membro de uma Confraria da Boa Morte encarregado
de santificar o moribundo, persuadindo-o a rezar. Era possível
também que se previsse sua intenção; iam mesmo, de uma hora
para outra, amarrar-lhe talvez as mãos. Ele perscrutou rangidos e
passos à sua volta; tudo estava calmo, mas os instantes eram mais
valiosos do que jamais o haviam sido por ocasião das partidas
forçadas de outrora.
Com a mão ainda trêmula, soergueu o tampo da escrivaninha
colocada sobre a mesa. Entre duas finas pranchas que aos olhos
pareciam juntas, o tesouro que escondera ali ainda se encontrava:
uma lâmina delgada e flexível, com menos de duas polegadas de
comprimento, que carregara de início no forro do gibão, removendo-
a para esse esconderijo depois que a escrivaninha que lhe
devolveram foi devidamente vistoriada pelos juízes. Todos os dias,
por vinte vezes, ele se certificava da presença do objeto que outrora
não se dignaria sequer apanhar da sarjeta. Desde sua detenção no
laboratório de São Cosme, depois por duas vezes, após a morte de
Pedro de Hamaere e quando Catarina trouxe a público a questão
dos venenos, revistaram-no à procura de frascos ou pastilhas
suspeitos, e ele se felicitava por haver prudentemente renunciado a
andar com esses produtos inestimáveis, mas frágeis ou perecíveis,
quase impossíveis de conservar consigo ou dissimular por muito
tempo numa cela nua, e que teriam infalivelmente denunciado seu
projeto de morrer. Perdia com isso o privilégio de uma dessas
mortes fulminantes, que são as únicas misericordiosas, mas a
pontinha de navalha cuidadosamente afiada lhe evitaria ao menos
ter de rasgar sua roupa de cama para formar laços e nós nem
sempre eficazes, ou de exaurir-se talvez à toa com um caco de
louça.
A passagem do medo convulsionara suas entranhas. Ele se dirigiu
à selha colocada a um canto do quarto e esvaziou-se. O odor das
matérias fermentadas e rejeitadas pela digestão humana invadiu-lhe
as narinas, recordando-lhe mais uma vez as íntimas conexões entre
a podridão e a vida. Seus cordões foram reamarrados com mão
firme. O cântaro sobre a tábua estava cheio de água gelada;
umedeceu o rosto, retendo sobre a língua uma gotícula. Aqua
permanens: [90] para ele, seria a água pela última vez. Quatro
passos o reconduziram de volta ao leito sobre o qual dormira ou
velara por sessenta noites: dentre os pensamentos que lhe
cruzavam vertiginosamente o espírito, estava aquele de que a
espiral das viagens o restituíra a Bruges, que Bruges se restringira à
área de uma prisão, e que a curva convergia afinal para aquele
estreito retângulo. Um murmúrio escapou por detrás de si vindo das
ruínas de um passado mais desdenhado e mais abolido do que os
outros, a voz suave e rouca de Frei Juan falando latim com sotaque
castelhano num claustro banhado de sombras: Eamus ad
dormiendum, cor meum. [91] Mas não se tratava de dormir. Jamais
sentira-se ele de corpo e alma tão alerta: a economia e a rapidez de
seus gestos eram os de seus grandes momentos de cirurgião.
Desdobrou a grossa coberta de lã, espessa como feltro, e dela fez
no chão, ao lado da cama, uma espécie de receptáculo que reteria e
absorveria, ao menos em parte, o líquido vertido. Para maior
segurança, amarrotou sua camisa da véspera e torceu-a à guisa de
chumaço diante da porta. Era preciso evitar que um filete sobre o
solo ligeiramente inclinado alcançasse muito depressa o corredor, e
que Hermann Mohr, ao levantar por acaso a cabeça acima de seu
banco, percebesse sobre as lajes uma mancha negra. Sem fazer
barulho, descalçou os sapatos. Tamanho excesso de precaução era
dispensável, mas o silêncio parecia uma salvaguarda.
Estendeu-se sobre o leito, ajeitando a cabeça no duro travesseiro.
Assaltou-o um remorso em relação ao Cônego Campanus, a quem
essa morte encheria de horror, logo ele, que, não obstante, fora o
primeiro a dar-lhe a ler os Antigos, cujos heróis pereciam dessa
forma; a ironia, porém, crepitou-lhe à superfície do espírito sem
distraí-lo de seu objetivo único. Rapidamente, com a destreza de
cirurgião-barbeiro graças à qual sempre fizera nome em meio às
virtudes mais louvadas e mais incertas do médico, dobrou-se ao
meio, erguendo ligeiramente os joelhos, e seccionou a veia tibial, na
face externa do pé esquerdo, num dos pontos habituais da sangria.
Depois, mais depressa, já na posição anterior, e de novo apoiado no
travesseiro, apressando-se para prevenir uma síncope sempre
possível, tateou e cortou à altura do pulso a artéria radial. A breve
dor superficial causada pela pele rasgada mal foi percebida. As
fontes jorraram; o sangue esguichou impetuosamente como sempre
o faz, ansioso, dir-se-ia, por escapar aos obscuros labirintos em que
circula enclausurado. Zênon deixou pender o braço esquerdo para
facilitar o fluxo. A vitória ainda não era completa; era possível que
alguém por acaso entrasse, e que o arrastassem no dia seguinte
banhado em sangue e envolto por bandagens à fogueira. Mas cada
minuto que passava era um triunfo. Relanceou o olhar sobre o
cobertor já negro de sangue. Compreendia agora o filósofo por que
uma noção grosseira fizera daquele líquido a própria alma, pois que
a alma e o sangue escapavam juntos. Aqueles antigos erros
continham uma verdade singela. Imaginou, com o equivalente a um
sorriso, que a ocasião era bela para concluir suas velhas
experiências sobre a sístole e a diástole do coração. Contudo, os
conhecimentos adquiridos não contavam de agora em diante mais
do que a lembrança dos acontecimentos ou das criaturas
encontradas; ele aderia por alguns momentos ainda ao delgado fio
da pessoa, mas a pessoa já sem lastro não mais se distinguia do
ser. Zênon se ergueu com esforço, não porque lhe importasse fazê-
lo, mas para provar-se que esse movimento ainda era possível.
Chegara com frequência a reabrir uma porta, simplesmente para
certificar-se de que não a fechara atrás de si para sempre, a voltar-
se para um transeunte abandonado a fim de negar a finalidade de
uma partida, demonstrando assim a si próprio sua parca liberdade
de homem. Dessa vez, cumprira-se o irreversível.
Seu coração batia acelerado; uma violenta e desordenada
atividade reinava em seu corpo como num país em ruínas, mas no
qual todos os combatentes não haviam ainda deposto as armas;
uma espécie de enternecimento o tomava em relação a esse corpo
que tanto o servira, que poderia viver, pensando bem, por mais uns
vinte anos, e que ele destruía assim sem poder explicar-lhe que o
poupava dessa forma de piores e mais indignos padecimentos.
Tinha sede, mas nenhum meio de saciar esta sede. Assim como os
três quartos de hora talvez decorridos desde o seu retorno à cela
haviam sido inundados por uma infinidade quase inavaliável de
pensamentos, sensações, gestos que se sucediam com a rapidez
do relâmpago, a distância de alguns côvados que separava o leito
da mesa também se dilatara como o espaço que se distribui entre
as esferas: a caneca de estanho flutuava no extremo de um outro
mundo. Mas a sede cessaria logo. Morria da morte de um desses
feridos que imploram água à margem dos campos de batalha, e que
ele englobava consigo na mesma fria piedade. O sangue da veia
tibial só fluía agora por golfadas; penosamente, como quem ergue
um imenso peso, conseguiu mover o pé para deixá-lo pender fora
do leito. A mão direita, que ainda continuava a apertar a lâmina,
ficara levemente ferida, mas ele já não sentia o talho. Os dedos se
agitavam sobre o peito, procurando vagamente desabotoar o
colarinho do gibão; esforçou-se em vão por reprimir essa inútil
agitação, mas as crispações e a angústia eram bom sinal. Um
calafrio glacial o trespassou como no limiar de uma náusea: era
exatamente assim. Em meio aos ruídos dos sinos, dos estampidos e
dos pássaros estrídulos de volta aos ninhos que lhe feriam o interior
dos ouvidos, escutou exteriormente o som nítido de um
gotejamento: o cobertor empapado não absorvia mais o sangue,
que escorria sobre as lajes. Tentou calcular o tempo necessário para
que a poça escarlate se alongasse até o outro lado da soleira da
porta, para além da frágil barricada de pano. Mas pouco importava:
ele estava salvo. Mesmo se por infelicidade Hermann Mohr abrisse
cedo a porta de intrincados ferrolhos, o espanto, o medo, o percurso
ao longo das escadas em busca de socorro dariam à evasão tempo
de se cumprir. Não se queimaria no dia seguinte senão um cadáver.
O imenso rumor da vida em fuga prosseguia: uma fonte em Eyoub,
o jorro de uma nascente que brotava da terra em Vaucluse, no
Languedoc, uma torrente entre Ostersund e Frösö, nele se
constelaram sem que houvesse necessidade de se lembrar de seus
nomes. Depois, em meio a todo esse ruído, percebeu um estertor.
Respirava por grandes e ruidosas aspirações superficiais que não
mais lhe enchiam o peito; alguém que já não era mais inteiramente
ele, mas que parecia colocar-se um pouco recuado à sua esquerda,
avaliava com indiferença as convulsões da agonia. Assim respira
um corredor esgotado ao atingir a meta. Anoitecera sem que
pudesse saber se era nele ou no quarto: tudo era noite. A noite
também se movia: as trevas se afastavam para dar lugar a outras,
abismo sobre abismo, espessura sombria sobre espessura sombria.
Mas esse negror, distinto do que se vê com os olhos, irradiava cores
nascidas por assim dizer do que lhe faltava: o negro se convertia em
verde lívido, depois em branco puro; o branco pálido se transmutava
em ouro sanguíneo sem que se dissipasse, todavia, o negror
original, assim como os fogos dos astros e a aurora boreal que
latejam no bojo do que, apesar de tudo, é noite negra. Por um
instante que lhe pareceu eterno, um globo escarlate pulsou dentro
dele ou fora dele, e sangrou sobre o mar. Como o sol do verão nas
regiões polares, a esfera resplandecente pareceu vacilar, prestes a
baixar de um grau rumo ao nadir; depois, com um imperceptível
estremecimento, subiu em direção ao zênite, reabsorvendo-se enfim
num dia fulgurante que era ao mesmo tempo a noite.
Ele não via mais, embora os ruídos exteriores ainda o
alcançassem. Como outrora em São Cosme, passos apressados
soaram ao longo do corredor: era o chaveiro que acabara de
perceber no chão uma poça enegrecida. Um momento antes, um
terror teria agrilhoado o agonizante à ideia de ser reconduzido e
forçado a viver e a morrer por mais algumas horas. Mas toda a
angústia terminara: estava livre; o homem que se encaminhava em
sua direção só podia ser um amigo. Fez (ou julgou fazer) um esforço
para se levantar, sem saber ao certo se era socorrido ou se, ao
contrário, era ele que socorria. O ranger das chaves giradas e dos
ferrolhos não passou para ele de um agudíssimo ruído de porta que
se abre. E é até onde se pode ir no fim de Zênon.
Nota da autora

O romance que se acaba de ler teve como ponto de partida uma


narrativa de umas cinquenta páginas, D’après Dürer, publicada com
duas outras novelas, também de fundo histórico, no volume
intitulado La Mort conduit l’attelage, lançado pela Editora Grasset
em 1934. Essas três narrativas, unificadas e ao mesmo tempo
contrastadas entre si por títulos encontrados posteriormente
(D’après Dürer, D’après Grecco, D’après Rembrandt), não
passavam, aliás, de três fragmentos isolados de um enorme
romance concebido e em parte febrilmente composto entre 1921 e
1925, entre meus dezoito e vinte e dois anos de idade. Daquilo que
teria sido um vasto afresco ficcional desdobrando-se por vários
séculos e abrangendo diversos grupos humanos ligados entre si
quer pelos laços do sangue, quer pelos do espírito, as quarenta
páginas iniciais, simplesmente intituladas Zênon, formavam o
primeiro capítulo. Esse romance muito ambicioso foi por algum
tempo desenvolvido paralelamente aos primeiros esboços de uma
outra obra, que viria tornar-se mais tarde as Memórias de Adriano.
Renunciei temporariamente a ambos por volta de 1926, e os três
fragmentos já citados, reduzidos a si próprios em La Mort conduit
l’attelage, apareceram quase inalterados em 1934, apenas
aumentados, no que concerne ao episódio de Zênon, de uma
dezena de páginas bem mais recentes, rápido bosquejo do encontro
de Henrique-Maximiliano e Zênon em Innsbruck n’A obra em negro
dos dias de hoje.
La Mort conduit l’attelage foi na época muito bem-recebido pela
crítica; alguns dos artigos então publicados, quando relidos,
enchem-me ainda de gratidão. Mas o autor de um livro tem suas
razões para ser mais severo do que seus juízes: ele vê mais de
perto as falhas; é o único a saber o que queria e deveria fazer. Em
1955, alguns anos após o término das Memórias de Adriano,
retomei aquelas três narrativas com a intenção de retocá-las em
vista de uma reimpressão. Novamente, a personagem do médico
filósofo e alquimista se me impôs. O capítulo “A conversa em
Innsbruck”, que data de 1956, foi o primeiro resultado dessa
reaproximação; o restante da obra não seria definitivamente redigido
senão em 1962 e 1965. Uma dúzia de páginas, se tanto, além das
cinquenta de outrora, subsistem modificadas e como que reduzidas
a migalhas no extenso romance de hoje, mas a intriga ficcional, que
leva Zênon de seu nascimento ilegítimo em Bruges à morte num
cárcere dessa mesma cidade, permaneceu, em linhas gerais, tal
qual se encontrava antes. A primeira parte d’A obra em negro (“A
vida errante”) acompanhou muito de perto o plano do Zenon-D’après
Dürer, de 1921-1934; a segunda e a terceira partes (“A vida imóvel”
e “A prisão”) são inteiramente inferidas das seis últimas páginas
daquele texto de quarenta anos atrás. [92]
Ignoro se indicações como essas possam desagradar quando
partem do próprio autor e são fornecidas de viva voz. Todavia,
decido passá-las a alguns leitores aos quais interesse a gênese de
um livro. O que pretendo sobretudo sublinhar aqui é que A obra em
negro foi, assim como as Memórias de Adriano, uma daquelas obras
concebidas em minha primeira juventude, depois abandonadas e
retomadas ao sabor das circunstâncias, mas com as quais a autora
conviveu a vida inteira. A única diferença, inteiramente acidental, foi
a de que um esboço daquilo que devia ser A obra em negro
apareceu trinta e um anos antes da conclusão do texto definitivo, ao
passo que as primeiras versões das Memórias de Adriano não
tiveram essa sorte ou essa infelicidade. Quanto ao resto, e do
mesmo modo, os dois romances foram elaborados ao correr dos
anos mediante sucessivas operações de terraplenagem, até que,
enfim, em ambos os casos, as obras fossem compostas e
rematadas de um só impulso. Já disse, aliás, o que penso das
vantagens, pelo menos no que me concerne, desses longos
convívios de um autor com uma personagem escolhida ou
imaginada desde a adolescência, mas que só revelam todos os
seus segredos a partir de nossa maturidade. Em todo caso, só
raramente adotei esse método, para justificar a inserção de alguns
detalhes precedentes, e não o fiz senão para evitar certas
confusões bibliográficas.

Muito mais do que a livre recriação de uma personagem real que


tenha deixado seus traços na história, como o Imperador Adriano, a
invenção de uma personagem “histórica” fictícia, como a de Zênon,
parece poder dispensar provas documentais. Na verdade, as
providências tomadas em ambos os casos tiveram por base pontos
de partida semelhantes. No primeiro deles, a romancista, para tentar
representar em toda a sua amplitude a personagem tal como foi,
não estudará jamais com suficiente minúcia apaixonada o dossiê de
seu herói, tal qual a tradição histórica o constituiu; no segundo caso,
para dar à sua personagem fictícia aquela realidade específica,
condicionada pelo tempo e o lugar, sem o que o “romance histórico”
não passa de um baile de máscaras bem ou malsucedido, não teve
à sua disposição senão fatos e datas da vida passada, isto é, a
História.
Supostamente nascido em 1510, Zênon teria nove anos na época
em que o velho Leonardo se extinguia no exílio de Amboise, trinta e
um anos depois do falecimento de Paracelso, de quem o fiz êmulo e
às vezes adversário, trinta e três após o de Copérnico, que só
publicou sua grande obra quando no leito de morte, mas cujas
teorias circulavam há muito sob forma de manuscrito em certos
meios de ideias avançadas, o que explica por que mostro o jovem
clérigo já a par delas nos bancos escolares. Na época da execução
de Dolet, apresentado por mim como seu primeiro “editor”, Zênon
teria trinta e seis anos, e quarenta e três na de Servet, médico como
ele, e como ele também dedicado às pesquisas sobre a circulação
do sangue. Quase contemporâneo do anatomista Vesálio, do
cirurgião Ambroise Paré, do botânico Cesalpino, do matemático e
filósofo Gerolamo Cardano, Zênon morreu cinco anos depois do
nascimento de Galileu e um após o de Campanella. À época de seu
suicídio, Giordano Bruno, condenado a morrer pelo fogo trinta e um
anos depois, teria por volta de vinte anos. Sem que se trate da
tentativa de compor mecanicamente uma personagem sintética — o
que nenhum romancista consciencioso aceita fazer —, numerosos
pontos de sutura vinculam o imaginário filósofo a essas autênticas
personalidades que se escalonam ao longo desse mesmo século,
bem como a algumas outras que viveram nos mesmos lugares,
passaram por aventuras análogas ou tentaram atingir os mesmos
objetivos. Indico aqui certos paralelismos, quer conscientemente
procurados e úteis à concepção do transcurso ficcional, quer, ao
contrário, assinalados muito depois à guisa de verificação.
Assim é que o nascimento ilegítimo de Zênon e sua educação
orientada para uma carreira eclesiástica evocam episódios
semelhantes da biografia de Erasmo, filho de um eclesiástico e de
uma burguesa de Rotterdam, e cuja vida adulta se inicia sob o
hábito de monge agostiniano. O alvoroço causado pela instalação,
entre os artesãos rurais, de um tear mecânico aperfeiçoado, lembra
ocorrências desse gênero sobrevindas em meados do século, a
partir de 1529 em Danzig — onde o idealizador de uma máquina
semelhante foi, conta-se, condenado à morte —, depois, em 1533,
em Bruges, onde os magistrados interditaram uma nova técnica
para tingir lãs, um pouco mais tarde em Lyon, com os progressos
das prensas tipográficas e de estamparia. Certos aspectos violentos
do caráter de Zênon quando jovem poderiam fazer pensar em Dolet,
e o assassinato de Perrotin, por exemplo, evocaria, de longe, o de
Compagni. Os estágios do jovem clérigo junto ao Abade Mitrado da
Catedral de São Bavo, em Gand, que supostamente ali se
interessara pela alquimia, depois junto ao marrano Dom Blas de
Vela, assemelham-se, por um lado, às instruções recebidas por
Paracelso do bispo de Settgach e do abade de Spanheim, e, por
outro, aos estudos cabalísticos de Campanella sob a direção do
judeu Abraão. As viagens de Zênon, sua tríplice carreira de
alquimista, médico e filósofo, e até mesmo seus problemas em
Basileia, tangenciam de perto o que se sabe ou se conta desse
mesmo Paracelso, e o episódio da estada no Oriente, quase
obrigatória na biografia dos filósofos herméticos, inspira-se também
nas peregrinações reais ou lendárias do grande químico suíço-
alemão. A história da escrava resgatada em Argel emerge de
episódios mais ou menos repisados dos romances espanhóis da
época; a de Sign Ulfsdatter, a dama de Frösö, dá conta da
reputação de curandeiras e “ervanárias” das mulheres escandinavas
daquele tempo. A vida cortesã de Zênon na Suécia se apoia, por um
lado, na de Tycho Brahe junto à corte da Dinamarca e, quanto ao
resto, no que se narra de um certo Dr. Teófilo Homodei, que foi
médico de João III da Suécia uma geração depois. A intervenção
cirúrgica realizada em Han calca-se no relato de uma operação do
mesmo gênero contido nas Memórias de Ambroise Paré. Num
âmbito mais secreto, talvez valha a pena consignar que a suspeita
de sodomia (e por vezes sua confirmação, omitida tanto quanto
possível, e negada quando se fazia necessário) foi extraída às vidas
de Leonardo da Vinci, de Paracelso, de Campanella e de Dolet,
assim como a revelo na existência imaginária de Zênon. Do mesmo
modo, as precauções do filósofo alquimista ao buscar protetores,
quer entre os reformados, quer no próprio seio da Igreja, podem ser
encontradas, na época, entre numerosos ateus ou deístas vez por
outra perseguidos. A despeito disso, no debate entre a Igreja e a
Reforma, Zênon, como tantos outros espíritos livres do mesmo
século — entre os quais Bruno, que todavia morreu condenado pelo
Santo Ofício, e Campanella, apesar de seus trinta e um anos de
prisão inquisitorial —, permanece antes situado na vertente católica.
[93]
No plano das ideias, este Zênon — influenciado ainda pela
escolástica, e que contra ela reage, a meio caminho entre o
dinamismo subversivo dos alquimistas e a filosofia mecanicista que
logo depois conquistaria sucesso, entre o hermetismo que coloca
um Deus latente no interior das coisas e um ateísmo que mal ousa
dizer seu nome, entre o empirismo materialista do médico prático e
a imaginação quase visionária do aluno dos cabalistas — apoia-se
também em autênticos filósofos ou cientistas de seu século. Suas
pesquisas científicas foram concebidas em grande parte a partir dos
Cadernos de Leonardo: assim o é, particularmente, no caso das
experiências sobre o funcionamento do músculo cardíaco, que
preludiam as de Harvey. As que se relacionam à subida da seiva e
aos poderes de “embebição” da planta antecipam os trabalhos de
Hales e fundamentam-se sobre uma observação de Leonardo,
representando, por parte de Zênon, um esforço de comprovação de
uma teoria formulada na mesma época por Cesalpino. [94] As
hipóteses sobre as alterações na crosta terrestre provêm igualmente
dos Cadernos, mas é preciso deixar claro que, inspiradas em
filósofos e poetas antigos, meditações dessa espécie são quase
banais na poesia da época. As opiniões sobre os fósseis são muito
próximas das que expressaram não apenas Leonardo da Vinci, mas
também Frascator, a partir de 1517, e Bernard Palissy, cerca de
quarenta anos depois. Os projetos hidráulicos do filósofo, sua
“utopias mecânicas”, em particular os desenhos de máquinas
voadoras e, afinal, a invenção de uma fórmula de fogo líquido
utilizável nas batalhas navais, estão calcados, bem entendido, em
inventos análogos de da Vinci e de outros investigadores do século
XVI; eles exemplificam as curiosidades e as pesquisas de um tipo
de espíritos, nada raros na época, mas que teriam por assim dizer
atravessado subterraneamente o Renascimento, mais próximos da
Idade Média e dos tempos modernos, e que já pressentiam nossos
triunfos e riscos. [95] As precauções contra o mau uso das invenções
técnicas por parte da raça humana, que correm hoje o risco de
parecerem premonitórias, proliferam nos tratados alquímicos,
podendo também ser encontradas, em contexto inteiramente
diverso, em Leonardo e em Cardano.
Em alguns casos, a própria expressão de um sentimento ou de um
pensamento foi tomada de empréstimo aos fatos históricos
contemporâneos da personagem, a fim de melhor autenticar que
tais pontos de vista tinham o seu lugar no século XVI. Uma reflexão
sobre a loucura da guerra foi extraída a Erasmo, uma outra a
Leonardo da Vinci. O texto das Profecias grotescas toma por base
as Profezie (Profecias) de Leonardo, à exceção de duas linhas
tiradas de uma quadra de Nostradamus. A frase sobre a identidade
da matéria, da luz e do raio resume duas curiosas passagens de
Paracelso. [96] A discussão sobre a magia está inspirada em autores
do tempo, como Agrippa de Nettescheim e Gian-Battista della Porta,
mencionados, aliás, de passagem. As citações em latim de fórmulas
alquímicas foram quase todas extraídas a três grandes obras
modernas sobre alquimia — A química na Idade Média (1893), de
Marcelin Berthelot, Psicologia e Alquimia (1944; ed. revista, 1952),
de C. G. Jung, e A tradição hermética (1948), de J. Evola —,
apoiadas cada uma delas em pontos de vista diferentes, mas que
formam em conjunto uma valiosa via de acesso ao domínio ainda
enigmático do pensamento alquímico. A fórmula A obra em negro,
que dá título a este livro, designa nos tratados alquímicos a fase de
separação e de dissolução da substância, e dela se diz ser a mais
difícil etapa da Grande Obra. Discute-se, ainda, se tal expressão se
aplicava às audaciosas experiências sobre a própria matéria, ou se
abrangia simbolicamente as provas do espírito que se liberta das
rotinas e dos preconceitos. Sem dúvida, terá ela significado
alternadamente ou ao mesmo tempo uma e outra coisa.
Os sessenta anos durante os quais transcorre a história de Zênon
assistiram cumprir-se um certo número de acontecimentos que
ainda nos dizem respeito: a cisão do que restava, por volta de 1510,
da antiga Cristandade medieval em duas facções teológica e
politicamente hostis; a falência da Reforma, convertida em
protestantismo, e o esmagamento do que se poderia chamar a sua
ala esquerda; o revés paralelo do catolicismo aprisionado no colete
de ferro da Contrarreforma; as grandes explorações que se haviam
reduzido cada vez mais a simples retalhamento do mundo; o avanço
da economia capitalista, associada aos primórdios da era das
monarquias. Tais fatos, muito amplos para serem vistos pelos
contemporâneos, afetam indiretamente a história de Zênon, mais
diretamente talvez a vida e o comportamento das personagens
secundárias, em sua maioria submissas às rotinas de seu século.
Bartolomeu Campanus foi plasmado a partir do modelo já
anacrônico do eclesiástico do século anterior, para quem a cultura
humanística não era problema. O generoso Prior dos Franciscanos
infelizmente não tem, por força das coisas, senão poucos
abonadores declarados na história do século XVI, mas sua figura se
inspira parcialmente na daquela santa personagem da época que
teve sua plena quota de experiência secular antes de abraçar a
carreira eclesiástica ou de tomar o hábito. O leitor reconhecerá em
suas proposições contra a tortura um argumento, aliás
profundamente cristão, tomado ao pé da letra a Montaigne. O sábio
e político bispo de Bruges foi concebido a partir de outros prelados
da Contrarreforma, não contradizendo o pouco que se sabe do
verdadeiro titular durante aqueles anos. Dom Blas de Vela foi
imaginado a exemplo de um certo Cesar Brancas, Abade da Igreja
de Santo André de Villeneuve-lez-Avignon, grande cabalista expulso
por seus monges em torno de 1597 em virtude de “judaísmo”. A
figura voluntariamente esbatida de Frei Juan recorda a de Frei
Pietro Ponzio, que foi amigo e discípulo do jovem Campanella.
Os retratos de banqueiros e homens de negócios — Simão
Adriansen antes de sua conversão ao anabatismo, os Ligres e sua
ascensão social, Martinho Fugger, ele também personagem fictícia,
mas inserido na autêntica família que governou sub-repticiamente a
Europa do século XVI — seguem muito de perto seus modelos reais
na história financeira da época, subjacente à história como tal.
Henrique-Maximiliano pertence a todo um batalhão de fidalgos
letrados e aventureiros, possuidores de uma modesta bagagem de
sabedoria humanística, que não há necessidade de recordar ao
leitor francês, mas cuja raça infelizmente se extinguiria lá pelo fim do
século. [97] Enfim, Colas Gheel, Gil Rombaut, Josse Cassel e seus
companheiros de condição social mais baixa são vistos tanto quanto
possível através dos escassos documentos relativos à vida do
homem do povo, numa época em que os cronistas e os
historiadores estavam preocupados quase exclusivamente com a
vida burguesa, quando não com a que se levava nas cortes.
Semelhante reflexão poderia ser arriscada quanto às personagens
femininas, as figuras de mulher, à exceção de algumas princesas,
que são geralmente mais esfumadas do que as fisionomias
masculinas.
Uma boa quarta parte dos comparsas que atravessam o livro são,
aliás, tomados tais quais à história ou às crônicas locais: o núncio
della Casa, o procurador Le Cocq, o professor Rondelet, que
escandalizou Montpellier ao fazer dissecar diante de si o cadáver do
próprio filho, o médico Joseph Ha-Cohen e, bem entendido, entre
muitos outros, o almirante Barba-Roxa e o charlatão Ruggieri,
Bernardo Rottmann, Jan Matthyjs, Hans Bockhold, Knipperdolling,
os principais protagonistas do drama de Münster, são todos tirados
de crônicas contemporâneas, e, conquanto o relato da revolta
anabatista haja sido feito unicamente por oposicionistas, os
exemplos de fanatismo e os acessos de febre obsidional são muito
numerosos em nosso tempo para não nos fazer aceitar como
plausível a maioria dos detalhes da atroz aventura deles. O alfaiate
Adriano e sua mulher, Maria, afloram dos Trágicos de Agrippa
d’Aubigné; as belas italianas e seus admiradores franceses em
Siena estão em Brantôme e em Montluc. A visita de Margarida
d’Áustria a Henrique-Justo é imaginária, como o próprio Henrique-
Justo, mas não o são as transações dessa princesa com os
banqueiros, nem sua ternura pelo periquito chamado “Amante
Verde”, cuja morte foi pranteada por um poeta cortesão, nem suas
relações com Madame Laodâmia, referidas por Brantôme; o curioso
comentário sobre os amores femininos que acompanha aqui o
retrato de Margarida d’Áustria foi extraído de uma outra página do
mesmo cronista. O pormenor da dona de casa que amamenta o filho
durante uma visita principesca foi tomado às Memórias de
Margarida de Navarra, que esteve em Flandres uma geração
depois. A embaixada de Lorenzaccio na Turquia a serviço do Rei de
França, sua passagem por Lyon em 1541 com uma comitiva que
incluía pelo menos um “mourisco”, assim como a tentativa de
assassinato de que foi vítima nessa cidade, são fornecidas por
documentos da época. O episódio da peste em Basileia e em
Colônia justifica-se pela frequência desse mal quase endêmico na
Europa do século XVI, mas escolheu-se o ano de 1549 em virtude
das injunções da narrativa e sem referência a um recrudescimento
conhecido em países renanos. A menção feita por Zênon, em
outubro de 1551, aos riscos corridos por Servet (julgado e queimado
em 1553) não é prematura, como se poderia crer, pois leva em
conta os perigos aos quais há muito estava exposto o médico
catalão, tanto nas mãos dos católicos quanto nas dos reformados,
que se entendiam ao menos para destinar ao fogo esse infortunado
homem de gênio. A alusão a uma amante do bispo de Münster não
tem fundamento histórico, mas o nome remete ao da amante de um
célebre bispo de Salzburgo no século XVI. Afora duas ou três
exceções, os nomes das personagens fictícias são todos tirados de
arquivos e genealogias, não raro da própria autora. Alguns nomes
muito conhecidos — como, por exemplo, o do Duque de Alba — são
aqui escritos em sua ortografia do Renascimento.

As peças de acusação reunidas contra Zênon pelas autoridades


tanto civis quanto eclesiásticas e os detalhes jurídicos de seu
processo foram tomados por empréstimo, mutatis mutandis, a uma
meia dúzia de causas célebres ou obscuras da segunda metade do
século XVI e dos princípios do século seguinte, mais particularmente
talvez aos primeiros processos de Campanella, nos quais as
queixas de ordem secular conviviam com as de impiedade e de
heresia. [98] O conflito insidioso que opõe o procurador Le Cocq ao
bispo de Bruges, retardando e complicando o processo de Zênon, é
inventado, como todo esse caso, mas pode ser deduzido da violenta
hostilidade então existente nas cidades de Flandres contra as
prerrogativas administrativas dos novos bispos instaurados sob
Filipe II. A irônica observação do teólogo Jerônimo van Palmaert,
sugerindo que Zênon fosse enviado para explorar seus mundos
infinitos, pertence na verdade a Gaspar Schopp, líder alemão da
Contrarreforma quando da execução de Giordano Bruno; é de
Schopp também a pilhéria que consiste em propor colocar o
prisioneiro (no caso, Campanella) em condições de combater o
herege em bombardeiros voadores de sua própria invenção. A
maioria dos detalhes de procedimento penal especificamente
brugesiano, mencionados nos últimos capítulos, como o suplício
descrito por Zênon ao Cônego Campanus, e que teve lugar em
Bruges no ano de 1521 por um crime não qualificado, o castigo do
fogo por infanticídio e a fogueira armada além das muralhas da
cidade para supliciar acusados de práticas ilícitas, foi tomada ao
livro de Malcolm Letts, Bruges and Its Past [99] particularmente bem
documentado no que concerne aos arquivos judiciários da cidade. O
episódio da Terça-Feira Gorda foi imaginado a partir do que ocorreu
cerca de um século antes em Bruges por ocasião da execução dos
conselheiros do Imperador Maximiliano. O do juiz que dorme
durante a audiência e acorda supondo que a sentença de morte já
fora proferida reproduz, pouco mais ou menos tal e qual, uma
anedota que corria na época sobre Jacques Hessele, juiz no
Tribunal do Sangue.
Certos incidentes históricos, todavia, foram ligeiramente alterados
para permitir que os mesmos figurassem no quadro da presente
narrativa. A autópsia realizada pelo Dr. Rondelet em um filho
falecido de fato ainda jovem foi antedatada de alguns anos, e esse
filho apresentado como no limiar da idade adulta, a fim de que
pudesse tornar-se aquele “belo exemplar da máquina humana”
sobre a qual Zênon medita. Na verdade, Rondelet, cedo famoso por
seus trabalhos de anatomia (e que chegou também a dissecar a
própria sogra), era pouco mais velho que seu imaginário aluno. As
estadas de Gustavo Vasa em seus castelos de Upsala e de
Vadstena foram frequentes, mas as datas que aqui se lhe atribuem
e a menção da presença do rei numa assembleia das
personalidades ilustres durante o outono de 1558 são devidas
sobretudo ao desejo de dar, em poucas linhas, uma ideia mais ou
menos correta dos deslocamentos do monarca e de seus deveres
de estadista.
A data das primeiras comissões concedidas aos capitães dos
“Amotinados do Mar” é autêntica, mas as proezas e o prestígio
desses guerrilheiros estão talvez um pouco antedatados. A história
do “porteiro” do Conde de Egmont funde numa única pincelada a
execução de João de Beausart d’Armentières, militar às ordens de
Egmont, e a espantosa tortura infligida a Pedro Col, porteiro do
Conde de Nassau, que, na verdade, se recusou a ceder uma tela de
Bosch, não ao Duque de Alba, como aqui declarou o Prior dos
Franciscanos, mas a Juan Bolea, oficial de justiça e preboste militar
espanhol; a hipótese de que essa tela estivesse destinada às
coleções do Rei, cujo gosto pela obra de Bosch é bem conhecido, é
de minha lavra e me parece razoavelmente defensável. O episódio
da fuga malograda do Sr. de Battenbourg e de seus fidalgos, assim
como o de sua execução em Vilvorde, está em parte corretamente
inserido na sequência cronológica dos fatos. A cronologia das
intrigas da corte otomana durante o reinado de Solimão foi também
um pouco alterada. Por duas ou três vezes, enfim, o estado de
espírito da personagem que fala introduz no curso da narrativa um
elemento de aparente inexatidão. Aos vinte anos, Zênon, a caminho
da Espanha, definiu esse país como o de Avicena, porque foi
através da Espanha que a filosofia e a medicina árabes
tradicionalmente se difundiram no Ocidente cristão, e muito pouco
se preocupa com o fato de que esse grande homem do século X
haja nascido em Bokhara e falecido em Isfaã. Nicolau de Cusa foi
por muito tempo, senão até o fim, mais tolerante para com a heresia
hussita do que sobre isso diz o bispo de Bruges, mas este último, ao
discutir com Zênon, liga mais ou menos conscientemente o
ecumênico prelado do século XV aos aspectos mais intolerantes da
Contrarreforma.
Mudança mais palpável sob certo prisma é a que se refere à data
dos dois processos de costumes movidos contra dois grupos de
monges agostinianos e franciscanos de Gand e de Bruges, e que
terminaram pelo suplício de treze religiosos daquela primeira cidade
e dez desta última. Os dois processos só tiveram lugar em 1578,
dez anos após a época em que os situo, e num momento em que os
inimigos das ordens monásticas, consideradas como vendidas à
causa espanhola, detinham temporariamente a autoridade naquelas
duas cidades. [100] Ao predatar tais processos com o intuito de
transformar o segundo desses escândalos numa das molas da
catástrofe de Zênon, tentei mostrar, sobre um pano de fundo de
política local forçosamente diferente, mas também sombrio, a
mesma fúria sectária dos inimigos da Igreja, somada ao receio das
autoridades eclesiásticas de parecer abafar um escândalo, o que
levou às mesmas atrocidades legais. Não resulta daí que tais
acusações fossem necessariamente caluniosas. Faço minhas as
reflexões de Bartolomeu Campanus sobre o suicídio de Pedro de
Hamaere, que ocorreu como o descrevo, mas em Gand, pois esse
condenado pertencia ao grupo de monges dessa última cidade, e
não ao de Bruges: essa morte voluntária, fato raríssimo na época, e
considerado pela moral cristã como um crime quase irremissível, dá
a entender que o culpado poderia também infringir outras
prescrições antes de afrontar aquela. Excluindo-se o autêntico
Pedro de Hamaere, o grupo de monges brugesianos foi por mim
reduzido a sete personagens, todas fictícias, e a Senhorita de Loos,
da qual Cipriano se enamora, é também imaginária. Fictícia é
também a hipótese de um vínculo, suposto por Zênon e investigado
pelos juízes, entre os pretensos “Anjos” e os remanescentes de
seitas exterminadas, depois caídas no esquecimento há quase um
século, como a dos adamitas ou a dos Frades e Freiras do Livre
Espírito, suspeitos de análogas promiscuidades sexuais, e dos quais
certos eruditos acreditaram poder, talvez muito sistematicamente,
descobrir vestígios na pintura de Bosch. Sua mobilização na intriga
ficcional tem por objetivo apenas mostrar, sob os alinhamentos
doutrinários do século XVI, a eterna efervescência das antigas
heresias sensuais que também se podem perceber em outros
processos da época. Observe-se, ademais, que o desenho enviado
por escárnio a Zênon da parte de Frei Floriano outra coisa não é
que uma réplica pouco mais ou menos fiel de dois ou três grupos de
figuras pertencentes ao Jardim das delícias terrestres, de Bosch,
hoje no Museu do Prado, e que constava do catálogo das obras de
arte de Filipe II sob o título de Una Pintura de la Variedad del
Mundo.
Sobre a autora

Com pais de origem francesa e belga, Marguerite Yourcenar


nasceu em Bruxelas, em 1903. A escritora cresceu na França, mas
morou em outros países, como Itália, Suíça, Grécia e, por fim,
Estados Unidos, onde viveu no litoral nordeste, na Ilha de Mount
Desert.
Desde muito cedo, dedicou-se ao estudo das línguas clássicas e
das civilizações mediterrâneas, contudo não frequentava escolas: lia
e viajava na companhia de seu pai, um homem muito culto e de
grande influência na
sua vida. A admiração da autora por ele se reflete em seu
sobrenome, que na verdade é um anagrama do de seu pai:
Crayencour.
Marguerite era bastante exigente e reescrevia suas obras várias
vezes, pois considerava que o escritor tem o dever de esgotar seus
temas e apurar o estilo de modo permanente. O fato histórico era
algo com que se preocupava obsessivamente, portanto usava com
maestria as informações alcançadas mediante um paciente trabalho
de investigação documental.
A escritora faleceu em 17 de dezembro de 1987, nos Estados
Unidos. Reconhecida pelo valor de sua extensa obra, Marguerite é
considerada uma das grandes estilistas da língua francesa e foi a
primeira mulher a ingressar na Academia Francesa, em 1980.
Direção editorial
Daniele Cajueiro

Editora responsável
Ana Carla Sousa

Produção editorial
Adriana Torres
André Marinho

Revisão
Raquel Correa
Suelen Lopes

Capa
Victor Burton

Diagramação
Futura

Produção de ebook
S2 Books
[1] Nome dado à região de Milão, a qual, durante os reinados de Luís XII (1498-1515) e de
Francisco I (1515-47), constituiu possessão francesa, sendo depois restituída aos Sforzas.
Ainda durante o século XVI passou ao domínio dos Habsburgos e, doada pelo Imperador
Carlos V a seu filho Filipe (1540), tornou-se possessão espanhola. (N.T.)
[2] Lansquenet, nome dado na França do século XV aos soldados da infantaria alemã.
(N.T.)
[3] Do francês toise, antiga medida de comprimento equivalente a seis pés ou,
aproximadamente, 1,98m. (N.T.)
[4] Santiago de Compostela, cidade da Espanha, um dos maiores centros de romaria de
toda a cristandade. (N.T.)
[5] “Fâmulo”, isto é, criado, servidor, clérigo ou leigo a serviço da residência episcopal.
(N.T.)
[6] “Tolíssima futilidade”. (N.T.)
[7] Momento supremo da síntese alquímica, o mesmo que “mercúrio dos filósofos”, “pedra
filosofal”, “elixir da longa vida”, “crisopeia”, prima materia. (N.T.)
[8] “Este Zênon”. (N.T.)
[9] Marsílio de Pádua (1275-1343), teólogo italiano, Reitor da Universidade de Paris, que se
aliou a Luís IV da Baviera quando do conflito que opôs o imperador ao papa. (N.T.)
[10] Nome que se dá aos habitantes de Tournai, cidade da Bélgica, situada na Província de
Hainaut. (N.T.)
[11] “Ótimo trabalho, meu filho, ótimo trabalho”. (N.T.)
[12] Pratos açucarados servidos antes dos queijos. (N.T.)
[13] Grande taça de metal (prata, cobre, estanho) usada para beber durante a Idade Média.
(N.T.)
[14] Espécie de bolo muito comum em Flandres. (N.T.)
[15] Povo nômade da Sarmácia, originário da Ásia Central e que, dividido em tribos,
alcançou o Danúbio no início da era cristã, misturando-se depois aos godos, hunos e
vândalos. (N.T.)
[16] Espécie de minarete ou almádena de onde, nas cidades medievais, se anunciavam os
principais acontecimentos à população. (N.T.)
[17] Pequeno cão de focinho preto e achatado. (N.T.)
[18] Antiga moeda de cobre francesa, equivalente a um quarto de soldo. (N.T.)
[19] Caribde é o antigo nome dado a um temido torvelinho do Estreito de Messina, Grécia,
a pouca distância do qual se encontra o rochedo de Cila. O piloto que tentava escapar a
um desses perigos podia cair no outro. Daí a expressão: “fugir de Cila para cair em
Caribde”. (N.T.)
[20] Peixe teleósteo da família dos salmonídeos que habita o Lago Léman, em Genebra.
De carne muito delicada, costuma-se prepará-lo à la meunière. (N.T.)
[21] Nome dado a cada um dos membros das tribos nômades do sul do Neguev, dizimadas
pelos israelitas dos tempos de Saul e Davi. (N.T.)
[22] Vinho branco seco, do tipo Riesling, produzido no distrito de mesmo nome, na
Alemanha. (N.T.)
[23] Dança instrumental, viva e ligeira, em ritmo ternário, de origem popular bretã e que
pode ser inserida numa suíte, entre a sarabanda e a giga. (N.T.)
[24] Cão de água, de pelos longos e crespos, empregado sobretudo na caça aos patos
selvagens. (N.T.)
[25] “Não há mais remédio…” (N.T.)
[26] “Doutrina dos Mortos”. (N.T.)
[27] “Sonhos de doente”. (N.T.)
[28] Em hebraico, “esplendor”, ou Sepher Ha Zohar (O Livro dos Esplendores), o principal
livro da Cabala, cuja autoria se atribui a Simão ben Yochai (séc. II). A crítica textual
moderna atribui sua autoria ao cabalista espanhol Moisés de León, que viveu no séc. XII.
(N.T.)
[29] “A mesma coisa em toda a parte”. (N.T.)
[30] Antigo nome do atual bairro de Beyŏglu, em Istambul. (N.T.)
[31] Moeda de ouro que circulava em várias regiões da França. (N.T.)
[32] “O que cose, apenas isto”. (N.T.)
[33] “Sempiterna Tentação”. (N.T.)
[34] “Explorávamos cavernas…”. (N.T.)
[35] “Fala por divertimento” (…) “Este honrado viajante estudou outras coisas além das
celestes; conhece as virtudes dos venenos e, por outro lado, das plantas benéficas que
poderão curar os acessos auriculares de Seu Santíssimo Filho.” (N.T.)
[36] “Por Deus!” (N.T.)
[37] “E esses venenos, será verdade que você os tem em boa quantidade?” (N.T.)
[38] “Eu o fiz pelo senhor.” (N.T.)
[39] “Não tem nome próprio”. (N.T.)
[40] Antigo nome da cidade turca de Edirna. (N.T.)
[41] Em francês, veaux-de-lune. Trata-se, como indica o contexto, de um jogo de palavras
destinado a caracterizar os subprodutos do espírito, em oposição às suas culminâncias,
que seriam os veaux-d’or (“velocinos de ouro”). Advirta-se ainda que, na linguagem
alquímica, o termo francês lune equivale ao elemento químico conhecido por argentum, isto
é, “prata”. (N.T.)
[42] A autora conserva aqui (como convém, aliás, ao contexto histórico da ação ficcional) a
antiga forma da palavra luz, cuja grafia e significado só conseguimos localizar no
Vocabulário Português e Latino de Raphael Bluteau (Coimbra, 1712). Segundo este, trata-
se de “hum certo ossinho, ao qual ossinho os Hebreos chamão luz, & he incorruptivel, nem
cede ao fogo (…); querem que como da semente nasce a planta, do dito ossinho, na
ressurreição dos mortos, o nosso corpo haja de renascer.” (N.T.)
[43] “Em alma comum”. (N.T.)
[44] “Fogo de natureza inferior”. (N.T.)
[45] “Saída racional”. (N.T.)
[46] Botânico grego (sécs. II-I a.C.), cognominado Rizotoma (“cortador de raízes”). Foi
contemporâneo de Mitridates VI Eupátor. (N.T.)
[47] “Um único somos eu e muitos em mim”. (N.T.)
[48] Ou Khosrô, rei arsácida dos partos (c. 110-130). Expulso de Ctesifonte por Trajano,
conseguiu retomar seu reino ao soberano imposto por Roma. (N.T.)
[49] “dissolve e coagula…”. (N.T.)
[50] “Obra negra”. (N.T.)
[51] “Morte filosófica”. (N.T.)
[52] Com maiúscula, como aqui aparece, é o nome que se dava aos fidalgos flamengos
que se uniram em 1566 contra a administração espanhola e católica de Filipe II. (N.T.)
[53] Jano (lat. Ianus) é o nome de um dos antigos deuses de Roma, sempre representado
com dois rostos opostos, como dá aqui a entender o contexto ao qual se refere a autora. É
também conhecido como o deus das portas e, como estas, tinha dupla face. (N.T.)
[54] Trata-se de óbvia referência ao patriota brabanção Conde Hendrik van Brederode
(Bruxelas, 1531 — Recklinghausen, 1568). Reformado, voltou-se ele contra o Cardeal de
Granvelle e apresentou um memorial cuja rejeição deu origem à revolta dos Gueux (1566).
(N.T.)
[55] “Ide, a missa terminou”. Fórmula litúrgica da missa, pronunciada pelo celebrante antes
da bênção final. (N.T.)
[56] Presença visível de Yahvé (Jeová), representada na arte judaica com raios de luz que
descem do céu. (N.T.)
[57] Trata-se de óbvia alusão ao pintor italiano Raffaello Santi ou Sanzio, dito Rafael. A
obra aí evocada é Disputa do Santo Sacramento, pintada nas stanze do Vaticano em 1508,
por encomenda do Papa Júlio II. (N.T.)
[58] “Odeio o homem de um único livro”. (N.T.)
[59] Região do norte da Bélgica, entre o rio Escaut (Escalda) e as regiões do Brabante e de
Hesbaye. (N.T.)
[60] “Alma do Mundo”. (N.T.)
[61] Espelhinho com que os médicos examinam a cavidade bucal dos pacientes. (N.T.)
[62] “Meu senhor” ou, simplesmente, “Senhor”. (N.T.)
[63] “Apagadas as luzes”. (N.T.)
[64] Nome das festas e feiras anuais que se celebram na Holanda, na Bélgica e em
Flandres, com grande júbilo, no dia do orago das paróquias. (N.T.)
[65] “… E os achou a dormir…”. Alusão aos Evangelhos (Mateus, 26, 40; Marcos, 14, 37; e
Lucas, 22, 45. Em Mateus, por exemplo, lê-se: Et venit ad discípulos suos et invenit eos
dormientes prae tristitia.) (N.T.)
[66] “… agora e na hora de nossa morte”. Oração à Virgem (Ave-Maria). (N.T.)
[67] Grande músico, dito também Roland de Latre ou Orlando di Lasso. (N.T.)
[68] Comuna da Bélgica (Flandres Ocidental), sete quilômetros a nordeste de Bruges.
(N.T.)
[69] “Verdura, verdor; vigor, energia, flor da idade”. O princípio alquímico da viriditas se
confunde, em plano genérico, com a própria crença no elixir da longa vida, ou seja, a pedra
filosofal. (N.T.)
[70] Trata-se de uma provável alusão irônica ao atleta grego de mesmo nome, também
chamado Milão ou Mílon de Crotona (entre 540 e 516 a.C. — ?), ao qual se atribuem
extraordinárias proezas físicas, assim como o comando do exército de seu país nas lutas
contra Síberis.
[71] Região do Noroeste da Europa, banhada pelo Mar do Norte e dividida entre os Países
Baixos e a Alemanha. (N.T.)
[72] Neste contexto, “cálculo numérico”. (N.T.)
[73] “Sobre a filosofia oculta ou hermética”. (N.T.)
[74] “Livro de Formação”. Trata-se de uma coletânea de conhecimentos místicos que não
se conservou. Não tem cabimento identificá-la com o livro homônimo que a tradição atribui
a Rabi Akiba e que foi a fonte primitiva da literatura da cabala. Apud A. Cohen, Le Talmude,
trad. de Jacques Marty, Payot, Paris, 1950. (N.T.)
[75] “Agora despede”. Trata-se das palavras com que se inicia o hino de ação de graças
entoado pelo velho Simeão ao tomar nos braços o Menino Jesus, apresentado no templo
por seus pais (Lucas 2, 29-32): Nunc dimittis servum tuum, Domine, secundum verbum
tuum in pace; quid viderunt oculi mei salutare tuum, quod parasti ante faciem omnium
populorum: lumen ad revelationem gentium et gloriam plebis tuae Israel. (N.T.)
[76] “Ó pai excelente”. (N.T.)
[77] “O nosso fogo”. (N.T.)
[78] “A Igreja tem horror a sangue”. (N.T.)
[79] “Não fica bem”. (N.T.)
[80] “Quem não experimenta não pensa”. Alusão evidente ao célebre princípio da
gnosiologia tomista: Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu (“Nada está no
intelecto sem haver antes estado nos sentidos”). (N.T.)
[81] “No lugar do cárcere”. (N.T.)
[82] “Um clérigo não pode, ordinariamente, ser torturado por um leigo”. (N.T.)
[83] “Se advierem novas provas”. (N.T.)
[84] “Novamente pequei”. (N.T.)
[85] “Em suprema serenidade”. (N.T.)
[86] “A alma que permanece de pé e não cai”. (N.T.)
[87] “Fugitivo, trânsfuga”. (N.T.)
[88] “Na eternidade”. (N.T.)
[89] “Morte ígnea”. (N.T.)
[90] “A água que permanece”. (N.T.)
[91] “Vamos dormir, meu coração”. (N.T.)
[92] O título da primeira narrativa do volume lançado em 1934 tinha o inconveniente —
como, aliás, as duas outras novelas da coletânea — de apresentá-las como se se tratasse
sistematicamente da imitação da obra de três pintores, o que não era o caso. D’après
Dürer fora escolhido devido à notável Melancholia, na qual uma sombria personagem, que
é sem dúvida o gênio humano, medita amargamente em meio a seus instrumentos de
trabalho; um leitor de espírito literal observou-me, porém, que a história de Zênon era mais
flamenga do que alemã. A observação é muito mais verdadeira hoje do que anteriormente,
pois a segunda e a terceira partes, então inexistentes, transcorrem inteiramente em
Flandres, e os temas boschianos e brueghelianos da desordem e do horror do mundo
inundam a obra, o que não acontecia no antigo esboço.
[93] Não me cabe discutir aqui as razões dessa atitude, admiravelmente analisada por
Léon Blanchet, em Campanella (Paris, 1920), no que concerne a um grande número de
filósofos do século XVI. O livro de J. Huizinga sobre Erasmo, que adota ponto de vista
inteiramente distinto, mostra, num caso particular, os mesmos efeitos e as mesmas causas.
Afirmemos apenas que o Prior dos Franciscanos não se equivocou ao discernir, nas
críticas endereçadas por Zênon a Lutero, um ataque enviesado ao próprio cristianismo.
[94] Para as experimentações médicas e cirúrgicas de Zênon, ver “Les Dissections
Anatomiques de Léonard da Vinci”, de E. Belt, e “Léonard da Vinci, Biologiste”, de F. S.
Bodenheimer, em Leonardo da Vinci et l’expérience scientifique au seizième siècle
(Presses Universitaires de France, 1953). Para o enunciado da teoria de Cesalpino, e em
geral para as pesquisas dos botânicos renascentistas, consultar, entre outras, a primeira
parte da obra de E. Guyénot, Les Sciences de la vie aux dix-septième et dix-huitième
siècles (Paris, 1941).
[95] No que respeita ao “fogo líquido”, durante muito tempo a arma secreta de Bizâncio,
uma vez que contribuiu para a conquista mongol, sua proibição no Ocidente pelo II Concílio
de Latrão (1139) foi parcialmente respeitada porque a nafta, matéria-prima indispensável,
estava fora do alcance dos engenheiros militares ocidentais; a pólvora de canhão relegou-o
depois até nossos dias, incluindo-o entre os “progressos” esquecidos. A invenção de Zênon
teria, portanto, consistido em retomar a velha fórmula bizantina e associá-la a novas
técnicas balísticas. Sobre o assunto, consultar R. J. Forbes, Studies in Ancient Technology
, vol. 1, Leyden, 1964.
[96] Paracelso, Das Busch Meteorum, ed. de Colônia, 1566, citado por B. de Telepnef,
Paracelsus (Saint-Gall, 1945).
[97] O fragmento 99 de Petrônio, tal como o cita Henrique-Maximiliano, está acrescido de
algumas linhas inautênticas que se supõem aqui, para as necessidades em causa,
compostas, não pelo inventivo Nodot no século XVII, mas por algum ardoroso humanista
do Renascimento, talvez pelo próprio Henrique-Maximiliano. In suma serenitate é um nobre
apócrifo.
[98] Para essas complexas questões de procedimento semieclesiástico e semicivil, ver os
imensos processos verbais coligidos por Luigi Amabili em Fra Tommaso Campanella (3
vols., Nápoles, 1882).
[99] Desclé de Brouwer (Bruges) e A. G. Berry (Londres, 1926).
[100] Com relação a esse assunto, assim como para diversos outros incidentes
mencionados no parágrafo anterior, consultar as Mémoires anonymes sur les troubles des
Pays Bas, editadas por J. B. Blaes (2 vols., Heussener, Bruxelas, 1859-1860).
O filho do homem
Mauriac, François
9788520943090
120 páginas

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Edição especial e limitadaEm 1952, o Prêmio Nobel de Literatura foi


concedido a François Mauriac pela "intensidade artística com que,
em seus romances, ele penetrou o drama da vida humana". De fato,
cada frase sua é capaz de levar o homem ao encontro de seus
anseios e suas fraquezas mais profundos — em poucas palavras,
ao que ele possui de mais universal. A leitura de O Filho do Homem
torna evidente por que Mauriac conquistou não somente o Prêmio
Nobel, mas também um lugar certo no rol dos maiores escritores do
século xx. Tanto seu discernimento espiritual quanto a intensidade
de sua escrita resultam, não há dúvidas, do princípio contemplativo
com que se relacionava com a figura de Jesus Cristo — uma
relação que, nestas páginas, transborda em algumas das mais belas
linhas da literatura mundial. Conduzidos pelas palavras de Mauriac,
observamos a vida de Cristo como se a testemunhássemos, o que
inviabiliza uma postura indiferente diante do convite de identificar,
com a d'Ele, a nossa própria vida.

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O tempo, esse grande escultor
Yourcenar, Marguerite
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152 páginas

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O espírito humanista de Marguerite Yourcenar a fez voltar-se para


uma grande variedade de assuntos em seus trabalhos. Em O
tempo, esse grande escultor, a autora francesa mantém sua verve
direcionada à pluralidade, utilizando sua prosa lírica para fazer,
nestas crônicas escritas ao longo de décadas, reflexões sobre o
passado e o presente e também um tributo à arte. Dos efeitos do
tempo sobre uma obra de arte (que, por que não?, criam uma nova
obra) às características e armadilhas que os escritores enfrentam ao
escreverem um romance histórico, este livro é uma oportunidade
única de conhecer a mente da grande dama da literatura francesa,
aqui traduzida pelo brilhante poeta e escritor Ivo Barroso.

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Memórias, Sonhos, Reflexões
Jung, Carl G.
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Reunidas e editadas poucos anos antes da morte de Jung, por


Aniela Jaffé, sua colaboradora, essas memórias se apresentam
como uma autoanálise de um dos grandes pensadores da
humanidade. Nelas, estão presentes fatos como a pesquisa do
inconsciente como caminho do eu interior, as divergências da
psiquiatria do princípio do século e as viagens à África.

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Somos o Brasil
Rodrigues, Nelson
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Graças à seleção, descobrimos o Brasil. Tenho um amigo que é um


dos tais brasileiros rubros de vergonha. Dizia-me: — "Junto da
europeia, a nossa paisagem faz vergonha." Mas ele dizia isso
porque jamais olhara a nossa paisagem. O escrete, porém, derrotou
o seu esnobismo hediondo. Depois da vitória sobre a Bulgária, ele
viu, pela primeira vez, o Cristo do Corcovado. E veio me dizer, de
olho rútilo: — "Parece que temos aí um morro que promete, um tal
de Pão de Açúcar!"Thanks to the soccer national team, we
discovered Brazil. I have a friend who is one of such Brazilians who
are crimson with shame. He told me: — "In comparison with the
European landscape, ours is a shame." But he said that because he
had never looked at our landscape. The team, however, defeated its
heinous snobbishness. After the victory over Bulgaria, he saw, for
the first time, the Christ of Corcovado. And he came to tell me, with
bright eyes: — "It seems that we have here a promising hill, the
Sugarloaf Mountain!"EDIÇÃO BILÍNGUE /BILINGUAL EDITION

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Calibre 22
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Neste novo livro de contos, Rubem Fonseca traz de volta um


personagem marcante de sua trajetória literária, o detetive
Mandrake, contratado para desvendar quem está por trás de uma
série de assassinatos envolvendo o editor de uma famosa revista
feminina. Além dessa, a coletânea reúne outras narrativas mais
curtas, em que temas caros ao autor voltam à cena, entre eles a
desigualdade social e suas consequências muitas vezes trágicas; a
violência motivada por racismo, misoginia, homofobia e outros
preconceitos; a crítica velada ou escancarada a dogmas religiosos;
as atitudes imprevisíveis de mentes psicopatas. Tiros certeiros de
um autor do mais alto calibre.

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