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coração de boi

Realização:
ana estaregui

coração de boi
para Alexandre
O que faço é conviver: pôr a minha vida em comum.
adília lopes

Dulce ridens, dulce loquens


ela depila as pernas até brilharem
como petrificadas presas de mamute.
adrienne rich
1.

o coração do boi sobre a pia


vai esfriando à medida
em que o músculo absorve
a friúra do granito e lança nele
seus desejos de sempre, meio vis
quentes, como tudo o que nele era
pastos, pelos, as tetas esplêndidas
das vacas de leite
e em pouco tempo tudo dele se cala
se equipara ao grau da pedra
as artérias e veias
os espaços entre os átrios, o feno, tudo

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2.

levar o copo à boca


sempre na mesma inclinação
e com a mesma força
aplicada ao bíceps
levantar da cama
sempre pela lateral
girar o corpo noventa graus
primeiro o pé esquerdo no chão
depois o outro
as mãos apoiadas sobre o colchão
então flexionar os joelhos
e impulsionar de leve
até que tudo esteja de pé
erguer os braços pro alto
alcançar a máxima estatura
que o corpo admitir
se nada falhar
caminhar até a cozinha
ferver a água
soprar o chá algumas vezes
antes de beber
continuar, continuar

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3.

a palavra ocupou a sala toda


calou as janelas, o radinho de pilhas
e os porta retratos
arrancou os livros da estante
produzindo tsunamis com as persianas
abafou nossas vozes ao grau zero
e ficamos todos espremidos entre ela
e a parede, ela e o teto
ela e as ripas de madeira do piso
no curto vão de oxigênio livre
a palavra grudou no sótão
e agora passamos nossos dias presos
olhando pra ela, uma estrela

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4.

bem de perto as rochas


pedras e cascalhos
fazem lembrar
aquela beleza rija
de difícil corrosão das coisas
confirmam a resistência
da matéria coesa impenetrável
a promessa sólida das ocasiões
na condensação dos átomos
bem de perto o coração
puro átomo e esforço mútuo
se rompe em dois
obtuso e silvestre
de um lado
estufa úmida
do outro pedra de sal

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5.

para matá-la não usaria nada


além de uma pinça e coragem
mas ela foi antes
abandonou o barco sem o bote
salva-vidas
levando consigo apenas um sabonete
uns escritos sobre o fogo
e coragem nos calcanhares

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6.

bati a clavícula na quinta feira


enquanto abria o armário
o osso me dói desde então
acordei na sexta com torcicolo
e os tendões da mão esquerda inflamados
sábado, lavando louça, quebrei dois copos
bati na pia um outro pires que lascou
ontem, foi uma taça
e ainda arranquei sangue de duas cutículas
enquanto fazia as unhas do pé
na mesma noite deixei cair no chão
uma vasilha com sopa
que espatifou
e deixei o pão passar do ponto
hoje estou de folga, sozinha,
e até o momento só queimei a ponta língua
bebendo café

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7.

ainda estão apoiadas


sobre o encosto da mureta
as mulheres da enseada
como se ali aguardassem
algum tipo de resposta fluida
do mar um desabamento exato
um sinal claro
do bom fim em fitas brancas
algum numeral da cor da água
que inscreva novos dias
nos calendários oceânicos
as mulheres olham o mar até o cansaço
único modo de olhar o mar
as sucessivas ondas tombarem
sobre as próximas
nenhuma é igual a outra
vistas da mureta

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8.

de arco, ou seio,
por onde entram as águas
a enseada curva
de onde se vê o despenhadeiro
a imensa espera do cais
de onde nenhum barco retorna
totalmente vivo
sem arranhões ou marcas de corte
é lá que espero atracar
deixar esvaziar a embarcação
depois do baque
deixar escoar o mar que entrou
pelas válvulas
antes de pisar de novo sobre a terra

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