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MENINAS LOUCAS

NãO vão
PARA o
céu
MENINAS LOUCAS
NãO vão
PARA o
céu

TÓIA AZEVEDO

São Paulo, 2021


Ela vai cortar a garganta aos dez, se já é louca aos dois
Sylvia Plath

Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Hilda Hilst
Prefácio

Eu conheci a Tóia num evento de dia das mulheres, e isso é bem signifi-
cativo. Não um desses eventos em que oferecem maquiagem, flores e bom-
bom, mas num desses que dão porradas nas entranhas nos mostrando que
o caminho ainda é longo para as fêmeas. Depois dos soquinhos no cérebro,
vieram os drinks e a Tóia me contou que era artista. Acho lindo mulher que
se assume artista, essa talvez seja a maior barreira a ser transpassada. Pra
além da percepção de que se é uma artista (e no caso dela com diploma e
tudo!), há que se gritar : eu sou uma artista! Prestem atenção em mim, eu
existo, eu produzo, eu faço isso pra me sentir viva!

Agora, um ano e meio e uma pandemia depois, Tóia dá seu mergulho


inicial no mercado literário, pra nossa sorte. Mas cuidado ao manusear e
sorver esse livro. Ele não é doce, não fala de flores, de estrelas, de passari-
nhos. O primeiro poema já avisa : no princípio era o caos. E esse caos vai
nos guiar por todas as estrofes, porque toda criação demanda uma desor-
dem. Tóia avisa:

“na escuridão eu existo”

e esse verso já diz muito sobre a intensidade luminosa da obra. E depois ela
nos joga uma questão: para onde vão as meninas loucas?

“as putas despudoradas feias histéricas


gordas magras mal amadas bem amadas
frígidas ninfomaníacas
abusadas
caladas cavadas cravadas manchadas
encalhadas exageradas excitadas depravadas
desvairadas desatinadas desequilibradas
descontroladas perturbadas problemáticas
lunáticas insensatas
inconformadas”

Ou seja, pra onde vão as mulheres? (Porque nem a Barbie escapa dessa
lista). Pra onde vão as mulheres que escrevem, que fotografam, que pin-
tam, que tocam e produzem? Pra onde vão as mães, as donas de casa, as
cozinheiras, as avós que buscam os netos na escola, as moças que correm
pela manhã no parque? Pra onde vamos todos nós, mulheres, com nossas
bagagens, nossos medos, nossos sonhos? Num paralelo com a poeta ar-
gentina Suzana Thénon (1935-1991), que ironizava as antologias de poesia
escrita por mulheres dizendo que o que se queriam (os organizadores) “é
não só que escrevam, mas que sejam feministas, alcoólatras, anoréxicas,
violentadas, lésbicas, e se possível muito muito desgraçadas”, Tóia questio-
na nosso espaço em vida e além.

Aliás, bem antes da Tóia nascer, Suzana já se perguntava “Porque grita


essa mulher? E essa mulher? E essa mulher?”. Talvez nessa quarta onda fe-
minista a gente tenha descoberto os motivos pro grito (e eles são tantos),
mas ainda não conseguimos fazer com que ele acessem todos os ouvidos.
Gritamos entre nós, gritamos caladas, nos quartos, nos banheiros, quere-
mos ecoar nossas vozes por aí.

Tóia explora aqui cenas de infância como a novela da Globo, a primei-


ra comunhão, as primeiras experiências sexuais, as ausências, vivências e
decepções amorosas. Ela dialoga com Sylvia Plath, com Francesca Wood-
man, Hilda Hilst, essas mulheres que a gente admira tanto e cujos gritos
não foram ouvidos a tempo, ou foram vistos como sons inapropriados e
lhes avisa:
“mulheres
como nós
não são arrebatadas

descemos”

Aqui a artista está em casa, a artista está bêbada, a artista sofre, a artista
está pela cidade, a adentrar o Belas Artes e os karaokês na vida noturna da
maior metrópole do país. A artista está viva e grita. A artista celebra a sua
inexistente chance de desistir. A artista pertence à sua própria arte e avisa
“nem minha morte pertence a mim”.

Camila Assad
I.

essa é a hora que aflora


depois do(s) ato(s) falho(s) as palavras que despejei como lanças em cima de
todos fica insuportável continuar acordada, por isso os sublinguais por isso as
linhas vermelhas verticais uma maior que a outra - em pares
pareço uma pintura neo-expressionista
eu me penduro
em frente as pessoas - da minha mãe ao estranho observando-me de longe paus-
ando sua caminhada para ver me
contorcer
no chão dizem
que estou atormentada por espíritos eles me tomam pelos tornozelos um novelo
arrastando o que quer que eu seja de volta ao fosso onde
devo pertencer desde sempre desde que fui concebida
errei de corpo
eu deveria ser uma das porcas mortas aqui apodrecidas cortadas garganta ponta
a ponta mas o corte
corta meu pé direito - arde arde arde os dedos formigam as unhas as mãos os
dedos das mãos o estômago revira com o miojo de yakissoba que comi porque
pensei ora estou assim porque estou com fome então comi também um chocolate
e pedacinhos brancos de------ eu não sei também não sei muito bem o que estou
fazendo agora mais cedo eu poderia ter calado a porcaria da minha boca mas
obviamente não, eu escolhi vazar coisas nefastas e infectar os outros de livre e
espontânea vontade PORQUE NÃO CONSIGO ME CALAR como cala como ca-
lamos como continuo a sorver palavras e não mantê-las atracadas ao miocárdio/
endométrio - por que eu sempre vazo? não queria ter sido intrusiva sabe olá tudo
bem é verdade que você é doidona como eu? onde estava com a cabeça de certo
meu cérebro deve ter passado por uma extrusora antes de resolver conduzir os
impulsos elétricos que me fizeram digitar letra por letra sem pudor algum - não é
errado querer se entrosar certo? não é errado querer um corpo ao meu lado todas
as noites porque alguém respirando me diz você também respira, você não é uma
pilha de ossos podres e carne carcomida, não ainda, não que já não
tenha sido, só não é agora. Não sou? Meu corpo se contorce no meio da rua no
meio de estranhos que ao meu redor se juntam para testemunhar um exorcismo.
Sou o corpo-copo vazio disponível para qualquer espírito encher ---- possuir,
me cavalgar como um cavalo mediúnico desembestado sem rédeas sem destino
se jogando caminho adentro poço abaixo sem nenhum remorso - sem nenhuma
possibilidade de ascender aos céus ------ nem sei se quero
No princípio era o caos

Na escuridão eu existo
eu
que não fui parida
para ser existida

de acordo com papai


eles nunca esperaram tal
pequena besta
por mim mesma indomada
dentes afiados futuros seios
avantajados
coisinha branca e gorda
mamãe mamãe
quem é essa menina dormindo em meus braços?
ela é feia feito uma passarinha
não pode ser minha.

e o parto
longo e sangrento
e o quarto de hospital
zona de guerra
homens mortos e meninas parindo
parindo filhas dos homens mortos
todas elas passarinhas
que deveriam estar voando na porra do céu.

minha mãe tinha vinte e dois


e diz que perdeu toda sua beleza
no exato momento em que deslizei dela.

eu chorei
pois sabia ter chegado a esse mundo
pavoroso;
ela chorou também:
doeu para um caralho e a menina era feia como o diabo
(talvez fosse só a anestesia)

eu tenho vinte e quatro agora.

se apronte
seu marido-avô vem
buscar nós duas.

que especial aquele dia!

ela não me trocou por um bebê mais bonito


eu não pereci estrangulada pelo cordão --
ambas fomos embora um pouco desapontadas.
primeira comunhão

fiz o que não me pediram


mastiguei a hóstia
mastiguei porque quis
porque
por curiosidade

Meninas loucas
provocação ou fetiche
como paçoquinha queria
provar o corpo se quebrar
deslocar

não vão
virar massa disforme
o gosto o gosto
à míngua
sentir o corpo de deus

para o
dissolvendo
na minha

ngu

céu
a
mulher profanada

fui
pura
uma vez
ao dia
virgem maria
envolta em lençóis

brancos
é sua pelucia vermelha que
desejo tanto

é seu chamado que aguardo


semi morta
no meu quarto

é linho vinho tinto


trilha sangrenta
vindo direto das coxas abertas

azedas boca da caverna


escancarada
e eu descarada

clamando redenção
terrena
cavando o terreno

deixando-se cravar
estacas demarcadas
profana
desvairada
efêmera
como
todas
as
filhas
de
eva
Nada vai me deixar longe do meu homem

algumas poucas coisas se acumularam


na ponta dos dentes entre as gengivas
no fundo da garganta
quase no estômago como um mcdonalds
mal digerido
repetido por mil vozes
antes da sua e depois
do seu nascimento
um dia a mais ou a menos
não vai me manter longe
por muito tempo
de você
dessas firulas poéticas que eu tento escrever
para tentar impressionar
para ser como elas [we are birds of a feather --]
para não dizer o que eu quero dizer
mas quero dizer só que está
fundo demais no meu corpo para ser resgatado
e eu queria lhe dizer mesmo algumas coisas
mas não consigo lembrar delas agora
ficaram presas na mucosa como aquele md vagabundo que usei na noite
de ano novo
pela primeira vez e não me deu nada mas na verdade deu
e eu só senti diferente
só senti diferente
só senti diferente
e é dia primeiro de janeiro
e não tenho mais seu número
e seu rosto começa a se desfigurar
If she wants to go, if he wants to go, if she wants
to go, if he wants --
manifesto-limítrofe

sempre arranhar os nós dos dedos


e a ponta dos dedos
e a unha dos dedos
na parede áspera
ou com as próprias unhas

sempre enlouquecer nas horas


menos indicadas
como se houvesse um momento ideal
para purgar o corpo

sempre insuportavelmente mutável

sempre come demais e vomita pouco


sempre come pouco e vomita demais

sempre possuída pelo diabo

sempre atrasada
entre nada
e exagero
*

sempre escolher
entre se jogar da escada
e cortar a cara com gilete

sempre
perder
a
porcaria
do
controlesjbzbxndncnxmsdbxbdnfhgff[

sempre reunir ao redor


uma multidão ávida
por um acidente

sempre nos limites do meio termo

sempre
meudeusmeudeusmeudeussssssquerserinternadadenovoporra?sempresempre-
sempresem
presempresempresempresempresempreaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaa
aaaa
aaa
aa
a
Esta é apenas uma ligeira amostra do que está no livro
(anti)debutante MENINAS LOUCAS NÃO VÃO PARA O CÉU
da poeta e artista visual Tóia Avezedo.

Para conhecer mais adquira sua cópia diretamente em nosso site


www.provokeativa.com e conheça em primeira mão a linha edito-
rial de nossa plataforma de criação e difusão poética.

Em tempos tão duros para artistas e editores independentes,


ajudem-nos compartilhando este PDF, comentando com amigos,
indicando nossa página, nossos livros e blog, bem como o de
tantos outros batalhadores das artes e da cultura que ficaram
prejudicados financeira e moralmente neste pandemia.

A arte e a cultura solidárias são transformadoras,


cotidianamente revolucionárias!
Tóia Azevedo

Tóia Azevedo é artista visual, poeta e menina louca desde que o


princípio era o caos. Nascida na Bahia, vive em São Paulo e é gra-
duada em Artes Visuais no Instituto de Artes da Unesp.

Trabalha com representações do próprio corpo no espaço, tempo


e sociedade. Sua pesquisa é centrada na investigação de arqué-
tipos mitológicos, aspectos do feminino e no processo cíclico de
vida-morte-renascimento. Também estuda a loucura e suas mani-
festações materiais e simbólicas.

Tem como principais meios a fotografia e a escrita, mas também


trabalha com performance, cerâmica, colagem e pintura. É autora
de MENINAS LOUCAS NÃO VÃO PARA O CÉU, pela Provokeativa.
Camila Assad nasceu em Presidente Prudente (SP) em 1988. Estu-
dou Arquitetura e Urbanismo e Artes Visuais.

É escritora, poeta e tradutora. Foi aluna do Curso Livre de Prepara-


ção de Escritores (CLIPE) e do Poesia Expandida, ambos na Casa
das Rosas. Estudou Tradução Literária na Casa Guilherme de Al-
meida (SP) e realizou aprimoramento em Ficção Literária pela UC
Berkeley. É autora dos livros “Cumulonimbus“ (Quintal Edições), “Eu
não consigo parar de morrer” (Editora Urutau) e “Desterro” (Edições
Macondo), obra contemplada com o ProAC/SP.

Tem seus textos circulando em onze países e está presente em mais


de uma dezena de antologia de poesia contemporânea. Atualmente
vive em São Paulo.

Geruza Zelnys é escritora, tradutora e poeta, com diversos livros


publicados, entre eles “quintais” (Patuá, 2018) e “atracados aos pés
da cama” (Fábrica de Cânones, 2020).

É doutora em Teoria Literária (USP), com pós-doutorado em Filoso-


fia da Educação (UNIFESP). É professora no Instituto Vera Cruz, e
esquizoanalista em formação pela Escola Nômade de Filosofia.

Em 2014, criou o curso de Escrita Curativa e desde lá vem se espe-


cializando em oficinas que fazem da experiência poética um aconte-
cimento.

O livro “Escrita Curativa – ou de como voar com asas quebradas” tem


lançamento previsto para 2021 pela Fábrica de Cânones.
Renan Preto é ilustrador e artista visual de São Paulo, capital.

Formado em Artes Visuais e Design, entrelaça esses estudos a


pesquisa de filosofia moderna e conceitos de psicanálise no fazer
artístico.

Percebendo o próprio corpo encouraçado e a voz amordaçada,


dúbio entre fruto e produto, quer trazer como combustível de
expressividade estas limitações, para superá-las em diferentes
linguagens artísticas.

Incorpora expressões de gênero e performance em fotografias e


na pintura, é incessante com a repetição de elementos gráficos
como a linha, que são desenhadas sobre suportes fragmentados e
acumulados, como folhas de jornais descartadas e coladas, inse-
rindo entre elas uma série de signos e significados, questionando
os limites tanto do suporte, quanto da linha.

É o capista convidado desta primeira edição de MENINAS LOUCAS NÃO VÃO


PARA O CÉU, de Tóia Avezedo.
A ProvokeATIVA é uma editora nascente de base independente, que cultiva e
anseia propagar o espírito-livre, a busca espiritual, xamânica, psicodélica, mística,
filosófica, propõe pesquisas e questões relativas aos comportamentos, mentali-
dades, subjetividades, linguagens, história cotidiana, valores morais e estéticos
nas culturas existentes. Propomos abarcar a diversidade de estilos e de gêneros
relativos à produção literária, poética, ensaística, teatral ou experimentação geral,
buscando novos horizontes para o formato-livro, para a expressão do pensamento
pela linguagem escrita ou mesmo por meio de outros gestos da criação artística.

Obras Provokeativas:

Full Foda-Se (2019), de IkaRo MaxX & Roger Tieri


BozzonarUbu (2020), de Hellgina NoArt
INACABADAMÚSICA (2020), de John Ono
68 Teses Provokeativa a Favor da Arte-Vida & Contra Formas & Juízos Fascistas,
Conservadores e Falsos Moralistas (2021), de IkaRo MaxX
Lóki-Down (2021), de IkaRo MaxX
Manifesto Brasil Século XXI em tempos de fascismo & pandemia (2021),
de IkaRo MaxX
Vidro (2021), de Roger Tieri
Carta Aberta de um Poeta a um Genocida (2021), de IkaRo MaxX
www.provokeativa.com

A editora autoriza a reprodução deste livro, total ou parcialmente, sempre e quando seja para uso
pessoal e sem fins comercias.

Todos os direitos da obra estão reservados à autora @Tóia Azevedo - 2021.

FICHA TÉCNICA em MENINAS LOUCAS NÃO VÃO PARA O CÉU:

Editor responsável: Ikaro Max


Editor assistente e revisão: Roger Tieri
Capa e projeto gráfico: Renan Preto
Apresentação: Camila Assad
Texto de orelha: Geruza Zelnys

O projeto das capas foi realizado por Renan Preto a partir de intervenções gráficas sobre a foto-
grafia “Mulher Medial” (2020), obra original de Tóia Azevedo. Demais ilustrações presentes são
da artista.

primeira edição, 2021

Azevedo, Tóia
Meninas loucas não vão para o céu / Tóia Azevedo.
-- São Paulo, SP: Provokeativa Editora, 2021.

ISBN: 978-65-88559-05-5

1. Poesia brasileira I. Título.

21-81051 CDD-B869.1

1. Poesia: Literatura brasileira B869.1

@provokeativa

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