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MD Magno

O Sexo dos Anjos


Seminários 1986/1987
2ª edição

O direito de impressão é pessoal e intransferível.


MD Magno

O SEXO DOS ANJOS


Seminários 1986 / 1987
2ª edição
é uma editora da

Presidente
Rosane Araujo

Diretor
Aristides Alonso

Copyright 2007© MD Magno

Preparação do texto
Patrícia Netto A. Coelho
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
Nelma Medeiros

Editoração Eletrônica e Produção Gráfica


NovaMente Editora

Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso

M176s
Magno, M. D. (Machado Dias), 1938-
O sexo dos anjos : seminários 1986/1987 / M. D. Magno ; preparação do
texto: Patrícia Netto A. Coelho, Potiguara Mendes da Silveira Jr., Nelma Medeiros. – 2ª
ed. – Rio de Janeiro : Novamente, 2009.
530 p.; 16 X 23 cm.

ISBN – 978-85-87727-48-0

1. Psicanálise – Discursos, ensaios, conferências. 2. Sexo (Psicologia) - Discursos,


ensaios, conferências. I. Coelho, Patrícia Netto A. II. Silveira Júnior, Mendes da. III.
Medeiros, Nelma, IV. Título.
CDD- 150.195
Direitos de edição reservados à:

Rua Sericita, 391 - Jacarepaguá


22763-260 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Telefax: (55 21) 2445-3177
www.novamente.org.br
DEDICATÓRIA:

Para
Cristina Pierotti
e
Olandina Monteiro Cruz de Assis Pacheco,
babás e mucamas
deste livro aqui.
Sumário

Primeira Parte
Ha-Ley: Cometa Poema

1. COMETA
Cosmologia psicanalítica: Haver – Revirão como função catóptrica – Conjetura de pleni-
tude a partir da função catóptrica do Haver – Modalizações do Haver: real, simbólico e
imaginário – Esquema da antropologia do Sujeito: nirvana, analfabeto primordial, sujeito
analfabeto, sujeito letrado, animal (neurótico), sujeito falante – Mitopologificação do
Sujeito ou Pentagrama do Revirão: neutro absoluto, cisão, separação, distinção, modali-
zação – Homologia do Furo no divino e no falante: função plerômica do sujeito.
15

2. O GOZO DO SENTIDO
Esclarecimentos sobre o Pleroma – Globo da Morte demonstra reviramento do nó bor-
romeano – Lógica da sexuação é ternária – Indicação dos Quatro sexos – Postulação do
gozo-do-Sentido – Questões sobre transexualismo – Corpo e artistificação (techné).
35

3. CONTOS DOS BOSQUES DE VIENA


Quiáltera da sexualidade – Diferença entre posição e obrigação sexual – Posição mascu-
lina (gozo fálico), posição feminina (gozo-do-Outro), posição angélica (gozo do Sentido)
e posição plerômica (Sublimação) – Erros de nodulação (obrigação sexual): obrigação do
gozo-do-Outro; obrigação de gozo-de-Sentido; obrigação de gozo-fálico – Patologia a
partir da obrigação sexual: neurose como obrigação angélica; psicose como obrigação
feminina; morfose como obrigação masculina – Indicação de fobia e perversão como
morfose – Conexão, no falante, entre três sexos e duas anatomias.
55

4. Nv, Ps, Mf
Retomada da seção anterior – Visão topológica (nó borromeano) de Lacan sobre Ini-
bição, Sintoma e Angústia – Neurose, Psicose e Morfose e suas relações com Inibição,
Sintoma e Angústia – Lugar terceiro do Falanjo em relação a homem e mulher.
73

5. SUJEITO DIVINIZADO
Concomitância de raciocínio binário e ternário no Pleroma – Problema da orientação no nó
borromeano – Correlação entre banda de Moebius e nó borromeano a partir do avessamen-
to – Simetria no Falante é suposição de Deus – Crítica à normalização em psicanálise.
91

6. REPETIÇÃO, DIFERENÇA DISTINÇÃO


Abstração dos registros: Real como repetição; Simbólico como diferença; Imaginário
como distinção – Estatuto da experiência analítica como cerne da teoria e clínica
psicanalíticas – Exigência de postura analítica no mundo.
109

Segunda Parte
Pleroma - Tratado de Deus e de seus Anjos

INTRODUÇÃO
Objetivos, hipótese e postulado da Teoria do Pleroma.
135
1. MOTU PERPETUO
1. Há Um – 2. A-Delta (Plenitude) – 3. Estados de A-Delta – 4. Estado neutro de
A-Delta: A – 5. Simetria de A – 6. Dissimetria primordial entre A e à – 7. Diferença
irredutível entre A e à – 8. à não-Há – 9. Para A, à é impossível (pois não-Há) – 10.
A deseja à (não-Haver) – 11. Neutralidade é desejante – 12. Motu perpetuo: Haver
é desejar o impossível não-Haver – 13. Não há falta no Haver – 14. Desejo de não-
Haver é Castração Primordial – 15. Castração primordial se impõe por dissimetria
entre A e à – 16. Simetria como Catoptria radical – 17. Dissimetria de fato: à não
há; simetria de direito: A deseja não-haver – 18. Haver é inocente de fato e de di-
reito – 19. Haver é castrado – 20. Dissimetria externa, simetria interna – 21. Haver
é simétrico (no tempo) – 22. Só há dissimetria externa e parciária – 23. Desejo de
não-Haver é Pulsão de Morte – 24. Haver é imortal e eterno – 25. Haver é constante –
26. Haver é Um – 27. Movimento desejante tende para não-Haver – 28. Haver jamais
encontra não-Haver e revira – 29. Furo primordial entre Haver e sua parciarização
( A/ ) – 30. Simetria homogênea do Haver busca simetria heterogênea em não-Haver
– 31. Simetria heterogênea interna (entre A e A/ ) é diferença – 32/33. Empuxo de
Haver para sua parciarização (A/ ) gera complexidade – 34. Empuxo para não-Haver
tende a neutralizar A/ – 35. Mediante A, A/ deseja à – 36/37/38/39. Esquema Delta:
percurso do Pleroma.
139

2. RSI
40. R S I em seu vigor primordial – 41. Três estados primordiais no Esquema
Delta – 42. R S I como avatares de A – 43/44. Real primordial é o Furo – 45.
Real é ponto-bífido de A – 46. Revirão primordial – 47. Simbólico Primordial
é diferença (A/ ) – 48. Diferença de A/ repete a diferença entre A e A/ – 49. Real é
Terceiro – 50. Não-Haver há de direito e não de fato – 51. Imaginário primordial é
indiferença (no seio de um estado de A) – 52. Entropia como eliminação de diferença
(interna) em A – 53. R S I no Esquema Delta – 54. Real como comutador e barra – 55.
Há nodulação sincrônica de R S I no Esquema Delta – 56/57. Movimento em Revirão
no Esquema Delta – 58. Heterogeneidade e homogeneidade de R S I – 59. Revirão
é função catóptrica – 60. Matéria é substancialidade do que Há e Libido empuxo
para não-Haver – 61. Pulsão de Morte é conjugação de matéria e libido.
149

3. O GOZO QUE HÁ
62. Gozo do A – 63. Movimento desejante do Haver é cíclico – 64. Inércia e empuxo
entre I e R – 65. Empuxo de R – 66. Força diferenciante entre R e S – 67. Entropia e
neguentropia entre R e I – 68. Heterogeneidade e homogeneidade do gozo – 69. Há
três gozos em A – 70. Gozo-Fálico – 71. Gozo-do-Outro – 72. Gozo-do-Sentido – 73.
Duas vertentes do Gozo-do-Sentido – 74. Diferenciação e neutralização no Gozo-do-
Sentido – 75. Espaço e tempo como procrastinação de A.
157

4. O CAMPO DO SENTIDO
76. Campo do Gozo-do-Sentido – 77. Modalizações no Campo do Sentido a partir da cisão
(Spaltung) – 78. Aparência binária da cisão operada pelo Terceiro – 79. Razão ternária opera
o Campo do Sentido – 80. Oposição e ternariedade – 81. Tripartição da cisão: A/ , A e F
ou R S I – 82/83. Entropia e neguentropia como efeitos do Real ou Bifididade no Campo
do Sentido – 84. Postulação do terceiro no Esquema Delta na forma do oito-interior do
Revirão – 85/86. Ocidente escamoteia o terceiro como mero intervalo – 87. Zero como
Função Catóptrica – 88. Valor de insistência do Real na totalidade do campo – 89/90.
Condição de modalização no Campo do Sentido – 91. Lei da diferença nas modalizações
do Campo – 92. Dissimetria em A – 93/94. Generalização da função catóptrica redefine
o conceito de simetria – 95. Música do Campo do Sentido.
163

Terceira Parte
Pleromaquia

1. NOBODADDY
Estatuto da impossibilidade de Não-Haver – Repetição de terceiro no Campo do
Sentido: surgimento do ser humano – Maneirismo e sua relação com a posição An-
gélica – Vertente mística da posição Angélica.
171

2. SUJEITO ESPESSO
Terceiro sexo (Anjo) é referência constante do falante – Função fálica é movimento
desejante – Reavaliação da categoria de Sujeito a partir de R S I – Esquema de trian-
gulação dos Estados, Expedientes, Gradientes e Parlentes do Sujeito.
195

3. SOLÉRCIA
Ordem pulsional do sentido olfativo – Gráfico projetivo do Esquema de triangulação
do Sujeito – Movimento artificioso do Haver – Arte do sujeito (criação de objeto a)
repete a artificialidade do Haver.
215

4. O HEXAEDRO
Descrição e álgebra do hexaedro do Haver – Questão da passagem do não-falante ao
falante – Cibernética e informatização indicam esgotamento do Ocidente – Artifício é
superior à cultura – Exigência de reconsideração do quantitativo na psicanálise – Função
egóica é produção – Falante como fabricação de sentido e animal como sentido dado.
233

5. LILITH
Leitura do mito de Lilith como Não-Haver – Mito de Adão e Eva como surgimento
do Angélico – Possibilidade de formulação lógica do lugar terceiro do Falanjo e da
Morte – Terceiro Sexo é descarnado – Erotismo e a castidade na sexualidade – Tec-
nologia e artificialismo resultam da sexualidade do falante – N’O descanso no Egito,
de Caravaggio, estão representados os Três Sexos do Pleroma.
257
Quarta Parte
Os Quatro Conceitos da Psicanálise, Ainda
– O Retorno de Freud, Via Lacan –

1. A DEUS
Razão Freudiana como angélica, plerômica e maneira – Insistência no retorno de Freud.
277

2. O TESÃO PELO IMUNDO


Pulsão no Esquema Delta – Homologia estrutural entre Haver e Falante no Revirão – “A mor-
te é impossível” – Santidade como aproximação do imundo – Exigência de generalização
do conceito de Pulsão – Mística revela o lugar de diferença absoluta entre Haver e Não-
Haver – Desejo plerômico do Homem – Analista é re-petição de ultrapassar o passe.
285

3. REPETIÇÃO
Esquema Delta é um aparelho de Repetição – Relação entre os conceitos de Pulsão e Repetição
– Desejo de Morte como conceito fundamental e unificador dos quatro conceitos (repetição,
pulsão, transferência e inconsciente) – Trauma e despertar – Psicanálise é Arreligião da Lei –
Notas sobre a psicose a partir do Esquema Delta – Psicanálise como Monoteísmo Ateísta.
301

4. O ICS: AN AFFAIR TO REMEMBER


Deus ou Inconsciente é interseção entre Haver e Não-Haver – Inconsciente estruturado como A
Linguagem – Sincronia e diacronia no Inconsciente – Compleição do Inconsciente é pura fantasia –
Entendimento da relação entre Inconsciente e História – Ascese no Falante produz progresso.
323

5. TRANSFERÊNCIA
Comentário sobre o conceito de transferência em Lacan – Interpretar a transferência
é apontar o desejo imortal – Transferência a partir do Esquema Delta – Discussão
sobre o signo – Função catóptrica é máquina de transferência – Reviramento do
signo faz surgir ordem significante – Análise é exercício de reviramento – Terceiro
sexo sustenta regime transferencial no falante.
337

Quinta Parte
Juízo Final

1. DELENDA MELANCHOLIA
“Lacan é pensador terminal” – Psicanálise: nem teísmo, nem ateísmo – Virulência da
psicanálise contra imunidade simbólica.
363

2. O PERI-GOZO
Revirão como máquina de neutralização – Revisão da tese da não-marcação originária –
Sujeito se funda no processo de indiferenciação – Reconsideração do Recalque Originário
freudiano – Proposição de uma Paidéia da Psicanálise – Reavaliação da tese lacaniana da
psicose – Reconsideração da tópica freudiana a partir da estrutura ternária do Revirão.
375

3. É O QUE NÃO PODE SER QUE NÃO


Questão do Prazer no pensamento freudiano – Unificação dos princípios sob o Princí-
pio do Prazer – Relação entre os sistemas inconsciente, consciente, pré-consciente e
percepção – Inscrição dos sistemas no Revirão – Falante: consciência de consciência
– Discussão sobre o que é estruturante no Haver.
397

4. K: NO PRINCÍPIO ERA O FIM


Considerações sobre o Princípio de Constância no Haver – Aproximação entre constância
libidinal do Haver e conceito de Vazio na física e no pensamento oriental (Chi) – Propo-
sição do Chi como constante do Haver – Comparação entre Esquema da triangulação do
Sujeito e esquema do holograma – Terceiro Sexo permanece em Chi referência constante
para o falante – Tese do desejo de simetria do Haver e suas implicações clínicas.
429

5. TO SIR WITH LOVE


Considerações sobre o amor (sublimação, transferência, narcisismo, dom).
453

ANEXO
Maravalhas de MDMagno
Todestrieb – Auto-análise – Impotência histérica – Pulsão – Repetição – R, S, I, ou
melhor, F, A/ , A – Haver – Sujeito – Real – Função fálica – Morte (I) – Realidade psíquica
– Ação moral – Instituições psicanalíticas – Morte (II) – Castração – ICS e linguagem –
A Filosofia do Sim – Nome do Pai – Psicanálise e religião – Revirão (citações) – Falanjo
(I) – Verbalização do nome próprio – Universo holográfico – Ego (Moi, das Ich) – E a
nave vai – A cruz do Cristo – Falta original – Religião – Haver – Ser – Estar – Kaosmos
– Amoris – Hetero-lógica – Transmissão – Foraclusão – Não lanceis férulas aos porcos
– Esquema Delta – Em questa de uma civilização pós-cristã – Os Sexos do Haver – O
Outro-sexo do Falanjo – Repetição e Maisalém – Ã e Psicose – Ã e Perversidade – Lacan:
uma teima da psicanálise – Falanjo (II) – De Hilflosigkeit a Gelassenheit – O que fazer com
o sexo? – Economia – Teoria das exceções – Quando eu era lacaniano.
465

Bibliografia (parcial) para o Pleroma de MDMagno


524

ENSINO DE MD MAGNO
527
Cometa

Primeira Parte

HA-LEY
Cometa Poema
1º Semestre 1986

15
O Sexo dos Anjos

16
Cometa

1
COMETA

Escrito como português antigo, em língua materna, Ha-Ley: cometa


poema pode ser uma ordem, um comando, mandamento. Uma ordem não é
necessariamente um imperativo derivado do superego, não impõe necessaria-
mente um dever. Pode ser um preceito que é da ordem do ato paterno, e põe
um Direito, como uma recomendação. Nem por isso, deixa de ser da cepa da
Repetição – quando se torna real por via sintomática, talqualmente o cometa na
sua obsessão de girar dentro de sua órbita. As forças gravitacionais, entretanto,
não impedirão, eternamente, que, eventualmente, ele se desvie do seu lugar.

* * *

Depois de Freud e Lacan, os achados da psicanálise – inicialmente


permitidos com a sustentação de outros campos de saber, entre ciência e ou-
tros discursos – já nos permitem a constituição de pelo menos uma mitologia
psicanalítica. Mitologia (para sermos modestos) de nos referirmos a alguma
construção de embasamento de uma operação discursiva. Essa mitologia ou, se
quisermos, uma teoria, no sentido amplo do termo, uma contemplação, é o que
quero retomar a partir do Seminário Grande Ser Tão Veredas. Essa mitologia,
essa teoria não é mais delirante do que as da física mais moderna, a qual tem
tido a responsabilidade de representar o que de mais puro se faz nos discursos

17
O Sexo dos Anjos

científicos corriqueiros. Também não é mais delirante do que certas neurolo-


gias contemporâneas que, na tentativa de explicar o funcionamento preciso do
aparelho cerebral, vão muito longe na conjetura de um mito tão extenso que
abarcaria, juntamente com as mitologias da física de hoje, toda ordem por eles
dita universal.
O rigor da psicanálise lacaniana, isto é, a de Lacan, fechou um cinturão
bem necessário, por ocasião de sua composição. São os limites da constituição
de uma teoria extremamente conectada e coerente. Entretanto, dadas as mutre-
tas do Inconsciente, mutretas simbólicas, esse jogo não impede – ao contrário,
propicia – a aventura por uma cosmologia, se não por uma cosmogênese e, até
mesmo, quem sabe, por uma nova cosmologia de índole psicanalítica.
A deliração da física de hoje permitirá à psicanálise aventurar-se através
dos seus materiais próprios, do seu próprio discurso, pelas suas construções
teóricas, na massa do simbólico. Permitirá aventurar-se com a mesma simpli-
cidade, com a mesma ousadia com que esse discurso científico se aventura na
explicação dos acontecimentos cósmicos. A tendência de certo discurso cientí-
fico de hoje, com teses muito audaciosas, é aparentemente mística, até mesmo
pelas referências desses teóricos, com sua insistente remissão, ora regressiva
ora progressiva, aos místicos, mormente aos orientais, aos livros sagrados da
China e da Índia e a muitos outros textos.
É o caso, por exemplo, de Karl Pribram, um neurocirurgião de
Stanford, especialista no sistema cerebral, que apresenta, para espanto dos
leitores, a possibilidade de que o cérebro humano seja constituído tal como um
holograma (objeto que eu já trouxe aqui como exemplar). Ou seja: a parte, a
mínima parte, inclui o todo. Na medida em que isto se dá na máquina cerebral,
ela seria, também, compatível com as idéias de David Bohm, físico inglês,
que propõe com sua teoria do holismo – completude, totalidade – , a idéia de
um cosmo hologramicamente constituído, no qual as partes teriam uma certa
ordem implícita – que ele custa a explicar o que seja – capaz de corresponder,
nos mínimos detalhes, ao que se passa no macrocosmo, tal como a concepção
cerebral de Pribram.

18
Cometa

A tendência, como eu disse, é mística. A remissão a esses textos, sobre-


tudo orientais, que descreviam, por metáforas muito antigas, essa constituição
do universo que, justo porque a ordem cerebral, hologramática, compatível
com a ordem implícita do universo entraria com esta em ressonância nisso que
costumamos chamar de impressão e, de alguma maneira, através da linguagem,
esses sujeitos especiais, chamados místicos, teriam certa concepção, ou seja,
um conceito dessa ordem. Isto está nas teses desses autores.
No entanto, quando produzem tais teorias, esses autores, no que se sentem
talvez um pouco perdidos ou ameaçados pela visão um tanto aterradora que lhes
sobrevêm, fogem rápido para o colo da ordem já instituída pelos discursos ditos
místicos. Ou mesmo se recolhem a esse campo mais para religioso do que místico
da reprodução dos discursos produzidos por esses místicos. Quer me parecer que a
psicanálise, percorrendo os saberes e se detendo na sua experiência particular, no seu
discurso particular, tem tido achados que nos encaminham racionalmente para mais à
frente, com maior rigor, para o real de uma lógica do reversível. Digo o real de
uma lógica porque Lacan costumava dizer que a lógica é a ciência do real.
Mutatis mutandis, a teoria desses físicos acaba por nos levar a concluir,
nós outros, que o universo, o dito universo – isso que costumo chamar de o que
HÁ, já que o conceito de universo para nós é muito específico – o que há desse
dito universo, é composto de Real, Simbólico e Imaginário. É constituído, seja
lá o nome que dêem, de pelo menos três componentes, mais ou menos definí-
veis, e que, se quisermos traduzir em termos lacanianos, diríamos que, mesmo
na materialidade desse tal universo, o que há é Real, Simbólico e Imaginário.
A metáfora do holograma, que é muito rica do ponto de vista explicativo, di-
dático, me parece menos propiciadora de invenção, bem menos rica, do que
aquilo que Lacan tomou da topologia para indicar como se nodulam esses três
registros Real, Simbólico e Imaginário: o chamado nó borromeano, o qual, num
Seminário já um pouco antigo, tentei mostrar como reversível, chamando-o
de Globo da Morte.
Reversível na medida em que facilmente ele se revira pelo avesso
e apresenta um lugar de Revirão, um lugar de reversão que seria portanto

19
O Sexo dos Anjos

compatível com a neutralidade do espelho enquanto tal. Não como a relação


especular, de índole imaginária, mas a função catóptrica de reversão. É o que
poderíamos generalizar com o nome de Catoptria, do grego kátoptron, luz,
ou espelho, ou refletor: a função catóptrica do nó borromeano, se não mesmo
a função catóptrica do universo. Essa função especular produtora de avessa-
mento, produtora de Revirão, é, enquanto tal, o neutro, o impossível de se
estacionar para qualquer modo particular do Haver, para o que quer que haja
de modalizado dentro do Haver. Num texto antigo, chamado Gerúndio, que
está republicado na revista Lugar n° 9, também tomando da física, chamei de
operador. Poderíamos dizer “operador de reversão”, uma espécie de máquina
divina. Não um deus ex machina, mas a machina dei, a divina catoptria. Não
há que confundir o Revirão, essa função catóptrica do que quer que haja, com
os registros de Real, Simbólico e Imaginário, ou seja, a trindade, as três subs-
tâncias, se quiserem, do que há.
A riqueza do Globo da Morte, do nó borromeano em Revirão sobre si
mesmo, é bem superior à riqueza das bonecas russas. E é mais compatível – em
movimento, sem paralisação, e sem a perda de focalização que há na consti-
tuição do holograma – com a inclusão do mais externo dentro do mais interno.
Se considerarmos os três registros borromeanamente amarrados, podemos
dizer que o Real está contendo o Simbólico, que está contendo o Imaginário,
que está contendo o Real, que está contendo o Simbólico, que está contendo
o Imaginário, etc.
Imaginem uma concepção compatível com a ordem do Inconsciente,
tal como fazia Lacan, em toda a ciência contemporânea: a concepção dessa
ordem se imiscuindo em todos os aparelhos de concepção teórica das ciências
contemporâneas. É mais ou menos isso que está pintando aí nessa física, nessa
neurologia. A coisa fica bem mais complexa do que o mero holograma. Há
inclusão do todo dentro da parte, no holograma. Aqui neste caso eternamente,
em eterno giro, como eterno retorno, teríamos isso que o Inconsciente mostrou
na prática analítica: um registro primeiro que contém um registro segundo que
contém um registro terceiro que contém um registro primeiro. Portanto, jamais

20
Cometa

saberemos qual é o continente de qual conteúdo – embora uma certa ordem se


arrume, desde que eles são colocados. Daí Lacan insistir numa certa ordem de
arrumação dos registros.
O verbo katoptrio significa examinar, observar, contemplar, iluminar,
refletir, se não mesmo espiar. O termo catóptrico, em português, é relativo à
reflexão especular. Ou seja, a função catóptrica, máquina mínima e máxima do
que quer que haja, não é senão o Revirão. E o que se revira nessa catoptria? O
que Há – que lhes apresentei inicialmente como originariamente neutro, logo
cindido por si mesmo, etc., mas que é constituído por essas três categorias. É
aí que Espinosa coloca seu lema. Quem diz Deus vel Natura sou eu – ele dizia
Deus sive Natura – aproveitando a interseção posta por Lacan. Ou seja: tudo
é fatura, tudo é artifício. Artifício para essa máquina mínima, de avessamento,
sobre a matéria, se quiserem, nessas três aparências ou trindade divina. Esta
não sendo mais do que os registros de Real, Simbólico e Imaginário.
E o sujeito que aí está incluído, divino, ele, o Tao, não precisando ser
mais do que o que há entre uma e outra posição desse reviramento. O sujeito
é essa neutralidade radical, real, que há entre as duas posições em avesso do
Globo da Morte, ou da Vida, que é a mesma coisa.
É difícil às vezes pensar essas coisas, pois quando se fala em totalidade,
no campo da filosofia, mesmo em Espinosa, a tendência é pensar em totali-
dade bruta, sem nenhuma externalidade, ou seja, que há relação sexual, aliás,
impossível. Mas não haverá outra maneira, psicanalítica mesmo, de se pensar
esse termo de totalidade? Ou será melhor chamar de plenitude? Quando Lacan
falava em palavra plena, isto me parece incompatível com a insistência dele
em que não há totalidade, mas há a plenitude.
Se imaginarmos a função catóptrica, ou seja, que para o que quer que
haja, há em algum lugar o avesso disso, com um ponto neutro no entre, bas-
tando um, um pequeno ponto – que podemos chamar de a-zinho, se quisermos,
a minúsculo –, a plenitude não é senão o fato de que, a qualquer momento,
em qualquer lugar, é pensável que o neutro funciona para além desse ponto
a, conjeturável, como simplesmente a soma zero – no caso por exemplo do

21
O Sexo dos Anjos

spin-up/spin-down da física nuclear –, o valor de Vazio dessa plenitude. É o


caso, por exemplo, da palavra plena, no que ela diz de modo significante, não
propondo escolha de significação: diz dos dois lados, é bífida em si, portanto
neutra, zera o inconsciente.
Há! Há plenamente, neutramente, não para mim, porque sou parcial,
modal, mas para Eu. Há o nome conjeturável, dado por essa conjetura a essa
neutralidade. Se não posso desenhar essa plenitude, contudo faço uma dupla-asa
e digo: para um lado, há modalidade digamos positiva e, para outro, modalida-
de negativa. Posso conjeturar que, em qualquer momento, em qualquer lugar,
para o que quer que haja, há um avesso, mesmo que dele eu não dê conta. O
que representa isso é esse ponto a que está no centro, mas a idéia mesma de
plenitude é a de que aquele pontinho a está representando que o que quer que
haja de um lado é zerado pelo que haja do outro.
No caso da palavra plena, por exemplo, a modalidade desaparece. É isso
que os orientais chamaram de Nirvana e que Freud aproveitou para dar nome
a um certo princípio de neutralidade total. Uma palavra plena, na verdade, não
diz nada porque a tendência é dizer tudo. Ela diz o reconhecimento de nada. Ou
seja, que nada há, mesmo. Há nada. A coisa se bifidiza, é bífida. Estou falando
d’Acoisa, das Ding. Ela é bífida, mas, enquanto tal, é esse reconhecimento de
que há nada.
O sujeito acaba por reconhecer que pode zerar o Inconsciente, o que é
uma conjetura de palavra plena, mas é um impossível para quem fala. O que
busca toda e qualquer pulsão? O a-zinho que venha completá-la, ou seja, busca
a morte, o nirvana, zerar. Mas no que ela busca na modalidade, na parcialidade,
da sua maneira de funcionar, ela, na verdade, come um tasco, satisfaz-se com
um quantum e cai de novo na petição.
Essa conjetura do objeto a, do nirvana, do zero, da neutralidade, é tentar
por via racional, de contemplação, aquilo que Espinosa chamava de ver o mundo
sub specie aeternitatis. A eternidade não é senão a plenitude em Revirão do que
há, do Real do nó pintando como zero, como Nada. Do Nada, Tudo se tira. Do
Tudo, Nada se consegue. Para o falante, esse Real é impossível de se inscre-

22
Cometa

ver, mas é o motor de todos os seus movimentos na medida em que não pode
não conjeturar que exista o avesso em petição de nirvana. Há petição de nirvana a todo
momento para o falante. Só que como ele “não tem tu, vai tu mesmo”, ele se satisfaz,
vez em quando, com um objetinho a qualquer. Porque ele é tolo e cego, por enquanto...
Mas quando Lacan diz que o objeto a não é especularizável, é porque ele só pode
estar entre um e outro, portanto, ele “não tem sentido, nem nunca terá”...

* * *

Estamos aí no seio, de retorno àquele Gerúndio, de onde comecei.


O que acontece é que o que quer que haja é constituído, nesses modos
maiores, de Real, Simbólico e Imaginário. Se quisermos acompanhar outras
falas, outras palavras, podemos chamar de Espírito, Carne e Alma. O Espírito,
o chamado Simbólico, não é senão isso que chamamos Linguagem: a Lei com
Diferença e Articulação. A materialidade do discurso, quer dizer, da linguagem,
do espírito – certas religiões me queimariam quase vivo ao ouvirem “mate-
rialidade do espírito”... A materialidade do espírito é linguagem, puro jogo de
Diferença e Articulação materialmente dado, vetorialmente constituído. Isso
que chamamos o verbo, que no Velho Testamento se diz que foi o começo. Por
isso, começo por ele. É a ordem, que David Bohm chama de ordem implícita e
que não sabe bem explicar o que é, mas que deve existir numa lei de articulação
e diferenciação mínima. Quem sabe, isso serve tanto para a física quanto para
a psicanálise: a diferença, o simbólico puro, se é que isso existe. Não é o sim-
bólico que percorre a língua, a qual já é um modo muito menor – são vetores
de articulação possível na materialidade do espírito.
O outro modo maior seria a Carne, isto que se chama de matéria, e que
os físicos cada vez mais se aproximam de chamar de energia neutra. Os nomes
e as concepções todas fracassaram, então, para a física, deve haver assim uma
massa de energia neutra, que é a Carne do universo, e as composições vão se
fazendo a partir daí. Estamos aí no campo da Repetição pura e simples: o Real,
puro, o neutro, Há – aquele que sempre retorna, segundo Lacan, está sempre aí.

23
O Sexo dos Anjos

A Alma podia ser o que chamamos de palavra. É completamente dife-


rente do Espírito. É o que dá consistência, o que é da ordem do Imaginário, da
modalização, da queda de nível do modo maior para o modo menor, de uma
configuração, de um formal. São as alínguas. As alínguas divinas, se quiserem,
aquelas que pintaram na cabeça dos santos, quando estavam esperando Jesus
Cristinho. “As muitas moradas da casa do pai”, como dizia o rapaz. Estamos
aí na ordem da distinção, da particularização, do imaginário puro, do formal –
parcialização, portanto, da totalidade, da plenitude.
Teríamos, então, essas três substâncias, materialmente dadas. Não há ne-
nhum motivo para não se querer que o Espírito não seja material, ou que a matéria
não seja espiritual. E o seu movimento, que é Revirão. Essas três modalidades cons-
tituindo um nó, cujo miolo é a neutralidade radical de Haver, um objeto a, e o seu
reviramento em avesso, perene, constante. É claro que às vezes demorado, às vezes
com a inércia das modalidades menores, durando mais ou menos, longos períodos
ou períodos curtos, longos períodos na vida de uma tartaruga, períodos curtos na vida
de um elemento subatômico. E entre, lugar-entre as duas possibilidades de aves-
samento, outra vez, esse mesmo neutro, esse mesmo real, esse mesmo a, que é
chamado Sujeito. Por isso que Sujeito e objeto são a mesma coisa. Não objeto menor,
degradado, modalizado, mas objeto enquanto Acoisa. Afinal de contas, o Sujeito é
Acoisa. Nas modalidades, na degradação dessas posições, um sujeito particular,
porque besta, põe um objeto particular, porque idiota. Mas aqueles tais místicos
sempre nos apresentaram a idéia de que se o sujeito se esvazia, ele coincide com o
objeto. É a flechada do arqueiro Zen: atira no objeto, e a flecha pega na sua nuca.
No seio dessa coisa toda, o fenômeno se repete. Aí estou fazendo uma
antropologia, e não mais uma cosmologia. Esse Há, neutralidade, cinde-se por
si mesmo, ou seja: o que há, há em três regimes, em Revirão. E cindir-se por si
mesmo é estar mesmo o tempo todo em plenitude, aquela plenitude catóptrica
que coloquei, é estar-se avessando. Não vamos confundir o Revirão com os
registros. Insisto nisso porque algumas pessoas me fizeram certas perguntas
em que tenho a impressão de que há essa confusão. A coisa se cinde, a coisa
vai degradando.

24
Cometa

Algum tempo atrás fiz para vocês um esquemazinho:

É aquela seqüência que já trouxe aqui: Há, neutramente, a coisa se cinde


por si mesma, Revirão. A coisa se apresenta como cindida, o que é diferente de
cindir-se por si mesma, apresenta-se em bifididade.
Então, esse grande , que lá estava, aparece cindido, em 1, e se
representa abaixo como ponto a. Em seguida, temos os alelos significantes,
pois quando se chega aí, há uma séria distinção, uma fronteira, um momento de
escolha, que faz a se modalizar. E, então, em 3, vai tornar-se S1 ou S2. Foi aí que
coloquei a questão que chamamos de Nome do Pai, pois traça-se uma fronteira.
Isso continua decaindo, decaindo em modalidade, particularizando objetos.
Podem pensar desde uma pedra da física a um animal da biologia... Ora, se
isso se separa, se S1 se separa de S2, acontece que a coisa se torna localizada,
modalizada, significada quase. Daí o fato de vermos um animal apresentar-se

25
O Sexo dos Anjos

– naqueles esquemas etológicos que Lacan retoma, naqueles comportamentos


que a psicologia animal estuda – no saber instalado. Um saber instalado que tem
uma linguagem, pois bicho fala, sim, faz tudo direitinho... Ele só não põe
significante. A sua alíngua não revira. Ela é extremamente rica, competente,
etc., mas não revira. Então, essas coisas que o sujeito falante encontra e cataloga
pelo mundo, fazendo ciência, botânica, zoologia, etc., são esses aparelhos
constituídos numa decadência constante do Haver até uma modalização,
modos maiores e modos menores. As coisas vão se tornando extremamente
particulares.
A conjetura que, então, faço é que, de repente, em 5, no seio desses
haveres, alguma coisa acontece. Lá na Bíblia, dizem que Papai-do-Céu
fez um boneco e lhe ventou na cara o sopro divino, o espírito. Lacan colocou
isto na conta da prematuração, mas prefiro, juntamente com os cientistas
de hoje, colocar na conta de uma complexificação extrema, de um
sistema muito rico, como é o sistema nervoso, sobretudo o sistema cerebral.
A complexificação se torna de tal ordem, a fixação se torna tão complexa,
que re-introduz nada mais nada menos do que o Furo, que tinha sido ex-
pulso daqui. Re-introduz o Revirão. Então, se nesse aparelho faço um furo,
lá está, embora com duas voltinhas, o Revirão de novo. Ora, isso é nada
mais, nada menos, do que a glória, ou seja, no seio do Haver, existe um sub-
Haver, que re-introduz, re-introjeta, a centelha divina: a possibilidade de
revirar-se – notem que eu disse a possibilidade. Vocês verão, durante o per-
curso deste Seminário, que tenho a intenção de retomar esse animal chamado
homem, com suas particularidades animais, com seus fechamentos, seus
saberes, etc., e mostrar que isso não se dá espontaneamente. Até mesmo Lacan
dizia que é o significante que faz furo. Quer dizer, se não houver acossamento
de significante, promovido certamente por aqueles que por ele, significan-
te, foram tomados nesse processo, foram mais tomados que os outros, a
tendência é se retornar o processo e parar, virar bicho de novo, ainda que
falando, etc. Ou seja, existe uma “neura” tão poderosa, que faz virar um
verdadeiro animal.

26
Cometa

Estávamos até agora na ordem paterna. Aqui vem o ressurgimento do


Filho, o qual é nada mais nada menos que a repetição do Pai, e produtor do
Santo Espírito, que é a sua obra. Precisamos logicizar isso tudo para sair de
certas emanações místicas e entrar num certo rigor. De repente, então, no seio da
ordem paterna, se quisermos assim, do Sujeito, aparece o sujeitinho, o falante,
o Filho. Por essa complexificação, o furo re-aparece. Não é que vá furar tudo
que pintar, e sim o que é possível furar.
Encontramos muitos místicos, das mais diferentes regiões, lembrando
que cada um dos falantes é portador dessa maravilha. E já que a porta, seria
um dever insistir nessa coisa que Heidegger chama de risco supremo, que é o
ato-poético, o qual não passa de re-encontro do neutro, re-encontro fugaz de
um nirvana, pelo reviramento de tudo. (Mas há que ter culhão, não é?). E no
que faz isso, no que lança mão do seu próprio furo, como Virgem naturalmente,
e mete Deus lá dentro todinho, cada um sujeito faz a obra. E no que faz a obra
produz o Espírito Santo, o Santo Espírito de novo na obra. Quer dizer, faz com
que aquele Revirão que há como fatureza – e aqui ele reaparece como furo
dentro do falante – reapareça inscrito mais adiante, como inscrição do Santo
Espírito. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E tudo é verbo. Estou
sendo muito radical agora, pois não vejo porque uma árvore não possa conversar
com São Francisco. É uma questão de adaptação de falas.

* * *

Poderíamos fazer uma espécie de mitopologificação do sujeito. Num


Revirão constante teríamos, da criação divina à criação humana, o surgimento
da revelação humana e da revelação divina:
Eis aí algo que se parece com um pentágono regular. Tomem isto
como um Revirão. O pentágono, o pentagrama, é só para poder demarcar
aquelas posições do desenho anterior. Então, teríamos uma espécie de lugar
zero, o grande A, um ponto de catástrofe, como se fosse nesse primeiro
pentágono:

27
O Sexo dos Anjos

1, 2, 3, 4 e 5. Mas o Revirão continua, e temos: 6, 7, 8, 9 e 10. Estão aí as fases


todas: do zero absoluto encaminhamo-nos para um ponto de quebra, de cisão;
depois, esse ponto se define em dois alelos; depois, ele se distingue; depois

28
Cometa

de se distinguir, ele se fixa; e depois de se fixar, ele pode se quebrar de novo,


e fica o Furo. Tomemos esse círculo de dentro como o Círculo da Criação, da
criação divina, neutro absoluto, cisão, separação, distinção, modalização... A
criação divina se passaria nesse círculo.
Suponhamos que neste ponto, então, o Furo compareça de novo até chegar
ao falante. Acriação divina cai dentro da Revelação humana. O homem começa a se re-
velar aí repetindo o mesmo ciclo. Ou seja, aparece aí um sujeito que vai continuar
o mesmo périplo em outro nível, em outra modalidade, e vai chegar de novo, por
exemplo, à obra. E uma vez surgido o trauma para o falante, uma vez re-comparecente
o Furo, as possibilidades de plenitude se reabrem. São as mesmas possibilidades que
existem na Criação divina e na Revelação divina que será feita por este falante. Quer
dizer, se a criação divina é revelação de si mesma, nesse momento, dentro dessa
criação, aparece um furado que, por seu movimento de obra, pode vir a revelar como
criação, outra vez, os aspectos desse divino. Ou seja, para o falante, Nada é impossível.
O sintoma tem esse valor modal, como particularidade. É como se o
sintoma fosse uma espécie de animalzinho, de bichinho particular, que o su-
jeito é. No seio do Espírito, algo decai em alma. O sintoma tem algo de alma
no sujeito. Costumamos dizer que temos que louvar esse sintoma, porque
pelo menos ele nos deixa sobreviver. Mas costumo me perguntar se mesmo a
psicanálise, que parece parar aí, não deve pedir mais. Não deve namorar pelo
menos a possibilidade de esfacelá-lo, o que ninguém vai conseguir, mas é
preciso insistir, porque senão a obra não vem.
Então, o fato de Nada ser impossível, justamente por ser impossível, o
desejo não se extingue. É esse impossível que implica o desejo. E no que implica
o desejo, exige o assassinato do sintoma. O fato, por exemplo, de você fazer
a suposição de que não vai conseguir não é a mesma coisa que estar certo de
que não vai conseguir, se não, extingue o seu desejo. É justamente o neurótico
que, quando se depara com esse núcleo, como Freud chamava, com essa rocha
sintomática que remete à castração do sujeito na sua particularidade... O núcleo
da castração é a rocha da castração, é você se deparar com uma particularidade
tão dura que não te promete nada. Insistir na renitência dessa rocha é da ordem

29
O Sexo dos Anjos

no mínimo da estupidez, ou seja, da neurose. Sustentar o desejo é querer Nada,


apesar de tudo. É disso, sobretudo, que neurótico não consegue se curar – não
de seu sintoma, mas da implicação dele com o sintoma.
Mas com o retorno desse Furo, como eu dizia, as possibilidades se abrem
em extremo, quer dizer, a palavra plena é possível. Possível, pelo menos, de ser
reconhecida. Mesmo que uma obra – aquilo que já chamei por escrito de obra de
arte – seja, como diz Lacan, de se procurar no regime do sintoma, o que ela indica
como obra é o reconhecimento da outra face e, portanto, o reconhecimento da perda
dos sentidos. Esta é, aliás, a minha tese sobre a obra de arte.

* * *

30
Cometa

Essa plenitude, a disposição do falante, é que chamei de Pleroma. E


esse sujeito está não só representado de significante para significante, como
trouxe Lacan, que abriu a questão, como também está representado de direito
para avesso na sua função plerômica, dentro da borromeaneidade da sua cons-
tituição, e na normalidade, na verticalidade, da sua relação com o objeto, que
deveria ser A Coisa, mas que é parciário na medida da sua sintomática, e que é
nada mais nada menos do que o encontro, meramente geométrico, meramente
conjetural, dos TRÊS SEXOS.
Vamos tentar fazer toda uma patologia. Estamos de volta ao Pato
Lógico, agora como a Psico Pata. Luiz Carlos Miranda, aqui presente, teve a
paciência de produzir para nós, em massa, o tetraedro borromeano que eu trou-
xe semestre passado aqui no Seminário. Assim, poderemos, este ano, retomar
essa questão do Pleroma: os três lugares, os três sexos, e o que isso tem a ver
com a clínica. Ou seja: quais as possibilidades de conjugação dos lugares dos
sexos na confrontação com as fórmulas quânticas. Ou seja, temos que procurar
os lugares desses sexos no tetraedro borromeano, e o que têm a ver com esses
aparelhos que chamamos de neurose, psicose e perversão. Como se poderia
situar – e no que isso poderia nos ajudar numa minimização, numa microfísica,
que seria o termo comparativo, numa micro-análise dos processos patológicos
– uma micro-patologia.
Quando observo a história do pensamento psicanalítico – digo “pen-
samento” porque não valem todos os autores: muitos deles não pensam –,
reconheço que ainda há pouco tempo, no começo do século, um certo Sigmund
Freud, percorrendo todas essas enseadas, esses meandros do saber humano, da
produção artística, filosófica, religiosa, científica, etc., consegue com esforço
muito maior do que os esforços posteriores – porque todo conhecimento co-
meça pelo mais complicado; até chegar ao mais simples demora, é preciso ser
simplista, reduzir a aspectos mínimos, a fórmulas mínimas, esforço que Lacan
também fez na constituição de seus matemas... Mas Freud era extremamente
complicado, tinha que ser, estava procurando agulha em palheiro, tinha que
fazer montinhos, etc. Vejam, por exemplo, a Interpretação dos Sonhos: parece

31
O Sexo dos Anjos

um detetive procurando agulha em palheiro. Mesmo sua prática analítica, que


Freud conta pelo menos, grandes fracassos, era da ordem do detetivesco, da
procura de agulha em palheiro. Passado o tempo, isso é relido por um certo
Jacques Lacan, que, na montoeira que se fez em torno da psicanálise, pôde
passar um espanador e levantar dois ou três objetos mais ou menos distintos
debaixo da fuligem, conseguindo arrumar mais ou menos as coisas. Ele percebe
que não é preciso ficar mais fazendo aquele trabalho de sapa, de capinagem de
terreno, etc., para ficar procurando agulha em palheiro, porque bastava afiar
a escuta para os relances, os relanceamentos desses objetinhos lá embaixo do
palheiro, por via de disponibilidade de certos significantes, etc., que se poderia
tocar nos pontos.
O que se repara nesse percurso é que, embora seja uma atividade deli-
rante, a psicanálise se torna muito menos delirante de Freud a Lacan. Tanto é
que basta olhar a prática dita analítica daqueles que não quiseram dar o passo,
que ficaram na imitação detetivesca do velho Freud – claro que com um rebai-
xamento incrível, porque não tinham nem sua genialidade, nem sua frescura –
para ver que até hoje praticam esse delírio de, por exemplo, o sujeito dizer um
troço e o analista explicar, interpretar o que aquilo é. É puro delírio do analista,
pois nada tem a ver com o que o cara está dizendo. De Freud a Lacan, o delírio
caiu bastante. Remeteu-se mais ao analisando o trabalho analítico, deixando
alguém escutar e perceber o que ele aprontou como análise e devolver para ele,
que estava distraído e não ouvia o que estava falando.
Pergunto-me se não dá para diminuir ainda mais o delírio. Quem quiser
delirar que vá escrever literatura, e não encher o saco. É preciso, nesse trabalho,
deixar que a mudez das formações do Inconsciente se opere e se defina por si
mesma. Suponho que, no futuro, a formação do analista será muito mais difícil
do que hoje, resultando numa coisa muito mais simples. O trabalho será muito
mais simples, mas produzir este escutador será muito mais difícil porque se
terá que limpar essa rebarba toda até chegar a um sujeito que possa liberar-se
dessa deliração ao máximo. Minha desconfiança é de que o percurso teórico
que estou tentando fazer pode levar a algo mais micro ainda do que essa escuta

32
Cometa

significante, a uma maquininha essencial de intervenção, que nem se fique tão


preocupado com as particularidades significantes que o sujeito traga. Diminuir
a deliração, dificultar a formação, mas simplificar extremamente a operação.

20/MAR

33
O Sexo dos Anjos

34
O gozo-do-sentido

2
O GOZO-DO-SENTIDO

Continuando com o que vimos da vez anterior, e também de serventia


para o que se prepara de trabalho para o nosso próximo “19º. Mutirão de Psi-
canálise”, vamos reabordar aqui o Pleroma. Algumas pessoas me colocaram
certa dificuldade ou alguma confusão a respeito de alguns conceitos e operações
dentro do que tenho dito a partir do segundo semestre do ano passado. Estas
coisas estão de primeiro esboçadas na revista Revirão, nº 1, com o título de Es-
cólios, e um pouco mais organizadas nos números 2 e 3 (este, a sair em breve),
com o nome de Grande Ser Tão Veredas. Talvez, então, eu deva esclarecer um
pouco o manejo dessa operação.

* * *

Esse termo Pleroma entrou na minha fala não como nenhuma revoga-
ção da força já contida no nó borromeano tal como escrito por Lacan, de real,
simbólico e imaginário, mas sim no sentido de destacar alguma coisa que se
oferece lá, naquela escrita. Interessou-me realçar isto, e talvez mesmo tenha
sido a primeira vez que se aponta algo que lá está implícito, que nem mesmo
Lacan quis, não sei por que motivo, intensificar nas suas últimas falas, embora
ele deixe claro que estava um tanto ou quanto ocupado com isso em seus últimos
Seminários. Esse título, então, que alguém deu para nosso próximo Mutirão

35
O Sexo dos Anjos

de Psicanálise, “Real, Simbólico, Imaginário: Pleroma”, deve ter sido no sen-


tido de realçar esse lado da minha indicação. Há realmente essa indicação no
termo Pleroma, mas é preciso clarear determinados pontos, pois, quando me
perguntam, as pessoas deixam claro que algo está obscuro.
Utilizo o termo Pleroma no sentido de acrescentar ao nó borromeano
escrito, planificado, tal como se usa na maioria das vezes, duas coisas freqüen-
temente esquecidas. A primeira, que pretendo tratar mais detalhadamente hoje,
diz respeito àquele terceiro lugar, que chamei de habitação de algum Falanjo,
que chamei mesmo de um terceiro sexo. Mas, mais importante do que isto, é
o fato da insistência de Lacan, em seus Seminários, em representar o nó bor-
romeano planificado, apesar da insistência de Pierre Soury, que estava sempre
presente e sempre criticou veementemente as perdas que se dão quando o nó
borromeano é planificado, em exigir que o nó fosse tratado mais concretamen-
te. O que se perde a meu ver, embora a escrita planificada seja extremamente
útil, é justamente aquilo de que algumas pessoas se esqueceram e que tratei
num Seminário chamado “O Globo da Morte”: o fato de que, se se põe em
movimento, se se deixa livre, fora da escrita, o nó borromeano, ele revira.
Portanto, a escrita levógira ou destrógira é ocasional. Pode ter muita utilidade,
mas se prender a uma das escritas, fazendo-se mesmo a suposição de que há
uma fixação de destrogeridade ou levogeridade, me parece um pouco menor
do que as possibilidades do nó.
Por isso, trouxe de novo o nozinho que apresentei naquela ocasião, o
qual também tem certa rigidez de representação, uma vez que está em círculos.
Mas, daquela vez, eu lembrava que, para além do plano projetivo, depois que
acontece alguma coisa ao plano projetivo – seja o simples destaque de um pedaço
que o transforma em banda de Moebius, que continua, no entanto, a ser deso-
rientada –, coloca-se imediatamente uma escansão, coloca-se imediatamente a
impossibilidade de uma oposição. Ora, o nó borromeano, evidentemente, não
é o plano projetivo, e aquele velho mito trazido por Freud em relação aos mo-
vimentos topológicos do corpo da criança para com o objeto, o mito do dentro
e do fora, é que me parece essencial, desde que não haja plano projetivo, pois

36
O gozo-do-sentido

nele não há condição de eu me situar dentro e fora. Aqui também, no tratamento


de uma esfera armilar borromeana, que foi o que construí para representar o tal
Globo da Morte, dentro e fora é um tipo de oposição dessa natureza. Se estou de
fora, se abordo de fora, o que está por cima, estará, na abordagem por dentro,
por baixo. Isto é uma das maneiras de entender esse Revirão, mas o que mostrei
foi como isto se revira mesmo. Algumas pessoas pensam que estou fazendo
mágica, mas revira mesmo. É só pegar dois elos que o nó revira pelo avesso:
imediatamente, o que está por dentro vai ficar por fora; o que está por fora vai
ficar por dentro, e vice-versamente. Neste sentido é que digo que o que quero
chamar de Pleroma, ainda antes da existência, ainda antes da consideração de
qualquer nó borromeano, de qualquer coisa dessa ordem, é o Revirão. É esse
mito, que posso serenamente colocar, de que: o que quer que haja tem avesso,
em algum lugar, em alguma outra cena. Um mito que até a física moderna já
aceitou com a maior simplicidade.

O que quero embutir nesse conceito de Pleroma é o que Lacan nos


trouxe como borromeaneidade – a tripartição essencial do que há em três regis-
tros: real, simbólico e imaginário – com o Revirão incluído. O que não é fazer
nenhuma totalidade sem fissuras. É uma plenitude em que, nalgum ponto, onde
revira, há algo de absolutamente impossível de ser tocado: é um buraco, um
Furo, um Real, que não se pode pegar, esse ponto de reviramento. Este não se
pode pegar. Só se pode reconhecer. Portanto, continua lá um Real impossível
de ser abordado. Podemos reconhecer que há Revirão, reconhecer seus efeitos,
etc., mas não se pode segurar o tempo, o lugar, o instante do Revirão – este é
neutro, radicalmente neutro. Então, o que estou chamando de Pleroma é uma

37
O Sexo dos Anjos

plenitude a três, concretamente, com o Revirão. Não esquecer de que se há um,


o dois se coloca, portanto, vem o três e põe o quatro. Ou seja, o nó borromeano
(real, simbólico, imaginário) é a três, sua nodulação já é, em si, proposição de
quatro, do quarto lugar. Talqualmente Lacan aponta que Freud partiu do número
quatro, que concebeu o chamado Complexo de Édipo com esse quarto troço, o
qual seguraria esses registros. Lacan vem reconsiderar o Édipo e mostrar que
esse “sintomão” de Freud – em todos os sentidos –, que lá estava amarrando,
já vigora na pura e simples amarração dos três, que projeta imediatamente um
quarto, um quarto momento, um quarto lugar.

* * *

Por isso mesmo, trouxe no semestre passado e está publicado na revista


Revirão, nº 3, que os sexos, na verdade, são quatro, um bate em ponto morto,
portanto, não há o que dizer dele. Três, podemos considerar. Precisamos, então,
começar a distinguir isso. É perfeitamente espontâneo, perfeitamente cabível,
que, na história geral do que há de disponível de discursos, a partir do simbólico
e do falante, com a pregnância imaginária das anatomias, que se tenha ficado
durante muito tempo em extrema confusão e dificuldade. Temos que lembrar
que Freud recortou uma série de coisas neste sentido, e Lacan muito mais ainda.
Mas há mais, ainda, há muito a recortar, de maneira que se possa desvincular,
com ferramentas afiadas, do ponto de vista conceitual, coisas que ainda estão
imiscuídas, registros imiscuídos.
Vemos Lacan, durante toda sua obra, e na seqüência de Freud, afirmar
que só há dois sexos. E ao escrever isso, ao produzir matemas de qualificação
desses sexos, separou de uma vez por todas esses sexos da figuração, do ima-

38
O gozo-do-sentido

ginário, da anatomia, na medida em que veio demonstrar que é uma posição


lógica do sujeito que determina, na sua história, a sua postura sexual. Não há
que se estranhar – ninguém fez estatística disso e nem sei se seria válida – que
até haja coincidência, que a maioria das mulheres não tenha pênis e que a dos
homens o tenha. É até uma suposição que Lacan fez num dos seus Seminários,
de que a partição deva ser meio a meio. É claro que a partição anatômica é
aproximadamente meio a meio... Segundo as estatísticas que há por aí, dizem
que há mais mulheres que homens, mais fêmeas, no caso. Agora, nada indica que
haja uma grande correspondência entre a sexualidade do falante e a sexualidade
animal que ele carrega no corpo, nada indica que seja meio a meio.
Lacan insistiu na existência de dois sexos e vejo aí um grande esforço
que tem que se fazer lentamente na história do falante para, cada vez mais,
separar o simbólico do imaginário. Porque se vê com muita evidência que
em estado dito de natureza, isso que a biologia costuma descrever, há seres
supostamente assexuados, quer dizer, há um teorema qualquer que aborda uma
ameba para dizer que ela não é sexuada: há seres bi-sexuados – estou falando
de sexualidade animal, em termos reprodutivos – que portam elementos machos
e fêmeos: e há seres que portam apenas um dos lados, ou macho ou fêmeo do
ponto de vista anatômico. Então, é essa mutreta da natureza, essa economia,
quem sabe, de bastarem dois, ou é o evento da história da Biologia que dividiu
assim... Quer dizer, uma economia geral deu nisso e foi suficiente, não se precisa
de mais. E essa confusão, essa pressão imaginária, tem levado pensadores os
mais refinados a insistirem em querer sustentar essa dualidade.
O que venho insistir com meu Pleroma é que a máquina de funciona-
mento é sempre dual. O dualismo freudiano é para ser sustentado, mas no que
diz respeito à máquina de funcionamento das coisas. E aí é que entra o chamado
Revirão. O dualismo, a oposição isto/outro, há/nãohá, sexo tal/sexo qual, essa
partição em dois, é um modo de funcionamento freqüente e fundamental. O
que não implica que outros processos, fabricados por cima dessa dualidade, não
sejam numericamente diversos, qual sejam, os processos ternários, quaternários,
como é o caso dos Discursos. Se observarmos, por exemplo, os elementos fun-

39
O Sexo dos Anjos

damentais na produção de um discurso como Lacan escreveu nos matemas, eles


são quaternários necessariamente, não havendo possibilidade de reduzi-los a
três ou dois. São necessariamente quaternários, porque é assim que se instala: a
dualidade funciona perfeitamente dentro do nó borromeano com o reviramento,
mas ele é necessariamente, minimamente, três, coisa que há que se insistir do
ponto de vista da topologia mais simples. Não há possibilidade de se pensar
nada de borromeano com menos de três. É claro que posso engatar dois, um
toro no outro, de tal maneira que se cortarmos um estará tudo separado. Mas
isso não produz nenhuma garantia de um terceiro elemento para fazer, daí por
diante, série quanto à liberação dos elos a partir de um corte único.
Lembro-me da insistência de Pierre Soury, em alguns Seminários de
Lacan, de que isso minimamente é três. E, evidentemente, desde que Lacan
escreveu o nó borromeano que ele insiste também neste mínimo de três, que é
de onde se pode tirar topologicamente a idéia de não-relação. O que acontece
com o nó borromeano é que, de três elementos, um sempre pode funcionar ni-
tidamente como terceiro, ou seja, aquele que estabelece uma ligação entre dois
que nada têm de relação e que, uma vez faltoso, deixa os outros absolutamente
separados. Há um terceiro que garante que não há nenhuma relação entre os
dois, que é começo da conta psicanalítica. Contar psicanaliticamente começa
de três. Contar logicamente começa de zero, psicanaliticamente começa de
três, menos não dá.
Estou insistindo nisto por causa dessa questão da formulação que tentei
introduzir acrescentando, a partir da formulação do ponto de vista de Lacan,
mais duas possibilidades. Recomendo a insistência em trabalhar diretamente
com o tetraedro borromeano que não é nada mais nada menos do que, como
já mostrei aqui, de fabricação ainda borromeana, dentro de uma representa-
ção, dispensando as sobras dos aros dos registros. Mas, embora tenha tentado
escrever aquelas fórmulas de quatro sexos em que um bate morto, é preciso
continuarmos testando a possibilidade disso, desse Pleroma.
Nós, aqui em nosso meio, sabemos, já aprendemos a lidar um pouco
com os famigerados dois sexos: o homem e a mulher. Na lógica instituída por

40
O gozo-do-sentido

Lacan, a partir da lógica aristotélica e fazendo a crítica desta, colocou-se que há


duas posturas possíveis. Se existe uma referência externa excessiva, excepcio-
nal, capaz de formular um Todo, capaz de apresentar um lugar do foraclusivo,
podemos falar em Todo. Ele chamou esse lugar de lugar do Homem. Mas se
essa existência é negada, se não entra aí nenhuma foraclusão, se se suspende
essa afirmação, o que é afirmado pode ser negado. Estamos aí num problema
estritamente lógico, pois não há Todo possível de se fechar. Lacan escreveu isto
como o caso das mulheres. Insisto no fato de que, cada vez mais, precisamos
discernir e parar de confundir sexo no sentido do falante, de sexo no sentido
reprodutivo dos corpos animais. Os penduricalhos, presentes ou ausentes na
anatomia, designam macho ou fêmea, possibilidade, apenas possibilidade:
universal, reprodutiva. Ou seja, os sexos da reprodução do falante são dois.
Mas, isso, porque ninguém ousou inventar outro diferente, não é impossível.
Estão aí os engenheiros da biologia que, quem sabe, inventam uma maneira
diferente. Zeus tinha filho na cabeça, na barriga da perna... Pode ser prenúncio
de alguma coisa...
Isso que situa mais ou menos identificatoriamente o falante é da ordem
da sexualidade adscrita à abertura mutável dentro do campo do simbólico. Mas,
como já disse, habitamos o Neolítico. Até hoje não saímos dele. A tal da Cultura
começou com o neolítico e só vai parar de existir quando ele terminar. Vai ter
que haver um esforço longo, uma transmissão longa, para grandes números de
pessoas, etc., para podermos vir até a chamar essas coisas com outros nomes,
para sairmos do imaginário anatômico e adscrever posições funcionais da
sexualidade com nomes outros. Chamar de masculino e feminino tem algo de
ligado na etimologia com macho, fêmea, etc., e tudo isso embrulha o meio do
campo. No cotidiano até que funciona mais ou menos porque o terceiro sexo
vira bicha, sapatão, mas não é (como chamam mal, aliás) entendido. Fica-se
no mal entendido.

* * *

41
O Sexo dos Anjos

Se o masculino está adscrito ao gozo-fálico, e também adscrito à perversão,


como disse Freud, embora botando o adjetivo “polimorfo”. Se o feminino está
adscrito ao gozo-do-Outro – que é preciso entendermos o que possa ser – e até, de
certa forma, adscrito por Lacan a algo da ordem da psicose, ou a alguma possível
referenciação à psicose. Não que o feminino seja psicose, mas vou mostrar aqui nas
próximas sessões como é ali mesmo que se instala a possibilidade da psicose.
Lacan trabalhou um pouco, ou bastante, a respeito do tal Terceiro Lugar.
Não é engraçado que ele tenha escrito o nó borromeano, que tenha escrito com todas
as letras gozo-fálico do homem, gozo-do-Outro, da mulher, e deixou aquele Sentido
sem dono, sem sexo? E termina a sua vida fazendo um Seminário extremamente
confuso e se perguntando pelo terceiro sexo?: “Passei a vida falando e esqueci de
falar do terceiro sexo”. Não está escrito assim lá, eu é que estou depreendendo. No
Seminário seguinte, ele dizia: “São só dois!” Então, para quem fez toda a revolução
que ele fez, e já fez muito, no fim da vida, no último Seminário, está preocupado
com ter negado o terceiro sexo... Bom, fica para mim... A gente pega a bola e faz
gol! Há um terceiro sexo, e até um quarto, de que não adianta insistir em falar
porque não fede nem cheira. Mas, o terceiro, evidentemente que há.

42
O gozo-do-sentido

Por outro lado, não podemos propriamente pegar conceitos, deslocar


de seu lugar de regência, e espalhar por todas as funcionalidades do matema
ou do objeto topológico. Quando Lacan escreve, no esquema abaixo, que se
está no regime do Sintomático, não quer dizer necessariamente que o que fun-
ciona como sintomático do gozo-fálico seja da ordem do aumento de pressão
sintomática que ele adscreve como real. Quer dizer, com o conceito amplo
de sintoma é claro que o gozo-fálico pede uma inscrição do simbólico, uma
causa de gozo no significante e, portanto, isso é sintomatizado no regime, por
exemplo, de Nome de Pai, que é sintoma, metáfora: sintoma enquanto metáfora.
Isto é diferente de, a partir de haver metáfora, e portanto de raiz sintomática,
intensificar a zona sintomática ou a zona de Angústia, pelo simples fato de que
quem não tem pai fica muito disponível à angústia, é claro! As mulheres ficam
“maluquétes” por causa da sua disponibilidade à angústia. Agora, quando a
angústia invade, é a intensificação disso em outros campos, a partir de uma raiz
constitucional, estrutural de angústia. Então, ao Sentido ele adscreveu Inibição.
Tomemos isso como conceito. Se paro de resvalar, pura e simplesmente, paro de
revirar e ancoro em algum sentido, foi preciso inibir o movimento inconsciente,
sim – isto é um conceito. Agora, aproveitando-se disso é que posso ter inibição
“patológica”, sintoma “patológico”, ou psicopático, ou excessivamente “pático”,
que é diferente de sintoma tout court, conceito, metáfora. Angústia, então, não
é necessariamente mais angústia; inibição não é necessariamente mais inibição,
é limitação. Não se é capaz de atribuir sentido se não se inibe as séries. Se se
fica delirando no texto, se se feminiza e se deixa o Outro gozar à vontade, a
tendência é perder os sentidos, ou uma expansão tão grande que não se pode
situar nada. Ora, se se pretende dar algum sentido, é preciso inibir as séries – e
isto é conceitual. Agora, excessiva inibição, entra na patologia: o sujeito não
ousa ultrapassar o sentido dado. Precisamos, então, fazer uma diferença muito
clara entre, por exemplo, produção de metáfora e metáfora dada. Vigorar na
produção da metáfora faz parte mesmo do ato poético. O que é diferente de se
referir constantemente a uma metáfora tida. Passar levemente, necessariamente,
como todo mundo passa na sua vida, freqüentemente quase todo dia (devia ser,

43
O Sexo dos Anjos

infelizmente não é), por momentos de angústia, ou seja, por momentos em que o
real comparece, é perfeitamente ótimo: passa-se pela angústia e sai-se do outro
lado, sabe-se dançar, ter jogo de cintura. O que é diferente de ficar aprisionado,
empacotado, diante de uma emergência de real e não ter como “sartar” para a
metáfora, para o sentido. O jogo é dinâmico, não é paralisado.
Fazer sentido, então, é diferente de referir-se ao sentido tido. É preciso
fazer sentido, e há um gozo aí. Lacan escreveu gozo-fálico, gozo-do-Outro, e
por que não escreveu gozo-do-Sentido? Não escreveu porque não quis. Então,
escrevo eu. E já que foi ele quem inventou, vamos na língua dele: jouissance
du sens. Existe um gozo particular de fazer sentido, gozo este que encontra-
mos descrito diversas vezes em Freud, tanto na Traumdeutung quanto no texto
do Chiste, onde ele mostra que é preciso fazer sentido. Por exemplo, ser da
paróquia para entrar no jogo do sentido para rir. E que o gozo-do-Sentido não
deixa de tocar regiões bastante grandes e discrimináveis do chamado corpo,
dos chamados sentidos. Goza-se até – não estou dizendo no corpo, pois quem
goza no corpo é a Outra – em regiões da anatomia. Goza-se dos sentidos, sim!
Até uma coceirinha é um troço muito legal, já notaram? Tem hora que goza:
chega, não precisa gozar mais! E não é gozo-fálico.
Usamos essas palavras sem lhes dar muita importância. Lá na infância,
para quem tem boa memória, quando, por exemplo, a gente aprende a gozar
com o dedinho, essas brincadeiras, a aprendizagem, a transmissão que alguém
nos fez de como se goza falicamente, foi pela via do sentido, dos sentidos e do
que se sente. Isso foi aprendido, e fica até na palavra das crianças. A criança diz
que às vezes sente um “gostinho”. É pela via desse outro gozo que se consegue
até adscrever ao gozo-fálico uma funcionalidade metafórica e sintomática.
Passa primeiro por fazer sentido, tanto numa série verbal quanto no encosto,
na tangência, desta série com partes da carne. Não estou falando de corpo. São
pedaços, regiões da carne. É um gozo de sentido. Falamos dos sentidos, dos
cinco sentidos, etc., mas como os sentidos fazem sentir? Não é preciso ser psi-
cólogo, nem fazer psicologia de laboratórios, para se ter uma certa experiência
de que é de repente. Eis aí uma coisa sobre a qual os estetas vivem escrevendo

44
O gozo-do-sentido

volumes e não conseguem chegar a grande coisa. Por exemplo, a música, no


sentido auditivo, faz sentir um certo encaixe, é gozoso, sensorial, sensitiva e
sensualmente, e com sentido feito na articulação dos elementos simbólicos. O
gozo estético, do ponto de vista de cores, etc., de repente, faz sentido. Gosto não
se discute, mas, para um certo sujeito, bateu, valeu tal textura, tal cor: “Agora,
sim, tocou no ponto, gozei!” Esse gozo não é gozo-do-Outro e também não é
gozo-fálico – é gozo do Falanjo.
Mas, atenção!, o gozo-do-Sentido não deixa de se adscrever ao gozo-
fálico. Quando Lacan toma o gozo-do-Outro, e mostra que ele é sozinho, lá
por sua própria conta, mas que as ditas mulheres têm um pé no gozo-fálico,
é porque sem uma referência sintomática esse gozo fica completamente sem
marcação. Assim como posso dizer que aquela cor é um tesão, no sentido fáli-
co, é porque posso fazer uma adscrição, uma tangência, em outro registro, em
outra interseção. Portanto, o gozo-do-Sentido tem algo que posso metaforizar
como gozo-fálico.
Traduzir gozo-fálico em termos de gozo-do-Outro, por exemplo, me
parece difícil. Minha intenção, inclusive, é buscar chaves de tradução, mas não
sei... Tomemos um sujeito do sexo dito macho, anatomicamente e até eventu-
almente dito do sexo masculino do ponto de vista simbólico, etc. Nas transas
eróticas desse sujeito, o quanto de gozo-do-Outro colabora para que ele se
aproxime mais radicalmente do gozo-fálico? Quer dizer, o quanto de mulher-
zinha goza ali para ajudar o hominho gozar? Temos tudo isso em movimento
e quer me parecer que não escrever esse terceiro sexo é falho demais – mesmo
porque certos sujeitos por aí se identificam nitidamente, dispensando às vezes o
gozo-fálico, o gozo-do-Outro. Assim como encontramos místicos que ficam no
gozo-do-Outro e dispensam o gozo-fálico. Assim como encontramos grandes
punheteiros que dispensam, minimizam, o gozo-do-Outro e o gozo-do-Sentido.
E eu preciso desse encadeamento para lhes mostrar que a intenção deste se-
mestre – coisa que ensaiei no Pato Lógico sem a menor satisfação, e por isso
insisto, eu também gosto de gozar, nem que seja pelo Sentido – é de que posso
estabelecer uma patologia sobre esses lugares. Não só posso, como devo. É

45
O Sexo dos Anjos

preciso estabelecer para além e para aquém das histórias pessoais, das marca-
ções significantes, nodulações particulares, do ponto de vista da topologia do
nó borromeano, onde iremos talvez encaixar uma nosologia muito mais precisa
do que a de Neurose, de Psicose, e do que é uma coisa nova que pretendo trazer
para substituir esse negócio de Perversão, que é Morfose.
Mas, retornando um pouco, se tomarmos por exemplo, na questão da
língua, palavras como sentimento, sentimental, sensacional, sensual, sensação,
sensato, sensibilidade – não dizem que o artista é um cara muito sensível? –, o
sensível mesmo, o sensitivo... Na música, na harmonia clássica, o termo “sen-
sível” indica um certo grau de uma escala, que denota o sentido tonal daquela
escala, é dali que bate o sentido da tonalidade. O sensor (com s), os sensores
no sentido mais fisiológico ou eletrônico, o cálculo sensorial, no sentido de cál-
culo vetorial, ou cálculo sensual, que pode emprestar um valor completamente
novo, por exemplo, às abordagens estéticas. Situar-se, a partir do momento
que se tem as sexualidades desvinculadas das anatomias, por exemplo, para
um sujeito dado num momento, que sexo ele está usando. Uma vez, fui ver
o falecido Charles Mingus e fiquei extremamente impressionado com o cara,
porque, com licença da má palavra, ele tocava “siririca” no contrabaixo, com
uma sensualidade tal que o contrabaixo gozava. Ele ficava gozando de um lado
e o contrabaixo do outro. As aparências metafóricas eram de um erotismo tal...
E ele procurando as notinhas, era alguma coisa espantosa... Quer dizer, estava
lá o anjinho gozando, e o seu instrumento também... Aliás, quero acrescentar
aqui que minha abordagem para conceito de obra de arte até hoje nitidamente
se prende a uma fase em que eu tentava conceber o Revirão. É uma abordagem
em cima do Revirão.

* * *

Precisamos, então, repensar, adscrever a essa sexualidade sobre o tetra-


edro borromeano essa representaçãozinha, desde que vocês não se prendam à
sua fixidez já que ela está pintada sobre o cartão, e, portanto, não está reviran-

46
O gozo-do-sentido

do. Mas vocês podem facilmente imaginar que ela revira, bastando puxar esse
vértice por baixo, aí ele revira, e continua o tetraedro. Ou façam um tetraedro
de arame que verão que ele revira, fácil, fácil.
Formulei esse modo de representar porque essa caixinha aqui nos ajuda
a raciocinar. É a pirâmide do Borromeu. Ela certamente deve ter uma normali-
dade de assentamento. Minha questão está em que sempre se disse que há três
sexos. Todo mundo sabe que há três, só não sabe quais são, e se os adscrevem
a comportamentos. Mas se conseguirmos conceituar isso, matemizar um pouco,
quero supor que teremos uma ferramenta de escuta bastante afiada que, talvez –
assim como passamos por aquele anedotário do Édipo na história do analisando,
depois ficamos brincando com palavrinhas, equivocando em cima da língua, e
que qualquer publicitário da pior espécie já está fazendo melhor que os analistas
de televisão, e tudo tem seu tempo, sua emergência, seu espanto, sua vez e sua
hora –, possamos começar a escutar como a patologia que se apresenta para o
analista num tratamento está inscrita enquanto sexualidade. Talvez se possa fazer
o expediente de rotação de maneira que o sujeito venha a ter uma sexualidade
normal, que não é nada do que vocês podem estar pensando.
Vemos isso na própria história da psicanálise. Por mais que os analis-
tas sejam brilhantes, bem analisados, inteligentes e criativos, vemos sempre a
força, a pressão, do imaginário vigorando. Quer dizer, no finalzinho de tudo,
ao tempo dos neo-freudianos, a normalidade virou o que Lacan chamou de
“supremo de genital”: trepou legal, de papai/mamãe, fez neném, é normal.
Agora, mais recentemente, já se fica nessa de homem ou mulher, pois já existe
o neolacanês, como o neo-freudês já aconteceu. As pessoas assustadinhas, desde
suas neuroses particulares, dando uma guinada para insistir em permanecer no
neolítico. Então, vemos as coisas mais estapafúrdias por causa das incertezas,
da prudência do mestre, etc.: as pessoas um pouquinho mais estúpidas tomam
prudência por certeza na estupidez e regridem com a maior facilidade. E nós
continuamos a ver que a proliferação textual, de fala, já dentro do mundo la-
canês, já é no sentido de começar a “normalizar” as coisas. Lacan disse como
são as mulheres, basta a gente se vestir de mulherzinha, já vira mulher; disse

47
O Sexo dos Anjos

como é homem, a gente se veste como homem, vira homem. Já está assim nos
textos. E fica-se surdo – quem sabe, é surdo.
Tomemos um exemplo interessante. Vocês sabem de todos os compor-
tamentos, brincanagens, de posição sexual, na chamada vida – e a gente tem
explicação para tudo. Freud, afinal de contas, explica ou não explica? Mas no
meio dessa coisa, por falta, a meu ver, conceitual, de insistência em escutar
até fazer buraco no ouvido e procurar alguma outra saída, já se fica outra vez
empurrando o sujeito para dentro de uma nosografia extremamente cerrada.
As pessoas sabem dar conta da heterossexualidade – suponho que sabem –, da
homossexualidade, de travesti, etc., está tudo muito bem transado. Mas existe
certa coisa que resiste um pouco ao entendimento: o chamado transexual, o
qual é exemplar para estudarmos essa questão de como situar a sexualidade.
Todo mundo se preocupa, em nosso campo e outros adjacentes, com o tran-
sexual. Existe um famoso Stoller, de quem vocês certamente já leram o livro,
Sex and Gender, que, do ponto de vista médico e psicológico americano, deu
uma cortada nisso; sexo não é gênero. Parece tolo, mas não é, se nos deixarmos
escutar. Há pelo menos um que acha que sexo é diferente de gênero, Lacan já
disse que a sexualidade do falante não é a sexualidade reprodutora do animal.
Mas Stoller continua com dois sexos e, portanto, dois gêneros, e dá lá seus
jeitinhos particulares para conceder em cirurgias de passagem de sexo. Ele tem
um vasto trabalho sobre isso.
Muitos analistas se preocupam com o transexual; no campo dito laca-
niano também. Existe uma senhora, que já escreveu um livro sobre pedagogia,
e parece que recentemente já escreveu um sobre transexualidade, que se chama
Cathérine Millot, estudiosa, lacaniana, etc., tudo direitinho... Outro dia, caiu-
me nas mãos uma Publicação dos Encontros da Clínica Freudiana, com falas
dela e de Gérard Pommier, se não me engano, na Bahia. Só tive tempo de ler
a Cathérine Millot porque me interessava do ponto de vista do meu trabalho,
já que ela falava sobre o transexualismo. Empurra-se ultimamente, de prefe-
rência (não que ela esteja falando do transexualismo em si), o transexual para
a zona da psicose. Uma psicose que se instalou na exigência não de análise,

48
O gozo-do-sentido

não de delírio, mas de quê?: “Estou certo de que a minha identidade sexual
está errada e quero passar para outra” – que seria a verdadeira. Muitos tran-
sexuais até conseguem uma cirurgia e parecem dizer que o que lhes interessa
fundamentalmente é passar por alguma experiência de saída do sexo onde estão
inscritos – porque do outro lado eles não chegam mesmo. A cirurgia não está
tão boa que possa transformar macho em fêmea e fêmea em macho, não dá
muito certo. Mas parece que o interesse deles é poder ser considerado pelos
outros com a identidade sexual que teriam escolhido.
O que os cirurgiões, os psicólogos, os psicanalistas constatam é que,
mesmo depois de tal cirurgia, eles ficam mais aliviados de terem passado do
que de não chegarem ao sexo que queriam – não era bem aquilo, mesmo que
desse certo –, mas, do ponto de vista de sua identidade, eles se sentem mais
aliviados de poderem ser chamados do outro sexo e, sobretudo, de terem pas-
sado de sexo. Stoller, então, se fixa nessa questão da identidade sexual, de que
essas pessoas estarão realmente fora de situação porque sua identidade sexual
é contrária. Ou seja, na formulação lacaniana, seriam, por exemplo, homens
que estariam em corpos fêmeos, ou mulheres que estariam em corpos machos
e, então, querem empatar a identidade. Isto parece uma tolice porque, afinal de
contas, se existe simbólico, não custa nada continuar com o corpo de macho e
ser mulherzinha, é tão simples. E, do ponto de vista psicanalítico, pode dar a
impressão de ser uma psicose, porque eles querem realmente passar para o outro
lado quando podiam simbolizar isso, e até serem mais homens que os machos
ou mais mulheres que as fêmeas. Cathérine Millot põe que “Lacan dizia que
os transexuais confundiam o órgão e o significante”. É disto que estou falando,
ou seja, se eles pudessem adscrever a isso que querem chamar de órgão uma
posição significante, podiam fazer desse tal órgão o que quisessem.
Tudo muito bem! Mas fico muito preocupado com a questão que está
em jogo nesse pedido de travessia do sexo, de corpo, e que parece sobretudo
um pedido de travessia. E que não me parece, bem escutado, no caso de Stoller,
que eles estejam certos, embora digam isto, de que sua identidade é do outro
sexo. No que será que eles mais insistem?

49
O Sexo dos Anjos

Vou me apegar, sobretudo, ao desenvolvimento que faz Cathérine


Millot, que estudou muito isso, e a um certo momento quando ela fica surda,
não inteiramente, mas bastante. Ela começa a escutar transexuais que ela pro-
cura, porque eles não a procuraram para fazer análise. E ela até diz, de maneira
inteligente, que não recomenda a psicanálise como solução para transexualismo,
sobretudo porque acha que o transexual ou será perverso, ou será psicótico, e
não procura analista, não tem nada a ver com isso. Não sei por que não procura.
Quem sabe o analista o assusta porque não sabe escutar? Pode ser por isso, não
faço a menor idéia. Mas chega um certo momento em que, por suas publicações
e entrevistas em jornal, etc., alguns transexuais a procuram contestatoriamente
para dizer que ela não sabe picas daquilo que está falando, que não entende
nada, que está falando besteira. Era o caso de se escutar. Quem sabe se eles é
que sabem? Eles é que estão com o problema. Eles podem não ser bons teóricos
do assunto, mas podem saber do que se trata para eles.
Diz ela que há alguns “que somente querem se livrar dos sinais da sua
sexuação, daquilo que as trai como mulher”, daquilo que sela, etc., querem
parecer homens, tomam hormônios, etc. Ela cita, então, uma certa pessoa que,
ao saber que ela estava tratando desses assuntos, lhe telefona para dizer coisas,
para lhe dizer “a verdade” sobre o transexualismo. Essa pessoa lhe diz que “o
fato de se pedir um sexo, de se pedir que ‘fabriquem’ um sexo masculino, que
isto é uma obsessão, que não tem absolutamente nada a ver com o transexua-
lismo, que é uma obsessão sexual”. Ou seja, que é uma obsessão dessa pessoa
que procura isso, mas não é isso que se quer. E ela continua: “Então, o que
caracteriza o transexualismo para essa pessoa não é uma questão de gênero,
como dizia Stoller. O transexualismo, dizia essa pessoa, é uma questão de iden-
tidade e não de sexo, e ao mesmo tempo ela dizia, a respeito dessa questão da
identidade, que na realidade as mulheres transexuais” – quer dizer, as fêmeas
transexuais – “que dizem que se sentem homens contam mentiras, porque não
se trata disto” – grifo meu. Este é o depoimento de um transexual fêmeo. Do
que se trata, então? Aí o transexual vai lhe explicar: “O que querem as transexu-
ais” – atenção! – “é pertencer a um terceiro sexo. Por não haver o terceiro sexo,

50
O gozo-do-sentido

por estarem seguras de não se sentirem em nenhum caso como mulheres, é por
isso que elas se sentem na obrigação de “passar” – grifo meu – “para o lado do
homem” – não de ser homem –, “mas isto é um ‘quebra-galho’; foi uma pessoa
operada que me falou assim”. Ou seja, foi-lhe dito com todas as letras, a moça é que
não escuta. “Mas esta jovem me diz a mesma coisa que aquela outra pessoa da qual
estava falando antes. Ela me diz que, como não se sentia mulher, precisava ‘passar
para o lado homem’. Mas dizia que também não se sentia precisamente homem” – se-
gundo caso, então. “De certa forma” continua Millot – “essas pessoas se encontram
também na posição de quererem erradicar as marcas do sexo” – fazer sentido,
produzi-lo – , “de querer se situar ex-sexo” – ex-dois conhecidos –, “fora-do-sexo,
num certo além da sexuação, e sua posição fantasística é muitas vezes a de ser o
falo da mulher” – aí já engrossou. “A primeira da qual falei (aquela que me telefonou
e veio por si mesma) dizia que antes de ser operada se sentia como sendo complemento
das mulheres e não somente de uma mulher, mas das mulheres em conjunto”
– uma maneira ignara, quem sabe?, de dizer que quer ser o Anjo das mulheres,
dar sentido a elas: já que não se pode fazer um todo, dá-se um sentido.
Como as mulheres devem ser? Qualquer costureiro sabe! Ele diz:
“Vista-se assim, que você é mulher!” Não é isto, dar sentido? Ao conjunto
aberto das mulheres? Ou não? É dar sentido e não dar gozo-fálico, nem dar um
para-todo à mulher. Porque varia: uma não aceita o vestido igual ao da outra –
mesmo assim ele lhes dá sentido, lhes dá uma moda. Retornando ao texto: “Ela
se sentia sendo o que faltava às mulheres” – naturalmente que a outra pensa
que é falo. Mas é preciso perguntar: o que falta às mulheres? Pode faltar um
vestido adequado: “Você está um lixo, você não parece uma mulher, vá se vestir
condignamente!”. Mas continuando: “E curiosamente a operação a colocou fora
dessa posição, ela parou de ser aquilo que falta às mulheres” – de repente, ela é
que pode dar o que falta às mulheres. “Depois dessa operação, ela não se sentia
mais o complemento das mulheres; isso não funcionava mais. Essas pessoas
de certa maneira, como os homens transexuais, acreditam na Mulher com M
maiúsculo” – nada me indica em sua fala que ela acredite nisso. Dizer que ela
quer tratar do conjunto das mulheres, como qualquer cabeleireiro da zona sul do

51
O Sexo dos Anjos

Rio de Janeiro, não é dizer que há A Mulher. Ele sabe que não há. Ele sabe que
elas não aceitam o mesmo cabelo e até aconselham que façam outro, cada uma
diferente, já que vão à mesma festa. Parece que analista não sabe escutar cabelei-
reiro... “E é exatamente por isso que elas não se sentem mais mulheres. Já que, por não
se sentir como sendo A Mulher” – isto é teorizado a partir do dado –, “elas consideram
que não são mulher absolutamente”. Não é isto! Ela está teorizando aí que o problema
é que, por elas não se sentirem A Mulher, então, pensam que não são mulheres.
Não se trata disso! Isso é histeria e nada tem a ver com transexualismo.
“Aí me parece” – continuo citando – “que está uma mola importante do
transexualismo feminino. Não se sentir mulher, não se sentir nem de um sexo
nem de outro” – ela disse, escutou e botou no papel –, “precisa ser transexual
para dizer tais coisas”. Mas tudo se resolve teoricamente por essa senhora
dizendo que deve ser psicose, deve ser a crença na existência de A Mulher,
etc. Não creio nisso, pois nada qualifica esses sujeitos como psicóticos. Pode
classificá-los como dupes, como tolos, porque não sacam que podem simbolizar,
e não encontram em nenhuma região do planeta um terceiro lugar. Porque o
que dizem para eles é: “Tem terceiro sexo: seja bicha, seja sapatão!” Mas não é
isso: “Só quero que as pessoas reconheçam que eu não sou isso!” E elas dizem:
“Eu sou o terceiro sexo”. Então, o que está envolvido nesse terceiro sexo? Se
isso for simbolizado, analisado e disseminado, talvez muitas pessoas encontrem
formas de não estarem se mutilando dessa maneira. Porque poderão encontrar
que mesmo tomar como significante um órgão não produz gozo suficiente, se
não que esse significante possa se instalar numa série que lhe dê sentido e gozo
desse sentido, gozo dentro desse sentido. Porque muitos encontram essa saída,
se inscrevem no terceiro sexo para valer, suas brincanagens eróticas variam ou
não, isso não interessa, e começam a produzir um lugar de gozo, na fabricação,
no fazer, no doar sentido. E se instalam muito bem por aí, e lhes é um gozo
extremamente superior a qualquer gozo-fálico.
Aliás, encontramos na clínica, embora não nos deparemos com tran-
sexuais, freqüentemente, dubitações, tropeços, escorregões, passando por aí.
E insisto: a própria estruturação da neurose é aí.

52
O gozo-do-sentido

Pode ser que haja um certo exagero por parte do transexual de chegar
a lançar pedaços de sua carne nesse jogo de obrigar o outro a aceitar outro sen-
tido, porque é isto que ele quer. Acho que do que sofre o transexual é de uma
retaliação: ele tem que obrigar o outro a engolir que ele trocou o sentido, que
o sentido pode ser outro. E quer isso na carne, concretamente. Ora, na carne,
concretamente, pode ser num quadro, numa peça de música. E também na
carne, concretamente. Mas, eu me pergunto: de onde vem esse moralismo que
há que considerar que porque o cara vai oferecer como tinta, ou como som, a
sua carne, ele é mais doente do que o pintor? Isto não é pertinente à cabeça de
um analista, o qual pode, sim, fazê-lo considerar que é um risco muito grande,
que talvez não seja a hora, que a tecnologia não seja adequada, mas porque
tenho eu que embargar que qualquer material sirva para obra de arte? E se,
amanhã, uma cirurgia, uma biologia nova, conseguir fazer bem feito? Por que
não pode? Não é disto que se trata, portanto. Não é porque o cara quer fazer a
obra com os materiais da sua carne, que ele é mais doente. Ele pode ser mais
tolo, de estar se mutilando sem bons resultados. Mas nota-se em muitos dos que
escrevem a respeito do assunto, que encontram a patologia de o cara querer,
não aceitando que o órgão depende do significante, trabalhar o órgão. Isto não
é tão simples porque, afinal de contas, é aceitando que a tinta não é tinta que
eu trabalho sobre a tinta, e com ela... No que diz respeito ao corpo do cara,
existem estes escrúpulos todos. Eu digo: cagaço do analista. Ele é quem está
encagaçado porque, dentro da produção artística, téchne, do mundo, não se
poderá dizer um dia: “Hoje quero ir a uma festa com uma pele azul, e não com
a morena” – e que isso funcione sem tinta? No momento não é factível...

* * *

Na requisição de um sentido, de um gozo-fálico, de um gozo do corpo,


passo pelo discurso da histeria para solicitar do Outro que me dê isso. Não é
necessariamente uma histérica. Pedido, só pode ser feito pela formulação histé-
rica, mas não necessariamente a neurose histérica. Quando estou aqui falando,

53
O Sexo dos Anjos

estou fazendo um vocativo histérico. Não me sobra, no caso, outro discurso para
falar com vocês, só tenho este. Então, não vamos confundir posição histérica
ou estar no discurso da histérica, com neurose histérica...
Daqui por diante, das próximas vezes, vou tentar iniciar uma patolo-
gia assentada sobre os defeitos noduladores dos três sexos e a normalização
fantasística, ou fantasmática, ou fantástica, como quiserem, com referência ao
quarto. E tentar estabelecer a diferença entre posição sexual, que um sujeito
pode tomar, e obrigação sexual, que instala uma patologia.

10/ABR

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Contos dos bosques de Viena

3
CONTOS DOS BOSQUES DE VIENA

Início do Seminário com a audição de Contos dos


Bosques de Viena , de Johann Strauss.

Nós, freudianos, vivemos de contos provenientes dos Bosques de Viena.


Nossas ficções lá têm origem. E para somar a valsa com a psicanálise, temos que
entrar definitivamente em compasso ternário. O interessante da valsa vienense,
sobretudo, é o compasso ternário, o qual, para quem só tem dois pés, produz
alguma sincope na dança, no seu movimento... Do ponto de vista corporal,
anatômico, se quiserem, os pés são dois – os compassos da valsa são três. Há
duas saídas: ou fazer uma sincope com os passos, ou fazer quiáltera. Este é um

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O Sexo dos Anjos

termo da música, quid altera: quando, dentro do regramento dos compassos


contáveis, quando a música é compassada, se coloca um tempo, ou vários, a mais
do que o que cabe na batida do compasso. Por exemplo, ter um compasso binário
e precisar de uma frase com três tempos inscrita dentro desse compasso binário,
isto se chama uma quiáltera. É como se tivéssemos uma batida de dois numa
mão e uma de três, ao mesmo tempo, na outra – vai dar esse descompasso.
É exatamente esta a questão da sexualidade que a psicanálise pode
mostrar: os sexos, do ponto de vista da reprodução, o que nos foi legado pela
ancestratidade animal, são dois, mas, do ponto de vista do falante, a sexualidade
é um sonho de valsa. Como se vai meter três tempos na binariedade freudiana?
Esse sonho, que já devia estar lá, como suponho, na valsa vienense do Freud,
não é sem ele, e sem os recursos posteriormente trazidos por Lacan, que venho
insistir que há uma quiáltera. Já disse de vez anterior – está na revista Revirão
nº 3 – que os sexos do falante são três. Os sexos da reprodução são dois. E o
órgão sexual é um só, o Falo.
Então: três, dois, um; um, dois, três – e torno a repetir que é a confusão
entre esses três pontos, esses três lugares, esses três números, na série, que faz
com que as pessoas, até as mais brilhantes, tenham se perdido freqüentemente
no questionamento da sexualidade. O mais ousado até agora tem sido Lacan,
que, pelo menos, desconectou a sexualidade do falante da sexualidade repro-
dutora: o famoso “supremo de genital”, como ele chama.
Vamos insistir nisto. E insistir no fato de que, em termos de valsa, de
sonho de valsa – vocês sabem que o sonho é uma produção lídima do Incons-
ciente –, temos que insistir no artifício. Uma frase do Picasso, que tomei para
ler hoje: “A pintura não é uma questão de sensibilidade, é preciso tomar o po-
der, há que tomar o lugar da Natureza e não depender das informações que ela
oferece”. Ou seja, ele está dando depoimento, a meu ver, de que há cubismo,
por exemplo, de que inventou novos corpos, novas figurações, porque ele tem
um sonho de valsa, certamente.
Eu deveria continuar porque isso precisa ser delongado e amplamente
ilustrado, esse lugar terceiro, do Sentido, que chamei de Terceiro Sexo, o gozo

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Contos dos bosques de Viena

ao Outro, o gozo-do-Sentido, lugar do Falanjo – é preciso demonstrar isso muito


longamente, É preciso falar, por exemplo, de alguns espécimes, que me pare-
cem exemplares desse lugar, na arte, na literatura, na música... Por exemplo, a
Carmen, de Merimée e Bizet, Lewis Carroll , de sua Alice, e arredores, Drácula,
Miguel de Cervantes, Marquês de Sade, Proust, Joyce, Lautréamont, com seu
Maldoror, Webern, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Walt Whitman, Melville
– são vários que eu gostaria de ter tempo para estudar e lhes trazer como eles
expõem isso... Mas acontece que vai haver um certo Mutirão de Psicanálise
que tem como título: “R.S.I.: Pleroma”. E como há pressa de apresentar alguns
elementos que eventualmente possam lá servir de material de trabalho, vou pular
por cima disso e apresentar alguns pontos que são elementos básicos do meu
raciocínio – os quais também merecem aproximação muito mais trabalhada, e
vocês vão me desculpar de hoje apresentar assim meio abruptamente, no intuito
de retomar seguidas vezes até esclarecermos.

* * *

Como já lhes disse, estou de volta ao Pato Lógico, retorno do re-


calcado. Naquela época, eu fazia o trabalho de, por alguma via, seguir uma
recomendação de Freud, de que toda a nosologia caberia na formalização da
questão da sexualidade, da diferença sexual, Desenvolvi isto mais ou menos
longamente no Pato Lógico, de uma certa maneira. De lá para cá as coisas
mudaram, os conceitos se apresentaram, idéias novas, novas sacações. Então,
estamos de volta à possibilidade de uma nosologia, a mais completa possível,
uma patologia apenas assentada na questão da diferença sexual, na sexualidade.
Só que, desta vez, diferentemente, conto com três sexos, que não tinham sido
ousados até então.
Tentarei fazer a diferença entre posição sexual (ou ligação sexual, se
quiserem) e obrigação sexual. A palavra obrigação não significa senão ob liga-
tione, uma ligação posta ou imposta, fortemente colocada. Quer me parecer que
poderíamos abordar o Pleroma, o nó borromeano e seus três sexos, pensando

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O Sexo dos Anjos

o que seria a sexualidade do falante, o que de normal se pode tirar daí. Normal
no sentido mais matemático e mais amplo do termo. Qual deveria ser, a rigor,
a sexualidade do falante? Se ele pudesse, numa análise, desembaraçar-se das
suas obrigações sexuais e até mesmo dialetizar as suas ligações sexuais?
Minha questão é, então, a distinção entre posição ou ligação sexual –
em qual delas o sujeito está ligado em sua história no simbólico – possíveis
obrigações ou seja, quando o sujeito não só está ligado num determinado ponto,
numa determinada face desse tetraedro que lhes apresentei, mas fica obrigado a
dar conta dessa face o tempo todo, prejudicando uma certa dialética que a mera
ligação possibilita. Mas, a meu ver, adianto logo que a própria ligação também
é prejudicial, pois quero supor que uma cura psicanalítica levada a termo, até
mesmo das ligações sexuais desembaraça o sujeito.
A posição de ligação masculina é aquela que conhecemos, que Freud
chamou de adscrita à perversão polimorfa, com o famoso destaque dos objetos
parciais. Eventualmente ela pode até dar em certa mestria. Ela tem uma certa
finalística, uma certa ideologia teleológica de atingimento de um certo fim cha-
mado gozo-fálico. E, às vezes, pode ter a aparência de uma suave perversão: os
gostos particulares de um homenzinho, na sua maneira particular de gozar.
A posição, a ligação feminina mora lá no gozo-do-Outro, segundo Lacan.
No feminino tenta-se gozar como o Outro goza. Como o Outro não goza, as coi-
sas são quase que uma tentativa e seu estrebuchamento, fazer de conta que está
gozando como Outro. Isso pode dar uma suave loucura: aquela maluquicezinha
das mulheres, quando começam a gozar. E tem também uma certa finalística,
uma teleologia, mas que não é ideológica, e sim mais ou menos signo-lógica. As
mulheres começam a fazer signo do seu gozo. Elas têm que dizer para a gente
que estão gozando, têm que fazer signo, porque aquilo não convence...
Na posição, na ligação angélica, a coisa se passa no regime da ins-
crição. Um gozo angélico, só por escrito se demonstra. E, portanto, ele pode
parecer com uma boa neurose, uma neurose decente... Tem também a sua
finalística particular, que é lítero-teleológica, a teleologia é de letra, é de
inscrever alguma letra.

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Contos dos bosques de Viena

Eu poderia até dizer que há uma espécie de posição plerômica, que não
está nem no masculino, nem no feminino, nem no angélico. Existirá um gozo
pleno do tetraedro por inteiro, sem fazermos nenhuma ligação com nenhum
desses três? Acho que sim. É da ordem do nem homem nem mulher, nem
masculino nem feminino, nem Anjo nem Morte. Um gozo maior, plerômico,
integral – com furo, é claro! O nome seria Sublimação. Não a mera sublima-
ção da escrita, mas uma vontade de sublimação. Pode dar uma aparência de
sublimação total, quem sabe até mesmo de santidade, sem aquela aparência
finalística do cristão. Não é o santo da santidade do catolicismo. É o místico.
Lacan dizia que o santo é “le rebut de la jouissance”, o que se joga fora. É uma
finalística holo-teleológica, ou pleromo-teleológica, porque tem uma vocação
de realismo integral, de um realismo absoluto, fantástico, de fantasia.
Para falar um pouquinho dessa posição do Falanjo, que é um pouco
nova – nova a maneira de abordar, porque ela sempre existiu – é esse gozo ao
Outro, que tem duas concepções na língua: à maneira do Outro, ou um gozo
oferecido ao Outro – diferente da produção do feminino, que é gozo do Outro.
Gozar como o Outro é diferente de gozar à maneira de, que é uma oferta de gozo
ao Outro. É no sentido mesmo de que existe um gozo que se dá por escrito e só
se inscreve, escreve, em nível de carne, na carne de um outro, que vem como
representante do Outro. É diferente do gozo dito feminino, que é o gozo-do-
Outro se apossando da carne da chamada mulher. O gozo do Anjo está em fazer
gozar, gozo oferecido ao Outro: as gueixas são maravilhosamente angélicas.
Todo um malabarismo, e há um gozo naquilo de fazer o Outro gozar.
Em francês poderia ser chamado de jouissens, que é uma maneira de ser
causa do gozo-do-Outro. O objeto a é causa do desejo. O significante é causa
do gozo, como Lacan colocou. Quando um sujeito tenta ser causa do gozo-
do-Outro, de um outro, e não causa do seu desejo, ele simplesmente está se
tornando significante para o Outro, puramente significante. É isso que a obra de
arte fornece. É por isso que Freud, Marx, essa gente toda, ficava se perguntando
como as tragédias gregas fazem isso. Porque elas são causa do gozo-do-Outro.
São angélicas. Para ser causa de gozo de Outro, de outro sujeito, há que ser

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O Sexo dos Anjos

significante, tornar-se compatível com S1 para esse Outro, ou, pelo menos,
ser gozosamente significante para esse Outro, para um outro. Não qualquer
significante, mas um tal que lhe cause algum gozo. Esse significante é posto,
obscenamente, diante do Outro, dos outros, de uma massa, de um público, de
tal maneira que encontra, no enxame significante desses outros, um lugarzinho
por onde pode meter o dedinho dele. Quer dizer, pertencer de alguma maneira
ao gozo desses outros. É o que o artista faz: ele arranca orgasmos, aplausos.
Porque ele vai lá e os escreve. Isso vai lá e escreve, futuca, mas não estabelece
nenhuma relação. O de lá goza também de maneira angélica ou não, orgásmica,
tanto faz... Pois nada impede que esse gozo angélico também produza o gozo-
fálico. É o caso das gueixas, de oferecer o gozo ao Outro, e tirar apenas o gozo
angélico da brincadeira, É uma maneira de existir.
Ser causa do gozo-do-Outro pode ser conseguido por um encontro,
ainda que aproximativo, por uma questão de gosto, na produção do artista, ou
por radicalidade de ato poético: fazer com que, quando tudo se zera, pinte esse
significante lá no Outro. Brandir a neutralidade, o real da escansão entre S1 e S2,
a obra de arte, o ato poético, faz isso. A mera artistificação, não. É preciso tocar
lá, no S1. Quanto a isto, remeto vocês ao Seminário Senso Contra Censo.
Estamos aí no alto regime da instância da letra. A tal insistência da letra
no Inconsciente não é senão causa desse gozo. E fazer reclamar essa insistência
de fora, para alguém, é na produção desse gozo ao Outro. Lacan, por exemplo,
quando fica brandindo a instância da letra, é angelicamente que a brande. Esse
gosto pela carta, la lettre, é o gosto dos anjos. Ele adora escrever carta de amor,
ou de ódio, tanto faz. O gosto do anagrama, do troca-troca, do troca letra, essa
coisa que Lacan redescobriu no regime de jogo das palavras. Ou seja, esse ter-
ceiro sexo subvertendo as ordens por inteiro, manipulação mágica de letras.

* * *

Estávamos falando das ligações, das posições sexuais. Qualquer sujeito


se instala, por questões histéricas – no sentido psicanalítico, por questões de

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Contos dos bosques de Viena

letra –, numa posição dessas. Talvez pudéssemos, escutando uma pessoa, des-
cobrir, afinal de contas, qual o sexo em que ela ali se instala. Não que ela não
brinque nos outros, porque, se é apenas uma ligação, é um ponto de referência:
sua referência ali é tal sexo, o que não a impede de passar pelos outros. Lacan
mostrou isto ao dizer que as mulheres ficam partidas entre o gozo-fálico e o
gozo-do-Outro.
Começo, então, a desconfiar que existe alguma coisa de errado com
a nodulação borromeana de um sujeito, que, além de já ter a debilidade de se
ligar a um sexo – porque é uma debilidade nossa: somos débeis para enfrentar
esse terror que é ter a santidade da sexualidade plerômica, de desejar coisal-
guma, de gozar com Nada, de querer a santidade –, se apega a uma posição, se
referencia a uma delas. Aliás, faz parte da identificação do sujeito a sua sexua-
lidade histórica. Mas, afora isso, a grande dificuldade é que os sujeitos, na sua
extensa maioria – deve ser raro que um sujeito não caia nessa, em função das
pressões culturais, das histórias significantes, etc: –, ainda ficam em obrigação
sexual. Não a mera ligação, a simples referência à sua sexualidade, mas ficam
obrigados a sustentar um desses lugares de sexualidade.
Ora, isso se me apresenta como um erro no nó borromeano. Alguma coisa
aconteceu que esse sujeito não pode sustentar a borromeaneidade do nó, pois quan-
do o nó é borromeano, ele se avessa, produz Revirão com facilidade. Mas em algu-
ma parte, o nó deixa de ser extensamente borromeano, uma cunhagem se dá errada.
Como sabemos, um nó borromeano é feito de tal maneira que qual-
quer dos registros é independente de qualquer outro, ele apenas se amarra a
esse outro por um terceiro. Suponhamos, então, que haja um erro de registro.
O erro mais grave é o chamado nó olímpico, no qual, ao contrário do nó bor-
romeano, cada elo se amarra aos outros dois de tal maneira que se cortarmos
um elo, quaisquer dos outros dois não se soltarão. O nó olímpico é, a meu ver,
uma verdadeira situação animal. É o que se poderia chamar de “O Pára-Isso
Perdido” – “pára com isso!” –, tudo está amarrado, não tem soltura, cada elo
se amarra com os outros dois. É mais ou menos o que suponho ser uma es-
trutura de sexualidade num animal: real, simbólico e imaginário – que, para

61
O Sexo dos Anjos

ele, não se coloca assim, é para mim que isso se coloca – estariam amarrados,
não adianta cortar nenhum. Isto seria, assim, a bestificação total.

Mas o erro de que quero falar é o que está escrito abaixo, nas ilustrações
2, 3 e 4. São três erros possíveis.

Em 2, temos um nó, que seria borromeano, mas que tem o imaginário


amarrado no real. Se cortarmos o simbólico, o imaginário e o real não se soltam,
cagam para o simbólico.

62
Contos dos bosques de Viena

Em 3, é o mesmo nó, mas os registros amarrados são outros. O


imaginário está amarrado no simbólico e o real não, de tal maneira que se
cortarmos o simbólico, real e imaginário se soltam. Se cortarmos o ima-
ginário, real e simbólico se soltam. Mas se cortarmos o real, imaginário e
simbólico não se soltam.

Em 4, teremos real e simbólico amarrados entre si, e o imaginário


se sustentando borromeanamente, de tal maneira que se cortarmos o elo do

63
O Sexo dos Anjos

imaginário, real e simbólico não se soltam. Mas se cortarmos o simbólico,


imaginário e real se soltarão, assim como se cortarmos o real, imaginário e
simbólico se soltarão.
Esses três defeitos seriam para mim o que quero chamar de obrigação
sexual. Os sujeitos que tenham esse defeito de nodulação não só terão “escolhi-
do” uma referência, uma ligação, uma posição sexual, como ficam obrigados a
sustentar essa ligação. Isto significando que, no caso 2, a obrigação se dá sobre
gozo-do-Outro, J , sobre feminino. É como se o sujeito não tivesse apenas uma
referência, uma identificação sexual no feminino, mas tivesse a obrigação de o
ser. Qualquer coisa que mexe nisso é, para ele, problema, é grave. No caso 3,
é como se o sujeito tivesse obrigação de ser angélico: “Tenho que ter sentido!”
Então, a dialetização fica prejudicada. No caso 4, é a obrigação masculina. O
sujeito é obrigado, por defeito da nodulação, a estar preso na masculinidade.
Então, qualquer coisa que o toque fora desse lugar, imediatamente o remete ao
reforço de nodulação que ali existe.

* * *

O que é arriscado para mim, neste momento, é que é sobre esses erros
que vou tentar a minha pato-logia.
Digo-lhes, então, que – pasmem! – temos a obrigação masculina, a
obrigação feminina, a obrigação angélica, e a obrigação plerômica – esta, aliás,
não é a mesma coisa que o outro caso de se ter uma sexualidade plerômica.
É como se o sujeito tivesse uma obrigação plerômica, que é uma espécie de
cretinice total. O sujeito que tem uma obrigação de nó olímpico é um cretino
total. Não é masculino, nem feminino, nem angélico... Estou até fazendo a
suposição de que um cretino desses exista. Esse cara seria uma paralisação
total, uma múmia.
A obrigação masculina, eu a chamaria de ipsogrâmica: uma letra
referida a um self qualquer. É o protótipo do imbecil. É ipso-grâmica porque
fica a referência estrita à nomeação paterna, num sentido preceitual estrito,

64
Contos dos bosques de Viena

no sentido do mesmo da imbecilidade. A obrigação feminina é idiogrâmica:


referência apenas à sua posição particular. Há suspensão do Nome do Pai, etc.,
mas tem obrigação de ser, a cada momento, absolutamente particular. É a idiota
completa. A obrigação angélica, eu a chamaria de literogrâmica. Vejam que é a
palavra letra escrita duas vezes. É essa obrigação de letrificar, de escrever tudo
a cada momento. É a grafomania absoluta – muito cara aos franceses, aliás... E,
se houvesse, uma obrigação plerômica, que seria o que já disse: hologrâmica,
cretina, olímpica.
Bom, agora, eu me arrisco a dizer que o que chamamos de neurose,
qualquer coisa que se inscreva sob o registro da chamada neurose, não é senão a
obrigação angélica. Todos conhecem a história da neurose. Freud começou com
ouvido de psiquiatra dizendo que histeria é isso, obsessiva é aquilo, etc. Mas o
que existe, na verdade, com várias nuances que se pode discernir na palologia,
é a nodulação errada obrigando a ser angélico e o sujeito estar aprisionado
no regime do sentido dado, no regime do gozo oferecido ao Outro. Por isso
a questão do neurótico, eternamente, está pendurada num outro. E de várias
maneiras isso se realiza: histeria, obsessão, etc. Em termos de nodulação, isso
indicaria o Outro no fato de que, se nessa representação plana temos um reforço
de nodulação num certo registro, o que vai acontecer com o a que está aí no
meio é que vai ficar mais ou menos aprisionado por esse registro, por esse nó.
O a é convocado para esse nó forte, S1, no caso 3. A neurose se escreve aí: o
que quer que haja de a, ao invés de ser objeto absolutamente faltoso, ao invés
de se remeter a das Ding, remete-se à exigência indefectível e premente de
fazer sentido e gozo por esse sentido, um gozo à maneira de outrem, em oferta
a Outro. É isso que é a neurose.
O real, R, é absolutamente dispensável na neurose. Por isso Lacan dizia
que os neuróticos são increvables – ele estava falando do tempo da guerra –,
pois estão cagando para o real. Para ele, se o simbólico e o imaginário fizerem
figuração, tudo bem, vamos em frente, a neurose sustenta tudo. Sustenta até
um a imaginarizado, por via simbólica freqüentemente, e garantindo que nesse
gozo oferecido ao Outro, ou fingindo ser à maneira do Outro, por esse azinho

65
O Sexo dos Anjos

que sobra pala lá, ele sobrevive muito bem a qualquer porrada. Estamos aí na
região do sentido reforçando o sintoma; na região do recalcamento do Nome
do Pai, arrolhando o furo do real com seu sintoma. Proponho, então, que, na
nossa patologia, a neurose se inscreva na obrigação angélica, na obrigação do
gozo-do-Sentido. O neurótico arrolha o furo do real, ou seja, arrolha a própria
repetição de Nada com o seu sintoma.
Estar na obrigação feminina não é senão – e Lacan sugeriu isto, embora
tenha deixado sem solução – a psicose. O psicótico é, aí em 2, o idiota por exce-
lência. Toda referência só pode bater em ego, porque é absolutamente idiota. O
que acontece é que o objeto a é absolutamente deglutido pelo gozo-do-Outro e não
sobra senão um a para ele. Ele é acossado o tempo todo pelo simbólico, que está
fora dessa amarração e que é o terceiro pé da questão, e tudo isso é deglutido pela
nodulação pura e simples, sem rachaduras, do imaginário com o real, IR. Esta é a
mesmice do feminino, como coloca muito bem Jean-Claude Milner, pois no que é
suspensa a função paterna – no masculino a referência é lá fora: ele pode ser imbe-
cil de acreditar absolutamente nessa referência –, a referência fica absolutamente,
inteiramente, particular e nodulando o imaginário, por exemplo, do corpo, com
um real que o sustenta o tempo todo. O simbólico que se dane! Começa a delirar,
a fazer maluquice: fica lá numa outra e sendo deglutido para cá o tempo todo. E
daí, meus caros, a psicanálise ter que repensar o que fazer com o psicótico. Se é
verdadeira essa nodulação, do que adianta cortar no simbólico? Nada! E todos
os analistas deram esse testemunho. Não dá para tratá-lo no regime do corte do
simbólico porque, para ele, isto não quer dizer nada. O real está amarrado com o
imaginário, e ele quer que o analista se dane. Não vai acontecer nada. Ele deglute,
e inventa delírio. Isto é o delírio, a alucinação: pegar o imaginário, amarrar no real
e comer o simbólico, ou delirando ou inventando formas visuais, auditivas, etc. Na
tradição psiquiátrica há coisas mais aproximadas do tratamento da psicose do que
na tradição psicanalítica. O psiquiatra sacou muito antes da psicanálise que não
adianta levar papo com psicótico... E aí, ele dá porrada, mete choque... Não estou
dizendo que se deva fazer isto, mas é aí que está a verdade. Escutem o psiquiatra: ele
está fazendo porcaria, mas no lugar certo.

66
Contos dos bosques de Viena

É preciso, então, estabelecer um corte no real ou no imaginário porque,


no simbólico, não adianta nada.
É possível esfacelar um imaginário? Eu posso praticar isso, eu, pela
via simbólica, mas ele não pode. Há que pensar isso, pois no real é mais fácil
de pensar; é simplesmente fazer pintar real para esse cara, o qual não pinta
porque está soldado no imaginário: o imaginário lhe é real. Psicose, delírio
ou alucinação passam por aí porque o próprio objeto a se torna falo radical,
imaginado e real. Foraclusão do Nome do Pai não é senão a sua incorporacão.
Esse idios da obrigação feminina não é senão o Nome do Pai encarnado. Como
pode ele ter pai, se ele é pai de si mesmo, o psicótico?: “Eu sou Deus, Jesus
Cristo”, coisa que o valha. A referência preceitual é masculina, mas o psicótico
a incorpora. Por isso o seu delírio muito freqüente de virar Deus – ou vira uma
figura paterna que, na história do cara, tenha sido a referência imaginária da
paternidade. É ele próprio: “Eu sou fulano de tal, ponto!”. Vai dizer que não é...
O Nome do Pai é o próprio ego legiferante do psicótico, e cagando regra sobre
todo mundo e dizendo o que é. Por isso Lacan disse que todo conhecimento é
paranóico. Porque se não forço a barra de uma nodulação desse tipo para impor
determinada visão, se não se banca o doido, não se funda nada. Não deixa de
ser paranóico por isso. Só que o sujeito que está dizendo isso não é o paranóico.
Paranóico é o ato, o método, que brilhantemente Salvador Dali tirou da obra
de Lacan: o método paranóico-crítico. Ele sacou que é metodologia psicótica,
e não ser psicótico.

* * *

Vamos agora ao terceiro lugar, que, para muitos de vocês, pode se


tornar um problema – não que vocês estejam nele, mas como dizem coisas tão
estapafúrdias a respeito dele...
A obrigação masculina, escrita no lugar 4, essa obrigação de estar
na referência a uma externalidade que funda um Todo conhecido – porque a
referência puramente paterna não é fundação de um Todo conhecido, e sim

67
O Sexo dos Anjos

da possibilidade de um universal, é da ordem da lógica e de uma ferramenta


utilizável –, aquele que está nessa obrigação, funda, se funda num preceito
que arruma para ele um Todo conhecido, sabido, garantido e que sabe qual é
o objeto a, o qual está deglutido por esse todo. Ele sabe qual é o seu objeto.
Está tudo dito.
Estamos aí no regime do que eu gostaria de incluir numa palavra
nova do dicionário psicanalítico e chamar de MORFOSE (de forma). Assim,
teríamos neurose, psicose e morfose. A morfose é isso que temos chamado de
fobia e perversão. Acabei de botar fobia e perversão no mesmo saco... Vamos
acabar com esse negócio de neurose, psicose e perversão, isso não existe. Há
psicoses diversas, neuroses diversas e morfoses diversas. Entre as morfoses,
temos fobia e temos perversão.
Trabalhei no Pato Lógico a fobia como neurose, sempre suspeitei que
ela fosse uma neurose, mas ultimamente tenho tido boas provas “de laboratório”
de que ela pertence ao mesmo campo da perversão. Chamo de morfose porque
há aí a figuração e objetivação do Nome do Pai, como tentei mostrar no Pato
Lógico. Na fobia o imaginário derrapa frente a uma figura que pode se tornar
persecutória e que lhe impõe uma lei. Ao passo que na perversão o Nome do
Pai é seu próprio ego, afeito ao desejado. Depois desenvolvo isso melhor...
Aliás, se insistirmos diante da neurose em ficar brandindo o puro real,
não conseguimos nada. O que se faz, e Lacan mostrou isso com clareza, é, lá no
neurótico, recortar no simbólico; então, imaginário e real se soltam. Aí pinta real
para ele, mas não que a operação seja brandir o real. A operação mais prática
é recortar o simbólico. Poderia ser recortar o imaginário, mas como a prática
analítica lança mão do corte no simbólico, recorta-se também esse imaginário
por via simbólica. Assim como no caso do machão, aí, do perverso, ou fóbico,
pode-se operar perfeitamente no simbólico para separar os nós. Porque há que
separar para nodular direito. Por outro lado, como já disse, minha suspeita é de
que não adianta recortar simbólico para psicótico. Por isso Lacan insistiu em que
não há que largar mão do psicótico na psicanálise. Há que insistir nisso. Ele de-
monstrou que é foraclusão do Nome do Pai, tudo bem! Mas o que fazer com isso?

68
Contos dos bosques de Viena

Para voltarmos ao nosso sonho de valsa, vou botar um quadrinho


muito maroto:

O que eu disse até agora foi: neurose, obrigação angélica; psicose,


obrigação feminina; e morfose, obrigação masculina. Agora, qual expediente faz
com que em neurose, psicose ou morfose haja escolha? Por exemplo: histeria
ou obsessiva; paranóia ou esquizofrenia; ou perversão ou fobia?
Aí é que entra o meu sonho de valsa e de quiáltera. Justamente porque
os sexos do falante são três e o trauma de haver anatomia destinando coisas na
sexualidade animal são dois, tenho que raciocinar em três por dois. Não é que
a anatomia do sujeito vá determinar isso diretamente, e sim que, nos seus jogos
significantes com essa relação de três para dois, ele vai armar um tal quadro em
que sua referência sexual é uma das três possíveis para o falante, no entanto
– e é aí que Freud entra com a questão do Édipo e da castração figurada sobre
o corpo –, isso é rebatido sobre a necessidade criada na história particular do
sujeito, em função também desses três registros, desses três sexos, de dar conta
do anatômico aí. Ou seja, não só de ser feminino, masculino ou angélico, como
também de ser macho ou fêmeo. O que vai determinar aqui é o expediente de
ser macho ou fêmeo, na referência imaginária do corpo e das funcionalidades
do corpo na reprodução. Este é o caso do sujeito na reprodução. Não estou
dizendo que quando o sujeito é macho será assim. De modo algum! É o caso
desse sujeito como masculino, feminino ou angélico. É o seu caso na questão
da reprodução, como macho ou fêmeo.
Teríamos, então, do lado do macho, a histeria, a paranóia e a perversão
(a perversidade propriamente dita). No caso do fêmeo, a obsessiva, a esquizo

69
O Sexo dos Anjos

e a fobia. Simples, não é? Eu disse que vocês iam pasmar, mas tenho provas
de laboratório: sempre pergunto a cada um como é. Eles me ensinaram isso...
Temos que ir não ao corpo anatômico, não à anatomia do sujeito. Aí
vou lhes pedir licença para dizer uma coisa meio horrorosa: leiam, por exemplo,
Gaston Bachelard: não faz mal, leiam toda a su a obra. É claro que ele tem umas
implicações junguianas, mas isso é da ordem do psicológico... E não há que
jogar o Jung todo no lixo. Por uma razão muito simples: Jung nada tem a ver
com psicanálise, nunca fez psicanálise, nem tomou noção do que isto seja. Mas
é psicólogo, e como psicólogo pôde perceber que arranjos imaginarizados, ou
seja, miragens prontificadas para o sujeito, funcionam apegados aos aparelhos
corporais como verdadeiros paradigmas de funcionamento para o sujeito. São
miragens paradigmáticas sobre as quais o sujeito se referencia. Imagens estas
que vêm dessa dependência nossa da tal Natureza, de não termos nada a ver
com isso, como Picasso diz que não devemos ter, e, no entanto, estamos ape-
gados a essas funcionalidades do macho e da fêmea no processo reprodutivo,
nos atos corporais.
Então, por exemplo, se um sujeito, além de se colocar logicamente na
postura do angélico – aquela que tentei escrever partindo das fórmulas quânticas
de Lacan: existe pelo menos um que afirma a função fálica – ao mesmo tempo
opera isso do lado do fêmeo, esse sujeito é obsessivo: um angélico fêmeo é
obsessivo – angélico no sentido da obrigação. Se a amarração é uma obrigação
angélica operada na fantasia de ser fêmeo, só pode dar em obsessivo.
Vou dar uma dica disso. Desenvolvo melhor depois. Lá na história do
sujeito, mesmo ele dizendo o contrário, quando começamos a sacar as fantasias
que apresenta, vemos que ele sente ou escolhe, na sua história, a via de repro-
dução, o lugar do fêmeo, do materno, no sentido de reprodução, no sentido
carnal. Ele não é um inseminador, ele é um inseminado. É onde a castração, no
sentido freudiano, bate para ele: no lugar do inseminado, e não do inseminador.
A ficção da histérica não é que ela tem que ser masculina, e sim que tem que
ser macha: tem que ser inseminador numa obrigação angélica, numa obrigação
de sentido. A histérica, na verdade, não consegue inaugurar isso, de modo al-

70
Contos dos bosques de Viena

gum. Mas é a sua questão: como ser inseminador? A inseminação que ela quer
fazer é de sentido. Ela vai fazer um outro gozar, ou todos os outros, se puder,
inseminando... Ela é o macho da questão. Essa fantasia está adscrita à nossa
razão biológica, à nossa razão anatômica, aos processos que estão envolvidos
na produção de um corpo novo, de um novo falante.
Temos que falar sobre isso exaustivamente. Só estou jogando, para
ver se prolifera...
A perda de sentido é uma coisa que ocorre freqüentemente no processo
de análise, sobretudo com o neurótico. No quadrinho, onde ele se amarra? No
sentido. A intervenção analítica vai desbastando esse sentido até chegar um dia
em que ele pensa que não vai conseguir sobreviver sem aqueles sentidos todos,
e fica desesperado. Ele não está acostumado a fazer sentido, e sim a ter sentido.
Fazer sentido não é tê-lo. O neurótico, nessa obrigação, está acostumado a ter
e exigir a freqüentação nesse sentido. E inseminar esse sentido, o tempo todo,
ou ser inseminado por ele.
Não podemos esquecer que, na topologia mesma do comportamento do
sujeito, esta relação dentro/fora, quem está metendo/quem está sendo enrabado,
é muito importante. E a fantasia do social só passa por aí. Por quê? Porque a
grande maioria é de neurótico. E certamente porque toda a fantástica do sexual
só passa nessa de ativo/passivo, quem mete/quem está sendo enrabado, ficam
nesse delírio de fazer sentido pela via do que é oferecido pela anatomia. Quando
não é este o caso, pois o voto de ser inseminado de um obsessivo não o leva
necessariamente a querer ser enrabado, às vezes pode ser o contrário. No entanto,
não deixa de passar essa fantasia, porque ela é a de qualquer sujeito. Se existe
um enrabador e um enrabado, por que não fazer um troca-troca? A analidade
da representação é porque se trata de uma questão anal-lítica...
Recomendei a leitura de Gaston Bachelard porque ele escreveu diver-
sos volumes sobre o que chama de psicanálise: psicanálise do fogo, da água,
da terra... Ele pega essas construções imaginárias, forjadas freqüentemente
de fantasias, e descreve o que pôde perceber na literatura, na arte. Leiam,
porque é instrutivo. São as grandes construções miraginárias que se assentam

71
O Sexo dos Anjos

nessa questão do macho e da fêmea – sempre voltada para o que acontece


para reproduzir para inseminar ou ser inseminado. E isso não é uma questão
de sexualidade do falante, e sim de reprodução dependente da sexualidade
do animal, à qual estamos apensos. Mas não necessariamente: o Inconsciente
pode se livrar disso.

* * *

Estamos aí, meus caros, na nossa quiáltera, a três por dois. Por isso é
que dá em confusão poder pensar três sexos num e dois em outro registro. É aí
que está o meu querido sonho de valsa, que espero que vocês queiram receber.
Vamos ouvir uma valsa... Vocês querem sonho de valsa?

(Atira bombons Sonho de Valsa ao som


dos Contos dos Bosques de Viena,
de Johann Strauss)

24/ABR

72
Nv, Ps, Mf

4
Nv, Ps, Mf

Ainda hoje, Marco Antonio Coutinho Jorge, certamente falando em


nome de muitos, sem ter declarado isto, me chamava atenção para o fato de
que fico, há muitos Seminários, lançando fórmulas, resumos e esquemas sem
apresentar delongadamente embasamentos casuísticos para o que estou dizendo.
É verdade... E vou continuar fazendo assim porque há várias razões. Primei-
ro, como já lhes disse, como tem aí um Mutirão de Psicanálise sobre o tema,
prefiro deixar todos os elementos para serem trabalhados depois e apresentar
logo abruptamente, pois não daria tempo para fazer grandes exposições para
chegar a essas conclusões. Ele tem razão quando aponta que estou começando
da conclusão, começando do teorema demonstrado ao invés de demonstrar
o teorema. O que estou fazendo é apresentar conclusões para depois fazer o
serviço contrário. Vou precisar de muito tempo para isto, de ir mostrando como
estas maquininhas eventualmente funcionam. O teste vem depois.
Também, por outro lado, sempre prefiro apresentar a coisa um pouco
mais matemizada do que muito discursada. Quer me parecer que quando se
apresenta primeiro de maneira discursiva, o delírio fica muito maior do ponto
de vista do ouvinte, começa-se a delirar demais sem amarras. E também por-
que espero que não tenha que fazer esse trabalho braçal sozinho. Se apresento
conclusões, muita gente pode aplicar e fazer o trabalho comigo.

* * *

73
O Sexo dos Anjos

Retomemos, então, aquele nó borromeano desenhado – quer dizer,


perdendo muito das suas competências e, portanto, não se movimentando no
espaço de maneira que se revire sozinho.
Estão aí representados os tais registros que Lacan considerou mínimos
para o falante: real, simbólico e imaginário. Vamos retomar uma breve definição
disso para podermos caminhar devagar.
O que Lacan chama de real – e chama mal chamado porque se é real não dá
nem para falar dele – é duas coisas, é o único registro que, no desenvolvimento de Lacan,
tem duas definições: primeiro, a definição como impossível; segundo, o real que se nos
aparece pespegado ao concreto da nossa experiência, digamos assim, e que ele de-
fine como sendo aquilo que sempre retorna ao mesmo lugar. Quando se o define desta
segunda maneira, ele já cai da categoria de impossível e passa a ser da categoria do
renitente. Quer dizer, já tem algo de sintomático. Por isso defini, lá nos Escólios,
sintoma desta maneira, como um empedramento de uma determinada estrutura ou
configuração. Então, o tempo todo há que pensar o real desses dois modos: aquilo
que coloquei como sendo que há pura e simplesmente em sua neutralidade radical,
por isso impossível, para nós que não somos neutros, de dizer qualquer coisa de dentro
desse lugar ou a respeito dele; e como sendo aquilo que sempre retorna ao mesmo
lugar: o sol está lá todo dia, a gente pensa que ele é real, sempre damos de cara
com a parede toda vez que andamos em sua direção, então deve ser real...
Isto é também do regime daquilo que no sintoma é indicado como sendo
não curável. Quando Lacan indica que o sintoma como tal é não curável, aquilo
é da ordem do real. Quer dizer, o sintoma, pode-se bem dizê-lo, mas não se pode
só dizê-lo. Aquilo lá está configurado assim na permanência dessa configuração.
Quando muda, já não é mais aquilo, já não é mais o mesmo. Não se pode, por
exemplo, nem acompanhar a mudança de um estado da matéria para saber onde
é que estava o real dela, pois quando muda já é outra coisa.
O imaginário é muito mais fácil de ser pensado porque é aquilo que tem
biunivocidade. Qualquer coisa que tenha relação especular, mesmo a relação
que no espelho aparece como as imagens, uma referida ponto a ponto à outra,
esta é a lógica especular do imaginário.

74
Nv, Ps, Mf

Para representar de maneira planificada diversos fenômenos que ocor-


rem no seio do falante, Lacan colocou aquele esquema que apresentei em nosso
segundo encontro deste semestre. Botou como se aquilo fosse uma interseção,
o que, na verdade, não é. Não se deve pensar em termos de interseção, pois é
algum atrito. Na nodulação, é uma pega e se tivermos o nó borromeano cons-
truído, se fizermos uma esfera armilar, teremos pegas de real com imaginário,
de real com simbólico, de simbólico com imaginário. Prefiro pensar assim do
que em termos de interseção.
Quer dizer, então, quando imaginário e real estão se segurando num
certo ponto, naturalmente com um terceiro para garantir essa pega, virou gozo-
do-Outro, J . Lacan atribuiu o feminino a esse lugar, o gozo da mulher. Na
pega de imaginário com simbólico, escreveu o Sentido e não falou de nenhum
gozo aí. Na pega de real com simbólico, falou de gozo-fálico, J: uma letra que
se toma por real, uma letra que só é tomável pelo sujeito como alguma coisa
que retorna sempre ao mesmo lugar.
Eu diria que o lugar da escrita vai comparecer enquanto coisa pronta
no regime do real, mas o lugar da necessidade de grafia é no Sentido. O que
solicita inscrição é a exigência de se dar, de se fazer sentido. A solicitação é do
sentido, do gozo que chamo gozo angélico. O escrito, funcionando como S1 de
alguma coisa, como limitador de alguma coisa, é que vai para o lugar do real.
E pode até possibilitar gozo-fálico, mas é preciso distinguir a solicitação de
inscrição, do inscrito. Temos que ficar dançando com esses três, pois estamos,
como já disse, em ritmo de valsa: temos que dançar nos três tempos senão nos
confundimos. Se ficarmos adscrevendo os fenômenos a regiões particulares
sem levar em conta que dois só se amarram por três, a gente se perde.
Lacan colocou o escrito como sendo da ordem do real. Mas como isso
se escreve? Uma solicitação de escrita, não vem do real, nem do simbólico. O
simbólico não pede para se escrever. Assim como tampouco o gozo-fálico: ele
só se repete como escrito. O sujeito fica feito o Marquês de Sade marcando
angelicamente na cabeceira da cama quantas vezes gozava: só um tracinho, um
tracinho, a escrita que se repete... Na estrutura, o que solicita a escrita é o sentido.

75
O Sexo dos Anjos

É preciso fazer sentido, e isto solicita inscrição. O que solicita, por exemplo,
inscrição paterna é da ordem do angélico, o que é diferente da inscrição paterna
já escrita. Aí já é da ordem da causa de gozo. Portanto, é preciso saber em que
registro a coisa vige. Aliás, o Marquês de Sade marcava mesmo o número de
bimbadas. Mas ele não era bem o Don Juan que marcava o número de mulheres.
Só é bimbada quando ela chega a um termo. Aí ele ia lá e marcava no regime
da repetição – repetição da mesma inscrição. Ou seja, não estou dizendo que
marcava no regime do gozo-do-Sentido, e sim no do gozo-fálico.
Temos que ter paciência para ver se conseguimos desenvolver isto até
o fim. É perfeitamente natural que as pessoas se sintam solicitadas com o de-
senvolvimento dessas coisas e vão começando a pensar. Refiram-se, por favor,
àqueles nozinhos de neurose, psicose e morfose que apresentei de outra vez.
Aliás, alguém veio me trazer, justo às vésperas de eu falar isso, que seria hoje,
que deveria ter alguma coisa que não funcionaria bem com meus nós porque
Inibição, Sintoma e Angústia ficariam demarcados naqueles lugares, e de ma-
neira que parecia trocada. Por isso, já estou chamando atenção para o fato de
que é preciso jogar nos três elos, se não, realmente fica parecendo assim...
Insisto também em que se lembrem, ao tratar dessa formulação, de que
tentei estabelecer distinção entre posição ou ligação masculina, feminina ou
angélica, e obrigação, ob-ligação, masculina, feminina e angélica. Isto modifica
inteiramente as duas posturas. Estar na posição masculina não é perversidade.
Perversidade é a obrigação masculina. Estar na posição feminina não é psicose.
Psicose seria estar nessa obrigação. Estar na posição angélica não é neurose.
As obrigações são defeitos na nodulação, quando dois registros se pegam de
maneira a ter sua amarração independente do terceiro. O que acontece com
a obrigação é que dois dos registros se seguram bem, mesmo que se retire o
terceiro. Não é que vá se eliminar na cabeça de alguém um registro. Isto não
existe. Por isso é preciso lembrar que ele está em vigor, continua lá. Mas o
desempenho do sujeito é no sentido de se assegurar numa boa amarração de
dois registros e se agüentar nos seus processos prescindindo ou evitando a
participação do terceiro.

76
Nv, Ps, Mf

* * *

Ainda por cima desse nó, Lacan escreveu Inibição, Sintoma e Angústia
– três coisas levantadas por Freud, e tratadas num volume só sobre isto. Lacan
vai reduzir aquilo tudo a uma visão topológica.
Ele diz que há Inibição quando no regime do Pleroma, do conjunto
do nó, o imaginário invade o simbólico. Quer dizer, há inflação de imaginário
sobre o simbólico. É como se ele estivesse dizendo que, ao invés de os dois
serem considerados com o mesmo peso, o simbólico é comido pelo imaginário,
é imaginarizado – e isto ele chama de inibição, com toda a razão. Pois se ali é
o lugar do sentido, ter o sentido, insistir num certo sentido, inibe os processos
de equivocação, de proliferação de sentido. É preciso não esquecer também
que as duas coisas estão no mesmo lugar. A produção de sentido, quer dizer,
a plenitude de sentido, aquilo que Lacan apontava como palavra plena, que
se possa dizer com grande expansão de sentido, está também ali. Ali, na con-
jugação do simbólico com o imaginário, produzir muito sentido é justamente
fazer com que de um significante muitas possibilidades sejam válidas. Mas
estar amarrado num imaginário dado, isto inibe o processo de proliferação dos
sentidos possíveis de um significante.
Sintoma, Lacan disse que é uma inflação do simbólico dentro do
real. Ora, se o simbólico ocupa o lugar de real, quanto mais o ocupa, mais
se apresenta como essas coisas que vão se repetir sem poderem ser ditas:
esbarram naquela coisa que volta sempre ao mesmo lugar. O que da ordem
sintomática é meramente inflacionário pode ser reduzido. Quer dizer, pode-
se, por via do simbólico, fazer com que aquilo seja bem dito, e, aí, retirar da
Wiederholungszwang, da realização do simbólico. Mas sempre deve sobrar uma
certa região – sintoma fundamental, etc. – que não é que não possa ser bem
dito, é que, para sê-lo, tem que ser bem dito a vida inteira, e nunca chegar ao
fim. Porque a coisa insiste, insiste: instância da letra.
A tal da Angústia, Lacan definiu como sendo uma invasão do real
dentro do imaginário. Quer dizer, alguma coisa que, ao invés de se comportar

77
O Sexo dos Anjos

equilibradamente – como é o caso do imaginário que tem sempre o seu outro


lado (que é o mesmo) refletido –, de repente, pinta uma dissimetria ali dentro:
as coisas já não encaixam bem, as imagens não encontram o seu figurino. En-
tão, o sujeito fica angustiado. Pintou algo que dissimetriza as imagens e uma
imagem não se reconhece mais na outra.
Ainda no esquema de Lacan, essa angústia, seu regime inflacionário, é
adjacente ao gozo-do-Outro. Quer dizer, é da ordem de pintar real na ambiência
do gozo-do-Outro – ambiência do corpo, por exemplo. E isso está pespegado
ao que ele chamou de feminino. Foi aí que colocou a tal de A Mulher, que não
existe. Portanto, colocou uma porção de mulherzinhas.
No masculino, cujo referencial é o gozo-fálico, é justo o lugar do sinto-
ma. Ou seja, no que o simbólico se comporta como real, como eixo do sujeito,
aquilo se torna causa de gozo-fálico e se apresenta como esse tipo de real que
retorna sempre ao mesmo lugar, como sintoma.
Já a tal da inibição, sempre foi mais difícil de se situar, sobretudo
porque não se atribuía nenhum gozo a esse lugar. Atribuía-se apenas sentido.
Prefiro caracterizar a inibição pela falta de deslizamento significante: a coisa
emperra não porque um real se repete, mas porque o sentido corre, e aquilo
tem que parar, é preciso parar porque, se não, começa a fazer outro sentido e
o sujeito pode se dar mal. Vemos isso com muita clareza em fala de político
na televisão. Ele está sempre controlando para não dizer um sentido maior do
que o que quer. É o inibido por excelência. Ele tenta segurar o sentido. Se falar
mais duas ou três palavras, o sentido pode ampliar. Em todos eles, os grandes
executivos, que falam na televisão, pode-se notar, por exemplo, que o lábio
superior não mexe, só mexe o inferior: a inibição chega à cara. O ideal deles é
falar com cara-de-pau. Quer dizer, o sentido é só este. Se mover o lábio superior
sem querer, já fica se sentindo mal. No que ele piscou, já é um ato falho. São
tentativas de segurar o sentido.
Tomemos o exemplo dos regimes da enunciação e do enunciado. O
regime da enunciação, na produção do sentido, é um regime do sentido em
movimento. O regime do enunciado – o enunciado legal, por exemplo – é

78
Nv, Ps, Mf

inibidor. As únicas pessoas que são desinibidas com a lei são os advogados.
Advogado é um sujeito cuja profissão é desinibir-se com a lei: “Isto pode ter
outra interpretação, dá-se um jeitinho”. Ou seja, mexe um pouco aí com o sig-
nificante que esse tal sentido que a lei pretende dar não é bem esse. De repente,
não é bem isso. De repente, aquela referência já muda. Ou seja, a profissão de
advogado seria a do desinibidor do texto legal. Ao passo que a polícia seria o
inibidor pelo texto legal.
Operando-se diretamente com o não-senso, acaba-se operando também
no sintoma. Pode-se ser desinibidor pelo simples fato de oferecer ao sujeito
uma outra vertente do sentido. Por exemplo, no trabalho com o analisando,
ao invés de produzir interpretações ao nível do equívoco, o analista amplia as
possibilidades de sentido para desinibir, para ver se ele consegue caminhar. O
analista fica proliferando sentido para ele. Ao passo que, numa equivocação
radical, ela não muda o sentido, pois ela arrasa com o sentido, faz perder o
sentido. Mas às vezes não se tem muito acesso direto ao analisando para ficar
trabalhando com a perda dos sentidos. Porque, no que o sentido cai, ele passa
para o lado de lá, vai para a angústia. Então, o analista tem que atuar como
desinibidor para ver se ele abre um pouco mais as pernas, de maneira a poder
entrar com o seu significante.

* * *

Então, se supusermos, no caso que chamei de Neurose, seja ela qual


for, que isso tem a ver com o sentido, como estou mostrando, como gozo ao
Outro, aquela nodulação errada que faz a obrigação angélica não é senão uma
amarração que garante ao sujeito – atenção porque vai soar um pouco estranho
– uma solução para o seu problema com o sentido. É um pouco estranho, mas
vejam no desenhinho da neurose, número 3, que apresentei da vez anterior, que
o imaginário e o simbólico se amarram mesmo que o real não esteja garantindo
essa amarração. No que isso se amarra, a região do sentido fica embrulhada com
a região da inibição, fica tudo num saco só. Eu digo que, quando isto acontece,

79
O Sexo dos Anjos

o fenômeno que se dá é de que, na posição do neurótico, obrigar-se ao gozo-


do-Sentido é amarrar a inibição. Ou seja: solucionar a sua inibição. O sujeito,
digamos, normal, é naturalmente perseguido por inibição, sintoma e angústia,
mas ele joga para o simbólico, etc. Não que o sujeito não tenha inibição, sintoma
e angústia, mas quando comparece o sujeito pode jogar. Façamos aqui uma
mitologia da neurose. Neurótico é aquele sujeito para o qual é no regime da
inibição que ele mais problematiza, mas que deu uma solução a isto, amarrou
bem esse lugar. Então, ao contrário do que muita gente pensa e pensou, para o
neurótico a inibição não é problema. Não que ele não a tenha, mas ele lhe dá
uma boa solução, amarrando o sentido: o sentido não tem que escorregar, está
bem amarrado, ele já o resolveu.

Por exemplo, o discurso religioso é uma boa solução para o sentido.


Um católico, Lacan o declarou como inanalisável. Deve ser porque tem uma
tal fé, uma tal compleição de fé no sentido da vida que o Catolicismo lhe deu,
que não deixa ninguém mexer ali. Ele tem um sentido. Tudo está resolvido:
ele vai morrer, vai para o céu, aí a outra vida começa... O sentido está dado. O
sentido da sua vida está resolvido. Então, ele não tem problemas com a inibição.

80
Nv, Ps, Mf

Tanto é que, do ponto de vista da orelha do analista, reconhecemos as inibições


do neurótico, mas o neurótico, para si mesmo, não é inibido. Comportamental-
mente, ele é extremamente desinibido: faz um monte de merda no social, diz
qualquer coisa, é a tal falação da histérica que fala pelos cotovelos do que Deus
até duvida, não tem a menor inibição. Por quê? Isto é falso, mas funciona: já
que o sentido está garantido, fica desinibido, fica muito à vontade, em casa...
Pode-se colocar a questão de que meu nó dá a impressão de que a questão da
neurose estaria no sentido, mas, na verdade, sabemos que está no sintoma. Não! É que,
justamente, o neurótico deu uma solução à ordem do sentido. Ora, o caso só vai
aparecer numa espécie de produto de angústia por sintoma, e sintoma por angústia.
No que o sentido, para o neurótico, está amarrado, no que ele não sofre disso, isso que lá
não resvala, que lá se pespega numa forma redundante, vai comparecer para ele como
sintoma que segura a angústia. No que apareceu a possibilidade de angústia, ele
imediatamente põe a ficha de sintoma e, pronto!, corrige a angústia com o sintoma:
este produto funcionando para ele como o equilíbrio na balança da questão resolvida
do sentido. Na balança, ele equilibra apresentando sintomaticamente aquilo
que o angustiaria. Ele pode fazer assim na medida em que a garantia do sentido
produz a inibição do processo, e tudo se limita a isto. E não adianta mandá-lo
“parar com isso”, a não ser para fazê-lo ficar um pouquinho angustiado e re-
apresentar o sintoma. Ele prefere a culpa porque ela é garantia de amarração de
sentido. E isto só vai aparecer como sintoma que barra a angústia. Esse produto
de angústia por sintoma, então, se escora no processo de solução inibitória. É
o caso, por exemplo, dos processos religiosos em que se tem sintomas obses-
sivos, repetitivos, de rituais, de auto-punição, etc., garantidos no sentido que
está solucionado, bem amarrado ali. E isto só comparece sintomaticamente. A
angústia não tem, para o neurótico, razão de pintar porque, imediatamente, é
subtrocada, negociada, com o sintoma ou com o sentido. A angústia comparece
justamente quando o sintoma falha. Aí o neurótico fica angustiado: quando o
sintoma falha, deixa de segurar a garantia do sentido, a garantia da inibição.
Temos que proliferar isto longamente. Estou apenas abrindo as questões.
Prefiro abri-las todas e depois retornar...

81
O Sexo dos Anjos

O caso da obrigação masculina, que chamei de Perversista, é o lugar


privilegiado da solução sintomática. Para o perversista, o que está solucionado
para ele é da ordem do sintoma. O sintoma se torna alguma coisa que o define,
que o garante, e que é conducente à obrigação superegóica do gozo. Então,
por ali, ele está garantido. Disto ele sabe, disto ele está garantido. Não que o
sintoma seja denunciador de um lugar onde ele resolveu seu sentido, e sim que
o sintoma é para ele uma pedra de toque, que resolve todos os problemas, e que
ele não apresenta como sintoma senão pela sua gozação fálica adscrita a isso.
Por isso mesmo o perversista caga para o analista. Porque sintomaticamente
ele vai bem, obrigado. Ele não é perseguido pelo sintoma.
O neurótico, no que resolve a questão do sentido com a inibição, ao
mesmo tempo tem uma inibição fundamental que a garante: ele fica desinibido a
partir dela, garantido nessa inibição. Ele desinibe o resto todo. Não se mexendo
naquela inibição, o resto ele suporta.
A garantia do perverso é no registro mesmo do sintoma. É ponto pa-
cífico. Bateu, valeu: gozou, acabou-se. Ele sabe disso. Não aparece para ele,
como síndrome, uma razão sintomática como aparece para o neurótico, que,
este, garante lá a ordem do sentido e a ordem da inibição, mas começa a sofrer
de tiques nervosos. E isto o incomoda: “Como é que aquilo lá está garantido
e fica aparecendo esse cacoete aqui?”. O perverso, não. Ele não tem nenhum
sintoma para apresentar ao analista, a não ser a eventualidade da sua vergo-
nha – atenção para isto! –, a qual vai funcionar no nível do sentido, no nível
da inibição. Pega-se o perverso pela inibição, não pelo sintoma. É aquilo que
Lacan trabalha partindo de um texto de Sartre a respeito de um sujeito voyeur
surpreendido vendo, e isto lhe vem não como sintoma, mas como efeito da sur-
presa que o inibe. Mas isto ele tira de letra: passou, passou... Não é um sintoma
que vai se repetir independentemente da pega do Outro como no neurótico,
para quem, independentemente de estar sendo acuado ou não, o sintoma vem
e o incomoda. O perverso eventualmente será surpreendido na sua majestosa
gozação fálica. Só quando o Outro o invade, digamos, só quando a polícia está
presente é que ele fica inibido. Não tendo polícia, ele faz qualquer coisa: a lei

82
Nv, Ps, Mf

que se foda. Mesmo o equívoco, que é muito destrutivo porque tira a garantia
que ele tem no embasamento significante do sintoma, não é tão destrutivo assim
porque ele se agüenta no real do gozo-fálico, e tudo bem.
Então, é na medida em que alguma coisa se apresenta como o inibidor
do gozo do perverso, que ele entra em problema. Ele só se problematiza quando
alguma coisa vem inibir sua instalação no gozo-fálico. No nível meramente
sintomático, o sentido fica em aberto. Então, se sua garantia é sintomática, ele
passeia à vontade pelo sentido, ele faz qualquer sacanagem. É só quando o
barrarem lá que ele vai ficar tenso.
Não entendo, por exemplo, que se faça remissão da subserviência do
perverso a um gozo de um outro. Precisamos rever isto, pois é um gozo mesmo,
não é outro. Para ele, é mesmo! Achar isto é misturar as categorias. Há muitos
autores que dizem isto e Lacan fala parecendo ser isto, mas não é. Ao que ele
serve? Ao gozo de um superego. E superego não é outro, é o mesmo. Ele é
subdito à ordem sintomática. Ele é mais que subdito, é obrigado, é demolido sob
essa ordem sintomática. Ele não tem um sintoma, o sintoma o tem. Neurótico
pode ter sintoma, mas perverso não.
A angústia ingressaria para o perverso por vias de inibição. Ou, também,
por vias de presença do real. Basta ameaçá-lo de cortar seu peru para ver como
ele fica: em angústia plena. Basta ameaçá-lo na concepção do gozo-fálico. Por
onde se pode cercá-lo é pela via da inibição. Não que se vá trabalhar inibindo-o.
Muito pelo contrário: a única maneira de se levar a vergonha do perverso ao
extremo – pelo menos é o que o meu laboratório me indicou – é concordar com
ele, é ser muito mais sacana do que ele, é desinibi-lo mais do que ele pode, do que
ele agüenta. Aí ele vai ficar procurando onde está a polícia que não comparece.
Afinal de contas, ele invocou a polícia mostrando sua insistência sintomática:
“Pô, ninguém vem dizer que devo me envergonhar disso?”.
Na prática de ditos analistas, sobretudo de ditos edipianos... De vez
em quando, recebo edipianos, recebo um perversinho que veio assim de longas
deitadas em divãs. Divãs onde eles eram moralizados o tempo todo. O que ele
faz? Ele se acostuma imediatamente com esse limite de sentido: “Já sei o que

83
O Sexo dos Anjos

a polícia pensa, daqui para cá vou tapeando, fico numa boa, tudo é possível”. E
eles ficam extremamente perplexos, pensam e dizem coisas escabrosas a meu
respeito – por isso é que eu sou tão mal falado... Eles chegam para mim falando
como quem estivesse desafiando: “Quer ver como ele vai ficar envergonhado!
Como eu sou sacana, como eu sou perverso!”. Aí ele diz um troço e eu digo:
“Mas que besteira, isso é porcaria. Me conta uma melhor. Você não é tarado
nada. lsso é brincadeira de criança. Para mim tem coisa muito melhor do que
isso!”. Ele vai perdendo o fôlego. Daí a pouco, para me convencer de que é um
tarado, no mínimo vai ter que trepar com a Lua, fazer uma viagem interplane-
tária... Neurótico, vale a pena coibir porque se começa a mexer onde ele tem
a garantia, proíbe-se em lugares diferentes, etc. O perverso quer é deslumbrar,
assustar, mas se você diz que aquilo é uma grande porcaria, pede para ele contar
uma melhor, ele perde o fôlego. Ou seja, ao mesmo tempo que é isso que o
inibe, ele requisita isso. Quando ele já sabe como a polícia age, ótimo para ele.
Mas no que você o inocenta – não é desculpabilizar, porque ele não tem culpa
–, no que você inocenta suas peripécias, ele fica sempre desconfiado de que,
em algum lugar, você vai pegá-lo e ele não está sabendo onde é. De repente,
ele fica pensando que o analista é muito mais tarado do que ele mesmo. Fica
desconfiado, fala para todo mundo que seu analista faz coisas horrorosas, inventa
histórias. Não tem importância, porque é por aí que ele perde o fôlego. E talvez
por aí possa perder a garantia que tem no sintoma. É difícil como o diabo, mas
é uma chance, pois no que o sintoma está resolvido, o problema aparece para
ele no regime de limitação dos seus movimentos a partir de sua garantia sinto-
mática. Ele tem um know-how do gozo-fálico e precisa, então, saber o que está
falando e quais são os limites de sentido que o mundo lhe oferece. Isto, para,
inclusive, ficar desafiando, brandindo seu know-how erótico. Mas se você faz
vácuo nessa região, se realmente diz que nada tem a ver com a ordem policial,
ele fica completamente perdido e é o sintoma que começa a desgovernar. Isto
o recorta assim como se recorta o neurótico no regime do simbólico no que se
aproveita sua dica, dele neurótico, para interceptar a significação sintomática.
Então, o que está bem solucionado é a inibição. Ele apresenta um sintoma e,

84
Nv, Ps, Mf

no que ele fala, você interpreta por via simbólica no sentido de cortar na signi-
ficação sintomática, no núcleo sintomático, com o que ele perde a garantia do
sentido. Não é isso que a gente faz todo dia? Contamos com o sintoma, pedimos
a conivência do sintoma para desfazer a garantia de sentido que ele tem. Todo
mundo faz assim, só estou dizendo de outra maneira.
Pode-se atuar também simbolicamente com o perverso porque é ali
na confluência de real com simbólico que ele vive. Mas não adianta querer
garantir-se na sintomática dele, que é o que o “analista” babaca faz. Fica tra-
tando como se fosse neurótico: moraliza, quer disciplinar, proibir, ao invés de
colocá-lo sem parâmetros.
Um certo perverso, que tive ocasião de trabalhar in vitro, ficava pa-
querando os homens pela rua num afã de insistência no gozo-fálico, uma coisa
meio assim desvairada. Mas o tempo todo, onde quer que fosse fazer alguma
investida, ele pensava: “Isso eu tenho que contar para o Magno”. No começo,
quando ele se lembrava de que se fizesse aquilo tinha que me contar, eu era
um inibidor. Ele não deixava de fazer, mas fazia no desafio à sua inibição que
minha pessoa era. E comecei a fazer o contrário: “Mas você fez só isso? Todo
mundo aí dando sopa, e você só come um? Quero ver você chegar lá e comer
dez. Vai lá se tu agüenta, vai lá se tu é macho!”. Ele respondia: “Porra, você é
doido?!”. Eu dizia: “Só um pouquinho mais do que você”. Aí ele foi perdendo
as estribeiras, porque tinha que me falar. Mas falar para mim dava em nada, pois
eu dizia que era pouco. Ele estava pensando que tinha feito uma grande trans-
gressão, uma grande sacanagem, mas eu sempre humilhava o seu know-how. O
outro analista o proibia. Aí, então, a inibição começou a virar pelo avesso. Ao
invés de ter um outro inibido, ele ficava procurando nos seus elementos onde
estaria o limite de sentido. O sentido começou a fazer problema para ele: “Se eu
for fundo e desesperadamente, perco o sentido”. Aí, começou a me moralizar.
Não deixei, é claro: “Agora tem que ser. Vamos fundo. Que história é essa?
Você comete e eu não posso dizer? Você pode fazer e eu não posso dizer? Eu
vou dizer, sim!”. Ele vai ficando desesperado no nível do sentido. Ele não fica
angustiado, pois, no que a angústia pinta, ele imediatamente traduz para a região

85
O Sexo dos Anjos

do sentido. É preciso, então, alguma limitação no sentido senão ele se perde,


senão ele vai ficar angustiado.
Como vêem, estou privilegiando as forças e os lugares onde há solução
mais viável. A gente sempre vai pelo caminho mais fácil. Na espontaneidade
das ações, sempre procuramos onde escorrega melhor. A angústia é um lugar de
difícil escorrego porque real com imaginário é difícil de sustentar. Se alguma
coisa no neurótico mexe com ele, o caminho é angústia solucionada sinto-
maticamente pela garantia do sentido. No perverso, no que se tenta produzir
deslizamento na ordem do sentido, quer dizer, não barrar, não criar inibição
para ele pela via da angústia, ele começa a estraçalhar o sintoma. Ele não vai
resolver com sintoma, então começa a procurar a inibição. Portanto, onde se
balança sua razão sintomática é fazendo-o perder os limites do sentido. E isto
se faz se tirarmos dele o que é a garantia de que ele é “porreta”. A garantia dele
é: outrem o inibirá. Ele é tarado, ele não se inibe, outrem chega e inibe. Aliás,
se ele tem condições de fazer suposição de saber, de entrar por alguma porta na
transferência, é na esperança de que o analista seja para ele tão representante da
polícia quanto outrem é. Se fizermos vácuo aí, ele perde a limitação dos senti-
dos e essa garantia, essa moradia do sentido para ele, começa a ficar precária.
Citei perverso, mas estou falando do morfológico em geral. A mesma
coisa acontece no outro morfótico que é o fóbico. Tentar convencê-lo, ainda que
por via interpretativa, de que não há razão nenhuma para ter medo daquilo que
lhe causa fobia não lhe fede nem cheira. Tentar convencer, ainda que fingindo
interpretação, de que aquilo que lhe causa terror fóbico não é para meter medo,
é uma pura tolice. Deve-se conduzir de modo a ficar horrorizado. É pela via
Zen, positivante da coisa e não contrariante dela. Equivoca muito mais positivar
do que contrariar. Contrariando, puxamos todo o know-how dele de garantia de
que aquilo realmente dá medo. É como se tivéssemos que confirmar ao invés
de ficar dizendo o contrário. Trata-se aí de confirmar a angústia em outrem.
Mas, em geral, essas coisas circulam o tempo todo. Não é muito fácil en-
contrar sujeitos nessas condições com tanta clareza. Estou tratando aqui de teoremas.
Isto não é existente. Teorema é uma coisa, “mas com gente é diferente”...

86
Nv, Ps, Mf

* * *

Lá no terceiro lugar, o psicótico, na obrigação feminina, tem solucio-


nada a angústia. Quem fica angustiado é o analista. É a psicose que é solução
para a angústia; é a neurose que é solução para a inibição; é a morfose que é a
solução para o sintoma. Então, ao criar a psicose, o psicótico resolveu a angústia.
Ela só vai comparecer travestida num produto de sintoma por inibição, que é
o que Lacan disse com todas as letras ao falar do paranóico: neologismo. Há
um ponto cego ainda no regime dos encadeamentos fraseológicos que inibe
qualquer série. Por trás daquele ponto estaria a angústia, se ela não tivesse sido
resolvida. Então, o psicótico não apresenta necessariamente sintoma, e sim a
inibição como sintoma, como Coisa. É isto que Lacan chamou de neologis-
mo. Quando chega no galopiner tudo se resolve, pois o galopiner tampona e
resolve a angústia. É o inibidor fundamental, que comparece como sintoma.
Aliás, o neologismo não é isto. Foi Lacan que lançou mão dele assim. Seria
mais um litologismo, a palavra-pedra. Esse litologismo resolve a angústia,
faz parede para qualquer angústia. Tentem angustiar um psicótico. Ele delira,
resolve o problema e... angustia você. Você não é de ferro, ele é. De repente,
esse litologismo pode ser: cassar a palavra. É o caso, por exemplo, do autista
radical: o que quer que diga é um litologismo, não há nada para dizer. Tudo se
inibe ali, é pura inibição apresentada como sintoma. Mas não é um sintoma.
É uma Coisa. É a couraça da angústia. Quem está resolvida é a angústia. E aí
fico muito perdido porque: do que adianta fazer recorte simbólico? Ele tem
muitos melhores do que os meus, pois ali ele passeia à vontade... desde que
não esbarre na tal pedra. Se a amarração solucionante dele está entre real e
imaginário, acho que só aí se pode trabalhar.
Bom, e há o produto disso tudo por aquilo que chamei de macho e
fêmeo, que miticamente podemos chamar: dentro e fora, para fora e para den-
tro, exposto e imposto, para o mesmo e para o outro. É difícil lidar com isso,
mas isso existe. Quer dizer, é diferente o morfótico, digamos, do neurótico,
cuja referência é impositiva sobre o Outro, ou que é, digamos, penetrante e

87
O Sexo dos Anjos

penetrado, inseminante ou inseminado. A questão é estritamente topológica.


Se quisermos ser mais abstratos, é côncavo ou convexo. A histeria é convexa.
Temos aí as três posições contendo real, simbólico e imaginário e o Revirão
disso. No Revirão puro e simples do real, simbólico e imaginário, temos real,
simbólico e imaginário com nodulação trocada: ao invés de ser por cima e por
baixo, é vice-versa. Quando falamos de neurose, psicose e morfose, o Revirão
que aí acontece entre essas fórmulas, dentro delas, é o ser convexo: posto para
fora ou posto para dentro. Centrípeto ou centrífugo, também serve. Coisa que
não é novidade, pois temos vários autores tratando, por exemplo, de psicose,
com esquemas centrípetos e centrífugos. O pessoal já sacou que a topologia da
coisa é: daqui para lá ou de lá para cá. O de lá para cá é que estou chamando
de fêmeo, e o daqui para lá de macho. É o tal negócio que o pessoal da Casseta
Popular fez. Eles saíram perguntando às pessoas: “Você cospe ou engole?” .
Quem cospe é macho, fêmea engole, não é óbvio? Se vocês quiserem entrar
na patologia “cassetal”, é uma questão de cuspir ou engolir.
A topologia então é: “Você cospe ou engole? Você joga para lá ou
joga para cá?”. E isto nada tem a ver com masculino e feminino. Vamos sair
de macho e fêmea e ficar no “cospe ou engole”. O masculino não é da ordem
do mesmo, e sim do universal. Quem é da ordem do mesmo é o feminino, da
idiotia, da referência à particularidade. O masculino é da ordem daquilo que,
na arte, poderíamos subsumir sob o termo de idealismo, embora nada tenha a
ver com imaginário. O que é, na verdade, o idealismo? O que é, por exemplo, a
vocação classicista? Não é senão o idealismo puro. É o que tem algum elemento
que, fazendo um universal, situa todos segundo um ideal dado. Vamos tirar o
ideal, pois não é o Pai-Ideal, e sim ideal no sentido do escopo ideal da produção,
daquilo que faz um universal artístico, que é onde se pode dizer que o Nome
do Pai está garantindo. O classicismo é nada mais nada menos do que a arte do
masculino: existe um universal artístico, é possível um cânone radical universa-
lizante da obra de arte, que é o regime da ignorância. O regime de contar com a
garantia da ignorância é o masculino. Isto no sentido de que a minha ignorância
está limitada pelo conceito dado, pelo conceito que faz o universal. A minha

88
Nv, Ps, Mf

ignorância é aceita daqui para lá, não é questionada. Adão, Eva e a serpente.
Adão funciona ali como masculino. Já que o Senhor disse: “Daquela árvore,
não!”, ele se satisfaz com a ignorância. Essa ignorância é tida, dada, ponto!:
ali está meu limite, eu sou um universal. Todo homem como eu está subdito,
chapadão, a essa ignorância. O masculino, então, não é da ordem do mesmo, e
sim da submissão à fundação da Lei, a esse externado, a esse morto.
O feminino nada tem a ver com a ignorância, e sim com o ódio. É o
contrário do que se pensa. O feminino é o lugar do ódio: Eva. O lugar do amor
é onde está a “neura”. Amor é coisa de Anjo. Não que ele seja amoroso, não
que seja o amante ou o amado, é que ele é o futricador dos amores. Eros: um
anjinho de asas, que vai tecendo os amores com a cobra. A cobra, lá no meio do
Paraíso, insinua-se angelicamente e começa a fazer a fofoca: “Você e o Adão
não estão fazendo nada aí mesmo. Esse cara lá em cima está de sacanagem, está
dizendo para você não comer isso para não ficar sabendo das coisas”. Adão se
satisfaz com a ignorância. Eva, que não está no regime do universal, não suporta
a ignorância, suporta é o ódio, fica com raiva do Senhor: “Que porra é essa?
Está me escondendo o jogo? A serpente tem razão. Vou comer, sim, e vou dar
para o outro”. Como o outro é um babaca mesmo, ele vai comer...
O amor, então, é tecido pela posição angélica, que faz a futrica, a chi-
cana, dos amores e fica sempre no meio dos sentidos, ali passeando. É cupido
jogando as flechinhas. E quando os dois caem em relação amorosa, o macho cai
de ignorante, e a fêmea de odienta. É o que se chamou de inveja do pênis, por
falta de nome melhor. É o ódio feminino. Porque não há o para-todo. Imaginem
o que é sustentar uma idiotia, uma particularidade que não faz universal! Só na
guerra, só na demonstração cotidiana de que eu sou diferente. O que sustenta
as mulheres é o ódio. Por isso, sempre parece que elas são histéricas, mesmo
quando não são. Elas estão sempre de olho se aquela lá está com um vestido
mais bonito, se estão supondo que outra é mais gostosa: “Não pode! Sou eu!”.
É no regime do ódio que ela vive, dia e noite.
Sujeitar o outro à lei, como é o caso na universalização, não é ódio.
É amor paterno – embora venha juridicamente como pátrio poder: “Seja um

89
O Sexo dos Anjos

de nós, seja homossexual”. Os homens estão sempre pedindo a todos para


serem homossexuais, inclusive às mulheres. Elas só não se tornam porque são
odientas: “Como? Você pensa que está falando com quem? Está pensando que
eu sou você?”.

* * *

Penso que Lacan, sustentando dentro da sua época, em função das


possibilidades discursivas, subdividiu por dois o que era para dividir por três.
Então, temos, por exemplo, a frase: “É quando o homem ama, que ele é mulher”.
Não é não! Quando o homem ama, ele é pato, é panaca.
Não existe, é claro!, este ser isolado que só tem ódio, que só tem amor
e que só tem ignorância. Estou dizendo que essa postura imediatamente cai
quando, com o regime da ignorância, ele limita e satisfaz: ele paratodiza, homos-
sexualiza, resolve tudo. Quando chega o terceiro e instila o amor no homem, ele
é capaz – aí Lacan tem razão, pois não é quando ele ama que ele é mulher – de
se afeminar mediante o amor. Então, o que era amor transmitido pelo Falanjo,
vai freqüentar o regime do ódio. O que sustenta fundamentalmente um grande
amor? É o ódio de tudo que impeça aquilo. E não é por comparatividade. É
mesmo! O sujeito, numa relação intricadamente amorosa, é odiento quanto a
tudo que possa mexer naquilo. É uma mocinha – Lacan tem razão...
Os Falanjos não se amam nem se detestam, eles simplesmente se
olham, se reconhecem e dizem: “Não tenho nada a ver com isso”. Eles ficam
produzindo discursos da provocação amorosa e do ódio, portanto.

08/MAI

90
Sujeito divinizado

5
SUJEITO DIVINIZADO

...a gente fez um Mutirão de Psicanálise sobre real, simbólico e imaginário –


ou fez que fez –, e a última pergunta colocada pelo cartel onde eu estava foi: “O que é
real, o que é imaginário e o que é simbólico?”. Precisamos repensar tudo isso porque
aprendemos a sintaxe, a gramática, os nomes das coisas... Aí, quando começamos a
falar usando desse arsenal, as frases até ficam bonitinhas, está tudo certo, mas, de re-
pente, a gente se dá conta de: “Será que sabemos o que estamos falando?”.Apsicanálise
tem isso: dado o tipo de construção que ela faz, meio assentado em coisa meio flou, de
repente, não sabemos mais do que estamos falando. Mas ainda assim falamos
com a maior convicção... Mais ou menos como faz o discurso universitário, o
qual, como diz Lacan, ensina muito bem o que não sabe. Então, se pararmos de
perguntar – e não se trata da mera mania de ser perguntador – porque pensamos
que já sabemos, aí não dá, não tem mais saída. Fica o clube do psicanalês. Na
verdade, a gente não sabe muita coisa não, a gente se enrasca demais... Não
vou tentar, agora, saber o que é real, simbólico e imaginário porque não consigo
saber hoje. Vamos por outra coisa que possamos mexer um pouco.

* * *

Quando, em nosso terceiro encontro deste semestre, mostrei o qua-


drinho que me pareceu suficiente como redutor dessa coisa que chamamos

91
O Sexo dos Anjos

de patologia, tentei, depois de pedir que aceitassem a proposta de três sexos,


inscrever nesses três lugares supostamente sexuais, sexuados, seis posições
patológicas. Teríamos, então, três posições sexuais e, nelas, as possibilidades
de fazer três obrigações: neurose, psicose e morfose; e, dentro de cada uma
destas, uma partição: duas para a neurose, duas para a psicose e duas para a
morfose. E eu dissera que isso ficaria em função de macho ou fêmeo – o que
não quer dizer muita coisa...
Para tentar explicar isso, eu disse que é como se fosse o inseminante
e o inseminado, ou seja, algo parecido com o doador e o receptor. Mas, num
segundo momento, me pergunto se é possível retirar esses nomes e procurar,
por exemplo, uma orientação. Se o Pleroma tem três lugares – que, na verdade,
são quatro: são três sexos, sendo que o quarto é morto, neutro –, por outro lado,
ele teria que ter duas orientações para corresponder, sem falar essas palavras,
àquilo que chamei de macho, fêmeo, etc. Estas palavras são muito vagas, pois
quando entramos na ordem do falante, na estrutura, mesmo, isso fica muito
esquisito, porque não posso me referir a uma anatomia, não posso trabalhar,
por exemplo, com animais para saber disso. Não se trata de psicologia animal
e nem de etologia. Se pudéssemos, então, tirar essas coisas, quem sabe se há
uma orientação e outra orientação avessa, oposta.
O Pleroma tem duas orientações possíveis. Afinal de contas, ele não é
senão uma representação fechada sobre um tetraedro do mesmo nó borromeano,
como já demonstrei aqui. Ora, no nó borromeano, se fizermos uma combina-
ção de três elementos – Real, Simbólico e Imaginário – três a três, de como se
nodula a coisa, podemos ter as seguintes possibilidades:

92
Sujeito divinizado

As combinações das letras são estas e não mais que estas. Quer dizer: o ima-
ginário está por cima do real, que está por cima do simbólico, que está por
cima do imaginário, e assim por diante. A setinha quer dizer “por cima de”. Se
viramos a seta ao contrário é “por baixo de”. Mas, se observarmos, veremos
que se chamarmos a primeira combinatória de 1 e a segunda de 2, teremos
que as quatro seguintes são iguais às duas primeiras que começam por outro
lado. Então, essas quatro últimas combinatórias não têm serventia. São duas
e apenas duas. Só temos duas oportunidades de amarração: ou o imaginário
está por cima do real por cima do simbólico, ou o imaginário está por cima do
simbólico por cima do real. Pergunto, então: essas duas que sobram, uma é o
avesso da outra?
Parece cartesiano, mas não é. Lacan vai, numa das últimas sessões do
Seminário Les Non Dupes Errent, tentar responder a alguém que lhe colocara
a questão do que teria a ver o nó borromeano com as fórmulas quânticas que,
como sabemos, ele escreveu quatro, duas a duas. Então, ele faz uma fala mais
longa e, depois de fazer uma porção de manejos com o nó, rebatimentos, etc.,
para estudar sua orientação, ele promove um tetraedro (que não é o meu, que
não é construído assim) para dizer que aquelas quatro fórmulas se inscrevem
nas quatro faces desse tetraedro e dá uma resposta assim: “Me perguntaram,
eu estou dando a resposta”. Só que aquilo não chega a lugar nenhum. Nem
convence. Não leva a nada. Ele estava, a meu ver, inspirando-se numa possi-
bilidade de escrever essas fórmulas numa estrutura qualquer para funcionar. E
eu não vejo funcionar.
Mas, se estou diante do nó borromeano, literal e realmente diante dele,
estou mergulhando este nó num espaço euclidiano. Considerá-lo, mergulhá-lo no
meu espaço euclidiano, deve prejudicar a concepção da sua orientação. Lacan
se aproveita dessas passagens por baixo/por cima, em torno desse triângulo

93
O Sexo dos Anjos

central, e se aproveita talvez também da orientação dada a um percurso qualquer


sobre um dos elos. Por exemplo: se estou aqui com o nó na mão girando para a
direita, se todos estão girando para a direita, como vai ficar isto nas orientações
do nó? Lacan chama atenção para o fato de que o que vocês estão vendo é o
contrário do que eu estou vendo do lado de cá na relação por baixo/por cima, no
que diz respeito àquilo que está escrito ali. Então, o que vocês estão vendo por
cima eu estou vendo por baixo. Do ponto de vista da passagem por baixo/por
cima, os dois são avessos, sim, mas acontece que o que estou vendo aqui girar
para a direita vocês também estão vendo girar para a direita. Aí Lacan começa
a questionar essa dissimetria que aparece, porque, embora deste lado a relação
por baixo/por cima seja contrária da relação de lá, ambos estão girando para a
direita. E por aí vai. Ele fixa, por exemplo, dois dos nós e rebate o terceiro. Ele
toma essa parte central onde está o objeto a e faz o seguinte:

É esse miolinho que ele está considerando. Na verdade, não são nem os mes-
mos segmentos que giram para um lado e para outro. De qualquer lado, está
girando para o mesmo lado.

* * *

Lacan faz a suposição – e esta é a minha crítica, hoje – de que só


podemos representar dois e apenas dois nós borromeanos. Mas acontece que
ele mostra essa representação no objeto. Então, ele está construído e essa pla-

94
Sujeito divinizado

nificação é uma forçação de barra, pois o nó borromeano não tem forma, tem
simplesmente uma amarração. Isto já é forçar a barra, já é segurá-lo numa folha
de papel para poder entendê-lo. O nó, então, é o mesmo do ponto de vista da
orientação do giro – de qualquer lado gira para a direita – sendo que, visto de
cá, a relação por baixo/por cima é a inversa da vista de lá. Que diabo é isto? Aí
Lacan mostra que se faço o rebatimento de um dos elos, se fixo dois na forma
que estava e faço o rebatimento de um, cá está o nó borromeano de novo – e
observem que esse rebatimento não muda a relação por baixo/por cima –, mas
mudou a orientação: para vocês, era destrógiro e passou a levógiro. Então, o
rebatimento de um dos elos mantém a relação por baixo/por cima, mas troca a
orientação do giro aparente. Mas quando Lacan coloca esta questão da orienta-
ção do nó, ele a coloca no nível da representação plana. E eu repito a pergunta:
será que isto serve para alguma coisa? Se serve, para o quê? Na medida em
que represento planificado, estou mergulhando o nó no espaço euclidiano e o
obrigando a se comportar dentro desse espaço. Como, então, devo considerar
a orientação do nó?
No mesmo Seminário, Lacan explica claramente que se tomarmos
uma “esfera” borromeana, uma pseudo-esfera armilar borromeana – como
já mostrei aqui num Seminário em que estava desenhando isso como
triedros cartesianos, quadrantes, e em que botei oito quadrantes –, e to-
marmos um dos quadrantes, teremos uma representação que, no caso desta
que tenho nas mãos, é destrógira, para a direita. Aí ele pergunta: “Posso
transformar esta representação em levógira?”. E responde corretamente
que só há uma maneira de passar essa representação para levógira, com
avessamento das posições, que é pegar o quadrante oposto, traçar um eixo,
e o quadrante oposto me dará a representação contrária da representação
anterior e ainda por cima avessará o por baixo/por cima. Quero dizer aos
senhores que é isto que chamo de Revirão. Porque apenas rebater um
dos aros me dá o avessamento da orientação na representação, mas não o
avessamento do por baixo/por cima... Mas, retornando, se a representação
é levógira, o quadrante oposto é justo aquilo em que está escrito objeto

95
O Sexo dos Anjos

a. Se viro este quadrante inteiramente pelo avesso, a representação passa


a destrógira.

* * *

Estou dizendo, então, que isso é uma aparência de quem está mergu-
lhado no espaço euclidiano. Quero perguntar, independentemente de qualquer
representação plana, de qualquer rebatimento de um dos registros, como posso
me orientar mesmo de dentro do nó, participando dele. Quando estávamos
falando da banda de Moebius, lá no seminário d’A Música, eu dizia que um
ponto se deslocando sobre a banda, haverá um momento de vizinhança em
que, se vinha girando para a direita e se encontra comparativamente com a sua
posição anterior – ou seja, numa questão de vizinhança, não importa quantos
degraus da vizinhança tenha que pular – girando ao contrário do que vinha
girando. Não que tenha que sentir esse Revirão, mas que pode, dando um tem-
po, comparando esta sua passagem com a passagem anterior, o próprio ponto
que ele puder marcar, se der uma transparência nisso, ele verá que trocou de
posição. Ele trocou – disse eu naquela época – de sexo, porque o ponto é bífido
e é bissexuado. É esse sexo da banda que quero chamar de macho e fêmeo, e
não aqueles três que nada têm a ver com isso. São sexos efeito da nodulação.
Aquele lá da contrabanda, que eu dizia ser anfissexual, é que chamei agora de
macho e fêmeo.
O problema da psicanálise é resolver uma coisa muito simples e que
ninguém consegue resolver: como ter um raciocínio binário e ternário ao mesmo
tempo? Este é o nosso problema, pois quando se vai para o binário, encaixa,
quando se vai para o ternário, encaixa, mas quando juntam-se os dois dá um
melê. O que acontece, então, com um ponto ou um sujeito, até acéfalo, que
estivesse percorrendo o nó borromeano? Não é ver de fora se é para direita ou
para esquerda, pois isso não interessa. Que orientação ele pode ter lá dentro? Só
por baixo/por cima – mais nenhuma. Vamos até colocar aqui o nó borromeano
nessa forma esférica, asférica, supor que ele esteja fixado nessa posição e que

96
Sujeito divinizado

eu sou vermelho. Se estou caminhando, meu centro de gravidade é o centro da


esfera. Estou caminhando sempre com os pés voltados para o centro e durante
esse caminho inteiro, sempre terei o azul em cima e o verde embaixo. Escolhi
essas cores porque dão até uma referência geográfica: terei sempre o chão aos
pés e o céu na cabeça. O que é necessário para que isto se reverta? Simples-
mente que de alguma maneira a relação por baixo/por cima vire ao contrário.
Continuo com meu centro de gravidade no centro e as coisas se modificaram:
o verde foi para cima e o azul para baixo.
Agora, vamos tirar o em cima/embaixo e botar esquerda/direita, que dá
na mesma. Dependendo da posição que usar para percorrer o nó borromeano,
estou andando dentro da estrutura do nó, sobre um dos registros – suponha-
mos que sou um registro –, terei sempre um à direita e outro à esquerda. Estou
orientado, não importando para que lado esteja andando, porque, ande para lá
ou para cá, seja destrógiro ou levógiro, o que sei é que posso caminhar numa
boa, porque o verde sempre estará à direita e o vermelho à esquerda ou o con-
trário. Mas estou orientado porque sempre passa um pela direita e outro pela
esquerda, ou vice-versa. Mas se há um reviramento, imediatamente as coisas
trocam de lugar: o que estava à esquerda vai para a direita e o que estava à
direita vai para a esquerda. Eu me dou conta de que há um reviramento quan-
do os registros trocam de lado para minha posição, pouco importando se sou
destrógiro ou levógiro.
Quero insistir, então, não que essa orientação da representação não
sirva para nada. Não sei. Mas cria tanta complicação que pode confundir exa-
geradamente e fazer a gente se perder demais dentro do nó. Estou isolando,
para maior segurança de percurso, essa questão da orientação do giro e me
atendo à ordem do por baixo/por cima. São duas e apenas duas orientações
talqualmente o Ponto Bífido sobre a banda de Moebius. Se aplicarmos essas
duas orientações apenas no sentido por baixo/por cima àquele quadrinho, po-
deremos dizer que a posição, por exemplo, masculina, como posição, continua
a ser masculina, independentemente da orientação. Tanto faz se o verde está
à esquerda e o vermelho à direita, ou vice-versa. Nesta posição, tanto faz. Ela

97
O Sexo dos Anjos

continua sendo uma posição masculina. A coisa só vai sofrer embaraço, é o caso
de dizer, quando houver obrigação. A obrigação no masculino, como coloquei,
se chama Morfose. Ora, na obrigação morfótica, a coisa não revira mais, o nó
deixa de ser borromeano. Ele tem uma zona de aparência borromeana, tem con-
tatos da ordem do borromeano, mas no nó dessa natureza, onde dois têm uma
obrigação, não posso garantir o por baixo/por cima. Posso garantir no que diz respeito
ao terceiro: este está por inteiro por baixo de um e por inteiro por cima do outro.
O terceiro não tem condições de revirar o nó. Ele tem condições de revirar aquela
orientação que Lacan disse. Mas isto não quer dizer nada porque ele não conse-
gue revirar o nó pelo fato de que o nó assim nem revirável é. Sobretudo, porque
não tenho nenhuma garantia distintiva de por baixo/por cima nesses dois que
estão lá. Não posso dizer que um está por cima do outro. Só tenho a aparência.
Não posso mudar o por baixo/por cima nem do terceiro, mas posso, rebatendo,
mudar aquela orientação que Lacan escreveu: a coisa vira ao contrário.
Minha crítica é o uso da orientação na representação porque ela não
me dá garantias, e estou pedindo o uso da orientação apenas no por baixo/
por cima. E dizendo que se a obrigação pode eventualmente ser representada
como representei, ou seja, que o nó deixa de ser borromeano e tem uma pega
a mais entre dois registros, o terceiro fica numa certa soltura e numa garantia
de estar por baixo ou por cima. Ou seja, se estou percorrendo o terceiro nó,
como no caso daquela “esfera”, encontrarei sempre um à direita e outro à
esquerda, sempre tudo direitinho, mas isso não vai ser trocado. Não há como
trocar, está preso. Além de que, se percorrer outro dos outros dois, nem isso
tenho, nem a garantia de ter sempre um à direita e outro à esquerda. Aquilo
fica ensandecido, fica inteiramente traumatizado. Posso até saber que, se estou
neste, aquele terceiro está sempre do mesmo lado, mas o outro não está. Estou
pedindo esses cuidados nessa representação justamente para não nos perdermos
em cima deste objetinho, desta “esfera”. É muito útil, muito prático, mas não
posso me perder nele.
Pois bem, estou aqui com o tetraedro que apresentei em nosso primeiro
encontro deste semestre. Diferentemente da esfera armilar, nele, posso mexer.

98
Sujeito divinizado

A prova é que, embora aqui esteja por baixo/por cima e ali por cima/por baixo,
ou vice-versa, quando confronto os dois, não tenho um avessamento pleno no
sentido de Lacan. Ambos são destrógiros. Ambos estão representados da mes-
ma maneira, chapados. Ambos giram para direita nesta representação. Não há
como mudar essa representação, só se, como disse Lacan, fizermos outro nó.
Tenho, então, duas maneiras de amarrar o nó aprisionado na superfície plana,
as quais me dão a impressão de que não posso passar de um para outro. Só se
fizer outro nó diferente. Mas o nó propriamente dito pode passar, não é preciso
fazer outro, porque só existem estes dois e não mais, e estes dois são um só.
Acho engraçado Lacan dizer isto – que só se fizermos outro nó – quando tinha
falado dos quadrantes e mostrado que se fizermos o rebatimento pelo qua-
drante oposto, ele vira inteiramente: não só passa de levógiro para destrógiro,
ou vice-versa, como muda o por baixo/por cima também. Então, não há duas
amarrações para o nó, e sim uma e apenas uma.
A correlação que quero fazer é que há um comportamento moebiusiano
no nó borromeano. Como o Ponto Bífido que sugeri para a banda de Moebius,
também no nó borromeano, que é um só, há duas posturas possíveis em trans-
formação contínua. Isto para me desinteressar, ainda que por enquanto, da
orientação do giro. Pouco estou me incomodando com isso, porque em meus
devaneios... Meus sonhos são muito atuais. Por isso que gosto desses maluquetes
assim feito Spielberg, desses caras que fazem Guerras nas estrelas... É assim
que imagino as coisas. Às vezes, até, fico com um problema desses na cabeça e
sonho. Sempre me vejo como aqueles caras da nave espacial andando por dentro
do troço. Eu estou lá dentro, sou aquele personagem lá do filme. Se vou dormir,
como ontem, por exemplo, preocupado com isso, aquilo fica lá se resolvendo
por si mesmo... É um barato, há que se manipular muito bem o simbólico para
fazer-se uma defesa tão bem construída, não é? Mas o importante é a gente
conseguir, de um lugar de sujeito, ficar dentro do processo e não olhar de fora.
Estou lançando mão desse tipo de filme porque é perfeitamente possível, com
a aparelhagem que se tem hoje: laser, computador, etc., construir esse percurso.
Construir até em quarta dimensão.

99
O Sexo dos Anjos

* * *

Não se pode, então, como já disse em algum Seminário, de dentro de uma


orientação, dar-se conta dele se faltar o avesso. Quando estou dizendo que minha ten-
tativa de correção – não à teoria de Lacan, porque, para mim, isto está lá, mas ao uso que
fazemos dela – é no sentido de ver que não é preciso de modo algum supor uma
incompletude – por isso usei a palavra Pleroma, pois completude não é totalidade –
para reconhecer Castração. Se posso considerar avesso e direito, e considerar ambos,
mesmo que a mim falte, num dado momento, o avesso do que estou sendo, a falta que
importa não é esse avesso que me falta aqui e agora, porque o Inconsciente é bastante
safado para avessar sozinho. O que falta é a concomitância disso, a qual só se dá nesse
ponto neutro que chamei de a. Mas ali no lugar do ponto de avessamento eu não posso
estar. Posso passar à vontade, sou transiente e transeunte, o Inconsciente faz essas
transações. É preciso conceber a falta como impossibilidade de estar, aqui e agora,
nos dois, pois há um tempo entre. Assim como há um tempo para compreender, há um
tempo para passar. Vejo freqüentemente – não sei se é porque leio errado, ou
porque é isso mesmo que eles dizem –, sinto no texto e na fala da maioria dos
chamados lacanianos uma nostalgia de pedaço conhecido. Quer dizer, é como
se a castração para mim significasse que o meu limite de transação na ordem do
simbólico e, portanto, amarrada no imaginário com o real, fosse eu não poder
ter a outra parte. Posso sim! Eu não posso é ficar no meio.
Temos que repensar isso porque Freud era mais inteligente do que as
pessoas estão supondo. Ele trata coisas com uma elegância... só que ele não usa
este jargão. É preciso ler de novo. Freud insiste numa – e isto é fundamental
– dissimetria no Édipo. Lacan também retoma e insiste nisto. Mas o que é o
Édipo? O Édipo, meus senhores, é uma representação careta, euclidiana – por
isso parece uma dissimetria. O Édipo é compromissado com uma representação
euclidiana no que ele faz rebatimento sobre o corpo. Será que preciso insistir
numa dissimetria radical? Ou será, muito pelo contrário, que é no animal, na
sua postura etológica lá, mesmo nas suas construções orgânicas, etc., que, ele
sim, é dissimétrico? Muito pelo contrário, o falante sofre é de simetria.

100
Sujeito divinizado

Por ter uma reentrada, por ter uma nova entrada na possibilidade do
simbólico, o que acontece com o sujeito para necessitar – porque ele é ma-
luquinho pleno – passar por essa historinha caseira toda? Historinha caseira
pode ser a evolução da humanidade, se quiserem, se isso existe, essa coisa que
a antropologia procura: fundação de cultura, interdição do incesto, blá, blá,
blá, que é nada mais nada menos do que adequação dessa loucura à ordem
antisimétrica ou dissimétrica de uma posição euclidiana. O que quero dizer é
que falante enquanto tal, na sua emergência no seio do não-falante... O seio
do não-falante só pode ser os resultados parciários, os efeitos modais de um
falante suposto: Deus. Então um suposto sujeito chamado Deus, no que ele,
como falante, diz os palavrões dele, essas palavras viram coisas. Essas coisas
estão limitadas na sua dissimetria. Se aparece um Adão, se sou adâmico, estou
na possibilidade de repetir não a coisa fundada, mas a fundação da coisa. Então
eu sou divinizado... Aliás, Adão não tinha a possibilidade de falar essas coisas.
Não antes da boa foda, como diz Joyce: “Antes da queda, Adão trepava mas
não gozava”. O que é absolutamente perfeito.
Se estou aqui de novo, eu – não é o boneco aqui, não –, eu sujeito,
então, estou em condições de repetir o ato de criação... E se estou em condi-
ções de repetir o ato de criação, eu sou Deus. Isto não quer dizer que sou “O
Deus” ou que “Deus é eu”, que seriam da ordem da psicose. Ou seja, a soma, a
superposição de um zilhão de buracos é um buraco só. Portanto, eu sou Deus.
Fernando Pessoa já o tinha dito. É aquela coisa que os cristãos diziam: “Eu
porto uma centelha divina. Deus está em mim. Eu habito Deus”. Eles ficavam
tentando dizer isto. E é absolutamente correto porque, se faço suposição de
sujeito, tenho que fazer suposição criacionista. Aí é que pega certa briga idiota
de biólogos: “Criacionismo X Evolucionismo”, quando ambos estão certos.
Tenho que supor ato de criação se suponho sujeito: ato de criação de algo, é
claro que sintomatizado, limitado, fechado... O que me atrapalha na minha
divindade não é eu não ser Deus, é eu ser um Deus babaca, decadente, e que
me apego a tal relação sintomática para ser um certo sujeito. E onde sou um
certo sujeito, perco algo da minha divindade. Então, sou um Deus decadente

101
O Sexo dos Anjos

porque preciso ser um certo sujeito. Mas além de ser um certo, sou sujeito, e,
se sujeito, está lá essa divindade.
Retomando, então, Freud coloca a questão da dissimetria do Édipo e
Lacan também insiste nela. Correto! Mas essa dissimetria só tem valor opera-
cional no regime da representação desse sujeito, no campo, digamos, da sua
euclidianização, da sua orientação na face do planeta, no sentido topológico
de dizer isto. Do que o falante sofre – não o sujeito que é um certo sujeito,
mas o sujeito tout-court: emergência da possibilidade de falar – é de simetria,
porque ele pode transar de um lado para o outro. Sem isto, o ato criador não
seria possível.
A obrigação é que coloca o sujeito na dissimetria. E mais, não é
nem questão só de obrigação, e sim de simples insistência numa posição.
Se você é localizado pelo simbólico disponível – o qual, no sentido laca-
niano, é metáfora –, se, no campo do metafórico em uso, em qualquer lugar
e qualquer cultura, você insiste, por questões de sobrevivência simbólica,
em ocupar um lugar, por exemplo, do feminino, mesmo que você não seja
obrigado – feminino que, aliás, segundo eu, daria na psicose –, você já está
com isto limitando a simetria e, portanto, fazendo uma dissimetria, por
insistência repetitiva, forçado pelas cadeias, etc.
O que quero dizer é que nem mesmo no regime da relação macho/
fêmea, no anatômico, na possibilidade dessa bipartição, e o corpo – sei lá se é
corpo, é o boneco aí, o cavalo, sei lá quem carrega isso... Porque nós temos essa
coisa horrorosa que é um sujeito divino aprisionado num macaco. Mesmo que
Darwin esteja completamente errado, a metáfora é bonita: um Deus aprisionado
num macaco. E se não nos dermos conta disso, vamos limitar de tal maneira as
potências desse Deus, que a gente vai ficar mesmo é macaco. Porque mesmo no
que diz respeito a essa bipartição, à sexuação enquanto binária, bífida, anfisse-
xual, diferente da sexuação efeito dos três registros, pois são coisas diferentes,
mesmo aí não há dissimetria. Não para o falante.
Há dissimetria para o falante instalado numa metáfora, o que é muito
diferente. Tenho que fazer a suposição de que essa metáfora pode estar em vigor,

102
Sujeito divinizado

pode ser trabalhada na análise, etc., mas que algo a antecede, que é fundação
do falante, ato de criação divina. É o que eu já disse num Seminário antigo,
que seria uma fantasia primordial de andrógino – o qual é mera fantasia, pois
não existe. O andrógino estava fantasiando que, do lugar do sujeito enquanto
tal, enquanto Coisa, aquilo que se representa é que é suponível como Deus.
Por exemplo, qual é o sexo de Deus? Não estou nem falando no regime da
ternariedade, mesmo no regime da bifididade, qual é o sexo de Deus? Qual é
o sexo do Pai Simbólico? Não é dizível mesmo no regime da bipartição. Não
é contável. Só é contável no vel. Certamente que o sexo de Deus é homem ou
mulher, masculino ou feminino, macho ou fêmea. Só posso dizer assim: o sexo
de Deus é macho ou fêmea. É o que vai se rebater, como lugar angélico, na
posição de sujeito instalado – coisa que mostrarei no futuro. Isto vai se rebater
naquela tríade sexual, no lugar do Anjo. Mesmo como sujeito instalado, insistir
naquele sexo do Anjo é rebater de maneira decadente nesse vel do sexo divino,
do sexo do Pai.

* * *

Escrevi em algum lugar que há um só órgão do gozo. Freud o chamou


de Falo. Um sexo só. Então, sexo, antes de mais nada, é um só. Que há dois
sexos no sentido da reprodução, para nós. E que há três sexos no sentido da
estrutura: real, simbólico e imaginário. Vamos partir daí. Não só Freud como
Lacan insistem numa coisa que a vontade de cultura fica comendo e não deixa
proliferar, que o falo está em qualquer falante. Antes ainda de criar-se dissimetria
euclidiana e edipiana de ter e ser, ele está lá em qualquer falante funcionando.
O falo é a aflição fundamental, é o que vai dar em sintoma. Sintomatizar esse
falo já é amarrar, aprisionar alguma coisa. Começa a se orientar o sujeito.
Orientação forçada, feita na base do preceito. É por via preceitual que a tal
da metáfora paterna se instala. Não o ato da construção da metáfora, mas a
metáfora acolhida.
Acho necessário pensar esses paratrásmente para a coisa poder deslizar.

103
O Sexo dos Anjos

A tendência que vejo é a psicanálise virar, mesmo depois de Lacan, normalização


na via da representação, na via do euclidiano. Lacan criticou demais os pós-
freudianos que estavam fazendo uma psicologia de normalização, mas eu me
pergunto se certas maneiras insistentes de abordar fenômenos como psicose, etc.,
não recaem outra vez, por falta de se pensar nisso, num anedotário cotidiano,
em forjações preceituais da cultura. Toda hora que alguém se deita no divã, o
que se ouve é papai, mamãe... Mas se fôssemos conjeturar a psicanálise por aí
e trabalhá-la por aí, ela não daria um passo. Se eu topar as configurações que
se me apresentam e não perguntar como elas terão sido, estarei é fazendo a
psicologia do reconhecimento do Édipo. Por que Lacan insiste em que Édipo
é um sonho, um sintoma de Freud? E mais, é preciso procurar nessa zorra toda
qual seria o lugar adequado do analista. Não estou me referindo ao lugar do
analista como está escrito no discurso analítico, mas sim nessa estrutura toda. Por
exemplo, qual é o sexo do analista? Ele trabalha na simetria ou na dissimetria?
Ele se assenta em conformidade com a simetria ou com a dissimetria? Como
você pode escutar a dissimetria em consonância com ela? Você não escuta!
Temos, pois, que procurar dentro do Pleroma qual o eixo que o analista tenta
sustentar. Qual é o sexo que ele visa?: Os quatro sexos.
Isto é uma sexuação. Se, por acaso, aquelas minhas fórmulas estiverem
corretas, está lá escrito qual é essa sexuação. O espantoso é que de qualquer
das três posições, mesmo sem obrigação, não se pode dissimetrizar, pode-se
é fazer uma combinatória, jogar de uma posição com as duas outras. Mas da
quarta posição, você simetriza tudo. E isto é uma loucura! Você não pode estar
nela, mas pode sustentar essa posição.
Será que uma análise termina só com a produção de S1? S1 basta? Não!
É preciso pulverizá-lo para, pelo menos, sair de qualquer relação em qualquer
status quo. Por que Lacan, depois de escrever a fórmula do discurso psicanalí-
tico, diz que a meta do psicanalista é a santidade? Ora, no destacamento de S1
não há santidade alguma, ainda que ele queira chamar Le Sinthome. Como se
pode pegar o sintoma e transformá-lo em razão de Sinthome? Talvez a dissi-
metria só se instale em nível da letra. Por que Lacan falou de instância da letra,

104
Sujeito divinizado

e não do significante? Ele citou a letra no regime do metafórico, na instalação


do significante, como insistência de sentido.
Será que uma Ética tem compromisso com a verdade? Se ética é possí-
vel, não antes do discurso analítico, nem antes de haver psicanálise no mundo,
mas antes do fato de travessia, ter passado por isso permite a freqüentação dos
discursos nas suas éticas. Mera freqüentação. É isso que chamo de tomar posição,
por exemplo, no discurso universitário, no da histérica... Pois a comemoração, ou seja,
a memória dessa travessia, subverte, por exemplo, de uma vez por todas a sustentação
de uma crença, maneira de dizer, não estou achando outra, nessas éticas. Então, você
fica mais, vamos usar o termo correto, maquiavélico, não no sentido vulgar, mas no
sentido do Sr. Maquiavel, que era o Jacques Lacan de sua época. Ou seja,
estou considerando os jogos discursivos e podendo entrar neles, e até na ética
particular deles, mas nada tenho a ver com isso. Não tenho compromisso aí,
apenas posso entrar. Eu não sou isso. Acho que o esquecimento disto é muito
freqüente. E acho até mesmo que considerar o fim da análise na estrita separação,
distinção deste significante, S1, é pouco. Tanto é que Lacan falava em travessia
da fantasia, em meta de santidade, etc. Ele ficava pedindo mais. E pedir mais
não é pedir um além disso. A meu ver, é pedir a comemoração disso, o que
tem efeitos muito sérios no modo de você se utilizar dos outros discursos, das
éticas dos outros discursos. E isto é muito diferente de você ter compromisso
de qualquer espécie com os conteúdos dessas éticas. Esta é a minha crítica.
Vejo freqüentemente em textos de ditos psicanalistas, lacanianos, um
certo conforto, preguiça, sei lá o quê, de estar apontando demais para esses
conteúdos para ficar livre da aflição do simbólico. Quando Lacan, por exemplo,
critica nos pós-freudianos o tal “Supremo de Genital”, é para apontar que o que
fizeram foi rebater o que a psicanálise pode ter trazido de radical sobre uma
felicidade de acordo com os padrões corporais do mundo. Ou seja: “Já que,
até segunda ordem, gente tem esse tipo de corpo, nasce sempre assim, macho,
fêmea, etc., vamos rebater tudo isso e fazer a felicidade do sujeito estar de acordo
com isso”. E isto é diferente de conciliar-se, pois posso me conciliar com isso
muito bem, mas não tenho que ficar em acordo, em consonância.

105
O Sexo dos Anjos

A psicanálise vive freqüentemente sendo invadida pelo moralismo, que


não é nem de outros discursos, mas de conteúdos efeitos desses discursos. Isto é
a barbárie, e tem efeitos graves na chamada Clínica. Porque o cara que se postura
nesse lugar, ele é um caga-regra, mesmo que não o esteja dizendo: ele senta no
penico do caga-regra em vez de na poltrona do analista. O caga-regra não faz
o exercício da equivocação plena. Por exemplo, posso achar um transexual um
babaca, mas não mais do que isto: ele não consegue se conciliar, negociar com
as possibilidades. Mesmo que ele deseje o impossível – porque só se deseja o
impossível, é óbvio, ninguém deseja outra coisa – de seu momento, não há crime
nem erro nisto, ele não consegue se conciliar com o possível, até que advenha
outro possível. Então, ele sofre desta babaquice. Ora, o anti-transexual não
sofre da mesma? Um sujeito supostamente analista, sentado no seu lugar, se se
comporta como anti-transexual, ele é a mesma merda que um transexual. Não
vejo diferença. O anti-transexual é aquele que acha que é aquilo mesmo, que
o cara é um psicótico, pois não se coaduna com o possível apresentado. Não é
não! Porque se tenho discursos vários – o científico, por exemplo – que amanhã
possam fazer uma intervenção direta na ordem do anatômico, da engenharia
celular, do cacete que seja, quem caiu na babaquice foi o tal “analista”, e não
o transexual. Não posso dizer a um transexual que é um absurdo, que ele está
sonhando... E sim: “Acho que você é brilhante. Se você pudesse passar direi-
tinho... Só que não pode! Ainda não é plausível, não é construtível. Você tem
que deixar de ser babaca e fazer uma conciliação qualquer por via simbólica”.
Porque a outra conciliação, que seria de laboratório, de transformá-lo em outro
sexo anatômico, também é uma conciliação simbólica.
Abro certos textos... E não dá para entender! É luta de prestígio do
analista com o analisando: “Você não pode ser assim!”. Ao invés de: “Pode sim:
pensar, desejar, etc. Agora não seja babaca a ponto de estragar sua vida com
seus “possíveis”, ficar com aparência de um possível que, na verdade, ainda é
impossível”. Quer dizer, o tipo de conciliação simbólica é outro. Quando você
vê essas coisas – pelo que os analistas escrevem, não sei o que aconteceu lá
dentro do consultório – dá a impressão de que ele ou fica puto porque o cara

106
Sujeito divinizado

não se convence ou quer convencer o cara. Não dá! Psicanálise não tem nada
a ver com isso.

* * *

Essa falta de comemoração é grave porque tem efeitos secundários da


pior espécie, além de tirar a inteligência das pessoas, isto é, a possibilidade de
ir em frente nas transas simbólicas. Quando se diz, por exemplo, que “a análise
trabalha com o que há”, em termos de conciliação, tudo bem! Mas ela não pode
descartar o que não há ainda. Ou, então, quando se diz, em termos éticos, que,
após todos os passos que se puder dar numa análise, psicanálise não se ocupa
com o depois disso, ela, na verdade, não se ocupa tecnicamente, mas tem que se
ocupar sim. Não posso dizer: “Aqui pára minha função, agora o problema passa
a ser seu”. Ela confia que o problema passa a ser do outro, e não que o problema
acabou. Ela não pode se ocupar em ser bedel de analisando nem de analista.
A psicanálise não pode criar e não tem uma “visão de mundo”. Mas, se confia
na estrutura, ela pode suspender a cada momento visões de mundo. Qualquer
uma... E não só a do inimigo. Aliás, o que vemos nos textos, é que parece que
o analisando é inimigo. Quem vai ganhar a guerra? Acaba sendo isto...
O grau de loucura dessa posição é muito alto. O que não quer dizer grau
de psicose. Lacan, às vezes, equivocava as palavras de tal maneira que ficamos
um pouco perdidos. Ele disse que se fosse mais psicótico, seria melhor analista.
Seria melhor dizer “se fosse mais doido”, pois a “loucura” do falante não é a
psicose. A psicose, justamente, é uma solução que o sujeito se dá, porque não
agüenta essa loucura...

29/MAI

107
O Sexo dos Anjos

108
Repetição, diferença, distinção

6
REPETIÇÃO, DIFERENÇA, DISTINÇÃO

Início com a audição de Malandro sou eu, de Cruz,


Sombrinha e Franco, com Beth Carvalho.

De vez em quando acontece um samba, isto é raro. Este que ouvimos me


parece muito bom, deve ter sido feito de encomenda. Uma manifestação destas,
este tipo de afirmação, me parece algo muito esquecido por supostos analistas
– quando devia ser o contrário. A interpretação às vezes vem do “morro”.
Hoje é encerramento do Seminário do semestre. Eu teria muita coisa anotada
para lhes trazer, mas como vai haver distância até agosto, acho melhor não desenvolver
porque isso deixaria um gap e se perderia o fio. Colocarei uma pequena suposição que,
eventualmente, terá conexão com o que virá em seguida. Preferia que as pessoas
pudessem dialogar um pouco sobre o que tem sido mostrado até agora e não só
no que diz respeito ao que foi trazido no Seminário, mas generalidades sobre
nossa existência aí, neste Colégio Freudiano, nessa tal psicanálise, etc.

* * *

O que eu queria mexer um pouco ainda diz respeito a real, simbólico


e imaginário.

109
O Sexo dos Anjos

Não sei se a gente se dá conta de que os progressos numa determinada


área de saber são tão lentos. A psicanálise, o discurso a respeito da psicanálise,
por exemplo, é muito devagar, é muito jovem... Se o discurso psicanalítico ver-
dadeiramente funcionou durante milênios à revelia da sua indicação, o discurso
a respeito disso, que Freud trouxe, é recente. A meu ver, a psicanálise é muito
devagar, muito pobre. Seus progressos, por mais grandiosos, geniais, que sejam,
a tarefa é tão grande que eles são muito pequenos. Lacan, por exemplo, passou
a vida inteira para refazer um escopo a respeito da psicanálise. Seu pensamento
é extremamente rigoroso, e mesmo assim esburacado de todos os lados... Num
encaminhamento de décadas, com a lentidão a que a inércia da linguagem, da
nossa fala, nos obriga, ele foi sacando coisas fundamentais, para chegar ao final
de seu percurso e colocar que tudo que pode interessar, na psicanálise, se reduz
ao que teria representado como nó borromeano.
Pedi que lhes distribuíssem um texto composto de fragmentos de um
Seminário último de Lacan. O nó borromeano é apenas essa tentativa de re-
presentação. Ele é feito de real, simbólico e imaginário. O difícil é dizer o que
é isto: real, simbólico, imaginário. Já é muito trabalho, muita colher-de-chá o
que Lacan conseguiu oferecer a respeito. Mesmo assim não se sabe muita coisa,
não se tem muita precisão sobre real, simbólico e imaginário. É um negócio
meio vago. Se pudéssemos recolher o que é nuclear, Lacan teria dito que o real
é da ordem do impossível de se escrever, não há formulação possível desse
real. O simbólico, que ele definiu, precisou muito melhor como metafórico, fica
genericamente na ordem do que ele chama de significante, o qual é coisa muito
vaga: varia de um fonema a um período inteiro, a um livro, a uma obra, a uma
pessoa, a uma montanha, à lua, saturno, o que quiserem... Bastante diferente
do que o Cours dos alunos de Saussure teria definido como sendo significante,
que é coisa bem mais pequenininha. O imaginário dele é um pouco mais claro,
pois fica sendo, para Lacan, o que é da ordem do especular, do gestáltico.
A neblina que envolve esses conceitos tem permitido diversos tipos de
leitura, e acho que deve mesmo permitir até que se possa atinar com alguma
coisa a mais, mais precisa. Não estou falando de precisão só no sentido cientí-

110
Repetição, diferença, distinção

fico, mas de uma coisa mais separada. Jean-Claude Milner, por exemplo, num
livrinho muito inteligente, Os Nomes Indistintos, pega essas três categorias e
chama assim: II y a: Há – isto é o real. Depois, ele diz: II y a de lalangue: Há
a alíngua – isto é o simbólico. E depois: II y a du semblable: Há o semelhante
– isto é o imaginário. Notem, como já chamei atenção aqui, que esse Há na
formulação do real continua nos outros registros. O real está invadindo o imagi-
nário e o simbólico. Será que poderíamos mesmo dizer que “há a alíngua” é o
simbólico? Não me convence: alíngua não é só simbólico, ela é real, simbólico,
imaginário... O simbólico passa por ela, sim, mas ela não é o simbólico. Milner
pode dizer isto no sentido em que há simbólico na alíngua e não há simbólico
no imaginário. Isto está certo, na definição dele.
Alain Juranville toma essas categorias e as reduz às categorias filosófi-
cas com certo sabor heideggeriano. Ele diz que “o real é o tempo”. Ele reduz o
real lacaniano ao tempo. Bem, sim e não. O tempo enquanto tal não é escritível.
O tempo cronológico do relógio o é, mas o tempo enquanto tal não se escreve.
Freud, por exemplo, colocava que o Inconsciente não tem tempo. Não ter tempo
ou ter um tempo real é a mesma coisa. O tempo, para Freud, seria uma defesa
contra a sincronia. E o tempo absolutamente sincrônico do Inconsciente seria
um tempo real... Mas o simbólico, Juranville não o lê como articulação, e o
imaginário, ele lê como antecipação prometida pelo significante. Não estou a
fim de discutir essas coisas aqui. Só estou mostrando como Lacan pôde construir
um grande teorema em cima de pseudoaxiomas e de elementos extremamente
vagos. Coisa talvez necessária para que ele não ficasse aprisionado no seu mo-
vimento heurístico. Eu mesmo, diversas vezes aqui, na tentativa de segurar essa
coisa que me parece meio escorregadia, já tentei categorizar o real, simbólico
e imaginário de diversas maneiras, em diversos Seminários.
Hoje eu poria uma outra coisinha, um outro conceito de real, simbólico
e imaginário. Nada de novo, só uma maneira de pegar no Nó. Eu diria que o real
é da ordem da pura repetição, que o simbólico é da ordem da pura diferença,
e o imaginário da ordem da distinção. Essas três coisas já coloquei aqui. Só
quero conversar um pouquinho mais.

111
O Sexo dos Anjos

Vamos tentar entender o que possa ser uma pura repetição. Suponhamos
que, num fundo absoluto de silêncio, eu escutasse um som, uma nota musical,
por exemplo. Do ponto de vista do que a música pôde organizar, o som, a nota
musical, precisa ter certas bases materiais para estabelecer sua distinção no seio
das outras. Um som qualquer escutado tem: altura – quantidade de vibrações;
intensidade – a força com que ele é produzido; timbre – a qualidade material
de sua fonte sonora, por exemplo, o som da mesma nota no violino é diferente
no fagote; e duração – o quanto tempo esse som se apresenta. Fiquemos só
com a altura, num campo de absoluto silêncio. Se essa nota for prolongada
indefinidamente sem o menor interstício, num silêncio, teríamos aí a sua pura
e simples repetição. Não que ela se repita, ela é contínua, aquilo insiste. O
que seria a mesma coisa que ouvi-la intermitentemente repetida, eliminando
o tempo. Não cessa de haver som, o mesmo. É o reino do mesmo: repete-se e
insiste. O que cabe na outra definição que Lacan dá do real: repete-se incessante
e insistentemente, nunca deixando de retornar ao mesmo lugar. É o que, no
Seminário anterior, eu havia dito que é da ordem do Haver, que não tem nenhum
Não-Haver por trás: Há inapelavelmente, aquilo soa. Aquela nota, sou-a.
Suponhamos que nesse fundo de silêncio e ouvindo-se a repetição in-
cessante de haver som – pois que se há um som sem nenhum outro, não sei nem
que som é: é apenas a insistência de haver som –, de repente, pinta nesse Haver
puro da repetição uma pequena diferença, um outro som, uma pequena variação
de vibração nesse som. Não sei quanto de variação, mas que eu seja surpreendido
por uma diferença que pintou. Não quer dizer que eu saiba a diferença entre
tal e tal nota, pois se estava na constância da nota anterior, nem sei que nota é.
É um som constante e não tenho nenhuma comparação a fazer para saber qual
é esta nota aí. De repente, então, ela faz uma pequena variação e sofro uma
diferença. Só diferença. Não sei qual foi, não posso medir nem nomear ainda.
Então, sofro da diferença pura. Só sei dizer: “É diferente”. Chamemos isso de
simbólico: o exercício da diferença. Nesta minha historinha, como vêem, não
havia uma diferença anterior. Tenho que fazer um mitozinho como este porque,
se tomar um acontecimento possível, já começa com diferença, já começa até

112
Repetição, diferença, distinção

com imagem. Estou, então, isolando elementos para sacar o conceito de dife-
rença: apreendi uma diferença entre dois sons que não distingo ainda qual é um
nem qual é outro. Simplesmente pintou que é diferente. Pintou uma diferença
e sofri da diferença. Trata-se, portanto, de repetição do mesmo. Aliás, nem no
conceito de Lacan caberia, por exemplo, dizer que repetição seria a alternância
de um e de outro porque, afinal, o que é que volta aí no mesmo lugar?
Com o passar do tempo, por exemplo, se esses dois sons começam a se
alternar, de repente, consigo já estabelecer para essa diferença uma distinção.
Então, já sei: este é um que reconheço como tal, e aquele é outro que reconheço
como tal. Os dois agora têm pregnância gestáltica. Há uma diferença de um para
outro. Agora, não sofro só a diferença, sofro de distinção de dois diferentes. É
o que eu chamaria de imaginário: quando consigo estabelecer distinção sobre
a diferença. Pura repetição, puro Haver: real. A diferença pintou: simbólico.
Agora consigo distinguir, fiz uma forma, uma Gestalt para cada um, estou no
imaginário. Isso tudo muito antes de pensar em línguas.
Não estou falando aqui de psicologia de laboratório, da minha expe-
riência de ouvir, e sim de conceitos quando isolo determinadas categorias. Só
posso dizer isto de trás para frente, e não de frente para trás. Tanto é que a psi-
canálise só foi inventada este século. Por isso mesmo: foi preciso passar toda
a trambicagem complexa do imaginário para isso poder ir sendo distinguido,
categorizado, como foi todo o pensamento. Estou, então, indo de frente para
trás – o que é falso, pois só-depois é que posso fazer isto – para depois voltar,
de trás para frente.
Se formos, então, seguir estas tentativas de definição que acabei de
dar, temos que dizer que, do ponto de vista substancial, digamos assim, que lá
está contido na materialidade, na concretude dessas coisas, desses sons, e dos
eventos desses sons em relação à minha subjetividade, o que está acontecendo
é que o real assim definido é puro real, pura repetição. Nele não entra diferença
nem distinção. O simbólico, conceitualmente, é o que ali pinta de diferença.
Mas na materialidade do que há de simbólico, o real está incluso. Para que
pinte diferença é preciso que haja repetição. É o real dessa diferença. Assim

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O Sexo dos Anjos

como nesse conceito de imaginário, para que pinte a distinção, é preciso que,
substancialmente, inclua a diferença e a repetição. Por isso sempre ficou tão
difícil para o tal do ser falante constituir teoremas. O começo de nossa experi-
ência é igualzinho àquela coisa da história da psicanálise. Como o tal neurótico
chega e fala de papai/mamãe, começou pelo Édipo, o que é uma besteira. Até
o sujeito esmiuçar aquilo tudo e chegar a um outro teorema mais radical, teve
que passar por essa historinha toda. Assim, então, começamos do imaginário,
tudo de cambulhada. Quer dizer, lidamos com distinções. E é um efeito do
aprisionamento nessa força, nessa pregnância gestáltica do imaginário, das
distinções, que até hoje faz com que o analisando inocente, recém-chegado,
custe muito a se dar conta de que, no miolo mesmo do seu imaginário, está
embutido o que há de simbólico e o que há de real. Então, nos acostumamos a
ter a nossa historinha particular começada desse embrulho. E só um trabalho
longo e devagar nos permitiu verificar que embutido ali há de tudo isso. E que
o difícil é conseguir ir separando os elementozinhos.
Esta conceituação de real, simbólico e imaginário, que estou experi-
mentando hoje de novo, é cumulativa do ponto de vista substancial. A expe-
riência que se tem com o que há, com o que se nos apresenta, é da ordem do
imaginário nesse compacto inteiro, substancialmente. Só como um efeito de
aparelho reflexivo, de aparelho analítico, em todos os sentidos, é que se pôde
distinguir, de dentro mesmo do imaginário, o simbólico e o real. Então, do
ponto de vista substancial, o imaginário é pojado de simbólico e real, assim
como o simbólico é pojado de real, e o real é sozinho, é ininscritível por isso.
Mas, do ponto de vista estritamente lógico, quer dizer, feito o artifício analítico
sobre esses acontecimentos concretos, não é assim porque posso dizer que o
real é essa repetição pura em si; que no simbólico, se substancialmente o real
lá está, posso tomar para mim distintivamente, portanto imaginariamente, o que
nele há de puramente simbólico, de pura diferença, mas ao fazer isto já estou
sendo distintivo; e posso também pegar o imaginário e dizer, do ponto de vista
estritamente lógico, que, embora substancialmente lá haja repetição, diferença
e distinção, como falta essa distinção nos outros dois, eu o categorizo pela sua

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Repetição, diferença, distinção

distinção – com o que estarei fazendo uma distinção e reimaginarizando de


novo. Não é à toa que Lacan diz do nó borromeano que, afinal de contas, ele é
imaginário. É distintivo. Tudo que é distintivo é imaginário.
Se pudéssemos operar no jogo da pura diferença, não faríamos teoria
psicanalítica. Iríamos fazer com quê, se a distinção não cola? No entanto, o
que interessa é em que condições, em que situações, o dito falante pode – di-
ferentemente, pelo menos do ponto de vista da aparência, de outros seres que
ele pensa que conhece um pouco – operar nesses três registros e, às vezes, dar
uma diferença, estabelecer separação entre essas operações. Ou seja, é possí-
vel para o falante, embora lhe seja muito pregnante o imaginário, a distinção,
que ele se detenha, ponha sua atenção e fique tocado por isso, quando aparece
a diferença ainda não distinta. E no que ele pode deter sua atenção sobre a
diferença, isto também o incomoda, também lhe é um mal-estar no real, sim-
bólico e imaginário. Freud inventou o mal-estar na cultura, mas hoje temos o
mal-estar no Nó, que é muito diferente. Então, no que pinta atenção possível
sobre a diferença, pinta também sobre o mal-estar na repetição. Não há como
fugir da repetição. Não há mesmo! Não adianta nem se matar. Matar-se é a
esperança de que se vai acabar com a repetição, mas o sujeito não a vê acabar...
Então, não adianta. O grande entusiasmo do suicida é que ele supõe que vai
ficar diante da não-repetição...
Isto muda muitas coisas. Se começarmos a secar, enxugar cada vez
mais esses conceitos, vamos nos dar conta de algo que já está bastante dito por
Lacan, mas de que esquecemos freqüentemente. Quando se diz, por exemplo,
que a língua, a linguagem, sei lá o quê, é da ordem do simbólico, não se está
falando do que ali se distingue como simbólico, eventualmente, e que, do ponto
de vista da conceituação mesma de Lacan, a língua é algo da ordem do real,
simbólico e imaginário. Não é simbólico puro, não. Nela perpassa o simbólico,
mas haver uma língua, é muito mais para imaginário do que para outra coisa.
Muito mais para o distintivo do que para o diferente. O simples fato de haver
significante, de apontar um significante, já pifou-se o simbólico, pois, se há um
significante, ele é distinto, imaginarizado. A própria noção de sujeito, quem

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O Sexo dos Anjos

sabe se não precisa ser mais capinada? Quem sabe se o sujeito de que se tem
falado, ainda não é da ordem do sub-sub-grupo? Não sei. Não estou fazendo
nenhuma crítica à teoria lacaniana, pois está tudo lá. Temos é que trabalhar para
cada vez separar mais. O que aconteceu é que, para falar de tanta coisa, de tanto
peso, de tanta invenção, Lacan teve às vezes que fazê-lo muito rapidamente,
em grandes pinceladas.
Freqüentemente Lacan está colocando o processo de simbolização,
etc., como processo, mas vejo as pessoas se confundirem, pensando que é dado
de simbolização. É processo porque, se simbolizou, ferrou. Ele não é tolo e
insiste que o essencial é o desejo. Desejo é sempre de coisalguma. Se nomear
um desejo, ou seja, se disser uma única palavra, você imaginarizou. Não estou
dizendo que esse imaginário é definitivo, que não possa haver equivocação na
minha escuta, mas a minha equivocação não é da ordem, não é compatível,
com o imaginário que corre na palavra dita, e sim com outra coisa, com o meu
desejo. Disto as pessoas se esquecem. A equivocação com que escuto é com-
patível com o meu desejo, e não com a língua em seu estado atual.
Era só o que eu tinha a dizer. Agora vamos brincar.

* * *

 Pergunta – Em várias passagens de Lacan, percebemos um certo quê de an-


gústia que a verdade provoca. Tomemos as três coisas: ela provoca um certo
quê de angústia, ela é não-toda e ela está lá no imaginário. A verdade seria,
então, da ordem de se sobredeterminar – ou hiperdeterminar, se quiser ser
sofisticado – distinção e repetição. O nome disso é angústia, você articula real
e imaginário. Se você quiser tratar do sentido, isso é da ordem da inibição.
Na ordem do sentido, supomos que articula diferença e distinção. E na ordem
do sintoma, que é da ordem da metáfora, supomos que articula repetição e
diferença, porque isso passa por essa questão do sujeito. O sujeito, como se põe
como terceiro, nunca se dá conta que está articulando as três coisas: repetição,
diferença e distinção. Numa língua, no sentido de língua falada, atualizada, só

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Repetição, diferença, distinção

temos essa língua, e ela tem valor sintomático. O acesso a ela se dá, portanto,
no discurso do mestre, porque essa língua tem a ver com o real que há, com o
sistema metafórico que permite representar em ausência e com o sistema de
distinção que faz isso ancorar em significado. Agora, percebemos que essa
equação que você fez é impossível na lingüística, quase que literalmente.
Para fazer um parêntese que talvez ajude você a continuar: a pergunta
embutida aí é se há uma fonologia possível para aquém da lingüística.
 P – O modelo de estrutura da lingüística vem da fonologia.
Mas da fonologia dos lingüistas.
 P – A fonologia deles é de 1917, 1914, tem a ver com a Escola de Praga.
Lévi-Strauss pega aquilo e copia de segunda mão de Jakobson, que foi quem
teve acesso a Troubetzkoy. Mas se formos a Saussure, ao que ele escreveu, às
fontes manuscritas, na lingüística estrutural, o barato dele é distinção. Para
ele, distinção é efeito de diferença. E isto é que gera repetição. Quer dizer, entre
p/b, dois fonemas já atualizados, que vão gerar distinção de sentido de pala e
bala, é efeito de diferença. A diferença, para ele, é essa barra aí. Daí ele falar
da elipse da barra. Mas, aí, ao invés de ele voltar para o real, ele acha que a
repetição disto é que permite você articular...
Aí é que é a questão da diferença, por um sintoma da diferença, da
distinção. A repetição da distinção é puro sintoma.
 P – Agora, pelo que você explicou, na psicanálise, isso é cumulativo. Por
exemplo, o simbólico, na ordem da pura diferença, vai dizer de alguma maneira
do impossível da repetição. O que há de impossível da repetição vai gerar em
suplência a pura diferença simbólica. Então, é como se, por ausência, o real
já tivesse contido ali. Embora Jean-Claude Milner insiste, o simbólico não
está dentro do imaginário, mas é condição de articulação do imaginário. Essa
distinção, por sua vez, supõe a diferença simbólica e a repetição imaginária.
Essa coisa cumulativa da psicanálise é que me parece que torna difícil fundar
uma teoria da linguagem a partir daí, porque ficam faltando duas coisas. Quem
é que põe essas coisas – repetição, diferença e distinção – que são quase que
identificações de real, simbólico e imaginário, em funcionamento? A psicanálise

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O Sexo dos Anjos

nos indica três coisas: a Coisa mesmo, o Sujeito e o Significante. Mas será que
cabe a um deles o papel de ser o gerente da repetição? O outro ser o gerente
da diferença? O outro ser o gerente da distinção? Tomamos, então, aquela
questão do sujeito, que é o significante que representa o sujeito para outro
significante, e aí você, textualmente, diz que representa a fantasia. No nível da
fantasia, representa o sujeito para outro significante. Então, essa representação
já gera efeito de distinção porque a representação é da ordem do signo. Mas
o ato de representar, se quisermos falar assim, é lugar-tenente, é da ordem da
diferença. Mas representa em nome de quê? Em nome da repetição?
O que você acha?
 P – Acho que isso passa pela Coisa. É o que mais se parece com essa idéia de
repetição. Aquela coisa que a Coisa é, é real. Quando você fêz aquele quadro,
botou essa Coisa no Haver e, hoje, você está botando o Haver e a repetição
no real. Como, então, o significante seria a representação de um sujeito para
outro significante? Mais ainda: a representação no nível de fantasia sem a
Coisa estar em jogo?
E ela sairia de jogo aí nesse caso?
 P – Acho que ela já teria estado em jogo. Porque na fórmula da fantasia o
que está em jogo é o objeto a.
Não posso ver esse a, letra, letra algébrica, por vários registros?
Por exemplo: o a enquanto resultante de real, simbólico e imaginário é real,
simbólico e imaginário. Mas o que é o a enquanto real? Ele é a Coisa! O que
é o a enquanto imaginário?
 P – Mas, retornando, eu intuo que esse a, que está aí, quando marca o
sujeito, já está marcando em nome da Coisa. Agora, sê você me pedir
para explicar, eu não sei. É uma coisa meio óbvia: se ele é representante da
Coisa, e se ele marca especialmente o sujeito, e o nome disso é fantasia, e se
a Coisa já ocorreu no real, essa fantasia, se você colocou como equivalente a
significante, você, assim como Lacan, colocou essa operação de significante
no simbólico. Agora, esse a veio parar aí em nome da Coisa como? Isto é que
não sei.

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Repetição, diferença, distinção

Em nome do que é irredutível em qualquer dos registros. Em nome do


real. O que é irredutível daqui para lá? Só a repetição é irredutível. Em nome
da repetição. Portanto, o que quer que haja é máquina de repeteco.
 P – Então, o a não é, como eu estava pensando, uma mera face simbólica da
Coisa. Ele é tão real quanto a Coisa. Se não, eu ficaria me perguntando: por
que ele foi lá pegar a Coisa?
Sim! Se não, não dá para fechar. A Coisa é a insistência absoluta
e radical.
 P – O efeito dessa repetição vai ser insistência gerando distinção, vai ter que
gerar espelhamento...
O que me interessa, e que pode ser pragmático, é que se comece a
pensar em registros e sub-registros até podermos, por exemplo, operar o que
acontece na ordem da língua como alguma coisa de terceira categoria. Eu não
ia trazer isto hoje, só em agosto... Suponhamos que eu tenha uma ordem Ψ 0,
uma ordem Ψ 1, uma ordem Ψ 2, etc., que são resultantes disso que se conse-
guiu abstrair nessas décadas de reflexão. Então, a língua, é resultante de real,
simbólico e imaginário em terceiro grau.
Estamos diante do fato concreto de haver seres de nós aproximados,
embora não conhecidos, que se apresentam assim como pura verdade. Um ca-
valo é verdadeiro, cavalarmente verdadeiro. E ele não altera a diferença. Não
estou sendo psicólogo de laboratório ou dizendo que se levarmos o cavalo para
o laboratório do psicólogo da psicologia animal ele não registrará sensorial-
mente, perceptivamente, uma diferença. Sim! Mas ele não a opera. O que pinta
de diferença é imediatamente reduzido à distinção. Nossa questão é: como há
determinadas configurações tão veementes e sem aparelhagem para operar a
diferença? Não é, repito, que eles não tenham percepção para a diferença, e sim
que pintou a diferença, ela só é operada como o lingüista a opera. Desculpem-
me os lingüistas presentes... Ou seja, é operada como ruptura entre distinções:
imediatamente a diferença passa a ser uma distinção. Isto é diferente daquilo,
segundo tal diferença.
O jogo da operação da diferença é o jogo da diferença entre não sei o

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O Sexo dos Anjos

quê e não sei o quê. Está doendo uma diferença. Por exemplo, nossa tendên-
cia imaginária é, se sentirmos dor, correr para um médico, para alguém, para
estabelecermos uma distinção – porque a diferença dói mais do que a doença.
Sentir algo e não saber o que é – não saber aí significando não poder distinguir
– faz sofrer mais com a diferença do que com a doença. Depois, o médico diz:
“Não é nada, o senhor só tem um câncer”. Aí sim: “Ah, bom! Agora eu sei: só
tenho um câncer”. Fica-se “feliz” em estabelecer a distinção. Mas Freud, o que
lhe doía mais do que seu câncer no maxilar – porque o câncer ele tirou meio de
letra –, muito antes disso, já estava doendo a diferença. O que lhe doía é o que
pinta como diferença: os mal-estares radicais. Por que não vemos o cachorro, o
cavalo, em tanto mal-estar? De ali estar? Ele pode ter alguns mal-estares de vez
em quando, mas a insistência do mal-estar não é uma coisa muito de sua tran-
sação. Nossa insistência no mal-estar é proveniente de falta de Imaginarização.
Ou seja, pinta a diferença e a repetição é insistente, porque pinta a diferença.
No que, para um determinado ser, um determinado havente aí, a diferença lhe
bate como diferença, sem cair ou sem decadência imediata da distinção, por
causa dessa diferença, o real insiste com muito mais vigor do que quando se
está no jogo da distinção... Não estou dizendo nenhuma novidade. Tudo isto é
velho. Estou chamando atenção.
Deve haver uma possibilidade de se pensar abstratamente, a partir da
experiência analítica – que surgiu dentro desse pântano, desse lodaçal imagi-
nário em que vivemos –, o jogo mesmo da clínica analítica e a tentativa de ir
abstraindo cada vez mais, hoje, de trás para frente e tentando voltar de frente
para trás. E assim se poder categorizar que há real, simbólico, imaginário,
enquanto categorias extremamente limpas, as mais limpas que se conseguir. E
que na interseção dessas categorias vão surgindo categorias sub-categóricas,
sub-sistêmicas, ou sub-registros, digamos. E que precisamos nos dar conta de
que os materiais com que lidamos no trabalho analítico, nos artifícios da cultura,
como, por exemplo, a literatura, a pintura, a música, etc., que têm a mesmíssima
importância, insisto nisso, para um analista que o trabalho de consultório... Sei
que há analistas que sofrem de “analistose” e pensam que essas coisas não têm

120
Repetição, diferença, distinção

nada a ver, que são apenas produtos de cultura... Não são não! É a mesma coisa! Pode-se
até desistir de ser um analista de consultório e passar a querer ser um analista de outra
coisa com preparação psicanalítica, tendo feito sua análise, etc. Ou seja, vai-se
oferecer sua escuta a outra coisa, porque falou, exprimiu-se, é demanda de análise.
O sujeito não precisa me procurar para fazer mais análise. Se ele está falando, esta
pedindo análise, vai por insistência. Quem fala, pede análise, já é pedir análise. Preci-
samos pôr a cabeça nisto, pois essas formações de real, simbólico e imaginário que se
dão por aí, a fala do analisando, a música, o teatro, o cinema, tudo que ocorre
no seio dos falantes, é talvez da ordem de registros secundários e terciários.
Teríamos, então, que tomar todos os baratos que ali ocorrem como fe-
nômenos de distinção e, às vezes, até ter a pachorra de fazer como o lingüista,
pois se estou diante de um imaginário vigoroso de um analisando, ou de uma
obra, e não tenho meios, porque não me são oferecidos às vezes ou porque sou
fraco – ou porque o outro é duro demais, e de qualquer modo sou fraco, pois
isso é recíproco – , de operar a diferença, ou se a opero e ela não é escutada...
Freqüentemente, o que faz um (vamos usar o termo geral sem querer ser cate-
górico:) neurótico? O que quer que pinte de diferença, ele traduz em distinção,
põe no seu mito particular, traduz em sua estorinha. Muitas vezes isto é tão
vigoroso que não se pode, não se consegue fazer operar a diferença diretamente.
Só tenho uma saída: bancar o lingüista e operar a oposição! Porque no que se
opera a oposição entre duas distinções, a diferença se exacerba. Estou chamando
atenção para isto porque freqüentemente vejo pessoas pegarem a prática ou a
teoria de Lacan e fazer um verdadeiro policiamento, um verdadeiro moralismo
psicanalítico. O cerne de uma Escola, no sentido arcaico do termo, que era o
que Lacan queria com a sua, um estilo, não está aí, não é aí que está o cerne
da questão, o que a Escola tem a transmitir. Passa-se ao moralismo idiota de
checar os comportamentos. Não é nem fora da análise, às vezes é até dentro...
Por isso é que tenho certo horror desse negócio que chamam de sessão clínica,
de oficina, supervisão, essas coisas, porque o que se escuta são pontos de vista
absolutamente distintos, distintores, distintivos, a respeito dos comportamentos
de fazer com que o jogo da diferença apareça.

121
O Sexo dos Anjos

Se o que tenho dito aqui for verdadeiro, teremos que dizer que, no tra-
balho analítico, trata-se de que o indivíduo possa ser um pouco mais rarefeito
de que seu imaginário, do que sua distinção, que possa operar em algo mais
rarefeito do que a pura distinção, que se dê conta do jogo da diferença, aliás
irredutível. Dizer que “não há relação sexual” é simplesmente dizer que “há
diferença”. Para aquém da distinção, há diferença. A história da psicanálise é
muito curta, muito recente e, dado o ambiente geral e vencedor da neurose, todos
os movimentos, lacanianos inclusive, tendem para o paletó e gravata, como
Clare Isabella Paine teve a gentileza de me lembrar outro dia. E aí, sim, está a
derrocada radical do que Freud, coitadinho, pensou que fosse peste. O que, na
verdade, se fez, foi, do ponto de vista teórico, estabelecer sub-sistemas para ver
que isto com que estamos trabalhando é algo que existe em níveis grosseiros a
serem rarefeitos. Isto do ponto de vista da teoria, de se dar conta daquilo com que
operamos. E, do ponto de vista da implantação da dita psicanálise no chamado
mundo, esquecer que ela é da ordem da imundície. Se o haver psicanalítico
faz laço social, é o mais precário do mundo. Não é porque faz laço social que
a psicanálise é mundana. É um laço precário, fajuto, neutro demais, sem cara,
sem nenhum caráter. E eu temo por isto. Freud funda a porcaria da IPA, e deu
no que deu. Lacan faz a porcaria da Escola Freudiana de Paris. Deu no que
deu. Aí faz a indecência, graças a Deus!, de tacar fogo nela. Imediatamente,
aparece a Escola da Causa Freudiana... Existe até Colégio Freudiano do Rio
de Janeiro... Se vira algo dessa ordem, teremos Associações cada vez mais
fortes, mais competentes... em destruir, pelo lado errado, a psicanálise. Fico
na suspeita de que não há troço pior contra a psicanálise do que um bando de
analistas. Até o sambista que ouvimos é melhor, graças a Deus!
Não é que não se façam esses trabalhos. Infelizmente, há que se fazer,
é preciso. Mas é preciso estar no pique de relembrar essas coisas o tempo todo
porque a satisfação com os saberes adquiridos é muito grande, e chega ao
pernóstico. O sujeito passa a ser o caga-regra universal sobre psicanálise, etc.
Sabe mais psicanálise do que eu. Não pode, não admito. Eu não sei, como é
que ele sabe? Ouço barbaridades, e não estou dizendo que quem as diz seja um

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Repetição, diferença, distinção

culpado, um escroto. É simplesmente um “tomado” por essa coisa, como mesmo


eu posso ser tomado – pois estamos à mercê de sermos tomados por essa coisa.
Ao invés de haver uma ética psicanalítica – já que vamos realizar um Mutirão
sobre Ética – cujo miolo é aquele real, estamos substituindo freqüentemente
qualquer vocação ética por decálogos de moral. É a paralisia. Se não existe
um poeta aqui ou ali para tirar a gente dessa, é um sufoco. Quer dizer, há “mo-
delitos”. Não acho coisa muito aceitável no âmbito do Colégio Freudiano do
Rio de Janeiro, por exemplo, escutar um sujeito criticando um outro analista,
até de fora, “porque ele faz isso ou aquilo na análise”. Isto é besteira! Não tem
nada a ver! Não estão criticando a coisa certa, o que é para criticar, e fica-se
aprisionado nesses imagionariozinhos de correção e incorreção psicanalítica...
Isto não existe. Existe eficácia. Mais nada.
Como fazer a diferença aparecer? Freud era um tremendo falador, tanto
é que encheu o saco da histérica que o mandou calar a boca. Ele aprendeu isto a
duras penas. A histérica inventou para ele o tal do silêncio do analista, o “cala a
boca!”. E isto só vai aparecer mais tardiamente, como coisa fundamental mes-
mo, mais na mão de Lacan. No campo do silêncio, a diferença aparece muito
bem. É uma diferença radical: o sujeito fala, fala e, do outro lado, é o silêncio
absoluto... Mas isto não é norma. Lacan já dizia em alguns Seminários que os
analistas deviam falar mais. Por que ele disse isto? Porque, usando outra vez
metáforas de Lacan, falta um pouco de judô. O sujeito pode chegar todo dia e
eu ficar em silêncio. Funciona? Talvez funcione... Alguns analistas já relataram
que operaram assim com o analisando, nunca disseram nada, nem sim nem não,
muito pelo contrário. E quando o tal do analisando é tão bem articulado em sua
neurose, quando ele é tão bom de bola que até esse silêncio ele reduz ao ima-
ginário? “Se ele não disse nada, quis dizer isto, portanto. Quem cala consente!
Não disse nada, está de acordo.”. Ele já tem o tradutor, a máquina de traduzir
pronta. Então, é preciso pôr na cabeça que se há teoria, se muita gente fez tanta
observação e pôde nos transmitir essa porção de coisas, é porque todas elas são
operáveis. Por que uma só? Por que, por exemplo, repito, o analista não pode,
se o jogo está duro, bancar o lingüista? Ele diz p, eu digo b. Ele faz um discurso

123
O Sexo dos Anjos

dizendo que vai provar que o copo é branco, eu faço outro dizendo que acho
que o copo é preto, e acabou-se! Como ele vai sair dessa?
Sou contra as grandes empresas psicanalíticas, as internacionais, as
multinacionais, porque acho que isso é opcional. As pessoas devem se ajuntar
em instituições por um certo imposto sintomático. Não há como sair disto. A
única saída é, de dentro, ficar, por exemplo, fazendo isso que estou fazendo
aqui, agora. Tenho mais a criticar do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro do
que das outras instituições, porque nada tenho a ver com elas. Não estou de
olho nelas. Quero que elas morram ou vivam, tanto faz... A crítica deve ser
operada internamente para se tentar salvaguardar a operação da diferença, por
dentro. Por outro lado, Freud escreveu o livro Psicologia das Massas, onde está
demonstrado bastante claro que é difícil cada um per si entrar no barato. Esse
jogo imaginário do neurótico, vamos dizer do falante em geral – que começa
por essa massaroca imaginária, distintiva –, faz com que ele precise supor que
a paternidade tem figura, tem endereço. Se não fizer isso, ele não tem acesso à
paternidade. Mas o verdadeiro acesso à paternidade é ficar sem pai nem mãe,
é ser órfão. Então, porque o imaginário é muito pregnante, o sujeito precisa
passar por isso. O mito do assassinato do pai, no Totem e Tabu, por exemplo, é
também compreensível por este lado. Mas isto não é tão mítico assim. Pode ser
funcional no sentido de que o sujeito precisa ser pato, dupe, para não errar no
outro sentido, embora ele erre muito, até chegar o dia em que possa dissolver o
bastião desse que o faz pato, essa paternidade muito imaginária, para ficar com
o pai verdadeiro, correto, Nome do Pai, o que é a orfandade. Agora, dissolver
essa paternidade não é da ordem da implicância com o papai, fazer pirraça,
isso não fede nem cheira. É dissolver mesmo, é ser tão pato, tão pato, que se
sai do outro lado. É feito aquele cara de que Millôr Fernandes outro dia falou:
“É tão viado, tão viado, que virou machão”. É uma coisa assim, por exaustão.
Por isso que Lacan morre velhinho dizendo: “Sou freudiano. Vocês podem ser
lacanianos, mas eu, sou freudiano”.
A instituição, então, tem essas duas posições de, por um lado, arranjar
um lugar para você não ser muito doido:“Tem gente me vendo, de repente eles

124
Repetição, diferença, distinção

sacam se eu estiver muito doido, eles me ajudam...”. E, por outro lado, para, pelo
menos, se fingir, de preferência bem, que se está indicando uma paternidade.

* * *

Ouço muita coisa, muita rebarba, mas nessas horas, como agora, elas
não aparecem. Seria muito mais eficaz se a gente pudesse discutir um pouco
sobre isso. Estou preferindo hoje as fofocas. Elas são mais eficazes. E vou dizer
por quê. A gente começa a entrar numa região de saber em que é bastante fácil,
no nível assim de discussão, fora do nível dos bastidores, articular coisas que
parecem inseríveis claramente na teoria. Fica-se colocando questões e dando
respostas, o que é tão macio, tão suave, na medida em que se está colocando
algo que facilmente descamba aqui para um discurso teórico, e pronto: está
resolvido o problema. Mas, do ponto de vista institucional, escolar ou qualquer
coisa desse nível, quando as rebarbas pintam na sua crueza, isso nunca é discu-
tido. Não é para se chegar a nenhum fim, não. É para trazer à tona, porque é da
mesma ordem, mas é quente. Não estou falando que estou prezando nenhuma
análise de grupo, mas por que não colocar a questão teórica também no nível
quente da sua emergência no conflito com o meu sintoma?
 P – Por que houve prova oral no Curso de Formação em Psicanálise aqui
do Colégio?
Justo por isso! Quem não fala não sabe escutar! Não é para reprovar
ou aprovar, é para ter pelo menos uma resposta. É exigir que o sujeito abra a
boca, com a enunciação. Ao invés de colocar sua coisa tão teórica, ele passa a
sofrer um pouco, junto.
 P – Eu soube que o Colégio iria alugar uma casa para sua sede. É verdade?
Taí, uma casa é um bom sintoma. Eu mesmo estou sofrendo de um
desses agora... É uma casa maravilhosa, onde o Colégio se instalaria muito
bem, poderia ter livraria, etc. Já pensamos diversas vezes em fazer isso. Mas
o Colégio tem muito pouco dinheiro, porque os membros são pão-duros, os
alunos são pão-duros, eu sou pão-duro, todo mundo é pão-duro. E o Colégio

125
O Sexo dos Anjos

tem muito pouco dinheiro, e o dinheiro que tem, sempre me pareceu muito mais
de se investir em produção do que em consumo. A maior parte do dinheiro do
Colégio é investida em produção, não em consumo. Essa casa que foi sugerida
é muito cara. E uma casa por esse preço todo, acho que o imaginário fica muito
forte, muito violento. E não há estabilidade política no Colégio Freudiano do
Rio de Janeiro para garantir isso. Era isso que vocês queriam que eu dissesse?
Está dito! Imaginemos em termos de um país, se resolvermos arcar com um
processo de crescimento e de enriquecimento. Sem estabilidade política aquilo
vai à falência. O Colégio Freudiano vai muito bem, obrigado, como Colégio
que é, funciona direitinho. Como instituição psicanalítica, sempre achei um
espanto que ele tenha sobrevivido tanto e até crescido. Embora, sem nenhuma
modéstia, eu atribua muito a meu jogo de cintura, à minha molecagem, à minha
malandragem, que não é das melhores, mas dá para o gasto. Bom, cada um faz
o samba que consegue. Eu comentava há pouco que tenho inveja de bicheiro,
porque nunca vi gente tão estável politicamente: uma estabilidade política in-
vejável por qualquer imperador. Vale o escrito e vale a palavra também, senão
se morre. Não é muito do nosso hábito ficar matando os colegas. Ainda não
começamos com esta prática, embora os assassinatos culturais sejam freqüentes
no meio psicanalítico... Mas não sei por que, não sei se é próprio mesmo de um
bando de analistas, só sei que a instituição Colégio Freudiano do Rio de Janeiro
se segura muito bem, desde que não se faça muito investimento imaginário. O
ritmo do Colégio Freudiano é de um surto por semestre. Podia ser pior, podia
ser todo mês. Mas todo semestre há um surto de imaginário muito grande.
Somos cheios de pecados graves, de nascença, de pecados originais. É
normal. Nossa tradição é muito curta. É muito difícil, não sei até se é possível
ter-se uma instituição muito bem compacta do ponto de vista institucional,
com cada um dos elementos assim muito mafioso, ao mesmo tempo também
que vigore o discurso analítico. Isto é muito difícil e nem sei se é consecutível.
Geralmente a coisa vira só máfia. Por exemplo, a IPA me parece que não é da
ordem só da sustentação da instituição, e sim da sustentação do interesse de
alguns que estão no poder e daqueles subditos àquele poder, e aí a psicanálise

126
Repetição, diferença, distinção

vai para o brejo. Quando o movimento inconsciente é vigoroso, essa estabilidade


cai bastante. Não que eu considere impossível. Nesse ponto tiro o chapéu para
Maquiavel, que é o gênio do troço. Mas é preciso muito trabalho para se chegar
a ponto de ter uma capacidade de simbolização tal que se possa ser um farsante
muito talentoso. Ter talento para a farsa é coisa difícil. De tal maneira que se
pudesse ter uma boa estabilidade política, farsante – porque todas são – e que
isto não afetasse o movimento do discurso analítico. Ou seja, era preciso que as
pessoas tivessem tanta transa com o discurso analítico que elas fossem capazes
de fazer o que Lacan supôs que era factível. Por exemplo, se existem os quatro
discursos, eu poder farsantemente freqüentar todos eles numa boa. Mas isto
não acontece ainda. Não vi até hoje. A Escola Freudiana de Paris levou vários
anos assim porque havia o carisma de Lacan, e mesmo um pulso forte. Ele era
durão com essas coisas e a Escola pôde ter uma certa sustentação. Mas assim
mesmo foi difícil, e acabou desabando. Agora, em nível do Colégio Freudiano,
isso é muito frágil. E isto mesmo por questão como esta que acabei de apontar
hoje. Quer dizer, ao invés de conseguirmos uma grande abstração a partir do
que podemos pensar teoricamente, etc., as coisas ficam muito no regime de uma
regragem, de um moralismo. O Colégio Freudiano ainda é moralista demais
para a psicanálise...
(...)
Não se trata de modo algum de falar mal do imaginário. O imaginário
é ótimo, é necessário. Ele serve, também, para a gente falar mal, muito mal. O
de que se trata ainda é de impostações egóicas muito violentas, muito duras. E
da falta de fazer suposição de que lugares devem funcionar, independente dos
egos. Usam o termo narcisismo para denunciar este tipo de coisa, mas acho
essa palavra inoperante. Existem certos nomes, certos termos, na história da
psicanálise que acabaram virando puro xingamento... Mesmo porque a função
narcísica enquanto tal é alguma coisa a ser preservada. Me desculpem, mas não
abro mão do meu. Onde há desejo, há essa função narcísica, necessariamente.
Ninguém é santo. E acredito que se a gente fosse de um narcisismo tão exacer-
bado, tão exacerbado, aí acabava-se incluindo uma globalidade bem grande. Às

127
O Sexo dos Anjos

vezes, até acho que o Colégio Freudiano é pouco narcísico. Está aí um grave
defeito. Se você assume o seu narcisismo, ele é declarado, é até analisável.
Por exemplo: um sujeito chegar diante de vocês e fazer um Seminário, existe
maior narcisismo que este?
Nossas mazelas se devem mais ao fato de um sujeito se defender
porque sabe, do que por operar a verdade como ela vem. Explico melhor: o
analista – assim como o médico sofre de esmeraldite, como costumam dizer,
pois conhecem as doenças e estão sempre acuados pela imagem de poder estar
nesta ou naquela doença –, os ditos analistas, ou o pessoal que se envolve com
isso, sabe que ego é feio, que narcisismo é feio, então começa a denegar, vive
denegando. Me lembro daquele poema de Fernando Pessoa que num momen-
to crítico desses, há alguns anos, li aqui no Seminário. Todo mundo é fdp, só
eu que não sou! Não conheço nenhum que diga “eu sou um merda!” Eu, sou
extremamente narcísico. Acho que já notaram...
Nunca se opera com o processo, porque o analista é neutro, não fala,
ele é cinza absoluto, não é narcísico, não tem ego... Ele não tem picas! Ele não
existe! É muita pretensão! Daí é que vem esse moralismo, que é baseado nos
saberes que a teoria ofereceu. Quer dizer, um cara fica o dia inteiro se defen-
dendo para que o outro não pense que ele tem essas coisas, não pense que ele é
um reles neurótico... Por que as pessoas ficavam tão espantadas com a audácia
de Lacan? Sujeito audacioso, besta, pretencioso, todo mundo o xingava de
tudo. Porque ele não tinha vergonha de saber que ele era Jacques Lacan. Ele
não era mais do que isso: “Malandro sou eu, sou o que sou, ninguém vai me
mudar”, taí... Quer dizer, vou escorregando como der. Agora, não dá para não
ser ninguém. Isso não dá! Lacan era um sujeito que assumia, era besta, um
cara de quem se contam várias anedotas, e eu acredito nelas. Se chegasse num
lugar e alguém lhe dissesse que não podia entrar, ele dizia: “Mas eu sou Jacques
Lacan”. Parece um troço idiota, mas o cara sabe com quem está lidando. Freud
era muito mais envergonhado, fazia muito mais concessões à sua teoria, era
mais para judeu classe média... Mas já foi herói demais, já fez coisas demais
para sua época.

128
Repetição, diferença, distinção

Isso tudo, então, provoca um sistema meio terrorista porque a atenção


das pessoas, a escuta, não fica aberta para os lugares de diferença, e sim o tempo
todo regulando comportamentos. Aí começa a aparecer uma porção de coisas
estranhas, porque pegam um sujeito esquisito que nem eu, botam sentado num
certo lugar, depois não querem que eu seja eu. Não posso! Sinto muito!
(...)
O que estou dizendo é que tentei demonstrar, não sei se consegui, que
uma obra de arte – e disse o que estava chamando de obra de arte – é um lugar
onde se apresente um ato poético – não falei obra de arte de araque –, onde
ela seja o lugar, o meio, o material para se urgir um ato poético. E isto não era
analisável porque diante disto fico na posição de analisando. Isto nada tem a
ver com manifestações culturais, ainda que ditas artísticas ou outras que são
manifestações da cultura. A cultura é essa doencinha que a gente conhece, essa
“neura”. Minha questão não é que vou sair por aí analisando as coisas, nem me
apresentando como analista dessas coisas, porque pessoalmente isto não me foi
pedido. Mas posso, sim, fazer suposição de que o que quer que tenha se mani-
festado no seio da cultura, para o discurso psicanalítico, diante dele e, portanto,
diante de quem quer que tenha a pretensão de ocupar o lugar de exercer esse
discurso, fazê-lo funcionar, qualquer manifestação cultural está pedindo isso,
sim. Isto não significa que eu tenha a intenção, nem a aconselho a ninguém,
de sair por aí, a tudo que acontece na cultura, crivando com a análise... O que,
aliás, pensando bem, não era mau acontecer...
No canal 2, TV Educativa, por exemplo, tem sociologia. É o social
dos psicanalistas. Por isso é que lá não vou, não fui, apesar de convidado. É
o marketing. Não estou falando disso, e sim que no seio de uma instituição
psicanalítica, ficar apenas nesse registro do consultório é muito barato, e pode
ser mesmo uma defesa porque se está falando de algo a que só se tem acesso
pela narração do psicanalista. Quer dizer, um analista que apresenta um caso,
já é meio falsário, porque você não tem presença lá para estar vendo o que está
acontecendo. Não só você vai fazer conjeturas as mais extremas sobre o que
lá aconteceu como já está passando pelo crivo que, por mais honesto que seja,

129
O Sexo dos Anjos

desse analista, a coisa já está em narrativa de enésima categoria, enésima mão.


Por que Lacan pára para escrever um longo texto sobre o Hamlet? Porque ele
está pegando um objeto bruto que, talvez, até seja uma obra de arte – não sei,
suponho que sim. Ele está pegando não como obra. Não suponho que Lacan
esteja falando daquilo só como analisando, embora seja isto também, mas está
pegando o objeto bruto que está assentado naquele escrito, ao qual todos têm
acesso, e exercitando um discurso, uma observação. Um samba como este que
trouxe aqui é de uma riqueza imensa. Eu trabalhar a minha análise diante desse
samba, inclusive trabalhar o que ele traz de sincrônico com mil elementos da
cultura, me indica, me faz ver com clareza muita coisa.
Mas a questão não se passa só sobre isso. Há uma certa vergonha
expressiva nos analistas. Eles estão envergonhados e preservadores de sua
ignorância. Vejo com muito mal-estar o campo dos analistas ficar muito me-
nor, muito menos vigoroso, em termos de articulação, do que outros campos.
Quando Lacan fala do simbólico, ele inclui aí toda e qualquer manifestação
simbólica. Acho natural, do ponto de vista defensivo, egóico, que as pessoas
comecem a fazer defesas e a se preservar, porque trabalham, manipulam bem
determinado campo, então, só vão por ali. Está certo! Mas por que o cara que
fez isso, pelo simples fato de que só manipula bem aquilo, quer coibir ou des-
valorizar o que possa ser feito em outro campo? Aí já é arrogância. Aí deixa
de ser o “semancol” de saber que o meu tamanhinho é esse e vou ficar nele. É
ficar arrogante e desprezivo com coisas às vezes da maior sutileza e da maior
importância. Então, porque Freud, que tinha formação de médico, falava ini-
cialmente com uma linguagem médica e seu meio de expressão era a escrita
e a fala, os analistas resolveram que trabalho de analista é escrever artigos de
caráter científico herdado das revistas científicas da Alemanha do começo do
século, e que não há outro modo de dizer as coisas. Há outros modos, sim, de
trabalhar o simbólico: na literatura, na pintura, no teatro, etc. Há pessoas que
até me dão esporro: “Imagine! Você vai fazer teatro no Colégio Freudiano!
Teatro é o reino do imaginário!”. É mentira! Não é não! Se estudarmos os
grandes autores teatrais – tanto dramaturgos quanto teóricos do teatro – veremos

130
Repetição, diferença, distinção

que têm muito para nos ensinar. Poderemos entender com um pouco mais de
clareza, por exemplo, o que é o conceito de alienação, de efeito de alienação,
em Brecht. Talvez conseguíssemos entender o que Lacan está ensinando como
efeito de disparidade, de não-encontro dentro do consultório. Lacan não tirou
isso do nada. Ele era culto, sabia das coisas. Então, parece que há assim uma
barreira: se não se falar S1, S2, a, $, do sujeito em relação ao objeto, não se
está falando nada... Todos os que estão condenados à mudez porque não sabem
falar lacanês. Não estou dizendo que um ou outro que se sinta melhor nesse
lugar não deva restar aí. Está certo, é valorizável. Mas a arrogância com que se
trata, a partir desse lugar, “o resto”, faz com que a gente não tenha vontade de
escutar nem aquilo. Isso é arrogância, é pedantismo. Como é que um analista
não sabe escutar um samba? Neguinho lá de cima do morro pegou e disse! Não
conheço ninguém aqui que tenha feito um samba desses! Muito pretensioso.
Isto é irritante.
O fato de eu votar numa linha de pensamento e defendê-la no sentido
de estabelecer a diferença para ver se sai alguma faísca, não significa que devo
escarrar em cima dos outros. Estávamos conversando, há pouco, sobre um
jornalista que escrevera sobre Michel Foucault. Não quero concordar com as
teses do Michel Foucault, porque estou na patota do Jacques Lacan e acho que
é a que está certa. Mas não admito que ninguém escarre em cima do Foucault!
Não é qualquer um que tem aquele tamanho. Fale-se com respeito porque o
fato inarredável daquela presença vigorosa ter insistido num desejo elaborado
e produzido, ninguém tasca... E vemos desrespeitos dessa ordem, no seio do
Colégio, por exemplo. Vê-se um sujeito de quem se discorda, acha-se tudo
errado, mas vê-se o valor de uma potência de verdade, de insistência absolu-
tamente respeitável. Ou seja: “Não concordo, mas respeito”. E às vezes estas
pedradas vindo de indivíduos menores, que se apresentam ainda menores, no
sentido de menoridade cultural... Isto não pode, é falta de respeito! Discorde,
mas como um castrado.
Nada tenho contra uma pessoa fazer uma chamada de atenção a um ato
ou a um dito meu, ou porque considera que isso possa ser dialetizável, ou por-

131
O Sexo dos Anjos

que não é bem assim, porque não é do maior interesse do Colégio no momento
fazer isto ou aquilo. No entanto, o que mais freqüente se vê, e é normal (o pior
é que é normal, não passa de normal), é que o sujeito está dizendo isso por
inadimplência. Quer dizer, não há nenhum susto, não há nenhuma perplexidade:
“Quem sabe se está se falando de algo que eu não vi”. Não! É imediato! Ou
seja, é da ordem do que eu disse, que é a tradução da diferença imediatamente
em distinção: “No meu samba não tem essa nota, então não pode!”.
Essas coisas todas fazem parte desse processo em que, nós outros su-
postos interessados na psicanálise, devíamos ter como fundamento ético que
somos os zeladores dessa coisa. Não podemos estar agindo assim. Devería-
mos ser os zeladores dessa coisa. Tanto no sentido positivo, às vezes, esse de
insistir nesse jogo da diferença, como, às vezes, no sentido negativo. Ou seja,
está-se numa instituição, apontaram-se lugares. De tal lugar, ninguém é Deus
em pessoa, embora isso seja divino em qualquer um de nós. Então, errâncias
existem, mas se o lugar está apontado, precisava-se ser um pouco mais mafioso
e errar junto. Mesmo com ponderações. Mas também essa instância negativa é
mal utilizada, freqüentemente.
O tempo-para-compreender não é o mesmo para todos. Às vezes, vemos
nitidamente que não conseguimos entender o que um outro está fazendo. Ou
porque o seu é muito mais veloz do que o meu tempo, ou porque não tenho
os elementos para elaborar essa compreensão. Só tenho duas saídas: ou fico
na minha e cada um tem o seu tempo, ou, se indiquei algum lugar de vigor de
ato para alguém ocupar, tenho que “entrar numa” mesmo sem compreender.
Compreendo só-depois. Não há saída. Mas, para isso, é preciso fazer a suposi-
ção de que minha palavra de designação é extremamente castratória para mim.
Não porque um outro seja verdadeiro, e sim porque entrei no jogo e é assim.
Eu, por exemplo, me sinto hoje em dia muito mais solto, pelo simples fato de
que o Dr. Jacques Lacan morreu e não nomeio ninguém para o lugar dele. Mas
isto pode ser papo obsessivo. Estou abandonado: seduzido e abandonado...
Quando o homem estava vivo, se eu fizesse determinada coisa e ele dissesse:
“Não é assim, é assado”, eu dizia na hora: “Sim senhor!”. E as pessoas pensam

132
Repetição, diferença, distinção

que isto é carneirismo meu e é autoritarismo de Lacan. Sempre achei, desde


que conheci o personagem, que eu era uma besta perto dele. Ainda quando ele
pensasse errado. Ou seja, se não fizer certas delegações, você fica muito assim
fudidão. Vai se apegar no quê? Eu é que fiz a suposição de que sou eu quem
não estou enxergando. Pode ser até que ele não enxergou. De repente, ponho
um argumento, ele diz: “Ah é, eu não tinha visto isso!”. Há essas coisas na
chamada vida, e por causa de imaginário, e por causa de tudo isso...

* * *

Vocês poderiam dizer que não adianta dizer esse tipo de coisa, porque
depende do nível de castração de cada um. Como se pode exigir de um sujeito
cujo nível de castração seja muito baixo, digamos assim – a baixa castração –,
que ele tenha essa competência? É muito difícil. E isto não é uma achincalhe
dessa pessoa. E porque ele não pode e não há como operar com isso. O que
não me desobriga de o acossar. Não pode? Pudesse! É um jogo... Não existe
instituição em paz. A paz não existe. O negócio é fazer bem a guerra.

19/JUN

133
O Sexo dos Anjos

134
Cometa

Segunda Parte

PLEROMA
Tratado de Deus e de seus Anjos
2º Semestre 1986 (1)

...quem quer que esteja engajado cientificamente na


construção de hipóteses só começará a levar suas teorias a
sério se elas puderem ser ajustadas ao nosso conhecimento
em mais de uma direção, e se a arbitrariedade de uma
constructio ad hoc puder ser mitigada em relação a isso.
FREUD (Entwurf : S.E. I,302)

135
O Sexo dos Anjos

136
Cometa

1
INTRODUÇÃO

O que se segue não é pura especulação: o que terá que vir a ser de-
monstrado, assim na prática como no saber.
Não deixa de ser uma Teologia – digamos Teologia Libidinal – na qual
um único Deus intercede com a realidade possível da physis: Deus vel Natura,
podemos dizer. Vel de um Deus Desejante de Outra-Coisa que não sua própria
compleição. Um Deus Inconsciente, portanto – na medida em que definamos
o ICS (como aqui se define) como máquina movida por movimento desejante:
Energia Libidinal, portanto.
Diferentemente do Deus sive Natura de Espinosa, este Deus desejante
pode coincidir com o Haver em sua própria compleição, mas o vel de sua in-
terseção (e intercessão) é colocado pelo descentramento de que Ele sofre em
função de Seu desejo da Outra-Coisa, aliás impossível.
Não deixa de ser uma Cosmologia – digamos Cosmologia Libidinal
– na qual, o que quer que haja, enquanto Deus em suas manifestações, se rege
em conformidade com esse UM único que Há através de seus avatares, sem
perder a unicidade de sua compleição.
Não se trata de uma Filosofia, mas de Meta-Filosofia. O termo aqui
sendo entendido como reincidência do discurso da Mestria, mas só-depois
(Nachträglichkeit) da experiência promovida pelo discurso da Psicanálise.
O que aqui norteia a hipotetização é o postulado de que o Homem

137
O Sexo dos Anjos

(enquanto espécie hiper-especial) é um ser adâmico, isto é, constituído à ima-


gem e semelhança de Deus – o que não passa de analogia que não se refere à
sua construção corporal, mas à sua estrutura especial, isto é, à sua habitação
na linguagem.
Aí estão os raros mas fecundos encontros da elaboração científica bem
como da prospecção intuitiva a nos sugerir que há algo da ordem da semelhan-
ça, ou melhor, da homologia, entre o que há (como Deus) e o que nesse Haver
emerge como a peformatividade linguageira do falante.
Aqui se postula que há razão anamorfótica entre o que Há, como Deus,
e o que pode, aproximativamente e progressivamente, desvelar o falante. Se bem
que tal anamorfose não encontre na homologia plana da crítica perspéctica do
pós-renascimento, de caráter euclidiano, mais do que comparação simplificada,
dadas as complexificações de tal deformação no campo mesmo do Haver.
(A dita presença subjetiva do cientista na experiência comprobatória
não depende de nenhuma outra falta – claro que relativamente – que não aquela
resultante da deriva anamofótica entre sua prática e os avatares do Haver.).
O que se visa com esta orientação é a produção de uma Erótica e de
uma Estética compatíveis com a especialidade do falante segundo a experiên-
cia psicanalítica, centradas portanto na Ética do Impossível que comanda sua
determinação bem como a do movimento do Haver; Erótica esta, na qual o
Amor (centrado no teorema da castração) não passa de concessão (necessária e
suficiente) à impossibilidade absoluta de realização libidinal em conformidade
com o desejo do Haver, bem como às impossibilidades (ou incompossibilidades)
relativas, do falante, de realização libidinal regional; Estética esta na qual o Belo
(maravilhoso ou horrível que seja) não passa da mesmíssima concessão.
O todo centrado na ética freudiana do Wo Es war soll Ich werden: onde
Isso estava, tenho que retornar – tanto quanto Isso mesmo tem que retornar. E
no sentido de uma prática que se define como Clínica Geral do mal-estar do
falante no seio mesmo de sua especiação.

138
Motu perpetuo

1
MOTU PERPETUO

1. O que quer que haja está no seio do HAVER. É o que HÁ. Isso Há. Isso é
UM. HÁ UM, e só um.

* * *

2. O que Há é o que podemos chamar de PLENITUDE. Chamemo-lo de


(leia-se A-Delta ou Há-Deus, ou mesmo Adeus – por que não?, se, como vere-
mos, Deus vive despedindo-se de si mesmo).

* * *

3. O não é estático. Ele se apresenta, em metamorfoses (ainda que catas-


tróficas), como Estados. Um desses estados é o que chamamos de VAZIO.
Chamemo-lo de A.

* * *

4. Comecemos por A para entendermos o périplo do : O Vazio não se apre-


senta como não-haver. Ele pode e deve ser chamado de NADA – mas no sentido
da anulação da diferença no seu seio. Isto não quer dizer que A, embora sendo

139
O Sexo dos Anjos

Nada, deixe de haver. Como Nada, ele ainda Há: na plenitude, sem falta, no seu
seio, de sua substância. Sua substância é puro Haver; pura Neutralidade. O que
é anulado no seio desse puro haver é a simples diferença. A, está submetido à
entropia absoluta no seu seio.

* * *

5. A se apresenta, portanto, em sua neutralidade, como absolutamente simétrico


no seu seio.

* * *

6. Mas sua neutralidade é ativa, isto é: há uma (e somente uma) dissimetria


(primordial) entre o , aqui representado por A, e o que Não-Há (que se
escreve Ã, isto é, A-barra).

* * *

7. Então, neste estado, se não há diferença no seio de A, entretanto há, digamos


que “externamente”, uma diferença irredutível – entre A (que Há) e à (que
não-Há). Ou seja, entre o e o Não-Haver.

* * *

8. Ã, como simétrico de e “externo” a ele, ultrapassa o próprio Nada (A)


em seu não-haver. Mas à não-Há – é tão-somente uma exigência (de simetria)
de A, como uma proposição que o tem que fazer, que lhe é necessária.
Porém, não-há Ã. A rigor, Ã deve ser rasurado. Ã é impensável, senão como
negação de . Esta, aliás, a única negação verdadeira – porque real.

140
Motu perpetuo

* * *

9. Ã é a Causa do desejo de . Se a substância de é seu puro Haver, sua


temporalidade – o Tempo – é o desejo de .Ãéo que deseja. Mas, para
, Ã é impossível, pois não-Há.

* * *

10. Ã não há senão como não-Haver causador do desejo de . Em suma: A


deseja não-Haver – para além de Nada, para além de entropia absoluta. "Antes
não houvesse” é o voto do , deseja o impossível Ã.

* * *

11. Esta tese, como se vê, atribui desejo ao próprio Nada. Não é preciso que
uma neutralidade absoluta (em seu seio) só possa ser pensada como ataraxia.
Aqui, a própria neutralidade do Nada é desejante.

* * *

12. deseja o impossível Ã: este é o motor do Motu Perpetuo. Haver e


desejar. Haver é desejar.

* * *

13. Ao “internamente”, isto é, no seu seio, não há falta – senão a falta


que tem de Ã. O que falta ao lhe seria externo, se houvesse. Mas,
justamente, não-Há. Nem por isso de não haver, Ã deixa de causar em seu
movimento desejante.

141
O Sexo dos Anjos

* * *

14. A falta (“externa”) de A, isto é, Ã, lhe impõe uma Castração Primordial:


A, embora completo, Neutro, Nada, entrópico, tem falta de Ã. Não lhe falta
nada: falta-lhe o que não há. Aí já se apresenta Coisalguma primordialmente
“perdida”, para A (isto é, para ). Ou seja, o é assujeitado à LEI.

* * *

15. Tal castração primordial se impõe por uma dissimetria entre e Ã, pois
que a simetria A/Ã, posta por , fica definitivamente prejudicada porque Ã
não há.

* * *

16. O conceito de simetria aqui colocado é o de uma simetria radical, funcio-


nando como radical oposição ou avesso radical: luz-absoluta/absoluta-sombra
(o que paradoxalmente dá na mesma). Catoptria radical.

* * *

17. Essa dissimetria (castração) primordial é “de fato” mas não “de direito”.
Dissimetria de fato: porque à não há. Donde ser Um; primo, solitário,
sem par.
Simetria de direito: pois embora não haja Ã, A o requer – há desejo de
não-haver em .

* * *

142
Motu perpetuo

18. Contudo, A (isto é, ), é Inocente “de fato” e “de direito”.


De fato: porque à é impossível para . Não é por impotência que não
chega a Ã.
De direito: porque deseja esse impossível por sua própria conta, isto é,
sendo sempre simétrico no seu seio (internamente), não pode, na insistência
repetitiva de sua própria simetria, deixar de propor um Outro absoluto (que
será Ã) para si. é inocente (segundo a fórmula de Lacan de que a culpa é
de se abrir mão do seu desejo) porque não abre mão do seu desejo (mesmo se
deseja o impossível), ignora que seja impossível o que deseja.

* * *

19. É por desejar o impossível à que , embora completo e inocente, é


castrado.

* * *

20. Seria pobreza da ciência (da física, p.ex.) supor que a neutralidade absoluta
da absoluta entropia, do Nada, seja estática. O panorama é bem diverso se aco-
lhermos o postulado (que aqui se faz) de que esse Nada é desejante – de que o que
Há ( ), mesmo em neutralidade absoluta, deseja não-haver. Isto é dizer, para
a Física, que seu universo pode ser pensado como primordialmente dissimétrico
(externamente), embora no seu seio (internamente) ele seja simétrico.

* * *

21. No seu seio, é simétrico, ainda que isto venha a se demonstrar funcio-
nando apenasmente no tempo.

* * *

143
O Sexo dos Anjos

22. Só há dissimetria:
1) Externa (a qual é de fato mas não de direito) com o que Não-Há.
2) Parciária, isto é, em Modos, em partes de (isto quando Ele se dife-
rencia, em seu seio, como – como veremos adiante. Esta é uma assimetria
regional de ).

* * *

23. O desejo de (no sentido de Ã) é o que poderíamos chamar de uma


primordial (essencial) Pulsão de Morte que orienta (para Ã) – o que aliás
garante definição para toda e qualquer concepção de pulsão. é orientado:
mas não no sentido do + ou do -, e sim no sentido de Ã.

* * *

24. Mas não morre em à – pois é imortal e eterno.

* * *

25. Também, é constante, isto é, sua plenitude não cresce nem decresce.
Aparentes acréscimos e decréscimos são aspectos modais de seus Estados.

* * *

26. Ã não é Zero. É algo (ou melhor, não-algo) de impensável, para além da
própria nulidade do que classicamente se apresenta como zero.
Para haver zero, é preciso que haja + 1 e -1. Ora, é Um, e à seria -1,
se houvesse. Assim, só há UM = . É no seio de , em seu estado de à que
o zero vai aparecer.

* * *

144
Motu perpetuo

27. O movimento desejante de (enquanto tal) para o impossível à é contra-


ção (que vai dar em implosão). Isto é: A, desejando Ã, tende a sumir contraindo
seu Nada. Quanto maior sua contração, isto é, insistindo no seu desejo, A mais
se aproxima de Ã.

* * *

28. Ora, porque não há Ã, dele se aproxima o A sem jamais atingi-lo, isto é,
sem se tornar Ã. Apenas A implode. Haveria uma passagem, um Revirão de
A para à se houvesse simetria de fato entre os dois – mas à é impossível. As-
sim, aí sobrevém, então, um evento de outra natureza: A implodido, mas não
passando para Ã, explode cindindo-se em (leia-se A barrado). Este, aliás, o
Revirão possível para

* * *

29. Entre A e comparece um Furo primordial – lugar de implosão OU ex-


plosão; Lugar de Buraco Negro OU Buraco Branco se quisermos usar compa-
rativamente estes construtos da astrofísica – o Furo sendo lugar de Big-Bang.

* * *

30. Se em A a simetria é neutra e homogênea (luz/sombra = luz/luz = sombra/


sombra), e por isso buscando externamente simetria heterogênea em Ã, já em
a simetria é heterogênea internamente (luz/sombra).

145
O Sexo dos Anjos

* * *

31. Simetria heterogênea interna significa que, com a explosão de A em , há


emergência, no seio de , da diferença, em .

* * *

32. No empuxo da explosão de A, em a diferença de começo se acentua e se


mirifica, tendendo a fazer surgir, no estado de , modalidades cada vez mais
numerosas, aumentando-se também cada vez mais sua complexificação.

* * *

33. Em suma: tende, em seu empuxo inicial, para um auge de diferenciação


e de complexificação.

* * *

34. No entanto, se o desejo de é Ã, o movimento gerado em pela


força de explosão vai fazer com que ceda à força maior que é o empuxo
de Ã, por outra via.
Assim, a Entropia – que não é outra coisa senão esse empuxo de à (pulsão
de morte) sobre quando agindo sobre – exercendo-se desde o momento
da explosão, paulatinamente vai eliminando as diferenças no sentido da neu-
tralização de em A.

* * *

35. Assim, o que deseja, em primeira instância, é A, isto é, tornar-se A. Mas o


que A deseja é tornar-se Ã. Então, o que deseja, em última instância, mediante
A, é Ã. A deseja imediatamente Ã, ao passo que tem que mediar por A seu
desejo de Ã. Se o desejo de é o desejo de Ã, antes ainda passa por A.

146
Motu perpetuo

* * *

36. Aqui já podemos resenhar o processo num esquema. Haver começado pelo A
é uma escolha arbitrária na suposição de algum didatismo. O processo, porém, é
cíclico, podendo ser redescrito a partir de qualquer ponto para a ele retornar.

* * *

37. A grande circunferência pontilhada representa o Tempo, isto é, a trajetória


do desejo de . Sobre ela se inscrevem o A como Nada, sua implosão no
sentido de Ã, cuja impossibilidade o explode em , cuja entropia o neutraliza
em A, e assim por diante e para sempre: per omnia secula seculorum...

* * *

147
O Sexo dos Anjos

38. Assim, por vigor do desejo de (causado por Ã), A implode para um
Furo que o explode em que se neutraliza em A, etc., etc., etc. ...

* * *

39. Aí está o Motu Perpetuo em sua mais geral manifestação. Graças, Adeus!

148
RSI

2
RSI

40. Aqui trataremos do Real (R), do Simbólico (S) e do Imaginário (I) em seu
vigor PRIMORDIAL.

* * *

41. Já no Esquema (36) podemos ver a aparição trifásica do Haver pelo Tempo,
isto é, no movimento do pelo ciclo do desejo. Nesse movimento aparecem,
como três fases primordiais, fundamentais, os estados do : A, F, .

* * *

42. Aqui, RSI, como estados de , aparecem diacronicamente, isto é, na


seqüência do movimento desejante. O que Há comparece sucessivamente em
cada um dos três estados. Mas não devemos esquecer que esses estados são
avatares do : cada qual, por sua vez, é .

* * *

149
O Sexo dos Anjos

43. Se chamarmos de Real o , temos que aplicar duas vezes o termo


de Real –tal como faz Lacan com o Real do Nó Borromeano de RSI que
inclui um elo do Real. Prefiro chamar de (o Haver) o ciclo por inteiro
e aplicar o termo de Real a um dos estados. Entretanto, Lacan não erra
ao duplicar a nomeação (Real) pois que em nosso Esquema podemos
apontar que o que melhor representa , tanto em seu Vazio (A) (ou
Nada) quanto em sua cisão ( ), assim também como em seu desejo de
Ã, é o que se passa no Furo.

* * *

44. Chamemos o que se passa no Furo de Real Primordial. Mas dis-


tinguindo-o como lugar e momento em que , no seu estado de A, e
seguindo o movimento do seu desejo causado por Ã, e na impossibilidade
de atingi-lo, explode em (Há-Não). Nesse Furo o Real é o umbigo do
, de A para . Ele só aparece aí como o momento e lugar de reviramento
por: empuxo implosivo de à sobre A; fracasso do passe de A para Ã, por
impossível; explosão de A em por insistente contração de A. Não de-
vemos esquecer que à é causa do desejo de , mas causa impossível
de ser atingida, porque não há.

* * *

45. Assim, o Real Primordial é: 1) passe impossível de A para Ã; 2) passe


possível de A para . R é ponto-bífido –não orientado mas orientável –de
. Sua orientação pensável é no sentido de à –o que, aproximando-o do
impossível, o bifidiza orientando-o, ainda para Ã, por outra via: a de .

* * *

46. Aqui já encontramos o Revirão Primordial: pois não podemos

150
RSI

esquecer que também no empuxo de Ã, portanto no empuxo da bifidi-


dade do Furo, passa, por entropia, para A. Isto é, se umbilica
por si mesmo.

* * *

47. O Simbólico Primordial se apresenta como o estado de cisão ( )


enquanto resultante do fato da explosão. Explosão esta que insiste (por
inércia) nos fragmentos de : emergência da DIFERENÇA no seio de
um estado de .

* * *

48. Há proliferação da Diferença no seio de . Diferença esta que não faz


mais do que repetir, dentro de um estado, a diferença de fato e de direito
que aparece, no seio de , entre A e . A qual não é senão repetição da
diferença (de direito mas não de fato), que há entre e Ã.

* * *

49. Mas não devemos esquecer que o furo tem sua própria sistência. Que
o Real está no seio de –que ele não é algo que não-há. Assim, o Real
não é um mero entre A e –ele é um TERCEIRO, do qual depende tanto

151
O Sexo dos Anjos

A quanto , assim como o Real depende destes dois. No seio de ,o


Real há de fato, assim como A há de fato, assim como há há de fato. O
que não há de fato é Ã –embora haja de direito.

* * *
50. Há, de direito e de fato o que quer que haja em . Ora, em há
o desejo de à –mas não há Ã. “Externamente” a só há Ã, que não
há. Então, Ã há de direito, enquanto pro-posição do desejo de –mas
não há de fato.

* * *

51. O Imaginário Primordial se apresenta como o estado de neutralização


(A) enquanto resultante da entropia seguida pelo fato da implosão. Força
que insiste contra os fragmentos de . Emergência da INDIFERENÇA
no seio de um estado de .

* * *

52. Há eliminação de diferença (interna) no seio de A. Eliminação


esta que já vige, como entropia, no seio de , contra seu processo de
diferenciação.

* * *

53. Ai estão, em sua aparição originária, Real, Simbólico e Imag-


ináirio. Que podemos representar, em seu surgimento sucessivo, num
esquema circular, num esquema rombóide, num esquema em Revirão,
ou no Esquema .

152
RSI

* * *

54. Aí está, de outro modo, o Motu Perpetuo em sua manifestação. O Real


aparece aí como comutador que, uma vez tocado, transforma S em I, e vice-
versa –em Revirão. É de se notar que é o Real que faz barra de impedir pas-
sagem do Haver ao Não-Haver.

* * *

55. Será que podemos dizer que aqui –apesar da aparição sucessiva, diacrônica,
dos estados de –há nodulação sincrônica de RSI?
Ora, o que se movimenta é –e seus estados sucessivos, no empuxo
de Ã, não se dão, na plenitude do seio de , sem remissão, a cada vez, às três

153
O Sexo dos Anjos

potências em jogo na sua formação. Assim, para que haja em seu movi-
mento desejante –e ele só há nesse movimento, isto é, no tempo –é preciso
que, RSI, cada qual não se ponha sem os outros: não há um sem os dois outros.
O que é de se representar numa cadeia borromeana mínima –onde R, S, I, não
se amarram dois a dois senão pela nodulação aprontada pelo terceiro. O
comparece, no centro do esquema borromeano aplastrado, como nodulação de
seus estados. E seus estados são gozosos.

* * *

56. Note-se que no Esquema o movimento aparente é de mão única (levógiro
no caso do desenho apresentado). Mas esse sentido do movimento, no que ele
descreve um percurso em Revirão, se reverte, paradoxalmente –com o quê,
tanto faz pensar o como destrógiro ou como levógiro, em seu movimento
desejante: ele engendrará automaticamente duas mãos.

* * *

57. Seguindo-se, por exemplo, a mão-única levógira do Esquema : –O que


quer R?: – Passar a S. –O que quer S?: –Passar a I. –O que quer I?: –Passar

154
RSI

a R. E assim por diante. Porém, no que I quer passar a R, o que ele faz é pas-
sar a S. Assim como S passa a I. E se R quer passar a S, no entanto é por seu
próprio empuxo contrário que ele passa a I.

* * *

58. R, S, I, são heterogêneos enquanto estados. Mas são constituídos da


mesma substancialidade de , e comparecem sobre o mesmo empuxo de
para Ã.

* * *

59. É de se dizer que há (entre A e ) função catóptrica no Real –o qual reverte
(em Revirão) o que quer que o toque.

* * *

60. O que Há, isto é, , é constituído de MATÉRIA (ou Energia, se


quisermos) e de LIBIDO. Aqui chamando-se de Matéria a substancialidade
do que Há, e de Libido o empuxo que movimenta para à –o qual age
como movimento desejante do que Há, na produção de um curso sobre cuja
trajetória os estados comparecem.

* * *

61. É essa conjugação de Matéria e Libido no empuxo de à que podemos chamar


de pulsão do –que não deixa de ser Pulsão de Morte, isto é, de Vida. Na
verdade, é pulsação de –na sua repetição em eterno retorno: do mesmo A,
mas não necessariamente do mesmo no seio do . Essa Pulsão é o autômato,
cuja fortuna (tiquê), no seu encontro com o Real, são os avatares de .

155
O Sexo dos Anjos

156
O gozo que há

3
O GOZO QUE HÁ

62. Matéria e Libido (essência e desejo) são o gozo do . goza sozinho,


de si mesmo e por si mesmo –no empuxo de Ã. Mas esse gozo se difere seg-
undo os estados de .

* * *

63. O movimento desejante do Haver é cíclico. Com o que, dada a distribuição


dos estados sobre o ciclo, a cada posição sua, A está entre o empuxo de duas
forças –embora sua trajetória, seu destino, seja no sentido de .
* * *

64. Entre I e R vigem duas forças: a inércia de I que se impõe decrescendo de


I para R; o empuxo de R que se impõe decrescendo (mas sempre superando I)
de R para I. Sendo que, no movimento de I para R, o desejo de é, estru-
turalmente, Ã. A trajetória desejada é de A para à –só por impossível recaindo
no furo (em R). Esta vertente do bífido Real é a vertente do impossível –no
entanto desejado.

* * *
65. Devemos lembrar aqui que o empuxo de R atravessa o ciclo por inteiro –

157
O Sexo dos Anjos

ora empurrando como explosão, ora puxando como implosão. E que o evento
em R é o reviramento de implosão e explosão, no choque do desejo de à com
o impossível de passar.

* * *

66. Entre R e S vige apenas uma força: a resultante da explosão em sua insistên-
cia diferenciante em S, fazendo-se inércia de diferimento no seio de S.

* * *

67. Entre R e I vigem duas forças: a inércia explosiva de S, que vige diminu-
indo de S para I; a entropia que, no empuxo dominante de R segundo Ã, vige
diminuindo de I para S.
A resultante, por vigor de à em R, será no sentido de I –ao passo que
a inércia (eco) explosiva de S funciona como neguentropia por todo o percurso
de S até I.
Aqui, matéria e libido se dilatam, isto é, espaço e tempo se mirificam
em eventos da mais complexíssima diferenciação.

* * *

68. Vemos que, assim como há diferimento de em seus estados, há também


diferimento da libido entre seus estados. Diferimento este que nos apresenta
a libido no encalço de três gozos heterogêneos em sua estrutura, embora ho-
mogêneos em sua essência libidinal.

* * *

69. Assim, há três gozos no périplo de – e não devemos esquecer que


estamos aqui no nível Primordial, isto é, no seio da plenitude do que HÁ. Aí,
entre os três estados, comparecem 3 expedientes do gozar.

158
O gozo que há

* * *

70. Chamemos de Gozo-Fálico (J) o movimento (expediente) da libido, entre


R e S. Movimento regido por uma só força (66), explosiva, no sentido do dife-
rimento a se efetivar em como S. Note-se que Jé efeito do movimento, na
impossibilidade de passe para Ã). Então Jprovém de uma limitação (o Real
como limite do passe a Ã), ou seja, existe R como não ao Não-Haver (Ã), com
o que é Ã (como o que não-há) que limita a libido e a faz seguir seu sentido
(para Ã) por outra via (que não a de A). Assim, Jé efeito de um encontro
com o Real (que limita a libido ao campo de ). Por outro lado, Jencontra
também limite na dissolução da libido no campo disperso de , isto é, em S,
pois a partir daí, já não há gozo-fálico, mas dispersão conseqüente. Isto é, J
é gozo no sentido do possível. Este é o expediente mais afastado de Ã: é mais
afirmativo do Haver.

* * *

71. Chamemos de Gozo-do-Outro (J ) o movimento (expediente) da libido


entre I e R. Como vimos este movimento libidinal é agido por duas forças
(64). Aqui, o que se compactou e se neutralizou em A, corre para Ã, “não
querendo saber” de um limite em R. Este gozo é de se escrever J (e não JA)
porque se o que era diferido em se unifica em A, no entanto se aviva aqui
uma diferença, externa a , entre A e Ã: se encontra diferido entre seu
próprio haver, em A, e seu desejo de não haver, em Ã. Vê-se que este gozo não
encontra termo possível. Trata-se de um gozo impossível que, no entanto, não
deixa de aspirar a libido como J . Ao contrário de J, que é um gozo reali-
zado, J é um gozo que só se realizaria na tangente à libido no sentido de Ã.
Implodindo vertiginosamente, J só chega a R por impossibilidade de chegar
a à –e seu atingimento de R o descaracteriza imediatamente, passando-o a J.
Assim, se, ao invés de gozar em Ã, J tomba em R, não é por virtude do seu
expediente libidinal específico, e sim por fracasso estrutural desse expediente.
Este expediente é o que mais se aproxima de Ã, é mais negativo do Haver.

159
O Sexo dos Anjos

* * *

72. Chamemos de Gozo-do-Sentido (J$) o expediente libidinal entre S e I.


Este expediente, como vimos (67), é agido por duas forças. Se por um lado
seu destino é sua neutralização em A, por outro lado J$ não se efetiva senão
como passagem de para A. Ora, então não há J$ senão em consideração ao
explodido, no sentido de sua neutralização, ou seja, consideração do Simbólico
no sentido de sua Imaginarização.
Se o destino de J$ é Imaginário, no entanto, este gozo só se efetiva ao operar
no Simbólico. Trata-se de um gozo que não se realiza (como J, que vai no
sentido do possível) mas também não se encaminha para o impossível –e sim
que se efetiva estritamente dentro do possível: possível este que é: tratamento
do S, no sentido do I.

* * *

73. Este expediente propicia duas vertentes: 1) a de fazer sentido –a qual, por
ter que considerar S no sentido de I, acaba por ter que considerar I no sentido
de S; 2) a do sentido dado (ou tido), – a qual mimetiza seu destino, apegando-
se ao sentido já disponível, na evitação do S.
A primeira vertente é a verdadeira de J$ embora, ao termo do processo,
o estado vencedor seja I (por vigor de Ã).

* * *

74. Este expediente não é nem mais próximo nem mais distante de Ã: ele tem
que levar em consideração o Haver, não enquanto afirmação ou negação, mas
enquanto diferenciação e neutralização.
Disto resulta que, nessa complexidade, ele não é um mero entre S e I (entre
Ae ) –ele tem sua especificidade radicalmente diversa de J e de J.

160
O gozo que há

Também não se pode dizer que ele seja uma mistura (com dosagem mais
ou menos intensa para um lado) de J e J –pois que estes dois expedientes
não se misturam em nenhuma hipótese, tendo entre eles a barreira do Real (em
Revirão) –eles são heterogêneos.
É claro que, na consideração da diferenciação (de ), não deixa de
comparecer como fundo (ou origem) a afirmação do Haver, assim como sua
consideração da indefectível neutralização (entropia em A) não deixa de com-
parecer como fundo (ou voto libidinal) a negação do Haver (aliás impossível)

161
O Sexo dos Anjos

–mas este expediente se limita, enquanto tal, entre S e I. S e I são seus limites,
e não seus constituintes.
O Real o acossa tanto na diferença quanto na indiferença, fazendo com
que aí não se possa considerar a diferença sem levar em conta a indiferença
(que virá), tão bem quanto não se possa considerar a indiferença sem levar em
conta a diferença (que se impõe).

* * *

75. A rigor J$ é procrastinação de A. Este expediente é responsável pela di-


latação da matéria e da libido. No seio deste expediente, o ESPAÇO aparece
como infinitamente grande e o TEMPO como infinitamente longo.

162
O campo do sentido

4
O CAMPO DO SENTIDO

76. Este Campo vige entre e A. É o Campo aonde impera o Gozo do Sentido
(J$): seja sentido que terá-sido, seja sentido que será-tido. Contudo, imediata-
mente depois de Je até que tudo se neutralize em A, o que aí vige é –como
Estado de cisão (A1/A2) insistentemente renovada no empuxo de longo alcance
da explosão, subdito entretanto, de modo crescente, à gravidade de A como en-
tropia. O que rege essa entropia (como neguentropia) é aquela insistência de
–a ser “finalmente” anulada apesar do delongado processo de procrastinação.

* * *

77. Assim, o Campo do Sentido está, na aparência, subdito apenas à ordem


(neguentrópica) da cisão (Spaltung), pois o que quer que aí apareça só com-
parece como oposição (em avesso) A1/A2, ao mesmo tempo ou não, coalescendo
em modalidades eventuais, isto é, contingentes (não necessárias a priori), no
entanto necessárias a posteriori.

* * *

78. Dizer que a cisão é binária (A1/A2) é não reparar no verdadeiro efeito da
explosão (como J). Se a aparência modal da cisão é de binariedade (A l/A2) é

163
O Sexo dos Anjos

porque o Terceiro (A0) opera aí, não a cada modo, mas na totalidade do Campo,
fazendo com que cada modo seja subdito ao efeito dessa operação.

* * *

79. Na verdade, considerando-se a abrangência do Campo, a explosão não


resulta em mera cisão binária, e sim em tripartição. Isto é: a Razão que opera
o Campo do Sentido em sua totalidade não é binária, mas ternária.

* * *

80. A ilusão que se tem (a da ciência, por exemplo) de que a oposição se resolve
binariamente, se deve ao fato de os modos, observados em sua compleição
particular, e retirados portanto de seu Campo, se apresentarem como são, isto
é, binários no que separados do terceiro que vige no Campo Geral em que estão
mergulhados, mas não vige em sua separação. (Daí, por exemplo, a grande
diferença entre um Saussure e a lingüisteria de Lacan.)

* * *

81. É preciso entender que a tripartição da verdadeira cisão corresponde neces-


sariamente à trindade dos Estados, isto é, , A e F (ou seja, Simbólico, Real,
Imaginário). O que se dá por cisão binária, que vige em até sua neutralização
(e unificação) em I, é o efeito da explosão em cada modo comparecente no
processo repercutido da explosão.

164
O campo do sentido

* * *

82. Entretanto, foi preciso que, a seu tempo, a ciência viesse a tratar do que nela
comparece hoje com o título de entropia –a qual não é outra coisa senão um
efeito do Terceiro, do Real (F), situando na barra entre Al/A2 aquele Ao até então
desconsiderado. O outro efeito do Real aí no Campo do Sentido é justamente
a neguentropia da repercussão explosiva, assim como o primeiro (a entropia)
é imantação da implosão.

* * *

83. Assim, devemos dizer que o Campo do Sentido, embora esteja situado entre
e A somente, não deixa de sofrer do Real (F) –o Real que ali se modaliza em
duas forças opostas (entropia e neguentropia) na procrastinação do Revirão.
Aí nesse Campo, a bifididade do Furo Real (que impõe Revirão instantâneo ao
ciclo de ) comparece como binariedade ou oposição (entropia/neguentropia)
–mas não devemos escamotear que ambas as forças (com apenas diferença de
intensidade), em função da região em que se operam nesse Campo, comparecem
sincronicamente a cada operação: com sua bifididade, portanto.

* * *

84. Assim é que, observada uma modalidade (ou um conjunto de modalidades)


isolada e num momento dado, só é disponível a leitura de sua binariedade. Mas
com a introdução aí do conceito de entropia/neguentropia (enquanto avatar do
Real) torna-se necessária a postulação do terceiro (Ao). Por isto mesmo é que
é possível representar o Esquema na forma do oito-interior do Revirão: basta
considerar-se que uma das passagens pelo ponto R é de Furo (Revirão) e que
a outra é de entropia/neguentropia.

* * *

165
O Sexo dos Anjos

85. No pensamento ocidental, a concretude do A0 tem sido freqüentemente


escamoteada (por influência de uma lógica incompetente) como mero inter-
valo. As línguas, por sua operação aparentemente binária (nas lingüísticas
cientifizadas) e opositiva, têm incentivado este tratamento (a não ser no campo
do poético: duplo sentido das palavras primitivas –como em Freud). Afoitas
em produzirem a partir dessa estrutura aparentemente opositiva, as ditas
“ciências da linguagem” têm engrossado cada vez mais a tese do intervalo: no
que, enquanto supostamente racionais e iluministas, elas se têm demonstrado
irracionais e obscurantistas.

* * *

86. Em isto é, em A1/A2, a Barra não é só intervalo, mero lugar entre –é um
TERCEIRO (A0): A1, Ao, A2, ou melhor, + A, A0, -A. Daí Lacan, com intuição
genial, ter espessado a barra entre os chamados (por Saussure) Significante e
significado.

* * *

87. Quando da explosão de A em (pela via de F), o Zero assume ele próprio,
como terceiro, a função catóptrica do Haver. Assim, +1 e -1 não são senão
repetições simétricas (com o que de saída já são três). A repetição simétrica aí
(positivo/negativo, ou entropia/neguentropia, se quisermos) é função suces-
sor (l) para os dois lados da simetria. O Zero aparecendo aí como o único
“número” real, capaz de reduzir ao simbólico a série dos números em sua bífida
orientação ().

* * *

88. A esse Zero, esse lugar do Ao do mais/menos, da entropia/neguentropia,


devemos reconhecer o valor de insistência do Real (modalizado) no seio do

166
O campo do sentido

Campo do Sentido –insistência borromeana. Assim, devemos chamá-lo de RI


para diferençá-lo (didaticamente) do Real que comparece no Furo (R).

Aqui é de se dizer que se (R, S, I) comparecem plerômica e borromeanamente


no seio de , e portanto também no Campo do Sentido enquanto um todo
–por outro lado, no que diz respeito aos MODOS do Haver dentro do Campo
do Sentido, para cada um deles em separado (exceto para o Falanjo que ali vai
comparecer) só há comparecimento de (S/I), o Real só intervindo na totalidade
do Campo. Donde é de se escrever que aí há [R(S/I)] ou (R1, S, I).

* * *

89. A polêmica ( pólemos, de Heráclito) de S com I (da entropia com a neguen-


tropia) opera o Sentido, o qual rege os acontecimentos nesse Campo. Quando
há cisão ( ), um sentido explode para logo ter suas frações, por força de A,
coalescidas em novos sentidos que se formam. Daí o aparecimento de MODOS
no Campo do Sentido, os quais são significações mais ou menos duráveis, in-
sistentes em se manterem (sistemicamente) como tais, ao mesmo tempo que cor-
rompidos por dois lados –de um lado, pela instância explosiva (neguentrópica)
da inércia de ; por outro lado, pela instância implosiva (entrópica) de A.

167
O Sexo dos Anjos

90. Embora destinados ao perecimento em A, a procrastinação do Campo amplia


o percurso para o alvo (A) por uma longa série de diferenciações, fazendo com
que as modalidades se mirifiquem (tanto mais quanto mais próximo de esteja
o périplo de ) ao mesmo tempo que se delonguem. Daí, através dos diversos
ditos “estados” da matéria, podermos encontrar as mais diversas variações e
ramificações modais, mais ou menos complexas, mais ou menos insistentes, do
físico ao biológico, do biológico ao psíquico, do psíquico ao espiritual.

* * *

91. Aí impera, motivada pelo rigor da diferença originária (entre e Ã), a


LEI da diferença, sendo o Campo do Sentido, como aliás o próprio Pleroma,
uma diferocracia estrutural.
É de se questionar o como do surgimento da diferença, e sua insistência
no seio deste Campo uma vez que ele emerge da explosão de A, a cuja neu-
tralidade (interna) ele há que retornar. Como poderia aparecer a diferença pela
cisão constante do neutro?
Aqui, mais uma vez, aparece a importância da tripartição. Um esquema
“em árvore” da cisão, como binária, não faria mais do que fracionar (em igual-
dade), o Haver, como A, em partículas idênticas (embora de sinais contrários)
numa série geométrica, extremamente longa, de avessas duplicações. Mas não é
o que acontece. Pois, a partir da explosão, tudo se modaliza, mesmo os tempos,
isto é, a libido se modaliza a partir dos efeitos modais da própria explosão.

* * *

92. Dada a explosão de uma massa inerte e homogênea, nada obriga que a força-
explosiva aja de modo a fracioná-la em partes iguais. Assim também como a
re-explosão subseqüente de suas partes (pelo empuxo da inércia explosiva de
) não se obriga a fracionar as partes em sub-partes iguais, assim como não
obriga que as re-explosões se dêem simultaneamente.

168
O campo do sentido

Começa aí uma dissimetria –que não fez mais do que repetir, em eco, a
dissimetria fundamental que há entre A e Ã, o qual, embora seja, de direito,
o seu simétrico, na verdade, em não havendo, dissimetriza de fato o Campo
do Sentido.
Como disse, nada obriga que a força explosiva, que age sobre A, as-
sim como a força implosiva agindo sobre , se exerça igualmente em todas as
partes do A em sua fragmentação.

* * *

93. É o próprio conceito de Simetria que deve ser reconsiderado e, assim,


modificado. A função catóptrica pode ser (pela ciência) generalizada por tudo
que se conceba como Universo. Entretanto ela tem sido concebida, por via
geométrica se não estereoscópica, com respeito a uma noção de regularidade
formal. Quando o de que necessitamos é de um conceito de simetria que se esteie
numa exigência de outragem (cujo Outro se conceba como avesso) a partir da
simetria originária entre o Haver (em sua positividade) e o Não-Haver (em sua
hiper-negatividade). Pois que a simetria de direito que aí se impõe, se demonstra,
por outro lado, como dissimetria de fato (dada a não-havência de Ã).

* * *

94. Haverá simetria no tempo? Sim. Entretanto, qualquer lapso temporal entre
dois simétricos estabelecerá, imediatamente, uma dissimetria no conjunto, isto
é, no mesmo Halo. Nem por isso os dois alelos deixam de ser consideráveis
como simétricos (no que avessos por alguma catoptria), dispensada a dissimetria
temporal. É esse elemento de dissimetrização do simétrico que funciona como
o A0 que devesse ser adicionado a Al/A2 para o retorno da compleição. Entre
os dois alelos de um Halo em Revirão, há que considerar o terceiro que vige
no lapso irredutível do seu avessamento.
Assim também como podemos considerar que nem por serem simétri-
cos, em avessamento, os alelos têm que ser iguais. Considere-se, por exemplo,

169
O Sexo dos Anjos

o BRANCO e o PRETO, tomando-os como simétricos. Se sua mistura pode


dar na neutralidade do CINZA, é porque, na sua união, comparece o terceiro.
Mas nada obriga pensar que PRETO e BRANCO, embora simétricos opostos,
sejam avessamente equivalentes na sua separação.

* * *

95. Imaginemos, de maneira puramente alegórica, deixando para outrem (para


os físicos?) alguma explicação mais adequada, que tais fragmentos resultantes
da explosão, e por qualquer diferença de volume ou de percussão, por exemplo,
tivessem diferentes vibrações, isto é, fossem de freqüências diversas. Teríamos,
então, os começos do Campo do Sentido, pelos sentidos diferentes de tais
fragmentos já modalizados, metaforicamente (e uma metáfora concreta neste
caso) com estrutura musical. Aí está a Música, digamos que música celeste,
ensaiando seus primeiros movimentos – melódicos, rítmicos, harmônicos,
dinâmicos –a partir de A MÚSICA (divina) fundamental que já se houve nos
Estados do Haver –se não quisermos pensar no silvo originário que já constitui
o sonoro movimento de (a plerocinese) em comparação com o silêncio
absoluto (que não há) do desejado Não-Haver.

170
Nobodaddy

Terceira Parte

PLEROMAQUIA
2º Semestre 1986 (2)

171
O Sexo dos Anjos

172
Nobodaddy

1
NOBODADDY

Esta canção é mais do que poesia


Além de verso e ritmo
Mesmo poesia mélica e elegíaca
Esta canção é de forma visionária
É uma canção de forma e contraforma,
De um tempo sem tempo.

É de ausência entre as ausências


É o nada do nada e outros nadas
Pois tudo se esvai na noite dos tempos;
É do tempo, sem tempo e sem memória
Sem qualquer sinal recordativo.
Apesar disso, agora, a música do tempo
Vai passando na pauta indefinida,
Em que se escreveu esta canção.

Essa música é chão e cantochão


A que se regera e se regeu;
Essa música circula
Num ciclo que se abre e que se fecha,

173
O Sexo dos Anjos

Um círculo que está sempre se voltando.


Essa música está sempre numa esfera
Girando e regirando ao mesmo tempo;
Um ciclo que sempre está revindo
Numa simples circulação solar.

Nas teclas que são de nitrogênio


E nas que de carbono se transformam
Surgem sempre hidrogênio,
E de novo girando, oxigênio
Num rodar perene e musical.

É o ciclo da luz, da luz do Sol.

Este é um poema escrito para o meu Esquema Delta, por Joaquim


Cardoso... Poema póstumo, que me foi trazido hoje por Aluisio Menezes...
numa entrevista com Cardoso o poeta leu o poema para ele, que acha que
deve ser de 1973... Joaquim Cardoso, poeta, matemático e engenheiro. Numa
acomodação de lugar, que as pessoas às vezes consideram difícil, de bricoleur
exímio. Brasília não estaria de pé, com as fantasias esquisitas do Niemeyer,
sem o cálculo poético de Cardoso.

* * *

Há sempre lugar vazio para ser ocupado por algum pai. Mesmo porque
o tal pai, o tal que Freud inaugurou dando-lhe o apelido correto de pai morto,
não é outro senão esse que se resume nessa palavra-poema, de William Blake:
Nobodaddy. Por uma simples razão: que esse pai não é outra coisa senão repre-
sentante do Impossível Não-Haver. Não é lugar vazio; ele é Morto de vazio. Só
como vazio é que ele é morto. Portanto, o lugar é ocupável.
Em nosso Esquema, esse nobodaddy não é senão aquele que com
esse título é o Nome do Pai. O nome que Blake deu ao pai; o Nome do Pai,

174
Nobodaddy

na língua de William Blake. É o nome que eu dou, repetindo Blake, ao fato de


que o impossível é substituído pelo proibido. O impossível de o Haver chegar
a Não-Haver é substituído pela proibição de exceder o percurso de encami-
nhamento para o Não-Haver. Isto é o Nome do Pai. É o nome que se dá a essa
proibição que não é válida, sozinha, como proibição. Só é válida com referência
ao impossível. A proibição é o apelido do impossível, assim como nobodaddy
é o nome da instância que realiza essa elipse. E só. A desgraça, é que não há
Pai. Não há. Só há esse Nome. Nome de um inelutável. Não dá para passar a
Outro lado, porque não há Outro lado.
A gente até dá vários nomes. Por exemplo, mesmo nesse Esquema, fui
buscar, na nominação grega desse pai, aspectos diversos de sua ocupação, como
é o caso, por exemplo, de poder chamar o gozo-do-Outro (aquela insistência
desejante que vai do Imaginário ao Real) de Ouranós, que veio dar o Urano do
latim. A idéia do grande Urano que, antes ainda que Júpiter castrasse Cronos,
foi castrado pelo mesmo Cronos, de onde, aliás, nasce Vênus com sua invisível
camisa de impedir a relação.
Gostaria de chamar de Urano o reino do gozo-do- Outro. Assim como
o reino do gozo-fálico de Fiat. Podemos chamar de Cronos (ou Saturno) aquele
que, justo porque foi o castrador de Urano, vai ter que sofrer essa repetição de
castração sobre si mesmo, lá no gozo do Sentido, que é o reino de Zeus (latina-
mente Júpiter, ou seja, Zêus-Pater). Estão lá: Ouranós, Kronos e Zeus; Urano,
Saturno e Júpiter. Tudo isso é contado na mitologia grega. São aspectos da pa-
ternidade em seus efeitos gozantes. O Real aí é a castração de Urano, a limitação
de Urano, o qual é essa abrangência que quer logo ir para Não-Haver.
Talvez alguns de vocês tenham visto o Globo-Repórter de ontem. Era
mal-feito, mal explicado, mas era bonito e dava para ter uma pálida idéia, do ponto
de vista pelo menos de metáfora astrofísca e intra-atômica, de algumas coisas que
estão indicadas no Esquema Delta. Metaforicamente, se quiserem, posso chamar
o tal Big-Bang (da explosão) de gozo-fálico. Não sei se notaram uma coisa que
alguns me perguntaram: se não havia nenhuma diferença entre a explosão e o
depois; entre gozo-fálico e gozo-do-Sentido, a explosão e a diferenciação. Mesmo

175
O Sexo dos Anjos

no retrato dos físicos, a explosão, enquanto tal, o Big-Bang, nada tem a ver
com o processo de diferenciação, o qual exige queda de temperatura. Ainda que
seja um zero seguido de quarenta zeros na escala cronológica dos segundos, é
esse átimo aí que se chama de explosão, de gozo-fálico. Eles sabem distinguir
isto do processo de diferenciação, que vem em seguida, quando já começam
a se separar as estruturas maiores, os grandes elementos. Aí já é preciso um
mínimo de entropia, um mínimo de resfriamento, num zilézimo de segundo, e
a partir daí, então, começa o processo de diferenciação que não é senão aquilo
que apontei no meu Esquema como entropia. Depois que entramos na explosão,
gozo-fálico, imediatamente a entropia já começa a comer. Há aí um jogo de
entropia e neguentropia, que já é da ordem da diferenciação. E assim, o processo
de diferenciação depende de dois momentos: o da entropia e o da neguentro-
pia. A pura e simples explosão, que é absolutamente anti-entrópica, ela ainda
não diferencia, ela só explode. Então, sem um mínimo de Imaginário, não há
diferença. É preciso Real, Simbólico e Imaginário para se fazer diferença. Sem
um mínimo de pressão do Imaginário sobre o Simbólico e de pressão de Real
sobre o Simbólico não há diferença. O Simbólico não faz diferença sozinho.
Não teria como.
Desde a vez anterior que venho tentando entrar, devagarinho, no
CAMPO DO SENTIDO. Vamos continuar hoje, ainda, devagar. O Campo do
Sentido, entre e A, entre Simbólico e Imaginário, é esse grande campo do
jogo das diferenças no eco de sua repetição e na tendência de sua relação. Esse
pólemos do universo, quando ele está nessa em que está, entre duas forças. Não
é pelo fato de ele estar no jogo, segundo o Esquema proposto, entre Simbólico
e Imaginário que o Real deixa de empuxar (de estar presente no empuxo) para
o Não-Haver. Constantemente lá está o Real criando caso, explodindo para
cá, implodindo para lá e forçando, portanto, as duas energias do pólemos do
Simbólico: a força entrópica e a força neguentrópica, a força de diferenciação
e a força de indiferenciação. O Simbólico vive desse joguinho, o Simbólico
tout-court ...
E no seio (isto é que é espantoso) desse Campo do Sentido, não se
sabe por que cargas d’água aparece um havente perfeitamente pertinente a

176
Nobodaddy

esse campo e que, ao invés de a tripartição da explosão continuar numa árvore


binária, de repetição da diferença por árvore binária sustentada pelo terceiro
que passa como um cometa segurando os elementos, ele inclui a ressonância
desse terceiro, e não sabe articular, não sabe pensar o Haver sem a inclusão
desse terceiro. Faz muita força, há milênios, para se conformar com o dois,
mas não se conforma. Tanto é que não dá certo. Tudo de binário, que constrói,
vai pelo cano. E é preciso de uma vez por todas que ele se dê conta de que
não é da mesma organização natural aparente do lugar onde habita. Ou seja,
ele é justamente da mesma organização natural, mas o lugar onde ele habita
escamoteia isto. É o nascimento do homem (não vamos ficar envergonhados de
falar disto), o surgimento do ser humano, ou da cera humana, se quiserem.
Que espécie de novo Big-Bang, lá dentro do Campo do Sentido, vem
metido num gozo todo especial para aparecer esse ser esquisito? O nascimento
do homem. Aí, abrimos de novo – e é um saco a gente não ficar livre desse
passado – o tal livro do Gênese: “No princípio Deus criou o céu e a terra. A
terra estava informe e vazia, as trevas cobriam o abismo”... É a história do
descobrimento... chama-se A. “O espírito de Deus pairava sobre as águas” – o
Sujeitão e o Vazio. Ou seja, o Sujeitão aí é o Vazio. Deus disse: “Faça-se a
luz!”. Bem: dizer, chegar a dizer, para valer, é da ordem do gozo-fálico. Isso
diz. Deus, ali no lugar do Nome do Pai, disse: “Faça-se a luz”, fiat, gozo-fálico.
Grande explosão luminosa, mas vinda das trevas, não nos esqueçamos disto:
a treva virou luz. “E a luz foi feita.” Isto é que é horror. “Deus disse que a luz
era boa.”. Ou seja: era má. Ele “separou a luz das trevas”. A luz era boa para
quem estivesse aqui; para quem estivesse ali, era má. “Deus chamou a luz dia
e as trevas noite. Sobreveio a tarde e depois a manhã do dia primeiro.”.
Aqui confundem-se todos os níveis. É um grande poema este livro:
passa de um nível para outro com a maior simplicidade. “Deus disse: faça-se
o firmamento entre as águas e separem-se umas das outras.”. Um firmamento.
Começa a coisa a se coagular, logo após a explosão. “E Deus fez o firmamento,
separou as águas que estão debaixo do firmamento daquelas que estão por
cima.”. Isto é incompreensível. “E assim se fez.”. Daqui a pouco a gente acha

177
O Sexo dos Anjos

um lugar. “Deus chamou o firmamento céu, sobreveio a tarde, depois a manhã


e foi o segundo dia.”.
“Deus disse: que as águas que estão debaixo dos céus se ajuntem num
mesmo lugar, e apareça o elemento árido. E assim se fez”. Não vamos tomar
isso como água, não. É aquele rio lá de que fala o Cardoso, o mesmo rio do
Guimarães Rosa, é sempre o mesmo. “Deus chamou o elemento árido terra e
o ajuntamento das águas mar. E deduziu que isto era bom.”.
“Deus disse: produza a terra plantas, ervas que contenham sementes
e árvores frutíferas que tenham frutos, segundo a sua espécie. E o fruto con-
tenha a sua semente.”. Podemos botar esse negócio da semente desde lá do
comecinho, memória, e percorrer tudo: a semente não é senão a memória da
árvore. A memória percorre tudo, até Deus tem os seus espermatozóides. “E
assim foi feito.”. A terra produziu plantas, ervas que contêm sementes, árvores
que produzem frutos segundo a sua espécie, contendo fruto e sua semente – a
gente esquece a semente.
“E Deus viu que isso era bom.”. É claro que é bom; tudo que acontece
é bom. Deus, Ele sabe bem-dizer. É o contrário do neurótico. Tudo que aparece
é bom. Ele disse. “Sobreveio a tarde, depois a manhã e foi o terceiro dia.”.
“Deus disse: “Façam-se luzeiros no firmamento dos céus para separar
o dia da noite, sirvam estes sinais para marcar o tempo, os dias e os anos. E,
como luzeiros no firmamento do céu, sirvam para iluminar a terra. E assim se
fez.”. Ele não descobre a terra. “Deus fez os dois grandes luzeiros. O maior
para presidir ao dia” – o mito se amarra com a maior facilidade no poema – “e
o menor para presidir à noite. E fez também as estrelas, colocando-as no fir-
mamento dos céus para que iluminassem a terra, presidissem ao dia e à noite,
e separassem a luz das trevas. E Deus viu que isto era bom”. Ele era ótimo,
achava tudo bom. “Sobreveio a tarde, e depois a manhã. Foi o quarto dia.”.
É tudo bom. “Deus disse: pululem as águas de uma multidão de seres
vivos e voem aves sobre a terra, por baixo do firmamento dos céus. Deus criou
os monstros marinhos” – Ele cria tudo, mesmo monstros – “e toda a multidão de
seres vivos que enchem as águas segundo a sua espécie, e todas as aves segundo

178
Nobodaddy

a sua espécie. E Deus viu que isto era bom” – outra vez. “Deus os abençoou
e os bendisse: frutificai” – disse Ele. É o tal eco da explosão da diferença – ,
“multiplicai-vos, enchei as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre
a terra. Sobreveio a tarde, depois a manhã. Foi o quinto dia”.
“Deus disse:” – não pára de dizer – “produza a terra seres vivos segundo
a sua espécie, animais domésticos, répteis e animais selvagens segundo a sua
espécie. E assim se fez. Deus fez os animais selvagens segundo a sua espécie,
os animais domésticos igualmente e da mesma forma todos os animais que se
arrastam sobre a terra. E Deus viu que isto era bom”.
Então, “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança”.
Esta é a grande diferença. Nunca Ele dissera isto antes. “Que ele reine sobre
os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre
toda a terra e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra. Deus criou o
homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, criou-os Homem e Mulher.
Deus os abençoou e lhes disse: frutificai!” – Ele não disse que era bom. Sabem
por quê?: porque não era mau, nem bom também...
“Multiplicai-vos, disse Ele, multiplicai, enchei a terra e submetei-a.
Dominai os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se arrastam
sobre a terra. Deus disse ainda: eis que vos dou toda erva que dá semente sobre
a terra e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas as suas sementes,
para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves
do céu e a tudo que se arrasta sobre a terra, em que haja sopro de vida, dou toda
a erva verde dos alimentos. E assim se fez. Deus contemplou toda a sua obra
e viu que tudo era muito bom” – aí Ele incluiu tudo. Era bom demais. Não era
à toa que aquilo se chamava Paraíso. “Sobreveio a tarde, depois a manhã. Foi
o sexto dia. Assim foram acabados os céus, a terra e todo o seu exército – já
existe uma guerra? “Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito,
descansou do seu trabalho” – passou a bola, certamente, para os homens. “Ele
abençoou o sétimo dia e o consagrou, porque nesse dia repousara de toda obra
da criação.” Tal é a história da criação do céu e da terra. Fácil, fácil, simplezinho,
acabou. Aí apareceu o tal Paraíso. E veio, depois, a culpa original.

179
O Sexo dos Anjos

A culpa original (ou pecado original) é aquela história de Serpente,


Adão, Eva e a transa toda. A serpente era o mais astuto de todos os animais
do campo que o Senhor tinha formado. Deus tinha dito, lá no Paraíso, que o
Homem podia fazer de tudo, comer de tudo, mas não podia comer da árvore que
fica no centro do jardim. “A cobra perguntou: é verdade que Deus vos proibiu
de comer de todo fruto de toda árvore do jardim?” (Isto aqui é a chicana do
político: “olha que absurdo, você não pode comer nada”. Igualzinho a programa
eleitoral de TV.). “A mulher respondeu: podemos comer do fruto das árvores
do jardim, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: vós
não comereis dele nem o tocareis para que não morrais” (aí está, no lugar Real
do Furo, o impossível – de morrer – reduzido a uma proibição). “Oh! Não!
Retrucou a serpente. Vós não morrereis. Porque Deus sabe que no dia que dele
comerdes vossos olhos se abrirão e sereis, como Deus, conhecedores do bem
e do mal.”. E aí foi aquele negócio: cantou a Eva, a Eva deu para a cobra, deu
para o Adão, deu para todo mundo... A importância aqui é: qual é a árvore que
fica no meio do jardim, bem no meio, e que foi proibida de ser comida, e que
foi comida assim mesmo e que, certamente, fez com que o sonho da serpente
tivesse razão? Já notaram que a serpente estava falando tudo certo? “Se comerem
dessa árvore, vocês serão como deuses conhecedores do bem e do mal.”. Ou
seja: vão sacar a mesma falta que Deus tem, por não poder não-Haver. Onde
ficará essa árvore?

* * *

Lacan deu indicações, num texto, justo no texto onde fala da palavra
árvore, mostrando que é a relação sincrônica e diacrônica que vem... árvore,
árvore, árvore... que não é outra coisa senão aquela que fica no meio, bem no
meio, do Real. É a árvore da proibição, que tem a ver com o Nome do Pai,
por causa do impossível Não-Há. Alguma coisa aconteceu a esses caras, os
fundados, e eles sofreram do mesmo sofrimento de Deus. Não esquecer que,
com toda razão, Deus disse que eles eram feitos à sua imagem e semelhança.

180
Nobodaddy

O que aconteceu lá? De tal forma que lá no Campo do Sentido aparece


esse ser que, outra vez, é ternário, que, outra vez, é trindade, e que, outra vez,
almeja passar ao Não-Haver, e que não pode, porque não há esse Não-Haver.
E se depara com o impossível no que come da árvore Real do centro, que é a
Arvore do Revirão. E nessa experiência de ser imagem e semelhança de Deus,
ou seja, de repetir, no seio do Sentido, a mesma estrutura da trindade divina,
faz-se emergir esse ser, que não é senão um microcosmo. Já notaram que estou
fazendo força para salvar um certo passado: o neurótico pensa, quando deita
no divã, que é para ficar livre do passado, mas o que há para fazer é salvá-lo,
elevá-lo à dignidade da Coisa.
 Pergunta – Quem não sabe disso são os dessa discussão recente na mídia,
que pensam que se trata de trazer o passado para denegri-lo ou culpabilizá-lo.
Na realidade, é para salvá-lo.
Salvar o passado. Bem-dizê-lo, fazer como Deus. Ali, então, no Campo
do Sentido aparece esse ser que não é senão Deus de novo, na imagem e se-
melhança, esse ser que se mantém na mesma estrutura da ordem divina nesse
grande Cosmo. Se meu Esquema está certo, ele vive, o tempo todo, no estado
angélico. Vocês notaram que, se a metáfora é válida, é um átimo de gozo-fálico,
um átimo de tentativa de encostar no Não-Haver e derrocada completa. Seu
grande périplo, seu grande percurso é no Sentido, que é o lugar dos Anjos.
Então, vamos ter que lentamente demonstrar tudo de novo, refazer o processo
outra vez – porque a história é assim, repetição – para a gente se dar conta de
que o falante, adâmico, nasceu no seio de uns bichos, tal como um animal, mas
com Outro sentido. Ele não se fixa: mesmo se vem do Feminino, passa rapidi-
nho pelo gozo-fálico e desaba outra vez no gozo-do-Sentido. Quando tenta, se
tenta, corre rapidinho para o Não-Haver e quebra a cara; não tem saída, senão
recair no gozo-fálico.
O que estou fazendo é uma denúncia: estamos, há milênios, na
doce ignorância de imaginar que o ser humano se divide em homens e mul-
heres, quando, na verdade, não passam de Anjos – apesar dos pendurucalhos,
ou da falta deles. Vez ou outra na parecença com o mundo binário da

181
O Sexo dos Anjos

sexualidade animal, dá uma encostadinha no gozo-fálico, uma encosta-


dinha no gozo-do-Outro. Mas o grosso da nossa vida é nesse Campo do Sen-
tido.
 P – Esta semana, na obrigação da livre-docência, tive que reler os autores
que insistem na questão do Clássico e do Barroco. Um deles, Shermann, re-
solve duvidar, resolve se perguntar e perguntar ao leitor algo que acho que
encaixa no que você está dizendo. Por que nunca é possível a estética se fixar
(e, obviamente, ele fala, no Clássico, de um masculino)? Por que sempre que
a estética acredita que resolveu a questão do belo como masculino, surge uma
reação impossível de ser contida e passa-se a afirmar que a representação do
belo se dá de acordo com o gozo-do-Outro, que é uma postura barroca? Ou
então, de repente, quando isso começa a ser aceito, isso cai num certo excesso
de detalhismo gongórico e aí se recompõe como regra (o neo-classicismo é
isto, não é o clássico sintoma: é como ter sido clássico um dia, mas se tentasse
de novo fazer uma coisa masculina). E os grandes momentos de crise na arte
são aqueles em que se resolve dizer ou que a arte morreu ou que é impossível
sair disto.
Então, me parece que ele está ligando o belo (que Lacan liga à segunda
morte) a isso que você está chamando de angélico, quer dizer: se a lei não se
inscreve em outro lugar, salvo no desejo, esse belo, como segunda morte, não
se inscreve noutro lugar salvo nisso que você chamou de culpabilidade origi-
nal. Mas os efeitos são de sentido, quer dizer, lei-desejo vira lei de gozo. Lei
enquanto referência à pura diferença (ou mesmo referência à proibição que
vem no lugar do impossível) vira superego, inventa-se falante e determinados
momentos na história da arte, que resolvem ser da ordem da mulher, referên-
cia dupla ao furo e ao falo, que é o Maneirismo. Isto porque encontramos o
Maneirismo tanto no apogeu, no Clássico, brandindo gozo-do-Outro na cara
do gozo-fálico. E depois, como todo mundo é barroco (realmente, todo mundo
cultua a ascese), de repente surge uma certa postura de trazer de novo o gozo-
fálico. É quando se começa a fazer uma poesia literalmente satírica e erótica
dentro do próprio Barroco.

182
Nobodaddy

Então, isso aí, eles dizem que é um rebuscamento, vem da maniera italiana
(dizem até que o Barroco é menor). Mas não seria esse Maneirismo a única
dessas escritas – apesar de estar marcado por essa coisa do belo, ainda que
situado no discurso da mulher, quer dizer, ainda que fazendo dupla referência
– que tenta pensar esse terceiro elemento?
Eu diria que se alguém fizer um estudo bem apurado do Maneirismo
– justamente nessa dupla vertente de puxar para o feminino quando se está
homossexual demais, puxar para o masculino quando se está louco demais, e
também com grandes períodos de ampla equivocação –, verificará com certeza
que todo esse fenômeno maneirístico não é senão o Angélico enquanto tal. Você
deu mais ou menos uma situada no feminino, porque faz referência ao falo e
ao furo, mas eu diria que não, que é o próprio sistema do gozo-do-Outro, no
feminino, em referência ao furo radical, tanto do ponto de vista do Não-Haver
quanto do furo Real com o qual vai esbarrar, como a referência ao gozo-fálico,
porque é por onde, como creodo, que o movimento que sustenta o gozo-do-
Outro vai ter que passar. E observe que gozo-fálico não tem que, em seqüência,
esbarrar em gozo-do-Outro, ele esbarra no Sentido, na diferença. Eu não poria,
do meu ponto de vista, o Maneirismo no feminino. Prefiro botar essa vontade
barroca naquilo que do Barroco visa algo de místico.
 P – Mas o Maneirismo fica entre os dois, entre o feminino e o masculino.
Mas isto, a meu ver, é a visada dos autores que encaram o Maneirismo
na sua vertente (deles, autores) neurótica. Porque a obrigação angélica – coisa
que retomaremos – é que é o preconizar um sentido tido, um sentido dado,
já dado. Mas quero dizer que a cura da neurose instala o sujeito no Angélico
puro, ou seja, no sentido a se dar, a se fazer. A estratégia que o Maneirismo
faz com isto – e não vamos dizer que não há Maneirismo neurótico, porque
há –, se houvesse o Maneirismo purificado de neurose, seria não permitir a
tendência, o tendencioso. Então, ele fica na com-sideração desse furo, porque
vive nesta estratégia. Ele pode passar. Os outros é que não podem. É aí que
ele é angélico.
 P – É, porque ele se coloca como aquele que anuncia aos outros o desencanto,
o desconcerto.

183
O Sexo dos Anjos

E vale no sentido desse Angélico de estar manejando o sentido com as


suas duas asas e não com o seu corpo: seja o corpo ereto do Classicismo, seja
o corpo deslocado do Barroco.
 P – Apontar para esse Angélico não neurótico, de que você está falando?
Mas ele aponta como se viesse de lá, ele, o Maneirismo.
Sim, na medida em que ele não se sente obrigado ao Angélico. Se ele
não é obrigado, pode considerar o masculino e considerar o feminino. Ele só
é angélico. O que é obrigado ao Angélico é o neurótico, que também não faz
opção nem pelo masculino nem pelo feminino, e sim pelo sentido dado e por um
comportamento que já está inscrito nos rituais do cotidiano. O não-neurótico,
ele resta disponível. Justo porque é Angélico, se pode afirmar para lá, afirmar
para cá, chegar mais para lá, chegar mais para cá: há jogo de cintura. A von-
tade feminizante não deixa – veja bem, ela não deixa – de ser angélica, porque
não existe manifestação pura do feminino. Mesmo o Barroco é, no regime do
Sentido, uma tendência de afirmar decisivamente o feminino. O mesmo para
o Clássico que, dentro do Sentido, é uma tendência a afirmar exclusivamente
o masculino. O Angélico não: ele diz que não é nada disso, que pode ir para
lá, pode vir para cá. O tempo todo estamos jogando no plano da fabricação do
sentido, no mesmo plano divino de criar o multifário dos haveres.
 P – Nesse sentido que você acabou de dizer, “que não é nada disso” é literal,
pois o Maneirismo pega o sentido já dado e chama atenção para que deve
haver um desengano, um desconcerto, um abandono desse sentido dado. Mas
em momento nenhum ele aponta para um certo sentido a ser dado.
Isto é indicar que há que fazer sentido. Não se pode parar de fazer
sentido. Esta é toda a diferença entre neurose e não-neurose.
 P – Ainda nessa seqüência de questões, podemos dizer que, lendo sobre o
Maneirismo, há um elemento que percorre a experiência dos artistas, pelo
menos em nível prático, que é o trato com o espelho. Há uma grande freqüência
do espelho em vários livros.
Lacan foi brilhante quando chamou atenção, no Seminário II, para a
anamorfose. É o expediente angélico, uma estratégia de Anjo. Estratégia de anjo,
naquele caso, contra o masculino. No caso da anamorfose do século XVI.

184
Nobodaddy

 P – O Estádio do Espelho, de Lacan, seria uma designação daquele ponto


F do Real no sentido do que é libidinal e não tem imagem, estaria no curso
do gozo-do-Outro, enquanto que o traço unário, a marca da imagem seria da
ordem do gozo-fálico.
Isto é essencial. Daqui a pouco teremos que entrar nisso: Traço unário,
marca de imagem. A gente se esquece freqüentemente que traço unário é marca
de imagem, tem a ver com Imaginário.
 P – O ponto curioso é que você está como que desenterrando um pouco,
fazendo a arqueologia do Estádio do Espelho de Lacan para poder precisar a
função do espelho que, de certa maneira, em Lacan, não fica precisada.
É a Função Catóptrica, que vai reincidir sobre tudo que há, propondo
simetria absoluta, apesar da dissimetria original. Ela vai exigir repensar o
estatuto do SUJEITO, dar um adensamento, um espessamento ao zero. Dar
um valor de lugar um pouco mais substantivo ao sujeito. É um risco bem
grande que estou correndo. De repente, o sujeito não é meramente intervalar,
embora ele seja ainda intervalar. O que há dentro desse intervalo? Que espécie
de Vazio é esse que reaparece no seio do grande Haver enquanto repetido, no
corpo do falante? Ou é a substancialidade que eventualmente ele pode vir a
ter, se insistirmos nessa repetição? Se são três sexos, talvez o sujeito possa ter
aderência um pouco maior a esse terceiro, onde ele vive o tempo todo, ter uma
certa substancialidade no sentido de res gaudens.
 P – Ou res utopica.
O que, a rigor, é a mesma coisa. A res gaudens, na proliferação do
possível, chega à poesia de Oswald, que não é a utopia do aqui, agora tudo,
é utopia do tudo possível agora e aqui, mas sem que esse agora e esse aqui
sejam determinados.
 P – Dentro da Idade Média, a consideração da linguagem dos anjos sempre
esteve ligada à utopia.
É isso aí. E o João Paulo não sossega: foi lá, ontem, e inaugurou uma
estátua de São Miguel. Outra vez. Ele está invocado...
 P – Ele é chegado a um anjo.

185
O Sexo dos Anjos

É chegado, um anjo. É a época.


 P – Você está se esquecendo de que ele escreveu uma tese sobre São João
da Cruz.
Não estou esquecendo, eu não sabia... que ele escreveu o quê?
 P – A tese dele antes de ser...
...João Paulo!...
 P – Um texto sobre São João da Cruz.
E eu não sabia disso. Está vendo? Já entendi...

* * *

A permanência, digamos assim, a freqüência do sujeito falante é


no estado angélico. No terceiro sexo. E creio que há fingimento. O falante
finge, porque pode fingir. Ele tem aparelhos para isso, aparelhos lógicos. Então,
ele finge. Escapadelas para o gozo-fálico, escapadelas para o gozo-do-Outro.
Ou seja, escapadelas que permitem repensar a questão do Real. Uma coisa
séria que vamos ter um certo mal-estar em abordar, por exemplo, é: compare-
se a intenção exigente e intensiva de um MÍSTICO como uma Santa Tereza,
como um São João da Cruz, no nível do gozo-do-Outro – cuidado, não me
joguem pedras, eu só estou pensando – com a intensidade, a intencionalidade
com que um Marquês de SADE os freqüentou de fato... Não posso supor
que um místico seja um psicótico. Pode ser assim: a intencionalidade dele de
desvendar aquilo é diferente de estar aprisionado na obrigação daquilo, o que
até faz conseguir menos. Então, o cara se perde. Resta saber se um Marquês
de Sade era um sujeito na obrigação – portanto, perverso – do gozo-fálico, ou
se foi confundido. Se ele era um místico às avessas, ou seja: aquilo... não sei
qual é o nome... qual o nome que se dá para isso?... Ninguém deu, porque todo
mundo tem um cagaço de tal ordem do que é da ordem do gozo-fálico que,
quando se aproxima disso, só sabe xingar. Então ninguém inventou um nome,
assim, como se fala de um místico. O Bataille inventou a santidade erótica,
tentou inventar isto...

186
Nobodaddy

 P – Por aí, poderíamos dizer que tudo que sabemos sobre o que ele suposta-
mente faria, é simplesmente porque ele escreveu após um insucesso meio difícil
de explicar num perverso, literalmente existente.
É uma via.
 P – Estou cogitando de colocar a questão da obrigação. Onde podemos
dizer que há obrigação? Ele escreve transparecendo que ocorreu com ele uma
obrigação, isto é óbvio. Filosofia na Alcova, isto é explícito. E o que faz, talvez,
Lacan desconfiar que não ocorreu. Ele realmente é empenhado em descrever
que de algum modo essa obrigação fálica é relativa a ele, embora ele tenha
explicações da vicissitude para dizer que foi malsucedido. Mas as explicações
são para o seu insucesso, e não para o seu culto à obrigação fálica.
Não estamos tratando do senhor Alphonse, estamos tratando dessa obra
chamada Marquês de Sade.
Era estrategicamente necessário a Lacan, a seu tempo, fazer tal tipo de
percurso, sem o qual eu não poderia nem pensar no meu. Então, vamos livrar
a cara do velho, porque ele estava com as razões. Mas a minha questão con-
tinua: haverá algo da mesma cepa, embora inversa, do misticismo, nesta área?
Por mais que o místico tente habitar o gozo-do-Outro, ele não está habitando
ali. Ele está habitando o Campo do Sentido. O misticismo funciona mesmo
na evitação do fracasso, na delongação do seu percurso para o Não-Haver. O
que é coisa inteiramente diferente de já partir da explosão, já partir do gozo-
fálico. Minha questão é: será isto necessariamente perverso, isto tem uma
vertente perversa de fixação – aquilo que chamei de aprisionamento do Nome
do Pai no objeto, o perverso propriamente dito – ou é a insistência em querer
desvendar a própria cepa desse gozo-fálico? O que é outra coisa: seria aquilo
que acontece no misticismo, mas numa outra região. Portanto, uma estrutura
completamente inversa.
 P – Mas isso pode ser lido como sublimação.
Isso pode ser lido como SUBLIMAÇÃO no percurso da obra, dentro
do gozo-do-Sentido. Do ponto de vista do escritor, angelicamente falando, isto
é sublimação...

187
O Sexo dos Anjos

 P – ...e aí não pode ser lido como sublimação, porque sublimação nem em
Freud nem em Lacan remete a sentido, e menos ainda a gozo-do-Sentido.
Nenhum deles falou nisso. A sublimação, no Mal-Estar na Civilização, está
ligada à questão da satisfação, que é uma questão pulsional, é a motivação
autoral. Isto é o que ficou demarcado como sublimação. E aí a IPA criou a teoria
da rolha de poço, dizendo que a sublimação era uma transferência de libido
que dava origem a textos, a obras. Não é isto que Freud faz no Mal-Estar.
Elevar o objeto à dignidade da Coisa exige uma intencionalidade quanto
à pulsão de morte. Então, a Coisa é equívoca. Não que o Angélico não pudesse
praticar isto, a sublimação, a partir de referência ao gozo-fálico, insistindo nessa
referência. Mas não dentro dele. O que é possivelmente sublimatório na obra do
Marquês de Sade é que o material a sublimar, insistido na freqüência do gozo-
fálico, por via de obra, é no sentido, dentro do Angélico, na vocação da pulsão
de morte. Mas o que estou colocando é algo um pouco mais difícil de dizer:
como posso reavaliar aqueles que insistem, assim como o místico insiste na sua,
na averiguação da ordem divina do gozo-fálico? Uma coisa interessante, por
exemplo, na fala do repórter de ontem, naquele Globo-Repórter, era a angústia,
que ele conseguiu transmitir para quem soubesse escutar, dos físicos, quanto a
esse pedacinho aí que a gente ainda não sabe dizer nada sobre ele, que eles só
sabem dizer no Campo do Sentido, no campo da diferença. Quero supor, junto
com Sade, com Bataille, com Sollers e com outros, com o pensamento oriental,
por exemplo, que, apesar de toda a aparência ou até mesmo de existência de
perversão aí nesse campo, há algo da ordem da intencionalidade angélica de
dar conta do Masculino. E isso é verificável na obra clássica, por exemplo.
É da ordem de se dar conta disso para o que Aluisio Menezes chamou aten-
ção, de se dar conta de como é que isso vem dar em Traço. Como vem o traço,
marca, após a experiência do Real? Como há Fiat? Onde é que há criação? Não
há criação no pensamento místico. Não estou dizendo que o místico não crie,
por tabela, e sim que o pensamento místico não está interessado na criação. Está
interessado na destruição. Aí a gente pode botar o Mallarmé na ordem mística:
“A destruição é minha musa”, dizia ele. Isto é o quê? O desejo de chegar a

188
Nobodaddy

Não-Haver. Enquanto que na obra fálica é outra a postura desejante: Fiat é a


minha musa, a criação.
 P – Você estaria dizendo que Sade está entrecruzado entre duas experiências:
uma, a experiência do que se teria da ordem do gozo-fálico e, outra, a experiência
do que seria do escrito.
De dentro do Angélico, posso ficar pensando angélico enquanto tal,
maneiristicamente, ou posso ficar pensando fálico, no Masculino, ou posso
ficar pensando místico, no Feminino. De dentro do Angélico, querer voar para
o Feminino ou, de dentro do Angélico, querer considerar o empurrão que me
jogou no sentido, e que é fálico. São posturas diversas.
 P – Mas o que alguns aqui parecem que estão entendendo é justamente o oposto
do que está sendo colocado. Estão entendendo que sublimação é a tradução
disso para o legiferante, para a ordem do fálico. É o oposto. É a sublimação
para se ancorar no angélico.
Se é o que querem entender, isto não dá para pensar. É impossível,
para nós falantes, mergulhados no Campo do Sentido, não operar dentro do
Sentido. É preciso não perder as asas, para poder fazer sentido. Mas é possível
dar uma guinadinha mais com uma asa do que com outra. Então, o que há de
sublimação na obra de um sujeito desses é no nível da sua produção textual
enquanto Angélico. Mas no que está nos interessando aqui no momento, não
devo pensar aí em termos de sublimação. Devo pensar em termos de efeitos do
fracasso da sublimação. E sobre isto há alguma coisa importante a ser dita. Os
efeitos do fracasso necessários: porque sublimar é fracassar. Não esqueçamos
que a sublimação tem a vocação do Feminino. Não posso negar isto. Ela tem a
vocação de aniquilar o Haver. Elevar o objeto à dignidade da Coisa. E a Coisa
é Não-Haver.
Então, não posso dizer que estar no gozo-fálico seja da ordem da
sublimação, o que não o desmerece de modo algum. Nem tudo é sublimação
na vida de Deus. Alguns acham que ou bem se é do partido da sublimação ou
bem do partido da pornografia. Não é assim. Deus, também, é sacana. E Ele
não só deseja não-Haver, como também não o consegue. Tudo faz parte dele.

189
O Sexo dos Anjos

Não tenho que desvalorizar o que não é sublimatório; não é preciso. É preciso,
talvez, revalorizar a possibilidade do Masculino – não obrigatório – e que é o
Criativo, como nos mostra o I Ching.
 P – Pinta uma distinção. Em Freud, a questão da sublimação se limita ao por
que escrever. Por que escrever? Não se trata nem do escrito, nem do efeito do
escrito. Nesse sentido com que estamos acostumados a lidar, como imaginari-
zação do simbólico – que você, na sua obra, diz que é lugar de analisando – , é
o efeito social, portanto cultural e superegóico, do escrito. O escrito, enquanto
tal, de caráter simbólico, também não é sublimação, embora você possa dizer
que ele é um efeito de sublimação.
É prova de gozo.
 P – Mas ele não é utopia, não é efeito de afirmação de sublimação. Ele é
efeito para aquém do processo de sublimação.
Ele é prova de gozo-do-Sentido. Mais nada. O escrito é prova concreta
desse gozo... aliás, a única. Portanto, ele é prova concreta do fracasso da sublimação
em elevar, de fato, o objeto à dignidade da Coisa.
 P – Sade tinha o projeto de perpetuar o crime, mesmo que ele parasse de
agir. Ele sonhava com um crime único, que esse crime...
...ecoasse pela eternidade...
 P – ...sim, o Caos eterno.
Que crime é esse, senão a criação?
 P – Mas não pode ser o Caos sonhado e que por ser místico fracassado ele
caísse no gozo-fálico?
Não acho.
 P – Acho que é o contrário.
Você está atribuindo a Sade um aspecto de místico fracassado?
 P – Isso. Se ele sonha com destruição perene, ele também está imantado pelo
mesmo real do místico. Se ele sonha com essa destruição perene que ecoasse
ao infinito, esse crime...
Mas por que destruição? Acho que ele não fala em destruição.
 P – O crime é marcação. Ele escreveu alguma coisa. O crime aí é a criação.

190
Nobodaddy

 P – Ele quer que todos se convençam de que seja para sempre.


O crime no feminino é impraticável; é produzir o Não-Haver. Mas esse
crime não é realizável, por impossível. O crime, no masculino, é da ordem do
fiat. Criar é, de certo modo, criminoso. É um ato de violência. O ato-poético
é um ato de violência.
 P – Não é isso que está lá nos clássicos?
É, em busca do cósmico.
 P – A sublimação, no clássico, se coloca como uma questão da ordem. O
resultado da criação seria a ordem.
Sim. O que s’obra (esse, apóstrofe, obra), é esse resto de criação.
 P – Mas esse sublime de que a estética se dá conta, dando conta do belo, não
é o sublime da sublimação. É tentativa de re-imaginarizar esse objeto elevado
à dignidade da Coisa. Ele é re-imaginarizado no sentido de mito do amor, quer
dizer, do intocável, do inacessível. Mas isso já é transa de histérica...
Mesmo porque não é possível produzir a sublimação das sublimações,
que é desejo do místico. Sublimar a sublimação do místico, à segunda potência.
Pois a própria sublimação, ela já é gozosa, então já é, de certo moto, pecami-
nosa, criminosa. O místico, mesmo, gostaria de sublimar a própria sublimação,
chegar a Não-Haver. Essa efusão com Deus de que ele fala, ou seja, efusão com
o desejo de Deus, que é de não-Haver. Desejar como Deus deseja, e não como
um mero Anjo pode desejar. Desejar desfazer qualquer sentido possível.
É extrema a diferença entre isto e essa coisa que pode emergir aí. A
única pessoa, que conheço, que fala um pouco melhor disso, desse erotismo
santificado, é o Bataille mesmo, que não tem nada a ver com isso, que é da ordem
do reconhecer. É da ordem daquilo que, no Anjo, pensa a existência: existe pelo
menos um que afirma o gozo-fálico, para que não-todos o possam negar. Esse
erotismo é da ordem do projeto de juízo de existência do Anjo. Ele existe, em
Sade, sob a forma do universal do Homem. Ele afirma o masculino, mas para
realizá-lo só onde pode ser realizado, na produção de Sentido, como Anjo.

* * *

191
O Sexo dos Anjos

Quem sabe conseguimos, com isto, dentro de algum tempo, fazer uma
diferença radical entre o que é da ordem do poético e da ordem do místico? O
poeta habita esse Campo. No que ele pede e apoia a criação, só pode manejar
isto de dentro do gozo-do-Sentido e na “visão” do gozo-fálico. É claro que
para ter a visão do gozo-fálico, tem que ter a visão do gozo-do-Outro. Mas na
afirmação do fiat. O que é diferente do místico, que também está na mesma
ordem do sentido, mas na afirmação do caos.
 P – Se pegarmos uma fórmula da Santa Tereza, “para se assegurar, trata-se
de não se segurar”.
Santa Tereza é a grande mestra disso sobre o que estou falando. Ela tem
a fórmula lapidar para explicar meu Esquema, quando, desde o lugar do místico,
na vocação do gozo-do-Outro, nos diz: “Morro de não morrer”. Ela confessa:
“O que eu queria era poder morrer mesmo, mas isto não é possível. Se não é
possível, eu morro de não morrer. Mas o que eu queria era não-Haver”.
 P – Será que haveria avesso para essa proposição? Eu estava pensando
justamente nesse assegurar-se sem se segurar. Dava para poder entender por
aí. Se faço a inversão, fica: segurar-se para se assegurar, que é da ordem do
gozo-fálico.
Não sei se posso endossar plenamente a fórmula. Segurar-se para se
assegurar garantiria um apagamento do TRAUMA. O gozo-fálico é conseqüente
a um trauma. E do trauma só posso dar conta depois. Não posso me segurar
no trauma. O trauma é da ordem do que antecede o gozo-fálico. É preciso o
trauma. Então, há um não-sabido.
O traumático, de o gozo-fálico só vir de passagem por esse Real, me
deixa ali numa posição de insistência num estrito gozo-fálico, sem poder dar
conta do traumático. A passagem pelo furo é o trauma por excelência. O gozo-
fálico é filho do trauma. Por isso Lacan dizer que ele depende do significante
que o causa. Não posso fazer outra coisa, senão selar com o significante esse
lugar traumático. Em última instância, aquilo que chamamos de Nome do Pai.
E com isto talvez possamos vir a distinguir, com um pouco mais de clareza,

192
Nobodaddy

o gozo-fálico do gozo do órgão. Pois estou falando de um gozo que é fálico


mesmo sem órgão, no nível dos movimentos do falante enquanto tal. Não no
nível do “macacão” que o suporta.
 P – Eu poderia pensar aqui no texto de Freud Bate-se numa Criança.
Uma criança leva porrada. Criança sempre leva porrada para passar
ao gozo-fálico. É normal.
 P – Então isto se articula com a questão do masoquismo primordial,
Sim. O masoquismo primordial não é senão: “toda criança leva por-
rada”. Não é uma só. Como é que a gente vai trabalhar essa fantasia, na sua
simples estrutura de fantasia, sem ter que responsabilizá-la por nenhuma
perversão? Não que ela não possa aparecer como eventualmente assumindo
essa responsabilidade. Assim como, em Freud, a questão, por exemplo, da
Verleugnung. E eu estou dizendo que toda criança leva porrada: é o trauma,
responsável pelo gozo-fálico. O que é interessante, deste ponto de vista, no
Bate-se numa Criança, é que a experiência do gozo-fálico remete à porrada
levada, em Revirão, no impossível de passar à Coisa desejada.
 P – E quem nunca levou?
Não há quem não levou. Há quem não registrou que levou a porrada;
chama-se psicótico.
 P – Parece que o Sade trata justo desta questão aí tomou porrada, está
tentando lidar com a repetição para poder articular...
...a porrada levada. Esta é a minha questão: supor uma possível via
de abordagem de Sade por aí. Uma vez que há gozo-fálico, o que está lá na
ordem desse fiat?
 P – Qual a lembrança que me provoca?
...e que me sustenta. Há trabalhadores nessa região e que têm sido
mal-falados durante a história binária que temos hoje, durante o neolítico que
estou me esforçando por destruir, ainda...

02/OUT

193
O Sexo dos Anjos

194
Sujeito espesso

2
SUJEITO ESPESSO

Antes de começar o tema de hoje, gostaria de fazer duas observações.


Em primeiro lugar, sobre o brusco aparecimento da edição de três Seminários
velhos, O Pato Lógico, A Música e Psicanálise & Polética, que sai durante o
III Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil, em Vitória, porque o Poti seg-
urou o touro no chifre. A procrastinação pode ter como desculpa a perfeição.
Mas prefiro ficar com Lewis Carroll quando diz que “a pressa é amiga da
perfeição”. Perfazer é simplesmente concluir e certamente que não há de ser
bem... Concluir bem é simplesmente impossível. Então, é preciso pelo menos
fazer alguma coisa. Se ficarmos sonhando que vai sair uma maravilha, não se
faz nada. Fez-se, perfez-se alguma coisa...
O que não deixa de ter relação com a segunda chamada de atenção, que
é a respeito de nosso 20º Mutirão de Psicanálise, sobre a Ética, que, graças a
Deus, salvou a série de Mutirões, que andava meio precária. O pessoal trabalhou
com muito interesse e pudemos lavrar um tento de trabalho, evidentemente,
com certa eficácia. E, como efeito secundário desse Mutirão, muitos de vocês
devem ter lido no Jornal do Brasil um acontecimento que me deixou boquia-
berto. Em primeiro lugar, porque o Mutirão era interno, só para associados do
Colégio (Membros e Correspondentes). Nenhum jornalista foi convidado. Mas
havia como Correspondente do Colégio um jornalista que resolveu escrever
aquilo no jornal (certamente que com boas intenções). O único defeito é que,

195
O Sexo dos Anjos

ao invés de assumir as suas próprias conclusões, ele dava a impressão de estar


me citando. Mas eu não disse nome de ninguém, nem de instituição nenhuma
na minha fala.

 Pergunta – Não só isso, como ele também disse coisas que não têm nada
a ver...
Sim, mas jornalismo é isso mesmo. Eu não disse nome de pessoas nem
de instituições. Não sou palmatória do mundo. Não estou aqui para ficar batendo
em bundinha de irresponsáveis. Posso apenas, como fiz, chamar atenção para
o fato de certas incompatibilidades.
Bom, como efeito disto, o diretor do Colégio, Potiguara Mendes da
Silveira Jr., já mandou uma carta ao Jornal do Brasil, chamando atenção para o
fato de que eles têm que reconsiderar que o que eu disse pode ser repetido: ele
já transcreveu o que está no gravador e mandou para lá, dizendo que os nomes
de pessoas e instituições são da alçada do jornal. Enviou também a mesma carta,
como cópia, à instituição supostamente agredida. Não estou aqui para corrigir
a casa dos outros; para corrigir a psicanálise, sim; mas a casa dos outros, não!
Assim como não admito que peru de fora meta o nariz na minha casa.
Mas o que me deixou mais perplexo... isso tudo são acidentes de
trabalho, de percurso... o que me deixou mais perplexo foi eu ter escutado a
seguinte coisa, e quero chamar atenção porque essa fala pode ser exemplar
para certo sujeitos. É que alguém chegou para mim e disse: “Como você me
diz uma coisa daquelas no jornal?”. Primeiro, que eu não disse nada daquilo no
jornal. Mas, a pessoa continua: “Não há nada na teoria psicanalítica que diga
que não se pode torturar. Isso aí é uma opinião sua, você é contra, mas não há
nada na teoria que diga isso”. Fiquei perplexo na medida em que são pessoas
que lidam, ainda que de longe, com o Colégio Freudiano: já estou com medo
de vir a ser torturado. Já estou ficando com medo, porque se isto é exemplar...
Vamos começar a estudar tudo de novo. Eu poderei me dar ao trabalho, se vocês
quiserem (não hoje), de demonstrar que é absolutamente incompatível. E acho

196
Sujeito espesso

que não é preciso eu mesmo fazer isto. Não é um gosto meu. É absolutamente
incompatível com o pensamento psicanalítico que se possa retirar a verdade de
alguém debaixo de porrada. Debaixo de porrada você pode até enfiar alguma
coisa. Tirar, não vai tirar nada.
 P – A tortura, como foi feita várias vezes, não foi nem mesmo para retirar a
verdade de alguém.
Foi para coonestar a verdade suposta, de certos grupos. Mas peço que
vocês reflitam sobre isto e informem, se descobrirem (antes que eu tenha que
explicar), a todos os colegas que isto é absolutamente incompatível, e teorica-
mente. Não é uma questão de gosto estético ou ético. Mesmo porque (alguma
coisa que está, aliás, no texto do jornal) seria simplesmente supor que a relação
sexual é possível.
 P – Se a tortura fosse método, ela acabava com as entrelinhas.
Claro, acabávamos com o Inconsciente. Era só torturar todo mundo, e
pronto! Acabava-se com o problema de haver ato falho.
 P – E Deus teria aparecido, pronto!
E Deus podia comparecer, pessoalmente. Ou bem a gente acredita ou
bem não, que há Inconsciente e, portanto, nenhuma tortura o resolve. E muito
menos é permitido pensar que o Inconsciente se dobrasse a isso... Como é?
Já não se pode mais mentir? Até sem saber se se está mentindo? O que um
torturado pode fazer senão mentir? Nada mais senão mentir.

* * *

No desenvolvimento, então, do meu Esquema Delta, já tratamos um


pouco da entrada do Sujeito, da emergência do falante no seio daquele ciclo
como uma repetição de ciclos, uma repetição da trindade. E, do ponto de vista
da sexualidade do falante – e está aí um momento onde a tortura se torna abso-
lutamente perversista –, a posição sexual corrente, ao contrário do que se pensou
até hoje, quero indicar que seja a do TERCEIRO SEXO. Ou seja: é no jogo do

197
O Sexo dos Anjos

Sentido, é mergulhado no Campo do Sentido como emergência de trindade,


no vigor da função fálica, para afirmá-la ou negá-la, que esse falante aparece
e, compativelmente com os momentos do Haver, justamente a raridade é se
poder “escolher” os extremos. Não acredito, tanto pela minha experiência de
vida, quanto pela de escuta, que se tenha encontrado sujeitos situados (perma-
nentemente) no Masculino ou no Feminino, senão por viciosidade imaginária
de uma certa cultura. As pessoas vivem fantasiadas de menino ou de menina.
Não é à toa que quando se nasce, veste-se logo de azul ou de rosa para ver se
se acostuma.
Mas a fantasia, esta tem seu adereço mais freqüente é nas asas. É de
ANJO, na medida em que é movimento de uso dentro do Sentido, na busca de
se fazer sentido a cada momento sendo que, para o neurótico, seria exatamente
aprisionamento num sentido, por medo de fazer sentido. Os Anjos, eles fingem.
De vez em quando conseguem fingir bem a pertinência a um dos ditos dois sexos.
De vez em quando conseguem tomar o partido do universal ou o do particular
(o mais difícil de se tomar é o do universal mesmo). Estou dizendo que o mais
difícil é encontrar pessoas, sujeitos, dentro do partido universal, mesmo. En-
contramos muita gente dizendo que ali está, mas conferi-los freqüentando esse
partido, é o mais raro. Até diria que o mais comum, na exceção do Angélico,
é encontrar pessoas no Feminino. No Masculino, as pessoas fazem bravata.
Aqueles que estão condecorados, sejam pelos pendurucalhos, seja pelo terninho
azul, fazem muita bravata de estarem no universal. Mas é mentira. Quando
você o espreme mesmo, começa a escorregar. Sobretudo tenta demonstração
pelo singular, principalmente quando escorrega. O comum é se pertencer ao
terceiro sexo, viver na ordem do falangélico como quero dizer, ali pelo meio,
oscilando na tentativa do Sentido.
Então, os Anjos fingem bem. Fingem bem porque não se acomodam
bem. Nem ao particular do Feminino, nem ao universal do Masculino. É um
esforço lógico, de vez em quando. O que estou dizendo é que me parece haver
raridade nas passagens pelo universal, assim como nas passagens pelo particu-

198
Sujeito espesso

lar, e a temporalidade do Sujeito, do falante, na constância, é na referência ao


Sentido como existente. O que é singular não tem par, e não pode ser contado
como mera partícula. Contar de um a um não é contar partículas. A partícula é
parte de um todo. E preciso pensar numa totalidade para se tirar um pedaço que
seja uma parte e se falar do particular. Então se pode encontrar particularidades
no seio do universal, mas só contáveis como partes de um todo. O Feminino é
mais da ordem do singular, quer dizer, não faz todo e também não é parte de
um todo. O Falanjo, tendo como referência de existência o universal do Outro,
e como referência de sua relação, com uma possível totalidade, a negação da
totalidade da exclusão fálica, o que ele diz é: não-todo pode ser negado, mas
não por inteiro. Então, é preciso dizer, talvez, que ele fica mais ou menos
como fica o significante, assim, meio na ordem do delírio. A referência dele
não é nem universal nem singular. É na busca, é na procura do Sentido, ou, se
não, na amarração neurótica a um sentido pré-parado. Quer me parecer é que
o Sujeito falante vive, o mais constantemente, nessa equivocação do próprio
significante, quando ele não faz um aprisionamento neurótico. Quer dizer, é
preciso um esforço especial, uma praticagem voluntariosa ou um acidente mais
ou menos catastrófico para um Sujeito cair na ordem do Feminino ou do Mas-
culino. Isto não se oferece com facilidade. Então, podemos dizer mesmo que,
entre esses Anjos, talvez haja alguns que tenham a tendência, no seu desvio,
na sua queda, no seu cataclisma, de partir para o Masculino; outros, de partir
para o Feminino.
O que funciona aí nesse Esquema como função fálica é o próprio
movimento desejante. Esta é a função fálica: o movimento desejante do Haver.
O Haver, em movimento desejante, é a função fálica, que é negada. Qual é o
desejo em jogo? O desejo de Não-Haver, que é negado naquele ponto do Real.
Então, podemos dizer que a função fálica é desejo de Não-Haver. Assim é que
o Falo é o significante do Desejo.
No que ele é negado, aparece o gozo-fálico. No que ele é afirmado,
aparece o gozo-do-Outro. No que ele é com-siderado, equi-vocado, aparece o
Anjo, o gozo-do-Sentido. Essa mesma função fálica, aliás, divina, é o que vai

199
O Sexo dos Anjos

emergir, no seio do falante, como Sujeito. É essa função fálica, Deus desejante,
que vai emergir no seio do falante como Sujeito. Quem deseja (no seio do
falante)? O desejo é atribuído a quem? A um Sujeito. O Sujeito, na atribuição
do desejo, está em pleno gozo da função fálica. Então, no seio do falante, dessa
função fálica (que é a função desejante tornada significante, a função fálica
divina), o falante vai emergir como Sujeito, Sujeito do desejo.
 P – Esse ponto que você acabou de precisar, há uma passagem no Seminário
da Angústia, de Lacan, em que ele coloca a seguinte imagem para poder
situar a diferença entre significante e sujeito: há significante para indicar o
surgimento do sujeito. Ele fala de um significante alado que vem e faz furo
nesse significante conjunto, e esse furo é o nascimento do sujeito. Lendo o teu
Esquema, esse significante alado seria um movimento da ordem do desejo, ou
seja, do Não-Haver. Porque, no momento em que ele bate sobre o significante,
que é o campo do Haver, ele faz furo. Por conseguinte, ele faz diferença entre
o significante e isso que é furo e, enquanto tal, é sujeito.
Então aparece a referência ao Real. No momento em que, no seio da
binariedade, que é o Campo do Sentido em termos de Haver, reaparece, em
referência ao Real, o furo que Lacan quer que seja de um certo significante
alado (o que importa, para mim, é que reaparece esse furo), então, pinta Sujeito.
Agora, precisamos saber qual é a densidade, qual é a espessura desse furo...
Isso que costumamos chamar de a (minúsculo), que se traduz em objeto,
fica sendo então, lá no campo do falante, no seio do Sentido, nada mais nada
menos do que – e por causa dessa re-emergência de trindade, dessa emergência
na trindade – letrinha que é apenas, que designa apenas o representante da falta.
No que isso aparece a três-por-dois, quer dizer, a trindade reaparece no seio
da binariedade, aquilo que era falta para o Haver, reaparece como falta modal,
instalado como a. Esse sentimento de falta que, na verdade, não há, porque o
que falta mesmo é haver falta, pois a falta do Haver é não haver Não-Haver.
 P – Somos todos fóbicos.
Eventualmente... por que não? Não a fobia tal como aparece, no falante,
como patologia, no Campo do Sentido. Mas, enquanto estrutura, o desejo é

200
Sujeito espesso

fomentado pela falta de falta, porque o que falta, realmente falta. Falta inclusive
faltar – é tão radical assim. lstozinho que chamamos de objeto a, de a minúsculo,
é puro representante da falta. Isto é, do Não-Haver. É um substituto representado
modalmente: esse tal furo, que há no Haver, reaparece no modal dos falantes.
Os falantes não totalizam isso porque têm um prazo. Eles têm seu mal-estar na
carne. Além do mal-estar na cultura, existe o mal-estar na carne. Esqueceram de
tratar disto na história pregressa da psicanálise: o falante, substancializando-se
em significante, é um mal-estar, porque ele está aprisionado nesse boneco, nesse
fóssil que é o nosso “macacão” hominídeo. É o ressurgimento dessa máquina
ternária aprisionada no fóssil, num animal, encarnada num corpo fossilizado,
no que binário. Esse mal-estar é mais fundamental do que o mal-estar na cul-
tura, pois a todo momento a gente se choca com esse duro na carne que, ela...
ela não ajuda, ela não acompanha os movimentos do chamado pensamento.
Por isso é que se falou tanto, no passado filosófico, da alma; o corpo, a alma,
o espírito, etc., tentando encaixar essas coisas, pois o boneco é mais ou menos
fixado. No entanto, a competência discursiva é veloz, é transparente, é falha,
é todas essas coisas que a gente diz, e o boneco não a acompanha. É preciso
um malabarismo extremo, uma tecnologia complicada. É preciso muita arte
para fazer com que os movimentos dos Haveres nas suas modalidades possam
acompanhar um pouco os movimentos dos discursos. Por exemplo, ir à Lua, ir
a Marte, deslocar esse boneco através dos espaços... Assim mesmo, de maneira
muito precária... Compare-se isto com o que se faz nos sonhos...

* * *

Donde termos que repensar uma série de coisas a respeito do SUJEITO.


Não é que o Sujeito, dito freudiano, segundo Lacan criticando o sujeito
cartesiano, seja o mesmo. De modo algum. Mas acho que há coisa a se
pensar para equacionar com mais precisão o lugar desse Sujeito e, talvez, até
encontrar um pouco mais de nome para esse tal significante alado, esse negócio
todo que ficou um tanto ou quanto na ordem do inspirado, mas que é preciso

201
O Sexo dos Anjos

baixar um pouco, reduzir isso a um pouco mais de concretude.


Esse tal Sujeito não é outra coisa senão presença do Anjo-Delta no
Campo do Sentido. Mas presença em plenitude. O A-Delta, quando ele passa
pelo Campo do Sentido, onde ele está no vigor do Real, do Simbólico e do
Imaginário no seu percurso, é presença do Sujeito. Esse Sujeito é indicação de
re-presença do A-Delta no Campo do Sentido, em sua plenitude, quer dizer,
arrolando explicitamente a trindade onde havia aparente dualidade, recolocando
a trindade em seu vigor pleno.
Então, esse Sujeito é, na verdade, um Terceiro termo que emerge
no campo que tem aparentemente dois termos. E ele tem que ter uma certa
substancialidade (Res Gaudens), uma certa densidade (Dichter) que, até hoje,
embora isto me pareça bastante sugerido em Lacan, não tem sido devidamente
trabalhada. Fica-se muito satisfeito com dizer que o Sujeito é mero intervalo
entre isto e aquilo, representado de significante para significante. É bem verdade.
Mas será que podemos encontrar um certo lugarzinho com certa densidade, para
arrumar melhor esse Sujeito, como Terceiro, como uma espécie de reivindicador
de um zero não mero interstício entre + 1 e -1?
Sem esse lugar Terceiro, que habitamos o mais freqüentemente na
jogada do Anjo, do Falanjo, o que está sendo representado? A definição de
Lacan é circular: “O Sujeito é aquilo que um significante representa para outro
significante. O significante é aquilo que representa o Sujeito para outro signifi-
cante”. Isto está bem posto, bem montado. Mas será que poderíamos tornar a
perguntar: sim, mas o que é Isso? Haverá alguma densidade, alguma marcação
mais nítida para isso que é representado de um significante para outro, e que
um significante representa para outro? Procuro um pouco mais de densidade
para esse lugar do Sujeito, porque ele tem essa tal relação com essa tal carne,
porque, embora ele reste díspar em relação a ela, por sua emergência, sem ela
ele não emergiria...
Uma vez que entro numa de trindade, seguindo as pegadas de Lacan,
quando ele introduz Real, Simbólico e Imaginário, então quero tratar mesmo
dessa trindade. Aí me parece pouco provável que se consiga manipular essa

202
Sujeito espesso

trindade referenciando-se o Sujeito assim, como mero intervalo. Assim como


tenho um significante e outro significante, e posso pensar um Sujeito no meio,
representado daqui pr’ali, eu me pergunto: um significante, outro significante
e então algo da mesma substancialidade – desculpem o termo, depois arranjo
um melhor – para ser o Terceiro como Sujeito. E que tenha um lugar mapeado,
que se possa desenhar o mapa desse Sujeito. Acompanhar a topologia de Lacan
foi algo extremamente rico. Manipulando sua topologia, Lacan conseguiu dar
passos incríveis. Mas eu me pergunto se não é hora de se dar um pouquinho
para trás e procurar mapeamentos um pouco mais caretas, pois a topologia as-
segura certas estruturas, mas é bem delirante na mão dos analistas.
Será que, por exemplo, uma geometria projetiva, que não é nem
quantitativa (tão demarcadamente quantitativa) quanto a euclidiana, nem tão
elástica quanto a topologia combinatória, não nos dará mapeamento um pouco
mais organizado, didático que seja, ou mediador de produção de teoria? As
questões das quantidades, se não são postas no sentido de mensurá-las com
régua e compasso, mas pelo menos no de pensar o mais para lá, o mais para cá,
são importantes. Tudo isto teve que ser abandonado pela psicanálise por causa
do esforço de articulação estrutural, mas eu me pergunto se agora, esse passo
dado, não se pode pensar em relações de projeção que amarrem um pouco mais,
mapeiem um pouco mais esses achados lacanianos.
Afora tudo isso, tenho uma necessidade operatória. Lacan pensou
Sujeito, significante, etc., partindo de um estatuto bastante devedor, embora
seja diferente, ao seu momento histórico de pensamento, se bem que ele se
defastasse disso. Mas, no seu próprio encaminhamento, lá adiante ele entra
de chofre no regime da trindade. E daí não sai mais. Então, deve ser possível
repensar tudo, agora, de trás para frente, a partir dessa última trindade. Não
definindo um significante, outro significante e Sujeito, mas a partir disso de
que o que há é Real, Simbólico e Imaginário, onde se situam gozo-do-Outro,
gozo-fálico e Sentido; onde se situam posição masculina e feminina, o que é
compatível com as fórmulas quânticas. E por que não situar Sujeito (objeto),
significante-mestre, significante do Outro? Por que não amarrar aí?

203
O Sexo dos Anjos

Vocês viram que dei uma pequena guinada redefinindo Real, Sim-
bólico e Imaginário. Na verdade, quando Lacan apresenta o Simbólico dele,
é no jogo da diferença já dada. E o Simbólico só é bem definível no
pensamento lacaniano no regime da metáfora. O Simbólico puro, o jogo
da pura diferença, é um conceito que ali não tem surgimento, senão
ancorável. É preciso pensar o metafórico para se pensar o Simbólico de Lacan.
Então, postulei um Simbólico que é puro jogo de cisão, para a diferença. Agora
é, lá dentro, articular esse metafórico.
Um significante, pensando numa articulação muito abstrata, ele
é, no nível do pensamento lingüístico, uma marca que funciona por
diferença com outras marcas, mas que não comparece (por exemplo, no
seio da língua) senão encarnado em alguma formação imaginária. Não
é por bobagem que Saussure fala em “imagem acústica”. E, sem o jogo
das imagens, não se estabelece nenhuma diferença. É claro, não estou
denegando que Saussure mesmo podia ter pensado isto e que Lacan o leva
mais adiante. É que o que interessa no conceito de significante é esse jogo da
diferença. Mas acontece que ele aparece encarnado numa materialidade
modalizada, configurada. Então, posso compreender o jogo do significante
como a diferença mais encarnação, embora não possa lhe atribuir significação
fora de um Sistema, fora de uma ordem de diferenças, mas modalizado.
Assim, um significante dado na minha experiência concreta, ele é Real,
Simbólico e Imaginário. Mas a gente fica tratando disso como se fosse a ordem
pura do significante, sem Real e sem Imaginário. Eu quero o jogo da diferença,
um Sujeito substancializado ali no meio, jogando com esses elementos que
são da ordem do Real, do Simbólico e do Imaginário, e se articulam na sua
diferença não só de Real para Simbólico ou para Imaginário, mas com outros
efeitos que o amarram.

* * *

204
Sujeito espesso

Esta triangulação aí é no sentido de articular certas coisas. Tenho ali


no centro, A Delta. Vimos que ele comparece nos seus ESTADOS de Real,
Simbólico e Imaginário. Segundo o Esquema Delta, o que comparece como
EXPEDIENTES entre esses estados expedientes de desejo – são: gozo-fálico,
gozo-do-Outro e gozo-do-Sentido.
Vejamos o quadrinho seguinte:

205
O Sexo dos Anjos

Real com Simbólico: gozo-fálico; Imaginário com Real: gozo-do-Outro;


Imaginário com Simbólico: gozo-do-Sentido.
Trata-se de memória de diferença dos estados entre gozos. Num estado
x, a memória de curso é referida tanto à entrada quanto à saída desse estado.
Isto é, no gozo de tal estado, há referência desse gozo a um gozo anterior e a um
gozo posterior, premido pelo movimento do desejo. Cada gozo é a mudança de
estado anterior para estado posterior: GRADIENTES de diferença. No caso do
falante, essa memória é evidente: no que passa de gozo-do-Sentido para gozo-
fálico ou para gozo-do-Outro, etc., o Sujeito tem memória dessas experiências
de mudança de gradiente no gozo. Posso atribuir isso até ao Universo. Mas, no
caso do falante, me parece evidente que qualquer Sujeito tem a memória dessas
diferenças de gradiente no gozo. Há mesmo a nostalgia, ou seja, desejo de recusar
esses gradientes. O Sujeito quer passar pelo gozo da produção de sentido, o
gozo dito fálico, o gozo da saída mística pela tangente; são experiências que o
Sujeito guarda, o Sujeito que se permite lá a quem é permitido passar por essas
coisas. Durante a permanência num estado x há, então, permanência num gozo
referido distintamente a dois outros gozos.
Essa dupla referência de cada gozo a, primeiro, um gozo anterior, e,
segundo, um gozo posterior, tem como efeito, a cada referência, um gradiente.
A referência de cada gozo a um gozo anterior e a um gozo posterior tem como
efeito, a cada referência, um gradiente diferente. Vou dar nome a esses gradi-
entes. No que o movimento está se produzindo, no que o Haver é Real, Simbólico
e Imaginário com os expedientes decorrentes nessas interseções chamadas
gozo-fálico, gozo-do-Outro e gozo-do-Sentido, a memória desse processo é
um gradiente mais adiante, um gradiente, por exemplo, entre gozo-do-Sentido
e gozo-fálico. Qual é a experiência de gradiente entre gozo-do-Sentido e
gozo-fálico? E a entre gozo-fálico e gozo-do-Outro? E a entre gozo-do-Outro
e gozo-do-Sentido? São três experiências diferentes de gradiente. A coisa está
em movimento. Estou em um ponto qualquer. Este ponto, na memória, está em
vigor num estado, para chegar ali, mas ele tem memória. Se ele está no gozo-
do-Sentido, tem memória de diferença de gradiente entre gozo-do-Sentido e

206
Sujeito espesso

gozo-do-Outro. À memória desse gradiente, que é concebida em termos de


que o Haver não perde sua memória, em qualquer estado, é que quero dar um
nome e destacar uma função. Essa experiência de gradiente é que vai permitir
fabricarem-se as modalidades possíveis dentro do Campo do Sentido.
Então, digamos que entre o gozo-fálico c o gozo-do-Sentido, eu tenha
um gradiente – agora, estou experimentando a diferença de gradientes – e isso
dá no que quero chamar de Articulação (AR). O que se possa conceber como
Articulação é da ordem da referência à diferença de gradientes entre gozo-fálico
e gozo-do-Sentido.
 P – Vai ser o mesmo, se eu estiver no gozo-fálico, pensando no futuro, no
gozo-do-Sentido eu tenho AR.
Dá na mesma, é diferença de gradientes, na interseção.
 P – Se estou no gozo-do-Sentido, pensando para o passado no gozo fálico,
tenho o AR.
Tanto faz. A questão é a diferença de gradientes entre esses gozos.
 P – Mas você está num deles, sempre estará num deles.
Sim. Se estou no gozo-fálico, por exemplo, e faço uma referência ao
gozo-do-Sentido, estou no regime da Articulação. Se estou no gozo-do-Sentido,
passando por uma referência ao gozo-fálico, estou no regime da Articulação.
Gozo-fálico, produtor de explosão, de diferença; gozo-do-Sentido, produção de
algum processo entre essas diferenças. É preciso pensar na explosão e na relação
entre os explodidos. Por exemplo, se tenho A/B, a questão da articulação aqui
está entre a distinção, separação de A e B e a possível transação entre A e B. E
isto que quero chamar de Articulação, pensando na transação dos separados e na
separação. Há que se referir às duas coisas. Isto é que é articular, em qualquer
nível. Mesmo no nível dos elétrons, há partição e transação, quer dizer, interação.
Processo de partição – o gozo-fálico como processo explosivo – e interação
entre os explodidos, isto faz a Articulação. Ainda não é aí o Imaginário. Não é
a coalescência do A, é a interação. Se tenho duas coisas diferentes e considero
sua separação e sua interação, estou em Articulação.
Entre o gozo-do-Sentido e o gozo-do-Outro, temos o que quero chamar

207
O Sexo dos Anjos

de Sistema (ST). Não sei se dei nomes bons, mas vamos por aí... Vamos evitar
as definições já conhecidas, como da Teoria dos Sistemas e outras, e pensar
simplesmente que entre o gozo-do-Sentido, ou seja, a transação equivocante dos
partidos na cisão Simbólica e a intenção da coalescência imaginária, intenção de
gozo, como gozo-do-Outro no desejo de singularização, enquanto projeção para
o Não-Haver, o gradiente de diferença que se oferece é de caráter sistêmico.
Prefiro este termo de Sistema por causa da idéia de sistência que bem
cabe aí. Quando se trata de explosão e interação, penso em termos de Articu-
lação. Quando penso em termos de Sistema, já não estou articulando, já estou
considerando a interação e o seu fechamento. Interação e singularização. Aquilo
se torna Sistema, é sistente.
Entre o gozo-do-Outro e o gozo-fálico, é o que poderíamos chamar de
Traço (TR). Será que é válido chamar isso assim? Veremos... Uma referência de
gradiente entre o que é da ordem do explosivo e do implosivo, é uma diferença
drástica, catastrófica. E isto, no seio mesmo do Haver, é experiência do encontro
com o Real, um tento, uma batida. Na experiência do falante é tiquê. Tiquê é fun-
dadora, marcadora de traço-unário. Ou seja, o que é pensável como traço-unário
vige na Articulação entre gozo-do-Outro e gozo-fálico, catástrofe nessa oposição
radical. Uma porradita de encontro faltoso com o Real, marcando tento: Tiquê.
No caso da fundação de um Sujeito, é uma certa marca. No caso da
fundação de uma partícula subatômica, também. Pega-se um animal e se vê
isto com certa clareza. Para nós já fica mais difícil, porque gente já tem outras
atrações, Mas na conjuntura de Sistema-Traço-Articulação, as modalidades
se definem. Podemos ver que, na segunda fila do nosso quadro acima, cada
um dos expedientes, decorrentes de Real-Simbólico-Imaginário, é efeito de
interseção de apenas dois estados. O gozo-fálico é só Real com Simbólico.
O gozo-do-Sentido é só Imaginário com Simbólico. O gozo-do-Outro é só
Imaginário com Real. A partir da terceira coluna, o que quer que compareça já
é Real e Simbólico e Imaginário, pois o que é gradiente de Articulação entre
gozo-fálico e gozo-do-Sentido, por exemplo, é, por sua vez, formado de Real
e Simbólico e Imaginário. O Sistema, que é também referência de gradiente

208
Sujeito espesso

de dois expedientes, no entanto tem Real e Simbólico e Imaginário. A coisa


vai se tornando cada vez mais complexa, pois a partir da terceira coluna, o que
quer que funcione, já funciona com as três referências de Real e Simbólico e
Imaginário. A partir daí, já não preciso me referir diretamente a Real e Sim-
bólico e Imaginário, pois tenho essa gradiência entre experiência de um gozo
e experiência de outro gozo. Essa diferença, esse gradiente referencial.
 P – Só uma pergunta; no sentido de saber... como é que você chegou a isso?
Ah, foi Deus! Foi Deus! Caiu-me do Céu! Eu sou um inspirado!
 P – Mas essa inspiração tem razão de ser. Veja pela disposição das letras
R, S e I. Você tem, para Sistema, implicados Simbólico, Imaginário e Real. E
para Articulação e para Traço, você tem, na ordem da disposição de registros:
Real, Simbólico e Imaginário e, depois, Imaginário, Real e Simbólico. Há aí
uma questão de orientação do Nó Borromeano.
O que vou dizer daqui para a frente vai ser um bocado difícil de engolir.
Mesmo eu, acho difícil. A partir da terceira coluna tudo já é Real e Simbólico
e Imaginário. O que é que pode existir como efeito de referência a Sistema e
Articulação?
 P – É o Ego.
Não! É o Sujeito. Se isso fosse sistêmico, se fosse só um peso sistêmico,
podia ser Ego. Mas isso é referência a Articulação e Sistema. O tal do Sujeito,
vejam bem, ele é Real e Simbólico e Imaginário. Ele é também gozo-fálico,
gozo-do-Outro e gozo-do-Sentido. Estão todos os estados e todos os gozos
na sua referência, mas ele se postura como tal, referenciando-se a produto de
Articulação e de Sistema.
 P – Você poderia pensar Sujeito entre Traço...
Ele não se articula a Traço. Não é preciso referi-lo a Traço para pensar
o Sujeito.
 P – Entre Traço e Articulação, você necessitaria Sujeito.
Mas o Sujeito enquanto tal não precisa de nenhum Traço para se dispor.
É claro que ele só se marca, se particulariza, com referência ao Traço, mas o
que quero dizer é que o fundamento sobre o qual vai se assentar a eficácia

209
O Sexo dos Anjos

substantiva do Sujeito, para haver Sujeito, bastam-lhe Sistema e Articulação.


E ali vai ser adscrito um Traço. A espessura que estou postulando, a substan-
cialidade, para esse tal Sujeito, é sua referência pregressa, não a futura, não
a discursiva. Aí, onde há lugar para o Sujeito emergir, é como produto de
Articulação e Sistema. Estou antes, nos pratrásmentes do Sujeito determinado
por Lacan. Estou arranjando um lugar para ele dentro do Esquema, um lugar
onde ele terá assentamento. É claro que tal assentamento se expressará em
função de significante.
O que poderá haver entre Articulação e Traço? Significante. Mas
qual? O S1, como Significante-Mestre, refere-se a Traço e Articulação. Daí a
importância de marca (dado o Traço) que ele tem, na sua mais direta remissão
ao gozo-fálico, no que este sobrevém como catástrofe do gozo-do-Outro. Daí
também (dado o encontro faltoso com o Real) seu valor de articulação em
questa de Sentido.
Veremos depois que esse S1 vai funcionar como projetante no Imaginário,
o que nos fez, por muito tempo, confundi-lo com o Ego, dado seu valor de
imposição configural.
O que poderá haver entre Sistema e Articulação? É significante, tam-
bém. Agora, o chamado S2.
O significante do Outro é aquele que, na minha referência, se inscreve
entre Sistema e Traço. Ele não é nem Traço nem Sistema: ele se inscreve na
referência dupla a Traço e a Sistema. Tenho aí a fundação do Saber (do Outro)
como alteridade ao Significante-Mestre de um Sujeito.

* * *

Esse quadrinho aí, e esse Esquema, podem ajudar a pensar trinariamente


a questão do Sujeito, do significante, etc. Vejam o que acontece a partir da
quarta coluna. Depois posso fazer a álgebra disso. Vocês verão como, e isto é
fácil de ver no esquema euclidiano que está ali. Considerem os triângulos pa-
ralelos entre si e considerem o quadro. A partir do terceiro triângulo, triângulo

210
Sujeito espesso

de acumulação de Articulação e Traço e Sistema, tudo já é Real e Simbólico e


Imaginário. Ora, o triângulo de $, Sl e S2 é paralelo ao triângulo de AR, ST,
TR. Então, tudo ali não só é Real e Simbólico e Imaginário, como é gozo-
fálico e gozo-do-Outro e gozo-do-Sentido. Assim, a referência do falante,
de dentro da ordem discursiva, pode ser pensada só em termos dos gozos, na
medida em que há um certo eco, distanciado, com possibilidade de reduzir o
triângulo do Sujeito e dos Significantes, aos gozos, porque são de um naipe
proporcional anterior.
É preciso andar de trás para a frente e de frente para trás. Como é que
pode haver Sujeito antes ainda de significantes? Leiam, vejam bem. O Esquema
pleno é este que está aqui. Então, se penso em Sujeito, não devo tomar os outros
vértices do triângulo desse naipe, Sujeito entre significantes. O que aconteceu
aqui é que apareceu um Sujeito não como mero intervalo, mas bem situado
num vértice, embora ele possa ser representado de um significante para outro
significante, sendo que estes significantes têm estruturas diversas. Há pelo
menos um significante que se produz entre Articulação e Traço, e outro, que
se produz entre Traço e Sistema.
 P – Você poderia considerar isso como alguma coisa de importante ou você
acha de somenos?: o $, ele tem dois S, um I.
Quando fizermos a álgebra, vamos entrar nisso aí.
 P – Você vai ver que no S1 vai ter dois S e no S2 vai ter dois I.
Isso só vai, em termos de geometria projetiva, dar em diferença de
projeção, mas se você fizer a álgebra, vai ver que a coisa se anula.
 P – Cadê o a?
É mesmo, não tem a no meu Esquema? Ora, no esquema de Lacan o
objeto a está na nodulação de Real e Simbólico e Imaginário, assim como o
objeto a está na nodulação de $/S1/S2. O tal objeto a não é senão o A-Delta em
outro nível de representação. Eu disse lá atrás que o a não é nada mais nada
menos do que representante substituto da falta. Mas é representante substituto
daquele Haver para o qual a falta Não-Há, que sente a falta. Portanto, o a é
representante-substituto do próprio A-Delta.

211
O Sexo dos Anjos

 P – É memória de A-Delta em seu estado original.


Uma memória meio fajuta, porque parcializada...
Pode-se colocar o a por cima do A-Delta. O centro aí é o do mesmo
triângulo. Vejam que o Sujeito ficou um pouco deceptivo. Ele pode ser muito
importante, mas importante mesmo é o a, é o Haver em suas modalidades e suas
reaparições. E o Sujeito vai lidando com isso, do seu mero canto... Gostaria de
botar o Sujeito em seu devido lugar, para ele deixar de ser besta...
Podemos colocar o a logo depois de qualquer das colunas do quadro.
Pois o a surge antes ainda do falante: In natura. No regime de Articulação e
Sistema e Traço (também in natura), já há movimentos desejantes atrás de
seus objetos. Objetos extremamente demarcados para um cachorro, um gato,
por exemplo. Só que o objeto, para o falante, vai receber um outro estatuto:
ele vai ser discursável. Estão aí, lacanianos, os elementos dos discursos: S1,
S2, a e S.
Queira Deus que este Esquema funcione! Da próxima vez eu lhes faço
o gráfico projetivo, que esclarece melhor.

16/OUT

212
Solércia

3
SOLÉRCIA

Gostaria de fazer uma observação que certamente mereceria trabalho


mais demorado. Prometo que depois volto ao nosso assunto, mas me pareceu
urgente falar... Urgente por causa da minha leitura. É um parêntese dentro deste
Seminário, o qual só faço porque de repente fica ali na mão como alguma coisa
mais ou menos comprobatória. É algo que também ajuda a propiciar minhas
heresias eventuais, na medida que é bem verdade – Lacan decretou assim – que
é proibido analisar o pai. É claro que é proibido analisar o pai – não é proibido
analisar a obra do pai. E, eventualmente, fazer certos descontos. Insisto em dizer
que, os sujeitos, do ponto de vista do seu achado significante, do seu achado
de fantasia, podem passar por uma boa análise, e até reduzir algum suposto
irredutível. Mas não creio que a gente consiga, a não ser por golpes, golpes de
estrago no significante, reduzir a neurose do seu próprio tempo. Há que levar
isto em consideração, mesmo quando se trata de eventuais impotências dos
nossos maiores. O que não os diminui, de modo algum, muito pelo contrário.
Ainda estamos no combate que foi preciso ser travado para que eles dissessem
algo importante.
Quero me referir ao fato de que não podemos deixar de manter a
questão: “O que é psicanálise?”. Não só porque ninguém sabe o que isto seja,
já que A Psicanálise não existe, como também porque é preciso manter em
exercício o discurso analítico, mesmo diante de coisas bastante assentadas,

213
O Sexo dos Anjos

e até diante de frações eventuais de ideologemas mais ou menos escuros na


reflexão dos que tentaram. Creio que a neura de situação é muito grave. Ficar
livre de certos recalques abomináveis no seio da chamada cultura é coisa muito
difícil. E mesmo que não se vá analisar o Dr. Freud ou o Dr. Lacan, é preciso
certa suspensão.

* * *

Esta experiência de hoje diz respeito a algo que sempre me soou como
da ordem do recalcado na história de Freud com a psicanálise. Ouso colocar
essa dúvida atrás da orelha dos analistas. Vocês conhecem o “namoro firme”
que houve entre Freud e Fliess. Namoro que se tornou, no só-depois, só-depois
da primeira análise, aquela que Freud conseguiu propiciar no lugar de analista,
tornou-se fundamento, ou protótipo para o evento psicanalítico. A tal ponto que
Freud chega mesmo a garantir por escrito que a psicanálise não existiria sem
o tal Fliess. Fliess é delirante em seus escritos, nas coisas que faz, e que Freud
ajudou a fazer, questionadíssimos. A relação que Fliess queria estabelecer entre
os órgãos genitais e o nariz... Coisa de que não sei se a gente deve rir, porque
não há prova em contrário.
 Pergunta – A cafungação está aí.
A cafungação ali era aconselhada. Uma terapia prescrita. No caso, por
exemplo, da masturbação que afetava certos nódulos nasais do Fliess. Então,
cocaína nele! Não sei o que isso tem a ver com a cheiração contemporânea...
mas quem sabe? O próprio Freud andou por ali...
Bom, a questão não é esta, e sim que há um recalcamento brusco,
repentino, e parece que duradouro, das relações “nasais”, digamos assim, de
Freud com Fliess. Temos as cartas de Freud a Fliess. Certamente que Fliess
guardou as do outro com muito carinho. Ninguém acha as cartas de Fliess para
Freud. Isto é muito interessante, se não for Unheimliche. Aquele negócio de
esfregar nariz. Suspeito mesmo que Freud tenha rasgado esses documentos. Fico
devendo, se encontraram os papéis. Faço a suposição de que ele exterminou

214
Solércia

essas cartas. Freud queimou esses papéis meio comprometedores e estabelece-se


aí um recalque que vai ficar pela história da psicanálise, sem que se faça uma
força para retornar, que é a questão justamente do nasal. Freud se envolveu de
tal maneira com as peripécias de Fliess, que chegaram juntos a quase matar
a moça lá. Para “curar” a masturbação da moça, não sei, resolveram operar o
seu nariz. Botaram cocaína, fizeram o diabo, depois operaram o nariz da moça:
pegaram um vaso arterial e aquilo não parava de sangrar. A moça já estava quase
morrendo... foi um inferno na vida daqueles dois, veio à tona o caso todo... uma
coisa horrorosa... A coisa ficou tão grave, tão patética... De repente, num texto
por escrito, ele dizia que essa moça estava sangrando por histeria. Chamava o
sangramento da moça de histérico. Impressionante...
Sabemos que Fliess escreveu um livro importantíssimo – que foi
publicado até no Campo Freudiano, no tempo de Jacques Lacan na direção –
chamado As relações entre o nariz e os órgãos genitais femininos representadas
segundo suas significações biológicas, onde ele lança a idéia de relação entre
esses órgãos e a periodicidade vital, herdada exclusivamente da mãe. Coisa
interessante: a periodicidade masculina vinte e três, vinte e oito dias, herdada
diretamente da mãe... Ele marcou até a data para Freud morrer. Não deu certo,
Freud insistiu em ficar vivo, mesmo apesar do câncer. Não sei se há relação.
De repente tem, não sei como anda a fisiologia nisso tudo...
O que nos importa é que Freud chama atenção para o fato de que faz
parte do processo de humanização, do primata ao homo sapiens, um afasta-
mento em relação ao cheiro. Ele até faz associações meio bobas sobre a época
de passagem do quadrúpede ao bípede. Fica-se de pé, o cheiro fica distante,
essa coisa toda... É claro que a gente não tem mais aquela facilidade, que têm
os quadrúpedes, de poder passar o narizinho nos lugares em que às vezes até
gostaríamos mesmo de passar. Mas a gente tem mão, dá-se um jeitinho...
Mas é um espanto. Sempre me pareceu espantoso. Nunca abordei isso
mais de perto, menos ainda publicamente, porque ninguém me havia apresen-
tado alguma coisa de exterior à psicanálise que me oferecesse um esteio que
me parecesse plausível, ainda que fosse por ficção... Acontece que... Vocês

215
O Sexo dos Anjos

certamente ouviram falar de um romance que ficou famoso, de repente, tipo


best-seller, de um chamado Patrick Süsskind, de nacionalidade alemã, romance
chamado O Perfume. Não sei se já leram... Leiam! É um péssimo escritor!
Clare lsabella Paine, aqui presente, está me olhando de olho arregalado porque
ela sabe que detesto romanceiros e que para eu conseguir ler um romance até
o fim... Eu li todinho. Marquei, anotei, fiz tudo direitinho. Não importa que
isso não seja boa literatura. O que é interessante é que o homem faz ali uma
tese. Isso para mim é uma tese, embora ficcional, a respeito do cheiro, do
odor. Parece que ele, ainda que ficcionalmente, vem demonstrar que se pode
tomar o cheiro, ou o que quer que tenha a ver com o nasal (lá na influência do
Freud), como da ordem do pulsional, do objeto (da constituição de objeto) e
da sublimação. Não vejo porque não existir um objeto a chamado aroma. Não
há porque: o a’roma.
O aroma, se quiséssemos fazer um aparato do Seminário II, de La-
can, naquela parte do olhar como objeto a minúsculo, poderíamos (e isto é
uma tarefa que alguém pode tomar mais adiante) demonstrar do aroma como
objeto a minúsculo. A questão do sujeito, a do quiasma olfativo, mesmo a
anamorfose olfativa, isto é evidente no texto do tal romance. Anamorfose
no sentido de, por exemplo, o cheiro transubstanciado, por sublimação, em
perfume: um odor qualquer, da pior origem eventualmente... mesmo que a
origem seja, vamos dizer, de merda, revirado em perfume por decantações e
escolhas, aromáticas, de seus traços fundamentais, etc., e que se transformam
num excelente perfume...
Trata-se da história de um certo personagem chamado Grenouille que
acho muito interessante, é da pior espécie, da pior nascença, coisa abjeta, e
tem toda sua vida dimensionada por um talento olfativo exacerbado. Desde
criança ele consegue fazer qualquer coisa no escuro, porque localiza à distân-
cia, “vê” o cheiro de tudo. Há um defeito grave no texto: para fazer a ficção
desse objeto a, ele ter invocado, o autor, alguma coisa diabólica, algo especial
demais. O protagonista não teria ele próprio um cheiro. Ele não tinha cheiro.
Este era o problema dele: não tinha cheiro próprio. Não tinha cheiro humano,

216
Solércia

não tinha nenhum cheiro. Nasceu assim. As babás o rejeitam, porque parece
filho do diabo. Isto não era preciso. Para o autor fazer a demonstração, isto me
pareceu rebarbativo. Mas ele realmente demonstra a possibilidade da situação
de um objeto a e de um movimento pulsional de que a gente se esquece. Ficou
recalcado, no campo da psicanálise, mas comparece no divã. E comparece na
história da gente, nos cheiros fundamentais...
 P – Isso é da ordem do respiratório.
Todo o processo é respiratório... e nos esquecemos dessa coisa que o
romance, como tese, nos devolve de um grande mundo dos cheiros. Um mundo
dos cheiros de que a gente não fala. E que vai dar nessa grande indústria do
perfume, na tradição milenar das essências, etc. Isto é fundamental, me parece
um recalque na história da psicanálise: não se fala mais nisso, já que deu merda
no começo. Mas é preciso recuperarmos o aroma como objeto a minúsculo. É
alguma coisa. Esse autor mostra esse princípio de relação entre as pessoas, de
aproximação, de afastamento, de que você não se dá conta. Ele diz que é da or-
dem do aroma. As pessoas não se dão conta disso. O cheiro como significante,
repito: o cheiro como significante. Às vezes temos repelência por um certo odor,
atração por outro. Cada um deve ter também o seu cheirinho mais precioso.
Há vocações eróticas e gozantes as mais unheimlíchicas. Nós, brasileiros, por
exemplo, a gente nunca vai ficar livre da beleza do budum. Está nos textos de
Gilberto Freyre. Havia, por exemplo, entre os senhores de engenho, no nordeste
– isto me lembro que está num texto de Gilberto, não sei se em Casa Grande –,
uma dificuldade erótica dos filhos do Senhor de Engenho: eles se casavam e
broxavam na noite de núpcias. Então, as jovens esposas eram aconselhadas, por
suas mães, a vestirem as roupas usadas das crioulas da favela. Porque se não...
 P – Não é da favela, é da senzala.
É. Da senzala. É a mesma coisa. Eu não peguei a senzala, eu só tenho
a minha família. Não peguei, infelizmente. Cada um goza como pode...
É interessante isto: uma prova que não é ficcional. Gilberto conta isto
como um fato corriqueiro.
 P – Na Alquimia, a experiência com os textos alquímicos é justamente a de
se ficar numa sala fechada, com um cadáver, até o momento em que desse

217
O Sexo dos Anjos

cadáver, o cheiro se torne um perfume raro.


Há um instante em que a coisa transcende do cadavérico para o floral.
Isto é verdade, está nos textos alquímicos. Lembro-me de que o velho Silva
Melo – vocês talvez não se lembrem bem dele – chamava atenção, nos seus
livros sobre medicina e cultura, para o fato de que os médicos estavam perdendo
a sensibilidade, sobretudo no que diz respeito ao cheiro. Ele ainda era do tempo
em que o médico se aproximava nasalmente do cliente e suspeitava assim o
diagnóstico, pelo teor odorífico do paciente. Silva Melo aconselhava que não
se cagasse em privada, porque a gente perdia as relações mais íntimas com a
própria merda. Ele diz que no tempo do penico havia uma relação...
 P – Era um sábio...
Um sábio naquele casarão. Aliás, ele pegou o casarão que possuía, ali
no Cosme Velho, e deixou para a “Fundação dos Negros”, a qual não existe. A
família ficou em polvorosa. Para a Fundação dos Negros... Ele era chegado...
O que nos interessa é fazer retornar recalque. Temos que botar dentro
da psicanálise o aroma como objeto a minúsculo e tratar dele em termos de
escuta, porque isso funciona. Está lá. Não é degradado, como aparece em certos
pontos do texto de Freud, não é relegado a um passado sem retorno, porque é
também da ordem do hiperverbal. A fabricação do perfume é coisa extremamente
sofisticada, como o é a culinária que remete à pulsão oral.
 P – Em Amsterdam há o Museu dos Trópicos, onde procuraram retratar não
sei se quatro lugares. Você vai andando pelos lugares, e eles procuravam um
ambiente típico, com o cheiro do lugar.
É, a ambiência odorífera. Tentou-se isto no cinema, foi um desastre.
A superposição de cheiros numa sala fechada acabava dando numa bagunça
olfativa. Mas tentou-se o cinema com cheiro. Faltava uma escansão – como a
praticada na arte de certas cozinhas.
 P – Sabe quem usa isso muito bem? Esse Thomas Green Morton. Ele tra-
balha com esse fenômeno, de um aroma. As pessoas sabiam da chegada dele
por causa do aroma.
Eu tinha um professor, na Escola Militar, um coronel, cujo apelido era
“cheirosinho”, porque ele andava, no bolso da camisa, com um chumaço de

218
Solércia

ervas secas. Ele cheirava assim a dez metros. Sabia-se quando ele estava dentro
do quartel. Ele fazia questão daquela sua presença aromática. Acho que há uma
certa urgência de reintroduzir isto... Se não do lado dos Coronéis, ao menos do
lado geral dos narizes, quando a coisa feder de novo.
 P – Mulher ciumenta transa muito isso de cheiro.
O ciumento, de qualquer sexo ou idade, sabe exatamente qual o cheiro
do Outro.
 P – Esse último livro do Garcia Márquez é todo em cima disso. Ele saca pelo
“sniff, sniff”.
O “faro” é uma metáfora extremamente importante. O Faro, para o
psicanalista, existe. Não que seja necessariamente nasal. Mas deixemos...

* * *

Retornando, apresentarei o gráfico projetivo que prometi da vez anterior.


S2, enquanto saber, resultando da interpolação entre Sistema e Traço.
Lacan, na sua formulação dos discursos, substituiu o valor do Outro por S2.
Quer dizer, ao invés de lidar diretamente com o Outro na sua alteridade radical,
ele citou esse Outro como saber inconsciente. Então, é da ordem do Sistema e
Traço: S2 constituído como um saber, ainda que inconsciente. Num movimento
de fala de um sujeito, há movimento articulatório além dessa referência de
Traço na Articulação. S2, como campo de organização de significante, como um
saber organizado, é um conjunto de marcas, de traços distintivos, organizado
sistemicamente. Quando digo sistemicamente, não estou me referindo neces-
sariamente à teoria dos sistemas, e sim à remissão necessária de um significante
a outro significante, fazendo cadeia e organizando, portanto, um campo com-
patível com o conceito mesmo de significante em Lacan. O significante o é no
jogo da diferença e na remissão horizontal e vertical às séries significantes. É
nesse sentido que estou colocando o que é sistêmico. Pega-se um significante
qualquer, numa língua, ele tem traço distintivo e se organiza, se localiza, na
referência recíproca a essa série onde ele se insere. É nesse sentido que estou

219
O Sexo dos Anjos

falando dessa vontade sistêmica, essa vontade de referência recíproca, que não
é necessariamente biunívoca, aos elementos.

O que é da ordem do Significante-Mestre é da ordem do Traço, mas só


vai ter valor, só vai se fazer valer, no sistema do saber, por sua índole articu-
latória. Não podemos nos esquecer de que essa série de triângulos é progres-
siva. Esse conceito de Articulação posto ali é no jogo do gozo-do-Sentido com
o gozo-fálico. Podemos pensar isto em termos de produto cartesiano, de dois
eixos. Se pegarmos então, o eixo do gozo-fálico e o do gozo-do-Sentido, é isto
que estou chamando de Articulação. O produto cartesiano do gozo-fálico com

220
Solércia

o gozo-do-Sentido – é um outro modo de representação. Gozo-fálico, lá no


Esquema Delta, não é senão efeito da explosão. Ainda não é o movimento que
estou chamando ali de Simbólico, o qual já entra no gozo-do-Sentido. Então:
Articulação do gozo-fálico com o gozo-do-Sentido é o que permite, no campo
do que começa a ser o de vigência do simbólico, até à vigência imaginária,
de um processo de articulação entre a explosão e a expressão agonística (que
seria o termo correto), o agonístico gozo-do-Sentido: essa polêmica da entropia
com a neguentropia.
 P – Mesmo que a gente abstraia Sistema, Traço e Articulação e se lembre do
triângulo, a coisa dá certo. A relação entre imaginário e simbólico para Lacan
é da ordem do Sentido. Por isso se abate sobre o Sujeito. A relação entre o real
e o simbólico é da ordem do Sintoma, portanto, do gozo-fálico. A relação entre
o real e o imaginário é da ordem do gozo-do-Outro e tem a ver com o saber.
 P – O que é Traço?
O que quero chamar de Traço aqui é produto cartesiano do gozo-fálico
com gozo-do-Outro.
A tentativa é a de pensar um pouquinho em nível de geometria projetiva:
estabelecer três eixos cartesianos, em nível de espaço, de terceira dimensão, e supor
um ponto de interseção dos três eixos, como A-Delta. Temos três planos cartesianos,
um triedro cartesiano. Três planos ortogonais de representação. Com estes planos,
tenho Real, Simbólico e Imaginário. O plano horizontal, o plano do Real; o plano
vertical, o plano do Imaginário; o plano de perfil, o plano do Simbólico.
Se os três planos são Real, Simbólico e Imaginário, tenho os eixos
representados como: gozo-do-Outro, gozo-do-Sentido e gozo-fálico. Então,
tenho um triedro cartesiano representando os estados que são em última
instância o a: pouco importa se isto é temporal ou espacial. E na interseção,
passagem de um plano para outro, os Gozos. Se tomo o triedro e o corto, num
canto, estabeleço com esse corte outro plano e tenho um tetraedro não-regular,
um tetraedro que tem um vértice ortogonal.
Gozo-do-Sentido e gozo-do-Outro, é Sistema. Gozo-do-Sentido com
gozo-fálico, é Articulação. Gozo-fálico com gozo-do-Outro, é Traço. O que

221
O Sexo dos Anjos

está sendo chamado aqui de Sistema, Articulação e Traço, são arestas, as três
novas arestas surgidas com esse tetraedro constituído por Real, Simbólico e
Imaginário como faces. Gozo-do-Outro, gozo-do-Sentido e gozo-fálico, além
de Sistema, Traço e Articulação, como arestas desse tetraedro.

* * *

Surge ali um plano novo. Isto terminou na terceira coluna. Esse tetraedro
morre na terceira coluna. Então, posso supor uma série muito grande de eventos
dentro do Campo do Sentido – considerado como Campo do Sentido divino,
ou seja, do Outro enquanto está nesse estado –, do A-Delta enquanto se mani-
festando nesse estado. Digamos, em estado de Natureza. Há, então, uma série
infinita de eventos que não precisam de mais do que as razões desse tetraedro
para existirem na fundação dessa nova face, dessa quarta face do tetraedro. Ou
seja, antes ainda que apareça o fenômeno do falante, posso considerar que os
elementos modais da chamada physis, da chamada Natureza, inclusive os
próprios animais, se podem compor suficientemente nessa razão tetraédrica,
quer dizer, podem ser considerados a resultante, como quarta face, dessas conju-
gações. A partir da terceira coluna, Real, Simbólico e Imaginário já se repetem.
Qualquer elemento, daí por diante, já é Real, Simbólico e Imaginário.
Então, podemos considerar uma série infinita, senão mesmo toda a
série de eventos ditos naturais, como estando por ali. É possível talvez repre-
sentar assim, a emergência do falante que, ao invés de ser, como supúnhamos,
re-emergência de Real, Simbólico e Imaginário, é re-emergência dos Gozos,
o segundo ciclo dos Gozos.
Primeiro ciclo: Real, Simbólico e Imaginário. Aparecimento dos Gozos.
Aparecimento desse produto cartesiano novo que inclui em cada elemento já
necessariamente Real, Simbólico e Imáginário, cada um deles. Então, está aí
tudo que há como Real, Simbólico e Imaginário, excetuado o falante. Este
esquema me situa no lugar de dizer que re-aparecimento do falante pode ser
considerado como re-emergência desses Gozos em outro nível. Ou seja, o Su-

222
Solércia

jeitinho que vai aparecer e que não há nos elementos componíveis até aqui, é
re-emergência decadente do Sujeitão suposto ao A-Delta. Apenas suposto pelo
Sujeitinho. Apenas suposto, por comparatividade, de cá para lá. Porque a gente
supõe um Sujeitão, Há-Deus.
 P – E a paranóia escreve isto literalmente. A suposição de escrever a língua
de Deus.
Sim. É quando se projeta de cá para lá. Não só a paranóia como também
a transferência. A imputação de sujeito-suposto-saber não deixa de ser certa
deificação de alguém, certa projeção desse lugar subjetivo, no nível do falante,
para um Sujeitão.
Qual a vantagem desta representação, desta representação cartesiana?
É que posso suspeitar que algum evento novo – novo na série, não na história
– vem possibilitar uma nova ordem de produção, tipo produto, sobre esses
elementos que já estão completos e funcionam no seio da chamada natureza.
Alguma coisa complexifica de tal maneira que um produto novo, um produto
cartesiano novo vem se propiciar, de tal maneira que posso ter, por exemplo,
Articulação com Sistema, e gerar um determinado produto cartesiano como
lugar dele. Ficamos numa situação difícil quando Lacan passa da experiência
da escuta e diz que o Sujeito é um lugar que ele põe no Real. Coisa intersticial.
Sujeito comparece, na esquemática de Lacan, apenas como representado de S1
para S2. Tudo bem! Lacan não parece meter o nariz ali diretamente, embora
eu suspeite que se fizermos dele uma leitura com desenvolvimento disto, che-
garemos lá. Vamos ver que ele mete sim. Ele procura assentar esse tal Sujeito
em certos atos. Mas, para ser rigoroso, ele diz que “o Sujeito é representado
de um significante para outro”. E que “o significante é aquilo que representa
o Sujeito”. Ele deixa o Sujeito nesse limbo aí, nesse buraco. No seio desses
significantes, tal como situados por Lacan, o comparecimento só pode ser este,
porque Sujeito, se não é significante, não se exprime diretamente. É expresso
por esse gap e representado de significante a significante. O que pode enriquecer
alguma coisa aí é o fato de que, pelos pratrásmentes da formação do Sujeito,
posso suspeitar que esse lugar onde Sujeito virá a comparecer como represen-

223
O Sexo dos Anjos

tado de significante para significante, esse lugar é fundado por esse produto
cartesiano que anuncio.
O Sujeito, só-depois da significância, se representa de significante
para significante. Só-depois, da significância, da emergência do trato signifi-
cante. Mas ele tem lugar substantivo por trás disso, no produto de Sistema e
Articulação. Os quais têm lugar no produto dos Gozos, os quais têm lugar
no produto do que foi referido como Estados: Real, Simbólico e Imaginário.
Isso vai montando uma rede que suspeito possa servir nos lugares onde algum
embasamento para o Sujeito venha a faltar, em nosso patrimônio teórico. Se o
Sujeito só comparece na ordem das cadeias significantes como representado,
sim, de significante para significante, o que se arma no seu lugar para ele vir
a comparecer como representado? A decisão lacaniana é genial, mas é para se
continuar pensando. O que arma um espaço, um lugar para que isto, na ordem
significante, tenha vez? O que arma esse lugar, segundo meu Esquema – se ele
tiver algum valor –, é esse produto cartesiano de Sistema e Articulação.
 P – Lacan diz que o Sujeito é emergente.
Porque ele é valor de Traço com valor significante.
 P – Que permite a S2 ser metáfora recíproca de S1. Mas para Lacan, ele
emerge da relação de S1 a S2. Então, ele receberia de S2, para emergir, o dom
sistêmico, ou seja, S2 levaria para esse lugar a relação do gozo-do-Outro com
o gozo-do-Sentido. E S1 levaria para ele o dom articulatório, a relação entre
o gozo-fálico e o gozo-do-Sentido. Então, essa sujeito vai viver impregnado
de sentido. Ele recebe sentido por duas vias.
Por duas Vias. Mas uma só valência de Sentido.
 P – E recebe gozo-fálico e gozo-do-Outro por uma via só.
É exatamente o que quero dizer. Sendo que J e J têm, também, cada
qual, uma só valência para $.
 P – O Sujeito ali é um ponto de interseção entre Sistema e Articulação. No
quadro menor, também. Não há referência do Sujeito ao Traço, porque o Traço
seria um ponto de sustentação entre S2 e S1 para S2 ser metáfora recíproca de
S1. Lacan mantém a questão meio vaga: Sujeito emergente como representado

224
Solércia

entre S1 e S2. Você diz que não, que há um lugar preciso, que seria o lugar dado
pela relação de Sistema e Articulação. Ele só pode receber a relação sistêmica
de S2. E só pode receber a relação articulatória de S1.
Isto, só-depois. Até aqui, Sistema e Articulação depende é dos Gozos.
 P – Só-depois. Mas ao levar a relação sistêmica, leva-se aquilo que ela
contém: a relação entre gozo-do-Outro e o gozo-do-Sentido. Ao levar a relação
de Articulação, leva-se o que ela contém: a relação entre gozo-do-Sentido e
gozo-fálico. Então, ele recebe duas nomeações de gozo-do-Sentido, uma de
gozo-fálico e uma de gozo-do-Outro.
Não. Não se trata de relações e sim de produto de gradientes. É difícil,
por exemplo, tanto na psicologia como mesmo na psicanálise, definir o que é
um Traço. Definir como? Fisiologicamente? Vejam o minueto de Lacan para
definir um traço: a pata da gazela não sei onde. De repente, se têm experiências
mais apontáveis para nós sujeitos, as quais estou remetendo ao Haver, entre
gozo-do-Outro e gozo-fálico, o que é algo mais palpável. Marcar como pode
emergir o Traço entre gozo-do-Outro e gozo-fálico. Entre, no sentido de movi-
mento, ou de produto cartesiano. Produto cartesiano no que, se estou em um,
posso ter a memória do outro, numa diagonal. Tal projeção nos dá estrutura
de traço, compatível com a experiência do encontro faltoso e, portanto, bem-
sucedido com o Real, que é Traço mesmo, para valer. Tiro a noção de Traço
não de uma experiência psicológica, mas de uma experiência de consumo, de
Gozo, de usura no Gozo.
 P – Alguma coisa do signo do sujeito. Lacan chama de signe du sujet, que
ele diz que há.
Faço a conjetura de que essa armação tetraédrica, quer dizer, a fundação
dessa nova face até ali, talvez seja suficiente para explicar o que há nas mo-
dalidades do que temos suspeitado como sendo Natureza. Que não é natureza
coisa nenhuma, é artifício, vício gozoso do movimento do Haver. Não posso
dizer que ali haja um Sujeito chamado Deus, pois Sujeito é algo menor, nós
falantes. Essa postura subjetiva nossa, que quero pôr como centelha do divino,
há num regime menor, de subproduto. Mas se quiserem usar metaforicamente

225
O Sexo dos Anjos

o termo, só com este sentido, o Sujeitão do Haver é um artífice. Esse Haver,


nas suas manifestações, funciona como verdadeiro artífice. Gostaria de tomar
de Philippe Sollers uma idéia genial que é perfeitamente compatível com o
que venho dizendo há vários Seminários: tudo é artifício. Ele usa este nome
de Sollers, que não é o seu sobrenome. Este é um pseudônimo que ele tirou
do latim: a palavra sollertia. Em brasileiro, é solerte: pura arte, só fatura. E
ele aponta uma idéia – ele não diz isto, eu é que retiro do seu texto – do Homo
Sollers, que é o meu homem artificial, o homem do artifício. E aí eu poderia
botar um Deus Sollers. Deus solerte, puro artifício. Isso que a gente quer chamar
de natureza é esse artifício criador do Haver nas suas transações.
 P – Queria colocar algumas questões. A primeira seria sobre a natureza
desse Há-Deus. Está parecendo imanentista. Isso remete para Plotino, para o
neoplatonismo. Esses esquemas de derivação do um.
Como remete a Espinosa. Mas acontece que esses esquemas de que
você está falando não têm a idéia de que o Haver é desejante e que se propõe
um Não-Haver que o dissimetriza.
 P – Em Parmênides essas coisas já estão colocadas. Não no Parmênides do
Platão, mas no dos Poemas...
Aí eu até acredito. Se bem que você precisa fazer uma certa transa de
Parmênides com Heráclito para agüentar isso aí.

* * *

Se suspeitarmos uma nova série de produtos, vamos ver que, de re-


pente, o número de arestas explode, porque se passa diretamente do tetraedro
para o hexaedro, o que é congruente com a série a mais metafórica dos sólidos:
depois do tetraedro só vem o hexaedro, mesmo, não há outro. Isto na medida
em que o que era Sistema entre gozo-do-Sentido e gozo-do-Outro deixa de ser
mera marca e passa a ser um novo plano. É um hexaedro. Gozo-do-Sentido e
gozo-do-Outro, dá Sistema. Articular um plano de gozo-do-Sentido com gozo-
do-Outro, é recair no plano do Imaginário. O que emerge aí projetivamente?

226
Solércia

É um plano paralelo àquele. Gozo-do-Sentido com gozo-do-Outro, Sistema.


Então, nova face que é a do Sistema, paralela à face do Imaginário.
 P – Você está considerando RSI como faces. Você está tomando a face oposta.
Sim. RSI são as faces Gozo-do-Sentido, gozo-do-Outro e gozo-fálico
são suas interseções, os eixos. Ao invés de deslocar tudo isto para outro triedro
para retomar tudo de novo, vou representar no mesmo. Se tomo gozo-do-Sentido
e gozo-do-Outro, tenho dois eixos. Como articular o efeito que aqui é Real e
Simbólico, dois planos, por um plano que tenha a competência do plano do
Imaginário, que está entre gozo-do-Sentido e gozo-do-Outro? Qual é o plano
que se articula num plano entre gozo-do-Sentido e gozo-do-Outro, para trás?
É o plano do Imaginário. Então, vou representar um plano substitutivo, que é
um plano paralelo. Se retirarmos o plano do Imaginário, o plano do Sistema
agüenta a barra triédrica. Mesma coisa para os demais: gozo-do-Sentido e
gozo-fálico. Isto articula dois planos que posso substituir por um plano paralelo.
Plano paralelo este que é gozo-do-Sentido com gozo-fálico, o plano da Articulação:
esse plano novo de perfil, paralelo ao plano do Simbólico. Isto não põe nenhuma
equivalência. Não estou dizendo que o plano da Articulação seja idêntico, que
substitua o plano do Simbólico. De modo algum, pois é efeito já de quarto grau,
mas acontece que nós falantes vamos acabar fazendo sérias substituições.
Tratando a pura Articulação como Simbólico, embora não seja a mesma coisa.
Tenho agora gozo-do-Outro com gozo-fálico. Plano do Real. Substi-
tutivo: Plano do Traço. Algo emerge de um grau superior de arestas, em nível
hexaédrico. Qualquer um desses elementos já é Real, Simbólico e Imaginário.
Porque se precisou passar por lá para se chegar aqui. Se coloquei o valor A-Delta
no ponto zero, tanto de abscissas, como de cota, quanto de afastamento, o que
emerge de novo? O que de novo vai aparecer, de novo em relação ao triedro
anterior? O que vai resultar disso tudo é um vértice completamente novo, em
função das arestas que são novas emergências por produto cartesiano. Agora,
de Traço, Articulação e Sistema. No tetraedro anterior a coisa morria ali.
Temos uma nova Articulação: S1 é essa aresta de trás. S1 não é ponto, é
aresta. Onde fica S2? Sistema e Traço. O plano do Sistema é de frente, o plano

227
O Sexo dos Anjos

do Traço é horizontal, então essa aresta se chama S2. E essa aresta de Sistema
com Articulação vai se chamar de Sujeito, embora possa parecer espantoso. Da
emergência dessas arestas novas um ponto é demarcável: este último vértice
oposto, em diagonal, ao vértice fundador do triedro que chamei de A-Delta. É
aqui que escrevo a (minúsculo), a ser produzido nessa loucura. O a minúsculo
não é outra coisa senão nossa intenção de A-Delta, que é A Coisa.
Se isso for pensável, o que é o Sujeito? Observem no Esquema: o
Sujeito, como aresta, paralelo nada mais nada menos – como Antônio Sérgio
Mendonça chamou atenção – ao gozo-do-Sentido, mas de maneira reversa.
Observem que temos triedros reversos, construídos dentro de um hexaedro.
Se há algum paralelismo, é do Sujeito com o gozo-do-Sentido. Preciso dessa
estrutura, que ela funcione, para que eu possa instalar o Falanjo no Campo do
Sentido, no vigor em que ele pode subsistir, e tentar eliminar a consistência
dos ditos homens e mulheres.
Estou dizendo que o falante, enquanto tal, nesta quarta geração de
cruzamentos, faz surgir o objeto a. É só para os falantes que ele há. Nas outras
gerações, não se trata de objeto a de espécie alguma, porque o objeto a está
atrás, como Haver. O falante, no movimento de cada um, na transa de S1 com
S2 nessa posição subjetiva, vai ter como resultante o objeto a. Objeto que só é
objeto a como falta de encontro. Falta para trás de encontro para a frente. Por
que a fantasia é importante? Porque se trata de que meu projeto, dentro da vida,
não é senão constituir esse objeto. Eu não o tenho. Esse objeto é efeito da minha
operação subjetiva. Vou criá-lo. E isto tem a ver com a Fantasia. E isto se chama
técnica, quer dizer, Arte. Solércia, portanto. Vou propor aos meus companheiros
falantes um objeto que ninguém pode dizer melhor ou pior do que qualquer
outro. O objeto a é a ser criado no projeto de cada um. Ele é objeto a enquanto
falta durante todo o percurso do Sujeito, e a intencionalidade ÉTICA do sujeito
é propor um objeto a ao mundo. O que é que eu devo? Devo um objeto. Esta é
a minha dívida simbólica. Eu devo aos senhores um objeto a...
Agora, vejam que coisa angustiante. Há Sujeito. E é um sujeitinho
safado. Ele tem substância. E a gente pensava que ele não tinha. Como se pode

228
Solércia

definir o Sujeito nesse Esquema? A considerar isto do ponto de vista projetivo,


o Sujeito não é nada mais nada menos do que a projetante do objeto no Real.
Ou seja, projetante do objeto no Revirão. E o estatuto do significante não é o
mesmo, pois o significante do Outro não tem o mesmo estatuto do significante
do mesmo. O estatuto do significante do Outro é de projetante do objeto no
Simbólico. Ao passo que o tal significante que Lacan foi gênio ao chamar de
Mestre, porque o qualificou de maneira diferente em relação ao saber, é pro-
jetante do objeto no Imaginário. É aí que tudo ajuda a fabricar um Ego, com
tanta matéria de Sujeito no S1. Se pudermos limpar as arestas desse troço, talvez
se tenha um pouco mais de precisão.
Há uma certeza de subjetividade que tem que fazer um esforço des-
graçado para se dizer no regime do significante. É uma certeza para trás. O
fundamento ético do sujeito é muito mais essa projeção no Real de um objeto
a se constituir do que o que se consegue articular dele lá na ordem significante.
E isto tem a ver diretamente com a fantasia. A coisa vai por baixo, não por
cima. Sente-se esse lamento nas pessoas. Há algo no nível da fabricação do
“macacão” que impõe isso. Esse troço, chamado linguagem, ele não veio assim,
não caiu do céu tão diretamente. Tem base. O macacão pirou. O macacão não
serve como roupa para a máquina que ele suporta. E isso dói na carne, na carne,
esse lugar de Sujeito, e tem osso. Essa máquina vai propiciar deslanchamento
disso, entrar no nível da representação desse sujeito entre significantes. Mas
isso tem base, por trás. Isso tem carne, isso tem osso. Aonde é que a morte
atinge o Sujeito? É na carne, do Sujeito.
 P – Mas não se pode chamar isso de Simbólico ?
Pode, se você quiser. Não é proibido. O que estou dizendo é que essa
tal Natureza, ela é tão falada quanto eu o sou, é tão artifício quanto o que se
produz numa escrita, ela é fabricação.
 P – Não é ela que morre ?
Não! É uma modalidade dela que se desarticula, e isso resulta em
imortalidade para o Falante que está lá adiante.
* * *

229
O Sexo dos Anjos

Isto desmistifica muita coisa. Por que as pessoas têm tanto medo dos
engenheiros? Os jornais vivem assustando. Affonso Romano de Sant’Anna está
no Jornal do Brasil de hoje, ou de ontem, com o seu cagaço dos engenheiros.
O tal Affonso diz que a AIDS foi fabricada não sei onde, passou por debaixo da
porta e currou a humanidade. É verdade que há questões éticas em jogo, mas
ficar com medo dos engenheiros? Por quê? O apego a esse macacão é coisa
obscena. Por que não se pode fazer um computador que nem Eu? Pode sim! Um
dia vai poder. As pessoas se sentem invadidas no seu imaginariozinho. Mas o
Falante é muito mais importante do que esse macacão ou esse Ego.
Está pairando por aí um terror, um medo da engenharia em todos os
sentidos: genética, informática, telemática. Papo de neurótico. A psicanálise
tem grande responsabilidade nesse futuro. Não estou sonhando com nenhum
progresso não. Estou sonhando é com riqueza: o inconsciente é capitalista,
Lacan o disse, não eu. Quer dizer, fazer render é preciso, senão aquilo pára.
É uma oportunidade dos falantes: exacerbar esse artificialismo até o ponto da
imortalidade. Por que não? Por que que uma máquina futurista seria menos
interessante do que uma biblioteca?
Não estou dizendo que seja tola a prudência de se saber lidar com
a tal Fatureza. Saber lidar com a Fatureza é importante. Estou dizendo que,
junto com esse cuidado, está retornando o mito da Natureza, de novo, como
romantismo babaca que não nos serve para nada. Estou dizendo que a fatura
do falante não é incompatível, é da mesma cepa que a fatura da Physis. É uma
questão de acordo.

06/NOV

230
O hexaedro

4
O HEXAEDRO

O Seminário inicia com a audição de Transas,


de Ritchie.

Quero apresentar-lhes a formulação do que está no hexaedro que in-


troduzi da vez anterior:

231
O Sexo dos Anjos

O primeiro triedro é A-Delta, com os planos de Real, lmaginário e


Simbólico, os eixos de gozo-do-Outro, gozo-do-Sentido e gozo-fálico, eixos
horizontal e vertical. O segundo triedro é um novo triedro a (minúsculo) dos
planos do Traço, do Sistema e da Articulação; os eixos S2, $ e S1. E lá embaixo
está dito: $, Sujeito, projetante do objeto no Real; S1, Significante-Mestre, pro-
jetante do objeto no Imaginário e S2 Outro-Significante, projetante do objeto
no Simbólico. $ punção de a ($ ◊ a), fantasia: o Sujeito lido por essa descrição
acima, o Sujeito, enquanto projetante do objeto no Real, marcado por e marcando
esse objeto – isso é que é a Fantasia. Aí, tive a audácia de escrever: (S1 ◊ a), S1
como Significante-Mestre projetante do objeto no Imaginário que correponde
à alucinação no sentido de Freud. (S2 ◊ a) é delírio. Não é necessariamente o
delírio do psicótico, e sim o conceito de delírio: Significante do Saber do Outro,
projetante do objeto no Simbólico.

232
O hexaedro

Acima está uma pequena álgebra de composição que demonstra o


quadro dos produtos que coloquei em nosso encontro sobre Sujeito Espesso.
Apenas mostra a redução, no Hexaedro, de Real, Simbólico e Imaginário. Real
com Simbólico dá gozo-fálico; Simbólico com Imaginário dá gozo-do-Sentido;
Real com Imaginário dá gozo-do-Outro. Articulação, substituindo gozo fálico
com gozo do Sentido, que vai dar em Real com Simbólico e Simbólico com
Imaginário, que vai dar em Real, Simbólico ao quadrado e Imaginário.Tirando-
se o RSI inteiro, que já está contido, vai dar Simbólico. Isto só para mostrar o
paralelismo. E assim por diante. Lá embaixo, o Sujeito vai ser congruente com
gozo-do-Sentido. O S2 congruente com gozo-do-Outro e o Significante-Mestre
congruente com gozo-fálico.
O que o hexaedro seguinte mostra de saida – se aceitável o que
coloquei da vez anterior – é que, no plano da produção do não falante, no
seio do Haver, tudo pode ser concebido como terminando naquele primeiro
tetraedro que tem como vértice A-Delta. Vértice, digamos assim, principal
– e os outros vértices estão nesses pontos que estão aí como quatro cinco
e seis. Há que lembrar que não estou definindo Real, Simbólico e Imag-
inário do mesmo modo que Lacan. Com o surgimento do hexaedro, que
vai se apoiar nesses três pontos, 4, 5 e 6, e o rebatimento, o estufamento
do ADelta para a, vamos ter um outro tetraedro, que tem como vértice
principal o a (minúsculo) e como vértices de base 1, 2 e 3. Deve-se notar
que esses dois tetraedros são inteiramente afastados um do outro. Nas duas

233
O Sexo dos Anjos

bases desses dois tetraedros, há dois triângulos paralelos entre si e reversos


na sua posição.
Entre esses dois tetraedros, fazendo-se a estereotomia do hexaedro,
vai sobrar, como resto, um octaedro. Há um gap no meio, entre os dois tetrae-
dros e que constitui um octaedro. Vamos tirar esse octaedro, esse monstrinho,
que é nossa diferença para com os não-falantes. Entre nós e os não-falantes,
resta essa diferença. A estereotomia desse hexaedro dá em dois tetraedros: o
tetraedro do não-falante para trás, vértice em A-Delta; o tetraedro do falante
para a frente, com vértice em a – e entre os dois esse gap que é um octaedro
de diferença.
Estou querendo mostrar com isto que, na passagem do não-falante ao
falante, há um estufamento enorme. O tetraedro da frente, que é representado
pelos pontos 1, 2 e 3 nos vértices da base e pelo ponto a no vértice de cima, ele
é o campo disso que Lacan chama de simbólico. Mas o que está chamado aqui
de Simbólico não é o que Lacan chama assim. O que Lacan ensina – sobretudo
no Seminário 2, onde vai destrinchando e mostrando a diferença do falante,
sua referência ao campo do simbólico – o que está representado aqui por esse
tetraedro: 1, 2, 3, a. É preciso fazer uma correção de códigos. Repetindo, então:
esse tetraedro corresponde ao que o Lacan chama de simbólico, no Seminário
2, quando mostra que a diferença entre falantes e não-falantes é essa referên-
cia indefectível ao simbólico. O que Lacan chama de simbólico, na verdade
é metaforonímico. O que estou chamando de Simbólico é precursor desse
simbólico de Lacan, no sentido de explosão e separação, e da diferença. E vai
aparecer, lá adiante, um outro registro, um segundo grau, já com Real e Sim-
bólico e Imaginário. O que cabe dentro desse tetraedro, que estou dizendo que
corresponde ao simbólico de Lacan, já é, a cada elemento, Real e Simbólico e
Imaginário, no sentido do meu hexaedro. O que quer que esteja no tetraedro do
falante já é Real e Simbólico e Imaginário no sentido do hexaedro. É só pegar
o quadrinho dos produtos: a partir dos gradientes, tudo já é Real e Simbólico
e Imaginário, ou seja, os gradientes e os parlentes. Não há nada aí que seja só
Real, só Simbólico ou só Imaginário.

234
O hexaedro

No outro tetraedro há um plano de Real, um de Simbólico e um de Ima-


ginário, dando como resultantes dos expedientes de gozo-fálico, gozo-do-Sen-
tido, gozo-do-Outro, que podem até dar como gradientes, parando-se por aí, na
base do tetraedro primeiro, Sistema, Traço e Articulação, sem continuação. Ora,
se isto se acrescenta de mais uma dimensão, vai dar um hexaedro. Na ponta de
cá, tudo já é Real e Simbólico e Imaginário, no sentido do Esquema Delta.
O que Lacan situa no campo do simbólico, onde o falante habita, se
representa aqui por esse tetraedro inteiro. Aquele outro tetraedro lá do fundo é o
que eu disse que é da ordem do não-falante. O que é não-falante pára por aí. Daí, no
Seminário do Ego, Lacan insistir no fato de Freud, quando percebeu que estavam
psicologizando sua teoria, ter partido para Mais Além, e insistido na dualidade.
Freud veio reiterar sua exigência de dualismo. Essa história de dualismo é a velha
história da psicologia, da filosofia, dualismo mente/corpo. Não é necessariamente
o dualismo que se possa querer entre S1 e S2. Freud vem reiterar que essas coisas
não se colam decisivamente, não se projetam direto uma na outra. Insiste em que
há um gap. Esse gap está aqui representado por esse octaedro que vem salvar o
dualismo freudiano sem perder as referências do “macacão”. Há subversão do
esquema, na medida em que os triângulos da base são reversos, subversão para
o lado do falante; onde também poderíamos escrever a mente de um lado (no
sentido da psicologia), e, do outro lado, o corpo.
O dualismo freudiano fica a salvo. No entanto, há um cruzamento aí, algo
monístico, pois eu disse que o Pleroma, no Esquema Delta é todo ele da ordem
do mesmo maquinismo em sua formação. Quer dizer teremos no novo tetraedro
uma divindade em segundo grau. Se há divindade em primeiro grau, o Haver
com suas formações de Real, Simbólico, Imaginário, os gozos, os expediantes,
os gradientes, com o surgimento do falante, surge uma espécie de divindade em
segundo grau. O Pleroma, o Haver, se apresenta re-falante. Com os efeitos desse
re-falante, os produtos desse re-falante. Jung supôs que o surgimento dos falantes,
o surgimento da humanidade, corresponderia a um coletivo, um grande animal
cujas partes seriam cada um dos falantes. Lacan reitera a posição freudiana,
mostrando que não há nada disso de coletivo. O que há é esse campo do falante

235
O Sexo dos Anjos

em segundo grau, segundo grau de proliferação, de produção. É que o falante


funciona como um novo demiurgo, um novo criador.
* * *

 Pergunta – O artifício é a expressão do Inconsciente.


O falante não pode, a rigor, dizer que seu corpo termina em sua individu-
alidade biológica. Por inclusão simbólica, meu corpo tem mil aparelhos novos.
Não se pode marcar onde termina o corpo. Pode-se traçar limites provisórios.
Nesse ponto é brilhante a intuição de McLuhan quando fala das extensões do
corpo: a roda é uma extensão do pé; é verdade, ele tem razão.
Estamos caminhando vertiginosamente, com certos freios de neurose,
para esse término do ocidente na cibernética e na informática. Esse fim de
percurso vai acabar aí. Então, é preciso mesmo jogar o lixo todo lá dentro, o
grande lixo da cultura, do saber, jogar dentro da informática, da cibernética, e
tentar começar outra coisa depois que tudo se minimizar nessa máquina.
 P – Me parece que se você se apoiar só na cibernética, sem dialetizar
por outros prismas, isso é falível. Vamos nos reportar ao artigo de Jean
Baudrillard, quando ele fala da explosão da cultura de massa, por
exemplo, ou então daquela coisa centrípeta dos astecas, dos maias,
ele coloca dois movimentos diferentes, opostos. Eu me lembro mais ou
menos, mas eram duas coisas: uma de um lado, outra de outro. E me
parece que o que você diz se choca um pouco com esse pensamento de
Baudrillard ao favorecer a explosão por um lado sem se preocupar com
certa regulação. Se você introduzir outros elementos, talvez eu aceite,
mas só a cibernetização...
Não falei só de cibernetização, eu disse cibernetização e informatização,
e acrescento a telemática.
 P – Dificilmente uma cibernetização, como nós temos, vai dar conta desse
teu objeto.
Mas eu estou dizendo justo o contrário: que não dá, que isso é terminal.
lsso não é inicial de coisa alguma, é terminal.

236
O hexaedro

 P – Sim, você está dizendo de uma civilização totalmente voltada para uma
supercibernetização.
É o que estamos vivendo.
 P – A gente está vivendo isso, mas tem contrapeso.
Não tem não! É impressão, pura impressão. O contrapeso na cultura de massa é
rock e samba-canção. E não vale nada, isso. Isso dá e passa. Não faz contrapeso.
Não faz mesmo. Há contrapeso em nós que estamos na tentativa de Outro lado.
 P – Sim, mas há outras tentativas de contrapeso. Acredito que a Igreja da
Libertação o seja, por exemplo.
Isso não fede nem cheira.
 P – É, mas está fedendo.
Isso, logo que for informatizado, cai. Besteira. Isso dá e passa. É da
ordem da demagogia. Quando isso for informatizado, na hora em que isso
for acolhido pelo sistema, acabou. Toma nome, acabou-se. Isso aí é o Velho
Mundo que está acabando. Não tenhamos ilusão. O que estou dizendo não é
que a informatização seja solução, e sim o contrário: que a aparência do dito
mundo contemporâneo é a de uma grande lata de lixo informático-cibernética.
As pessoas estão no sonho de que isto é o começo de uma nova era. Não é. Isso
é o fim. Depois disso, mais nada que tenha a ver com essa história. Só um ato
criador vai trazer outro troço. Essa bobageira toda de que a gente vive, esquemas
neuróticos e ansiosos, como, por exemplo, esses movimentinhos de que você
fala, eles são do passado, eles são destinados a esse lixo. Vão todos desembocar
nesse lixo. A psicanálise que abra o olho para não ser um deles também, um
dos descartáveis da nossa época. Se não, ela vai para o lixo também. O que for
informatizável, no campo psicanalítico, vai para o lixo.
Estou querendo dizer que é preciso reconhecer o ralo da nossa época.
Nossa época tem um ralo. Esse ralo de esgotamento se chama informática,
cibernética, telemática, essas coisas...
 P – Você está falando da anti-fantasia.
Esse não é o Outro, esse é o Mesmo. Estou chamando atenção é para
o fato de que depois desse Mesmo, há um Outro. Aí é que o Outro vai se apre-

237
O Sexo dos Anjos

sentar para ser pensado. Nossas sociedades estão apavoradas ou apaixonadas


pelo fenômeno informático, como se ele fosse dar emergência a um mundo
novo. Não! Ele é apenas o fim de um mundo velho.
Então, a gente precisa depressa jogar tudo nesse lixo, acostumar-se de-
pressa com esse maquinismo, para chegar a tempo ao que é preciso para depois
disso. Há coisas mais sutis para depois disso, e que já nos foram apresentadas
através de atos poéticos, aqui e ali. O pensamento de um Lacan, por exemplo,
aponta para esse mais-além. Isso vai comer tudo. Vai comer essa cultura e uma
porção de quisquilhas com que vivemos ansiosos. Isto vai virar bagatela.
Observem, por exemplo, o fenômeno eleitoral. É algo grotesco. Não
é só no Brasil. Nos Estados Unidos, também. Em qualquer lugar. E não há
parâmetro de espécie alguma. Tudo é informatizado, desde o xingamento até
a deferência. E as escolhas são absolutamente pré-lógicas ou interesseiras.
Isso está desembocando nessa equalização informacional, que deixa
os cultuadores da paixão (seja ela pró ou contra) por esse tipo de coisa, abso-
lutamente perdidos. Isso se equaliza por mero jogo informacional. Compete
a quem lida com os discursos, de outro ponto de vista, abolir isso, não dar
pelota para isso. Nós, não temos mais nada a ver com isso – a não ser para
explicações. Não há trabalho a ser efetuado sobre isso. Há um trabalho a ser
efetuado como preparação para quando isso se equalizar. É o trabalho que
interessa à psicanálise, pois a psicanálise faz parte dessa história. Embora o
gênio de Freud tenha atravessado isso e indicado um mais-além, muitas das
arrumações da teoria fazem parte desse campo informacional, dessa chicana
cotidiana de complexo de Édipo e não sei mais o quê. Lacan fez uma limpa já
bem grande. Analista que pensa em Édipo hoje em dia, está pensando besteira.
Não se tem nada a tratar com Édipo. Não se trata disso.
 P – Esse projeto de preocupação está sendo posto por você de maneira clara
em termos de percurso, em termos da sua retórica, para poder diluir determi-
nada coisa e apresentar a razão do movimento de produção teórica. Mas esse
vislumbre, em termos de veemência, se tem por exemplo na obra do Mallarmé.
lndicação, primeiro, de vidência dessa coisa que no final do século XIX ela

238
O hexaedro

percebia, essa diluição extensiva de um obscurantismo, como ele a chamava. E


na obra de Robert Musil, posso ler, e tive esse trabalho, reconhecer o que você
está falando. O que ele percebia como ação possível da ficção era se juntar
com essa dimensão operacional da ciência, mas não da ciência no sentido dos
gadgets, da ciência enquanto invenção, para poder apontar para a invenção
da vida, invenção de uma nova possibilidade de vida.
Essa coisa, esse tetraedro aí, horroroso, que é a nossa existência, que
Lacan quis chamar de simbólico, esse campo aí que Freud descobriu, ele é
de uma virulência espantosa. Independentemente e apesar dos analistas, isso
funciona sozinho. O que quero dizer é que estamos vivendo uma etapa em
que o movimento desse simbólico vai se explicitando. Ele vai se explicitando
de tal maneira que, daqui a pouco, teremos de olhar para nós mesmos como
olhamos para um ser primitivo que explicava miticamente as coisas. Estamos
neste problema sério. Isso é uma coisa esquisita, mesmo dolorosa. Quando
manifesto um objetinho como esse tetraedro, sinto um certo horror. Às vezes
me surpreendo, nas minhas ficções automáticas, como se eu fosse personagem
desses filmes nos quais um terrorista botou uma bomba em algum lugar, aí
chamam aquele especialista que se errar o corte de um fio aquilo explode. Às
vezes tenho a impressão de que esse troço vai explodir. Mas é paranóia minha,
pois felizmente só explode no papel.
Esse tetraedro funciona sozinho, independentemente dos falantes.
Pelo contrário, ele é que determina os falantes. E, a gente queira ou não, essa
maquininha vai pegar a tal de cultura e jogar no lixo, sozinha. A cultura vai
para o lixo com as próprias pernas. Já não é mais preciso, como antigamente,
haver pensadores, políticos, homens de ação fazendo força para jogar a cultura
no lixo. Agora ela está indo sozinha para o brejo. Você concorda? Ele está
balançando a cabeça. Está me assustando. Quando concordam eu fico mais
assustado ainda, porque é verdade.
Conseqüência: esse campo informacional acaba deglutindo o besteirol,
esse besteirol em que a gente vive. Então, no sentido de nossa formação, não da
formação de analistas, formação das pessoas aqui, a gente precisa se adequar

239
O Sexo dos Anjos

depressa a esse movimento espontâneo para poder se preparar com vistas a esse
depois. Para trás não dá mais, não funciona: qualquer intervenção aí vai para
o esgoto, o esgoto come ela. Tudo se equaliza num campo informacional que
não vai dar aparição a nada de novo, vai para o velho.
Quando isso se banalizar, com que ferramentas tratar o depois? Mas
há de sobrar o essencial. O bonito da estória, o bonito do acontecimento, é que
muita coisa que se tem por importantérrima é bagatela, vai para o lixo. O que é
importante mesmo vai sobrenadar. Mas é preciso que haja precursão, que haja
trabalho prévio: já vem sendo feito, está em Freud, está em Lacan. Trabalho
prévio de recomposição.
 P – Mas nem em Édipo, nem em AntiÉdipo.
 P – A cultura transforma o dito.
Não! Ela não consegue transformar o artifício. É o artifício que trans-
forma a cultura. O artifício é de grau superior.
 P – O Magno está levantando o antes disso, Ele fala, na Polética, da relação
simbólica como muito maltratada. Tendemos a achar que a cultura funda o
simbólico, quando o simbólico é que tem condições de fundar certa cultura
se operar para aquém dela. E nós, temos a tradição de achar – é até um erro
conceitual, quantas vezes já não se escutou que a definição de simbólico é o
tal do Outro cultural? – que a cultura vem antes.
Mesmo o meu dizer é logo transformável em cultura. Mas eu sou
chato: continuo dizendo. Por isso botei essa música hoje, “quero mais”,
“não só transas”. Quero a boceta de Pandora. A boceta de Pandora não é
a cultura, é o artifício. Já fiz a denúncia, num Seminário velho, de que a
cultura está apensa a essa distribuição, por exemplo, tipo Lévi-Strauss. A
cultura precisa disso. A informatização da cultura vai demonstrá-la como
mero artifício e indicar como lidar com essa ordem do artifício para além
da informatização. Parece que quem pode pensar isso é a psicanálise. Como
lidar com esse artifício quando me descolo dos meus liames culturais. E
isto não é foraclusão, é descolar-se de uma ordem cultural. Nem cultura
nem anti-cultura.

240
O hexaedro

Como operar no nível do artifício, no nível da grande máquina de


composições? Posso dar exemplos. Vou pegar um exemplo banal, de jornal.
Para não falar nas feministas, que são grotescas, vamos pegar algo que parece
menos grotesco, mas o é tão quanto: o pessoal da ecologia. A abordagem que
fazem dos problemas ecológicos é cultural, se não são abordagens humanistas.
Não se vêem abordagens no sentido seguinte: somos artificiais e artificiosos. A
chamada Natureza é um artifício de outra ordem, mas artifício. Como dialogar
de artifício para artifício sem aspectos neuróticos de conformação sintomática?
Não é que aqueles argumentos sejam dispensáveis; é que a visada é de índio.
 P – De índio imaginado por francês.
Não se ousa nenhum salto por cima do lodo cultural. É claro que é pre-
ciso sim, transar os interesses. Há interesses de sobrevivência? Suponhamos que
haja. Somos é da ordem do artifício, e a Natureza também. Qual o diálogo a ser
estabelecido, pela ciência, pelo poder, entre os dois, sem essa “neura” cultural
que vira até partido político? Vira político partido e opera reacionariamente, é
o caso de dizer. Feministas, partido verde, isso é reacionário: ao invés de saltar
por cima do lodo cultural, dá para trás, é regressivo.
 P – Literalmente a imposição imaginária de conservação de ordens anteriores.
Ao invés de nos darmos conta de que temos um problema e que temos
que enfrentar esse problema, corremos, nos escondemos na mata virgem, feito
índio. Como essa bobagem de televisão (que agora está na moda): “sobrevivên-
cia na selva”. Como se algum imbecil desses fosse para selva mesmo. No Gibi,
há oposição radical entre o Capitão Marvel e o Dr. Silvana: o Bem e o Mal.
Adoro o Dr. Silvana. Ele é gênio. O Capitão Marvel é um babaca.
 P – É só pegar determinada conformação do imaginário cultural. De um lado,
o tal do pós-moderno, que reconhece na sociedade os efeitos dessa informática,
como você falou. Essa informática leva à desagregação de tudo, não se pode
rotular nada. lsso é o reconhecimento da falência da cultura humanista. De
outro lado, os humanistas, travestidos de ecólogos: temos que preservar uma
ordem natural imaginária. No Brasil, ambos estão no mesmo partido. Os pós-
modernos e os ecólogos, que são antagônicos segundo a conjuntura européia,

241
O Sexo dos Anjos

no Brasil, em se plantando, dá... no mesmo partido.


Isso é um total desentendimento. Não podemos fazer grande coisa em relação
a isso. Mas no nosso meio isso é para ser refletido, pensado. Se não, seremos pegos de
surpresa, como todos, a reboque dos acontecimentos. Não se justifica fingir que
se pensa a problemática contemporânea, sem ser precursor. O analista não tem
o direito de estar a reboque, pois se está acossado pela Zorra inconsciente, deve
estar, pelo contrário, no mal-estar de ver o reboque em que todos vão.
Fico inventando esses brinquedos no sentido de tentar equacionar um
pouco essa questão. Esse hexaedro aí, por exemplo, é dessa tentativa, mas é difícil.
Fazendo um parêntese, há um horror que está aproximando as socie-
dades ora viventes. Dizer isto parece absurdo, mas é verdade. Está se aproxi-
mando um horror que jamais apareceu tanto assim na estória do falante: o horror
da liberdade. Vocês lembram a definição que Lacan nos dá da liberdade. Está
no Seminário 2: a liberdade é a liberdade de escolher, de fazer escolha entre
o máximo de variantes possíveis. Não há conceito de liberdade mais contem-
porâneo. Tanto mais um falante é livre, quanto mais opções e diversificações
ele se põe. Ora, a deterioração da cultura, caindo no esgoto da informação
generalizada, vai pôr o sujeito, à sua revelia, diante dessa “liberdade”. Ao invés
de lutar por ela, começa a se esforçar por restringir a liberdade, para não se
sentir muito mal. Este é o horror que está por vir. As opções são tantas, que o
sujeito se intimida com a escolha. E quando se vê, mesmo na prática de ditos
analistas, sejam eles lacanianos ou não, o horror à prática da liberdade, aí é a
noite escura. Analistas se agarrando a ditos, por exemplo, de Lacan, ditos que
são evidentemente explosivos, como se fossem supositórios anti-castração.
Outro dia entrei numa aula aqui em nosso Instituto Jacques Lacan, e
fiquei horrorizado. Na boa intenção do estudo, o professor trouxera um texto
demasiado débil mental, onde se lê um dito analista até com algum sucesso
internacional, dizendo asneira com a maior serenidade. Quando um analista
começa por aí... Não vou dizer o nome dele, pois não estou com vontade de
falar mal de ninguém pessoalmente hoje, mas estou alertando: a gente entra
nessa; ao invés de urgir articulações possíveis, a gente vem com os aparelhos

242
O hexaedro

prontos da cultura, e investe até no trabalho analítico. Isto é obscurantismo.


Isto só tem passado, isto não tem futuro. Bom, isto era um parêntese.

* * *
Voltando ao hexaedro, começa a ficar um bocado complicado isso. Do
lado de cá, temos esse tetraedro muito esquisito, com essas arestas chamadas
S1, $ e S2. Tetraedro que me obriga a fazer novas considerações a respeito de
muita coisa. Consideremos, por exemplo, o lugar triádico do objeto a, cons-
tituído nesse sarilho aí de Sujeito, Significante-Mestre, Significante-do-Outro.
Vocês conhecem a idéia que Lacan faz do EGO: um a. Essa idéia de Ego que
Lacan nos traz com sua crítica, naquele Seminário antigo, o Dois, como uma
formação imaginária. Isto não é compatível com o próprio futuro de Lacan. É
uma maneira de criticar o Ego bastante importante nesse momento, mas não é
possível, no futuro do próprio discurso de Lacan, o Ego ser puramente imagi-
nário. No que o situa como objeto, já deslocou do Imaginário. Esse a-zinho
minúsculo que está no hexaedro comporta lugar de incrustração de objeto como
lugar de incrustração do Ego. Temos que começar a reformular um pouco esses
conceitos a partir do último Lacan. Não vamos confundir o aprisionamento
do Ego com o Ego. Não vamos confundir o aprisionamento do objeto com
o objeto (que é Real, Simbólico e Imaginário). Estas colocações aqui são no
sentido de readequar.
Há uma coisa que me é bastante cara dentro desse hexaedro. O mo-
mento criativo, produtivo, de Lacan, exigia rigor extremado no que diz respeito
à limpeza dos processos (que estavam muito sujos ao redor), e fixar-se sobre
a questão das estruturas, no sentido lacaniano da matemização das estruturas,
da topologia, etc., sendo que foi por essa via que ele entrou num certo anti-
edipinianismo. Mas algo ficou relegado – o que não é nenhum defeito, a meu
ver, em Lacan, o rigor do seu momento exigia isso –, é um abandono de questão,
para que essa questão não sujasse o panorama dos seus achados: a questão do
QUANTITATIVO. Não há a questão do quantitativo equacionada na obra de
Lacan. Há a questão do quantitativo suscitada no discurso dele, mas não equa-

243
O Sexo dos Anjos

cionada. Ele vai terminar na topologia, no tempo, mas, musicalmente falando,


onde vamos situar as intensidades, as alturas, as durações?
Todo mundo que lida na prática analítica sabe que esses estruturemas
funcionam muito bem. Que as intensidades não se distribuem igualmente por
todos os níveis. No que esse hexaedro me ajuda é na possibilidade de considerar
(não exatificações quantitativas, mas) intensidade maior ou menor. Poderia
suspeitar, num determinado falante, uma vertente forte demais, no nível de
S1, S2, com baixa no nível de $. A questão é de intensidade. Foi aí que os De-
leuze e Guattari entraram. O que faltou do projeto lacaniano eles tomaram, e
quiseram fazer disso grande coisa. Ficou para eles a questão das intensidades,
das quantidades. Neste ponto é preciso ser freudiano (mesmo com o chamado
Projeto) onde a questão da quantidade de investimento é essencial.
 P – O que o Lacan toma do Projeto é que, em termos do próprio Projeto, toda
a quantidade era traduzida em termos de complicação no aparelho psíquico.
Aí ele está tranqüilo para dizer que se trata de articulação e que se pode
abandonar a quantidade.
Mas acho que não pode, pois há que se dar conta dessa complicação
na escuta. Onde é que se complica, para o sujeito, onde é que pesa a conta do
investimento quando está mais para tal lado? Desenhar a estrutura e ver que é
ali, mas quanto ali? Mais aqui do que ali? Mais ali do que aqui? Na reflexão
sobre um Esquema desse tipo, se reflete junto um quantum de investimento,
um quantum de ocupação, se representa melhor. Essa estrutura funciona, mas
se eu tiver condições de notar, de ter um Esquema que me dê notação mais para
lá, mais para cá, quantitativamente, vejo melhor a forma que tenho diante de
mim. Porque isso se apresenta como forma.
 P – E permite deformarão?
Sim, claro. Deformações do hexaedro, em termos gráficos. Enfim,
vamos ver onde vai dar isso. Não sei ainda. Só estou dizendo que é preciso
retornar a tudo isso, repensar isso.
 P – Seria importante se pudesse dizer que aumentou, aumentou, mudou de
qualidade. No que aumenta a quantidade, muda de qualidade...

244
O hexaedro

Posso fazer a suspeita de que uma diferença quantitativa extremamente


grande mude a qualidade. Não sei se necessariamente a qualidade. Mas, como
as referências são múltiplas, uma deformidade num determinado lugar pode
resultar numa forma tão esdrúxula que apareça outro tipo de composição.
 P – Efeito anamorfótico?
Ou, metamorfose. Há as anamorfoses do falante. Se é anamorfótico, é do
mesmo campo, é da mesma estrutura. Mas podem aparecer efeitos perspécticos
completamente novos, e anotáveis. Quem sabe?

* * *

Vejam que as setas que estão indicadas são em dois sentidos sobre o
hexaedro. O que acontece com o falante é que, segundo este Esquema, o Haver
é problemático. Se o Haver, enquanto tal, funciona sozinho na sua inconsciência
e produz o que lá aparece nisso que a gente chama de physis, do lado do falante,
nesse gap que existe, que nasce entre o Haver e o novo Haver, o re-Haver, o
re-falante, o re-falar, tudo tem que ser instantaneamente produzido. Temos
então que esse a minúsculo substitui para o falante o Haver que lhe é dado por
um Haver a ser produzido. O Haver que lhe é dado também está em produção,
mas é dado, quando comparece, e há o Haver produzido a partir do seu próprio
lado. Esse objeto novo é problemático. Pois um objeto já constituído, que cai
como resto, passa a fazer parte do dado. Se o falante impõe um objeto novo,
com suas possibilidades simbólicas, esse objeto cai no Haver dado. Passa a
fazer parte do Haver que há.
Mas o falante, no seu movimento desejante, tem que viver constituindo
esse objeto, o que é a mesma coisa que se constituir como esse Haver. Ele tem
que se constituir. E aí muda inteiramente o estatuto do Ego: o Ego é a ser produ-
zido. A função egóica de que Lacan fala é a que ele define como especulação
imaginária, outro modo de definir essa prisão imaginária de reflexo especular
que ele quis chamar de Ego. Mas, na verdade, Ego é a ser produzido. É aquilo
que vivo na tentativa de produzir, quando não estou neurótico. O neurótico é

245
O Sexo dos Anjos

aquele que acredita que tem tal Ego, e pronto! Este é o Ego que Lacan critica.
Ego estabelecido, que não desliza. Mas o Ego que não está aprisionado assim,
é esse objeto a ser entregue ao Outro como resto. Entrego meu Ego, como resto
produzido, ao Mundo. É esse corpo estranho, que vou me fabricando, corno Ego.
Mas continua esse descentramento entre esse Ego que fabrico e o Sujeito que
sou. Vou fabricando esse objeto para entregá-lo ao mundo; e aí a importância
do narcisismo. A gente sempre fala tão mal dele, mas há duas faces de Narciso.
Narciso não é senão ser/ter a. O narcisismo desvairado é esse, doentio, de
um sujeito se escorar num ego que ele suspeita ter. Mas Narciso tem sua face
produtiva. A face de se produzir como resto. Então, é preciso tirar Narciso da
sua estupidez. Sem estupidez, Narciso é fundamental. E não há transação fora
do narcisismo. Fora do narcisismo não há transação.
 P – Cheguei aqui atrasado hoje, mas logo vi que com essa correção do
narcisismo você dá melhor a entender a distinção brilhante que você fez entre
fantasia, alucinação e delírio, como efeitos do campo do Outro. O campo do
Outro tem S1 , S2, $ e a. Quando $ cinde na marcação de a, a cinde na marcação
de $, isto é fantasia. Você coloca que quando S1 provoca isso, isso se torna
alucinação. Quando S2 provoca isso, isso se torna delírio. Mas articulando
com essa questão egóica que você apontou (que Lacan coloca aparentemente
correspondente a uma visada imaginária direta), na realidade ela nos remete
ao caráter simbólico da constituição do objeto, elide a, ainda que seus
efeitos sejam imaginários. Isto só é possível se distinguirmos, na estrutura do
narcisismo, o seu aspecto produtivo, que é simbólico, do seu aspecto efetivo
no sentido de efeito que cria isso que chamamos grosseiramente de pequeno
narcisismo. Articulando com o que você fez, fica óbvio, pois fantasia incide
sobre Sentido. Há mesmo autores que privilegiam essa incidência, como se
fosse a própria topologia da fantasia. Então, em Sentido falta o quê? Sentido
é simbólico invadindo imaginário. Falta real. Esse real que falta na fantasia
é justamente o lugar onde foi projetado o objeto, sua explicação, isso dá
certo nos três. Alucinação desejante não é literal em Freud, não é na ordem
do onírico. O onírico não é o momento de articulação da verdade do sujeito

246
O hexaedro

para Lacan em Bonneval? Portanto, de sintoma, como santidade e fantasia,


portanto, de simbólico e de real? Por isso que aquela voz que é metaforonímica,
aquilo se chama linguagem, não falta ali justamente onde o imaginário, onde
S1 projetou o objeto? E na alucinação, nas psicoses, não tem uma colagem de
real e imaaginário? Não falta ali justamente onde S2 projetou o objeto que é
simbólico? lsso amarra, isto só pode se amarrar pela questão do narcisismo.
É a minha questão. Se não pensarmos essa bifididade de Narciso, não va-
mos entender que é preciso recolocar o narcisismo ou bem na sua função criativa
e produtiva ou bem na sua função estúpida. Não tem nada a ver uma coisa com a outra.
Quando Lacan diz que todo amor é narcísico, diz tudo. É produção que depende
de fantasia, que depende de alucinação, que depende de delírio, no sentido mais
limpo dos termos, no sentido escritural. Então, a (h)alegria, com ou sem agá, que
está no nome de Freud, é nitidamente narcísica. Os analistas de ego morto que
são herdeiros da IPA, esconderam a função narcísica deles, e querem fagocitar a
dos analisandos, como se isto fosse possível sem velório. É preciso o magnificat,
o exultavit, de um Narciso que se desprega das amarrações dadas. Há essa faceta,
no mito de Narciso, de ele dizer, na cara de Eco, que ele só ama Eco de Narciso.
Isto foi o que Freud nos trouxe. O que é diferente do narcisismo a ser curado no
neurótico, no que ele pensa que tem essa imagem já dada. Já constituída. Mas
estou tentando limpar um pouco a noção de ego. Esse ego que subjetivamente
aponto como meu, é projeto, é a ser produzido, assim como os meus objetos
são produzidos, se não sou perverso, nem neurótico, nem psicótico.
Então, acompanhando aí o hexaedro: se esse objeto a é conjeturado, ele
se projeta nos planos de Real, Simbólico e Imaginário por vias de Sujeito, de S2
e de S1. Mas a via contrária também é verdadeira. É uma relação progressivo-
regressiva, pois não tenho esse objeto. Vamos supor que eu tivesse esse objeto
como dado: é que S1, S2 e Sujeito, para ele, são coisas presas, amarradas. Mas
se não tenho esse objeto constituído, só posso fazer o quê? Inverter as setas, e
buscar, na produtividade do S1, do S2 e desse lugar de Sujeito, a constituição
perene desse objeto. Então, você ouve nitidamente na fala de certo analisando
que ele está amarrado na funcionalidade do Saber. É o caso, por exemplo, do

247
O Sexo dos Anjos

Universitário. O S2 é amarrado: isto já prejudicou a constituição do objeto.


 P – Georges Bataille na Suma Ateológica, coloca justamente que não acredita
haver ninguém que tenha tido uma prática de saber, pela via da Universidade,
que possa acompanhar o que ele chama de “experiência interior”.
Eis o que periga entre os ditos analistas, quando eles fazem da psi-
canálise um saber constituído, e dançam os minuetos intelectuais de um S2 já
demarcado lá no campo do Simbólico (não que ele seja Imaginário enquanto
tal, mas se imaginariza no que se fecha, no que se completa, se sistematiza
definitivamente). Acabou-se! Esse dito analista está dodói, não passa bem. Ele
não tem liberdade. E a psicanálise é a prática da liberdade.
No esquema projetivo do hexaedro, há heterogeneidade de elemento
para elemento. Nenhum é igual ao outro, nem pertence ao mesmo plano do
outro, ao mesmo nível de articulação, de produção. O nível de produção varia.
Se não, teria um índice dois, alguma coisa ao quadrado. E não acontece isto
nem uma vez.
Quero fazer umas conjeturas aqui. No que o sujeito – que não se rep-
resenta como significante propriamente dito, nem como S1 nem como S2, mas
tem sua substancialidade entre Articulação e Sistema – é projetante do objeto no
Real, o que será que comparece como furo, no sentido geométrico, como traço
desse eixo do sujeito sobre o plano do Real? O que se projeta? O que se projeta
por essa projetante? O encontro no ponto 3. Observem que botei aí 3 idêntico
a a3, como numa representação descritiva. Temos a1, a2 e a3 como projeções de
a, segundo $, S1 e S2. Mas o que será que comparece no ponto 3, como projeto,
como projeção do objeto segundo o Sujeito? Suspeito que seja o Falo. Eu poria
falo no ponto 3, no plano do Real. O falo lacaniano, o falo freudiano. O ponto
3 é Φ. O falo não é senão aquilo que o Sujeito projeta do objeto no Real. Ou
seja, no que ele se projeta como objeto e projeta seu objeto no Real. Quando
Lacan diz: a mulher é o falo para o homem, o homem tem o falo para a mulher.
É essa projeção, no Real, disso que sustenta o desejo, mediante a fantasia, que
é essa relação entre o objeto e sua projetante. O que posso projetar no Real. O
que, como sujeito projetante do objeto, faço minha projeção, é falo.

248
O hexaedro

 P – A única oposição que você teria é quando Lacan, no Encore, diz que S1
é uma maneira de aparição do falo.
E é! Neste Esquema também.
 P – O S2 também é o falo?
Não é o falo. Lacan diz também que o Nome do Pai é o falo. Isto é maneira
de dizer. No nível da minha projeção de S1, o que é que corresponde ao falo, como
projeção do sujeito no Real? O que corresponde lá no Imaginário como projeção
de S1? O que comparece é o que eu gostaria de colocar aí: Traço Unário. Traço
unário no ponto 1. O que Lacan chama de traço unário? Tem a ver com o S1.
É alguma marca retirada do Imaginário que vai ser trazida para composição,
mediante um jogo significante. T maiúsculo, índice um: Traço Unário. O que
será que o significante do Outro, como projetante do objeto no Simbólico, ap-
resenta como projeção lá no Simbólico (no meu Simbólico, não é o simbólico
de Lacan)? S2 projetante do objeto no Simbólico: o que lá se projeta é Nome
do Pai. Ponto 2: o Nome do Pai, para Lacan, é o significante que no campo do
Outro o representa como lugar da Lei. Essa Lei, no que ela vem de fora, tem
a ver com a própria constituição do objeto e do ego. Esse Ego novo que estou
trazendo hoje. Os problemas de Narciso com a Lei. São problemas da projeção
do significante do Outro nesse campo do Simbólico (não o lacaniano).
 P – Não é Ideal-do-ego?
Ideal-do-ego quanto Ego-ideal, são formações distorcidas no ponto a,
como objetos, com dois sentidos opostos. Há que saber qual é a composição
que, ao invés de deixar um objeto a em aberto, ou um Ego em aberto, coalesceu
um Ego-ideal ou um Ideal-de-ego. São coalescências do objeto.
Tomemos o ponto 6. Do ponto de vista do hexaedro, ele é diagonalmente
oposto ao ponto . E do ponto de vista da sua constituição, como efeito entre
Sistema e Articulação, ele tem que participar da ordem do que, no campo do
falante, seria Sujeito. Observem dentro do quadrado: o ponto 6, do ponto de
vista do hexaedro, é diagonalmente (diagonal do hexaedro) oposto ao ponto
φ, o ponto 3. Mas, do ponto de vista de sua constituição, como resultante que
é de Sistema e Articulação no tetraedro de trás, ele ocuparia o lugar que o Su-

249
O Sexo dos Anjos

jeito ocupa no tetraedro de cá. O Sujeito, no tetraedro de cá, é uma aresta entre
Articulação e Sistema. Tomemos lá atrás: Articulação e Sistema, resulta no
ponto 6, revertido, que seria diagonalmente oposto ao lugar onde compareceria
o Sujeito se ele fosse complicado a ponto de comparecer. Não há sujeito aí.
Esse ponto sobre o gozo-do-Sentido aí, aparece marcado como efeito
dessas duas arestas: Articulação e Sistema. Qual é o efeito disto no tetraedro do
falante? É Sujeito. No outro, não comparece sujeito, comparece um ponto onde
adviria sujeito se ele adviesse, se gnomo fosse mais complicado. Eu aí escrevo
algo de bárbaro: Falo-primitivo. Não é o falo no sentido do Simbólico. É o que,
na instância do que não é falante, teria o valor que o falo tem para nós. O falo,
para o falante, tem valor de significante do desejo que, no tetraedro do falante,
está inscrito sobre o eixo do sujeito como projeção do a, mediante a projetante
sujeito. Na ordem do falante, é significante do desejo, porque ele tem que ser
determinado a cada momento nesse tetraedro variante.
Outra coisa é a ordem do não-falante. Um macaco, por exemplo, que não
é falante, o que ele tem como falo é o sentido do seu gozo, dado. O que é fálico
para o macaco é seu gozo do Sentido lá no Haver, dentro de sua modalidade.
Ele goza com sentido... e consentimento. Basta ler Lorenz, os etologis-
tas... Vocês se lembram de um esquema que fiz n’O Pato Lógico: sexo próprio,
outro sexo, sexo do outro, etc. O que goza, segundo nossa experiência fálica
lá do bicho, é o sentido do seu gozo, entre um sexo próprio marcado e o sexo
do outro marcado nele mesmo. Isto lhe dá sentido. Ele tem sentido. Eu, tenho
que fabricá-lo, não tenho esse sentido.
Então, o que corresponderia à minha indicação fálica, projetada no
Real, lá para ele, é indicação fálica com sentido, gozo do sentido tido, não a
ser dado. O que dá sentido à vida do macaco é tocar punheta, todo mundo sabe.
Essa obsessão masturbatória do macaco é porque ele não pensa em outra coisa
senão na macaca, coitadinho. Ele está com a macaca...
Vamos tomar o ponto 5. Falo-primitivo, ou primevo, se quiserem. O
ponto 5 corresponderia, se fosse o falante, ao S2, no qual se inscreve o Nome do
Pai, como projeção, eu escreveria lá outra barbaridade: Pai-primitivo. Não é à

250
O hexaedro

toa que o Pai primitivo – La Bête daquele filme pornô – está em lugar propenso
ao feminino: no gozo-do-Outro.
Isso não é nenhuma paternidade, no sentido do falante, pois não há
paternidade no sentido animal. É no sentido de que, nos eventos lá do mundo
do não-falante, esse lugar designaria as possibilidades de gozo-do-Outro, a
garantia do gozo-do-Outro. O que pode ser o gozo-do-Outro para o macaco?
Vamos pegar o mito da horda primitiva, de Freud: o que pode ser o gozo-do-
Outro para aquele bando que Freud nos designou antes de o pai ser morto? E
o gozo da mãe. Gozo da mãe nos dois sentidos.
É a partir do lugar do falante que faço essa conjetura de um lugar
“semelhante” lá no não-falante. Para ele, não há essa paternidade. Para ele, só
há esse registro: gozo-do-Outro, gozo-fálico, etc. O que se articula lá para ele,
vamos dizer assim, naquele esquema d’O Pato Lógico, é que esse Pai-primitivo
está no lugar do Outro-Sexo. Seja qual for o Outro-Sexo. O Outro-Sexo é que
é parecido com o Pai-primitivo. É por isso que, depois, na ordem do falante,
o Pai é que é amável. O amor vai para o pai. O pai é a própria residência do
Outro-Sexo. Isto é um espanto, não? A residência do Outro-Sexo, é o Pai, não
é a mãe não.
O ponto 4, que é a experiência de gozo-fálico, resultante aí de Articu-
lação e Traço, é onde eu poderia supor, no não-falante, um Traço-primitivo,
experiência de Traço no gozo-fálico. Nessa experiência do gozo-fálico, algo
se apresenta como um Traço demarcatório. Então, teríamos um Pai-primitivo,
um Falo-primitivo e um Traço-primitivo absolutamente pervertidos na do
falante, pois o Nome do Pai não é da ordem do Pai-primitivo. Ele se instala aí
em resultante, a meio caminho do Falo-primitivo e do Traço-primitivo, sem ter
nada a ver com o Pai-primitivo de lá que é outra história.
 P – Você poderia talvez desenvolver melhor isso. Qual a necessidade disso?
Até agora, no seu Esquema, os lugares estão justificando essa nomeação. Essas
nomeações, elas me parecem meio vagas.
A mim, também. Só estou procurando o que eu possa referenciar lá no
campo do não-falante como demarcações de surgimento de modalidade. Isto é

251
O Sexo dos Anjos

uma tentativa de equiparação. Posso conjeturar, por exemplo, que se eu puder


vir a sustentar que o Pai-primitivo se escreve no ponto 5 e o Falo-primitivo no
ponto 6, que deformações, por comparação imaginária (no sentido de Lacan)
com o animal, podem fazer o sujeito estabelecer o Traço-unário a partir disso
na sua história? Assemelhar-se a um animal – o que não é difícil. Por exemplo:
quando estamos no regime da cultura ainda vigente em nosso seio, que quer
referenciar ao supremo de genital a ordem da prática erótica, está-se fazendo
a conjetura de que o Pai-primitivo e o Falo-primitivo norteiam nosso Traço-
Unário, que o devem nortear. Isto é imbecilidade.
 P – No que você está colocando, é como se você estivesse falando do sósia,
no sentido em que Guimarães Rosa diz lá no Espelho: “vencer o meu sósia
na escala animal”.
É algo dessa ordem. O sósia animal é uma coisa que é extensiva e in-
tensivamente praticada pela cultura neolítica de até hoje. É o que Lacan goza
com o nome de supremo de genital.

* * *

 P – Seria por aí que poderíamos entender o totemismo...


Entender o totemismo é coisa das mais importantes: entender a liber-
dade. O que é a liberdade, por exemplo, na referenciação do falante, com respeito
ao macacão, mas fora dos atributos do macacão? Por exemplo: do ponto de vista
da prática erótica, só existe uma liberdade que se chama heterossexualidade.
Mas quando digo uma palavra dessas, os tolos vão pensar, feito a analista débil
mental há pouco citada, que podem referenciar homossexualidade e heteros-
sexualidade ao boneco, e aos movimentos, não pulsionais, porém de sentido,
de Falo-primitivo que existe no animal.
Então, tomam-se conceitos, por exemplo, como de homossexualidade
e heterossexualidade, mesmo nas dubitações de Freud – embora Freud faça
disso uma explosão – onde ele continua a se referir à praticagem da cultura,
onde isso é referenciado à estrutura do animal. Vivemos numa cultura que, até

252
O hexaedro

hoje, tem problemas feministas, tem problemas bichistas: essa coisa grotesca.
O que se pode colocar como conceitos de homossexualidade e heterossexuali-
dade dignos, ou seja, de acordo com a articulação simbólica de hoje? É preciso
contestar o Partido Feminista, o Partido Machista, o Partido Viadista, o Partido
Sapatista: está tudo errado. Se formos rigorosos, temos que dizer que só existe
uma liberdade, que se chama heterossexualidade. A homossexualidade é, de
qualquer maneira que ela compareça, da ordem do projeto animal. Mas resta
definir o que seja heterossexualidade e o que seja homossexualidade. Existe
uma, e apenas uma, heterossexualidade possível: transar com Outro. Ou seja:
a liberdade de “escolha”, pelo Sujeito.
 P – Pelo que você acabou de dizer, volta-se à questão do narcisismo. A única
liberdade é a heterossexualidade que só há na ordem do amor e, portanto, na
ordem do narcisismo. Não é à toa que o narcisismo sofre tanta incidência de
mal-entendido.
Não são só transas e nada mais. Vamos ouvir a musiquinha de novo...

O Seminário termina com nova audição de


Transas, de Ritchie.

13/NOV

253
O Sexo dos Anjos

254
Lilith

5
LILITH

Hoje, encerro o Seminário do semestre. Vamos deixar maiores con-


siderações do hexaedro do Haver para outra ocasião e retomar alguns pontos
sobre o Esquema Delta. Trata-se de encontrar, em alguns sítios da cultura, da
escritura, indicações da trindade sexual.

* * *

Há uma questão que foi, durante este Seminário, diversas vezes colo-
cada. Foi colocada, na verdade, por Aluisio Menezes, quando eu comentava
do Masculino, do Feminino e da existência de um Terceiro Sexo: a questão do
mito hebreu da Lilith. Quis me dar a impressão que Aluisio queria forçar uma
posição para a Lilith no terceiro sexo, no Falanjo, e eu disse que não e que
não queria comentar naquele momento. Agora chegou a hora, mesmo porque
está vendendo muito no mercado brasileiro esse livro de um chamado Roberto
Scutteri, dito psicanalista junguiano, intitulado Lilith, a Lua Negra. Ele faz um
estudo junguiano do mito da Lilith. É um monte de baboseiras. É um glosar de
asneiras, o livro, sem, no entanto, deixar de acumular elementos de suspeita
erudição a respeito do tema. Mas é aquele mesmo papo junguiano, só que desta
vez em baixo calão. O máximo que consegue é chegar a um grande horóscopo.
Acaba por recolher tudo que ele consegue ajuntar numa questão de astromancia.

255
O Sexo dos Anjos

É uma besteira. Mas certamente, porque está na moda a astrologia, vai botar
muita gente interessada na questão da Lilith.
Vou tentar situar – não por vias eruditas, que isto não me interessa, mas
por enquadramento na conceituação do meu Esquema – a famigerada Lilith,
de uma maneira que é inédita, já que ninguém a colocou assim.
Essa figura, esse personagem chamado Lilith é parte da mitologia
hebraica, a qual não está incluída no Velho Testamento (que pretende ser um
texto religioso, embora fazendo grande mitologia de Adão, Eva, o Paraíso,
retirando uma série de elementos da mitologia hebraica). Era dita uma figura
feminina, a Lilith, que os mitólogos apresentam como a primeira mulher de
Adão. Antes de Eva, Adão tivera tido outra mulher que se apresentava como
algo de tal maneira horroroso, senão terrorista, pois desafiava frontalmente o
próprio Deus, o, mal-dizia. Ela acaba retirada para as franjas do Mar Vermelho,
uma região desértica, e não entra de modo algum nos aparelhos mitêmicos de
construção do Gênese, no Velho Testamento. O próprio Graves no seu livro
sobre A Deusa Branca, também por duas vezes apresenta muito brevemente
a Lilith como a primeira mulher de Adão. Pelo que conheço a respeito, essa
indicação de primeira mulher de Adão não faz parte de nenhum mito. Fico
com a impressão de ser efeito de leitura de um mito arcaico e que, em função
do manejo do Velho Testamento, no Gênese, as pessoas começaram a atribuir
a Adão essa mulher.
Mas uma vez que esse mesmo mito comparece em diversas culturas,
e não só na hebraica, nada indica que ela tenha que ser, mitologicamente, a
primeira mulher de Adão. As coisas ficam complicadas justamente porque al-
guns mitólogos, e Jung e seus junguianos em particular, nesse afã de resolução
da relação sexual como possível, tentam apresentar com uma leitura talvez
forçada – não posso garantir, porque não conheço aquelas línguas, mas pelo
que se compara em textos traduzidos – dos dois momentos subseqüentes, logo
no começo do Gênese, de surgimento do macho e da fêmea, do masculino e
do feminino, fazendo com que o Adão primitivo, segundo eles, fosse neces-
sariamente andrógino, o que me parece uma acabada bobagem. De onde se tira

256
Lilith

isso? Estou aqui com várias edições do Velho Testamento, da Bíblia em geral.
Sempre uso a Edição Tob, que é aquela ecumênica, que fica bastante fora de
suspeita porque foram tantos interessados na tradução que ela apresenta as vari-
antes possíveis. Vocês se lembram que já toquei nesse assunto num Seminário
velho, tentando mostrar que esses dois momentos de criação do homem, que
aparecem sucessivamente em meios discordantes do Velho Testamento, cor-
respondiam um à criação da espécie, momento da própria criação da espécie
com machos e fêmeas, o qual não tem nada a ver com o momento seguinte,
que é o do surgimento de Adão e Eva, momento do advento do falante inserido
no processo da língua e da Lei. Naquele tempo expliquei assim. A espécie já
existia, com machos e fêmeas, quando o Gênese recoloca uma nova fundação
de Eva como companheira de Adão. Quero entender que isto é no projeto de
explicar o surgimento não do macho e da fêmea, mas do masculino e do femi-
nino, o que é bem diferente, pois não há masculino e feminino entre animais,
só há machos e fêmeas.
A projeção que se tenha feito sobre os corpos é nessa inércia do imaginário
que Lacan acusa fortemente no Seminário sobre o Ego. Nada indica que se tenha
que projetar o masculino e o feminino sobre o imaginário do corpo. Tanto é que
o fêmeo e o macho são anteriores. Eles tentam equivocar no primeiro capítulo
do Gênese. No item 26, Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, se-
gundo nossa semelhança e que ele submeta os peixes do mar, as aves do céu,
os pequenos animais, toda a terra e todos os bichinhos que se movem sobre a
Terra”. No item 27: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o
criou, o homem” – genérico. E em seguida: “Macho e fêmea ele os criou”.
A luta desses junguianos é dizer que esse “os” criou está errado, que o
macho e fêmea ele o criou. Para dizerem com isto que ele criou um andrógino,
o que é uma acabada tolice. Não é necessário pensar assim para se dar conta
de Adão e Eva, porque, lá adiante, quando trata do jardim do Éden, há aquele
velho texto que vocês bem conhecem (2,7): “O Senhor Deus modelou o homem
com a poeira tomada da terra. Insuflou em suas narinas o hálito da vida” – o
sopro divino. “Depois, o Senhor Deus plantou um Jardim no Éden, ao oriente, e

257
O Sexo dos Anjos

colocou ali o homem que havia feito. O Senhor Deus fez germinar do solo toda
árvore de aspecto atraente e bom para comer, a árvore da vida no meio do jardim
e a árvore do conhecimento da felicidade e da infelicidade” – bonheur e malheur,
que não é necessariamente infelicidade e felicidade, mas do encontro e do des-
encontro. Mais abaixo (2,18): “O Senhor Deus disse: ‘Não é bom para o homem
que ele esteja só. Quero lhe fazer uma ajuda que seja de acordo com ele’. O Senhor
Deus modelou do solo todos os bichos do campo, todas as aves do céu, que Ele
levou ao homem para ver como ele os chamaria. Tudo que o homem designou,
nomeou, tinha por nome ser vivo” – e aí vai. “Para achar essa tal ajuda o Senhor
Deus fez o homem Adão cair num torpor e ele dormiu, tomou uma de suas cos-
telas e fechou com carne o lugar de onde Ele tirou. O Senhor Deus transformou
a costela que havia tomado do homem numa mulher que Ele lhe levou. Então
o homem exclamou: ‘Eis desta vez o osso dos meus ossos e a carne de minha
carne! Esta chamaremos de mulher, pois é do homem que ela é tomada’.”.
Antes, Ele não fez homens e mulheres, mas sim machos e fêmeas; Ele
criou O Homem. Agora, Ele fez o masculino e do masculino retira o feminino.
Parece-me inteiramente forçado aproveitar-se desses dois momentos para dizer
que Adão era andrógino e que depois há separação de sexos. Isto me parece
absolutamente inoperante.
Não estou interessado nem em erudição nem em cabala, repito, e sim
nisso que vige por aí, o que ficou e que me parece uma construção inteligente:
num primeiro momento, a criação é do homem como espécie, entre machos e
fêmeas, num segundo momento é que vem aparecer um sujeito debaixo da Lei,
com uma proibição de comer de um determinado fruto, e dele se retira alguma
coisa para criar esse feminino através do qual a Lei vai ser, não contestada mas,
equivocada. Isto me parece bem mais brilhante: a criação do macho e da fêmea
nada tem a ver com a criação do homem e da mulher. Exige a passagem desse
momento de legislação, de proibição, de interdição, delimitação criada sobre
o par já constituído, sobre a diferença já induzida.

* * *

258
Lilith

E o que pode ser a Lilith? Nesse jogo, ela não comparece no Velho Tes-
tamento. Por que? Aviso outra vez que estou pegando o texto bíblico e enfiando
dentro do meu Esquema... Quero que seja assim. Vamos ver se funciona ou não.
Jeová é um Deus masculino. A tradição hebraica é de um Deus no masculino.
Mas não é apenas um Deus no masculino e ponto! É um Deus perfeitamente
compatível com a vigência do gozo-fálico, segundo o meu Esquema – por isso
coloquei ali o fiat da criação no gozo-fálico. O Velho Testamento, dos judeus,
começa com a criação a partir de uma posição masculina na produção, na
emergência das diferenças, na emergência do Simbólico.
Jeová é nitidamente um Deus de postura fálica e de produção simbólica,
no sentido do meu Esquema: esse fiat explode imediatamente na criação da
luz, da terra, do céu, dos astros, etc. Esse momento explosivo do gozo-fálico
resulta nesse lugar do , e a criação de todo o Campo do Sentido, segundo
Jeová, segundo a vontade explosiva do Jeová. Eu diria que Jeová é um Deus
epiléptico, no sentido do termo. O que caracteriza o Jeová bíblico é a epilep-
sia, é esse seu ataque... Releiam o que Freud trata sobre a epilepsia, no caso
do Dostoievski, leiam também a crítica de Philippe Sollers, publicada em seu
livro Théorie des Exceptions, à abordagem que Freud fez, e verão que há o que
tornar a pensar sobre a epilepsia, mesmo em termos nosográficos, patológicos.
Passando rapidamente, eu diria que Freud não ligou muito bem para a questão
de Dostoievski, que podia ser um pouco melhor trabalhada, talvez. A questão
que se põe ali, no epiléptico, é a de um ataque da ordem do gozo-fálico sem
correlação corporal, digamos assim, um gozo-fálico sem orgasmo. Algo lá,
de gozo-fálico, acontece na ordem da psiquê do sujeito, e ele entra naquele
estado de epileptikós. Isso é do sentido do termo grego, ação de agarrar, ataque
ou repreensão, ou ser surpreendido, ser pego em flagrante, é da ordem disso
que chamo explosão, em gozo-fálico. Gozo-fálico é epiléptico, é um ataque
epiléptico, no sentido do termo e não no sentido da nosografia.
Então, há esse Deus epiléptico, que o é tipicamente, Jeová. Assim, a
criação, na religião hebraica, é da ordem desse momento epiléptico e da
produção desse Campo do Sentido no projeto da diferença. Ora, atribuem a Lilith

259
O Sexo dos Anjos

um lugar de primeira mulher de Adão, o qual não comparece, de modo algum,


por esse tempo, a não ser como machos e fêmeas. Não há também necessidade
de nenhum androginismo, de nada disso no momento inicial.
O que não cabe no projeto hebraico, que é esse processo de criação a
partir de um ato, é justamente a mulher de Deus, a mulher de Jeová. Porque
Jeová se apresenta nitidamente no masculino, nitidamente no fálico, no
epiléptico, e no criativo desse epiléptico, e não comparece, no texto religioso
dos judeus, nenhum feminino dele, este foi relegado e recalcado para a mi-
tologia anterior.
Então, no que Jeová é esse Deus epiléptico do fiat, que se situa no lugar
do Masculino com o seu projeto do , vamos ter a Lilith justamente situada,
não no lugar do neutro, mas justamente no gozo-do-Outro. É isto que não
consta do projeto bíblico. A Lilith é da ordem do gozo-do-Outro, mas a situar-
se no Não-Há. Quer dizer, o judeu sacou perfeitamente que não há A Mulher.
Porque, se houvesse a Lilith, se ela se configurasse como um projeto vindo do
gozo-do-Outro para se tornar aquilo que é impedido de ser pelo Real, existiria
A Mulher de Jeová. Quer dizer, Lilith não pode ser senão projeto do próprio
desejo de Jeová quando ele cumpre a tarefa do seu sentido: todo o movimento
desejante – e isto não deixa de ser uma teologia do inconsciente – desse Deus
(o Deus da Psicanálise não é Jeová, e sim esse movimento inconsciente na
sua inteireza). O Deus dos judeus foi inscrito no gozo-fálico. Ele explode em
criação. E o futuro dele só pode ser um: a morte desse projeto, não a dele, a
do seu processo criativo, sua neutralização e o seu desejo de se encontrar, ou
seja, tornar-se o Não-Haver, o que é aliás absolutamente impossível. E a Lilith
é banida do texto bíblico por razões de constituição desse veio de criatividade,
e assim simplesmente não há lugar para ela. Ela é apenas desejada segundo o
gozo-do-Outro, ela não há. Assim como Jeová é um projeto fálico, no sentido
da diferença, a Lilith é um projeto de Não-Haver, no sentido da Morte, da
eliminação absoluta da diferença.

 Pergunta – Então ela não poderia ser simbolizada como a serpente?

260
Lilith

A serpente é de outra ordem. Ela passa até a simbolizar o campo da


ciência. A serpente é da ordem do lembrete que vou fazer daqui a pouco, a Lilith
não é bem a serpente. Fizeram muita confusão, mas só vejo esse personagem,
Lilith, como A Mulher de Jeová, mulher esta que Não-Há. A única mulher
compatível com Jeová é A Mulher, e ela Não-Há. E tudo que se diz de mal a
respeito dela, é verdadeiro. Ela é justamente aquilo que nos leva para onde?
Para a morte do Haver. Não foi à toa que os judeus a recalcaram. Tudo o que
se diz a respeito da Lilith, que ela vai aparecer como bruxa, como feiticeira,
como rainha do mal, etc., é justamente porque se o feminino de Jeová encon-
trasse o seu termo, que é impossível, seria o apagamento do Haver, a Morte
Radical. Para quem está votando em Jeová, como os judeus, na sua criação, na
sua criatividade, isto é o mal.
 P – Como você vê a Lilith como feminino do Jeová, se ela é criada por Jeová?
Nada indica que ela seja criada. Ela pinta como aquele feminino lá do
outro lado. Nada indica que ela seja mulher de Adão, ou que seja criada por
Jeová. Além do mais, ela é criada, e não por Jeová, porque ela é conjetura do
próprio Haver. É o próprio Haver que faz a conjetura do Não-Haver, que deseja
isso, que, aliás, Não-Há. Então, isso só pode existir como fundo diante do Haver.
É fundamental em relação ao próprio Haver. É porque Há que a conjetura de
Não-Haver tem vez. Se não houvesse, de onde se tiraria a conjetura de Não-
Haver? Mas o contrário é verdadeiro: Haver, no positivo, se põe como desejo
de Não-Haver. Pintou a Lilith.

* * *

E onde colocar Adão e Eva? No processo da criação, aparecem ali


machos e fêmeas da espécie. Vou lhes dizer uma coisa que pode ser impres-
sionante: Adão e Eva, eles não são o masculino e o feminino. Se pudermos
conceber um Deus masculino com uma contraposição feminina – de Jeová, uma
Lilith – que não há, o que pode ter emergido, lá no Campo do Sentido, depois
que aparece isso que quero chamar de Simbólico? O Masculino e o Feminino,

261
O Sexo dos Anjos

tais e quais? Não! Estes pertencem à ordem da explosão e à ordem da implosão.


O que aparece, lá, já são os Falanjos, encarnados.
Adão e Eva, segundo minha perspectiva, já devem ser lidos no Terceiro
Sexo, nas suas possibilidades de encarnação aqui e ali sobre machos e fêmeas.
Mas o que vigora e que os determina, é a sua relação com a Lei, a qual referida
nas tangências masculinas e femininas que esses Falanjos possam ter. Adão e
Eva são os Falanjos, segundo o meu Esquema. Sinto muito que a maioria de
vocês não tenha acompanhado o curso que providenciamos, de Luis Sérgio
Sampaio, a respeito de Lógica. Ele chegou a nos mostrar, com alguma clareza,
numa aula em que a maioria não estava, como se faz necessário – segundo uma
Lógica de Diferença, que nitidamente é a lógica que Lacan instaura com sua
Lógica do Significante – colocar as outras quatro fórmulas quânticas além das
que Lacan escreve. Ele mostrou que minha formulação do Falanjo e da Morte
não são redutíveis às formulações anteriores – se é que a lógica do Sampaio
está correta...
A lógica do masculino é perfeitamente compatível com Jeová, ou seja:
existe pelo menos um que diz não à função fálica, para que todos o sejam. No
projeto desejante, não de Jeová, mas do Haver (porque Jeová é uma mitolo-
gia construída a partir do masculino), no projeto divino integral, o que posso
chamar de Função Fálica, ou Função Desejante? É o movimento por inteiro do
processo, o qual só deseja uma coisa: Não-Haver, que é impossível. Ora, esse
desejo esbarra com o Real, fura Real e diz que esse Real é aquele pelo-menos-
um que diz não à função desejante. Portanto, ali em J é que mora Jeová. É um
Deus fálico, masculino. E é necessário que ele seja masculino (isto nada tem a
ver com xotas e pirocas; as feministas é que dizem essas besteiras), masculino
que aí é da ordem lógica de haver essa limitação: é impossível haver A Mulher
de Jeová. É o tema da castração que coloca isso que chamamos de masculino,
com ou sem pênis, tanto faz.
Surge a posição masculina quando o próprio processo do Haver sofre
limitação. Existe pelo menos um que diz não ao interesse da função fálica (que
é o de chegar lá) para que Tudo seja universalizado.

262
Lilith

 P – Como você coloca Jeová ao mesmo tempo como masculino e como ciclo
do Haver?
Não Jeová. Eu coloco o divino, o Pleroma. O meu divino é o da psi-
canálise. Jeová mora em J. Não há nada no Velho Testamento que empurre
Jeová para o lado feminino. É preciso, depois, alguma promessa de destruição,
ou apocalipse geral, para algum feminino. De modo que, Jeová, é sempre cria-
tivo. Ele vai é para a frente. O Deus dos judeus, nitidamente masculino, Jeová,
não desmunheca. Nem há promessa de Ele vir a falecer.
 P – Sem dúvida, ele tem essas características. Mas ele não tem só essas caracte-
rísticas. Não vejo como englobar o que vou lhe dizer agora, no teu Esquema.
Jeová não só é o que faz o fiat, como também é o que procura Abraão para
fazer um pacto. Nessa postura masculina, de gozo-fálico, não se faz pacto com
ninguém. Eu posso ler o Javé na sua vertente criativa, tudo bem. Mas na sua
vertente de procurar Abraão, de se abaixar, de se feminilizar, diante de Abraão,
não é naturalmente feminilização, mas...
O recalque do especificamente feminino parece nítido na religião
judaica. Há religiões orientais onde isso não é recalcado, a coisa fica oscilando,
quer dizer, há um feminino capaz de derrocar um Deus masculino. O que quero
dizer é que, na religião judaica, Jeová começa de um fiat nitidamente fálico.
Não digo que ele seja só isto, e sim que ele começa pelo movimento de um fiat
criativo, nitidamente fálico. A religião judaica só concebe algum feminino no
Campo do Sentido, não passa daí. Não estou sendo também radical nisto, pois
teria que fazer um grande estudo clínico. Mas me dá a impressão de que não
existe, no pensamento judaico, o processo da vitória da entropia, o processo
da entrada do caos, do feminino. Daí vem uma idéia constante, por exemplo,
do progresso na religião cristã.
 P – A força do apocalipse seria de produzir isso?
A força do apocalipse ainda é isso dentro do sentido. É uma espécie de
comoção dos homens. Não ainda o apocalipse telúrico ou universal. Jeová não
morre: permanece fazendo sentido. É Anjo, Maláki. A morte de Jeová seria ele
virar Lilith. Se meu projeto de ciclos está correto, se Deus começa do Real, um

263
O Sexo dos Anjos

dia ele tenta virar Lilith porque o desejo dele é este, está fazendo essa bagunça
toda como um desvio de castrado para atingir a Lilith que ele nunca vai con-
seguir atingir. Só estou dizendo que o projeto judaico é masculino, epiléptico,
explosivo e criativo. E pára por aí na região do Sentido. E só apresenta o
Feminino dentro da ordem do Sentido. Não comparece um Feminino radical,
a não ser num mito que foi jogado fora pelos hebreus, o mito da Lilith. Porque
se trata de um projeto de instaurador de estado. É um projeto nitidamente
masculino. Podem aparecer Adão, Eva, etc. Na região do Angélico, ele se
comporta angelicamente. Não aparece, no texto bíblico, nenhuma idéia da
morte de Jeová no seio de Lilith e a necessidade de começar de novo Jeová
não é cíclico, ele vem do gozo-fálico e resta eternamente no turbilhão do
sentido.

* * *

Quando Luiz Sérgio Sampaio fez as correlações das fórmulas quânti-


cas, mostrando que, de fato, segundo o projeto lógico dele, eu teria direito ao
Masculino, ao Feminino, ao Angélico e à Morte, ele disse en passant, lá no
seu curso, que esse meu Falanjo é um ser meio desencarnado, em função da
lógica que ele freqüenta. É verdade. É talvez por isso que ele mal comparece
nas teorias, e mal comparece nas obras de arte, na literatura, e comparece nos
anjos aqui por dentro da Bíblia. Toda vez que é preciso uma intervenção para
Jeová fazer valer o seu sentido é através de um anjo que ela se realiza. Ele manda
um anjo dar porrada, expulsar, botar para fora ou botar para dentro, ou... Mas
as teorias... é claro que o pessoal da Idade Média ficou lá em grandes transas e
raciocínios, tentando descobrir qual era o sexo dos anjos. Parecia uma bobagem,
o que se chamou de bizatinismo, porque era então o Império Bizantino, mas é
algo muito sério. Alguma coisa se suspeitava de que não estava funcionando,
de que estava faltando alguma coisa.
Estava faltando justamente o meu Falanjo. É preciso dar vez a ele. Por
uma razão muito simples: é que nesse projeto, independentemente do macho

264
Lilith

e do fêmeo das composições do Haver num certo nível, começa a comparecer,


no Campo do Sentido, uma região onde musculino e feminino, ao contrário do
que a gente pensa, só tem vez quando o Falanjo, no seu descarnado, permite
alguma encarnação. Estamos acostumados a pensar que se é ou masculino ou
feminino. Ou muito pelo contrário. Mas só raramente se encontram falantes
em posição optativa nítida de masculino ou de feminino. O tempo todo vive-
mos nesse Terceiro Sexo, que é descarnado, porque sua encarnação só se dá
por escrito. Qualquer inscrição. Qualquer ato inscritor é onde se encarna esse
falanjo descarnado... porque não há corpo-próprio para o seu sexo. Não há
corpo compatível. Ele se encarna por escrito. E é o que todos nós fazemos o
dia inteiro, desde um operário até um intelectual. O dia inteiro. Noventa por
cento da nossa vida é gozar nesse processo inscritivo, produtivo, etc., que é o
processo mesmo de encarnação do Falanjo. E ele é que, às vezes, dá vez por
encarnação, ora ao masculino, ora ao feminino. Tanto nas práticas eróticas,
quanto nas práticas do cotidiano. Ora se faz referência a uma limitação legal,
ora se equivoca essa limitação legal.
Assim, no cotidiano, no mais freqüente da nossa vidinha, o que está
funcionando é o Falanjo, na sua encarnação de inscritor. É roupa, é isto, é aquilo,
todo esse artifício que o Homem produz para encarnar seu sexo. O sexo do
Homem é muito mais a moda do que o corpo. É muito mais um avião do que
uma piroca. É muito mais um navio do que uma xota. Uma vez ou outra, se
pode dar encarnação ao masculino, ao feminino. Pode-se brincar de Jeová ou
de Lilith. Pode-se dar uma gozadinha tipo Jeová, no epiléptico, pode-se fazer
uma tentativa, sem conseguir, de dar uma gozadinha tipo Lilith.
O momento da criação de Adão e Eva, é a criação do Falanjo encarnado.
A encarnação do Falanjo, que nada tem a ver com procriação. E eles, enquanto
Falanjos, estão proibidos – porque impossível – de comer o fruto daquela árvore
no centro, que lá no meu Hexaedro é, naquele lugarzinho, do a, que vai ter que
ser perenemente produzido. A tentativa de comer aquele fruto não é senão o
encontro com o trágico da posição do falante, da situação do Falanjo. Ele vai
conhecer o bem e o mal. Ou seja, ele vai se dar conta de que sua sexualidade

265
O Sexo dos Anjos

depende dos seus atos ao fazerem sentido, e que isso só é ganho com o suor do
seu rosto. Estamos, há séculos, aprisionados nesse imaginário “bestial”, como
diz o galego, de projetarmos o Falanjo – que nunca veio à tona com clareza,
embora tenha comparecido em todas as culturas – no imaginário dos corpos
biológicos e pensarmos que Adão e Eva correspondem aos machos e fêmeas,
os quais, aliás, já estavam por aí, na carne de um cavalo, de um macaco, ou no
corpo de um porco, como se quiser... Este é o golpe que tem advento com a
introdução do Divino no seio do Sentido: o retorno da plenitude do Pleroma –
de Real, Simbólico e Imaginário –, da Trindade, no seio da aparente dualidade
do Sentido. Trata-se é de construir aí uma erótica e uma estética.
 P – Ou seja, esse erotismo é função de engenharia e ficção. Essa é, aliás, a
tese de Robert Musil.
Esse erotismo, como uma estética, é função de engenharia e ficção. É
função de escrita. É a tese do Musil? Vocês estão vendo que não estou sozinho.
Quando Lacan diz que a psicanálise deve uma Erótica ao mundo, essa erótica
passa por aí. Erótico mesmo é um avião a jato. É de um erotismo impressionante.
É como se diz de uma bela mulher: é um avião!
E começa a aparecer aí a necessidade extrema de levar a psicanálise
ao seu verdadeiro lugar: a intervenção nessa tolice de projeção imaginária; e
com o sentido de dissecar a cultura até fazê-la mostrar o seu osso de artifício.
Talvez seja esta função primordial da psicanálise, no que diz respeito à meta
fundamental de Freud, que é a cura do mal-estar na civilização. Já citei por aí
algumas vezes uma outra frase de Lacan a respeito desta questão, e destaquei
outra aqui, p. 262 do Seminário 2, sobre o Ego, onde ele diz: “O passo de Freud
não se explica pela simples experiência caduca do fato de ter que tratar fulano
ou sicrano, ele é verdadeiramente correlato de uma revolução que se estabelece
sobre todo o campo do que o homem pode pensar de si e de sua experiência;
sobre todo o campo da filosofia – é mesmo preciso chamá-la pelo seu nome”.
Quer dizer, a cura disso que a esquerda gosta de chamar de social, e que
é simplesmente o projeto civilizatório, está na revisão total do seu processo, de
que talvez só a psicanálise possa dar conta. O que lhes trago não é mais uma

266
Lilith

brincadeirinha de modo que a gente possa introduzir mais um elementozinho,


Falanjo, para neurótico de divã. Serve para isto também, mas é preciso, antes
de mais nada, trazer à luz o processo de re-entendimento do falante para muito
além da inércia cultural. Peguem esse mesmo Seminário do Ego, de Lacan,
e abram em lugares como, por exemplo, p. 303 – gosto de retomar um Semi-
nário antigo assim, só para ver como já estava tudo lá, em germe: “A ordem
simbólica em seu funcionamento inicial” – as pessoas não gostam sempre de
ler todas as palavras: em seu funcionamento inicial – “é androcêntrica. Isto é
um fato”. Androcêntrica: centrada no macho. Mais adiante, p. 315, quando está
comentando a questão do Penisneid, a inveja do pênis, temos: “É na medida
em que há nela identificação com o homem imaginário, que o pênis toma valor
simbólico, e que há problema”. Pulando um pedacinho: “É na medida em que
a mulher está situada numa ordem simbólica, com perspectiva androcêntrica,
que o pênis toma esse valor. Aliás, não se trata mesmo de pênis, mas de Falo,
quer dizer, algo cujo uso simbólico é possível porque algo que se vê” – atenção
para isto – “porque ele se erige”. É a concretude da coisa, visão e concreção.
E – olhem só que coisa espantosa – continua ele: “Daquilo que a gente não vê,
daquilo que está escondido, não há uso simbólico possível”. Vocês acreditam?
Ele disse mesmo isto. Não esquecer – atenção – que lá atrás ele disse que
começa, de início, por aí. Até parece que ele está dizendo uma monstruosidade.
Qualquer feminista jogaria uma pedra no velho imediatamente.
Ele está é chamando atenção para o fato de que a pregnância, a inércia
imaginária é muito forte. Só por isto é que as mulheres se arrimaram na piroca
dos homens. “Nesta mulher, a função do Penisneid funciona plenamente, pois
que ela não sabe quem ela é, se ela é homem ou mulher, e que ela está por in-
teiro engajada na questão de sua significação simbólica”. Aí, passando algumas
linhas, ele continua: “Tomar o imaginário como se fosse real, é o que caracteriza
a paranóia”. Claro como água. Quer dizer, a grande paranóia da divisão sexual
é que a burrice imaginária dos falantes começa pela pregnância do concreto
e do visível. Assim, todo o processo tornou-se inteiramente paranóico. Aliás,
é simplesmente um absurdo recitar aqueles que querem forçar o neurótico a

267
O Sexo dos Anjos

acreditar que as mulheres não têm. Mas é óbvio que elas têm. Só porque não
é tão grande? Não é esta a questão. Por todo um período longo da história da
psicanálise os analistas quiseram que um sujeito não tenha acesso à castração
porque ele supõe que sua mãe tem o Falo. A gente precisa situar isso em lugar
mais correto. É igual àquela história do Zen: no começo você olha para o morro
e só vê o morro; depois você olha para o morro e não vê mais o morro, mas
no dia em que você chega à mestria mesmo, você olha para o morro e vê só o
morro, novamente, é claro, como havia de ser.
Então, se nessa pregnância imaginária o neurótico olha para a dita
falta de pênis e acha que tem, um dia ele vai ter que chegar à conclusão de que
tem mesmo mas só depois de ele se dizer que não tem não. Mas, na verdade,
ninguém tem.
Lacan, p. 353, chama atenção para essa inércia imaginária que sem-
pre vemos recrudescer no discurso dos sujeitos. Que é um embaralho. O que
é preciso é demover essa inércia imaginária que pretende assentar a questão
da diferença sexual sobre a figuração biológica. E arrumar a questão no lugar
angélico devido. Lacan vem lembrar que “Freud tinha no mais alto grau esse
sentido do sentido, o que faz com que uma de suas obras, Os Três Cofrinhos,
por exemplo, se leia como escrita por um adivinho, como que guiada por um
sentido que é da ordem da inspiração poética. Trata-se de saber se, sim ou não,
a análise prosseguirá no sentido freudiano, procurando, não o inefável, mas
o sentido” – grifos meus. E “o sentido é, continua Lacan, que o ser humano
não é o mestre dessa linguagem primordial e primitiva. Ele foi nela lançado,
engajado, preso em sua engrenagem”. É este o sentido.
O sentido do sentido é estar preso na engrenagem do sentido. É ser
Angélico. E o “quente” do Angélico é que ele nos permite pensar que se a
nossa sexualidade é esta, com pequenas guinadas referenciais ao Masculino
e ao Feminino, ou se não por ataques histéricos, ou epilépticos. (Vejam que o
gozo-do-Outro só comparece nos nossos corpos – não vamos dizer nos corpos
das mulheres, porque isto é besteira – em ataques histéricos: a gente começa a
dar tremeliques de gozo; ou se não, em ataques epilépticos, que são os chama-

268
Lilith

dos orgasmos.) Há também uma opção que nem o gozo do Feminino nem o do
Masculino oferecem, que é a possibilidade não só dessa inscrição no mundo do
artifício, do artefato, como a excelsa produção da castidade. Isto é extremamente
importante: uma das possibilidades do Anjo é que ele pode ser maravilhosamente
casto. Se quiser. Por que não? O Masculino não pode ser casto, o Feminino não
pode ser casto. Só o Anjo pode ser casto. Algo que está tão desvalorizado hoje
em dia... Mas os tempos, outra vez, se tornam extremamente difíceis. Se não
por nada, pela nossa vocação sui-SIDA. Houve um tempo em que foi preciso
inventar o Amor Cortês. Alguma coisa mais ou menos assim anda requerendo
invenção. Proponho sugerir que se invente – dada nossa dita “liberação” – o
amor cortesão. Quero dizer: O Amor Cor Tesão. Pois o amor sabe e pode fazer
o tesão, ao passo que o tesão, este não sabe fazer amor.
Para terminar o trecho, p. 354, Lacan diz, falando da satisfação: “O
que insiste por ser satisfeito só pode ser satisfeito no reconhecimento. O fim do
processo simbólico é que o não-ser venha a ser, que ele seja porque ele falou”.
Isto bate inteiramente com a posição do meu Falanjo, na produção do Sentido,
que o próprio não-ser, que não havia no Campo do Haver antes do Falanjo,
se instaure a partir da ordem significante, como pura ordem de produção de
Sentido, para que venha a ser, mediante a nossa sexualidade, uma cafeteira,
um pão, uma obra de arte, um avião. A tecnologia deve tudo à sexualidade do
falante, isto é, ao sexo terceiro do Falanjo criador.

* * *

O que ele está dizendo, e isto é compatível com o percurso que está
fazendo então, é que, de início, só se simboliza a partir de uma pregnância
imaginária. Só que, na medida em que o simbólico vai progredindo, você vai
podendo abandonar essa pregnância imaginária inicial. Tanto é verdadeiro que
os aviões são inventáveis, os anjos também, pois estão na iconografia. Então,
passa-se a ver o que não se via, pelo simbolizar. O que antes se via primeiro para
depois simbolizar, mediante o processo de simbolização vai se propiciar como

269
O Sexo dos Anjos

possível de existir a partir do próprio simbólico. Este é o trajeto desse Seminário.


Assim como Adão e Eva foram projetados na tolice do macho e da fêmea
e hoje eu os estou retirando dessa tolice para lhes dizer que eles são Falanjos que não
têm a ver com a piroca de Adão nem com a xota de Eva. O projeto que se
inaugura aí não é um projeto reprodutivo, e sim criativo, produtor de Haver, a
partir do Simbólico, causado pelo Não-Haver. É aí que Lacan diz que não se trata
de nenhum inefável, e sim da produção de sentido. Não se trata de nenhum sexo
intempestivo. É produção de sentido com inscrições, e eventual tangenciamento
da sexualidade, aqui e ali, na ordem masculina e/ou na feminina.
Quando me referi um pouco a Philippe Sollers, que diz que não há ho-
mens, “só há mulheres”, foi um modo fraco de embarcar na maneira que ele teve
para dizer isto. Acontece que não há nem homens nem mulheres, meus caros,
só há anjinhos tangenciando aqui e ali o Masculino e o Feminino. A referência
ao universal é a referência – tipo Jeová – à qual os judeus se prenderam na sua
aposta masculina. Outras religiões tentam referência feminina. São referências
lógicas. Mas essas apostas, mesmo elas, só são possíveis desse lugar Terceiro,
desse lugar que é de onde surge o projeto do falante, esse lugar angélico.
 P – Você concordaria que, uma vez dito que essa coisa do inefável não é de
ser considerada, isto não negaria a possibilidade de (pelo menos num tempo
anterior a qualquer produção, no sentido de inscrição simbólica) intenção
de artifício, de um tempo de freqüência por regiões que são provisoriamente
indizíveis; mas que são, talvez, só-depois, reconhecíveis, ou insistentemente
até postas em letra, por escrito, e por pressão do Simbólico?
Sim. O que é considerar um lugar completamente compatível com o
que chamei, no meu Esquema, de Sujeito, o qual precisa de S1 e de S2 para vir
a se dizer, mas que tem encarnação própria. A psicanálise, para muito além
dessa tarefa, extremamente importante, porém limitadíssima que é de tratar de
neuróticos no seu divã, tem a responsabilidade de dar conta dessas coisas. E
não se trata de nenhuma revolução cultural, e sim de uma evolução simbólica,
se podemos chamá-la assim. Ou Halegórica, com agá, e que é, em última in-
stância, a verdadeira revolução sexual. A Revolução dos Anjos.

270
Lilith

Tem-se tentado de tudo. Estamos saindo de uma época, já bastante


esquecida, onde Mao foi uma bandeira, revolucionária. A Revolução Cultural...
não está com nada. A cultura sempre recai nesse velho computador geneticista. A
psicanálise pode intervir como uma revolução não sangrenta, que pode colocar
os falantes no lugar que lhes é devido. E isto pode promover uma revolução no
manejo do artifício, para muito além de qualquer cultura, de qualquer pregnân-
cia sistêmica das culturas. O século XXI tem que ser fabricado a partir disto.
Não há outra saída. E eu não estou vendo isto sozinho. Vários estão vendo esta
responsabilidade de inserir-se no processo, não para fabricar cultura, mas para
dissolver o cultural, transformar isso em movimento de fabricação simbólica,
de artificialismo. Meus caros, o século XX é ridículo, para quem já o olha do
lado do XXI. Estamos muito encantados com nossas produções, as quais não
passam de banalidades. Um automóvel é nada mais nada menos do que um
dinossauro: uma besteira. Estamos encantados porque temos carros maravil-
hosos: uma besteira. Isto é pré-histórico. Com mais algumas pequenas entradas
da ordem simbólica, por exemplo, duas ou três invencionices da tecnologia,
esse troço vira completamente...
Pedi que publicassem em nosso Boletim maisum, um recorte que tirei
do Jornal do Brasil: certos físicos estão convencidos – a última novidade da
física! – de que o suposto espaço vazio – que já avisei a vocês que não é vazio
nenhum – é o máximo de energia – que eu chamei de Chi copiando os chineses
–, energia que eles estão se virando para controlar, o que fará da bomba atômica
um traque de velha. A energia contida num centímetro cúbico de matéria no
espaço vazio faz de uma grande bomba atômica um mero traque.

* * *

Apenas para enfeitar o que tenho que terminar, quero apresentar a vocês
um anjinho, de quem eu gosto muito, que se chama Michelangelo Merisi de
Caravaggio, um Mestre Pintor do século XVI, que certos autores insistem em
chamar de barroco, embora ele seja um personagem esquisito, pois dentro do

271
O Sexo dos Anjos

barroco, inventou uma coisa nova: queria tirar a pompa do barroco, torná-lo
barroco cotidiano, inventou essa pintura de fundo negro, chamada tenebrismo,
que vai retornar mais tarde, na mão de um Rembrandt, como a tradição do claro/
escuro, e geometrizou bastante a superfície do quadro, de maneira a alguns acha-
rem que ele era um precursor do próprio Cézanne. Era um cara esquisitíssimo
esse rapaz. O pai dele o pegou, quando ele tinha 11 anos e entregou – naquele
tempo havia essa idéia brilhante de entregar-se uma criança a alguém melhor
– a um mestre pintor que não era dos melhores mas para o garoto foi bom. Ele
aprendeu depressa e, com 15 anos, fugiu de casa, da casa do pintor, e foi para
Roma. Tornou-se um grande mestre do pincel e... da espada. Ele se gabava de
manejar muito bem tanto o pincel quanto a espada. Por isso vivia metido em
encrencas. Por qualquer coisinha ele se metia num duelo. Matou pessoas e
também de vez em quando se feria. Vivia metido em grandes embrulhadas de
rua. De certa feita chegou a matar um nobre, em Roma, e teve que fugir. Fugiu
para a ilha de Malta, onde havia aquela tal ordem militar. Lá pintou o retrato do
chefão, deu uma puxada de saco, o sujeito o protegeu e o deixou por lá, esper-
ando o perdão que havia pedido ao Papa, para não ir preso por ter matado o tal
nobre lá em Roma. Mas imediatamente ele arranjou nova briga com outro nobre
da ilha de Malta, meteu-lhe a espada. Desta vez foi bastante ferido também;
levou umas espadadas, teve que ir embora da ilha e morre, na viagem de fuga,
numa praia deserta, porque estava o tempo todo sangrando das espadadas que
levou. Morre muito jovem. E deixa uma obra maravilhosa. Da qual retiro um
monumento para ser o representante do meu Falanjo: um quadro que se chama
O Amor Vencedor. Trata-se de um cupido, se vocês quiserem, que é um anjo
da Grécia clássica. Há também as vitórias, as vitórias aladas da Grécia, mas o
lugar do sentido, o Campo do Sentido, é justo o campo onde se deve colocar
o Amor. Os atos de inscrição exigem a função amorosa. O gozo-do-Sentido,
na escrita, é por via amorosa que ele procede. Observem também, no quadro,
como representação do Falanjo que freqüenta toda a obra de Caravaggio, o
que há espalhado em volta dele? As ferramentas da escrita, os instrumentos
da produção do artifício. Estão aí a literatura, a música, a arquitetura, a arte da

272
Lilith

guerra... as produções simbólicas desse amor vencedor.


Mas o quadro do qual prefiro falar hoje é um outro que ensejou grande
celeuma. Caravaggio pintou este quadro muito jovem. Logo que ele chegou
a Roma alguém lhe fez esta encomenda e ele ficou logo muito mal falado por
causa do quadro, que chegou a fazer certo escândalo. Porque nele as figuras
eram alegorizadas ao extremo: a Virgem Maria, o Menino Jesus, São José e esse
Anjo ali. Figuras que então eram tratadas com certa nobreza, ele as banaliza
demais. O nome deste quadro é O Descanso no Egito, acontecimento bíblico
que só comparece uma única vez no Novo Testamento, no texto de Mateus.
Marcos, João e Lucas não falam disto. Só no texto de Mateus se conta a fuga
para o Egito, quando Herodes mandou matar todas aquelas crianças (2, 13-15):
“Eis que o anjo do Senhor aparece em sonho a José e lhe diz: ‘Levante, toma
contigo a criança e sua mãe e foge para o Egito. Fique lá até nova ordem, pois
Herodes vai procurar a criança para fazê-la perecer’. José se levantou, tomou
a criança e sua mãe, de noite, e se retirou para o Egito. E lá ficou até a morte
de Herodes para que se cumprisse o que havia dito o Senhor pelo profeta: “Do
Egito chamarei meu filho’.”.

273
O Sexo dos Anjos

Vejam que não é uma banalidade, porque ele não pinta bem a fuga para
o Egito, o que aliás muitos pintores fizeram. Ele pinta o descanso no Egito.
Ora, o que se representa neste quadro? Nada mais nada menos do que o meu
Pleroma. A intimidade, de mesmo nível, em que o pintor coloca as figuras, faz
Triângulo evidente. José, com seus apetrechos masculinos, seu burro, sua trouxa,
suas armas, suas ferramentas; Maria, com seu objetinho, o menino, Jesus, lá
na dela, envolvida nos baratos do feminino; e o Anjo, tocando a sua viola. E o
José segurando o que é a partitura da sua inscrição.
Aí estão o Masculino, o Feminino e o Anjo, que é o que toca a música...
José compenetrado com a produção do Anjo. Maria absolutamente “na dela”,
extasiada com aquela música. Aí estão representados há tanto tempo, pelo
Caravaggio, os Três Sexos do meu Pleroma Unário.
Até o próximo semestre. Muito obrigado.

27/NOV

274
A Deus

Quarta Parte

OS QUATRO CONCEITOS
FUNDAMENTAIS DA
PSICANÁLISE, AINDA
O Retorno de Freud, Via Lacan
1º Semestre 1987

275
O Sexo dos Anjos

276
A Deus

1
A DEUS

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, o que nos revela a


Psicanálise? O que nos desvela Freud em seu percurso pela questa do graal de
sua existência inegável?
O re-trato do sonho primeiro lhe serviu de via principal de acesso à
decifragem do aparelho de armação em que o sentido se elabora, premido pelas
leis de formação que se estatuem na linguagem. Daí, na mesma instância, à
banalidade do sexo – no que subdito a tais-quais artimanhas – e também da
pretendida maravilha da sexualidade infantil ou da paixão dos incestos; daí
às surpreendentes fulgurações do chiste e do ato falho; daí à montagem das
pulsões e às complexificacões construídas no ajeito dos sintomas – até à rocha
da castração irredutível, cuja topada o arremete, na centrífuga da outragem,
ao mais além de qualquer forma promissora.
Eis que tudo isto se mostrava, no que subdito à Causa inarredável, só
movido pelo empuxo irreprimível de um desejo, desmedido e desbordante,
causado pela Coisa irresistível – que mora para além de mal e bem, e para além
da vida degustável, e para além da morte presumível.
De passagem pelo esforço de destacamento de um campo objetivável
do chamado ser-humano, a saber, o campo do sentido, cuja supremacia por ele
indicada impõe uma torção indisfarçável aos princípios mesmos da moderna
ciência, insistindo porém no espírito positivo de sua ousadia enquanto acar-

277
O Sexo dos Anjos

retadora de verdadeira ação científica, e portanto explicativa, Freud termina


por desaguar a sua lauta correnteza no mare nostrum de um racionalismo todo
novo, uma nova razão, sustentadora de uma nova antropologia, que desloca
outra vez, mas não do mesmo modo, aquele Homem do centro do Universo
para referi-lo a uma LEI que de muito o ultrapassa e o qualifica menos como
Senhor do que como Súdito – necessariamente – da Razão mesma de sua
própria existência.
Não, por isso, nenhum irracionalismo, mas Outra Razão, a Razão
Freudiana, mais próxima da tradição tão bem quanto mais próxima do futuro, no
que ancorada num presente movediço que se anuncia só depois que plenamente
se enuncia. Como resposta a algum Pascal, nosso Freud lhe parafrasearia – que
a própria Razão tem razões que o teu coração certamente desconhece.
A Razão Freudiana, centrada num Mais-Além no entanto tardio em sua
longa vida, nos sobrevém contudo a tempo de subverter nossa certeza algo tola,
só baseada em alguma nossa arrogância ainda simiesca, quando ilumina, para
mais do que objetos e saberes, ainda que objetivamente científicos, o próprio
olhar que um tanto ingenuamente as distinguia.
Essa luz (Mehr Licht? Não. Mehr Lust!), no que ela se acende na
Psicanálise como Ética, necessariamente se projeta por sobre as aparências do
falante, esclarecendo-nos o fundamento moral de sua existência – na qual, todos
os possíveis saberes, todas as razões possíveis, se concentram ao redor desse
lugar vazio que lhes impõe inapelável argumento: tua culpa – e conseqüente-
mente o teu castigo – é ter acaso aberto mão da tua falta verdadeira.
“O desejo do Homem é o desejo do Outro” (constatação freudiana
reeditada por Lacan) só se traduz na tradição que vai do Pai ao Filho, pela
virtude do mesmíssimo Santo-Espírito da libido que se Causa pelo mesmís-
simo impossível:
“O que não tem havência nem nunca terá
O que não tem sentido
O que será? Que será?” – que levou o nosso Freud, pela década de
sessenta de sua vidinha pessoal, a afirmar tão categoricamente (se bem que

278
A Deus

prudentemente fingindo ficção menos grave), a afirmar peremptoriamente o


vértice de sua ascese naquela, dita de morte!, apenasmente pulsão?
Por este enquanto, aqui em nosso trabalho de ensino e de orientação,
nosso programa é por aí – e eu encareço aos que se elegeram para a aventura
de minhas desejosas entradas e bandeiras, que enveredem por essa mata cerrada
com rincões talvez ainda virginais, de modo a mensurar, palmo a palmo, dedo
a dedo, unha a unha, esse campo de cultura, para que se venha a demonstrar
(cada qual para si mesmo se não para nós todos) que se Freud lá chegou, foi
com toda razão que chegou.
Não que Lacan não nos tenha ensinado, depois de bem palmilhá-lo
este périplo de Freud. Mas porque, após o retorno a Freud, por ele inaugurado
com humildade filial, ainda nos resta insistir no retorno de Freud (já por Lacan
também sobejamente pontuado), de modo a podermos ainda comemorar, por este
final de século que nítido se mostra decadente e obscurantista, mediante trabalho
efetivo na virtude do Santo Espírito, o retorno do Filho à morada do Pai.
A Razão Freudiana – que ora eu reclamo – é pós-moderna e pós-Lacan?
Decididamente que não – a não ser em seu sentido puramente cronológico. Pós-
modernos e pós-Lacan, em outros sentidos, são os desbaratamentos, talvez que
temporariamente necessários (os quais, como tantos outros, eu mesmo pratiquei)
de exacerbação e aceleração de freudismo e lacanismo que têm resultado nesse
atropelo ecletizante e pastichador, citativo e combinatório, se não obviamente
kitschizante, que representam, na sua ampla maioria, as produções mais recentes
da psicanálise global.
Agora, é outra a vez. A Razão Freudiana a ser exercitada no Retorno
de Freud nos sugere e nos exige o rigor assentado no seu achado apicial. Não a
retomada, por mais “científica” que ela se mercadeie, desse Freud nada bem-dito
no folclore ocidental. Não também o projeto retrô, ainda que oficioso se não
“oficial”, de um Freud linear, de começo a fim diacrônicos de seus sucessivos
achados, porém com o mais freqüente abandono denegatório do seu termo axial.
Bem ao contrário, é, a partir daí, desse cume da sua ascensão, desse mais-além
terminal, re-enfocar sua leitura, operando-se o retorno de Freud, isto é, fazermos

279
O Sexo dos Anjos

o próprio Freud retornar sobre seus próprios passos, e sobre os nossos também,
na re-consideração de cada pegada do gigante em sua referência, necessária e
indefectível, à sua descoberta essencial. Revertendo-se um verso de Fernando
Pessoa, reconhecer que seu fim floresceu em recomeço para nós: o retorno do
sintoma de Freud.
Pois que a Coisa inatingível não obstante inarredável – pois que ela
não-há – que o ato paterno sagital nos relembrou, é para além do inanimado e
para além da entropia que ele empuxa, como falta radical, tudo que há, qualquer
que seja a “vida” ou “morte” que em tal ou qual estado, ou modalidade, nossa
imajada visão se espelha convencida.
“A pulsão como tal”, Lacan para nós a desanuvia (Ética, 251), “e
na medida em que ela é então pulsão de destruição, deve estar para além da
tendência ao retorno ao inanimado”. Se ela é “vontade de destruição”, só o é
na medida em que é “vontade de recomeçar de novo. Vontade de Outra-Coisa”.
“Pulsão de destruição, no que põe em causa tudo que existe. Mas igualmente
vontade de criação a partir de nada”.
E Lacan nos diz ainda que “se tudo que é imanente ou implícito na
cadeia dos eventos naturais pode ser considerado como submetido a uma pulsão
dita de morte, só o é na medida em que há a cadeia significante”.
Ora, se o Tesão conceitual de Freud estava certo, e se é correta a afir-
mação, de Lacan, de sua necessária inserção no significante, das duas uma: ou
bem o que se passa no Haver só é precariamente abordável por mera projeção
da estrutura do falante, ou bem essa mesma estrutura, congruente com o mais-
além e com a pulsão e com o significante, é a mesmíssima que rege o próprio
Haver, permitindo-nos portanto algum certo saber, até mesmo algum pretenso
“conhecimento” científico, é claro que com a parciaridade da impotência
histérica, mas também conforme com o não-universal do eco do impossível
no seio mesmo dos avatares do Haver.
Uma tese da Física atual bem que podia ser – e bem dizer – a alteridade
do Outro sem outra alteridade, nem por isso dela menos desejoso, a reduzir-se
então a só cuidar do seu desejo próprio (de objeto impossível, de causa que

280
A Deus

não-há), do seu próprio deseixo que fortíssimo ressoa, ou senão brandamente,


por todos os seus modos de comparecer.
Eu lhes tenho confessado que é a segunda opção que eu escolho – a qual
pode me fornecer um fundamento da Razão bem congruente com o consagrado
Nome do Pai: a Razão Freudiana. Que não mais será moderna. Tampouco
pós-moderna como está na moda se querer. Também não neo-moderna como a
deseja um iluminismo reciclado, só relativizante e auto-crítico, o qual, se, pelo
menos, se pretende racional e clarificante, nem por isso leva a Razão bastante
a sério – em sua longa série –, a ponto de acompanhá-la até o ponto do seu
próprio Revirão. Mas sim que a Razão Freudiana será angélica e plerômica, ma-
neira ao mesmo tempo que rigorosa, segundo os movimentos de uma possível
diferocracia que, se respeita reverentemente a diferença, nem por isso deixa de
se lembrar – com Freud e com Lacan – que qualquer diferença, assumido o seu
desejo particular “até o rabo da palavra”, como era de Guimarães Rosa dizer,
se equivale e finalmente se resolve no campo definitivo da Absoluta Alteridade.
Alter este que nos impõe como Meta (embora inalcançável para tantos de nós)
nada menos do que mesmo a Santidade, em sua acepção original.
A Santidade como nosso único portal para alguma chance de redenção
– isto é, para a paga dessa dívida simbólica que o lugar do Filho tem para com o
lugar do Pai. A Santidade d’escrita por Freud (a red’escrita por Lacan) perante
o mais-além de sua significação. A Santidade em Nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, amém.

23/MAR

281
O Sexo dos Anjos

282
O tesão pelo imundo

2
O TESÃO PELO IMUNDO

...a Pulsão de Morte comparece com insistência na experiência de Freud


(de escuta, de prática teórica)... depois, deixa de ser hipótese especulativa (como
Freud, por prudência, declarara)... torna-se necessidade estrutural, sustentadora
da composição geral do processo psicanalítico...fundamento lógico... neces-
sidade estrutural de campo...
...trata-se, aqui, de re-utilização do conceito, colocando o MAIS ALÉM
como fundamento estrutural da psicanálise... utilização no sentido de re-armação
desse complexo desenhado no Esquema : a construção de um aparelho de
unificação da teoria psicanalítica, um Esquema de habitação do pensamento
freudo-lacaniano, uma visão terminal do processo... é diferente de um esquema
didático... é remanejamento de diversos conceitos, limpeza de área para evitar
certas importações de outros campos...
...o conceito de Pulsão foi estabelecido no nível da parciaridade...
no esquema de Lacan, o processo que o embasa é o retorno a um ponto de
partida... no nível da pulsão parcial, está em jogo a borda como zona erógena
percorrida por um movimento, mediante determinado impulso que visa não
propriamente a consecução de um objeto, mas o retorno à mesma borda... a
fonte do movimento pulsional é esse próprio lugar de saída e de chegada que é
a borda da zona erógena... há esse tensionamento (Drang) e esse momento, esse
atingimento que Freud chamou de Ziel, que Lacan parte, pela língua inglesa, em

283
O Sexo dos Anjos

dois momentos... goal, esse próprio objetivo da fonte, que é inicial e terminal...
aim, essa lambedura do objeto, que é o trajeto do movimento pulsional em torno
dele... isto, no regime da pulsão parcial...

...o conceito de Libido, aparentemente vago em Freud no momento da


criação do conceito de Pulsão, sobretudo o de Pulsão de Morte, encontra anco-
ramento bastante sólido no conceito puro e simples de Pulsão, que é o conceito
da Libido em qualquer situação... o périplo da libido tentando atingir o alvo,
que é o retorno ao seu ponto de partida, este é o conceito de Pulsão...
...Trieb und Triebschicksale, tesão e aventuras de tesão... no Esquema
, o tesão é traduzido pelo próprio movimento libidinal, por esse aparelho
de satisfação, que é satisfatório de qualquer maneira... e as aventuras, pelos
ancoramentos mais ou menos provisórios que esse movimento encontra, por
exemplo: as pulsões parciais do ser falante... isto, no sentido de conduzir o
próprio movimento pulsional para a estrutura integral do Haver... o tempo, ou

284
O tesão pelo imundo

libido, que circula sobre o círculo do Esquema se processa nos avatares do
Haver, os Estados, no sentido do movimento pulsional...
...o objeto – no caso um objeto radicalmente imundo – é coisa que
não-há... o alvo desse movimento pulsional do Haver não é ACOISA, a qual é
a CAUSA desse movimento... o alvo é o Revirão de retorno que acontece no
Real: o Furo...
...os movimentos desejantes no seio do Haver são movimentos “mun-
danos” (o que pertence ao Haver)... o mundo é concebido como o Haver em todas
as suas vicissitudes... o imundo é o que não há... todos os movimentos pulsionais,
desejantes, conscientes ou não, em qualquer modalidade ou estado no seio do
Haver, se dão também no seio do FALANTE, mas com certa particularidade...

* * *

...o DUALISMO de que Freud não pôde abrir mão no seu aparelho
geral (pulsão de vida × pulsão de morte, pulsão do ego x pulsão sexual, etc.) é
relativizado pelo próprio Freud, diversas vezes, na sua obra... Freud relativiza
a dualidade num MONISMO que é a equivocidade produzida pelo processo
de reviramento, o que pode parecer paradoxal... o primeiro aparecimento da
pulsão sexual é do lado do mortal e o segundo é do lado do Eros...
...no seio do Haver, ao qual poderíamos fazer, e fazemos, uma suposição
de SUJEITO (que é o Sujeito-Suposto-Saber de Lacan –como ele diz: o próprio
DEUS), fazemos a suposição de alguém, sujeito nesse grande Haver, sujeito a
quem o Saber estaria disponível...
...o grande movimento desejante do PAI, que é algo nominal, de DEUS
(não é preciso aboli-Lo, pelo contrário: está no momento de salvá-Lo), ecoa em
todo e qualquer estado do Haver... e, dentro desses estados, em toda e qualquer
modalidade... todo o Haver é carreado num movimento desejante, de algo que
não-há, que é impossível, e que se refestela num Revirão que faz tudo começar
de novo na ordem da repetição (diferente de reproduzieren, de repetir o mesmo
enredo): começar de novo outra vez mesma coisa (Wiederholung)...

285
O Sexo dos Anjos

...esta é a relação que se pode estabelecer, com o surgimento do falante,


entre a existência do Pai e a do Filho, entre o Nome do Pai e a existência do
Filho... o Pai como Sujeito-suposto-Saber, no Haver, ao grande Revirão, como
Sujeito comparecente, pelo menos entre um e outro filho, no movimento falan-
te... o Pai é imortal... tudo que ele deseja é morrer, mas lhe é impossível... se
ele deseja o objeto que Não-Há, tocá-lo seria morrer, seria incluir o Não-Haver
no seu seio, e isto eliminaria o Haver, ainda que neutralizado entropicamente...
o Pai sendo imortal, será imortal o Filho?...
...o Ser-para-a-Morte, tornado moda e configurando o embasamento
de uma filosofia durante certo período, sobretudo na mão de um Heidegger,
acabou invadindo a psicanálise, talvez num certo metaforismo a partir da Pulsão
de Morte, porque Freud a chamou assim, de maneira a configurar para o ser
falante essa volição da morte... que o ser falante, compativelmente com seu
Pai, seja desejante da morte, desejante do Não-Haver, isto não se discute, está
no Esquema ... ser-para-a-morte, é o de que se deve diferir porque isto seria
considerá-lo mortal... se isto fosse verdadeiro, haveria diferença entre Sujeito-
Suposto-Saber como imortal e Sujeito falante como mortal... a montagem
estrutural desse processo nos mostra que há congruência entre Pai e Filho...
a estrutura do falante é a do Outro, é a estrutura do Sujeito-Suposto-Saber...
pode haver diferença em nível de compleição, de escopo, de perfeição, mas
não em nível de estrutura...
...encontra-se aí a tradição dita entre teólogos, místicos, religiosos, que
faz do homem o filho de Deus, o portador da centelha divina... um ser adâmico...
no testemunho de um Angelus Silesius: “Die Kreaturen sind Gottes Widerhall”,
as criaturas são ecos de Deus... “die Kreaturen sind des ew’gen Wortes Stimme”,
as criaturas são ressonâncias do verbo divino... no Credo cristão se diz que “et
ex Patre natum ante ómnia saecula”, e do Pai nasceu antes de todos os séculos
–não é fenômeno temporal e, sim, repetição da mesma estrutura... “génitum,
non factum”, nascido e não feito –não é subproduto, ou produto da obra do
Pai... “consubstantiálem Patri: per quem ómnia facta sunt”, é consubstancial
do Pai, por quem tudo foi feito –é consubstancial porque nascido Dele, é da

286
O tesão pelo imundo

mesma estrutura, da mesma natureza... “descéndit de caelis”, desceu dos céus:


e o homem foi feito...
...estruturalmente, a ordem da libido, no seio do mundo, no seio do
Sujeito-Suposto-Saber, é a ordem da libido no seio do falante... diz Angelus
Silesius: “Der Ort ist das Wort”, o lugar é o verbo... não é à toa que Lacan,
partindo do verbal, vai ao topológico... “der Ort und’s Wort ist eins”, o lugar e
o verbo são um só... o Haver e o verbo são um só, o que quer que haja é feito
por via do verbo... o Simbólico está no Haver... e não só no falante...

* * *

...qual a especialidade do falante?... seu movimento pulsional está


aprisionado numa certa modalidade de produção (isto é, o “macacão”, uma
roupa que o falante veste: o macacão biológico), o que vai fazer essa relação
conflitiva, equivocada em Freud, entre a Pulsão de Morte, com sua radicalidade,
e a Homeostase ... entre o Princípio do Nirvana, a tendência da vida humana
ao Não-Haver, e o Princípio de Realidade, da ordem do macaco também... com
a diferença que a estrutura do falante é a estrutura do DIVINO, do Sujeito-
Suposto-Saber...
...qual a diferença entre um animal qualquer e o homem?... o monismo,
o movimento pulsional do desejo do Outro que visa simplesmente sua Causa,
que não-há, que visa o Não-Haver, se dualiza quando, na passagem pelo Real,
no Simbólico do Esquema , explode ternariameme, mas só comparece de
modo sintomático num movimento opositivo de para + ou para - ... aí, a duali-
dade comparece: o um se apresenta como dois, dentro do processo do campo
do Sentido, entre A/ e A, entre o Simbólico e o Imaginário... aí, o processo
pode parecer estritamente dualista... mas, com o comparecimento do falante
no seio desse Campo, o processo não se torna de vez, outra vez, um processo
monista como o do desejo do Outro... mostra-se como processo TRINÁRIO,
como a partição do Outro em Real, Simbólico e Imaginário... isso faz a dife-
rença entre o meu Anjo e um mero interstício entre o Masculino e o Feminino,

287
O Sexo dos Anjos

entre o Simbólico e o Imaginário... surge o ternário, que, se está na memória


do criativo, do explosivo, vindo do Real na ordem do Masculino, também está
na memória do encaminhamento para o mortal –aquele a que Freud se refere
como retorno ao inanimado, que seria o Feminino (está aí uma nítida diferença
entre o Masculino e o Feminino: a diferença entre o criativo e o destrutivo, o
mortal)... no que essa dualidade é rememorada, sobrevêm uma estrutura ternária
que põe um Terceiro que não é entre, mas composto de possibilidade criativa e
possibilidade destrutiva, regidas ambas por esse terceiro, que é então memória
não da criação e da destruição, mas do Não-Haver em sua face Real; que o
Sujeito-Suposto-Saber tem, e em cujas modalidades os animais não têm...
...todos esses ditos seres comparecentes na face do Mundo estão sob a
dualidade em seu funcionamento –seja homeostático, por exemplo, no caso do
mero biológico –porque o seu terceiro é o do próprio Outro, como se fossem
partes: “Aquele que tudo fez”... são elementos parciários do Haver... mas eis que
comparece no seio desses elementos parciários um outro elemento que, mesmo
sendo parciário, tem a mesma estrutura de trindade, portanto de referência a um
possível monismo do desejo, que é característica divina... por isso, o Homem
é um ser angélico, é Falanjo... o falante surge dentro de uma modalidade, mas
sua estrutura é igual à do Outro... portanto, é ternário, e não deve ser partido em
mera dualidade... ele tem urna porta, passagem entre os opostos da modalidade,
ele porta o ponto bífido de Revirão na sua estrutura...
...o ponto de Revirão não pode ser concebido como entre isto e aquilo
porque, no que está presente, organiza o isto e o aquilo num complexo só, de
três faces... por isso, o Falanjo é a diferença de mero ser-entre masculino e
feminino –estes são estados de comparecimento do Haver no processo “mor-
rente” da tendência ao Não-Haver e no processo “nascente” da tendência à
explosão, são apenas duas tendências... aliás, comparecem no seio do mundo
gnômico porque esse mundo não fala... nós é que falamos por ele... ou nós ou
Deus... no que falamos por ele não somos nem de um lado nem de outro da
mera dualidade, somos seres ternários e, portanto, visando a unicidade, como
a do ...

288
O tesão pelo imundo

...o desejo do homem é o desejo do Outro... o desejo do Filho é o desejo


do Pai... o desejo de a é o desejo de ... o Não-Haver, a causa, a coisa, das
Ding, de nosso desejo, é o imundo... o imundo está envolvido na categoria do
SACER latino, o SAGRADO enquanto inabordável, aquilo que, se fosse tocado,
seria absolutamente destrutivo... Sacer: o regedor do Princípio do Nirvana de
Freud, o qual não é atingido, nem mesmo pelo Outro... pois “não há Outro do
Outro”...

* * *

...tudo que há, que comparece dentro do , é mero mundo... o não


passa, o Adeus não consegue tornar-se imundo... o que tenta se aproximar do
Não-Haver, do imundo, ou seja, tudo que, dentro do mundo, está de acordo com o
desejo do Outro, tudo que está funcionando de acordo com a libido originária do
divino, tudo que é desejante, é SANTO... Sanctus: o estabelecido com respeito
à Lei, sancionado, ratificado, consagrado, venerando, confirmado... o Sanctus
de Benveniste sugere um esquema em que há o sacer, o imundo intocável, o
Sanctus sendo o que pode circundar esse intocável, muralha de proteção...
...a libido é santa... o desejo é santo... a Demanda é pecado venial
porque se esquece do desejo que a motiva... por isso, abre mão, de certo modo,
de continuar no movimento desejante... abrir mão do desejo é pecado mortal
porque reduz o sujeito à instância não-falante, como se fosse um animal... pode
parecer que, para Lacan, a única culpa é abrir mão do seu desejo, isto é, o desejo
particular de cada um destacado numa análise... mas, na verdade, trata-se de não
abrir mão do desejo, pura e simplesmente, ou melhor, do desejo do Outro... há
um passo a ser dado efetivamente na ÉTICA da psicanálise, como está sugerido
por Lacan no Seminário da Ética: não abrir mão do desejo do Outro, do desejo
do Pai... é um passo radical na Ética da psicanálise, no que ela se concentra no
Mais-Além... para além do seu desejo, no que ele é destacável numa análise,
há o desejo do Outro que relativiza e minimiza um desejo...
...não é de se abrir mão do seu desejo, no sentido do Wo Es war, en-

289
O Sexo dos Anjos

quanto impostação inconsciente... o passo seguinte da Ética vai tocar na teoria


do final da análise, propondo uma ASCESE mais radical, um wo Es war mais
rigoroso, que ultrapassa os limites da prática do analisando com o analista, mas
não ultrapassa os limites do que o analista, tendo terminado uma análise, pode
reconhecer e teorizar a respeito de sua prática...
... meu monismo já é equivocamente dualista, na medida em que
Não-Haver não-há... só é monista enquanto desejo de A Coisa, enquanto que
a Pulsão, o Tesão do Sujeito-Suposto-Saber é único e visa um objeto só, que
aliás não-há...é neste sentido mesmo que Freud relativiza o seu dualismo... o
Ocidente tem posto que só se pode conceituar um monismo fechado sobre si
mesmo... tirante certos aspectos da física contemporânea e certas afirmações
de Empédocles, de Schopenhauer (autores que Freud cita), não se concebeu
um esquema de retorno, com simplicidade, baseado no teorema freudiano de
um Mais-Além que não-há, mas que no entanto é CAUSA do desejo... não-há,
mas é posturado pelo próprio Haver... o Haver, como Outro, postura Ainda-
Outro, que não-há...
...neste tipo de construção, não dá para conceber o Homem como Ser-
para-a-Morte... foi uma mancada temporal, de época, em cima da filosofia...
prefiro a tradição mais antiga que diz que o homem é imortal... ou bem a relação
sexual (e também o incesto) é impossível, ou bem a morte existe... a vontade
de incesto é algo que ecoa no nível da redução significada do falante... ela parte
do desejo, da libido fundamental, da pulsão enquanto tal (a qual terá para o
falante, como ensinou Freud, representações em objetos demarcáveis), mas é
um eco desse desejo, desse movimento libidinal, no seio do falante...
...o incesto propriamente é simplesmente impossível... filho não pode
transar com mãe, pois palavra com palavra não faz relação sexual, mas sim
metáfora e metonímia... se um “filho” transa com sua “mãe”, o que aconteceu
foi intercurso carnal entre dois macacões... não há tal intercurso no nível do
simbólico: o Haver não passa a Não-Haver... o percurso do falante tangencia
o objeto, mas não se fecha com ele num só... a relação sexual é impossível,
portanto, A MORTE É IMPOSSÍVEL...

290
O tesão pelo imundo

...pessoas fenecem, são capazes de perecer, registra-se o óbito, e o seu


sumiço, há o encarceramento de seu macacão falecido dentro de uma tumba...
haverá, no nível do inconsciente, no nível do simbólico, alguma possibilidade
de marcação para uma experiência de morte própria ou de outrem?... jamais
compareceu na fala de qualquer falante a experiência da morte morrida... com-
parece, sim, o medo da morte, que é o susto da Castração... não-há morte para
Deus e não-há morte para o Homem... quando se faz o luto de alguém, que
se diz que morreu, faz-se o luto de sua perda... fica-se perplexo diante do seu
sumiço... por isso, o luto é necessário, pois não se sabe dar conta do sumiço...
fica-se perplexo diante da Castração, diante da evidência de uma falta... Gui-
marães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”...
...Édipo: “Eu queria não existir como tal”... esta, a falha de cada um dos
falantes na referência ao seu desejo particular: Ser qualquer outro para não ser
eu, diria um Fernando Pessoa... para Lacan, trata-se do desejo de não ser tal:
“Mé Funai”... mas o sustentáculo disto é o desejo de não-ser, melhor, o desejo
de Não-Haver, que induz a uma Ética mais vigorosa que a de não ser tal...
...se posso ter acesso ao dito “meu desejo”, ele não é mais que um cocô
de mosca no panorama do Haver... só serve para atrapalhar meu acesso ao desejo
do Outro e à minha Gelassenheit (como chama Angelus Silesius, repetido por
Heidegger), ao processo divino, ao processo do Outro... mas ninguém é de ferro,
não fará bem isto... a SANTIDADE pára no limite do imundo: é estar na visão
do imundo, mas sem se tornar imundo... o imundo também é impossível para
Deus... tudo que há é mundo... até as maiores imundícies, que são malchamadas
assim neste nosso só mundo...
...o movimento desejante do Haver é composto do real lacaniano com
seu saber, que é der Wort, a palavra... um saber que do Real se entrega... para
Lacan, o significante nos vem do Real... esse Real é significante mesmo, é es-
truturado verbalmente... nossa impotência HISTÉRICA de falar desse Real se
deve ao eco de impossível em nossa parciaridade de falantes... a CIÊNCIA, ela
é possível na sua movimentação histérica... a histeria não é histeria só porque
supõe que seu não atingimento do Real é só por impotência sua, pois, afinal de

291
O Sexo dos Anjos

contas, é mesmo... a histeria exibe o seu valor de impotência, tal como na ciên-
cia... a histeria é pré-condição do comparecimento do científico e não se sente
impotente porque sua estrutura seja de impotência e a de outros discursos não:
ela faz é referência à impotência... o que é diferente da neurose histérica, a qual
investe nessa impotência... já o discurso analítico, por exemplo, faz referência
ao impossível... a impotência é fato, a histeria não está mentindo...
...para Lacan, a salvação é a Santidade... só numa visão de aproximação
do imundo é que se pode bem-dizer (benedictus mundus) o mundo... um sujeito
só pode bendizer seu sintoma, não ao reconhecê-lo, mas ao ultrapassá-lo...
bendizer o Sintoma, só o Santo o faz: só no vigor do Sanctus é que o Sintoma
pode ser bem-dito... tê-lo reconhecido não é bendizê-lo... é preciso que ele seja
relativizado em função do sintoma do Outro, que é desejar o Impossível...
...desejar para além da morte é diferente de desejar a morte... Lacan
situa o vigor ético da psicanálise no regime do HERÓI TRÁGICO: Antígona,
por exemplo, entre duas mortes... mas é preciso um Super-Herói que, no seu
regime de sanção, de sancionado, de santidade, visualiza, para além da morte,
não uma segunda morte desde entre a primeira e a segunda, mas a (primeira)
morte pura e simples como Não-Haver... ele não deseja morrer, e sim que seja
respeitado o que fica para além da dita morte, mesmo que por isso tenha que
perecer... não é um kamikaze, pois este está na suposição de que vai conseguir
realizar a pulsão e que para isto está bem pago: seu sintoma é a pátria... o
Sancio de que se trata é pré-cristão... o Santo não pode fazer mais do que dar
exemplo... Antígona quis salvar a Lei, buscar para aquém do rei Creonte o que
o fazia administrador de sentido, de bens... ela brandiu o Bem Supremo, que
não-há e não paga nada por isso...
...a ESCRITA tenta sancionar materialmente certos atos no mesmo
nível em que o sujeito supõe ter reencontrado... uma obra de arte exalça esse
ponto de absolutamente nada, de apagamento de tudo, ponto supostamente
reencontrado em algum lugar, na vida de alguma pessoa...

* * *

292
O tesão pelo imundo

...no está mostrado que a Libido é masculina... se o Não-Haver não-


há, o que quer que haja está no seio do Haver e é uno... o movimento libidinal
passa pelo Masculino, pelo Angélico e pelo Feminino... sua razão terminal, o
momento em que ele se dá conta de que deseja o Não-Haver, é no regime do
Feminino... Lacan associou a sexualidade feminina ao MISTICISMO: o místico
enquanto feminino é o que aponta diretamente para o desejo do Outro, que é
de Não-Haver...
...o movimento libidinal tem essas três vertentes –Masculina, Angélica
e Feminina –e, considerado no seu conjunto, ele é fechado por uma EXCEÇÃO
que não-há, mas é exceção... portanto, o Haver só pode ser Masculino... por
isso, Lacan diz que não existe Outro gozo... há um gozo masculino no Real:
explosão, fiat, criatividade... passa o Angélico do Sentido e cai no Feminino da
neutralização do Sentido... aí, é mantida apenas uma diferença entre o interno
do Haver e o externo que não-há: não-há nenhum atingimento no movimento
do Feminino, pois ele vai recair no gozo do Masculino...
...o automatismo desse aparelho ( ) com seu Revirão é o que chamo
de pulsão... a libido é fruto do simples movimento do ... a libido, dentro de
seu sentido interno, é masculina, angélica e feminina... Freud tem razão ao se
dar conta de que tudo isso se dá no seio de uma unicidade que não tem fora,
que não tem condições de extrapolação... por isso, o conjunto por inteiro, na
medida em que há uma exceção que funda a regra, é masculino: está-se conde-
nado a viver no Masculino, isto é, no universal que só FINGE que é feminino
quando exacerba o seu tesão por Outra Coisa que não-há (ACOISA)... donde
sua posição finalmente angélica...
...libido é o que Freud chama de konstante Kraft... é o movimento
causado pelo Não-Haver... é o tempo, o desejo, isso que alguns chamam de
ENERGIA... PULSÃO é o modo de reviramento como essa libido se comporta...
seja essa libido o que for, ela se comporta em Revirão... pulsão parcial é coisa
regionalzinha em torno de um objetinho, causada seja por alguma suposta
NECESSIDADE do homem, seja por alguma coisa interna, como diz Freud,
seja por um outro desejo... o reviramento é isso que Lacan diz que “contorna”

293
O Sexo dos Anjos

o objeto: revira, cai no mesmo lugar... revirar é começar de novo...


...os CONCEITOS estão estabelecendo os modos de construção... o
único esquema plausível para a PULSÃO DE MORTE (no sentido freudiano e
no sentido da termodinâmica) é a generalização disso para o Haver, mesmo em sua
neutralidade, quando um Não-Haver é Causa desse movimento... a exceção funda
a regra como não-havente, como suposição do Haver em seu movimento... o Nome
do Pai é o nome do Haver... este tem como desejo Não-Haver... seu movimento
libidinal, e sua pulsão, é causado pelo Não-Haver... o que tem eco em todas as
faces do processo do mundo, seja no inanimado, no orgânico, seja no chamado
INCORPORAL do falante... no nível do falante, o processo se REPETE... no do
animal, não, pois este está incluído no grande processo...

* * *

...na medida em que, pelo destacamento da DIFERENÇA do seu desejo,


cai-se no des-ser, passa-se da lei da diferença interna ao Saber à lei da diferença
externa... o que antes vigorava no regime da referência e respeito reverente à
Diferença Sexual passa a vigorar no regime da referência e respeito reverente
à INDIFERENÇA ABSOLUTA... tudo dentro do campo do Haver é indiferente
diante da diferença radical (externa) que é o Não-Haver...
...ao Santo, Tudo é indiferente... a indiferença aí se chama equivalência...
é quando o Místico diz que tudo será igualmente recolhido no seio de Deus... e,
no seio de Deus, Tudo lhe é indiferente, pois a única diferença que interessa a
Deus é, Adeus, o que não-há: a diferença entre Ele próprio e o Não-Haver... os
arroubos místicos de São João, Santa Teresa, etc., tratam de dizer isto mediante
uma queda precipitada sobre alguma coisa que não parece nada morta, e que
não é mera queda numa neutralidade entrópica, mas numa indiferença diante
das diferenças internas... todas as diferenças se equivalem enquanto tal, salvo
diante da única diferença que interessa, que é entre Haver e Não-Haver... o
Santo bendiz tudo... por isso, o santo canonizado é meio maroto, pois bendiz
o que interessa “àquela” Igreja...

294
O tesão pelo imundo

* * *

...os processos menores do falante são processos decadentes, de


princípio do prazer... princípio do prazer e princípio de realidade sustentam o
movimento libidinal... os dois são o mesmo princípio, o princípio de realidade
está a serviço do princípio do prazer... a centelha divina no falante não é propor-
cional ao princípio do prazer, e sim ao Princípio do Nirvana... Freud chamou
isto de Pulsão de Morte, mas não há morte alguma, há Nirvana, inalcançável
mas que movimenta o Divino, e movimenta o falante... abrir mão do desejo do
Outro é abrir mão do Nirvana... leia-se Don Quixote de la Mancha, o maior
romance maneirista do mundo... Don Quixote, em todas as suas peripécias,
não abre mão do Nirvana, sabendo que nunca chegará lá... à Glória eterna que
nem Deus terá...
...a SUBLIMAÇÃO é regional... o conceito de Sublimação só tem
esteio no conceito mais amplo de Santidade, tal como o coloco... o motor de
um processo sublimatório –que permite deslocar-se de um objeto designado
por um desvio que o abandona, e o desvio supremo sendo da ordem do Belo,
do Bem etc., essas paredes, como chama Lacan, contra o Não-Haver – só
é possível porque o Sujeito sabe, no Inconsciente, isto é, há no Haver esse
saber de que o desejado é absolutamente Não-Haver... por isso, ele se permite
“saltar”... um animal não pode ser sublimatório porque não é esse terceiro: ou
ele goza pela via masculina, ou não goza, mas perece pela via feminina –ele
está dividido entre esses dois lugares... o falante pode abrir mão de gozar pela
via masculina e de desfalecer pela via feminina, e no entanto restar no processo
de remissão santa, santificada, benedicta, ao Não-Haver... ele pode deslizar... o
gozo metonímico do falante é sancionado pelo Não-Haver...
...o falante não é sancionado só pelos movimentos desejantes da alteri-
dade enquanto Haver, como acontece com o animal que também faz aparentes
metonímias, na verdade metáboles (como chamei n’A Música)... o que se
pode colocar da ordem da Necessidade, quando Lacan diz que a Pulsão não
é da ordem da Necessidade?... seria uma Libido puramente modal corno é a

295
O Sexo dos Anjos

do animal: libido do autossoma, aprisionada numa estrutura sistêmica... a De-


manda também é libidinal, como a necessidade, mas a demanda é libidinagem
etossômica, psicológica, que um animal também faz... qualquer modalidade,
em suas transações ecossistêmicas, faz Demanda... a Necessidade, como libido
modal, pode ser chamada de Instinkt... para Freud, o etossoma está na ordem
de um Trieb, de um drive relativo...
...o Desejo do Homem, que está inscrito na ordem divina como na ordem
do falante, é LIBIDO PLERÔMICA... tem a mesma estrutura da libido do Haver,
é ternário, portanto pode ser monístico... é LIBIDO HETEROSSOMÁTICA...
...a sublimação retoma SANTAMENTE a vertente do impossível, para
não consegui-lo... há satisfação assim mesmo... mesmo numa escrita, a coisa
se modaliza: modaliza-se de outro modo... no movimento pulsional objetal,
o sujeito visa o objeto e não se desprende dele... no movimento pulsional
sublimatório, põe-se o objeto de lado e procura-se o não-objeto, e não se o
consegue... aí, sobra, por exemplo, uma escrita, modalizada, suja de pulsão
objetal, da nostalgia do objeto enquanto defastado... por isso, há ESTILOS...
quem comanda o estilo não é o não-objeto, Acoisa, é o objeto abandonado...
quando se está diante do estilo de um escritor, deve-se perguntar a que objeto
ele renunciou para ter tal estilo... de que objeto ele está fazendo o luto com sua
escrita?... isso é fracassado, porque é luto, seu estilo vai manchado do objeto
declinado... mesmo que um Sujeito ali fizesse demonstrações de des-ser, seu
estilo seria manchado pelo luto do objeto a que ele renunciou... pode-se fazer a
suposição de que há Santidade num grande artista... aquele lixo todo são os restos
metonímicos do objeto partido em escombros... a insistência em escombrar o
objeto, mediante tais escrições, é que dá indícios dessa Santidade...

* * *

...daí que o PASSE é mais perto do Passe de Lacan do que do Passe


instituído por Lacan... este, é meio maroto, pois é um testemunho de passe...
o passe de Lacan é aquele de que ele diz ter passado a vida a fazê-lo: essa

296
O tesão pelo imundo

insistência no obsceno, com vistas ao imundo, em ultrapassar o objeto... ...não


há analista onde não existe essa RE-PETIÇÃO INCESSANTE DE ULTRA-
PASSAR O PASSE... analista descansado, de CONSULTÓRIO, que é “bom
profissional”, isto e titica é a mesma coisa... o analista precisa restar dando
testemunho de que está na dejeção de escombros metonímicos, até o fim... uma
tal “Comissão de Passe” não pode fazer mais do que reconhecer que tal analista
está insistindo em passar o passe e avaliar o grau dessa insistência...

26/MAR

297
O Sexo dos Anjos

298
Repetição

3
REPETIÇÃO

...o que acontece no Esquema é que ele faz a recorrência de diversos
conceitos... o que, talvez, faça com que alguns fiquem em questão no que diz
respeito às diferenças de conceitos sobre o manejo do Esquema... a intenção
era mesmo essa: fazer um esquema único que tivesse capacidade de recorrer
todos os conceitos em seu funcionamento...

* * *

...eu havia dito que a PULSÃO é isso aí... esse movimento de captura
pelo não-objeto ali no Não-Haver, e o retorno ao ponto de partida: começar
de novo...
...agora, vou dizer que a REPETIÇÃO também é isso aí... no mesmo
Esquema está inscrito o conceito de Repetição... a Repetição é que o Esquema
é um aparelho de Repetição... é um autômato, aquilo funciona sozinho... por
isso chamei de “Motu Perpetuo”, no 1° capítulo do Pleroma... ele funciona
sozinho... o Desejo que o Haver tem de Não-Haver empurra o Haver para o
seu próprio lugar, com tropeço no Real...
...com a ambigüidade lacaniana do Real como impossível e como o
que retorna sempre ao mesmo lugar, com certa indicação para o desempate
que temos com o Haver como tal, fica ali mais ou menos cindido... na medida

299
O Sexo dos Anjos

em que o impossível é o Não-Haver que só se representa, só comparece, na


ordem do Haver por esse ponto-bífido de Revirão que chamo de FURO, onde
prefiro escrever Real...
...o Real ali comparece obrigando a Repetição do mesmo périplo... o
que não significa botar os pés no mesmo lugar... é Repetição, é variante, cria
variação... é exigência de novidade, mas não novidade de périplo... é novidade
de acontecimento dentro do mesmo périplo... dentro do mesmo automatismo...
os encontros com a Falta, com o Real, sustentam o automatismo ao mesmo
tempo que propiciam o novo dentro do mesmo... o que parece paradoxal no
conceito freudiano de Repetição é justamente a criação do novo dentro do
mesmo... quando Lacan distingue wiederholen de reproduzieren, ele quer dizer
que a coisa se repete e é sempre a mesma com todas as variações da diferença
imposta pelo tropeço no Real...
...não estou tratando da Repetição, ainda, daqui para lá, a partir da
experiência psicanalítica, clínica, do patológico, como trataram Freud e Lacan,
até a conceituação da Repetição... portanto, dentro dos esquemas de compulsão
repetitiva que um analisando apresente... uma vez isto já trazido, estou tratan-
do, depois, de uma visão geral mais para o teórico do que de abordagens da
psicopatologia... do geral para o particular... ao contrário do que eles tiveram a
paciência de fazer, durante décadas, de partir do particular para o geral...
...ainda estou falando da Repetição no campo do Haver, no Esquema 
o que se repete?... a LIBIDO em sua insistência constante –e é absolutamente
freudiana essa insistência constante –de querer o impossível Não-Haver... sem-
pre tropeçando nesse impossível e, portanto, retornando ao ponto de partida...
não significa que o ônibus vai pelos mesmos lugares... as rodas não passam
no mesmo lugar e não são os mesmos passageiros que sobem e descem... há
variação, mas o périplo é sempre o mesmo... isto é o conceito de Repetição
enquanto autômato...
...o que Lacan quer chamar de Tiquê, de Fortuna, no Esquema geral, não
é senão o DESENCONTRO, que é chamado encontro com o Real... encontro
faltoso é um desencontro no lugar marcado... se o Haver não encontra o que

300
Repetição

pretendia encontrar, pelo menos encontra a mesma falta... portanto, encontra o


que pretendia não encontrar... é encontro desencontrado na medida que o encon-
tro se dá e ele “ganha mas não leva”... ganha experiência, pelo menos... quando
topa com esse Real e a coisa se revira, então aparece o novo... a possibilidade,
mediante a explosão, de, no campo do Sentido, as coisas se renovarem por si
mesmas... acidentalmente, fortunosamente... como se fosse por acaso...
...do mesmo modo que foi sugerido por Freud, estou dizendo que o
mecanismo da Repetição não é senão o mecanismo da Pulsão... conceituar a
Pulsão é estudar como o fenômeno de abordagem, de aproximação do objeto
se organiza... isto é abordar o conceito de Pulsão dentro desse movimento...
abordar a repetição é verificar que o que aí acontece é sempre repetitivo...
...está ficando quase banal... é simplíssimo... psicanálise é muito fácil,
só que é muito difícil de fazer...
...quando isso comparece como compulsão repetitiva na fala do anal-
isando, em torno de uma requisição sintomática, é porque aí se trata de um
certo sujeito encabeçado, se não encapuzado, num certo momento, por uma
indicação significante que o amarra, que o define... essa Repetição de um certo
desejo, de um cetro de indicação, é o que comparece para certo sujeito como
aquilo que para ele se aponta como Real...
...não foi à toa que Lacan mostrou que o SINTOMA é o Real do Su-
jeito... digamos, até no nível de S1, as tais marcações do sujeito, por que Lacan
diz que é o Real do sujeito, quando, na verdade, para quem está de fora e con-
segue destacar esse sintoma, é apenas um significante que tem possibilidades
de significação?... o sujeito não tem acesso a ACOISA, assim como o Haver
também não tem... no que Acoisa não há, “se não tem tu vai tu mesmo”... no
lugar dessa Acoisa, o sujeito vai colocar certa marcação que é da sua particu-
laridade como representante, Repräsentanz, d’Acoisa... mesmo como Vorstel-
lungsrepräsentanz, mesmo como representante da representação que ele poderia
dar d’Acoisa como objeto...
...por que isso vai funcionar como um Real para esse sujeito?... o que ali
se escreve como sintoma e designa o objeto só se escreve com significantes...

301
O Sexo dos Anjos

não como significado... se assim fosse, se poria definitivamente como Acoisa...


mas se escreve apenas como cacoete que um sujeito tem para nomear Acoisa
que é impossível para ele... é um substituto metafórico... o sintoma é metáfora...
o sujeito sabe disso... em algum lugar, sabe que está lidando com uma metáfora
sintomática... e não com o que ele queria... assim como sabe, em algum lugar,
que o objeto por ele requisitado, não se trata disso... embora insista, neuroti-
camente por exemplo, na requisição disso, sabe muito bem que se isso lhe for
dado, será recusado... não se trata disso... embora isso seja conditio sine qua
non do deslanchamento de algum gozo-fálico... e justo há deslanchamento do
gozo-fálico porque há de-sistência da insistência... diante do Real desse sintoma,
acontece a Repetição do TRAUMA... Repetição traumática daquilo que não
será entendido jamais...
...se temos a insistência de chamar de significante o que de qualquer
forma chega a se aproximar, na lingüística, mesmo de Saussure, de uma
vontade de significado, não dá para entender jamais o que Lacan (ou eu) está
dizendo... mas se chamamos de significante o que eu quis colocar aqui, já de
vezes antigas, como Halo com seus Alelos, com sua bifididade, o tropeço no
Real, no que o significante se revira, vai deixar um vácuo, uma anulação: zero
no denominador...
...no que se consegue ter encontro faltoso com um objeto que não-há,
mas também faltoso com o próprio significante na medida em que, uma vez
posto, ele pode se tornar o seu avesso, fica-se na mesma... diante do trauma in-
dizível, insabível, se o significante é preto, na busca da falta que ele traz, avessa
para branco... qual é a que eu estava querendo?... qual o sentido que se poderia
dar?... ali, se perde o sentido... de novo... e isto é traumático... mas o trauma
anula todos os sentidos... e, como denominador, infinitiza o numerador...
...perder os sentidos, na obra de arte, no tropeço com o Real, no sonho
de despertar, é da ordem do encontro com o trauma... encontrar-se com o
trauma é encontrar-se com o Real enquanto Furo, Zero, e não enquanto impos-
sível... a distinção que tento fazer –as duas coisas me parecem algo coladas
no pensamento e na exposição de Lacan –é do Real enquanto impossível, que

302
Repetição

é o Não-Haver, o qual não tem condições de aparecer senão como quiasmo,


melhor, como avessamento, como halo, como alelos avessos dentro da ordem
significante... uma vez que se topa com isto, tem-se um encontro é com o trauma,
com não ser possível entender (aceitar) o Real...

* * *

...o que há para saber a respeito de Repetição, está tudo nessas pequenas
páginas, de 55 a 65, do Seminário II de Lacan... a Repetição que nos comparece
no cotidiano e na fala do analisando...
...na medida em que estou partindo de um Esquemão para encaixar o
máximo dentro dele... trata-se de re-traduzir para um escopo bem maior, onde
caibam todos os conceitos na mesma estrutura... depois, ver como isso funciona
nesse pequenininho do cotidiano, da clínica, etc., como é compatível com a
estrutura apresentada por Freud e Lacan...
...Pulsão e Repetição... a coisa é a mesma, o conceito não... no que me
refiro ao Esquema total, é a mesma coisa... o acontecimento é o mesmo... o
conceito de Pulsão é o conceito desse acontecimento... partir de algum ponto,
pretender Acoisa, esbarrar no Real, portanto retornar ao circuito... partida, lam-
bimento e chegada... o conceito de Repetição é o eterno retorno desse mesmo
movimento da Pulsão... a diferença é entre o que comparece no Esquema 
como totalidade, e num sujeito falante nas suas idiossincrasias num certo mo-
mento de fala... a diferença é de grau e não de estrutura... é uma estrutura só,
onde temos os conceitos de Pulsão, Repetição, tiquê, autômaton... está tudo
ali... num movimento só...
...quando tomamos o que Lacan diz no Seminário II... o que Freud ex-
plica sobre o movimento pulsional de um sujeito falante num dado momento...
é a tradução que o sujeito tem que fazer, na sua estorinha particular, desse Es-
quema... ele não lida diretamente com Acoisa e, sim, com o objeto... para ele,
já traduzido, via significante, via metafórica, etc., em pequeno objeto... mas que
porta as condições de inatingibilidade que são d’Acoisa... pode-se dizer que o

303
O Sexo dos Anjos

objeto que o sujeito define é até disponível... por que a Pulsão, em vez de só
lamber, não come?... porque aquilo é pura metáfora de um aparelho precursor
que está no sujeito, e do qual ele sabe... sabe que aquilo é representante... não
precisa ter “consciência” para saber...
...a diferença, então, no meu aparelho, é de conceito, e não de estru-
tura... não há nenhuma diferença estrutural entre Pulsão e Repetição... agora,
cada sujeito, no que é nomeado, encapuzado pelo significante, etc., vai botar tal
significante-mestre, tal fantasia, como representação do Esquema fundamental
que ele porta...
...se abrirmos o Vocabulário de Laplanche-Pontalis, temos, p. 88
da edição francesa, pergunta do tipo: “A serviço do quê opera a tendência à
repetição?”... se olhamos do patológico, do aspecto clínico, para frente, confe-
rimos que há a Repetição... “a serviço do quê?” é o mesmo que perguntar: Por
quê?... “a serviço do quê?” dá também a impressão de: Qual o atingimento,
o alvo disso? Por que essa máquina faz isso?... vemos os autores angustiados
com o fato de não encontrarem bem a serviço do quê...
...continuando, temos: “Trata-se, como ilustrariam em particular os
sonhos repetitivos consecutivos a traumatismos psíquicos, de tentativas feitas
pelo ego para amestrar e depois ab-reagir de modo fracionado às tensões exces-
sivas? Ou bem é preciso admitir que a repetição deve ser, em última análise,
colocada em relação com o que há de mais ‘pulsional’, de ‘demoníaco’ em toda
pulsão, a tendência à descarga absoluta que se ilustra na noção de pulsão de
morte?”... o tal lúdico da repetição no sujeito falante é a tentativa de mestria?...
ou é esse demoníaco pulsional que visa o Mais-Além?... não vejo o motivo
desse “ou bem”, pois é a mesma coisa...
...o que se tenta amestrar?... o trauma, o impossível de saber... “o que
não tem sentido, nem nunca terá”... tentar amestrar é entre aspas, pois se está
é subdito a essa Repetição... o que não impede que, mediante o lúdico, haja
tentativa de amestrar o inamestrável... dar conta do trauma, entendê-lo... o
que faz com que a Repetição esteja ligada necessariamente à estrutura da
Pulsão...

304
Repetição

* * *

...por que, em última instância, Freud coloca todas as pulsões como


Pulsão de Morte e cria esse “paradoxo” esquisito na cabeça dos teóricos?...
Repetição e Pulsão são estruturas análogas, sobrepostas... todas, instrumento
da Libido... qual seria o grande tesão da Libido, segundo Freud?... cair ao ponto
zero, anular-se... mas não consegue...
...Repetição e Pulsão são conceitos diversos... o que quero demonstrar,
e que está por trás do Seminário II de Lacan, ainda que não explicitado por ele,
pois não apresentou nenhum Esquema global, é que esses tais quatro conceitos
fundamentais são conceitos sobre o mesmo aparelho... conceitos distintivos de
ocasiões de entendimento no mesmo aparelho... estão falando de uma coisa só,
que chamo Esquema ... Lacan não apresentou essa coisa única... e nem disse
que há UM conceito fundamental...
...poderia ser cobrado de mim que, se estou fazendo o que estou fa-
zendo, deveria dizer que há quatro conceitos fundamentais que se agrupam
num único conceito da psicanálise... e eu digo que, no Adeus, isto está dito... o
Esquema é o conceito da psicanálise... que se subdivide em quatro conceitos
fundamentais...
...eu disse que pretendia unificar a teoria... se, então, estudo os quatro
conceitos, que Lacan quis destacar como sendo os fundamentais –e se são os
fundamentais é porque com eles faço toda a psicanálise, em cima disso estru-
turo tudo –venho dizer que esses quatro conceitos falam do mesmo aparelho
estrutural, que é o Haver em sua constituição deste modo que apresentei... isto
é exalçar como o conceito fundamental da psicanálise, o Desejo de Morte... que
não quero chamar de Pulsão de Morte porque Pulsão está dentro do conceito
das pulsões...
...desejo de morte, que é o desejo do Haver... o desejo de Não-Haver
estrutura tudo, cria esse movimento, esse périplo extremamente repetitivo,
automático, etc., dentro do qual se pode pinçar quatro conceitos fundamentais
e fazer, a partir daí, toda a psicanálise...

305
O Sexo dos Anjos

...estou então na tentativa de unificar todos os conceitos num só... e o


conceito é O DESEJO...
...dentro da mesma estrutura, chamo de Pulsão o movimento desejante
de tentativa de colher o objeto... e queda de retorno ao mesmo lugar de partida...
Repetição é o aparelho automático que recorre sobre si mesmo esbarrando
sempre no impossível... são dois modos de olhar o mesmo objeto... se olho uma
pessoa ali sentada, posso dizer que é um sujeito sentado assim-assim... e posso,
também, dizer que a cadeira onde ele está sentado está situada assim-assim...
são distinções conceituais, mas a coisa é a mesma...
...quando quero me referir, num certo sujeito, a um movimento pulsional
em torno de um objeto, direi que ele qualifica um objeto para substituir Acoisa...
ele não vai conseguir esse objeto, mesmo que o devore aparentemente... o que
interessa é o objeto na instância significante, que revira por si mesmo... ele fica
perplexo... mesmo satisfazer uma pulsão é perder a noção do objeto... é ter que
entrar em pulsão de novo para situá-lo outra vez... posso, então, perceber que
esse sujeito está no movimento porque houve a excitação, etc., e colho o ponto
de partida... isso é que é a Pulsão: essa lambedura...
...isso fica repetindo aí... com ou sem surgimento, para esse sujeito, de
tal ou qual pulsão... não é que a Repetição dependa da Pulsão ou vice-versa...
tudo depende da konstante Kraft e da libido no seu movimento... isso fica
funcionando, de repente encosta nalguma coisa... aquilo se torna causa de um
movimento pulsional... e continua repetindo... só que instalado numa certa
Pulsão... mas aquilo repete sozinho...
...é porque a Pulsão, mesmo do Haver, é parcial, que ela faz Repetição...
a Pulsão do Haver, posso chamá-la de parcial –pode parecer que, se o Haver
é um só, eu não poderia chamá-la de parcial, pois essa é a grande Pulsão, não
existe outra –porque, para ele, ela é parcial pois não consegue chegar aonde
quer... ele já é castrado em seu movimento pulsional...
...o Haver não é onisciente... Deus é traumatizado, tadinho!... o trauma
da vida Dele é que Ele não pode pegar o Não-Haver... Ele chega a um momento
de bifididade, de não-saber... por isso Ele é inconsciente como nós... Ele só é
onisciente de dentro de seu aparelho... lá dentro, Ele sabe tudo que acontece...

306
Repetição

agora, o que Ele supõe que possa ter como alteridade e que não-há, isso Ele
não entende...
...o serviço que pode prestar uma unificação conceitual como esta
que estou avançando é vermos, por trás, a serviço do quê opera a tendência
à Repetição... parece que é a serviço de algo por vir... estou dizendo que não
é: que é a serviço da estrutura que está por trás... que é assim... não há aí, na
verdade, paradoxo e, sim, equivocação...
...por exemplo, Laplanche-Pontalis dizem que “é evidente que, se
situarmos o princípio do prazer como estando ´diretamente a serviço das pulsões
de morte`, a compulsão à repetição, mesmo tomada no sentido mais radical
em que Freud a admite, não poderia estar situada ‘mais-além do princípio do
prazer’”... eles encontram uma contradição aí... mas não há contradição de
espécie alguma... não segundo o Esquema o princípio do prazer é tudo
o que acontece dentro do Haver... o Haver só trabalha na base do prazer, do
princípio do prazer... portanto, do princípio de realidade... do ponto de vista do
que é possível no Haver, tudo se refere ao princípio do prazer... mas o próprio
princípio do prazer só existe, só funciona na medida em que a Pulsão é de
Não-Haver... essas coisas não são, portanto, opostas uma à outra... elas são da
mesma estrutura... a Pulsão de Vida é a Pulsão de Morte... só existe uma... não
há dicotomia... e sim diferentes efeitos...
...no que o movimento libidinal é no sentido do sumiço, de chegar
ao zero da força, da Kraft, de tudo se tornar prazer... qualquer prazer diverte
o Outro... quero supor que só se vê paradoxo quando não se tem o Esquema
... mas quando se vê que a maquininha, o motu perpetuo, é assim, todo seu
prazer é em função de um gozo absoluto que não-há... seria o gozo-do-Outro
realizado... então, a Pulsão de Morte é a Pulsão de Vida... porque é impossível
morrer... isto não é paradoxo e, sim, o funcionamento da máquina do automa-
tismo de repetição...
...estou conservando os termos de Lacan, autômaton e tiquê, ao dizer que
o movimento, o périplo do Haver é o próprio automatismo... o qual existe causado
em função do Não-Haver... não confundir isto com os acontecimentos pessoais...
para nós outros, que não somos o Haver em sua perfeição, ali, no F do Esquema

307
O Sexo dos Anjos

, colocamos substitutos, placebos, para fazer correspondência entre a estrutura


nossa, que é idêntica à do Haver, e a nossa competência, que é menor...

* * *

...não temos condição de pensar a impossibilidade de o falante ser


pleromático como o Haver... a histérica tem razão em dizer-se impotente aí...
não é impossibilidade... ainda que seja um objeto substituto que o falante ali
ponha, o Revirão anula a significação desse objeto... então, ele convive com a
mesma estrutura do Haver nessa anulação, e não com o objeto... mesmo para
um grande místico, lhe é difícil falar desse Não-Haver... mesmo ele começa
a configurar essa comunhão em termos do próprio Haver... o objeto a lhe
vem em substituição ao e, não, ao Não-Haver... ele o configura de algum
modo... mas, no que isso fracassa, passa pela própria experiência do Haver...
nesse fracasso, o que é traumático não é o objeto, e sim ele perder os sentidos
no Revirão...
...tomemos, por exemplo, o velho sonho “Pai, não vês que estou quei-
mando?” que Lacan tanto trata no Seminário II... é extremamente obscuro, o
texto... mas é de uma clareza surpreendente... o raciocínio é claríssimo... se o
traduzo para dentro do Esquema , fica lúcido... o que desperta no sonho de
despertar?... o que no sonho de despertar, dentro desse Esquema, desperta?...
é encontrar-se com o trauma de tal maneira que o sonho perde condições de
inventar-se em continuação... são sonhos em que a nudez do trauma comparece,
no F do Esquema ...
...aquele tal pai que estava sonhando ao lado do filho morto, apesar do ac-
ontecimento da queda de uma vela, etc., o que interessa é que ele poderia continuar
sonhando e deixar pegar fogo... ele não acordou lá por causa do perigo de pegar
fogo... ele acordou porque pegou fogo aqui, nele... o que ardeu e o fez acordar?... o
fato de que, no que ele preparava um sonho para manter o filho vivo, a informação
inarredável daquela “morte” lhe fez um Revirão... morto/vivo... vivo/morto... e
isto é traumático... não dá para explicar... isso põe qualquer um de pé...

308
Repetição

...isso faz encomenda de gozo-fálico... como a situação não é de se


procurar gozo-fálico no nível do órgão... vai-se procurar re-atingi-lo pelo nível
do Sentido... o fato de o sujeito despertar –não o momento de despertar –é
semelhante à tristeza do gozo-fálico... “depois do coito, o animal é triste”, dizem
os antigos... triste de obrigação de reflexão, de Repetição... tem-se que virar anjo
na hora... começa-se a botar sentido... fica-se reflexivo... começa-se a pensar
como é que, outra vez, passou-se por aquele trauma e não se conseguiu nada
que valesse a pena... e se continua com a mesma cara de babaca de antes...
...o que desperta nesse sonho?... em vez de ficar engambelando o sujeito
na promoção de um certo desejo, ele revira e põe o sujeito na pior... o sujeito
acorda como se tivesse tido um gozo-fálico... não que o gozo-fálico seja da
ordem do despertar, mas, sim, do despertado... é “a face cruel do trauma que
desperta sob o manto diáfano da fantasia”, como está lembrando aqui Antônio
Sérgio Mendonça ao parafrasear Eça de Queiroz... no que a fantasia põe tudo
de novo, tem-se que repensar aquela merda toda outra vez... é um saco... mas
é divino...
...para um sujeitinho, um certo objeto, um objeto que vai revirar, é colo-
cado ali em F, no lugar do Furo... e a resistência em passar para a realização do
gozo-do-Outro é o Real... quem resiste é o próprio objeto... o objeto apontado
pelo sujeito, no que é mero representante d’Acoisa, ele é faltoso no que ele
próprio escapa a esse sujeito... em função da máquina fundamental... esse pró-
prio objeto fracassa as investidas do sujeito, na medida em que o sujeito queria
fazer dele o seu FIM... em todos os sentidos... mas ele não se apresenta como
fim e, sim, como fracasso do fim... o sujeito não consegue passar à efetividade
do gozo-do-Outro... chamo de gozo-do-Outro, que não-há, aquele pedaço no
Esquema , entre A e F, que é a tentativa de sair pela tangente...
...Lacan diz que o autômato resiste... quando vai quase gozando, cai
de novo no gozo-fálico... ele volta para o começo... isto é que é a Repetição...
que se dá no encontro do começo com o final do circuito da Pulsão... ali que
se pode, pelo menos, contar as vezes da Repetição... o que se deseja é passar...
mas não se consegue... há uma resistência, em F, e o sujeito cai de volta para

309
O Sexo dos Anjos

diante... num aparelho de gozo-fálico, que só não se apresenta como tal porque
o sujeito não engatou com o órgão...
...eu conheci neurótico que engatava com o órgão... quando eu era da
Escola Militar, havia aqueles exercícios horrorosos de guerra... um deles era
subir, num tempo dado, uma corda de uns dez metros de altura... um colega
meu ficou com o apelido de “homem da corda” porque não podia fazer esse
exercício... ele subia, gozava (esporrentamente) e caía... eu não entendia por que
isso acontecia... acontecia porque ele confundia todos os movimentos pulsionais
com o gozo-fálico na carne... traduzia na hora... e aí, para ele, tinha alguma
significação de ascensão... era um vexame... ele era gamado numa corda...
...toda tentativa de consecução de ascensão, de passagem definitiva,
fracassa e se traduz em aparelho de gozo-fálico... ao qual é difícil chamar de
gozo-fálico porque não comparece instalado no órgão... mas é da estrutura de
gozo-fálico... e quando se é doidinho o suficiente para engatar os dois, goza-se
daquele modo...
...daí, não podermos ter certeza diante de uma reclamação de falta
de gozo-fálico... quando uma mulher diz que não goza, está falando de gozo-
fálico... porque o Outro gozo não existe mesmo... ela é que pensa, e diz, que
existe... não podemos decidir, de saída, se é sustentação do gozo-do-Outro na
impossibilidade, ou se é queda imediata no gozo-do-Sentido sem ancoragem no
gozo-fálico do órgão... no primeiro caso, o sujeito fica numa eterna aspiração...
no segundo, ele cai antes ainda... ao invés de sofrer de ejaculação precoce, por
exemplo, ele salta por cima... é tão precoce que não chega ao órgão... ele salta
por cima e começa a fazer sentido... são duas coisas completamente diferentes...
não se pode tratar clinicamente do mesmo modo...
...histérica que diz que não goza, não é gozo-do-Outro... ela está pas-
sando direto e caindo no Angélico... ela começa a bater boca no meio da foda...
isso ninguém agüenta... seria imitação do gozo-do-Outro se fosse certo gozo de
Macunaíma... ele dorme no meio da trepada... a histérica, não, começa a querer
saber, do outro eventual, qual o sentido de estar trepando...

310
Repetição

* * *

...qual a diferença entre a Compulsão que Freud adscreve, por exem-


plo, ao fenômeno de neurose e a mera Repetição?... nenhuma... o Esquema é o
mesmo... acontece é que tal neurótico, ainda segundo Freud, no que tal coisa
está recalcada e insiste em retornar –e insiste porque se repete –o sujeito vai
compulsivamente fazer esse retorno em cima do mesmíssimo Esquema... só
que um retorno determinado, marcado por excesso de tamponamento...
...Freud, nos velhos tempos, quando queria convencer as pessoas de
que o Inconsciente existe... precisamos, aliás, convencer de novo, pois as pes-
soas fingiram que acreditaram, não entenderam nada e ficam por aí falando no
tal do-in consciente... mas Freud dizia que nos esquecemos de que o que não
está proferido aqui e agora, mesmo sem ter sofrido um Recalque, no sentido
patológico, está defastado, de certo modo recalcado e insiste por comparecer
de algum modo... não precisa ser algo que, por um certo momento –tipo o
aliquis do esquecimento lá da Psicopatologia da Vida Cotidiana –está neces-
sariamente num momento em que prefiro separar aquilo... pelo simples fato
do aqui e agora estar afastando tudo que não é aqui e agora, tudo aquilo insiste
em comparecer...
...e insiste em comparecer o que Freud chamava atenção, e insisto nisto
porque querem esquecer, que é da ordem do filogenético, do histórico... aonde
Jung foi beber suas bobagens sobre o inconsciente coletivo... mas é todo um
processo de saberes que manipulamos o dia inteiro e não nos damos conta... eles
insistem em comparecer, também, e pedem passagem em nossa fala... tudo isso
tende a se repetir... está lá gravado... mas como estamos ocupados (Besetzung)
num certo momento com outras coisas, aquilo insiste meio lateralmente... mas
quando se faz pressão demais de que isso não deve comparecer e não se deixa
o aleatório funcionar, aí é que ele faz pressão para comparecer... é o que acon-
tece com o neurótico: ele faz pressão... é preciso que ele entenda que poderia
deixar comparecer... basta permitir o comparecimento, na cuca, que acaba essa
Compulsão Repetitiva...

311
O Sexo dos Anjos

* * *

...isto não é nenhum amoralismo de se deixar comparecer e ter que agir...


deixar comparecer a Repetição em nível de passagem do Pré-consciente para
o Consciente é ÉTICO... o difícil do ético é suportar todas as possibilidades e
ter que fazer escolhas quanto ao ato... por exemplo, não é que eu não queira te
matar... querer, eu quero... mas o que interessa é que não vou te matar, ao passo
que o neurótico tanto diz que não quer, que acaba matando mesmo...
...o ético do comportamento social... que cada vez está mais “escroto”
na face deste planeta... é que as pessoas não se permitem, pois todas são do
credo da religião da bondade e do amor, achar que são uns bons fdp... e são
como todos nós... como isso não vem à tona, vem ao ato... passa ao Real, como
diria Lacan...
...é ético você dar conta de todas as suas possibilidades... que são nada
mais nada menos que todas... o sujeito tanto é mais recalcado quanto mais elemen-
tos do possível ele retira da sua pessoinha... para parecer um “bom” sujeito...
...no cristianismo, peca-se por pensamentos, palavras, atos e omissões...
pois eu digo que psicanaliticamente só se peca por atos... o que é o neurótico
obsessivo religioso?... aquele que arreligião psicanalítica é contra?... é aquele
que não pode pecar por pensamentos... ele não assume “o pensamento”... a gente
sabe que pode... não é pecado... é uma possibilidade... mas matar está proibido
em função de outra lei... a Lei da Diferença... estou, então, me coibindo e, não,
me recalcando...
...isto foi no que deu essa pedagogia de asneira que acontece com as
tais psicólogas de hoje em dia... da década de 50 para cá ficou essa barbaridade
na educação... essa “bonzice” pedagógica estragou todo o processo... não se
pode pensar no mal... “Imagina, não se diz isso para a criança!”... se diz sim...
estou só dizendo, alertando, não estou fazendo nada...
...é a moral da religião do amor que a pequena burguesia comprou
para poder matar as pessoas “numa ótima”... quando se lê um texto como Os
Cantos de Maldoror –não consta que o Sr. Isidore Ducasse tenha assassinado

312
Repetição

ninguém... ele só escreveu o livro... um ato angélico... por escrito... num ato de
escritura, ele fez, de um gozo que seria perverso se realizado em outro nível,
um gozo-de-Sentido absolutamente compatível com o não-pecado das pos-
sibilidades da crueldade...
...o analista trabalha assim... ele é extremamente cruel... mas na pos-
sibilidade do cru do movimento prazeroso de o Inconsciente comparecer... é
diferente de passar ao ato... não que a psicanálise seja contra passar ao ato... ela é
contra passar ao ato que desrespeite a Lei da diferença, que é fundamental...
...vontade de torturar os outros, eu tenho... todos aqui já tiveram... agora,
quem tortura é um fdp... porque não pode... quando, então, se fala “tortura nunca
mais” é porque ela vem de novo... isso é denegação... a tortura é cotidiana...
passar ao ato da tortura é desrespeito à Lei fundamental da Diferença... então,
não pode... e quando algum sujeito se depara com o chamado torturador, pensa
que ele próprio jamais faria aquilo... faria sim... faria!... todo mundo faria, mas
só o perverso faz...
...portanto, a psicanálise não é a religião do amor... é Arreligião, da
Lei...

* * *

 Pergunta –Pelo que você disse, o que há de estrutura comum entre Pulsão e
Repetição é a instrumentalidade da Libido diante de uma efetivação no gozo-
do-Outro.
...muito bem dito...
 P – O grau de diferença é no como se daria essa instrumentalidade. Na
Repetição, você deixou claro: ela se dá por impossibilidade. Se a Pulsão faz
a Libido ancorar no regime do Haver, pelo menos em relação ao sujeito a que
isso é “prometido” ela se dá como possibilidade parcial, metaforonímica. Se
é cumprida ou não, é outra história. Então, a SUBLIMAÇÃO tem a mesma
estrutura das duas. A Sublimação faz a mesma coisa, só que realiza como
impotência. No sentido de que interrompe a promessa de Pulsão. Ela não

313
O Sexo dos Anjos

interrompe e pára. Ela pára da cogitação fálica, faz um desvio e pega um


outro gozo.
...ela angeliza no que, por exemplo, passa ao escrito...
 P – Por que o gozo-do-Outro teria papel preponderante nessa efetivação?
...porque é a expressão mais evidente do verdadeiro desejo do Haver...
onde o desejo do Haver se mostra claro?... na região do Feminino... que pre-
tenderia fazer o Outro gozar por inteiro... reduzir-se a Nada... aliás, a menos do
que Nada, porque o Nada já é uma parte do Outro... reduzir-se a coisalguma, à
Acoisa, à não-coisa... não que no gozo-fálico ou no gozo-do-Sentido não esteja
expresso, de certo modo, esse desejo do Não-Haver... mas no gozo-do-Outro
ele se exprime por um outro tipo de via... digamos, a Sublimação do Outro, de
Deus, é a “produção” do Universo... para Ele, é sublimação... é angélico... faça-
mos uma conjetura cosmológica... entre o e o à há esse universo todo... esse
universo é um poema que Ele faz, por escrito, sublimando o fato (traumático)
de não poder gozar em Ã...
...a rigor, é de gozo-fálico que a gente faz Sublimação?... não, a gente
sublima é o gozo-do-Outro, que não se dá... a moral pequeno-burguesa adscreveu
a Sublimação ao gozo-fálico... não tem a ver uma coisa com a outra...
 P – Transformou a Sublimação num tipo de comparecimento de falta de tesão
por objeto em neurose obsessiva.
...o que sublimamos é a relação traumática... o impossível de gozar
como se queria... e mesmo gozando falicamente ainda há o que sublimar... o
gozo-fálico é uma porcaria que não resolve o gozo-do-Outro... tomemos um
taradinho bem célebre... por que, apesar de todas as masturbações marcadas no
seu cotidiano, o Marquês de Sade ainda escreve tantos volumes?... ele podia
ficar satisfeito com o gozo-fálico... não fica... o gozo-fálico pode ser atenuante,
mas é insatisfatório para o falante...
 P – Você também está dizendo, então, que o verdadeiro desejo de Não-Haver
é o que Lacan chama de Saber?
...sim...
 P – Como fica, então, se isso é tão importante, tão inicial, o risco da paranóia?
Esse Feminino como possibilidade de Saber, tudo bem. Mas, enquanto

314
Repetição

obrigação, ele é paranóia. Como fica ele no Esquema ? Onde ficaria como
possibilidade, portanto, Saber possível de emanação feminina, e onde se torna
paranóia? No Esquema , onde essa coisa daria errado e viraria paranóia?
...o que vem antes, a OBRIGAÇÃO ou a foraclusão?... esta é a questão...
Lacan colocou o conceito de FORACLUSÃO... a descrição do que acontece
no psicótico, foracluído do Nome do Pai, é que ele não tem la grand’route...
ao invés de uma auto-estrada que faz um percurso direto, ele vai por todas as
ruazinhas periféricas e se perde por lá... então, em termos do Esquema , o que
falta ao psicótico?... falta-lhe referência DIVINA... por isso, ele é tão irritante
que parece um bicho... alguma coisa aconteceu e ele não faz referência a uma
paternidade, que é o grande Outro, ao circuito integrado...
...o que o psicótico não consegue entender que haja?... não o que ele
seja, pois isto eu também não entendo... é o gozo-fálico... para ele entender,
aceitá-lo, dizer: “É só isso, mas tudo bem!”, é preciso que faça uma referência
ao Esquema na sua plenitude... mas o psicótico não entende, não aceita que
o gozo-fálico (h)aja... daí, a aparência de aprisionamento do gozo-do-Outro...
mas é só aparência... uma vez que o gozo-do-Outro é obrigatório, ele só pode
sê-lo por alguma marcação... aí vai marcar uma configuração que Lacan chama
de egóica...
...quem está no gozo-fálico sem ser psicótico... o místico, por exemplo...
metaforiza, faz poemas, tudo, ele vai em frente... mas está visando lá adiante...
a obrigação do gozo-do-Outro não visa lá adiante... visa um término definitivo
numa parciaridade... não é nem visar um objeto parcial... é visar uma parciari-
dade para trás... um SER... é diferente do neurótico, que se acredita um ser...
o psicótico não tem como acreditar, ele se põe como um ser...
...mesmo o psicótico está sob os efeitos de TRANSFERÊNCIA... não há
falta e, sim, labilidade de transferência ali... se ele não pode ter uma referência
paterna, só pode fazer transferências pontuais, momentâneas... no que escolhe
aqui e agora alguém, é para ser esse referente parecido com a constituição, diz
Lacan, imaginária para botar no lugar da grande estrada que ele não tem... não
é colamento, e sim transferência lábil... mas aquilo não sustenta esse lugar...

315
O Sexo dos Anjos

...para o neurótico, estar na obrigação do gozo-do-Sentido é que o elo


do Real no nó borromeano fica mais ou menos dispensável... isso significa que
o neurótico quer se safar de sua situação difícil imitando um animal... com pro-
grama determinado... mas, nele, é imitação... é porque há retorno do recalcado
que ele não consegue... o Sintoma é, então, a favor da cura... é exigência de
não ser animal... ao mesmo tempo que é no que ele acredita para se esforçar
por ser animal... mas dói...
...já o psicótico gruda, no meio do caminho, numa dessas vielas e diz:
“O Pai é isto!” ... não é coisa como no caso do PERVERSO que traduza to-
talidade no seu fetiche... aquele objetinho é a pedra angular da totalidade para
ele... para o psicótico é: “Aqui e agora o Outro é isto!”... é a escora que ele
arranja para o Outro porque não tem referência divina de uma alteridade radi-
cal, de uma paternidade radical –“o pai de todos”... aquele que goza –mesmo
falicamente –melhor...
...daí encontrar-se freqüentemente no psicótico a fabulação a respeito
de sua paternidade... ele precisa inventar uma paternidade para ele... que é
puramente fabular... não é uma metáfora da paternidade... em vez de ter a pa-
ternidade em A ou fazer uma metáfora decadente, tem só a tentativa de construir
a outra, e não consegue... essa fábula, de qualquer modo, é uma aspiração a
construir a grande estrada...
...poderíamos dizer que não há –o que é parecido com o politeísmo
–possibilidade de ele pegar os apareceres da paternidade e criar um conceito
abstrato... então, enquanto Akhenaton (Amenófis IV) não inventou, como diz
Freud, não assumiu a abstração do pensamento egípcio a respeito da paterni-
dade, o povo, pelo menos –não os iniciados do império –vivia em regime de
referência psicótica... deificando, idolificando uma porção de coisinhas... parece
idolatria mas não é... idolatria é coisa de perverso... são referências politeístas
da paternidade, que Freud diz que inicia com o totemismo... a primeira religião
é o totemismo...
...chegar a essa abstração... aí tenho sérias dúvidas... como entender a tal
da foraclusão?... é uma perda ou é não ter conseguido a abstração do significante
paterno?... isto dá duas maneiras diferentes de se abordar clinicamente... quer

316
Repetição

me parecer que o psicótico não encontra, talvez, a tempo, ou não tenha encon-
trado ainda, condições de abstrair, fazer um grande teorema das paternidades
que encontrou... uma grande estrutura...
* * *

...em toda a história da chamada humanidade é preciso tempo para se


ir abstraindo...
...a própria criação da psicanálise –talqualmente a da física e de outros
saberes –seu começo é mais para o psicótico... trabalha-se um caquinho aqui,
junta-se outro ali... Freud vai trabalhando para, em 1920, chegar a criar a grande
abstração da Pulsão de Morte... do Mais-Além...
...ao mesmo tempo que é preciso trabalhar o cotidiano das quinquilharias
psicanalíticas, isso é altamente psicotizante... quando Lacan diz que é preciso ser
bastante psicótico para ser bom analista –não se trata aí de nenhuma doença,
pois psicótico não pode ser analista, não é o caso –entendo que é preciso cair
das abstrações e ficar nas quinquilharias, nas pequenas estradinhas, colando os
caquinhos, entendendo o fenômeno... mas com uma grande abstração por trás...
se não, se tem a escuta fracionada como a do psicótico, fica-se vendo grandes
teoremas e não se vai escutar o fenomenozinho que está acontecendo... é neste
sentido... e a história da psicanálise, a criação da teoria, é isso...
...na prática, então, tem-se que bancar o psicótico –mas com o grande
teorema abstrato por trás –porque se pensa nas quinquilharias... por outro lado,
a concepção da psicanálise será tanto mais bem concebida quanto mais abstraída
e unificada... o grande esforço de Einstein, por exemplo, depois de arrumar
aqueles teoremas todos, em tentar uma unificação, uma teoria unificada... é o
esforço necessário...
...eu me sinto muito bem quando junto os quatro conceitos num
só... quando tento fazer um grande Esquema único... quando tento constituir
MONOTEISTAMENTE a psicanálise...
...a prática, por exemplo, do bicéfalo Deleuze-Guattari é, muitas vezes,
de querer combater o fascismo, o nazismo com exatamente a ferramenta que

317
O Sexo dos Anjos

lhes é fundamental: o politeísmo naturalista... ficam brandindo contra a Pater-


nidade... contra a grande abstração... quando ela é que é libertadora... fazem
–como o perverso e o psicótico –a idéia de que essa grande abstração do Nome
do Pai seja tal Pai assim-assim, ou tal Filho... confundem o Representante da
paternidade com o Nome, a abstração, a metáfora paterna...
...este é um conceito de abstração de tudo... é tão matêmico que não
tem configuração... fico perplexo quando vejo essas pessoas lutando por uma
chamada liberdade, uma soltura que, na verdade, aprisiona...
...no Moisés e o Monoteísmo, vemos as críticas duras de Freud à
decadência do pensamento egípcio, depois de Akhenaton, no nível do povo,
ao retorno a configurações politeístas... a crítica veemente que ele faz à igreja
chamada católica apostólica romana... que é decadente em relação ao judaísmo...
depois do esforço do judaísmo com o assassinato do pai, de Moisés, com tudo
isso que encontramos no cotidiano... Moisés foi assassinado pelos judeus... o que
queriam era o politeísmo... depois de esse recalcado ter retornado, etc., aparece
a religião do filho... o que poderia ser bom, uma religião do filho em função do
pai... mas vem retomar todos os aparelhos politeístas... vai censurar, por exem-
plo, a existência de São Jorge... pode?... uma religião de massa... de baixaria...
em vez de referir-se às abstrações, fica-se rezando para São Fulano fazer tal
coisa por mim... por que não se pede para o vizinho?... é mais prático...
...não se pode ter um MONOTEÍSMO ATEÍSTA como é a psicanálise?...
que acredita em Deus porque tem certeza de que Ele há?... de que Ele é incons-
ciente?... se é inconsciente, não se adianta em ficar fazendo pedidos a Ele...
tenho que fazer pedido a mim para que seja feita a vontade d’Ele...
...o chamado Pai-Nosso do grande Jesus Cristinho... tenho dúvidas
de que ele terá dito aquilo tudo... acho que só disse a primeira parte... há uma
decadência violenta do primeiro período para o segundo... “Pai nosso que estais
no céu, santificado é o vosso nome”... o céu é isso tudo, é o Haver... “seja feita
a vossa vontade”... só ela é feita e está encerrado!... portanto, não adianta fazer
pedido... tenho que pedir a mim mesmo para me entregar a esta vontade... já
que a curra é mesmo inevitável, só resta aproveitar... “assim na Terra como nos

318
Repetição

céus”... entre nós assim como no Haver por inteiro... ponto final...
...a segunda parte é meio calhorda... “o pão nosso de cada dia nos dai
hoje”... começa-se a “cantar” o Cara... em absoluta contradição com a primeira
parte que, esta, é a Gelassenheit dos místicos... o Pai total, que é santificado...
a vontade d’Ele será feita... a minha é titica perto da d’Ele...

* * *

...a arreligião psicanalítica é de levar a um des-ser do sujeito... ele


desliza suas angústias diante dos acontecimentos... consegue dominá-las
(articulá-las bem) na medida em que está entregue... aceitou a Castração...
não vai fazer barganhas com o Haver... pode, sim, fazer atos sublimatórios e
criativos... “Vá para o laboratório, quebre a cara... pesquise e se apresente com
decência diante de Deus!”... com uma invenção na mão... fica mais parecido,
mais perto d’Ele que é o criador... e, não, ficar pedindo a Ele de graça... aliás,
de graça mesmo é a invenção... ...Freud não ficou sentado rezando para papai-
do-céu... ele inventou a psicanálise... e ainda disse: É um cocô de mosca, mas
já dei um passo mais para perto, ô cara!...
 P – Com relação à parte que você chamou de calhorda, cabe lembrar que
Oswald de Andrade considerava isso falação, lábia catequista, e glosou no
poema chamado Escapulário:
No Pão de Açúcar
De cada dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De cada dia
...é isso...

30/ABR

319
O Sexo dos Anjos

320
O ICS: An affair to remember

4
O ICS:
An Affair to Remember

Início do Seminário com a audição de An Affair


to Remember, com Vic Damone.

...o que vai acontecer hoje neste Seminário?... das duas uma: ou te-
remos um Seminário muito inspirado, ou um Seminário desenxabido... podem
apostar: hagan juego señores!...
...sabem por quê?... porque –because I’m in love... não vou dizer que
estou apaixonado porque to be in love não tem nada a ver com estar apaixo-
nado... I’m in love with someone... sabem com quem?... com Clare... yes: I’m
in love with Clare Isabella Paine...
...não com Clare pessoalmente, mas com a Clare escritora... com a
autora de um livro que ela acaba de aprontar para nós... um livro maravilhoso,
um romance, ein wunderbar Roman, como se diz na língua de Freud... e que,
ainda por cima, tem o poder de me trazer de volta a minha adolescência... ( y
otras cositas más)...
...é claro que a adolescência não retorna... isto é, de fato: nunca mais,
nevermore, como lhe disse o corvo de Allan Poe... o que nos retorna é a sua
significação...
...e qual é a significação da minha adolescência?... é isto que estou
fazendo agora aqui...

321
O Sexo dos Anjos

...então, vejamos como é que ela se passa, a minha adolescência... se


é que ela passa, ela se passa por aqui, agora que é a Hora de nossa Amor-te,
amém... agora que é a Hora do seu passe, isto é, para adiante, de modo a virar
outra vez elefante...
...elefante era Jacques Lacan, talqualmente ele se representa na capa do
Seminário I, quando distribuiu retratinhos para seu público... troquem a capa
do Seminário I (Os Escritos Técnicos de Freud) –Freud que também era um
elefante –pela do Seminário 2 (0 Ego de Lacan), e verão como dá certo...
...um elefante chateia muita muita gente... dois elefante chateia, chateia
muito mais... três elefante, etc., etc...
...vocês conhecem a estória dos cegos e do elefante?... estava no
Reading Book de aprender inglês no meu segundo ano ginasial... a estória de
alguns cegos que circundavam um elefante tentando entender com o quê ele
se parecia... certamente porque cada um pegava uma parte do corpo do bicho...
um segurava o rabo e dizia: “parece com uma cobra”... outro segurava a perna
e dizia: “parece com uma pilastra”... e assim por diante...
...Lacan era como esse elefante... o difícil, para cegos, é conceber o
bicho por inteiro: tão familiar em suas partes e tão estranho no somatório...
Unheimliche, que não deixa de avariar um bocado o Apelido do Pai dos ditos
lacanianos...

* * *

...mas o que queremos tratar hoje é do INCONSCIENTE... por que


o ICS é an affair to remember?... porque, como diz o 2º Elefante: o ICS é da
ordem do não realizado... donde o seu Conceito –isto é, o que das Unbewusste
tem a ver com o Unbegriff –ter que entrar na série das funções infinitesimais
de Leibniz, operando-se tão somente por um salto, pulo... isto é, um salto
para o limite do Conceito, o qual só, então, isto é , só-depois, começa a fazer
sentido para o que ainda não se realizara... daí não se poder curtir o ICS, esse
troço límbico, senão como an affair to remember... a love affair to remember...
through Eternity...

322
O ICS: An affair to remember

...como vemos, tratar o ICS é assunto longo demais para hoje... posso
apenas introduzir a minha questão...
...Lacan diz, no Seminário II, que a verdadeira fórmula do ateísmo...
n’est pas que Dieu est mort:

...mas é... c’est que Dieu est Inconscient:

...se nos lembrarmos de das UN-Bewusste... saiam desta se puderem...


...o mito da matança do Pai, no Botem um Tatu do velho Freud, só
vem demonstrar que a perene matança do Pai, na repetição do ritual por toda
parte, não é senão a nossa tentativa de reconhecimento de tal impossibilidade
porque o Pai é Imortal...
...agora há pouco, lembrando um Seminário velho, eu comentava que
Freud fundou a idéia de Pai Morto sobre a matança do animal totêmico... e na
medida em que um Pai de uma tribo possa ser representado por um animal, ele
é da ordem da Neurose e não da ordem do Nome do Pai... a tribo configurou
o Pai como aprisionado no tipo, na limitação, de um animal que nada tem a
ver com a estrutura resvalante e progressiva do falante... portanto, matar o Pai
totêmico só pode ser para encontrar o Nome do Pai, que é da ordem do falante,
progressivo, e não configurado no tamanho neurótico de um animal... portanto,
o tal do Pai Morto é que é o Pai Vivo, porque o pai só vivo é um imbecil...
então, não se trata de matar o Grande Pai... trata-se de matar o pai da tribo para
encontrar a Paternidade por trás dele, o Outro Pai, o Nome...
...ou seja: o Pai Morto não é senão o Pai Inconsciente, muito vivo,
isto é, a Imortalidade do Pai... daí se pensar o Pai como Morto, pois fica nos
parecendo que só se pode matar o que está vivo e o que não se pode matar é
o morto... então, uma maneira metafórica de conceber a imortalidade do Pai é

323
O Sexo dos Anjos

considerá-lo já morto, pois não se pode matá-lo... mas, na verdade, é porque ele
é imortal... o morto é imortal, pelo menos no sentido de se poder matá-lo...
...alguns lacanianos ficam muito nervosos com isto... ou melhor, como
dizem lá no interior de onde eu vim, ficam num “estado de nervos de dar
pena”... de dar pena a suas escrevinhações, que são de fazer inveja a qualquer
exorcista medieval...
...para não ficarem em pânico diante da multivocidade, da elefantíase,
produzida pela equivocidade aprontada por Lacan, eles escrevem, por exemplo,
como fez François Regnault em seu livro Dieu est Inconscient, que: “Lacan
declara que Deus... –que Deus é inconsciente. Mas não que: Deus é o Incon-
sciente, passo fatal de Freud a Jung”... quero ver esse autor nos dar toda a conta
de tal equivocação...
...o passo –aliás nada fatal mas apenasmente em falso –de Freud a
Jung não é a suposição, nem a constatação de que Deus é o ICS –o que aliás
Jung não soube sustentar –mas sim a confusão jungiana do ICS com os sen-
tidos aprontados, com os sentidos dados pela produção inconsciente, e que
por aí sobram e soçobram como “restos metonímicos” nos terrenos quase que
baldios aonde o Outro acumula seus escombros” os tais “Arquétipos”, que são
conformes com o Imaginário de Lacan... é na ordem do conteúdo inconsciente
arquetípico que está o passo em falso do Jung... psicologizante, portanto...
...será difícil dizer que Deus é o ICS?... sim, é muito difícil... porém,
é bem menos difícil dizer que o ICS é Deus... pois que “o ICS é o discurso do
Outro”, como mostrou Lacan: o ICS é Deus falando...
...é verdade que Deus-falando não é Deus por inteiro... pois que deve-
mos pensar no Silêncio de Deus... silêncio que Não-Há, aliás... mas nem por
isso deixa de ser a Causa do desejo-sonoroso, de Deus...
...essa estória do silêncio do analista, por exemplo, é mera imitação
do silêncio de Deus que não-há e que é Causa de seu desejo... imitação de
Não-Haver, que Lacan quer configurar como o “morto”... o morto é o nome
do fingimento do analista... fingimento que ele faz de silêncio...
...assim, podemos dizer que o ICS não deixa de ser Adeus... ou seja, o
ICS é o Adeus em sua não-relação com o Ã... por isso mesmo é que o Haver,

324
O ICS: An affair to remember

o , o Há-Deus, é o Adeus... pois que ele vive falando (como ICS) de sua
despedida do Não-Haver (Ã)...
...assim, Deus é o ICS, do ponto de vista de sua relação (impossível)
com o Silêncio do Não-Haver...
...”Deus vel Natura”, escrevi em algum lugar... uma fórmula um pouco
troncha de traduzir, para o Esquema , o “Deus sive Natura” do Spinoza... para
ele, é “Deus, ou seja, a Natureza”... é coincidente, é um Deus imanente... eu
digo vel na medida em que há uma interseção entre o e o Ã... Deus está
nessa interseção... esta minha fórmula não é muito adequada, pois não se trata
bem disso... é uma maneira de dizer: Deus vel Não-Deu(s)...

* * *

...houve a querela de Lacan com Leclaire no hoje já antigo e famoso


Congresso de Bonneval, arrolado pelo também desaparecido Henri Ey... lá a
diferença se apresentava assim: (1) para Leclaire. O ICS é condição da lin-
guagem (afirmação que, esta sim, aproximaria a bobagem de Jung)... (2) para
Lacan (o mestre do outro, de Leclaire): A linguagem é condição do ICS...
...traduzindo:... a linguagem (que aliás Lacan diz que não há...) é con-
dição do Discurso do Outro... o que chamo de sua falação, pois parece que não
há o matema do discurso do Outro... a não ser que se escreva assim:
o que teria que ser demonstrado e depois garantido... esta fórmula não é senão
o Discurso do Analista remetido ao Esquema ... seria o matema da falação
de Deus... no Discurso do Analista temos o objeto a como agente sustentado
pelo saber inconsciente do analisando no lugar da verdade, de modo a que se
faça trabalhar o sujeito –u seja, a escansão para Lacan –para que ele venha
a produzir o Significante Mestre do Analisando... não esquecer que quando
escreveu as fórmulas dos Discursos –que, para ele, eram quatro –, Lacan nos
lembra que isso funciona em termos da discursação dos sujeitos falantes que nós
conhecemos pelaí... o que sustenta, para Lacan, a formulação é que no lugar do
a o que dá garantia é o das Ding... no lugar do S2, ele escreve o A, o Outrão...

325
O Sexo dos Anjos

no lugar de $, é a escansão, o sujeito mesmo... e no lugar do S1, o Nome do Pai


como garantia do falo... donde quero supor que a falação do Outro, que é capaz
de se renovar por giros e mais giros em outros discursos, seria primeiramente
que o à no lugar do agente como objeto desejado, embora não-havendo, sus-
tentado pelo Adeus no lugar da Verdade –as produções proliferantes do Adeus,
do –, é que faz funcionar o Sujeitão, Divino, de modo a produzir o Nome
do Pai como um grande significante, que é o S1 dele... o Nome do Pai e o S1 de
Deus, apelido do falo... isto é uma suposição que fica para o futuro...
...mas como pode A Linguagem ser condição do ICS, para Lacan?...
justamente por sua falta... pois, para Lacan, A Linguagem seria A LÍNGUA (no
universal), o que não há... pois que coloca as línguas no feminino... lalangue
cada uma delas –, sem condição de fazer um todo (~x) enquanto A MULHER,
que justamente se escreve como à (Não-Haver A Morte)...
...daí que A Linguagem, para Lacan, podemos dizer que ela não só é
condição das formações do ICS como é Causa das movimentações do ICS (isto
é, sua metonímia)... bem como se sutura, de vez em quando em suas coalescên-
cias metafóricas... toda metáfora é repetição do modo de produção do Nome
do Pai... por isso psicótico não faz metáfora...
...eu também não posso dar caução à Linguagem enquanto Meta, pois
que o Não-Haver não-há... mas não defino o Não-Haver como A linguagem,
nem a linguagem como Metalinguagem... mas digo que A Linguagem é o que
outrora chamei de A Música, isto é, o meu Revirão... mas não ele sozinho...
porém, o Revirão nas suas transações com a diferença em suas diferenciadas
aparições... ou seja: Deus vel Natura...
...por isso Lacan diz que o ICS (do falante) é estruturado como uma
linguagem... e eu ouso dizer que o ICS é estruturado como A Linguagem, isto
é, a divina... pois A Linguagem é a operação que o Haver pode fazer, na sua
impossibilidade de se operar em Não-Haver... A Linguagem é o expediente, isto
é, manifestação, epifania de Deus, dada sua impossibilidade de morrer...
...assim, Deus é inconsciente... assim como o ICS é Deus na sua
transação impossível com sua própria morte no Não-Haver... mas, também eu

326
O ICS: An affair to remember

não posso dizer que Deus é o ICS e ponto!... porque, Deus é e não-é o ICS...
pois se, de fato, Deus é igual ao ICS, de direito, no entanto, Deus é maior do
que o ICS, isto é, por seu desejo de Não-Haver... pois que o desejo de Deus
visa, Mais Além da Linguagem, o Silêncio do Não-Haver... porém como o
Não-Haver não-há, o próprio Deus, em sua castração (originária), tem que se
limitar ao seu maior expediente: o Revirão da Linguagem...

* * *

...ora, são as formações do ICS, operadas mediante o processo meta-


foronímico, que proliferam o ICS como não-realizado e sujeito ao só-depois de
suas próprias seriações... an affair to remember, como apontei...
...to remember o quê?... para lembrar o recalcado – a inda que seja
tão-somente pelo seu irreprimível retorno... e o que é o Recalcado – neste
caso, digno de ser chamado de Primordial?... será que o recalque originário é
o recalque do Não-Haver (Ã)?... não!... de modo algum!... o Não-Haver (Ã) é
o objeto que não-há, isto é, o das Ding desejado pelo Haver... o que é primor-
dialmente recalcado é o que provisoriamente chamo de significante do Real
(enquanto Furo): pois o Real é o lugar onde se escreve que o à é impossível
de se inscrever na estrutura do Haver... o Real é Recalcado na estrutura do
Haver... mas funciona assim mesmo... ao passo que o à é foracluído de fato,
mas não de direito, pois se escora, de direito, no Real... o Real é que funda o
direito do Não-Haver... como o Haver é que funda o surgimento do Real... é
circular... paciência!...
...assim, o Não-Haver permanece eternamente desejado mediante o
recalque de sua impossibilidade... mas o recalcado retorna sempre ao mesmo
lugar (o Furo) como o Real da impossibilidade de o Haver incorporar a falta
enquanto objeto... faute de mieux, o Haver pode incorporar a falta como falta-
de-objeto, isto é, como Ponto Bífido Real, operador (catóptrico, em espelho)
do Revirão... a topologia do Real é a topologia do Sujeito, que é a topologia
do espelho...

327
O Sexo dos Anjos

...assim, o Real é a inscrição de que é impossível não-desejar... daí


Lacan dizer, no Seminário II, que não querer desejar e desejar é a mesma coisa,
isto é, para um falante... pois não querer desejar é desejar Não-Haver, o que é
ainda desejar... ao passo que o Haver está (por castração efetiva) condenado a
desejar, uma vez que desejando Não-Haver, o impossível, tem que realmente
revirar-se para o seu próprio desejo de Não-Haver... não tem saída...
...com o que está fundado o Real do ICS na interseção do Haver com
sua Falta:

...é o que apelidei grosseiramente: Deus vel Natura... que seria melhor
dizer: Deus é Não-Haver vel Natura... o Pai que não é puro Nome só serve para
atrapalhar... depois que ajuda, é claro!...
...o ICS do falante (de que Lacan trata) não é senão o outro ICS, o
divino... só que, a cada momento sincrônico fica evidenciada sua impotência
em relação a onipotência do Outro, isto é, em termos de Saber (S2)...
...o ICS é histórico... se história quiser dizer produção de sentido no
só-depois da seriação... fazendo a diferença que Heidegger coloca entre Ges-
chichte e Historie... mas a onipotência do Outro se refere à sua eternidade, a
cada momento, dada a sua infinitamente grande repetição... ou seja, a cada mo-
mento, e no só-depois de sua seriação, o Outro se lembra da “Nova” produção...
é muito velha, mas Ele se esqueceu porque tem que recalcar a impossibilidade
de Não-Haver... mas se lembra concomitantemente com o surgimento... no
só-depois, Ele sabe e lembra... porque Ele tem analista... o silêncio, do outro
lado... Ele vive na “análise infinita” (a de que Freud falou)... Ele não pára de
se analisar, coitado!... Ele pode ficar curado de tudo, menos do Não-Haver...
desejo não tem cura... nem para Papai-do-Céu... então, Ele acha de novo sua

328
O ICS: An affair to remember

experiência anterior... justamente porque não a procura –pois que procura pelo
que não-há...
...ao passo que a impotência do Falanjo se refere à sua temporaneidade
(ou contemporaneidade), encontrando-se ele, assim, de algum modo, parciário
em comparação com o Outro... é como se cada falante, ou cada momento de
história dos falantes, fosse um fragmento de um grande Holograma do Outro,
reproduzindo-o completamente, mas com pouquíssima nitidez... só o somatório
dos fragmentos (no espaço e no tempo) podendo igualar (no limite da infiniti-
zação) o Outro Holograma... é hologramático, mas o fragmento do holograma
tem muito pouca nitidez, embora apresente a mesmíssima imagem...
...donde o work in progress, de Joyce... donde o Saber Absoluto, de
Hegel... donde O Livro, de Mallarmé, o qual depende de seu Lance de Dados,
seu cu dedado, como dedo na ferida do Haver... o cu do mundo... o buraco da
virgem... isso impressionava muito os teólogos... como é que Deus e o Haver
por inteiro cabem dentro do buraco da virgem!?... passa por ali... mantém a
virgindade... é o himen hiper-complacente... e se reverte...
...se tomarmos, para falar dessa diferença de potencial, uma velha
lamentação latina: ars longa, vita brevis (a arte é muito longa e a vida muito
pequena para realizá-la), poderíamos dizer: para Deus, para o Outro: ars longa,
vita longa... a duração da vida d’Ele = duração da sua arte... isto é, eternidade...
porque está na eternidade, a arte é do tamanho da vida a cada momento... só-
depois, é absolutamente coincidente com os acontecimentos do Haver... Ele
se esquece, mas a cada acontecimento que produz inconscientemente, Ele se
lembra... Ele é interpretado por seu próprio movimento... Ele faz, como qualquer
analisando, análise o tempo todo... e acertando o golpe, sempre, porque seu
analista é cego, surdo e mudo...
...para o Homem: ars longa, vita brevis... a duração de vida (do
boneco, do macacão) < duração de arte... isto é, essa relação de durações é
tradicionalidade... é preciso ir passando adiante... é preciso transmissão para
tentar igualar o tamanho da arte e o tamanho da vida... é preciso muito falante
fazendo coisas...

329
O Sexo dos Anjos

...para o Gnomo (tudo que é do campo do Sentido, mas não é falante):


ars brevis, vita brevis... a duração da vida = duração da arte... isto é, brevidade...
a arte deles é do tamanho da vida, mas é pequenininha... isto tanto para um
átomo como para um cavalo...
...como eu disse, dá para ficar falando o resto da vida sobre o
INCONSCIENTE... só queria introduzir essas cositas e puxar alguma
discussão... o resto está todo no Seminário II de Lacan... é só estudar... a única
coisa que estou fazendo é a pequena diferença de arrumação esquemática e
tentativa –não sei se fracassada, veremos daqui a 30 anos –de construção de
um escopo mais abrangente...

* * *

...isso é o que se poderia chamar – se quiserem – d e uma REVO-


LUÇÃO... a psicanálise é a única formação discursiva (até hoje) capaz de
promover a verdadeira Revolução... Lacan sugere isto...
...a verdadeira Revolução não é meramente subversiva... tampouco, ela é
reacionária... a verdadeira Revolução –pasmem os senhores –é Conservadora...
na medida em que trata de ampliar o escopo do Campo do Sentido –o que é
como que ampliar a superfície de exposição de uma inscrição holográfica –de
modo a conservar cada um e todos os escopos anteriores à ampliação realizada...
agora, porém, revisados por um escopo mais abrangente, um holograma com
maior nitidez...
...esta, aliás, é a verdadeira ilustração: um aumento da Razão... e não
a hegemonia de uma razão binária que não passa de regionalização...

* * *

...a vertente da impossibilidade fica recalcada no movimento da pos-


sibilidade... e todo recalque funciona, é claro... e, paradoxalmente, vai se
desrecalcando à medida que chega perto do Feminino (A)... vai começando

330
O ICS: An affair to remember

a ter chances de desrecalcamento... por isso o Feminino corre mais ou menos


em dúvidas para o Não-Haver... mas vai cair lá (F)... aí é o Retorno mesmo do
Recalcado... impossível, pois essa vertente aparece –logo Tudo é possível... o
Recalque Originário é o esquecimento, que tem o Haver, do impossível de chegar
a Não-Haver... um esquecimento fajuto... um esquecimento de Recalque...
...o Real (R) é, no Haver, a inscrição da impossibilidade de ele passar
a Não-Haver (Ã)... o Não-Haver não diz nada... é silêncio puro... escrever Ã
é maneira de nomeá-lo de dentro da fala, do Haver... já é dependente de certo
Recalque, pois se o à comparecesse para mim aqui e agora, eu não dizia nada,
calava a boca... só daqui a pouco eu diria... a tal conjetura do Silêncio do analista
como produção da análise não é senão essa batida que também é de produzir
silêncio no analisando... o qual, logo em seguida, foge dessa transa angustiante
e começa a procurar transar o seu gozo-fálico... ele se joga para o será-tido por
causa da porrada do terá-sido...
...esse ponto do Real é, na verdade, o sustentador da ordem Incon-
sciente... por isso Lacan diz que a Fantasia sustenta o desejo e protege o Real...
a compleição do Inconsciente é pura fantasia... é a grande fantasia de Deus...
é por onde Ele goza seus gozos possíveis... no Princípio do Prazer... mas não
goza do seu desejado...
...é produção do Nome do Pai... o Haver fica repetindo o nome dele... je
suis celui qui suis, je suis celui qui suis... é o que Lacan diz: eu sou aquele que
sigo... não é que segue... com sigo mesmo... no campo do Haver há coincidên-
cia entre Nome do Pai, fantasia e Inconsciente... é a mesma coisa... o Nome
do Pai é o nome do Nome dele... é o significante com que nomeamos, cá no
nosso campo, o Nome que ele tem lá no ... o qual não fala línguas para nós...
Ele fala a língua d’Ele que é A Linguagem... Lacan, em algum lugar, aponta
para um texto do Bahagavad-Gita em que o Outro diz “Dah-Dah-Dah!”... é a
Voz, o Nome d’Ele...
...o Sujeito, o Sujeitão, se coloca no furo, no Real... é como Lacan
defende a tese do Wo Es war soll Ich werden, no Seminário II... ele pergunta:
ir, onde?... ao Real...

331
O Sexo dos Anjos

* * *

...sobre Inconsciente e História, posso pegar a distinção que Heidegger


costuma fazer entre Historie e Geschichte, que, em alemão, significam história...
Historie é o que se chama de historiografia... isso que os historiadores escrevem,
que certamente é o mito deles... cada um inventa o seu a partir de certos dados
significantes... Geschichte é o historial... é estar-se na seqüência de um processo
e inaugurar alguma coisa... no sentido psicanalítico é: vers un signifiant nou-
veau... ora, se o Haver é eterno, ele já deu todas as voltas que dará... ele seria
um saber absoluto, onipotência e onisciência, aqui e agora, se fosse consciente
como era no passado, nas anedotas que lá o serviam... a psicanálise, inaugurando
um Deus inconsciente, mostra que tudo isso no Haver depende de um certo
recalcamento para ele viajar... portanto, embora tudo já tenha “acontecerá” (esta
frase não existe em brasileiro, uma língua sempre fica em falta com essas coisas),
ele sabe tudo... só-depois... então, ele é histórico na rememoração da Repetição
(junto com ela, a cada passo)... mas não é histórico no sentido da criação do
absolutamente novo para ele... só que, a cada vez que aparece o velho, é tudo
tão novo que ele se espanta... ele se diverte e até goza com isso...
...para um falante de escopo menor, a nitidez não é a mesma... por isso
Platão, num Diálogo em que coloca Sócrates fazendo um escravo relembrar o
que já sabe, quer demonstrar que, no que se ensina a geometria, no só-depois
da entrada, o escravo já estava sabendo... mas é passo a passo... porque quando
ele acaba de conhecer o teorema novo, ele fica coincidente consigo mesmo
em relação ao teorema, mas não se lembra de já tê-lo sabido... ora, Platão, que
achava que se podia ler diretamente o discurso divino, também pensava que
já se sabia, bastava rememorar... não é isso... é que, hologramaticamente, o
falante devia saber, mas a nitidez não é boa... daí a impotência da histéria, da
história, da ciência... porque fazemos fotos com péssima nitidez... o que quer
que se tenha dito no campo da ciência é metáfora adequada, porém péssima...
quando, por exemplo, se faz uma teoria mais refinada, acaba-se concluindo
que o que precisava de muitas palavras para se explicar era apenas um de-

332
O ICS: An affair to remember

terminado conceito...
...por isso, Hegel fica imaginando o somatório das subsomas de todas as
discursividades para pensar o encaminhamento para o Saber Absoluto por um
salto conceitual... fica difícil até dizer-se que é impossível porque só há definição
como impotência... a histérica tem razão... daí a paixão de Freud pela histérica...
Lacan fica ligeiramente deslocado porque sua paixão é pela psicótica... e nós
estamos aqui no retorno de Freud, apaixonados de novo pela histérica...
...Lacan disse que a psicanálise está aí para reintroduzir na ciência o
Nome do Pai... a historicização do Pai... as conseqüências disso se o fracasso
não for extremamente grandiloqüente serão uma grande ampliação do escopo
científico, regido pela psicanálise... a ciência já foi serva da religião, da filosofia,
de uma de suas próprias partes: a física... por que não ser serva da psicanálise?...
por uns tempos, pelo menos... a gente também tem o direito...

* * *

...a SUBLIMAÇÃO de Deus é compatível com seu gozo... fálico, até...


no falante, esse gozo tem que sofrer um deslocamento... por isso, eu junto com
Freud insisto na Sublimação... não é nenhum moralismo... é superação, AS-
CESE... Lacan chega a dizer que no pensamento de Descartes, por exemplo, a
própria construção do Sujeito é uma Ascese... portanto, a construção da certeza
depende de uma Ascese perene... ora, falar em Ascese perene do Sujeito – como
Lacan não deixa de falar – é incompatível com dizer que o progresso não existe
em nível do falante... o progresso não existe em nível do só-depois divino,
porque é Deus transformando-se em si mesmo... mas, em nível do falante, há
Ascese, portanto, há progresso...
...Philippe Sollers tem absoluta razão... estamos no paraíso... o que não
se consegue é sair dele... Deus diz: “Vai embora!” e a gente anda e anda e não
acaba... é circular, chega-se sempre ao mesmo lugar... não há cura disso... o
pessoal lê na Bíblia que o Homem foi expulso do paraíso... foi, mas não con-
seguiu sair... tem a cobra, a maçã, aquilo tudo... não acaba... parece aquele filme

333
O Sexo dos Anjos

em que o cara se deita numa máquina e fica repetindo a mesma seqüência...


o desgraçado, segundo a Bíblia, morava sobre a Terra... o que ele não sabia é
que ela é redonda... ele dá a volta e cai no mesmo lugar...

28/MAI

334
Transferência

5
Transferência

Início com audição de Kátia Flávia, com


Fausto Fawcett.

Se mentes me semeia
Teu desejo de outra messe.
Esse amor declarado
é só clamor de arado:
Toda terra o esquece.
Sebastião do Rio ele Janeiro, p. 28...

...Kátia Flávia é a Lady Godiva de Irajá... Lady Godiva, vocês devem se


lembrar, é personagem do conto de um cronista do século XIII... é possível até
que estivesse contando algo que tenha acontecido... Roger of Wendower era seu
nome... a história é que o marido de Lady Godiva, um certo conde de Chester
–o “conde do frango” lá deles –cobrava impostos altíssimos da população a
ele submetida... sua esposa lhe implorava para abaixá-los: “Coitado do povo!
Ele não agüenta mais!” –igualzinho a nós... o conde, então, resolveu dar uma
solução ao problema... ele lhe disse que abaixaria os impostos se ela saísse nua
pela cidade... ela, então, fez o “sacrifício” de se apresentar nuinha em pêlo ao
tal povo que ela protegia, a população de Coventry... ela teve o expediente de

335
O Sexo dos Anjos

se acobertar um pouco com os longos cabelos que possuía: saiu montada sobre
um cavalo branco a louraça-belzebu, a louraça-satanás... não se sabe se, depois,
ele abaixou os impostos –a história não conta... não interessa...
...isso talvez seja exatamente da ordem da relação transferencial e
da interpretação... das demandas do povo, representadas pelas demandas da
Godiva, o conde fez uma interpretação para o que devia apontar: o desejo...
“O que quer esse povo? Você fica aí falando pedintemente das demandas desse
povo! Eles querem é saber do meu desejo. Vai lá e mostra para eles verem!” –é
uma maneira de interpretar... outra, é a própria ambigüidade da Godiva entre
o povo e o marido: “Vai lá e mostra o objeto para eles! Vamos mostrar o que
é pulsional neles! Eles estão choramingando, pedindo, vamos mostrar o seu
desejo para eles!”... de qualquer modo, é uma interpretação brilhante...
...a Godiva de Irajá já é um pouco diferente... ela mostra dentro da
equivocação... calcinha! calcinha! calcinha de morango! calcinha anti-aérea!
calcinha comestível! calcinha bélica!... é a chamada Boceta de Pandora, na
mitologia... que está por trás da calcinha... é muito inteligente essa música: o
objeto se apresenta como requerível e agressor... no mesmo nível da resposta
do conde a Lady Godiva e do ato que ele a mandou fazer: apresentar o objeto...
é um terror... primeiro, ela tinha que ter a coragem de fazer aquela coisa ob-
scena... segundo, porque o povo, justo porque ia ter seu desejo desnudado, ia
ficar com ódio... imediatamente, ia baixar o moralismo em cima... estamos no
século XI, segundo o conto...
...e a transferência é essa anedota complicada... de saber se tiramos ou
botamos a calcinha da Lady Godiva, se apresentamos ou não a verdade que
está movimentando o que está por detrás da demanda...
...a interpretação seria exatamente essa: mandar a Lady Godiva passear
nua... toda nua... toda nua...

* * *

...no Seminário II, edição brasileira, p. 167, Lacan diz que: “A interpre-
tação concerne a esse fator de uma estrutura temporal especial que tentei definir

336
Transferência

pela metonímia. A interpretação, em seu termo, aponta o desejo, ao qual, em


outro sentido, ela é idêntica. O desejo é, em suma, a própria interpretação”...
freqüentemente nos esquecemos disto... qualquer maneira que se faça apontar
o desejo, que se desnude por trás das demandas, de todas as coisas solicitadas
e de todo blá-blá-blá psicanalítico, e se aponte simplesmente o desejo, isso é a
interpretação... a interpretação é aquele desejo apontado... nada mais...
...em certo momento, quando está falando do analista na posição de
Ideal-de-Eu, e colocando o distanciamento disso para com o objeto, Lacan se
refere à questão da hipnose que antecedeu a psicanálise, e que esta só pôde se
firmar por reconhecimento desse fenômeno e seu abandono, ele diz, p. 258:
“Definir a hipnose pela confusão, num certo ponto, do significante ideal em
que o sujeito se refere, com o a, é a definição estrutural mais segura que já foi
avançada. Ora, quem não sabe que foi ao se distinguir da hipnose que a análise
se instituiu? Pois a mola fundamental da operação analítica é a manutenção da
distância entre o I [Ideal] e o a. Para lhes dar fórmula-referência, direi –se a
transferência é o que, da pulsão, desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo
que a traz ali de volta”... traz a demanda de volta à sua relação com o objeto
ocultado... na transferência, o sujeito procura fazer de conta que a demanda é
demanda... o interesse do desejo do analista é mostrar que não tem demanda
nenhuma: “Você quer é a Lady Godiva nua em pêlo!”...
...”E, por esta via” continua Lacan – “ele isola o a, o põe à maior
distância possível do I que ele, o analista, é chamado pelo sujeito a encarnar.
É dessa idealização que o analista tem que tombar para ser o suporte do a
separador, na medida em que seu desejo lhe permite, numa hipótese às avessas,
encarnar, ele, o hipnotizado”... e o que vai na demanda no percurso analítico,
na demanda feita na transferência, aquilo que Freud queria chamar de Neurose
de Transferência, é perfeitamente compatível com o que se chama de AMOR...
pelo menos em seu grau menor ocorrido...
...no Seminário 20, edição brasileira, p. 68 e seguintes, Lacan trata
da relação do significante com o amor... “Quero terminar mostrando no que o
signo se diferencia do significante. O significante, eu disse, se caracteriza por

337
O Sexo dos Anjos

representar um sujeito para outro significante. Do que é que se trata no signo?


Desde sempre, a teoria cósmica do conhecimento, a concepção do mundo,
vem brandir o exemplo famoso da fumaça, que não há sem fogo. E por que
não colocaria eu aquilo que me parece? A fumaça bem pode ser também o
signo do fumante. E mesmo ela o é sempre, por essência. Não há fumaça senão
como signo do fumante. Todos sabem que, se vocês vêem uma fumaça no
momento em que abordam uma ilha deserta, vocês dizem logo para si mesmos
que há todas as chances de que lá haja alguém que sabe fazer fogo. Até nova
ordem, será um homem”... um falante... “O signo não é, portanto, signo de
alguma coisa, mas de um efeito que é aquilo que se supõe, enquanto tal, de
um funcionamento do significante. Este efeito é o que Freud nos ensina, e
que é o ponto de partida do discurso analítico, isto é, o sujeito”... o sujeito
está comparecendo aí como signo...
...”O sujeito não é outra coisa –quer ele tenha ou não consciência de
que significante ele é efeito –senão o que desliza numa cadeia de significantes.
Este efeito, o sujeito, é o efeito intermediário entre o que caracteriza um sig-
nificante e outro significante, isto é, ser cada um, ser cada qual, um elemento.
Não conhecemos outro suporte pelo qual se introduza no mundo o Um, se não
for o significante enquanto tal, quer dizer, enquanto aquilo que aprendemos
a separar de seus efeitos de significado. No amor, o que se visa, é o sujeito, o
sujeito como tal, enquanto suposto a uma frase articulada, a algo que se ordena
ou pode se ordenar por uma vida inteira”... retroagindo, no amor o que se visa
é o signo...
...“Um sujeito, como tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo.
Mas, por outro lado, seu signo é suscetível de provocar o desejo. Aí está a
mola do amor”... vejam como isso fica embananado... ...quando Lacan comenta
longamente, pela primeira vez, o que seja a TRANSFERÊNCIA é no famoso
Seminário chamado justamente A Transferência, de 1960... Seminário que
sinto muita pena que as pessoas não leiam... se lessem Seminários desse tipo
estariam muito mais à vontade para comentar coisas posteriores de Lacan –que
se comentam às vezes com certa leveza –e até mesmo para entender melhor

338
Transferência

certas coisas que tenho colocado... é um Seminário belíssimo... muito à vontade


porque muito arrogante... de uma época em que Lacan estava muito arrogante
com as coisas que colocava, por uma série de mesquinharias e perseguições
a seu redor muito recentes... é um Seminário pré-milleriano, isto é muito im-
portante... onde Lacan não ficava sendo perseguido o dia inteiro para bancar o
lógico-matemático na frente dos outros... ele ficava muito mais à vontade para
transar a sua experiência, a sua vocação poética... isso dá uma riqueza muito
grande ao Seminário...
...é uma tentativa de Lacan falar sobre a Transferência, mas, o tempo
todo, fazendo um longo comentário de um texto famoso e mal tratado: O Ban-
quete, do famigerado Platão... que também as pessoas não gostam de ler... é até
motivo de escândalo... quero supor que numa época daquelas, 1960 –em que
ainda não havia Lacan para sustentar Lacan, só havia Freud –devia causar um
certo horror tratar-se da Transferência e do amor sobre um texto feito justamente
em torno do amor, mas de Platão... um texto evidentemente pederástico: o amor
de que ali se trata, com todas as abstrações que são feitas, é aquela transa triádica
ocasional entre Sócrates, Alcebíades e Agatão... e não é por nada que Lacan
chega a dizer, neste Seminário, p. 134 de minha edição pirata –não fui eu que
fiz, eu comprei –que “é preciso ser três e não somente dois para amar”... o que
prefigura necessariamente o meu terceiro sexo... veremos por quê...
...o que acontece n’O Banquete, numa série de discursos a respeito do
amor?... são várias pessoas importantes daquela sociedade discursando sobre
o amor... Agatão é um belíssimo jovem... todos têm tesão nele... é um horror,
ele deve se sentir muito mal... mas ele só dá bola para Sócrates, que era feio
como um desgraçado, mas maravilhoso...
...é onde está o discurso famoso do Aristófanes que reconta o mito
grego de como foram separados os sexos... a partir de um ser que nem se pode
chamar de andrógino porque, para eles, já eram três sexos de saída: um ser com
dois sexos machos, um com dois sexos fêmeos e um com um sexo macho e um
fêmeo... eles não inventaram nada melhor para simbolizar a coisa... Zeus os teria
rachado ao meio e eles passam a vida procurando por sua cara-metade –esse

339
O Sexo dos Anjos

mito está até hoje no Cristianismo –que pode ser a metade macha, fêmea,
mas não é o que está interessando...
...Agatão faz seu discurso... ele é o mais jovem, o mais engraçadinho,
fala muito bem para a idadezinha dele, etc. ... todos admiram o jovenzinho... faz
parte do “nepotismo”... logo após, é a vez de Sócrates falar... ele começa com
sua dialética, a qual vem a ser interrompida pela entrada abrupta de Alcebíades,
com um bando de gente de porre e esculhambando com todo o discurso... Al-
cebíades –que não era neurótico, talvez fosse perverso –era aquele famoso
general jovenzinho da Grécia, que quebrou as piroquinhas dos Dionísios do
templo e foi punido... a Grécia, aliás, por causa disso, perdeu uma guerra, pois
ele não pôde participar por estar cumprindo pena... Alcebíades, então, começa
a fazer um elogio a Sócrates... diz que já tinha cantado Sócrates de todas as ma-
neiras, mas Sócrates não transava com ele... uma coisa horrorosa, o Mestre não
dava colher de chá... está evidente no texto que, pelo menos naquele momento,
Sócrates está de olho é no Agatão... nem que seja só para ficar admirando, o
que já é uma maneira de resolver alguma pulsão: a escópica, pelo menos... Al-
cebíades continua fazendo o grande elogio de Sócrates, de sua espiritualidade,
de sua inteligência, etc. ... Sócrates retoma isso e faz a INTERPRETAÇÃO
da fala de Alcebíades... o que permite Lacan dizer que era evidente que o dis-
curso psicanalítico não foi inventado por Freud –nem pelos analistas –, mas
foi apenas destacado por ele... já estava lá no texto de Platão o funcionamento
do discurso analítico...
...qual é a interpretação?... a de que Alcebíades estava fazendo uma
declaração de amor a Sócrates, visando Agatão... “sua aparência de demanda
de amor para cima de mim é seu tesão por Agatão que está aqui do meu lado
me paquerando”... mostrou o desejo de Alcebíades... mas Sócrates ficou nisso
ou levou a análise até o fim?... ele requisita outra vez, como faz em quase todos
os Diálogos de Platão, sua figura mítica: Diotima, uma sábia de algum lugar,
no feminino, para levar a análise mais adiante, até à última instância... e vai
mostrar que para além do desejo por Agatão está o DESEJO DO ANALISTA
–desejo de Sócrates –de referir-se a uma alteridade radical aonde o desejo

340
Transferência

apareceria na sua pureza, como DESEJO IMORTAL, como PULSÃO DE


MORTE, como desejo de nada, de coisalguma, de Não-Haver... ele leva até às
últimas circunstâncias apontando para o MAIS-ALÉM inatingível, mas que
define o desejo... não pára a análise na indicação daquele desejo de Alcebíades,
mas passa a indicar o desejo do Outro, que é o desejo de Sócrates –no pontuar
o discurso de Alcebíades, pelo menos...
...o Seminário de Lacan roda em torno disso... o que há para saber a
respeito da Transferência está lá... o que tenho a fazer é ver o que tem a ver
tudo isso com minha questão e com minha esquematização...

* * *

...um grande poeta nosso, bastante pouco lido hoje em dia, chamado
Augusto dos Anjos, diz:

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!


O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!


Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,


O mundo fique imaterializado
–Alavanca desviada do seu fulcro –

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

...as pessoas poderiam achar isto um negócio horroroso... mas é esta


a interpretação que faz o analista, que faz Sócrates... não que haja nenhuma

341
O Sexo dos Anjos

MORTE –não pensem que estou pedindo arrego –, mas porque o que quer
que se faça como interpretação visando a eliminação do que é brandido na
transferência –a eliminação dessa relação amorosa, a queda da transferência
–é apontar para o desejo... e apontar para o desejo para além do desejo de
Alcebíades por Agatão é apontar para o desejo enquanto tal, enquanto é, nada
mais, nada menos, movimento pulsional, e ponto!...
...por isso diz Lacan, Seminário II, p. 243: “A distinção entre pulsão de
vida e pulsão de morte é verdadeira na medida em que manifesta dois aspectos
da pulsão. Mas com a condição de conceber que todas as pulsões sexuais se
articulam no nível das significações no inconsciente, na medida em que o que
elas fazem surgir é a morte –a morte como significante e nada mais que como
significante [grifos meus], pois será que se pode dizer que há um ser-para-a-
morte?”...é Lacan quem pergunta... “Em que condições, em que determinismo,
a morte, significante, pode ela brotar toda armada na cura? É o que só pode ser
compreendido por nossa maneira de articular as relações”...
...“Pela função do objeto a, o sujeito se separa, deixa de estar ligado
à vacilação do ser, ao sentido que constitui o essencial da alienação. Ela nos
é suficientemente indicada há muito tempo por traços suficientes. Mostrei a
seu tempo que é impossível conceber a fenomenologia da alucinação verbal se
não compreendemos o que quer dizer o termo mesmo que empregamos para
designá-lo –quer dizer, vozes”... o objeto...
...“Na medida em que o objeto da voz está presente, é que está presente
o percipiens”... o ser que percebe... “A alucinação verbal não é um falso per-
ceptum” –falso ato perceptivo, falsa percepção –“é um percipiens desviado.
O sujeito é imanente à sua alucinação verbal”... é causação do sujeito e não da
percepção... “Esta possibilidade está aí, o que nos faz colocar a questão do que
tentamos obter na análise, no que concerne à acomodação do percipiens”... do
sujeito que faz sentido, do sujeito-signo...
...“Até à análise, o caminho do conhecimento sempre foi traçado no
de uma purificação do sujeito, do percipiens! Muito bem! Nós, nós dizemos
que fundamos a garantia do sujeito em seu encontro com a porcaria que pode

342
Transferência

suportá-lo, com o a minúsculo do qual não é ilegítimo dizer que sua presença
é necessária”...
...o que se faz também com essa morte, que só há como significante,
portanto não precisa ser de fato, mas só de direito, é alucinatório... o medo
de morrer, as relações do sujeito com a suposta morte tout court, é da mesma
ordem do percipiens desviado... o sujeito não tem a menor condição de abordar
morte nenhuma...
...o que é mortal na interpretação e na cura não é senão brandir-se o
significante, enquanto tal... o que, no meu projeto, no meu modo de escrever
isto, no meu Esquema, é brandi-lo por inteiro... aí é que há uma pequena di-
ferença, uma pequena articulação que faço sobre o que Lacan vem fazendo, de
mostrar que brandir o significante por inteiro é brandir o desejo, é brandir esse
halo da Pulsão... isto é, o único mortal que há... a única morte de que se pode
sofrer nesse Revirão... não há nenhuma outra concebível... no que a morte é
apresentada como Pulsão de Não-Haver, é imediatamente apresentada como
PULSÃO DE VIDA...
...Lacan diz, p. 240 –tratando da questão do desejo do analista, do desejo
do analisando e do que acontece como encontro possível numa análise –que
Freud, ao tratar de que desejo está em questão numa análise, diz por uma espécie
de escamoteamento que “depois de tudo, é apenas o desejo do paciente –coisa
para serenar os confrades. É o desejo do paciente, sim, mas no seu encontro com
o desejo do analista”...
...“Não é mesmo singular, esse eco que encontramos –por menos que
vamos meter ali nosso nariz –entre a ética da análise e a ética estóica? O que é
a ética estóica, no fundo? –senão, será que jamais terei tempo de demonstrá-lo
para vocês, o reconhecimento da regência absoluta do desejo do Outro, esse
Seja feita a vossa vontade! retomado no regime cristão”...
...taí o trabalho de Sócrates, n’O Banquete... o desejo do analista diz: “Seja
feita a Vossa vontade”... diz a quem?... ao Outro... esse Outro que, no meu Esquema,
se exprime a cada passo de sua modulação em qualquer lugar e tempo do Haver..
...retomo outro poema de Augusto dos Anjos...

343
O Sexo dos Anjos

Quando o homem, resgatado da cegueira


Vir Deus num simples grão de argila errante,
Terá nascido nesse mesmo instante
A mineralogia derradeira!

A impérvia escuridão obnubilante


Há de cessar! Em sua glória inteira
Deus resplandecerá dentro da poeira
Como um gasofiláceo de diamante!

Nessa última visão já subterrânea,


Um movimento universal de insânia
Arrancará da insciência o homem precito...

A Verdade virá das pedras mortas


E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!

...quem é esse Outro que assim se manifesta, que não é preciso ser
beata de joelho roxo para poder entender que ele há?... no meu Esquema, a
Transferência se garante dentro desse movimento desejante, que não é senão a
própria estrutura da Pulsão, como um certo Sujeito adscritível a esse Haver –
com todas as suas manifestações significantes, significativas e de significação
–que é o suporte fundamental da Transferência: o chamado Sujeito-Suposto-
Saber... que Lacan nos indicou dizendo: “Deus ele-mesmo”... eu é que estou
apenas situando deste modo...
...quero dizer é que qualquer Transferência se suporta, em sua aparência
imediata de amor, nessa necessidade fundamental do sujeito falante em fazer a
suposição de um Sujeito radicalmente Outro que é suposto saber o que se passa
na região do sujeito menor que somos nós... para isso não preciso dizer que ele é
onisciente, a não ser só-depois... mas fazer a suposição do Sujeito Outro, dessa
divindade que abrange o Haver, é o suporte das transferências locais...
...a Transferência é, portanto, a relação mais ou menos amorosa entre
o Filho e o Pai... não há Transferência de um lado só, ela é recíproca, embora

344
Transferência

não necessariamente simétrica... o amor do Pai pelo Filho, na sua sabedoria


–que não é senão mera Solércia, Sollertia Dei, a Solércia Divina: pura arte,
pura manifestação criativa... o Sujeito é o artista... mesmo a ciência não passa
de ficção –há ficções e ficções, mas o que há para fazer é isso... é precisamente
que, embora não se deva abrir mão de lidar com a psicanálise mediante o
discurso científico, a psicanálise é pura solércia e , por ser assim, é até cientí-
fica... por que não?... a Transferência, então, se movimenta no arremedo dessa
suposição de um Sujeito abrangente, a qual é colocada sobre um outro sujeito,
por diversos motivos, por diversos momentos na vida de um sujeito –com ou
sem análise...
...o que sobra disso tudo é o tal de Amor, que, em caso de Transferência
ou não, se o amor é dirigido ao Sujeito, como Lacan colocou, se esse sujeito
se apresenta como signo, poderíamos dizer que, na verdade, não há amor sem
transferência... qualquer amor é transferencial porque estou projetando uma
certa significação, um certo sentido, que suponho ao outro –e ainda se quebra
a cara, pois suponho errado... estou colocando nesse signo o meu investimento
e, portanto, eu amo na doença... amor é doença... e se há interpretação, ela
aponta o desejo que o amor está engambelando... o sujeito está todo apaixonado,
chega-se e se lhe diz: “Tu tá é querendo comer a moça, pára com isso!”, já é
uma interpretação... mas, para além desse comer aí, o que faz a movimentação
do teu desejo é a outra coisa que você não ousa encarar... é que você queria
não ter que sofrer nada disso, nem mesmo desejar... mas como “não tem tu,
vai tu mesmo”, vai a Kátia Flávia com sua calcinha que, certamente, eu terei
vontade de comer mas me dará tiros... é a questão do que há de agressividade,
de violência, de dilaceração, na relação amorosa da transferência...
...a psicanálise não é a verdadeira religião – que é aquela do Jesus
Cristinho –, não é a religião do amor... quando se diz isso, supõe-se que a
crueldade psicanalítica –de proferir que não se trata de amor –é o ódio... não,
pois é na religião do amor que se cultiva o ódio... a psicanálise, sendo não-
religião verdadeira, sendo arreligião verdadeira, pretende brandir o que pode
eventualmente, a duras penas, apaziguar esse furor amoroso que há na face do

345
O Sexo dos Anjos

planeta e que tem dado no máximo em bombas atômicas, apartheids –esses


amores delirantes... e a gente precisa ter muito cuidado ao interpretar esse tipo
de coisa porque senão sobra para nós... eu escrevi um poema interpretando o
amor que vige no apartheid da África do Sul... e proibi que publicassem... eu
também sou um bom censor... porque quando se aponta para a lua o imbecil olha
para o dedo... e eu gosto do meu dedo... podem querer cortá-lo... a psicanálise,
então, seria como arreligião, sim, e seu pior inimigo, seu rival, é a religião... ela
poderia ser arreligião do respeito: saber lidar com a Lei –da diferença –diante
do fato inarredável do Não-Haver... de não-haver a Morte, portanto... de eu ter
de torná-la puramente significante... e estabelecer a ordem dos respeitos, das
reverências, das referências...

* * *

...para esclarecer o que ajuntei até agora, precisávamos tratar um


pouco mais dessa questão do SIGNO que funda a relação amorosa, que funda a
Transferência... signo este que é para ser significantizado –é a única saída que
há para ele... quando digo isto, mexo em casa de marimbondo, pois não tenho
nenhum motivo para desdizer o que Lacan nos ensinou... mas tenho motivo
para acrescentar alguma coisa, pelo menos para meu entendimento...
...o que é o signo?.. diz Lacan que é o que representa algo para alguém...
o que ele diferencia do significante dizendo que este é o que representa o sujeito
para outro significante... mas ele equiparou –e, mesmo, ajuntou –o signo ao
sujeito... Lacan diz que o que se destaca durante uma análise é a FANTASIA
–$ a –mas ele afirma, também, algo que as pessoas esquecem: essa fan-
tasia não é senão o Desejo –a estrutura do próprio desejo... o sujeito, então,
se apresentando como signo para fundar uma determinada relação amorosa,
uma determinada transferência, o que fazer para que ele se significantize?...
ele é signo, diz Lacan, de toda uma história, de toda uma vida... você não é
capaz de amar ninguém que não seja compatível com a historinha que você
quer inventar...

346
Transferência

...então, tomando o sujeito como signo, o que vem primeiro, o signo ou


o significante?... na história de um sujeito, de um falante, na história de haver
falante, o que vem primeiro?... nossa atenção costumeira, na leitura de Lacan,
seria responder que é o significante... não!... o que vem primeiro é o signo... e
eu teria que dizer que o signo é da ordem de algo que há para aquém e para além
do significante... a emergência do significante como tal exige a pré-valência,
a pré-existência, a precelência do signo, tornando-se significante... mas, no
que o significante comparece, tenho que reconhecer que, a partir dele, posso
re-instaurar signos...
...por que será que o homem –esse animal bípede, macacóide –chega a
falar?... por alguma razão que não sabemos dizer... talvez algum dia descubra-
mos... mas podemos seguramente conjeturar que, pelo menos, há um modo de
se chegar a falar... era preciso que reconhecêssemos que o que há de linguagem
–como se diz –entre animais, que chegam a falar –e Lacan reconhece isto
quando se refere à sua cadela –que, nessa fala do animal, o que existe é uma
troca de signos... não é significantemente que um animal se comunica e, sim,
signicamente...
...Wittgenstein –onde Lacan bebeu demais: muita coisa que ele nos diz,
que as pessoas que não gostam de ler lá para trás pensam que é tudo dele; seria
pedir demasiado que tivesse dito tudo aquilo, ele já fez o bastante –tratando
das questões da linguagem, chama atenção para algo interessante quanto,
embora não use este termo, à etologia animal... ele diz que uma criança não
aprenderia a falar uma língua se não houvesse certos dados de significação e
certas reações espontâneas dessa criança e do mundo... podemos dizer que um
sujeito pode rir de dor ou chorar de prazer, mas o mais comum é que se ria de
prazer e se chore de dor... quer dizer, uma certa constância sígnica é posta no
mundo animal... eu diria mais: há uma certa inércia sígnica em todo o Haver
modalizado que não o falante: uma árvore faz signo para a atmosfera, do con-
trário ela não respira...
...o que é a emergência desse tal sujeito, mesmo partindo da ordem síg-
nica, de tal maneira que ele vá despejar isso na ordem significante?... não pode

347
O Sexo dos Anjos

ser mais nem menos que o Revirão... trata-se aí da morte enquanto significante,
porque os outros animais também “morrem” e não tratam disso... por isso La-
can, não sendo imbecil, diz que não há morte senão como significante... só há,
então, emergência de sujeito no regime do significante... o regime do signo não
propõe sujeito e, sim, ordens projetivas de reciprocidade, cuja subjetividade é
distante: depende do terceiro, pois entre dois não há amor... esse terceiro é o
Sujeitão lá de cima, cuja instância nós outros lemos aqui colocada...
...mas o que é essa passagem do signo ao significante?... Lacan chega
a articular muito bem o processo, o tempo todo, mas no respeito que fica a
certa lingüística e a certo estruturalismo, isso parece que não se diz muito
claramente... o como funciona essa passagem, é essa maquininha que uma
lingüística tipo saussureana não nos empresta, não nos presta muito... minha
questão está aí... sim, é preciso que nasça uma criança que tenha aparelhos
semelhantes ao do animal, que reconhece, que lida com a mãe signicamente,
se não cinicamente... mas como brota daí o significante como tal?... e o que
tem isso a ver com a Transferência, com a interpretação, com a análise e com
a queda da Transferência?...
...qual é, então, a máquina que faz isso?... é a função catóptrica... é
isso que quero recolher nessa coisa mal explicada no Estádio do Espelho, por
exemplo... não que Lacan não nos tenha servido nesse propósito, mas isso
nunca foi explicitado... e eu ponho, repito, a responsabilidade disso num certo
apego à lingüística saussureana... se eu não tiver a concepção de uma catoptria
inerente –e a isto não sei responder: por que apareceu um animal que tem essa
função catóptrica tal como ela se apresenta na minha suposição de Haver? –
de um aparelho de linguagem funcionando assim, não há a menor condição de
o signo passar a significante... dado um signo, ao qual, etologicamente mesmo,
um bebê, ainda que prematuro, está afeito –ele responde a essa linguagem com-
portamental animal: bota-se teta na boca e ele chupa, etc. –eis senão quando é
preciso que o significante se apresente na EQUIVOCAÇÃO do signo, ou seja,
constituindo o HALO significante por inteiro daquela relação sígnica... alguma
coisa tem que avessar essa experiência sígnica de um sujeito para que ele possa

348
Transferência

se reconhecer como sujeito articulador no nível dos alelos... o tal do Fort-Da,


por exemplo, constatou-se que há, que funciona assim, mas se eu não tiver um
aparelho tratador da linguagem que me dê o conceito de significante enquanto
halo em sua plenitude, não tenho como conceber isso...
...a própria tarefa da interpretação na análise, como diz Lacan, é apontar
para o desejo –ou seja: a interpretação é o desejo... que desejo?... diz Lacan,
é a estrutura da Pulsão... e se a estrutura pulsional, o movimento desejante –o
qual se inscreve como significante –, não é catóptrico, ou seja, alélico, se,
colocado x, isso não puder ser dialetizado e equivocado em x e não-x, ou x e
-x, não há condição significante... não há emergência desse lugar articulatório
e concreto do sujeito que fora representante, que se tomara por signo e que
deixa de se tornar no que reconhece que signo de amor é signo de ódio: “eu te
amo” significa “eu te odeio”...
...insisto nisso porque é preciso um maquinismo outro... não é gratui-
tamente que venho falando de halo, Revirão, etc. ... não há esse processo na
lingüística saussureana... há o processo de reconhecer o sujeito já dentro de
uma língua, instalado, e a deriva desse sujeito de significante para significante,
mas significante no sentido metafórico, de metáfora a metáfora, de metáfora em
metáfora, por via metonímica, ou seja, num processo metaforonimico...
...mas a emergência do que é a diferença entre um sujeito que lida na
ordem significante e um gnomo, que lida na ordem do signo, só é pertinente na
medida em que se possa fazer uma abertura mais abrangente em que possamos
recolher até outros saberes... há, por exemplo, um certo autor que é bastante
desprezível de um ponto de vista dito lacaniano, Leroi-Gourhan, que faz aquele
trabalho enorme de estudo das técnicas, das falas, etc., e dizem que ele está
superado, que não está com nada –mas não é verdade, está com tudo... ele
está fazendo a leitura das instituições, das constituições sígnicas do falante, as
quais são brotáveis...
...o quanto de DISCURSO PEDAGÓGICO pode ser trabalhado pura-
mente em relações sígnicas?... não tenho como diferençar com muita nitidez
certos processos se não entender que é preciso reconhecer a função sígnica

349
O Sexo dos Anjos

do falante como muito mais atuante do que a função significante... não estou
dizendo que tenha maior importância teórica e, sim, que é mais presente...
...é função do DISCURSO ANALÍTICO introduzir-se, intervir –até
no seio da cultura –reclamando o Revirão disso, reclamando o distanciamento
dessas relações amorosas com vistas a uma relação de respeito à ordem do
significante, do reviramento que é a verdadeira ordem da diferença...

* * *

...Lacan teve que fazer um grande esforço para mostrar que quando se
deseja um objeto, este é desejado como representante da falta... é signicamente
que o sujeito trabalha... minha questão é simplesmente mostrar que o signo é
para-aquém e para-além do significante...

 Pergunta –Você está usando conceitos de signo completamente diferentes.


Você está usando, num certo sentido, o que é signo para Lacan: signo-repre-
sentação diferente de significante-representante com ocorrência do sentido
no âmbito do falante. Você está re-buscando um outro signo originário e an-
tecedente ao significante, que seria da ordem do amor, antecedente à pulsão
significante, e que teria a ver com uma certa relação de especularidade –no
sentido literal, de avessamento –com o próprio Real. Este signo é que parece
ser antecedente do significante. O outro, não, ele ocorre na imaginarização do
simbólico, ele precisa que já haja significante. Portanto, desse para-além aí,
Lacan já teria falado. Agora, o estatuto, na fundação do sujeito, desse outro
signo é anterior –porque é signo de amor; e Lacan vai dizer, também, porque é
signo de algo que se passa no real, literalmente –ao significante. Não é o signo
que compareceu no falante, o qual não está o tempo todo, enquanto referido
ao sentido, em discurso amoroso –isso, aliás, é Roland Barthes. Você, então,
estaria se referindo à descoberta de uma função de signo naquilo que Freud
descobriu como equivocação das palavras primitivas. Haveria um signo de
algo simbolizado, que é para-além, e um signo de algo que se passa no Real,

350
Transferência

que é para-aquém.
...a função significante é operada pelo halo enquanto Revirão... quero
dizer que podemos até acompanhar, na história do falante, um acrescentamento
de significantização dos signos... quando Lacan diz que o sujeito vai buscar
o significante dentro do real –real lá dele –isso é colher o significante como
signo... é no que ele significa algo para alguém instalado com-sentido, ou seja,
faz sentido e tem consentimento, é que é colhível para ser tornado significante...
minha implicância é com a lingüística que amarrou os processos...
...o que há de interpretação, de intervenção, é estrito reviramento... toda
vez que, na sua relação transferível –que é o suporte e dá condição à análise –
o analisando mostra o signo, a única função do analista é operar no sentido do
reviramento, do avessamento para que se torne significante... ou seja, só posso
conceber, como já disse, a árvore em termos sígnicos porque há aparelhos
fabricados na zona do Haver, no campo do Sentido, já estatuídos com sentido,
e é signicamente que abordo esse sentido...
...o processo do falante não é produzir inicialmente, a partir de coisa
alguma, o significante... mas o significante só faz Nada de Coisalguma na medida
em que faz o Revirão, que atravessa a coisalguma no ponto F –aí ele se torna
significante... mas a base sobre a qual o significante se instala é o reviramento
de um signo... o avessamento... então, tudo se torna neutro, porque o que era
isto pode ser o anti-isto... é ai que o sujeito pinta no seu modelo articulatório
e concreto...
...evidentemente que, de entrada na fala e no hábito significante, di-
gamos assim, posso trazer o avesso disso... é o que chamo de signo para-além
do significante... aí posso, em trabalhando de maneira significante, operar a
recriação de signos... estão aí as obras de arte, as invenções... quando o sujeito
inventa algo novo, foi preciso que atravessasse pela via significante e, de dentro
da ordem significante, instalasse um signo novo: ele acaba fazendo alguma
coisa que faz sentido... é onde coloco a região do meu Falanjo... mas não há
produção, invenção sígnica sem esse lugar do sujeito revirando de alguma
maneira e funcionando de maneira significante, isenta...

351
O Sexo dos Anjos

...o processo de criação, o processo discursivo, passa pela enunciação


na medida em que esta é o lugar desse reviramento... e quando diante do anali-
sando estou, no processo transferencial, lidando com signos –o analisando
não traz outra coisa: embora o inconsciente dele revire à vontade, ele denega,
faz o diabo –é preciso insistir na outra mesma face para que aquilo se torne
significante... e que deixe de ser signo...
 P –No conto “O Espelho”, nas Primeiras Estórias, Guimarães Rosa vai des-
crevendo a obsessão de ver, ou ver através do espelho. Ele se identifica com
o sósia animal, desce a todo tipo de imagem do signo possível. Vai desde a
ordem do saber, das concepções a respeito do que se pode ver pelo espelho...
até que chega o momento em que isso tem como que a negação de todo esse
movimento de apoio do ver no signo... quando ele olha e não vê. Isso subverte
e dá razão retroativa à produção enunciativa do próprio conto.
...e do livro inteiro como demonstrei no Rosa Rosae...

* * *

...há um poema de Augusto dos Anjos que é a descrição do falante:

Ser miserável dentre os miseráveis


–Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!

Muito mais cedo do que o imagináveis


Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!

Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo...


Creação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,


A simultaneidade ultramonstruosa
de todos os contrastes famulentos!

352
Transferência

...aí está a descrição do Revirão... temos depoimento disso a toda hora...


 P –Quando você falou da antecedência do signo em relação ao significante
e quando acompanho a questão do conceito do Revirão, fica muito claro que
o signo significa uma espécie de metade, uma referência a um alelo do halo
significante. Então, a nível da estrutura da linguagem, da estrutura do Revirão,
eu nunca poderia supor o signo como sendo antecedente ao significante...
teria que supor que o significante, a estrutura da linguagem, é que antecede
o signo...
...você deu um salto muito grande... faça toda a seqüência que você
vai perceber... suponhamos que a estrutura do Haver, enquanto tal, seja uma
estrutura em Revirão... acontece aí que, na passagem de F para , inaugura-se
o campo do Sentido, onde tudo é de uma lógica ternária, sendo que o Terceiro
é terceiro de todo o campo e que, dentro do campo, tudo se dualiza... não só
se dualiza como pode recalcar um dos alelos... por isso, o próprio Haver tem
história: ele pode comparecer amanhã como outra coisa... por isso há, por
exemplo, a chamada “evolução das espécies”... há recalque originário – do
Não-Haver –em F e recalque no campo do Sentido, pois não é tudo que é dito
ao mesmo tempo... tudo é ali possível, mas não dito ao mesmo tempo...
...o campo do Haver, então, na sua ordem de campo do Sentido, fun-
ciona signicamente o tempo todo... o que comparece, comparece em processos
de interação... não há relação de espécie alguma e, sim, interação no sentido
físico –interação de partículas, etc. ... interação é algo que tem muito a ver
com o imaginário das relações especulares, mas que é corroído pelo Real que
está lá fora, pelo Terceiro que faz parte do sistema... mas o que ali comparece,
comparece como significando algo para alguém –nem que seja para o Sujeitão lá
de cima –porque se um átomo, uma partícula atômica, não fizer sentido, se não
for signicamente posta dentro do campo onde ela está, aquilo não funciona...
...eis senão quando, num processo imenso de produção de gnomos –
seres binários dentro do campo do Sentido –aparece essa coisa esquisita que
nós somos: um macaco, mas que re-inclui o Terceiro... faz parte em algum lugar
de sua estrutura a re-inclusão do Terceiro... ele é fundado inteiramente sobre um

353
O Sexo dos Anjos

aparelho sígnico como portador de um processador –chamado Linguagem –que


permite o reviramento disso tudo... então, ele, como FALANTE, se qualifica
por essa diferença e não por ter mão como o macaco, etc. ... o “macacão” dele,
o “corpo” dele, pode ser comparado com outros, mas o que qualifica o falante
é que ali é re-introduzida a função de reviramento, a qual não se inclui em
outros seres conhecidos...
...o falante vem portando organizações sígnicas que estão no seu
macacão... ele não sobreviveria, a partir do nascimento, se não houvesse mar-
cações sígnicas... não posso abolir o estudo, por exemplo, da GENÉTICA...
não posso dizer que não haja elementos na estruturação do sujeito –até como
comportamento –que sejam genéticos... não vou ficar delirando nisso só porque
trabalho com a psicanálise... vemos nitidamente certos sujeitos, certas famílias
com coisas tipicamente genéticas... ou seja, signos funcionando por herança
genética... não tem saída...
...a saída é isto que dá conforto –viver na ordem do signo é muito
confortável... outra coisa é remeter-se à sua particularidade, à sua especialidade,
que é a de fazer o Revirão... o sujeito pode fazer Revirão, mas não é porque
pode que faz e, freqüentemente, não faz... é preciso que, nos processos de sua
história, ele sofra crescimentos no sentido de tornar significante a maior parte
dos signos que ele aborda... esta é a diferença psicanalítica...
...a psicanálise presta atenção nessa intervenção para que o sujeito possa
revirar ao máximo os seus aparelhos sígnicos... distinguir, separar ao máximo
–quando falo aí dessa separação, dessa alienação, não estou tratando do objeto
a e, sim, do Revirão, embora isso comporte o objeto a... se, então, o sujeito com-
preende os fenômenos da língua, da linguagem, num acrescentamento lingüístico,
num enriquecimento da própria estrutura da língua, no sentido de fazer com que
tudo se revire ao máximo –ou seja, que tudo seja remetido freqüentemente a
essa lógica terciária, de que o sujeito é capaz, mas usa pouco –então ele vai
significantizando a sua vida, a sua história ao máximo possível...
...a relação analítica tem a ver com o processo de fazer com que o
sujeito –não é pedagógico esse significantizar ao máximo –venha a assumir

354
Transferência

sozinho, sem ninguém mandar, por conta própria, em autonomia, o trabalho


desse reviramento na sua história... isto tem a ver com reconceituação da clínica,
com re-conceituação de término de análise etc. ... a partir de que momento,
na análise, um sujeito é AUTÔNOMO?... o que interessa à análise acabou...
daqui por diante ele se vira sozinho... não precisa de analista tomando conta,
fazendo intervenção... ele usa o máximo de intervenções que colhe no mundo
para se virar, para revirar... este é o meu conceito de fim de análise... por isso,
Freud pensava que a análise era infinita: faz-se processo de reviramento a vida
inteira... mas a análise é exercitar esse reviramento e re-citar o reviramento
autônomo do sujeito: reconhecer que o que tomava como fantasia não é senão
a estrutura do Desejo, a estrutura do significante... a fantasia é o significante,
no meu sentido, é o halo significante...
...isso muda todo o entendimento da questão... e, a meu ver, faz mais
barato, é mais simples... vejo Freud perdido no rochedo da castração, impacta-
do... vejo Lacan tentando instituir o tal do passe, que acaba não se agüentando... e
eu, tenho que fazer alguma coisa –que certamente será fracassada –que espero
que dê algum passo no sentido de que é aí que tudo começa e tudo termina... o
tal rochedo da castração é só isso... o tal do passe, se é que existe, é só isso...
pode-se até instituir um passe: um grupo de pessoas com quem o sujeito fala e
que vai se indagar se ele se vira sozinho... se concluir que sim, então, daqui por
diante, o sujeito é um “profissional autônomo”... não é só que ele seja capaz
de se virar sozinho, é preciso que ele se vire... e, mesmo, que tenha eticamente
assumido o dever de ir sevirando... aliás, não é o que observo na maioria dos
analistas de que tenho notícia na face do Planeta... se nada, na cultura, lhes
pede que se virem, eles não se viram... ficam repetindo as mesmas bobagens
por décadas e décadas...
...esta questão é muito séria... depende da concepção que se faça da es-
trutura, do aparelho de linguagem... tomemos, por exemplo, um manejo disso...
o que Alcebíades diz a Sócrates, naquele platônico Banquete onde Aristófanes
explica o amor pelo mito da separação dos sexos, é declaração de amor, que
lhe vem em suplência ao seu desejo de relação-sexual, certamente que com

355
O Sexo dos Anjos

Agatão, como Sócrates sacou... Lacan afirma (Sem. 20, p. 44) que “o que vem
em suplência à relação sexual é precisamente o amor”...
...ora, aquela declaração de amor, de Alcebíades a Sócrates, é denotada
por Lacan como Transferência... o que não o impede de dizer (Sem. II, p. 133)
que “a transferência é atualização da realidade do inconsciente”... e, mais adiante
(p. 138), que “a realidade do inconsciente é sexual”... no entanto, ele diz também
(Sem. 20, p. 27) que “quando se ama não é de sexo que se trata”... e (p. 77) que
“falar de amor” –como faz Alcebíades, e todos, aliás –“é, em si, um gozo”... ora,
com isto, Lacan só pode estar apontando para o que quero chamar de Gozo-do-
Sentido, J$... Lacan diz, no Seminário 20, que essa falação indica o Gozo-do-Outro
como Mulher, mas não diz que ela é o Gozo-do-Outro... portanto, é gozando do
Sentido que ela pode falar de um Outro a que não tem acesso...
...mas se não coloco uma Terceira Instância, que exige uma sexuação
para ela, isso tudo fica sem pé nem cabeça... tenho que colocar quatro sexos,
senão isso não funciona...um deles é cego-surdo-e-mudo: o sexo da Morte...
e não há que falar do Gozo da Morte, mas ele é conjeturado pelo falante, ele é
pró-posto pelo Haver... então, do ponto de vista da proposição da morte –como
significante, nada mais do que como significante, repito Lacan –o gozo só pode
ser Angélico, na produção sígnica e na produção significante... não tem outra
saída... Lacan diz que o Falo está lá, se apresenta como signo e é tomado como
significante no regime do gozo-fálico... claro, porque, na ordem animal, aquilo
é signo... signo de: “Vamu fudê” –como é entre nós... só que a gente diz: “Não,
ele está pirado, esse cara, não é nada disso”... a gente pode revirar... ou seja, o
próprio falo que ele institui como significante do desejo, é signo de desejo na
ordem natural...
...então, é nesse regime que é preciso re-enquadrar os modelos e as es-
truturas para a coisa se esclarecer, tornar-se menor, portanto, mais matemizada,
mais compreensível... o processo é apenas este: ali dentro, esse furo, F, reaparece
como processo de decadência ou de criação... então, aparece um ser que tem
a condição, a possibilidade, que o define como tal, de fazer o Revirão... mas é
o que menos se faz... o drama do falante, na face do Planeta, é que ele insiste

356
Transferência

em ser animal... é confortável: nasceu menino, taca azul; nasceu menina, taca
rosa; vira bicha, taca roxo ou maravilha; nasceu sapatão, bota preto... isso é de
uma santa burrice... é a burrice do ser falante...
...por que não se pode estabelecer que o falante extrapola tudo isso?...
é preciso fazer a interpretação de cada signo, lembrar que eles são meros si-
gnos... é isto que o neurótico não sabe fazer... o signo para ele não é mero, ele
é mesmo...
...o que me deixa perplexo é que, no chamado meio psicanalítico –ou
como me dizia uma doida: a “comunidade psicanalítica”, como se existisse isso –,
muitos trabalham no signo a vida inteira, numa “boa” e tudo bem... e tudo
lacaniano...
...ali no campo do Sentido, do Falanjo, o sujeito trabalha no nível
do signo, portanto, no nível de fazer sentido... não é que ele trabalhe só com
signo... ele trabalha em operações significantes para fazer sentido... o neurótico,
por exemplo, não acredita que tem que fazer sentido nem que tem que abordar
nada significantemente: ele tem que usar o signo, conformar-se com ele, mesmo
sofrendo... portanto, há muito amor no campo do Sentido... por exemplo, há
todos os sentidos, todos os campos sociais etc., os quais, se forem operados
como obrigação, estão no regime da neurose, que é o mais freqüente... se forem
operados como movimento produtivo, criativo, tudo bem... é o que o artista faz
o dia inteiro: no que ele revira, ele inventa um signo novo e por aí vai... por
isso, a coisa mais importante na face da Terra é a MODA... a coisa mais séria
é estar na moda...
Freud, Lacan estavam na moda –eu me viro para estar, mas não con-
sigo... a moda é seríssima porque é a tentativa de fazer sentido... taí um Mal-
larmé, um Barthes, um Gilberto Freyre (que acaba de lançar um livro sobre
a moda)... as pessoas sérias só pensam em moda... intelectual é que só pensa
essas besteiras chatas que não interessam a ninguém... intelectual é, antes de
tudo, um chato... ele não é o artista, nem o poeta: é esse chato de galocha que
freqüenta a universidade e o Jornal do Brasil...
...Lacan diz que é quando se é mulher que se ama... isto terá que sofrer

357
O Sexo dos Anjos

uma ligeira deformação dentro do meu sistema... Lacan não tinha os anjinhos...
eu os tenho... Lacan trabalhava só com dois sexos, coitado!... ele não conseguiu
ver os três que indicou, nem os quatro necessários...
...onde se exacerba essa questão para com Deus no sentido de imitar o
fundamento do amor divino e do desejo divino –que é o desejo do Não-Haver
–pode ser na mística... lembro o que já disse numa Maravalha que publiquei...
temos os quatro sexos... pois bem, os Homens são responsáveis pelo gozo-
fálico... a relação sexual, além de ser impossível no regime do Haver, porque
tudo que se deseja é o Não-Haver, mesmo no regime cotidiano dos falantes, é
impossível... quando digo que tudo é possível, continuo dizendo que o que não
é possível não-há... não há relação sexual e ela se espelha aí em uma impos-
sibilidade que comparece o tempo todo como impotência... mas não é por ela
não haver, ainda que eu tenha certeza disso, que eu não tento...

...os Homens não têm o menor interesse pelas Mulheres... todas elas
sabem disso... Clare Isabella Paine teve o desplante de escrever isso num
livro... pois bem, o Feminino, não há nenhuma possibilidade de ele encantar
o Masculino... isto é evidente... no interesse do gozo-fálico, o que encanta o
Masculino, os Homens, são os Anjos, que são os verdadeiros portadores dos
objetos, que fazem sentido... os portadores dos signos são os Anjos... é quando o
sujeito goza no Sentido que ele encanta os Homens, que os faz bander... mostra

358
Transferência

o objetinho e ele fica todo-todo...


...os Anjos, também, não se interessam pelos Homens... no que estão
no processo de fazer sentido, por um lado, reconhecem que são acossados pelos
Homens, os interesseiros do gozo-fálico, mas, por outro, estão interessados é nas
Mulheres... não porque elas tenham os objetos... eles estão interessados é em como
podem fazer sentido, a partir do interesse que os Homens têm nos seus objetos, e
como podem produzir mais objetos... e só podem produzir mais objetos no que
olham para o Feminino... no que reconhecem que a dialetização da requerência
dos objetos só pode estar no desejo pelo Furo, que está lá nas Mulheres...
...as Mulheres não querem saber dos Homens... elas querem saber do
Não-Haver... do que elas pensam que é Deus... por isso Lacan, no Seminário 20,
definiu o Deus lá dele como o Não-Haver e não como Haver... ele foi buscar no
tesão da mística a noção de Deus... a mística mostra a radicalidade da alteridade,
na qual o Outro só é possível se eu supuser o Outro do Outro... se não se supuser
isto, não se altera o Outro... há que supor um Outro do Outro, mas ele não-há...
e é o que as mulheres querem: a Morte... quando você está no Feminino, você
é o lídimo representante da Morte... que você quer que haja, mas não-há... é o
lídimo representante da Paz, do Nirvana, que é como conjeturamos a Morte...
o místico fala disso: da paz, da morte, que não é possível... e ele fica olhando
para lá... assim, ele se apresenta na relação com o Furo, com o impossível:
esbarra no furo Real... é isso que os Anjos acham maravilhoso...
...se saco a partir do gozo-fálico e visando que o interesse é a Paz, com
essas duas jogadas, eu, como um Terceiro –não sou nem um intermediário entre
os dois –eu fecho isso, a partir da posição subjetiva, na CRIAÇÃO, sobre o
significante de um signo novo... então, sou artista... os Anjos são artistas: falam,
inventam, criam –somos nós... devíamos ser todos artistas...
...as Mulheres, no que elas querem mesmo é o Não- Haver, elas quebram
a cara porque isso não-há... então, podemos surpreendê-las nessa insistência
de querer o Não-Haver... mas se elas insistem demais, quebram a cara, passam
pelo Furo e aceitam um Homem... de lambuja... estraga-se o barato delas... elas
tentam e tentam insistir na delas, só encontram o Furo, e só têm duas saídas,

359
O Sexo dos Anjos

ou viram Homens e elas viram, começam a gozar falicamente, na maior... e eu


já disse que quem goza é “colega”...
...ou então, no que o Não-Haver é impossível, elas acabam aceitando
um Homem como referência e, até, seu gozo-fálico... elas passam de certo modo
para o Masculino... e é aquela devastação na sua particularidade Feminina...
...o Homem não é desejado... (mas, também, não é preciso ser fanático)... lendo
0 Banquete e o que Lacan trabalhou sobre ele, vê se que nenhum homem é
desejado... e ali só tem sacanagem masculina... mas quando indicam o objeto,
é o mais jovem, o mais bonitinho, sem pêlo...
...não estou dizendo que, no meu sentido, o gozo-fálico seja estritamente
da ordem do gozo do órgão... eu só situo como gozo-fálico o que é da ordem da saída
na explosão, Fiat ... a partir daí começa a produção de sentido na ordem da partição...

* * *

...fica esse corre-corre em que, em qualquer posição que se esteja, o


que é requisitado é a seguinte... portanto, não se pode falar de modo algum em
relação sexual... isso não há... há interações... alguém me disse que, do jeito
que coloquei, pode-se ter relação sexual entre dois Falanjos... não pode, pois
quando o sujeito está na posição angélica o que ele quer é o Feminino... não há
relação sexual –nem homo nem hetero... e a heterossexualidade é obrigatória,
não há outra... é o tolo do neurótico, que vive do sentido dado, que pensa que
está sendo homossexual... mas a homossexualidade é impossível: não se pode
estabelecer a relação de dois dentro do mesmo sexo... em qualquer posição que
se esteja a requisição é de outra...
...então, todos esses aparelhos sígnicos que estão embargando o movi-
mento social têm que ser solapados pelo Discurso Psicanalítico... as pessoas
estão vivendo por aí dos signos... e isto é mera besteira...

25/JUN

360
Delenda Melancholia

Quinta Parte

JUÍZO FINAL
2º Semestre 1987

361
O Sexo dos Anjos

362
Delenda Melancholia

1
DELENDA MELANCHOLIA

Início com a audição de Toccata e fuga em


ré memor BWY 565, de J.S. Bach.

“Se além dos pecados de fornicação um eclesiástico pede absolvição


do pecado contra-natureza ou de bestialidade, ele pagará 219 libras e 13 sous;
entretanto, se ele só cometer este pecado com garotos ou com animais, e não
com mulheres, a paga será reduzida a 131 libras e 15 sous.
“Uma religiosa que se entregar a vários homens, simultânea ou suces-
sivamente, em seu monastério ou fora dele, e que quiser obter a dignidade de
abadessa, pagará 131 libras e 15 sous.
“Para qualquer pecado de luxúria cometido por um leigo, a ab-
solvição custará 27 libras e 1 sou; para os incestos, serão acrescentadas
em consciência 4 libras.
“A mulher adúltera, que pede absolvição para ficar abrigada contra
qualquer punição e ter larga dispensa de continuar relações culpáveis, pagará
ao Papa 87 libras e 5 sous.
“A absolvição do assassínio simples cometido por um leigo é taxada em
15 libras, 4 sous e 3 dinheiros; se o assassino matou vários homens no mesmo
dia, não pagará nada a mais.
“Um marido que matar sua mulher pagará 17 libras e 15 sous; se ele

363
O Sexo dos Anjos

cometeu este crime para se casar com outra mulher; pagará ainda por cima 52
libras e 9 sous. Aqueles que ajudaram o marido no assassínio serão absolvidos
por duas libras por cabeça.
“Aquele que sufocar seu filho pagará 17 libras e 15 sous. Pelo assas-
sínio de um irmão, de uma irmã, da mãe ou do pai, serão pagos 17 libras e 6
dinheiros.
“Um bispo ou um abade que cometer um assassínio por emboscada,
ou por acidente, ou por necessidade, pagará pela absolvição de tal delito 179
libras e 14 sous .”
...excertos da Taxae Sacrae Chancellariae Apostolicae, et Taxae Peni-
tentiariae, itidem Apostolicae... Taxa de Chancelaria publicada em 1319 pelo
Papa João XXII –precursor de João XXIII –de modo a melhorar as condições
do Tesouro pontifical... isto está na Histoire des Souverains Pontifes qui ont
siégé à Avignon, de um chamado J.B. –que não é Pontalis –Joudon, Avignon,
1855... e está citado por Gilbert Lely no seu formidável “romance”, que é a sua
Vida do Marquês de Sade, Paris, Cercle du Livre Précieux, 1966, p. 8-9...
...é por isso que o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro precisa ficar
pedindo doações de livros para sua Biblioteca... a gente ainda não fez essa
lei... a gente chega lá... mas é difícil inventar perversão nova... os “home”
inventaram primeiro...

* * *

...este ano o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro faz 12 aninhos –ofi-


cialmente pelo menos, em setembro... já é tempo de esperma e menstruação...
no início, ele era aquilo que eu costumava chamar o meu Exército Brancaleone,
o que continua sendo até hoje... na verdade, todo exército é de Brancaleone,
tanto na sua grandeza, quanto na sua proporcional derrisão...
...de 1978, quando do meu retorno da presença de Lacan, a 1987,
inscreve-se um quiasmo ou um palíndromo, que dura 9 anos de gestação: tempo
de ver se dá para nascer alguma coisa...

364
Delenda Melancholia

...nosso tempo, nosso tempo de hoje em dia, é um tempo bastante


esquisito... hoje, por exemplo, é o dia 17 de agosto de 1987... faltam só 13
anos para os famigerados anos 2000, o fim de século... mas não é isto que é
importante... segundo muitos –e segundo eu –não estamos apenas em fim
de século: estamos no fim de uma era... era, aliás, que já era, segundo alguns
calculistas do secreto...
...dizem até os jornais que da península de Yucatán nos enviaram uma
mensagem de algumas cartas ditas celestes, segundo as quais teremos acabado
de passar ainda ontem num Revirão... segundo estes astrônomos ou astrólogos,
ou qualquer coisa dessa ordem, hoje, 17 de agosto de 1987, é o começo do fim
da era de peixes, que durou 20 séculos, e começo do princípio da era de aquário,
que virá pelo ano 2014... então, tem um gap que talvez eles não saibam explicar...
quanto a mim, sem nenhuma astrologia, sem compasso, sem esquadro e sem
astros, quer me parecer, já há algum tempo, que se trata mesmo de um final de
era... mas um final de era é recursivo e se sobrepõe a si mesmo: ou seja, eu acho
que já era... que a era já mudou... mas o cadáver, esse tipo de cadáver, leva mais
ou menos uns 30 anos para apodrecer... portanto, o que vamos ver ao redor vai
dar a impressão de decadência para alguns e mesmidade para outros...mas já
estão acontecendo, em algum lugar, em alguns momentos, as emergências de
uma outra vida –que não passa de ser a mesma, só que é diferente...
...ainda faltam mais ou menos uns 30 anos para o tal Aquário versar...
e, certamente, é lá que habitam francamente os meus Falanjos... a psicanálise
não foi de modo algum intempestiva na sua história... ela chegou com Freud,
que nos preparou para esse final dos tempos do Jesus Cristinho... depois, com
Lacan, ele nos deu as ferramentas do JUÍZO FINAL...

* * *

... certa vez, num Seminário, Lacan se declarou um mero epígono de


Freud... tomaram isso por modéstia... mas era lucidez... Lacan –sinto muito
informar aos senhores –é fim de linha e, não, começo de nada... Freud é o

365
O Sexo dos Anjos

pensador do começo do fim... Lacan é pensador terminal... Finnegans Wake


chegará só-depois –está descrito em Joyce o momento do Revirão...
...é preciso não embarcar definitivamente na canoa retrô... não estou
aqui para desencantar ninguém, mas é preciso ultrapassar depressa essa fase
terminal... sair da pré-história da psicanálise... o que vem pela frente pode ser
assustador... claro que para quem não estiver preparado... preparado, é algo
muito relativo...
...ainda outro dia, eu assistia televisão – essa bobagem que todos
fazemos, graças a Deus –e aparecia a propaganda de um belíssimo aparelho
de som... um jovem, que explicava as maravilhas daquele som, dizia que ele
tivera podido escutar todo o Beethoven... aí ele explica: “Beethoven não está
com nada!”... a primeira reação de alguém da minha geração é achar que
aquilo é no mínimo boçalidade, mais do que isso, uma agressão à cultura tida
como essencial... mas, pensando em segundas vezes, por que não?... não que
Beethoven não esteja com nada, para quem possa verificar a sua produção
diacronicamente: de onde ele partira até onde ele chegou, os passos que deu,
todas as construções excelentes que fabricou... mas, para quem vê de trás para
frente, como o jovem da propaganda, ou sincronicamente, essa zorra da cultura
contemporânea, a massa sonora em sua complexidade na obra de Beethoven
tornou-se por aí coisa banal em quinhentas mil sub-inscrições de culturas, até
de massa... e quem não vem acompanhando linearmente o processo percebe
que, às vezes, até é mais pobre do que o que se vende fartamente por aí, no
pós-Beethoven... então, é preciso ter feito um percurso de verificação da im-
portância desse cavalheiro num certo momento onde as coisas não existiam
como tal, para se avaliar da sua contribuição... do contrário, tudo se banaliza
–como é a sorte de tudo...
...as coisas começam a comparecer folcloricamente para a desgraça de
alguma teoria ou de alguma invenção... depois vão se tornando tão banais que
até mesmo elementos importantes, regiões importantes do saber, se tornam tão
cotidianos, tão corriqueiros, que têm, na banalização, um processo de assimi-
lação radical –não vejo por que não... imaginem, por exemplo, qual não seria

366
Delenda Melancholia

a surpresa de um homem primitivo, em termos lineares de historiografia, ao


ver que num supermercado brasileiro, como de Nova Iorque, qualquer pessoa
faz contas, soma as coisas que comprou... o que já foi uma atividade para altos
intelectuais e altos criadores: fazer contas, nessa coisa difícil que se chama
aritmética... isto se banalizou e a tendência, dado o aquecimento dos meios de
informação, de comunicação, etc., é uma ampla banalização de maneira que,
sem ter passado pelos processos lineares de reconhecimento de valores, etc., os
sujeitos manipulam francamente e banalmente saberes muito avantajados...
...o que me faz temer que isso pelo que nós trabalhamos –chamado
psicanálise –esteja com os dias contados... se é que não se fará alguma coisa
para sustentar seu processo de crescimento e invenção... as coisas se banalizam
em níveis os mais diversos: existe essa banalidade da conta de somar (da alta
aritmética antiga) no supermercado, a dona de casa fazendo isso, e existem
também as banalizações dos Institutos Psicanalíticos, das Sociedades Nacionais
e Internacionais...
...demorou bastante, após a morte de Freud, a banalização em que se
tornou a famigerada IPA... Lacan não precisa de 10 anos para todo mundo estar
falando banalmente lacanês, e o que sobra disto tornar-se apenas uma disputa
de mercado –supermercado, para não deixar de dizer o termo... nós sofremos
freqüentemente invasões –francesas, por exemplo –que são absolutamente
desnecessárias porque a banalidade já chegou aqui... então, é nada mais do que
disputa de mercado... e aqui no meu terreno o mercado é meu –mercado por
mercado a guerra é outra...

* * *

...o que tenho dito na tentativa de dar um pequeno passo –para não
ficarmos apenas no mercado: nada tenho contra ele, só que não devemos ficar
apenas no supermercado –apesar da semelhança de alegorias e metáforas,
não depende de teísmo, nem de religião... se seguirmos a distinção de Kojève,
podemos encarar a religião como postura e promessa de outra vida com be-
atitude e/ou salvação... e o teísmo como postura e recurso a um outro sujeito

367
O Sexo dos Anjos

essencialmente transcendental... assim, há religiões teístas e ateístas, bem como


ateísmos religiosos ou não...
...poderíamos fazer um quadrinho:

...exemplo típico de religião teísta: o cristianismo, que promete outra


vida de salvação e nos remete a um outro sujeito transcendental... já o budismo é
exemplo de religião não teísta: mal ou bem promete a outra vida de salvação, sem
nenhuma referência a sujeito transcendental, com referência apenas à natureza,
não subjetivada... como exemplo de teísmo não religioso, com certa dificuldade,
dependendo das abordagens dos autores, podemos colocar diversos filósofos
como, por exemplo, Kant... sei que alguns vão discordar, mas é a título de exemplo:
não-promessa de outra vida, mas referência a um sujeito transcendental...
...talvez pudéssemos dizer que o não teísmo, o ateísmo, arreligioso, é
mais ou menos característico de certo aspecto típico das ciências modernas...
talvez, quem sabe, do próprio Freud... considerando-se, então, o que venho
dizendo de algum tempo para cá, a psicanálise fica numa situação só inscritível
num vetor perpendicular a essa superfície aí do quadrinho: ela não é nem teísta
nem ateísta... Lacan afirma que a psicanálise é um ateísmo verdadeiro porque,
para ela, Deus é inconsciente... portanto, há referência a um Sujeitão, a um
Deus, mas que não se transcendentaliza porque é inconsciente como o falante
que aí se refere, está metido no mesmo saco... mas que é referencial como
Nome de Pai, por exemplo... não se pode dizer que ela seja religião, nem não
religião, nem teísmo ou ateísmo, na medida em que não promete nenhuma
beatitude ou salvação, mas aponta para Outra vida –que é a mesma depois
de um Revirão... a psicanálise é o que escreve numa palavra única: arreligião
... ela não deixa de estabelecer laço social, de ter referência externa tanto do

368
Delenda Melancholia

ponto de vista do sujeito, quanto da Outra vida, sabendo que isso é para lá, no
Não-Haver... Revirão para Outro mesmo mundo... o Pai como Outro mesmo
lugar... de qualquer forma, há um antes e um depois, o qual pode ser averiguado
só-depois... nem por isso deixamos de pensar na imortalidade do Haver, velha
palingenesia do que há, na imortalidade do Pai e na imortalidade do Filho como
Falante... já que nenhuma morte pode ser atingida hic et nunc, in praesentia,
a própria saída da psicanálise não é, então, nem religiosa nem teísta, nem ar-
religiosa nem ateísta...
...ciência?... a psicanálise, pode-se dizer que ela (ainda?) não é uma
ciência... às epistemologias que ficaram tão em moda no vigor do discurso
científico, amarrando conceitos, se substitui necessariamente, na Teoria do
Conhecimento que a psicanálise pode invocar, em Gnoseologia ou em ca-
tegorias, mas não necessariamente epistemologias, conceitos... acontece que a
mais contemporânea ciência, ao invés de estar depurando conceitos, cerrando
epistemologias, está muito ao contrário... no dizer, por exemplo, de Cohen-
Tannoudji e Spiro, no livro La Matière Espace-Temps –um belo livro didático,
pelo menos da física atual, da Editora Fayard, 1986 –eles preferem pensar o
Universo em termos de categorias gnoseológicas e, não, de conceitos episte-
mologicamente fundados... aliás, Begriff, como usava Freud, é mais para idéia
do que para conceito...
...é a ciência, hoje, que se aproxima do tom da psicanálise... racionalis-
mos surrados e iluminismos de ocasião não garantem as lógicas possíveis...
qualquer iluminismo, hoje, pode ser obscurantista, ou se amarrar em lógicas
precárias para o tratamento do que é da linguagem... tudo isto não impede que,
com a teoria certa ou errada, talqualmente acontece na prática freudiana –está
aí Melanie Klein que não me deixa mentir –teorias certas melhores ou piores,
mais erradas ou menos erradas, acaba-se inventando tecnicamente –produção
artística, techné –algumas coisas de estarrecer...

* * *

369
O Sexo dos Anjos

...estamos em tempos de Supercondutores, em tempos de neutrinos...


e em tempos de AIDS... os supercondutores –que até brasileiros já acabam
de fazer, feitos do mesmo barro de que foi feito Adão –hão de criar situações
novas para o hábito sígnico de nossa gente... coisas espantosas poderão advir
–que já estavam aí, certamente, só que não se via e não se manipulava com
a freqüência que talvez se venha a manipular... os neutrinos não brincam em
serviço: atravessam todos e cada um e podem fabricar bombas de deixar quase
tudo em pé, menos os seus semelhantes, nós outros, neutrinos também... afinal
de contas, o que é a psicanálise se não a tentativa de reconhecer que o falante
é supercondutor e que é neutrino?... pior: de que o falante é parecido com o
vírus da AIDS?...
...Lacan inventou, certamente, essa boutade de ter dito que Jones lhe
contara que Freud lhe dissera, a Jones, em chegando aos States: “Eles não
sabem que estamos trazendo a peste”... só que estava errado: não era a peste,
era a cura... no que a cura, em termos analíticos, é idêntica à peste, em termos
biológicos... fomos superados pelo vírus... o que não conseguimos a tempo,
depois de Freud, produzir quanto à imunidade da neurose, da boçalidade, da
psicose, da perversão, etc., foi conseguido biologicamente por acidente ou
fabricação: Síndrome de Deficiência Imunológica Adquirida... o terror de nossa
era, ou do final dela, que já ataca mais próximos do que podemos confessar ou
imaginar... já matou alguns amigos meus... está para matar outros em breve...
e que faz o mesmo serviço que a psicanálise prometeu –só que do lado er-
rado... a psicanálise prometeu ser uma peste –mau nome, devia ser a cura –da
imunidade contra os movimentos do inconsciente, da abertura para todas as
infecções, de se deixar invadir por todos os aparelhos do simbólico, de permitir
todas as formações do inconsciente... chega um viruzinho de merda e faz isso
primeiro... mas com um ônus terrível...
...é por aí que passa a tal PRÁTICA FREUDIANA... no nível da Clínica:
destruindo as imunidades simbólicas... no nível da Paideia –para não se falar
da obscena pedagogia –, propiciadora de aberturas para acolher, ainda que na
banalidade, essa pletora de acontecimentos que estão vindo –e, não, por vir... no

370
Delenda Melancholia

nível da Política, melhor dizendo, Polética: criação de alguma diferocracia que


supere o nosso barbarismo... diferocracia, aliás, não vigente em parte alguma
dessa famigerada democracia por aí...
...é preciso ter a coragem de rumar os burros na direção da água, de
empurrar a vaca para o brejo, eventualmente... mas tentar, de alguma forma,
atravessar o burro fin de siècle... talvez contra freudismos e lacanismos fin de
siècle... todos eles mais ou menos herdeiros incontestes da cultura deprê, esta
representada mais nitidamente pelos existencialismos quaisquer...

* * *

...Antônio Sérgio Mendonça acaba de nomear aqui a aula de hoje:


Delenda Melancholia...

17/AGO

371
O Sexo dos Anjos

372
O peri-gozo

2
O PERI-GOZO

Início com a audição de Qui nem Giló,


com Luiz Gonzaga.

L’insuccès de l’Unbewusste c’est l’amour


L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre
LACAN

...certa vez Lacan teve a audácia de dizer isso aí: “O insucesso do


inconsciente é o amor / o não sabido que sabe da topada do inconsciente toma
asas no jogo da porrinha”...
...naquele mesmo dia em que lhes falei da primeira vez este semestre
–segunda-feira, 17 agosto passado –parece que a Fortuna acertava algumas
contas públicas simetricamente de dois lados:... de um lado, a morte secreta
do poeta do imposto de renda, logo-logo seguida das exéquias obscenas que
todo mundo ainda acompanha de montão, por jornais e revistas e tevês... logo
ele que, certa vez, dissera –lapidarmente, aliás –, instado a ceder uma entre-
vista, que não era “Verônica de capa de revista”... de outro lado, a morte de
um arrendatário de capa de revista, de um arrendatário da poesia... logo-logo
seguida das exéquias secretas que ninguém pôde acompanhar de fora e todo
mundo teme sem saber aonde aquilo vai retornar –sem se dar conta de que

373
O Sexo dos Anjos

aquilo sempre esteve por aqui... que desde a sua derrota na famosa e grande
guerra, chamada de segunda, que sua vitória bem conta do lado dito oposto e
que supostamente a derrotou...
...dois suicídios de macróbios terminais... um evidente e outro oculto...
se não por nada, por motivo que não precisa ser maior do que o tédio obrigatório
e, quem sabe, por vontade de gozar um gozo-Outro definitivo e sonhadamente
bem maior, mas que, infelizmente, simplesmente não há...
...mas a Fortuna não se esqueceu –embora poucos dias depois –talvez
para chamar melhor nossa atenção –de nos brindar com uma morte terceira,
nem clássica nem barroca, nem secreta nem obscena, embora tenha encenado
publicamente sua secreção... eis que o clássico moleque de rua, promovido a
peça de devoção depois de barrocas esfregações camerísticas com uma alta
dama teatral, explode, ele mesmo, em grand finale tragicômico, na cena maior
do crime sem correta direção –em exato não-senso –de volta ao papel principal
do qual jamais saíra, mesmo quando do cinematográfico e ecológico sucesso
de sua aposta em qualquer recuperação social...
...eis que os dois gumes da escandida faca daqueles dois primeiros
casos oficiais terceiramente se apresentam mais como punho de faca meio es-
quecida dos dois gumes de sua operação –para cair ambidestramente em nossa
mão mais como faca-cega de não melhor serventia do que passar a manteiga
supérflua, se não amenizante, no pão cotidiano de nossa própria enrabação...
aí o sentido está por se fazer...
...ao mesmo tempo secreto e obsceno desafiando qualquer camisa de
força moral, eis que um terceiro denuncia troca-troca geral, nos deixando per-
plexos sem outra que não certa ética, centrada no real, e que não nos oferece
nenhum definitivo gozo, mas tão somente aqueles que nos esbarram no périplo
do Haver –esse perímetro cujo gozo não é mais que um peri-gozo... perigoso
contorno que não nos oferece ACOISA assim assaz desejada justamente por
ela não haver...
...daí só o que nos sobra, o que só nos sobra, todo o nosso lucro, que
nos só sobra –é esse peri-gozo, que sobra mas não fica, a não ser o que dele

374
O peri-gozo

se obra como pura sobra –e a cujo fazer, seja o que for, damos o nome de
sublime-ação...

* * *

...ora, passando agora ao que seminarmente interessa, do meu peri-gozo


eu retiro um Revirão, isso que quero tomar como função catóptrica...
...inserir esse Revirão assim no falante, como no Haver, isto re-põe di-
versas coisas, vários conceitos, várias noções... revira pelo menos a abordagem,
mesmo sem revirar demais a conceituação... (essas coisas que coloco aqui meio
brandamente e superficialmente são tarefas mais precisas, mais elaboradas da
minha Bandeira do Recreio, que depois dará conta melhor disso)...
...tomemos, por exemplo, a diferença –nada mais nada menos do que
sexual –para vermos se ela se comporta de outra maneira uma vez que se coloca
o Revirão dentro do Haver...
...quero começar, devagar, por dar algumas coisas a respeito da noção
de INCONSCIENTE... a diferença dita sexual é colocada ultimamente com
valor simbólico a partir de um não-marcado original: desde Freud que se
propõe que não há marcação originária da diferença sexual no Inconsciente...
ao retomar essas coisas, quero lembrar de saída que não estou nas últimas
pegadas de Freud a este respeito, mas são pelo menos aquelas do texto de
1915 justamente chamado Das Unbewusste, O Inconsciente, cap. V, p. 187,
vol. XIV da Standard Edition... aí Freud fala das características especiais do
sistema Ics.: “Resumindo: isenção de mútua contradição, processo primário
(mobilidade de investimento)” –ou de ocupação, Besetzung –“atemporalidade
e substituição da realidade externa pela psíquica –estas são as características
que podemos esperar encontrar nos processos pertencentes ao sistema Ics”...
todos se lembram disso: não-contradição, atemporalidade, processo primário
e realidade psíquica...
...nessa tal estrutura do Inconsciente, Freud não encontra –e depois dele
parece que ninguém tampouco –nenhuma marcação originária da diferença:

375
O Sexo dos Anjos

o Inconsciente parece não saber a respeito da diferença enquanto diferenciada


–sabe de uma diferenciação, age dentro da diferença, mas não tem nenhuma
marcação, para determinado Sujeito, de uma diferença específica... é óbvio que,
se nós procuramos e não encontramos essa marcação, devemos certamente –
por isso nem Freud nem Lacan estão errados –supor que ela não há... mas não
há como?... não há de nunca haver, de nunca ter havido, de não ter nenhuma
possibilidade pretérita de alguma marcação?...
...quero propor, a partir do conceito de Revirão, uma outra abordagem
dessa diferenciação... seja qual for a herança biológica, isto porque o aparelho
que porta esse monstrengo chamado Inconsciente se deu sob forma biológica...
se o falante, então, é estruturado como o Haver, nesta estrutura de Revirão, o
que esta máquina porta quero supor que seja da ordem da NEUTRALIZAÇÃO:
qualquer que seja a antecedência constitutiva dessa ordem, se lá originalmente
compareceu um mecanismo que faz o reviramento, que propõe a passagem de
um lado para o seu avesso, isso tudo dentro de uma conotação unilátera –o
avesso sendo o mesmo lado, mas podendo, através da bifididade do ponto de
passagem, inscrever-se outramente como avesso propriamente dito –é pos-
sível o corte sobre a banda de Moebius transformando uma cinta unilátera
em bilátera... portanto, basta demarcar essa fronteira para as cores já estarem
diferenciadas, mas há passagem direta de uma para a outra, ou, pelo menos,
apenas se tem uma fronteiria desenhada ainda antes de um corte definitivo...
se há, então, esse aparelho de reviramento, pouco importa que haja marcação,
ou uma série de marcações anteriores, porque elas serão elaboradas por aves-
samento e, mediante esse avessamento, as coisas se neutralizarão...
...com isso quero dizer que, ao contrário do que se reforçou no pensa-
mento ocidental referido direta ou indiretamente à psicanálise, a partir sobre-
tudo da década de 60, de que era como se tudo partisse de um vazio, de uma
não-inscrição, prefiro colocar que a existência dessa máquina de reviramento
dentro do Haver, e sua repetição dentro do falante, não elimina as eventuais
marcações prévias, a possibilidade de pensá-las, mas permite a neutralização
dessas marcações... e acho que a coisa começa a ficar um pouco mais rica se

376
O peri-gozo

pensarmos assim... sobretudo, porque certos conceitos começam a encontrar


ancoramento mais concreto... vamos esmiuçar isso mais um pouco...
...vejamos o modo como eu mesmo trabalhava antes –está escrito no
texto chamado O Pato Lógico –a partir dessa idéia inaugurada por Freud –que
não era tão fanático assim por ela, ele oscilava um pouco –mais depurada
por Lacan, de uma verdadeira não-inscrição originária e um processamento de
inscrições posteriores, todo por via do simbólico... neste aparelho que tento
desenhar não há necessidade de fazer distinção entre Natureza e Cultura, pois
tudo é da ordem do ARTIFÍCIO, do simbólico... mesmo isso que se chama
natureza é uma construção da mesma estrutura do simbólico, só que “materi-
alizada”, se quiserem o termo, nas configurações que aparecem por aí... (mas
há um Sujeito pelo menos suposto por trás disso... e isto não é anti-lacaniano
de modo algum)...
...essa coisa se estatuiu assim... começamos a partir da idéia de uma
não-marcação, de uma marcação posterior em função dos aparelhos culturais,
etc., mas já em outros Seminários também andei fazendo a crítica desses mesmos
aparelhos culturais dizendo que eles se espelhavam, et pour cause, e porque há
estádio do espelho, talvez até pela cultura, sobre as imagens oferecidas aí pelo
dito natural... tanto é que denunciei a tal de Interdição do Incesto como o tipo
de computação, de computador, que se espelhava num modelo reprodutivo...
...quero dizer agora que o que é compatível com a estrutura do Revirão
e do Pleroma é pensarmos que, no seio de uma vasta configuração – diga-
mos que aleatória, foi o que se configurou nesse estágio do Haver –surge
a Repetição dessa máquina primordial que pertence ao próprio Haver... e, ao
invés de o falante ser o herdeiro de uma não-marcação, por mais marcado que
fosse –como o é de fato na ordem biológica, com discursos absolutamente
fechados semelhantes ao animal, lá inscritos numa certa programação genética:
essa coisa de haver macho e fêmea, isso e aquilo –essas marcações nos são
dadas, mas lá acontece o surgimento de uma maquininha de reviramento que,
para qualquer marca disponível, apresentada, propõe o seu avesso – e isso
neutraliza o processo...

377
O Sexo dos Anjos

...dizer que não há marcação e que qualquer marca é neutralizável parece


que dá quase na mesma, mas não dá não... para se dizer que a não-marcação
é a originária, tenho que hipervalorizar o simbólico – esse metaforonímico
que usamos entre os falantes –com a outragem desse processo: o encadeador
desse significante que vai produzir esse processo como se ele viesse não se
sabe de onde, ele estava aí... ao passo que, se penso que há essa máquina de
reviramento, essa outragem já era sugerida pela própria simbólica do natural...
quando Lacan insiste distinguindo a ordem simbólica dos falantes como a deter-
minante das modalidades de operação de um ser falante –as entradas que vão
acontecer vindas do Outro, como grande campo simbólico –ele isola –o que
é normal no seu momento de fala, não há erro nenhum, mas é um momento de
isolamento –o simbólico do resto... então, há uma não-marcação originária e
o que recolho para fazer marcações pertence ao campo do simbólico tirado da
ordem falante que aí está, da ordem simbólica que já encontrei... mas quando
terá surgido isso?...
...a tendência do pensamento estrutural é não dar bola para esse surgi-
mento: estava assim, a estrutura é assim, funciona assim... é muito importante
dizer isso... mas podemos talvez enriquecer um pouco mais o processo dizendo
que essa mesma ordem simbólica que o falante, neutralizado de saída, em
branco, encontra e começa a assimilar para suas marcações significantes, ela
já está sugerida no campo mesmo do Haver enquanto natural... são marcações
que estão disponíveis, fechadas dentro de um grande sistema de funcionamento
no momento dado – se quiserem podem chamar de Universo, A Coisa, isso
que está aí, disponível no momento dado e não é totalizante: é em si mesmo
parcial, as possibilidades estão em processo... entretanto, se algum aparelho,
no que se apercebe disso, revira isso e avessa, o que ele faz?... amplia para a
totalidade porque mesmo em lá não havendo, está proposta a sua havência por
avessamento, ele se propõe como totalidade do que há, do avesso do que há...
no que faz isso, torna-se um ponto morto, um ponto central dessa catoptria,
que é o lugar terceiro entre as duas aparências do Haver... nesse momento aí
ele é ternário e compatível com a função, com a estrutura lógica ternária do

378
O peri-gozo

próprio Haver que não é binário, como já coloquei semestre passado... então,
este lugar terceiro que Lacan freqüentemente atribuía ao Sujeito, quero pensá-lo
como sendo o ponto neutro da catoptria, que dá essa condição de não-marcação
diante do marcado: não é preciso que se venha sem nenhuma marcação para
que a tabula rasa se apresente enquanto neutralização dessa marcação por seu
avessamento, +1 e -1 se neutralizam – a metáfora seria esta...
...isso amplia um pouco o campo porque posso propor para minha re-
flexão que até se tem de onde tirar o que originariamente aconteceu na ordem
simbólica do falante que é nada mais nada menos que a disponibilidade das
diferenças, disponibilidade de significantes, se quiserem, que vêm do real, do
natural, do Haver (que é o termo correto) sendo avessadas por esse aparelho
catóptrico, neutralizando tudo e possibilitando que o Sujeito saia das marcações,
mediante a neutralização, para o avesso das marcações... isto para aceitar até
o que não há disponivelmente in natura, mas que ele possa requerer na sua
posição simbólica avessante desse Haver dado como tal...
...se concebo, então, o reviramento, tenho de onde tirar essa constituição
simbólica do falante, que faz metáforas até sobre o que não está disponível...
consegue fazer isso que chamamos de CRIAÇÃO... Lacan não está errado
quando diz que só o significante se faz ex nihilo, se esse nada for o ponto de
neutralização... mas eu me pergunto mais para trás: por que esse nada se ofe-
rece, sobretudo quando ele não se dispõe para nós in natura?... ele só se oferece
porque é uma máquina de Revirão, a qual revira o quê?... nada?... não!... revira
o que está disponível... isto faz uma mudança de grau exagerado, em nossa
abordagem pelo menos... posso conceber a partir daí que o que se oferece como
criação do significante no seio dos falantes é nada mais nada menos do que
a recuperação do reviramento do que se oferece na estagnação sincrônica no
momento contemporâneo a esse falante... ele ultrapassa os dados porque revira
não só os dados como sua combinação... não há, então, criação do significante
absolutamente novo senão a partir do nada da neutralização, que se faz em cima
de algo que se oferece por dicção divina... e nossa criação deixa de ser misterio-
samente vinda de nada para vir de alguma coisa: a partir de algo dado, minha

379
O Sexo dos Anjos

máquina revirante possibilita o que aí não está... a invenção, a criação, o ato


criador é o ato de passar por esse ponto morto avessando o que se ofereça...
...um animal, dentro da etologia fechada do seu modo de haver, funciona
nos limites de sua informação e da informação ecossistêmica... funciona nos
limites dos significantes propostos por natura, se quiserem, pelo Haver... ao
passo que surgiu um outro animal que tem que propor a existência de um Su-
jeitão –que ele sempre propôs, sempre lhe pareceu necessário fazer a conjetura
divina –na medida em que se sente repetidor de algo que extrapola qualquer
etologia e qualquer ecossistêmica... na medida em que ele pede o que não há
aqui e agora, mas o que se oferece como possibilidade mediante o seu processo
revirante de neutralização... ex nihilo, então, na produção do significante, fica
não sendo mais do que a passagem por esse ponto neutro –que nem por ser
metaforicamente morto deixa de haver, e é terceiro lugar em comparação com
os outros dois que ele se coloca...
...isto muda inteiramente a abordagem, porque possibilita que todas as
criações do falante no seu campo de artifício, nessa tal ordem simbólica, possam
ser conjeturadas como propiciadas pela disponibilidade significante dentro do
Haver e avessadas por essa máquina que só ele, como presença histórica até
hoje, tem... isto desmitifica o não se sabe de onde vêm as palavras e as coisas...
vêm do que há!... a própria criação vem do cruzamento de uma fronteira dentro
do que há, de uma fronteira oferecida dentro da superfície unilátera, apesar da
fronteira onde passará o corte da sexão...
...podemos, então, supor, por exemplo, que essa falta de marcação da
diferença sexual que Freud encontra nos seus falantes “divanizados” não é senão
aquela marcação que está naquele tipo biológico que lá está deitado –macho,
por exemplo, com tais características, etc. –e que perde o dar-se conta constante
dessa marcação porque ela se avessa na sua estrutura de representação...

* * *

...o não-marcado, o não contraditório do Inconsciente é essa máquina de

380
O peri-gozo

Revirão que neutralizaria as próprias marcações previamente oferecidas... com


esse tipo de abordagem, começo, então, a pensar que essa máquina funciona
espontaneamente, sim, ela é a estrutura do inconsciente, sim, para mim é até
mesmo a estrutura do Haver, porém ela encontra grandes empecilhos para o seu
funcionamento, que são a inércia do dado: a inércia do Haver tal como ele se
apresenta aqui e agora... portanto, não posso fazer confiança nesse avessamento
de modo a supor que ele vai operar espontaneamente e, assim, trazer o falante
à plenitude de sua manifestação... não vai!...
...reintroduzo aqui o conceito de PROGRESSO porque é compatível
com esse raciocínio e diz que a inércia das marcações pode fazer tanta pressão
que há evitação constante, no falante, de avessar-se por inteiro: há uma inércia
de referencial, nem que seja por questões de sobrevivência, que se ela se im-
põe a certos falantes, ela funciona como um baita recalque dado de graça, sem
nenhuma intervenção social... o sujeito se apega à sua imagem corporal, que não
é tão imaginária assim quanto se pensa... há um dado de real, no sentido laca-
niano, na incorporação a essa presença fálica, pelo menos –que Lacan chama
de conceito porque nela se pega, porque se agarra isso... e o sujeito que muito
se agarra a isso, na sua inércia de animal biológico, evitará o avessamento...
isso vai dar em pensar que uma das grandes tarefas –senão a fundamental, a
precípua, senão a única –da psicanálise é forçar no sujeito, os avessamentos
das marcações para que ele possa viver em terceiro lugar, desde esse terceiro
lugar, controlando a aparente binariedade do sistema...
...esse avessamento nada tem a ver com homeostase... esta, é um
processo de acomodação dentro de um cinturão demarcado de funções... a
homeostase conta com a inércia, com a significação dos aparelhos, então, é
um processo de adaptação-limite... mas, com minha máquina, isso rompe,
neutraliza, simplesmente coloca uma situação de indiferença...
...não é o processo da diferenciação que cria o SUJEITO... ele se
apresenta de diferença para diferença –nada errado aí... mas, por trás disso,
é no processo de indiferenciação que ele tem fundação: ao contrário do que
se pensa, é como ocupante de um lugar de indiferença que o sujeito emerge,

381
O Sexo dos Anjos

o qual sujeito, a partir daí, só encontra expressão entre uma diferença e outra
diferença... mas o lugar que ele ocupa, justo para reconhecer a diferença, é um
lugar de indiferenciação... e é justo essa indiferença que um animal não com-
porta, não pode indiferenciar... no vigor da diferença o sujeito se representa de
diferença para diferença, mas estou procurando mais atrás: o que funda esse
lugar capaz de se demarcar a ponto de se representar de uma diferença para
outra é esse lugar de indiferenciação, que é emergência absolutamente nova
(porque a mais antiga) dentro de um estado do Haver... a mais antiga porque
o Haver na sua estrutura maior, funciona assim: é a partir da indiferença, ou
seja, da simetria hiper-simétrica, que o sujeito começa a produzir quebras de
simetria... trata-se, então, de uma guinada... não desdiz o que foi dito, mas olha
um pouco mais para trás nas fundações do processo...
...o Inconsciente se torna, portanto, como conteúdo, um grande saco
de gatos, mas, na sua essencialidade, é apenas uma maquininha de Revirão...
suponhamos que isso seja encontrável em nível de análise de estrutura cerebral
–não se encontrou ainda nada de muito bom, mas se procura... o que minha
conjetura propõe é que essa complexidade cerebral não é senão uma máquina
catóptrica: uma máquina de avessamento das informações, das Bejahungen que
possam ter entrada nela... o resto é conteúdo, é quebra de simetria, é processo
de diferenciação... ao mesmo tempo, então, que o inconsciente é essa totalidade
do Haver, é muito mais do que o Haver propõe nesse momento porque ele
próprio é inconsciente, ele próprio tem futuro e passado, embora infinitamente
grandes... ele é essencialmente nada mais nada menos que uma maquininha
de virar pelo avesso... só isso!... e maquininha de virar pelo avesso em ritmo
ternário –isto é que é importante...

 Pergunta –Há conseqüências muito importantes aí, pois estamos como que
podendo vivenciar isso com certo sucesso literário do livro O Tao da Física. É
perigoso, no sentido em que se, por um lado, temos, pelas indicações da física,
algumas coisas que interessam, por outro, não se tem indicações desse ponto
terceiro que você está questionando. A í temos um risco grave. Li recentemente

382
O peri-gozo

um artigo de alguém que mencionava que na época de Weimar, antecedendo


o nazismo, na década de 30, livros como esses circulavam...
...circulavam como outros também... isso é tolice... parece até que a
gente saiu da época de Weimar... eu não quero ser o salvador da humanidade...
estou entendendo você, mas estou sendo reativo...
 P – O que estou querendo dizer é que se não se faz referência a essa coisa que
é suposta como sendo o espelho que está lá, ela fica na ordem do indizível.
...prefiro dizer que os físicos pensam brilhantemente, vêem coisas
incríveis, mas não encontram uma boa referência... isso que você está denun-
ciando mais provavelmente se tornará um terror não certamente nas mãos dos
físicos, mas nas dos leitores tolos dessa física... não tendo escapatória, farão
como faz, aliás, Fritjof Capra, que mistifica em torno de discursos velhos, o
que não esclarece muita coisa... minha tentativa é justamente escapar dessa
inércia e apresentar algum Esquema que tenha futuro... nossa época está peri-
gosamente descambando para o besteirol... é preciso inventar algo que nos dê
algum futuro... o que é diferente de tentar salvar a humanidade... eu não estou
a fim, ela que se salve, se puder...

* * *

...o que é o RECALQUE ORIGINÁRIO, que Freud apresentou miti-


camente e se manteve até hoje como uma conjetura mítica nalgum lugar para
fundar o processo recalcante dentro da ordem simbólica?... há uma espécie de
semi-ótica, de hemiplegia, quando não se faz a conexão direta natura/cultura...
se faço um corte radical, fico hemiplégico e, por isso, talvez tenha que fazer a
conjetura de um recalque originário mítico... mas, deixando de ser mítico, ele
pode ser pelo menos uma chave teórica para as coisas funcionarem...
...ao passo que, se pensarmos a estrutura de Revirão, está evidenciado
o que é o recalque originário concretamente... se no seio de uma articulada e
definida momentaneidade do Haver nasce, ressurge um ser que comporta esse
reviramento, as marcações por ele trazidas e fazendo pressão para sua sobre-

383
O Sexo dos Anjos

vivência, para a manutenção desse sistema vivo, não são pressão suficiente
para recalcar os avessamentos que pintarem?... pois se a espécie sobreviveu
foi porque não enlouqueceu de saída: ela se afez às disponibilidades sígnicas
que estavam marcadas nas operações animais que ela portava... para o que ela
teve que, freqüentemente, operar o recalque dado, que é originário –não há
outro...
...não preciso mitificar nenhum recalque originário para saber que se um
sistema tenta se impor como sobrevivente dentro da sua especificidade, da sua
parcialidade, ainda que porte a máquina de avessamento e de neutralidade, ele
operará, por questões de sobrevivência, com maior ou menor eficácia –tenho
que pensar nisso: quantos milhões não terão morrido de loucura porque aves-
saram na hora errada?... isto faz pressão para um recalque originário dado pelo
aparelho biológico...
...isto começa a mudar um pouco certas visões, mas é estritamente
freudiano... Freud sempre fez questão de não paranoizar demais, de não de-
lirar demais... sempre fez questão de dizer que, se este troço se dá no falante,
está inscrito em algum lugar, concretamente... esse interregno que tivemos de
viver, de suspender essas questões e partir para a visão das estruturas dentro
da linguagem, foi da maior importância, condição sine qua non de se chegar a
alguns achados... mas é hora de se distender um pouco... o que noto em Freud
é a visão lúcida de exigir que isso não venha diretamente do céu, de repente,
mas que esteja aí em algum lugar... Freud era tão imodesto que supunha poder
manipular diretamente tudo isso... ele não procurava salvar a psicanálise como
uma eterna função... ele até achava que uma tecnologia avançada poderia intervir
nisso diretamente... tais diatribes são questão de mercado: o analista não quer
perder o emprego para o bioquímico, e o bioquímico não quer perder o seu...
nada a ver com o pensamento... o que não é a mesma coisa que se acreditar que
já exista manipulação direta, quando não existe... psicanálise ainda tem vez
porque não existe, porque não está disponível essa manipulação direta?...
...os signos são dados, são formações do Haver... o que nossa máquina
tem, é que ela pode avessar esses signos: aí sim, e só aí, eles se tornam signifi-

384
O peri-gozo

cantes... isso que Lacan diz do “significante no seio do real” –porque ele opera
o significante como metáfora –são signos dados... e, diferentemente de outros
seres que conhecemos, é nossa competência plerômica que nos permite, em
avessando isso, induzir o significante, o qual, se o que estou dizendo é verda-
deiro, se impõe imediatamente como halo significante, não hemiplégico mas
ambidestro... isto porque uma terceira posição se impõe –não haveria essas
duas se não houvesse uma terceira... a dificuldade é falar dela...
...a proposta é, então, de que não é preciso mitificar, não é preciso
fazer referência a um ponto indizível, porque, simplesmente, se a máquina é
de avessamento, o disponível se avessa, ou pelo menos tem a possibilidade de
se avessar... isto tem conseqüências enormes, e temos de tratá-las lentamente,
cuidadosamente...
...qual é, por exemplo, a relação da PEDAGOGIA com o que a psi-
canálise possa fazer, não direi de pedagógico, mas dentro de uma PAIDEIA
possível?... houve um tempo em que a psicanálise se propunha intervenções
sérias na pedagogia... Freud apoiou: um livro, pelo menos, era da filha dele, e
ele lhe tez um belo prefácio... Anna Freud ficou encantada com psicanálise e
pedagogia... mais recentemente, na vertente dos ditos lacanianos, tenta-se fazer
uma distinção absoluta em que esses discursos se mostram incompatíveis... isto
porque estão tomando apenas a ordem discursiva: na comparação discursiva a
psicanálise não pode ter nada a ver, nada a fazer com a pedagogia, pois que esta
é uma injeção de saberes de modo a produzir um certo sujeito... a psicanálise
é o contrário disto... isto é verdade no regime discursivo... Cathérine Millot, o
máximo que aconselha é que os professores sejam analisados, é a única relação
que ela vê da psicanálise com a pedagogia... eu, não vejo assim...
...se faço, portanto, a hipótese de que a inércia, a inércia do recalque
originário –que tirei do mito e botei no concreto –impede, ou pelo menos tira
bastante, a propiciação do avessamento, existe (não direi pedagogia mas) uma
Pedousia, uma PAIDEIA DA PSICANÁLISE, que, ao contrário do processo
de introjeção que a pedagogia patrocina, tem a ver com a operação constante
sobre os sujeitinhos, desde o seu nascimento, no sentido de facilitar, urgentizar,

385
O Sexo dos Anjos

acelerar o seu processo de avessamento... o que é drástico, pois os exercícios


de avessamento são drásticos para cada sujeito... é aventurar-se na loucura:
toda vez que o falante, na sua especificidade, aceita avessar algo dado, ele se
aventura num pouco de loucura porque está adentrando o não disponível... daí
que os ditos gênios, na arte, na poesia, na ciência, etc., são sempre represen-
tados, no seio da civilização, como certos monstrinhos... todo mundo diz: “o
cientista vai acabar fazendo merda, ele vai destruir”... este é o papo do neurótico
dentro do reforço e complementação do recalque originário evitando os aves-
samentos... esses criadores nos levam para fora do que há, do que é disponível
aqui e agora... vejo, então, uma tarefa paidológica, se não pedante –palavra
que também vem de paidos e quer dizer “ensinante...” mas o pedantismo da
psicanálise, ao contrário, do pedantismo universitário, ou o pedagógico, deveria
(não diria educar, que vem de ducere, conduzir), ao contrário da pedagogia que
supõe coisas dentro para produzir um certo sujeito, investir constantemente no
processo do sujeito, no processo do seu avessamento...
...nós outros, supostamente analistas, pegamos o matema da psicanálise,
segundo Lacan, , e nos referenciamos freqüentemente à produção final
do trabalho analítico: o destacamento lá de um tal de S1 de um sujeito... a tarefa
analítica, freqüentemente, tem sido reforçada nesta produção... eu me pergunto
se ela, sobretudo mas não apenas, do ponto de vista dessa PAIDOLOGIA, não
deveria acentuar no $, pois o de que se trata é do Sujeito em que Lacan vota
como operador da outragem para produzir o S1... há uma tarefa formativa de
sujeito liberado, digamos assim, para a psicanálise... não só em nível de divã,
mas em nível de mundo, de o analista intervir, e o mais cedo possível –não
só com aparelhos ditos analíticos de divã –no sentido de facilitar, às vezes
até ensinando seus teoremas, que o sujeito venha a avessar... com isto se faz o
sujeito avessar, não só pela intervenção, na escuta do que ele tem a dizer como
verdade, mediante o que é chamado de interpretação, como também pela ex-
posição a ele de avessamentos constantes no saber, no saber que ele já porta...
v.g., a prática do poeta...
* * *

386
O peri-gozo

...isso me faz, também, repensar o estatuto da PSICOSE... na tal Fora-


clusão do Nome do Pai... ninguém sabe explicar bem que coisa isso seja...
repetem que psicótico está em foraclusão, mas o que é isso?... foi uma grande
sacada de Lacan: evidenciou-se que há essa foraclusão, sim, muito bem, palmas
–mas não se sabe bem o que seja... acho que no entendimento do Revirão, isto
se esclarece um pouco: se é verdade que há uma inércia original fundamentada
em concretude de recalque originário, isto significa nem mais nem menos que
cada sujeito precisa, a cada momento, ultrapassar, sim, por reviramentos, sua
disponibilidade sígnica, mas com certo ritmo, se não ele rompe, digamos, a
película externa de sua constituição...
...fica evidente que o conceito de Nome do Pai não é outra coisa que
o que Lacan chama de “grande estrada”, grande ponte, algo que contorna, que
não é nada mais nada menos que uma instância sígnica-limite, a cada tempo,
para cada sujeito... o melhor dos pensadores –chame-se ele Jacques Lacan
ou Sigmund Freud –é limitado: há uma dispersão sígnica que ele consegue
suportar, ultrapassado isto, o sistema inteiro desaba em fragmentação alucinada,
delirante... são reviramentos que, porque o sujeito não os suporta, ele torna a
prendê-los em estruturas constituídas defensivamente...
...a tal foraclusão não é de ser pensada apenas como algo prévio, se
minha tese é boa... Lacan, em seu Seminário, oscila entre algo que não se
constituiu ou que se destruiu –e mantém essa dicotomia, essa equivocação...
entretanto, fica mais firme na visão da não-Bejahung, porque encontrou ali um
aparelho teórico para se garantir... força um pouco a questão da não-Bejahung, da
não-entrada, da não-constituição desse significante... penso que seria necessário
que um sujeito tivesse nascido com sua estrutura biológica defeituosa, para não
ter isso... se não, o que aconteceu, ainda que na psicose infantil, foi que, por
alguma imprudência não situada, o sujeito esbarrou numa ruptura de signo que
ele não pôde suportar, e não conseguiu arranjar a tempo... o Revirão ultrapas-
sou os momentos necessários para a sua articulação: o fenômeno da angústia
superou de muito a competência de organização num momento dado... se é
assim, qualquer um de nós, em situação drástica, pode eventualmente cair na

387
O Sexo dos Anjos

psicose, ou seja, rompe-se a ordem sígnica que nos circunda, como limite, e
que Lacan quis chamar de Nome do Pai... rompe-se a idéia que o sujeito faz
do que seja o Haver, ou do que seja Deus...
...daí esse estatuto reacionário do POVO... povo é a gente... para sobre-
viver, ele precisa dessa referência, ainda que ela o torne escravo... está aí uma
outra explicação para o tal servil do La Boétie... fica no ar esta pergunta: por que
essa vontade de servidão?... porque o povo é imbecil!... isto não é xingamento,
é constatação: as inércias sígnicas que ele tem que sustentar para não sucumbir,
em regime de significação, o fazem preferir a tirania à loucura...
...a psicanálise só é uma boa opção dentro do que Lacan chamou
“prudência do analista”... em nível de povo, é uma ótima opção, na me-
dida em que quanto menos ele se virar mais servil ele será: quem não se
vira, morre do mesmo lado... é uma faca de dois gumes... aquele sujeitinho
lá, cada um de nós, a gente sente que está nas brebas do limite de um
processo de contestação sígnica... por isso há progresso no saber: Freud
coloca certas coisas, vem Lacan dá um passo... porque se está dentro das
possibilidades sígnicas do momento, vai-se indo sem se arrebentar, sem se
enlouquecer...
...não faço a menor idéia de se isso que se teria rompido, uma vez
rompido, seja possível de suturar... pelo menos, quero supor que, por esta via
de compreensão da psicose, pode-se tentar tomar o tal Nome do Pai em estrita
coincidência com o delírio em que foi tornado, o que alguns psiquiatras já
sugeriram... se um outro entrar em estrita coincidência com o delírio formado,
e que é na verdade uma “sutura” do rompimento, talvez a partir daí se possa
mesmo suturar... estou falando em coisas que devem ser pesquisadas, estou
me arriscando nos limites das minhas competências sígnicas, e não estou a
fim de ser herói...
 Pergunta –Lacan, no Colóquio de Bonneval, diz que o Inconsciente é o que
falta ao sujeito para restabelecer seu discurso concreto, para restabelecer
seu signo primordial. A psicose seria a impossibilidade do restabelecimento
do Inconsciente...

388
O peri-gozo

...exato... do restabelecimento de um cinturão capaz de ordenar o que


se passa no Inconsciente... o Inconsciente de um certo sujeito precisa, num
momento determinado, estruturar-se signicamente por um cinturão, o qual
Lacan chama Nome do Pai...
 P –A questão fundamental para Lacan é da imago paterna. O Nome do Pai
é um tipo de tradução da imago paterna...
...é imago mesmo, no sentido de limitação sígnica...
 P –Alguns fingem adotar o teu pensamento, mas ficam falando lacanês...
Você está dizendo uma coisa mais grave do que esse limite do Nome do Pai.
Está falando de uma imago que teria a ver com essa estrutura de um signo
primordial que teria valor, ele sim, de recalque originário. Aí, você trouxe a
questão da psicose: quando houvesse uma coincidência no delírio desse outro,
a coincidência seria porque rebateria nessa imago originária e poderia abrir
ou não a possibilidade de redenominá-la como Nome do Pai...
...é, pelo menos, uma hipótese de trabalho... tal delírio vem em substi-
tuição à ruptura do Nome do Pai... e não se sustenta, não tem nem constância:
quando se pressiona o psicótico, ele muda de composição... vejam vocês que,
se a hipótese não é das melhores já surgidas no planeta, pelo menos deve ter
alguma utilidade...

* * *

...ainda nesse texto d ‘O Inconsciente, p. 171, Freud põe uma frase que
freqüentemente esquecemos de lembrar: “Em Psicanálise não há escolha para
nós senão afirmar que os processos mentais são em si mesmo inconscientes”...
é uma frase de muita força... Freud, antes ainda de dizer isto, disse, no mesmo
texto, que não há acessibilidade direta ao inconsciente senão por vias de
tradução... daí, ele ter paquerado os sonhos, os atos falhos, etc., para cercar esses
objetos... se, apesar de todas as Tópicas, dos estudos de Lacan sobre o ego, etc.
(Lacan insistiu que o Inconsciente é que é conceito fundamental e, não, ego,
id e superego), temos que repensar um pouco, em cima dessa esquemática, a

389
O Sexo dos Anjos

estruturação desse tal Inconsciente... por que a ele não se tem acesso direto?...
direto por via externa... por via interna, ele está funcionando e tenho acesso
direto o tempo todo... mas não tenho acesso direto por via externa, de transmis-
são... por que não há esse acesso direto e por que é preciso tradução?...
...vou me aventurar um pouco ainda hoje nisto... vejam que não estou
fazendo um Seminário exaustivo... estou abrindo frentes...
...se pegarmos a construção que Freud fez sobre o aparelho psíquico,
o que ele propõe na 1ª Tópica?... Inconsciente, Pré-consciente e Consciente...
é claro que, freqüentemente, ficou misturando o pré com o consciente, mas,
também, por vários momentos, ele deixa nítida a distinção entre os dois...
sabemos que há uma passagem –desde Freud e ainda em Lacan –mais ou
menos à vontade entre o Consciente e o Pré-consciente... difícil é passar ao
In... por quê?
...operamos com as maquininhas disponíveis... ainda naquele recalque
originário de que falei, de uma certa metade que tem que ser avessada e que
resiste, existe mais um fator... a estrutura sígnica herdada do mundo biológico
é nitidamente binária, e qualquer aparelho de análise binária da conta disso
–num laboratório de biologia, por exemplo... ao passo que, se a estrutura que
apresentei está certa, o aparelho de avessamento, que ressurgiu com a espécie
humana, é ternário... ou seja, a estrutura do Inconsciente é ternária... e há que
ser traduzida em binariedade para poder surgir no nível do pré e do consciente...
daí a dificuldade de qualquer acesso direto: a língua –embora aparentemente
se revire por pressão do Inconsciente, por pressão da máquina de avessamento,
embora na poesia ela obrigatoriamente indique esse terceiro lugar –sua apa-
relhagem sígnica no sentido saussureano é binária... este é o grande problema;
a própria língua funciona, no seu cotidiano de expressão, binariamente, tendo
que traduzir algo que tem estrutura ternária... algo aí se perde...
...é preciso, então, o poeta se virar, por meios expressivos, para incluir
no processamento binário da língua uma indicação de terceira posição, mas
sem apresentá-lo, só podendo indicá-la... pensemos no golpe genial de Lacan
quando retira a enunciação dos embreadores de Jakobson... quando Jakobson,

390
O peri-gozo

naquele texto famoso, separa Sujeito do Enunciado e Sujeito da Enunciação e


cria essa idéia dos embreadores dentro da língua, ele está alcançando o nível do
Inconsciente?... não... Lacan percebe isto e diz que o sujeito da enunciação só
se distingue em coisas como, por exemplo, um não expletivo, o qual é um não
de equivocação que só tem sede neste terceiro lugar... de dentro da binariedade
se põe uma equivocação indicadora desse terceiro lugar de expectativa de quem
está em terceira posição com-siderando o sim e o não... e indicando esse terceiro
como ausente... só que nessa indicação, presentifica-se esse terceiro...
...teríamos, então, o seguinte quadro:

...no nível da enunciação de que a psicanálise trata, no Ics., há lógica


ternária, que aparece com dificuldade no nível gramatical e, não, apenas
sintático... nível gramatical no Pcs. –e aí dá até para livrar “metade” da cara
do Chomsky: se o colocarmos no Pcs...
 P – O que eles chamam de inconsciente nada mais é do que uma estrutura
gramatical implícita do Pré-consciente.
...vemos os lingüistas desesperados, fazendo cálculos incríveis para
nos oferecer o quê?... a gramática do Pré-consciente –isto é binário, cabe nas
maquininhas de Chomsky...
...ao passo que, no nível do Consciente, tanto no sentido lacaniano
quanto no freudiano, a coisa não chega nem a ser binária, é unitária: aqui e
agora, cada frase que ponho pode ter, em vertente Pré-consciente e Inconsciente,
alguma sincronia, mas, no Consciente, só se opera a diacronia... peguem o Semi-
nário sobre O Ego, de Lacan, e vejam o exemplo que ele dá da não-existência

391
O Sexo dos Anjos

de uma pessoa etc., e o aqui e agora da impressão do reflexo da montanha no


lago –aqui e agora diacronicamente... cada vez que faço a pronúncia de uma
frase, tenho condições pré-conscientes de dialetizar, condições inconscientes
de poetizar, faço aí pleromia, pré-conscientemente é que faço a sincronia... no
nível inconsciente, faço uma pleromia do dito, mas a tradução que posso dar
passa pela vertente do aqui e agora, hic et nunc, só uma vez, só um de cada
vez... ou seja, o Inconsciente, que Freud coloca nas alturas, no nível mais
elevado, é logicamente o mais pobre dos três... Freud não está sem razão: no
nível da possível SUBLIMAÇÃO –como diz a música que botei hoje no iní-
cio: o negócio é cantar, agora não posso fazer outra coisa, há que cantar –há
forçação de barra, é o caso de dizer, de traduzir linear e sincronicamente o que
é da ordem do dialético e do plerômico... Freud faz essa exigência como uma
exigência ÉTICA... tenho, então, uma exigência ética de me comportar segundo
a especialidade da minha estrutura que é de Revirão, mas tenho medo, evito...
e só se pode fazer isto mediante operações de tradução de nível ternário para
binário, e para linear... mas é preciso que eu reconheça um Sujeito do Enun-
ciado grafado aqui e agora, um sujeito da embreagem, para falar no Jakobson,
grafado, disponível pré-consciente, e um verdadeiro Sujeito da Enunciação
disponível em fase ternária como inconsciente...
...o que acontece no nível do Ics. freudiano –e, portanto, lacaniano: não
que seja o mesmo, mas vai dar tudo no mesmo lugar –é da ordem do Revirão...
o que acontece no nível do Pcs. é da ordem da divisão, divisão dialética... no
Cs. é da ordem da discriminação, do aqui e agora discriminado do outro lado
possível, da outra coisa possível... o Inconsciente é absolutamente plerômico...
enquanto que o Pré-consciente é dialético, o Inconsciente é contraditório... o In-
consciente é ternário, o Pré-consciente é binário e o Consciente é unitário...
 P – Por isso nunca demonstraram a lógica de Hegel. É uma lógica das con-
tradições que se quer uma lógica da consciência.
... tenho, então, uma diacronia do aqui e agora, na ordem consciente...
uma sincronia pré-consciente, o que permite Lacan estruturar o problema da
metáfora nesse nível... e uma acronia, como indicou Freud, no Inconsciente... o

392
O peri-gozo

Consciente trabalha no modelo da Recusa: se digo tal frase, tenho que recusar
as demais, o outro dessa frase... o Pré-consciente é a sede –releiam à luz disso
que estou trazendo o texto Die Verneinung, de Freud –da Denegação: o sujeito
denega porque ele pode dialetizar gramaticalmente, e Freud diz que isto não
prova que ele foi até lá, ele só está dialetizando, sincronicamente... o fenômeno
da denegação é dizer sem assumir, e isto é simplesmente dialetizar... embora
eu possa operar dialeticamente com o analisando, a pura e simples operação
dialética não me dá pega no Ics., é preciso algo mais, que essa dialética se
apresente como Revirão e não como dualização... ao passo que o Inconsciente
não trabalha nem com a Recusa, nem com a Denegação, mas com a Renegação
Originária, que ficou tão mal falada na história da psicanálise... Inconsciente
renega, ele é atemporal... eu disse –e fiquei espantado depois, porque disse
– no Seminário chamado O Pato Lógico, que a estrutura é perversa... não
no sentido da perversidade, mas no sentido que chamei de Veränderlichkeit,
do perversátil... o Inconsciente é perversátil... está em Freud, o qual, na falta
de melhor nome, chamou isso de perversão polimorfa, quando se mostra na
sexualidade...
...no regime da Consciência, então, tenho a oposição entre a e não-a, ou
a ou não-há: a/ã... no regime do Pré-Consciente, tenho a ou não-a: avã... e no
regime do Inconsciente tenho que ter a e não-a: a^ã... a estrutura borromeana
que Lacan encontrou no seu nó a três é a estrutura de Inconsciente... nos níveis
menores, o nó borromeano não se exibe com tanta evidência para o falante... no
Pcs., isso é dialetizável dentro da gramática... no Ics. é, aqui e agora, a e não-a,
mas se avessa de imediato, é atemporal... não que o Inconsciente não gaste nen-
hum tempo para fazer o avessamento, mas é como se fosse o padrão absoluto do
Inconsciente, como se tem a velocidade da luz como padrão absoluto do Uni-
verso... a luz tem certa velocidade, mas podemos igualá-la à unidade na medida
em que é velocidade máxima... a velocidade máxima, então, de avessamento, que
não deixa de gastar algum tempo, se nos apresenta, porque é o padrão freudiano
de mensuração, como atemporal... é a mesma coisa que falar numa konstante
Kraft do organismo, não se precisa contá-la porque ela é constante... então, ela

393
O Sexo dos Anjos

é chamada de zero, e velocidade zero é a velocidade da luz...


 P – E é referenciado a esse Inconsciente que o Falanjo pode passar
pelo Sentido sem se obrigar a ele, como angélico.
...é referenciado a esse terceiro lugar que o Falanjo pode passar pelo
Sentido, e produzir sentido, sem se aprisionar a ele como obrigatório, como é o
caso na neurose... o neurótico vota na Consciência... como exemplo, qualquer
católico faz exame de consciência como quem faz exame de fezes, só que mais
freqüentemente... para ver se a consciência não extrapolou, não saiu do trilho...
e ele é sempre reprovado... a cada vez tem que pagar por isso... não há cu que
agüente, ou seja, não há furo do Real que suporte tal prisão de ventre...

* * *

...tudo isso sem esquecer que se trata do Haver em sua internalidade...


e mais o Não-Haver, que, no Esquema , é referenciado como externo, como
Acoisa, como empuxo... nada funciona sem ele, que é o quarto termo, mas,
como Causa, passa a ser o primeiríssimo e último...
...este é o verdadeiro sexo morto... os outros três são operativos... eles
são o que chamo de operadores do peri-gozo...

27/AGO

394
É o que não pode ser que não

3
É O QUE NÃO PODE SER QUE NÃO
(́Nada
‘ além do Princípio do Prazer)

Início com a audição de O Que,


com os Titãs.

...o que é que não pode ser que não?... é o REVIRÃO –se seu teorema
é verdadeiro...
...não há passagem para o Não-Haver... o que quer que haja dentro
do Pleroma passa a ser gratuito, inocente gratuidade e inocência absolutas...
portanto, saber absoluto mais do que o queria Hegel... inocência, gratuidade e
saber absoluto: ars gratia artis, arte pela arte...
...no texto d’O Masoquismo, Freud lembra um certo autor que trocou
‘ ́, o
a Moira, o Destino dos gregos, por uma dupla de deuses e 
Logos e a Necessidade, o verbo e a necessidade... essa gratuidade artística do
Pleroma é feita de verbo e necessidade... é construção Lógico-Verbal, se quis-
erem ampliar o termo verbo na necessidade do eterno retorno, da repetição,
portanto, na eterna pulsão... e não pode ser que não... arte pela arte... artifício... e
tudo isso regido por um único princípio, o PRINCÍPIO DO PRAZER... ́, ‘
o prazer rege o Haver...

* * *

395
O Sexo dos Anjos

...para quê tanto trabalho de Freud em inventar outros princípios: Princí-


pio do Prazer, Princípio de Realidade, Princípio do Nirvana, três pelo menos?...
o Princípio de Constância, de inércia, aliás, não é grande coisa porque é referido
ao fisiológico, embora seja aplicável aí também... o que quero dizer com Nada
Além do Princípio do Prazer é que o que quer que se apresente eventualmente
como outro princípio gerindo o processo é modificação do Princípio do Prazer
– isto está em Freud...
...o Princípio de Realidade, Freud deixa claro que é uma modificação
do Princípio do Prazer premido por certas condições... mas, por diversos mo-
mentos, ele relembra que não se pode colocar a Pulsão de Morte e o Princípio
de Nirvana fora do Princípio do Prazer... isto está também, se não me engano,
no texto do Problema Econômico do Masoquismo, que não sei por que ele
o chamou assim, pois não existe problema de espécie alguma... nem mesmo
neste texto, ele apresenta algum problema econômico do masoquismo... muito
pelo contrário, apresenta a solução econômica do masoquismo... é quase que
denegatório...
...se pensarmos opositivamente, parece haver necessidade de um Princí-
pio de Nirvana contra um Princípio do Prazer, uma Pulsão de Vida contra uma
Pulsão de Morte... não que isto não aconteça em regime regional, modalizado,
de um ser vivo, mas são efeitos sistêmicos de regionalização e modalização...
o princípio é o mesmo...
...o Princípio do Nirvana, que Freud copiou lá da tal Barbara Low, seria
a tendência, bastante em acordo com a Pulsão de Morte, a zerar o processo...
não vamos dizer zerar a tensão porque Freud ficou embananado com certos
prazeres de tensionamento, e não de distensionamento... trata-se de zerar o
processo –tendência, e não consecução, pois a Pulsão de Morte não chega a
nenhuma realização, é apenas pulsão de, e não realização de morte... zerar o
processo, segundo o Esquema Delta, fica mais claro: tendência, tentativa perene
de o Haver passar a Não-Haver... esta seria a única maneira de criar a Pax, não a
romana, mas a freudiana, que seria o atingimento do nirvana, o qual é inatingível
e pelo Haver, porque ele tropeça no Real com sua bifididade e revira, e pelo

396
É o que não pode ser que não

falante, cuja dita morte, o perecimento, é inatingível em presença... portanto,


não há Pax possível de ser atingida... é apenas sonhada, desejada... essa paz do
nirvana é que sustenta o desejo: o desejo é desejo de paz, de Não-Haver...

...o prazer, ́dentro do pensamento freudiano, é, absolutamente,
o nirvana, o qual, se fosse atingível, seria prazer absoluto, mas não o é de fato...
é apenas desejável e, por isso, sonhado... por isso, esse desejo de prazer abso-
luto, de nirvana, é uma fantasia fundamental do Haver... e todas as fantasias
parciárias que os sujeitinhos fazem por aí são no sentido de atingir o prazer
absoluto –o céu, se quiserem...
...Freud começou dizendo que o princípio do Prazer era descarga das
tensões... isso não funcionou porque, adiante, ele vai reconhecer que certas
tensões são prazerosas... se não é descarga nem carga, então, o que é o Princí-
pio do Prazer?... só pode ser o princípio de atingir o nirvana, a paz absoluta,
o “grau zero” do Haver, o qual não tem grau zero, e sim grau mínimo –a não
ser que chamemos grau zero esse mínimo de Haver, que é o que se condensa
quase sumindo no campo do gozo-do-Outro... mas, no que se aproxima do
grau zero, por inatingível, aquilo explode e começa a fazer grau 1, grau 2,
grau n, etc. ... donde, o surgimento de dissimetrias espontâneas no seio dessa
simetria radical que é o Haver e, portanto, de diferenças, que, em aparecendo,
aparecem em sistemas diferenciados... se são sistemas e estão sob o empuxo
da diferença, da explosão, tendem a remanescer, a sistir... e, no que tendem a
sistir, precisam evitar sua própria destruição, vindo aí o Princípio de Realidade
nessa evitação...
...como não evitar a própria destruição se o que querem é Não-Haver?...
por uma razão simples: se são sistemas, eles sistem, têm sistência e querem Não-
Haver enquanto sistema –sonham em Não-Haver na sua presença sistêmica...
ficam nisso que pensamos ser, a meu ver erroneamente, é a tese do Bateson,
uma dupla ligação, uma oposição, double bind, que é causador de PSICOSE...
não é não!... a psicose não é um efeito de double bind, o qual é a vida inteira
da gente... não tem saída, estamos sempre ligados em coisas opostas: aqui e
agora, a cada momento, é o que vai aparecer no nível sistêmico puramente

397
O Sexo dos Anjos

binário e biológico como homeostase, a qual é uma dupla referência, double


bind, tentando fazer equilibrações por uma referência a mais e a menos... quanto
mais uma referência linguageira como a nossa: estamos perenemente nesta dupla
ligação... e se, eventualmente, a psicose exibe isto, não quer dizer que ela seja
função disto... toda mensagem é dupla, oposta em si mesma... se um psicótico
exibe a evidência dessa dupla mensagem, desse halo significante, é porque,
de dentro da psicose, isto se evidencia... não creio que o fato de o sujeito ter
lidado, até na infância, com mensagens duplas, no sentido de unheimlich, o
fará ficar psicótico por isso...
 Pergunta –Em algum momento tem que ter havido recalcamento, se não,
fixa. Tem que haver o retorno do recalcado...
...mas há... você estaria querendo dizer que se não houver recalcamento
aquela coisa fica em termos de halo e aí está a psicose?... não é uma má teoria,
mas talvez tenhamos que relançar isso...
...o famoso Princípio de Realidade não é senão o Princípio do Prazer
no que pressionado por instâncias sistêmicas... assim como o mero e simples
Princípio do Prazer, que não pode ser definido por tensão ou distensão, não é
senão, de dentro dos estados do Haver, de dentro das possibilidades gozosas,
o sentido da redução a zero... Princípio do Prazer: desejo de Não-Haver, de
Nirvana –tudo que se quer é a paz, só que ela é impossível... não é à toa que
Heráclito chegou à conclusão de que Pólemos conduz o que há...
...estou chamando de princípio o mesmo que Freud chama: algum
mecanismo que está na base de todo e qualquer procedimento, um princípio
de funcionamento... os filósofos, os psicólogos, os psicóticos, os psicanalis-
tas, todos eles, ficaram embananadíssimos –o próprio Freud também –para
dar conta disso nos textos... minha tese é de que Freud tinha talento, gênio
inventivo, mas não tinha recursos do saber para lhe dar um esquema mais
adequado... ele não tinha cibernética, informática, a matemática posterior, etc.,
portanto, ficou sem recurso... mas ele intui muito bem o processo: começa
distinguindo com muita clareza os diferentes princípios e, depois, começa
a ver que tudo se reduz a uma coisa só, que há uma dinâmica e uma tópica
regionalizadas disso...

398
É o que não pode ser que não

...qualquer livro de filosofia escolar, quando trata de Epicuro –que tem


lá suas tolices, como todo mundo, mas é grande pensador –faz questão de
chamar atenção –porque o autor é certamente cristão ou pós-cristão –já que
o Haver é um grande sacana –aliás, ele não tem mais nada para fazer –para
a idéia de que o hedonismo é a perseguição do prazer aqui e agora, vontade de
prazer, no sentido que nem é o do gozo, mas do faturamento dos bens sensórios,
sensuais, etc. ... ao passo que o pensamento de Epicuro é muito inteligente:
no que se deu conta de que o processo é um grande movimento regido pelo
Princípio do Prazer, trata-se, lá no seu sistema moral, de estabelecer uma vida
onde, e porque há também um Princípio de Realidade, se possa estabelecer uma
medianidade, uma média de prazeres sem excessos, de maneira que a vida flua
tranqüila... quer dizer, a busca da paz pela homeostase do prazer... não é tão
bobo assim porque, no que tenta isso, uma espécie de aurea mediocritas, como
chama Horácio, essa mediocridade feliz, no que acaba indicando por esse lado,
ele também pensa essa articulação toda que, mutatis mutandis, em Freud, vai
dar no Princípio do Nirvana, do Prazer, de Realidade...
...mas se temos um Haver que não busca senão o prazer absoluto do
nirvana, in praesentia isto lhe é impossível: ele teria que desaparecer e, por-
tanto, não atingir o prazer enquanto tal, enquanto Haver... além disso, o Não-
Haver lhe parece possível de atingir... um falante fica na mesma situação, mas
busca eternamente esse prazer absoluto que é o nirvana... se, no percurso, as
coisas se dissimetrizam e sistemas se fundam, esse prazer só pode ser buscado
talqualmente o prazer buscado pelo Haver, que se limita diante do Não-Haver,
só pode ser buscado mediante o limite de um sistema com suas características
sistêmicas... passou disso não há morte, não há presença desse sistema à sua
própria dissolução, o que há é perecimento, desagregação do sistema...
...portanto, o Princípio do Prazer, quando é tensionante, como Freud
veio a criticar com sua tese do distensionamento, quando uma tensão, um
tesão, é prazeroso, é no sentido de que ele arma o salto para conseguir o prazer
lá adiante... mesmo porque duvido que se possa pensar qualquer tesão sem
Princípio de Realidade, funcionando sem limitação... o tesão do Haver depende

399
O Sexo dos Anjos

de sua limitação diante do Não-Haver... a realidade do Haver é sua fantasia de


desejar o Não-Haver impossível, é o seu Princípio de Realidade... a realidade
do Haver só é indicável por sua fantasia de querer o Não-Haver, e isto lhe é
impossível, este é o seu limite, ele também tem sua realidade... o Princípio de
Realidade que está incluído no Haver é ser impossível de atingir o Não-Haver...
assim como o Princípio de Realidade de um sistema é ser impossível continuar
presente diante da dissolução da sua ordem sistêmica... isto é o que chamamos
tolamente de morte: só posso conjeturar –porque não posso acompanhar –a
morte de um sistema que está diante de mim, sua desagregação... mas estou por
fora quando presente a esta desagregação, pois não a experimento... suponho ter
acompanhado o processo, mas não experimento essa desagregação de dentro...
se tal sistema se desagrega, não há o menor atingimento dessa desagregação...
enquanto sistema, meu limite pode ser o desmaio, mas não acompanho essa
desagregação... não existe o Sr. Valdemar, que, bruscamente, se desmilingue,
e que possa ter, ainda que por um átimo, a noção de seu desmilinguir-se...
...essas coisas se imbricam em função da ordem, do funcionamento,
da dinâmica, da articulação tópica, porque só há o Princípio do Prazer –o que
vai constituir um denominador comum a todos esses tipos de pensamento que
trataram do prazer... o Haver é hedonista mesmo, desde que não sigamos o
livro didático de filosofia, que acha que o hedonismo é pura busca do prazer

aqui e agora, sensual... se ́é o prazer, o hedonismo é a busca incessante
desse prazer, só que ele não se oferece, ou não se oferece facilmente... ele só
se oferece em pequenos cacos, pequenos fragmentos... portanto, só se oferece
como gozo...
...é um sonho talvez dos yogas, na Maituna, fazer a suspensão em que
possam restar um pouco no nirvana... mas não, eles param é no ápice da curva
do gozo, antes ainda de descambar para a brochura fatal... se percebemos a coisa
como movimento de intensidades e de quedas sempre se repetindo, consegue-
se gozo, como gozo-fálico, por exemplo, que põe um ápice e desaba, como o
gozo-do-Outro, que caminha, caminha e jamais chega a lugar nenhum a não
ser que se transforme em gozo-fálico... quanto a mim, acredito que a coisa vai

400
É o que não pode ser que não

funcionando e salve-se quem puder, vai-se tentando sobreviver, em busca, pelo


Princípio do Prazer... não acredito, por exemplo, que se possa transformar isso
numa tese orgástica de equilibração... mesmo porque existem orgasmos extrema-
mente dolorosos, de extremo desprazer... o ser falante não é o príncipe da boa
forma... todas essas teses que aconteceram por aí de tentar equilibrações de ou
por atingimentos prazerosos, de momentos orgásticos, etc., são absolutamente
falidas, pois o orgasmo pode ser um horror...

* * *

...por que não posso, ao invés de Nada Além do Princípio do Prazer,


dizer Nada além do Princípio de Realidade? ... em primeiro lugar, por questões
de rima... rima é coisa extremamente importante... aliás, nada mais há a fazer
senão rimas... Freud escreveu Mais Além do Princípio do Prazer, Lacan es-
creveu Au-delà du Principe de Realité, e eu estou Nada além do Princípio do
Prazer... eu não teria condições de estabelecer nenhum plano de realidade se
não fosse vocação interna e determinante do Haver essa realidade... segundo
o Esquema que consegui produzir, a determinação, a vocação desse destino
do Haver é justamente a paz do Não-Haver, que estou definindo –partindo de
certas posições de Freud, de tensionamento, de redução a zero, que é o Princípio
do Nirvana, e de certa coalescência que ele fez de Princípio do Nirvana com o
Princípio do Prazer –a partir do que é o desejado, pois a realidade é o que nos
sobra para aquém do desejado...
...daí podermos falar de Masoquismo Primordial, porque, em primeiro
lugar, desejar Não-Haver, desejar sumir de si mesmo mas presente a isso, é
impossível... em segundo lugar, porque não sendo isso possível, curtir numa
ótima o paraíso da realidade, pois não há outro: se não há Não-Haver, o lado
de cá é que é o paraíso, o paraíso do masoca... este é que é o próprio Maso-
quismo Primordial, o paraíso do masoca fundamental: “como é bom sofrer
neste paraíso, me sacaneia que eu gosto!”... portanto, eu teria que inventar um
outro Esquema em que o Princípio de Realidade segurasse o processo, porque

401
O Sexo dos Anjos

no Esquema Delta quem segura é o Princípio do Prazer, enquanto Princípio


de Realidade...
...se não, não se poderia tampouco pensar no Princípio de Realidade
como estando no FURO, que chamo de REAL, pois é o lugar onde se evidencia
o impossível de passar ao Não-Haver... é o que vai dar realidade ao Haver... já
que ele não pode passar a Não-Haver, começa a se dissimetrizar e apresentar-se
diferidamente, multifariamente, como realidade, como sistemas diversos, como
diferocracia do Haver... só porque não pôde passar, só porque esbarrou com o
real de ser impossível a inscrição do Não-Haver... quando Lacan diz que “o real
é o impossível de se escrever”, o que traduzo é o Não-Haver enquanto impos-
sível de se escrever, que se inscreve como Real Revirão... faço uma pequena
distinção: o que chamo de Real é o que se inscreve como Revirão no lugar do
impossível de se inscrever, se inscreve na estrutura... o meu Real se inscreve
na estrutura como aquele Revirão, aquela bifididade que vem porque é impos-
sível inscrever o Não-Haver... então, não chamo o Não-Haver de Real... Real
é o efeito de Não-Haver dentro do Haver... batendo nesse Real –que é a marca
de impossível, que volta porque não tem passagem, beco sem saída –então, a
realidade começa a funcionar de novo... ou seja, começa a funcionar a fantasia
de perseguir esse Não-Haver, porque, embora ele não haja, não compareça,
continua a imantação, o empuxo do Não-Haver... o Haver vive de correr atrás
do Não-Haver, vive de condensar-se e explodir-se, de correr atrás do Não-Haver
e não conseguir... e isto vai se lhe oferecer como realidade...
 P – Freud coloca a Morte e a Repetição como sendo o modo pelo qual se
evidencia o Mais Além...
...é isso: a Pulsão de Morte não é outra coisa senão o Princípio do
Nirvana, o Princípio do Prazer é a Pulsão de Morte...
 P – E a Repetição, você está dizendo que ela está por conta do Princípio
do Prazer.
...e do Princípio do Nirvana e da Pulsão de Morte... não sei se vocês
estão percebendo – apesar do mau-humor de alguns – que estou reduzindo
tudo a um princípio só... os princípios apresentados por Freud são diferimentos

402
É o que não pode ser que não

funcionais desse princípio: o PRINCÍPIO DO NIRVANA, que é desejar a paz


do Não-Haver... e como ele consegue funcionar, já que isso não há?: ele se apre-
senta como Princípio do Prazer –processamentos na busca disso, e quebrando
a cara porque não encontra... por isso Freud pôde reconhecer que há tensão
e distensão no Princípio do Prazer... o que importa no Princípio do Prazer é
a busca do nirvana, que é o Princípio do Prazer enquanto fundamentalzão...
enquanto funcionalidade, ele se apresenta como Princípio de Prazer, enquanto
referência às ordens sistêmicas, ele tem que se apresentar como Princípio de
Realidade, ele não tem saída... mas é o mesmo princípio, se seguirmos o Haver
em seu movimento...
...Freud deixa isto claro, e quando vê que não pode definir de outro
modo, vai equalizando... a única coisa que ele não chega a equalizar muito é o
Princípio de Realidade, mas como ele já tinha dito que era uma conseqüência,
uma coisa que ele quer tirar do Princípio do Prazer para que o próprio princípio
funcione, isso está dito... o Princípio de Realidade não tem substituição em
função das condições que Freud chama de externas –aliás, externas não sei a
quê... externas, só pode ser na ordem sistêmica: os limites de um sistema, os
poderes de um sistema... o que extrapola os poderes de um sistema é, para ele,
aquilo que faz com que ele dê para trás, recue para poder se organizar de novo
e recriar o prazer por um desvio qualquer... porque, se enfrentar isso, desaba:
não estará presente ao seu prazer... para um sistema estar sistemicamente
presente ao seu prazer, ele tem que evitar sua própria dissolução... é o que faz
essa impressão que se tem de ter medo de morrer: é um sistema não querendo
estar ausente de sua investida no sentido de conseguir esse prazer absoluto que,
para ele, é inalcançável... o investimento de todo o sistema é o prazer, dentro
dos seus limites...
 P – Isso é o que você chamaria de gozo, ou elimina-se a palavra gozo?
... eu diria que no que este Princípio do Prazer, segundo esses princípios
diferidos de si mesmos, funciona assim, o GOZO é o que se consegue de resto,
de sobra faturável no movimento impossível do prazer, para o prazer... são
esses os gozos... pode-se fazer o esforço feminino de imaginar, por exemplo,

403
O Sexo dos Anjos

a punheta do século –vou tocar a punheta do século, vou fazer mais do que o
ioga, vou me encaminhar para esse nada e gozar absolutamente, divinamente,
como nem Deus consegue, pois Ele quebra a cara e passa à falicidade –en-
tão, no percurso disso, eu me encaminho –femininamente, aliás –para estar
presente, na minha particularidade, ao meu passe para a paz absoluta... este é o
orgasmo divino, que mesmo Deus persegue e não consegue... no que isto, este
atingimento do prazer absoluto, é impossível, o que sobra nesse percurso é o
que chamamos de gozo-do-Outro, que é ir-se desgastando no caminho, nesta
tentativa de se condensar, de se particularizar extremamente para passar para o
Outro lado: quebra-se a cara e goza-se falicamente... uma queda vertiginosa...
e vergonhosa...
 P – O andrógino seria a fantasia a ser alcançada.
... se eu pudesse alcançar, na minha presença, o Outro lado, eu fundaria
o andrógino, que não é senão o nirvana, zero... o único andrógino que existe é
o zero absoluto, suspeitado apenas... se o Haver, como Haver, pudesse passar
a Não-Haver, ele fundaria o Andrógino Real... por isso, o andrógino não há...
ainda que o Haver pudesse passar a Não-Haver, ele não passaria como tal ...
suponhamos até –e, de fato, isto é impensável –que o Haver pudesse passar a
Não-Haver, como isso se registraria?... suponhamos que a morte fosse possível,
onde ela encontraria registro?... em parte alguma, portanto ela não há... vamos
fazer a hipótese, que alguns físicos fazem, de que um dia o Universo some...
some para onde?... onde é registrável isso?... se não é registrável, não há...
...a morte não há... vejo perecimentos, desarticulações, deteriorações,
estragos, ou seja, é a CASTRAÇÃO que me aterroriza... não é ninguém estar
presente, não é passagem para a morte nenhuma, porque só há o Princípio
do Prazer, que seria passar para lá numa ótima... as religiões, ao invés dessa
crueza que a psicanálise trouxe, fazem a ficção de que você passa e cai no
nirvana ou vai para o Céu, transcendência para uma outra vida in praesentia...
por exemplo, a igreja católica pode abrir mão, por acaso, de que o sujeito vá
pessoalmente para o céu?... estragaria a brincadeira, ninguém acreditaria mais
nela, pois estão sendo pagos por isso... o salário da fé é ir pessoalmente para o

404
É o que não pode ser que não

Outro paraíso, que é nirvânico... mas se já estou no paraíso, se já sou imortal,


como é que vão me comprar?...

* * *

...estou falando em Princípio no sentido de Lei Fundamental, como


se diz na física, lei inexorável... o Princípio de Realidade é absolutamente a
favor do prazer... é uma questão ÉTICA, pois quando estou dentro de uma
ordem sistêmica, seja ela social, preciso fazer referência às limitações para a
sustentação do prazer... por exemplo, quando Lacan diz que a psicanálise é uma
ética centrada no real, trata-se absolutamente dessa Lei principal de se querer o
Nirvana, que é impossível... é a lei do Princípio do Prazer, não há outra... a qual,
no meu cotidiano, vai se transformar em Princípio de Realidade e Diferocracia,
quer dizer, jogo dialético, dialogal...
 P – O psicólogo moralizante pensa que o fato de a psicanálise ter uma ética
centrada no real se traduz por evidência da lei do gozo. E trata do gozo como
se fosse o conteúdo desse centramento no real.
...o gozo não é o conteúdo disso... pelo contrário, é o que resta das nos-
sas intenções de fazer funcionar a Lei, a lei do prazer, é o que sobra, é o “pouco
de curtição” que sobra dos nossos embates com o Princípio de Realidade... é o
pouco de faturamento, é a mais-valia... a mais-valia do prazer é o gozo...
...para o Haver, o nome que se possa dar a esse Furo é que é o Nome
do Pai, que diz não à possibilidade de passar a Não-Haver, um não radical...
mas se posso nomeá-lo como Pai, ele é meu Filho... aí é que a coisa começa a
se comer por dentro: já que não tem tu, vai tu mesmo, já que não tem nada do
lado de fora... não foi à toa que o grego inventou o tal de Saturno, que come os
próprios filhos... o que causa o Desejo do Pai é o objeto que não-há, o Não-Haver,
Acoisa... o DESEJO DO ANALISTA supostamente teria que ser coincidente
com o desejo do Haver... ele devia ser Acoisa, mas isso é papo furado... não
vamos fazer cara de beato e dizer “eu sou analista e desejo Acoisa” –aqui, ó!...
não existe isso não!... todo mundo aqui é pecador... ou seja, o analista vive no

405
O Sexo dos Anjos

processo da ascese e no processo da sublimação, durante, no momento em que


ele está fixando esse desejo... e o pior: ele não sabe por onde é que se faz a Sub-
limação, ninguém sabe... então, só podemos contar com ter confiança no analista
na medida em que ele, tendo transado essa obrigação que o Haver sofre de não
poder passar ao Não-Haver, procurar recursivamente atingir alguma coisa que
simplesmente extrapole a demanda de aqui e agora, mas que vira imediatamente
outra demanda... vamos parar com esse negócio de limbos analíticos que ditos
lacanistas quiseram propor... isto não existe... é papo furado...
...em última instância, há um esbarro sintomático, por mais análise
que se faça... que diabo de PASSE é esse?...como Lacan ousa dizer que a psi-
canálise é impossível e pode produzir uma teoria de fim de análise resultante
em passe?... é claro que ele não é moleque... teve que dar um pouco para trás
e conjeturar o passe, que é da ordem do: “se não tem o ótimo, vai o bom”... só
isto... e é da ordem do sintoma, também... o próprio Haver, a cada momento de
sua havência, é sintomático: ele produz, de aqui e agora, tais e tais dissimetrias
e não outras... ele pode produzir daqui para diante outras, mas, no momento,
só produziu essas e não outras... não é por nada que tomo o esquema do nó
borromeano, de real, simbólico e imaginário, e prefiro escrevê-lo como Lacan
escreve “num jato só”... ele o escreve como um nó de trevo, e eu simplesmente
faço um círculo, por que não?... um jato só... tanto faz representar assim ou
assado... é sintomático...

* * *

...terá o Haver, em alguma condição, um saber absoluto aqui e agora?...


posso até suspeitar que sim, mas precisava fazer uma conjetura enorme a res-
peito da nossa posição subjetiva para poder atribuir a esse saber absoluto do
Haver um sujeito qualquer... não estou falando do saber absoluto de Deus... o
que quero dizer com isso?...
...que diabo é isso de Inconsciente, Pré-consciente e Consciente?... isso
em Freud é uma banana que não tem mais tamanho... ele cerca de todos os

406
É o que não pode ser que não

lados e não apresenta um esquema satisfatório... não tenho a menor vergonha


de dizer besteira, Freud nos incentivou a isso a cada passo, basta recorrermos
à sua obra para vê-lo lembrando disso: vamos conjeturar, se mantivermos a
frieza de saber que isso não pode ser assim; vamos conjeturar, não custa nada...
se não, não se sai do lugar...
...evidentemente que o Inconsciente de Freud não é o de Lacan... Lacan
o disse... ponho como problema e não como solução que o Inconsciente de
Freud ultrapassa de longe o Inconsciente que Lacan conseguiu produzir... que o
Inconsciente que Lacan delineou se apresenta –não estou dizendo que ele não
o tenha indicado –como equacionado bem mais próximo do Pré-consciente de
Freud... e que precisávamos retomar a noção de Consciente, Cs., e da possível
consciência de um falante... foi preciso, para armar certos jogos fundamentais
no crescimento da teoria analítica, que Lacan pusesse de lado e achasse até
uma tolice a exigência da filosofia, em vários momentos da sua dicção, de que
haja consciência de ter consciência para ser consciência de sujeito... o que se
pode fazer com isso?... insistir nessa mesma batida ou procurar mais?... será
possível procurar uma consciência de ter consciência para o falante?... o que
seria em última instância o ponto nuclear de um saber absoluto aqui e agora...
saber absoluto não dos conteúdos históricos como Hegel colocou, e sim da
estrutura, porque ela pode tudo... pode, não quer dizer que esteja fazendo... as
místicas, as investidas místicas, por exemplo, pedem isso, que haja um ponto
de saber absoluto... o que é isso?...
...peguem os textos de Freud e vejam as embananações em que ele ficou
para situar essa tópica de Inconsciente, Pré-consciente e Consciente... e há ainda
a tal de Percepção para encher o saco... quando chega às regiões limítrofes, ele
faz coisas como: “Consciente (Pré-consciente)”, “Pré-consciente (Consciente)”
ou “Consciente (Percepção)”, “Percepção (Consciente)”... ele não se decide,
porque é difícil decidir: é preciso uma topologia, um processo mais sutil, uma
eletrônica, uma informática, sei lá o quê, para podermos armar um negócio
desses... e ainda há as Censuras no meio para atrapalhar... digo que, hoje, temos
que procurar esquemas mais abrangentes que possam amarrar isso...

407
O Sexo dos Anjos

...o que Freud chama de Cs.?... um aparelho do psiquismo que recebe


como percepção –do seu modo de perceber –o que o aparelho de percepção
recebeu do mundo exterior... o Cs. é um aparelho que recebe como se fosse
percepção o que lá está inscrito no aparelho psíquico como percepção... ele
chama de Percepção, pcpt., um aparelho que, diante das emanações, sejam elas
quais forem, que a ele se apresentem, inscreve de algum modo certa receptivi-
dade, ou seja, recebe, vibra com o exterior, se quiserem, é consoante com o
que se lhe apresenta... o Cs. não tem memória, ele se apresenta como receptor
do que se inscreveu como percepção e joga para um tal de Pré-consciente a
tarefa de armazenar em memória o que veio desse tal de Consciente... isso faz
uma consciência?... não!... qualquer animal pode fazer isso, no entanto se lhe
perguntarmos se está consciente disse, ele não responderá nada... mas se pergun-
tarmos a uma pessoa, ela responderá que está consciente de estar na recepção
do que lhe vem de percepção e no armazenamento disso, pré-conscientemente...
como ela sabe?...
...aí Freud bota lá atrás um tal de Inconsciente, que é, para ele, Freud,
heterogêneo ao Pré-consciente... ele chega a dizer que são dois inconscientes:
um que ele chama de Inconsciente propriamente dito e outro que chama de
Pré-consciente... e diz mais: o que é inconsciente, do Inconsciente que é In-
consciente para valer, não tem acesso ao Consciente... só o que tem acesso é o
que está no Pré... e pior: o Pré não tem boas condições de abordar o In, é meio
aleijadão... que diabo é isso?...
...aviso que estou lendo Freud... Lacan articula todo esse processo do
significante, pega a lingüística, pega ali, pega aqui e monta aquele processo
belíssimo, importantíssimo, etc., que, a meu ver, dá conta com muita nitidez
do Pré-consciente, do Inconsciente enquanto Pré... e a ponta para certos revi-
ramentos, para umbigos de sonho, para tropeços, que indicam o Inconsciente...
aquilo de que se dá conta na teoria do significante expõe o Pré e indica o In...
daí a objeção ao que Jakobson tivera dito, de uma enunciação de um certo
sujeito, que em Jakobson é nitidamente Pré-consciente, e que ele vai capturar,
vai pinçar dentro das amarrações do Pré como tropeço ou como não expletivo

408
É o que não pode ser que não

que indicam o Inconsciente... não é o sujeito da enunciação de Jakobson que,


para Lacan, indica o Inconsciente porque ele satisfatoriamente explica o que
acontece no Pré, e Lacan dá conta do Pré e diz que isso que aqui no Pré tropeça
indica o In... como falar do In?... ele nunca toma palavra?... onde será que ele
toma a palavra?... se ele está no Haver, segundo a suposição do Pleroma, e se
ele passa por mim, onde ele toma a palavra?... não tem que ser no Haver, como
havência?... ele tem que tomar a palavra como havência concreta aqui e agora,
senão ele não há... então, posso fazer a conjetura de que o que está faltando é
algum esquema para entender o Inconsciente de Freud... para entender o de
Lacan é mais fácil... as pessoas pensam que Lacan é difícil... Lacan é simplís-
simo... difícil é Freud... Lacan eu até entendo: ele mostra toda uma aparelhagem
Pré-consciente, binária, opositiva, lingüística, depois diz que no que isso tropeça
em suas próprias patas, indica o Inconsciente... portanto, o Inconsciente de que
Freud fala não coincide com o que é lingüístico... só o que se pode fazer é pinçar
nos tropeços do Pré o que é de In... ele tira isso evidentemente de um esquema
e de um texto de Freud que são claros a este respeito... se não me engano está
no Das Unbewusste aquele esqueminha em que Freud mostra que no In só há
Sachvorstellung, representação de coisa, e no Pré, Wortvorstellung... no entanto,
diz Freud, nada pode passar para o Cs., nada pode chegar até a consciência,
senão por via da representação de palavra... aí Lacan deitou e rolou... aliás,
mesmo ao falar da Fantasia, por exemplo, só se vai ter acesso a ela, e trazê-la
a qualquer possibilidade de consciência, diz Freud lá no seu esqueminha, pela
via da representação de palavra...
...onde o Inconsciente se apresenta como tal?... é claro que a psicanálise,
até por uma questão de mercado, precisa defender a representação de palavra...
há que ser maroto com essas coisas, mas também olhar o próprio rabo, se não,
não se vai pensar legal... é preciso saber de uma vez por todas se a gente de-
fende exageradamente a representação de palavra porque ela é fundamental ou
porque é nosso interesse, digamos, fiduciário?... acho que é fundamental, mas
não é tudo... quando Lacan vai tratar das questões que certas falas anteriores
colocavam como da ordem do pré-verbal, como não sei o quê mais, ele diz que
“não é pré-verbal, é hiperverbal”... o que isto quer dizer?...

409
O Sexo dos Anjos

... por que uma pintura –que, a meu ver, consegue decantar o Incon-
sciente sobre a tela –é, para Lacan, hiperverbal e não pré-verbal?... como estou
brincando, brinco à vontade, posso fazer a seguinte conjetura: suponhamos,
aquilo que eu trouxe da vez anterior, que isso que Freud chama de Cs. é algo da
ordem do unário, do um a um... se tenho, então, um aparelho perceptivo, quer
me parecer que o que é da ordem da percepção se me apresenta no nível do
binário... digo isto esteado em certos achados, por exemplo, da Gestalt, que não
são de se jogar fora, como a experiência, que já trouxe aqui, de Gelb e Goldstein,
de forma e fundo, de variação de forma, etc.: diante de qualquer ato perceptivo,
fico imediatamente, se não ponho uma informação determinando o lado que
quero, em processo equívoco, mas não concomitante, uma equivocação que é
oscilatória... tomemos um objeto desses de que a Gestalt se utiliza, uma simples
perspectiva de um cubo com todas as arestas desenhadas igualmente e teremos
duas possibilidades de enxergar esse cubo: se não sou fanático e deixo o olho à
vontade, ele vai ficar oscilando, ora vou ver isso de baixo, ora de cima... isto é
o que quero chamar, pensando na Gestalt, de uma postura binária, oscilatória
e binária da percepção, e posso comprovar isto na audição, no olfato, no tato,
limites perceptivos, limiares de percepção que extrapolados me põem com-
pletamente doido, do ponto de vista perceptivo... se colocarmos numa pessoa
um ponto quente e um ponto frio, ela poderá até oscilar, mas vai controlando
qual é o quente e qual é o frio, mas se levarmos a um excesso de temperatura,
para mais e para menos, a coisa se torna indistinta, queima do mesmo modo...
são os limites de percepção, os quais entram assim no tal aparelho pcpt. de
uma maneira que põe o meu Revirão para funcionar na hora porque existem
limiares que neutralizam absolutamente a percepção binária...

410
É o que não pode ser que não

... estamos acostumados a querer tratar os crescimentos e os decréscimos


na ordem perceptiva como se fossem uma senóide: se tomarmos o movimento
constante do meu Revirão e o transformarmos segundo a cotação dos senos
de um ângulo qualquer, ou melhor, se marcarmos um ponto e girarmos essa
circunferência sobre uma linha reta, esse ponto vai desenhar uma senóide que
varia de +1 a -1... temos o mau hábito de tratar esses objetos perceptivos como
se devessem se comportar como uma senóide, ou seja, como se a máxima e a
mínima devessem variar de + 1 a -1, de um total positivo a um total negativo,
mas não acontece assim... em psicologia, que tem seus valores quando são
cuidados em laboratórios, não acontece assim...

...poderíamos fazer o seguinte esquema: tomando o Revirão, vamos


chamar este ponto de média, se não mediocridade, aurea mediocritas, este
outro de ápice, ou se quiserem, de Supremo, e naqueles outros dois pontos
vamos colocar + no de cima e - no de baixo... o que é o Supremo Bem?... há
o Supremo Bem?... a crítica de Lacan, na Ética, é de que há essa bobice de
se querer o Supremo Bem... uma ova!... a gente só quer isso... ele disse que é
tolice com toda razão, pois no que se quer o Supremo Bem, não se o consegue...
o Supremo Bem é a paz do Não-Haver... é o que rege o Princípio do Prazer...
ora, onde fica o Supremo Mal?... lá mesmo, é lá que está o Mal supremo... se
me aproximo cada vez mais do Bem supremo, seria minha destruição... mas
é minha impossibilidade de atingi-lo... então, o Bem e o Mal supremos –não

411
O Sexo dos Anjos

tem paradoxo nenhum aí, paradoxo é lógica de oposições –moram no mesmo


lugar: na tangente lá no infinito, onde ninguém vai...

...o movimento do Haver é tangencial no sentido trigonométrico...


a variação de uma tangente, como sabemos, não é uma senóide, e sim uma
tangentóide... então, na marcação desta representação do Revirão, que tem
um sentido angular, pois isso caminha para à e, no impossível de passar, isso
passa na tangente e põe o Não-Haver numa relação infinita, inatingível... seja
onde estiver esse Não-Haver, ele passa para o infinito, como inatingível... ora,
como sabemos, as tangentóides não são senóides, elas variam de 0 a infinito,
e não de + 1 a -1, não de um todo positivo a um todo negativo... um infinito
negativo, passando pelo zero, a um infinito positivo, e infinito mais ou infinito
menos é a mesma coisa, está no infinito...

412
É o que não pode ser que não

...então, Supremo Bem e Supremo Mal estão onde?... onde, torcendo


isso, eu pudesse fazer encontrar esse mais com esse menos... nesse movimento
do prazer, o que nos sobra é a tentativa de aproximação do infinito... quando
me aproximo do infinito vou encontrar o quê?... se o Supremo Bem mora no
mesmo lugar, ele é o Supremo Mal... isto não é uma neutralidade absoluta?...
não é um terceiro ponto no infinito, que é neutro?... ele se apresenta para mim
como bífido dependendo da minha situação: se o abordo como bem, ele é bem,
se o abordo como mal, ele é mal... portanto, lá na sua moradia, no infinito, ele
é neutro, é um terceiro...
...há outro ponto de neutralidade?... há, de neutralidade aparente, que
é quando se passa por esse ponto que não fede nem cheira, que não é nem bem
nem mal... se estou diante de um fenômeno qualquer que pode vir a ser tedioso
porque tem tanto de bem quanto de mal, não há opção a fazer, ele é neutro quase
que homeostaticamente... então, tenho duas evidências de neutralidade dentro
de um sistema: a neutralidade não paradoxal, concreta, de que o Supremo Bem
é o Supremo Mal; e a neutralidade de quando não é nem bem nem mal, ou seja,
tanto faz mal quanto bem, isso não fede nem cheira...
...quando Lacan critica a ordem do prazer com base na ordem do gozo,
ele está criticando o prazer nomeado como possibilidade de se ficar no tédio do
equilíbrio do bem e do mal... só posso criticar o prazer quando ele pretende estar
na neutralidade, não feder nem cheirar... só que isso não é prazer, é desprazer...
isso é prazer e é desprazer, tanto que se você consegue um bom equilíbrio
começa logo a inventar caraminholas... por quê?... porque é um saco, só por
isso... portanto, nenhum prazer dessa natureza criticável se sustenta, nem de
fato, para o sujeito... se ele é bobo de querer viver na homeostase, de querer
ficar conseguindo aquele prazer do nada fede nada cheira, aí é que ele está na
obrigação de fazer sentido: isto é NEUROSE... o que é diferente de começar
a fazer sentido, ter um gozinho para cá, uma sacanagem para lá, uma porrada
aqui, doeu ali... assim, vai-se levando, guerra é guerra...
...essa região da mediocridade é o ponto mais baixo que se pode
conseguir... se chamar a região da direita, em baixo, de prazer e a de cima de

413
O Sexo dos Anjos

desprazer, ou a de baixo de Bem e a de cima de Mal, terei um supremo de Bem


e de Mal que sai pela tangente, vai para fora –dentro, ele não é encontrado –
terei um ponto neutro de Revirão e, no outro lugar, uma mediocridade de Bem e
de Mal, uma medianidade... eles esão expostos no Esquema Delta, onde temos
um Furo como lugar de representação da intangência do Não-Haver, e entre
e A um lugar de medianidade, no qual jamais se consegue ficar, pois que há o
jogo polêmico dos processos de fazer sentido... moramos é num determinado
ponto do Campo do Sentido: só o Terceiro Sexo funciona, os outros são meras
conjeturas de quem está aí dentro, ora puxando de um lado, ora de um outro... só
no Terceiro se puxa para aqui ou para ali, o primeiro e o segundo, na verdade, não
comparecem... só podemos dizer que um sujeito está no Feminino na medida em
que, como Anjo, ele está pendendo para um lado... só podemos dizer que ele está
no Masculino na medida em que, como Anjo, ele está pendendo para o outro lado,
só isto... porque ele só funciona no Terceiro, o tempo todo... como sujeito falante,
sou representante dessa neutralidade do Terceiro que me dá certeza subjetiva:
a certeza do sujeito vem desse lugar conjeturável por ele como neutralidade...
isto no regime do Inconsciente de Freud... no de Lacan, é preciso que o Sujeito
compareça diante da binariedade do significante como intervalo, jogando S1 e S2
para ter certeza desse lugar, mas isto é Pré-consciente...

* * *

 P – Você começou colocando a questão de como poderia haver, segundo


Freud, um modo de tratar a questão do Inconsciente e, ao mesmo tempo, lidar
com a questão do sistema Consciente. De que forma podemos ter, além da
questão do Representante da Representação, que foi por onde Lacan começou
a questão do significante... No texto O Inconsciente, Freud coloca dois tempos
claramente, um que é da ordem do Inconsciente, é pulsional, não tem como
traduzir, o que se pode traduzir é o Representante da Representação. Foi por
aí que Lacan montou a leitura dele.
...mas Freud não disse só isso...

414
É o que não pode ser que não

 P – Então, você colocou a questão da tradução, fez uma minimização dos


apontamentos de Lacan. Freud faz a mesma coisa, por exemplo, no Das Un-
heimliche, é o mesmo tipo de técnica. Aí chega você tentando recuperar isso
que ficou para aquém do Representante da Representação e procurando ligar
com a questão do Consciente.
...não é que ficou para aquém do Representante da Representação, ficou
para aquém da binariedade...
 P – Certo, então, com isso que ficou para aquém, você começou a questionar
os limites da própria conceituação de Consciente. Aí você indicou que para se
poder pensar essa questão do Consciente era possível pensar um consciente
do consciente, no sentido em que Lacan havia desfeito...
...em seguida a isso, comecei a falar da percepção como primeiro
passo... e estou nela ainda, mostrando esses limiares... do ponto de vista
perceptivo, tenho até base para supor que a ordem do aparelho perceptivo é
binária, e quando funciona em regime de máximas-e-mínimas e oposições, ela
propõe, de alguma maneira, pontos neutros dos quais a gente não sabe falar,
não sabe dar conta...

* * *

...eu estava no processo de passar disso, dessa idéia de tangentóide,


para o Revirão e para o Oito-interior... façamos, então, o Oito-interior com isso:
esses dois pontos de média e supremo estão sobrepostos aí no ponto neutro, eles

415
O Sexo dos Anjos

fazem quiasma... os dois pontos de máximo e mínimo perceptivo estão acima,


os quais ora passam por uma neutralidade extremada, que fica no infinito, ora
por uma neutralidade de mediocridade que também não significa nada segundo
aquele Esquema... o ponto do Furo é bífido, até no sentido de ter significação
de neutralidade por extremos e neutralidade por média...
...quero dizer que o aparelho perceptivo recebe o que se apresenta para
ele em nível binário... aí Freud diz que isso que se inscreve no aparelho per-
ceptivo é recebido pelo Cs. como percepção... então, Cs. é um vice-perceptivo
que recebe o que está inscrito no aparelho perceptivo... ou seja, tenho um Cs.
que não tem memória, o que significa que ele deve jogar a memória para outro
lugar... Freud vem com o “bloco mágico”, com aquele negócio todo... ele não
ter memória indica para mim –estou conjeturando em largas pinceladas, no
futuro tenho que reduzir isso –que ele funciona em nível unário, ou seja, se
algo é percebido por mim numa posição binária, não percebo aqui e agora as
duas modalidades... posso perceber uma acima e passar para outra abaixo, como
no caso daquele cubo... nesse lugar do Cs., é um a um... uma dimensão de cada
vez... o que lá no pcpt. se apresenta com duas dimensões, a Gestalt inteira, forma
e fundo, só é registrada no nível Cs. como uma agora, outra depois...
...o que o Cs. recebe do aparelho perceptivo um a um, ele joga para o tal
de Pcs., que é binário, e que vai se inscrever no modelo que Freud quer chamar
de representação de palavra, ou seja: a representação de palavra na língua cor-
responde ao que é representação binária na percepção... no regime das oposições...
e se tomarmos o esqueminha de Freud, da Traumdeutung, veremos que isso fica
saussureano: é materialidade de som, que Saussure chama de imagem acústica...
com o Pcs. agindo binariamente, por oposições, de imagem acústica, e regis-
trando em algum lugar, gravando no seu gravador, o que veio de Cs... posso até
supor que, eventualmente, um dos lados não é gravado: estou aqui agora diante
da tal percepção que se apresentou ambiguamente, mas por algum motivo não
oscilei e vai-se gravar só um lado... então, lá fica faltando um lado, e quando
procurar dialetizar isso, terei que inventar porque não tenho gravação disso...
aliás, isso nada tem a ver com psicose, é só falta de gravação de um dos lados...

416
É o que não pode ser que não

...mas quero supor –contra alguns, analistas até, que trabalham desenhos
de crianças em comparação com desenhos de adultos e ficam meio invocados
com o que a criança desenha –que isso sugere que talvez haja alguma coisa de
“total” que a gente não consiga bem apreender... talvez a criança esteja querendo
representar essa ambigüidade das duas marcações num desenho só, e nós não
entendemos porque estamos no regime de, conscientemente, perguntar ao Pré-
consciente qual é a memória que ele tem desta dubiedade e, assim, fazer escolhas
parciais e enunciar frases... o tal Ics. freudiano não pode não ser alguma coisa
da ordem do três... e como os nossos aparelhos de linguagem, de representação
sígnica, na ordem do verbal, do lingüístico, não funcionam ternariamente, não
temos como dizer isso no nível da binariedade pré-consciente...
...Freud diz que na tradução do Ics. ao Pcs. há uma Censura... suponha-
mos que seja censura em certo sentido: proibição de falar... mas há uma censura
mais grave: tem-se que fazer uma quiáltera, dizer o que é três, em dois... ora, se
o Pcs., que é da ordem do dois, é regido por uma outra ordem, ternária, posso
supor que essa neutralidade que encontrei no Revirão comparece como capaz
de pôr, aqui e agora, os dois ao mesmo tempo, que é o que Freud suspeita no
duplo sentido das palavras primitivas: uma palavra só que, uma vez, significa
isso, outra, significa aquilo, não é junto... mas, em algum lugar do Inconsciente,
uma posição subjetiva saca isso como um todo só, como a plenitude do Haver
significando Nada, Coisalguma, absolutamente sem sentido, mas que pode
receber sentido quando é bilateralizada no Pré-consciente... haverá algum
lugar onde isso se diga, se exprima de algum modo?... pela via do lingüístico,

417
O Sexo dos Anjos

acho que é impossível: o lingüístico passa pelo Pcs... a “representação de


palavra” não é que o Pcs. seja feito de representação de palavra, e sim que
é da mesma binariedade que a representação de palavra... é o que Freud não
sacou... pensou que era representação de palavra, e agiu correto, porque eram
palavras que ele tinha... o Pcs. funciona tão binariamente quanto a represen-
tação de palavras...
...mas lá no Ics. freudiano algo se apresenta ternariamente... a única
metáfora –não é bem metáfora, é comparação –que tenho para fazer disso é:
tinhamos o bloco mágico de Freud, temos o computador, a Cibernética, Lacan
usou isso tudo, mas há um aparelhinho, hoje em dia, que nos dá certa dica
para pensar isso: o tal holograma... hólos é como plerores, uma tolalidade... já
falei aqui do holograma, utilizando-o como comparação... o holograma é uma
representação de imagem, fotográfica, por exemplo... acho que nada impede
engenheiros de pensar em representações sonoras com isso, talvez consigam...
talvez um dia tenhamos, em vez de disco laser, um disco hologramático: um
instrumento toca na sala ali, outro aqui... em vez de meros sons estereofônicos,
ouvir dentro da sala vários instrumentos tocados –e não se trata de apenas
espalhar caixas de som... mas um holograma é uma fotografia – ou filme,
ou coisa dessa ordem –que se faz talqualmente a fotografia, mas com raio
laser... a diferença é que se projeta uma luz de laser sobre o objeto para que
esse objeto iluminado reflita essa iluminação sobre o filme de maneira que a
imagem apareça lá como na fotografia... o que a fotografia faz é um objeto ser
iluminado, sua iluminação bate num filme e grava... só que no holograma para
conseguirmos com detalhes impressionantes o que a olho nu não percebemos,
uma fotografia com todas as três dimensões, temos um outro raio laser que é
chamado de raio de referência, que, ao invés de iluminar o objeto, ilumina di-
retamente a mesma tela fotográfica... o processo é assim: joga-se um raio laser
de néon, de alguma cor específica, passa-se por um prisma, esse prisma refrata
em dois raios com espelhos e lentes... um raio é jogado sobre o objeto e outro
sobre a placa fotográfica... no confronto dessas duas marcações que a chapa
recebe não se tem nenhuma imagem gravada, e sim gravação das interferências

418
É o que não pode ser que não

de onda entre a iluminação que vem do objeto e a que vem diretamente... um


se chama raio de referência e o outro raio-objeto... então, sobre a fotografia o
que se imprime são ondas de interferência: toma-se uma fotografia, projeta-se
um raio de referência, um laser puro através dela, e ela, ao invés de projetar na
parede, projeta no espaço, em terceira dimensão...
...e se no Inconsciente a ternariedade é fundada por um raio de refer-
ência que, por causa da sua constância, a gente nunca pensou?... a fotografia é
unária ou binária?... ela apresenta uma Gestalt, com forma e fundo, com claro
e escuro, com contraste, ou seja, com oposições garantidoras do surgimento da
imagem... então, o raio-objeto funciona na ordem do binário: ele se joga sobre
o objeto, com oposições luminosas que se inscrevem como oposições, mas um
terceiro vem como raio de referência fazer interferência e dar pregnância de
concretude a essa imagem... se imaginarmos que no nível do Inconsciente, o que
é perceptivo, como o que é pré-consciente, como binariedade, referidos a um
lugar terceiro, mediante interferência de ondas, como acontece no holograma,
dão essa posição de sujeito que oferece como raio de referência a possibilidade
de ter consciência de ter consciência... ou seja, de fazer memória tridimensional
de ter tido consciência...
 P – Então, você está dizendo que esse Inconsciente ternário volta a se abater
sobre a consciência.
...se o Pcs. é binário e o Cs. é unário, a relação do pcpt. com Cs. não
deixa de ter certa semelhança com a relação ternária, que é no Ics... mas se
ela não se repete, o animal não tem consciência de ter consciência, só tem
consciência aqui e agora...
 P – Não tem memória de ter consciência.
...porque não tem esse outro lugar onde a trindade separada que aqui
está funcione pleromicamente lá no outro sistema –os fisiólogos que procurem
isso, no cérebro, onde quiserem, não é problema meu: meu problema é inventar
o brinquedo... mas podemos supor que a posição de sujeito funciona, primeiro,
não pleromicamente no Cs... portanto, não comparece sujeito, mas é da mesma
estrutura, é catóptrico: o lugar do sujeito é um lugar catóptrico, mesmo para o

419
O Sexo dos Anjos

animal... só que não posso falar de sujeito aí porque só posso dizer que há sujeito
quando essa consciência se reconhece em outra marcação... então, o lugar do
sujeito fica sendo o reconhecimento plerômico da consciência maquinal...
 P – Então, você está dizendo que ali na Consciência I, por efeito da estru-
tura desse sujeito, tudo que funcionava no Pré-consciente como binário foi
neutralizado.
...foi neutralizado, mas por ser referido... a questão é montar um aparelho
semelhante a esse... um raio constante de referência que, na interferência com
a binariedade, torna aquilo não um intervalo entre dois, mas um ternário, em
terceira dimensão...
...outra imagem que posso fazer, que não explica muito bem mas que
dá certa idéia do que quero dizer, é, por exemplo, o sistema projetivo... um
objeto de três dimensões pode ser projetado sobre duas... pode-se também
tomar um só plano, projetar nele um cubo marcando as cotas, e teremos todas
as marcações desse cubo... pode-se pegar a forma que está sob esse plano em
duas dimensões e projetar sobre uma só linha... é algo da ordem da queda de
dimensões... Cs. tem uma dimensão, que prefiro dizer, no plano perceptivo, um
de cada vez... percepção e Pré-consciente são as duas ali inscritas: o aparelho
perceptivo e o aparelho pré-consciente inscrevem duas memórias... e depois vai
surgir o falante... isso que é inscrito perceptivamente e pré-conscientemente há
até nos animais –os quais têm o regime cibernético de jogar com as coisas em
nível pré-consciente... já no falante isso vai ser calculado e organizado por uma
repetição do mesmo esquema, repetição que funda um aparelho ternário...
...são, então, dois sistemas de três, sendo que o Ics., com seu raio de
referência, empacota tudo numa globalidade só... por isso Freud diz que não se
pode trazê-lo para o Pcs., porque isso tem que ser traduzido em dois... mas eu
pergunto: pode ou não pode?... pode!... não na fala, mas na escrita... é quando
um homem, dito homem, além de falar, de fazer suas referências dialéticas no
regime do binário, colabora com o trabalho do Haver, ou seja, deforma tec-
nicamente, artisticamente, o Haver, e assim exprime essa pleromia... é a isso
que quero chegar...

420
É o que não pode ser que não

...Lacan quer chamar isso de hiper-verbal... a decantação de uma pintura,


por exemplo, passa necessariamente por essa ordem holográfica que, através
de manejos verbais, etc., o sujeito se representifica como o Haver que, na sua
trindade, produz coisas... o simples bate-boca não leva a nada, é baboseira, a
não ser que, mediante análise, leve à arte... a sublimação é o que quer que passe
ao ato por regime de criação... não é ficar-se batendo boca, porque isto é menos
que masturbação... há que passar ao ato, por regime de criação artística... esta
é a verdadeira sublimação...
...hoje, eu estava lendo uma revistinha de sacanagem... péssima, aliás,
pois o artista, que é excelente, não entende nada de sacanagem... achei bonito
e comprei, mas o troço não fala ao pau de ninguém, porque o cara quis “subli-
mar”... ao invés de fazer um desenho pornográfico que fale realmente, bancou o
artista demais e, a meu ver, retirou do desenho os dispositivos pulsionais fazendo
superposições modernosas... alguém que estava junto a mim disse que aquilo
era da ordem da sublimação... respondi que era da ordem da babaquice, porque
fazer desenho de sanacagem já é sublimação... como não?... fazer sublimação é
fazer um avião que não voa?... para se ser sublimador fazendo pornografia há
que pôr o público de pau duro, se não, não se fez... o leitor que trate de sublimar,
o problema é seu... o autor já a fez, transformou em desenho, é sublimação...
em relação ao leitor pode ser fantasia, mas lá é sublimação... ele não precisava
ficar com vergonha e estragar para parecer que é sublimador... ficou brochante
e, não, sublime... ele não me obrigou à chance de sublimar nada, porque não
me tocou: não fedeu nem cheirou... pois há essa tolice, mesmo entre analistas,
de se pensar que o fino da sublimação é fabricar um avião que não voa...

* * *

...não se trata de representar um saber absoluto, porque conteudístico, e


sim de representar o saber absoluto da estrutura plerômica... porque lá está, está
lá na obra do pintor, só que o modo de ele contar é regionalizado, porque ele
respeita a castração, porque ele é só Picasso, ele não é Degas... se entendermos

421
O Sexo dos Anjos

o que chamo de saber absoluto como o saber absoluto de Hegel, como es-
gotamento de todas as possibilidades de contradição, isso não chega a lugar
nenhum, isso é história total do Haver, e não é para nós... o empuxo disso, o
modo de funcionamento disso, é a certeza de que se está no saber absoluto da
produção: isto é possível... é a certeza que o sujeito tem... é a certeza de que
até o psicótico, porque é falante, tem, de estar falando como sujeito... ele está
confundindo campos, mas não está deixando de falar como sujeito...
 P – Fernando Pessoa/Álvaro de Campos te dá razão. Em Páginas Íntimas
e de Auto-interpretação, chama atenção que há uma poesia “páulica”, que é
uma poesia unária que só percebe um vértice do cubo, que não dá conta das
outras duas, é uma poesia que confunde idéia, palavra e sensação. Há uma
poesia que ele chama de “intersensacionista”, que entra em sensação, que já
vê dois vértices de um cubo, que já consegue representar uma sensação através
de palavras que associa. E tem uma poesia que ele chama de “sensacionista’’,
que se situa nos três vértices de palavras, que isso se torna a representação
de uma própria sensação...
... o que Freud chama de possibilidade de regressão ... é preciso muita
atenção para o conceito de regressão... a regressão acontece quando a coisa
chega a ficar viva na ordem perceptiva... ele diz que o sonho é uma regressão...
ao quê?... ao Inconsciente... regressão no sentido de que o Pleroma é posto, é
dado... a alucinação é como um holograma, que dá a volta por trás e vai aparecer
como percepção... vejam que há uma simetria nesse esquema que apresentei
sobre a primeira tópica freudiana: o terceiro elemento da direita é o Haver, que
é hologramático... minha percepção capta binariamente o Haver que é ternário,
então, quando isso regride a ponto de fechar o Inconsciente com o Haver, há a
alucinação... o sonho fecha o Inconsciente com o Haver: sinto dor, sinto coisas,
sinto o diabo no sonho –porque fecho o Inconsciente com o Haver...
 P – Uma das críticas de Lacan à estrutura do Inconsciente de Freud é essa
ternariedade. Ele vai abordar isso n’O Mito Individual do Neurótico, onde
coloca a questão do Édipo e diz que a tese de uma estrutura do inconsciente
em Freud só poderia ser sustentada se se colocassem quatro termos, senão

422
É o que não pode ser que não

ficaria na ordem da neurose, do inconsciente neurótico, do Édipo, a nível da


proibição recalcando a castração, o desejo inconsciente. Você disse da outra
vez que aí estaria o Não-Haver.
...é o quarto termo, o fundador de tudo, a causa de tudo... toda essa tri-
dimensionalidade do Inconsciente só funciona –pode até fazer essa tangentóide
no processo perceptivo, etc. – porque tanto o Haver quanto o Inconsciente
trabalham os quatro termos... mas só três são efetivos, o Outro é só causante:
são quatro sexos, mas um é silencioso...
 P – O efetivo não seria o quarto termo?
...não, ele é o causante...
 P – Portanto, efetivo. Se não, fico num adormecimento neurótico.
...não, ele é o causador dos efeitos... o efetivo é quem faz o efeito, é a
sede dos efeitos...
 P – O estruturante é o Não-Haver, se não causa a neurose.
...não, Acoisa não é estruturante, e sim Causa... o que é estruturante, no
sentido do Haver, é o fenômeno inteiro de, por causa desse impossível, haver
explosão, queda das simetrias, causação espontânea de dissimetrias, apareci-
mento do simbólico...
 P – Sim, mas isso são efeitos estruturantes da causa estruturante que é o
Não-Haver. Você mesmo já falou isso uma vez. São conseqüências estruturantes
do Não-Haver.
...não se pode colocar o Não-Haver sozinho estruturando o resto... é
todo o processo que se estrutura na causação dessa coisa... tanto posso botar o
Não-Haver fora como dentro da loucura do Haver: ele é uma loucura do Haver,
é a fantasia do Haver, pois se ele não-há... lá no texto do Pleroma, eu disse que
posso conjeturar isso pelo hábito da simetria, a qual se repete, se repete tanto que
se quer que se repita até o seu fim... então, essa causa é conjeturada pelo próprio
Haver: ela passa a ser causa na medida em que, não havendo e sendo promessa
última de simetria, faz todo o processo regredir e continua funcionando...
 P – Nesse texto de 53, de Lacan, há um equívoco de estratégia. Ele faz a suposição
de que o inconsciente freudiano é ternário porque a castração é ternária, e é jus-
tamente o contrário. A castração é ternária na explicação de Magno...

423
O Sexo dos Anjos

 P – ... porque é o inconsciente já instrumentalizado de Lacan...


 P – Já instrumentalizado pelo Magno. Lacan tem um raciocínio binário,
cobrando de Freud uma estrutura ternária. Mas a dele é binária.
... é binária até certo ponto, porque, no que ele se depara com o ternário,
que insiste, ele põe: real, simbólico e imaginário... ele põe o nó borromeano e
termina a vida se perguntando pelo Terceiro Sexo –o que ele não poderia morrer
sem perguntar, pois que faz sentido no seu processo... ele trabalha binariamente,
binariamente, e sempre falta um troço, há um terceiro ali, que ele aliás sempre
colocou... no nível da binariedade, o terceiro só consegue aparecer como in-
tervalo, como aquilo que um representa para outro... mas, no nível da trindade,
não... daí a insistência dele no real, no que ele quis chamar de real, que não se
inscreve, que é impossível de se inscrever, onde?... na estrutura binária...
 P – Nesse texto de 53 Lacan remete isso à pulsão de morte. O teu raciocínio
não colocaria o quarto termo como uma relação de efeito entre pulsão de morte
e fala, e sim remeteria isso ao Não-Haver. Lacan não. Ele está cobrando da
relação entre pulsão de morte e falo, própria do pensamento dele, uma equi-
valência, um limite que, para ele, seria não inteiramente satisfatório ou uma
coincidência entre a trinariedade da leitura edípica normalmente atribuída e
a trinariedade do Inconsciente. Quando você fala em quarto termo, não está
falando já nessa tradução que a pulsão de morte efetua sobre o Não-Haver,
e sim do Não-Haver, de algo que está para aquém disso, que não está, nesse
sentido, nem no furo, nem no real. No texto de 53, parece-me que isso se
traduz, mas isso é permutável na relação Freud-Lacan, mas não é permutável
nisso que você está chamando de Inconsciente ternário. Você está chamando
o Inconscientede ternário por outra razão.
...por razões freudianas, quero crer...
 P – Mas por outra razão que não a daquele texto.

* * *

...o tempo é uma questão de possibilidade sistêmica, de procrasti-


nação, mais nada... o tempo não é senão o movimento da libido, no que ele é

424
É o que não pode ser que não

freado aqui e ali por organizações sistêmicas, ele se chama de tempo: tempo
psicológico, tempo lógico... o que é o tal do tempo lógico?... posso adscrever
tempo lógico ao Inconsciente?... não posso, isso não existe... o tempo lógico é
uma relação entre o Inconsciente e o Pré-consciente... não há o tempo lógico
no Inconsciente, pois Freud disse que ele não tem tempo, não tem contradição,
aqui e agora ele apresenta o Pleroma inteirão... agora, no que vou girar em
torno do pleromizado, vou temporalizar isso por minhas posições sistêmicas,
de instante de ver, tempo para compreender, etc. ... tudo isso é jogo da ordem
binária de Pré-consciente com a ordem ternária do Inconsciente... é tentativa
de tradução... isso não gasta tempo, isso faz tempo, produz tempo... isso não
consome um tempo que há por aí, isso faz o tempo... quando o universo na
sua materialidade começa a se diferenciar, ele começa a criar tempo: não há
um tempo que ele gaste, é ele quem inventa o tempo... o tempo não existe, se
não se o fizer... aquelas pessoas que dizem: “eu não tenho tempo, não faço isso
porque não tenho tempo”, é o caso de se perguntar: como é que Picasso tinha?...
porque ele era picasso, certamente...

24/SET

425
O Sexo dos Anjos

426
K: no princípio era o fim

4
K: NO PRINCÍPIO ERA O FIM

...na vez anterior, eu havia tomado os Princípios que Freud nomeou


para a psicanálise e havia mostrado que, em Freud e repetido no Esquema
Delta, eles se reduziam facilmente a um só... o que arrolei sob o título: Nada
Além do Princípio do Prazer... entretanto, um dos Princípios caros a Freud foi
deixado propositalmente de lado, nele eu não toquei... referi-me de passagem
ao Princípio da Inércia, mas não me referi ao Princípio de Constância... em
seguida, pude trabalhar minha cabeça a este respeito com a minha Bandeira
do Recreio: discutimos amplamente isso lá, contei os meus interesses teóricos,
recebi colaborações, críticas, e queria fechar hoje o assunto...

* * *

...o Princípio de Constância fica, na teoria, bastante deslocado dos de-


mais princípios e extremamente equivocante e em equívoco: é como se fosse
algo necessário uma vez que há os outros princípios, uma vez que há diversos
tipos de modulações dentro do funcionamento psíquico em Freud... o que varia
de aparências homeostáticas até à tendência ao inerte –mesmo que seja inércia
de movimento, inércia de repouso –ao zero absoluto... é um princípio que resta
muito ambíguo... mas, mesmo em suas últimas colocações, Freud exige como
que um aparelho de segurança de funcionamento dos princípios de Nirvana,

427
O Sexo dos Anjos

de Prazer, de Realidade, que haja esse Princípio de Constância... no entanto,


fica mal definido na teoria, de tal maneira que Kostanzprinzip é enunciado em
geral por Freud como uma tendência do aparelho psíquico a manter o nível mais
baixo possível ou, pelo menos, tão constante quanto possível, da quantidade de
excitação que contém... isso se choca, por exemplo, com a tendência ao zero,
que aparece como Princípio de Constância funcionando no movimento para o
Nirvana... alguns autores pedem a equilibração disso num zero, não absoluto,
porém relativo... a tendência é manter um zero relativo à quantidade de exci-
tação, mas isso, necessariamente, se choca com a tendência do Princípio de
Nirvana à morte... seria um zero absoluto...
...então, esse princípio fica –a partir, na verdade, de idéias de Fech-
ner –mais ou menos no limbo da teoria psicanalítica... no entanto, é exigido...
o próprio Freud chega, como citam Laplanche e Pontalis, a dizer que sob a
aparente simplicidade do termo Constância “pode-se entender as coisas mais
diferentes”... os autores do Vocabulário de Psicanálise arrolam alguns sur-
gimentos conceituais do Princípio de Constância, como, por exemplo: (1) o
princípio de conservação de energia que está em jogo, a manutenção do mesmo
quantum de energia; (2) o princípio que é correlativo à 2ª Lei da Termodinâmica,
a lei da Entropia: a tendência de um sistema fechado é igualar as diferenças
energéticas, no caso lá da física, as diferenças de temperatura, chegar a um
branco, a um zero de temperatura; (3) pode também ser entendido no sentido
de servomecanismo cibernético, de auto-regulação, uma espécie de feedback
constante do aparelho, auto-regulando-se através dessa referência...
os autores do Vocabulário denunciam essas visões como ambíguas,
senão mesmo como contraditórias, e mostram que só em 1920, no próprio Mais
Além do Princípio do Prazer, Freud formula explicitamente um Princípio de
Constância: (1) o qual é dado como fundamento econômico do Princípio do
Prazer: se o Princípio do Prazer é base de tudo, seu fundamento econômico
é o Princípio de Constância... (2) Freud deixa, nessa definição, um equívoco
que se produz entre a tendência à redução absoluta e a tendência à constância,
que não são a mesma coisa, mas ele põe como equivalentes... (3) a tendência

428
K: no princípio era o fim

ao zero absoluto, com o nome de Princípio de Nirvana, é considerada como


fundamental, os outros princípios não sendo senão modificações disso, o que
ele chama de Mais Além do Princípio do Prazer e que, no que ponho a libido
como esse percurso desejante, chamo de Nada Além do Princípio do Prazer...
(4) ao mesmo tempo Freud parece não ver funcionando “na vida psíquica e,
talvez, na vida nervosa em geral”, senão uma única tendência mais ou menos
modificada... no que os autores concordam com minha redução a um princípio
só... embora tenha feito isto, ele introduz no nível das pulsões um dualismo
fundamental e irredutível: Pulsão de Vida e Pulsão de Morte... dualismo este
que acho, em última instância, que meu Esquema Delta reduz...
...tudo isso me faz pensar que há um MONISMO fundamental no seio
do Haver, o qual propõe o movimento no campo do Sentido e na passagem pelo
Real, dentro do Revirão... propõe como função uma estação ternária e, dentro
do campo do Sentido, explicitamente isso se polariza numa dualidade, donde
um dualismo... mas, em última instância, é um processo monístico... nós não
temos nada a ver com a filosofia, embora possamos lançar mão de projetos da
filosofia como saber aqui e ali, mas não é o nosso problema... não há dentro do
Esquema, tal como eu o penso, uma contradição entre monismo, dualismo e
ternariedade do Haver... não é contraditório, é apenas diferenciado em função
do movimento do Haver, do Pleroma, no que chamo de Plerocinese... mas, de
qualquer forma, é preciso se dar conta desse tal Princípio de Constância que
parece escapulir dos outros princípios...

* * *

...vamos ver que ele é nada mais nada menos do que o movimento de
constância que quero considerar como qualitativa e quantitativa de energia do
Haver, se quiserem dar este nome, da força do Haver, ou da constância libidinal
do Haver... quero propor que podemos entender, segundo certos aparelhos de
raciocínio da física mais atual, que há toda razão de Freud pensar a necessidade
dessa constância...

429
O Sexo dos Anjos

...imaginem um campo onde acontece tudo que pode acontecer... chame-


mos isso de Campo Pleno do Haver... não é por nada que comecei a introduzir
o conceito de Pleroma e o Esquema Delta pela condição, pela situação, que
está ali no Esquema com o nome de A... comecei a introduzir o Esquema pelo
Nada... não é por nada... é pelo seguinte: uma das teorias mais plausíveis é, no
parecer da física, no que toca à cosmologia atual, perfeitamente compatível
com uma idéia nomeada no pensamento oriental chinês, e que já trouxe aqui
diversas vezes em Seminários anteriores, com o nome de Chi, o Vazio... isso
que as pessoas pensam que seja o vazio no ocidente –que passou pela física
com o nome de vazio mesmo, de vácuo, que é outra forma de dizer o vazio,
de éter –pensou-se que fosse uma ausência absoluta de qualquer coisa... os
chineses insistem nessa noção do Chi como vazio, mas o vazio para eles não
é a ausência de qualquer coisa, e sim uma neutralidade absolutamente plena
de si mesma... e um dos pensamentos da física contemporânea é dizer que se
pudéssemos pensar a plenitude de tudo que há para além de universos conhe-
cidos, etc., seria um grande vazio que não é um vazio de coisa alguma, e sim
um vazio no que diz respeito à quebra das diferenças: um vazio absolutamente
simétrico, porém com uma energia em estado de equilíbrio por neutralidade
infinitamente superior a qualquer energia que possamos sonhar em termos de
universo material conhecido... ela parece que não se apresenta, porque está em
estado de neutralidade, mas é extremamente superior como força, é a quanti-
dade de energia que se pode imaginar para universos pensáveis, materialmente
dados... então, é como se esse grande campo fosse vazio de diferenças, fosse
absolutamente simétrico, qualquer ponto sendo idêntico a qualquer ponto, mas
esse vazio é uma massa espantosamente superior a qualquer energia pensável
ou verificável no campo da matéria...
...físicos modernos chamam atenção para o fato de que a criação,
cosmogonia de universo possível, teria que ser dada a partir de uma quebra
espontânea de simetria no seio de uma neutralidade... então, vamos sonhar aí: é
como se, no seio desse vazio, sei lá por que, porque o vazio se estremece –estou
dizendo assim porque eu sei: no meu Esquema é porque do lado de fora desse

430
K: no princípio era o fim

vazio não há o Não-Haver; esse vazio, por essa simetria absoluta, se espreme
de alguma maneira porque não pinta diferença dentro, mas pinta, conjeturada
por ele, por repetição de simetria, uma diferença fora, e ele se espreme de
alguma maneira para eliminar essa última diferença que ele propõe de direito,
mas que não há de fato... posso imaginar que esse vazio sofre comoções diante
do seu Outro, que é o Não-Haver... e no que ele se comove no seu Não-Haver,
no seu Outro, ele faz PLICAS... do verbo plicar: faz dobras, se enrosca sobre
si mesmo... faço questão desse termo porque tem aí o implicar, o explicar, o
complicar e faz referência também ao pensamento de David Bohm, um físico
que gosto de ler porque o delírio é parecido com o meu, que criou essa ordem
implícita, ordem explícita, implicante, ou explicante...

...no que isso se comove na suposição que faz de um Não-Haver, isso faz
plicas, faz ondas... dobraduras são repetições de energia sobre energia... então,
alguma coisa, dentro, começa a se condensar nessas plicas, nessas dobraduras
da energia sobre si mesma... estou fazendo uma grande fantasia, mas que alguns
físicos não acham delirante, acham possível e procuram equacionar de algum

431
O Sexo dos Anjos

modo... eles dizem que há uma quebra espontânea de simetria e não se sabe por
quê... estou dizendo para eles que é porque a constância da simetria –eu sonhei
a palavra constância –no seio dessa neutralidade exige a última das simetrias
que, por Não-Haver, cria um impedimento... então, a coisa se comove... se
pudesse passar para o Não-Haver, não faria plicas, esvaziaria o próprio vazio,
mas, não podendo esvaziar o vazio, faz marola, se comove... no que faz marola,
faz condensações... fazendo condensações ali dentro desse grande Chi, por
causa dessas plicas –talvez a exposição que eu tenha feito do Esquema Delta
até hoje tenha dado a impressão da exigência de que toda a massa do Haver
passe imediatamente por aquele circuito, em F, não necessariamente –pode
ser que essas plicas façam pequenas, pequeníssimas regiões dentro do vazio,
de condensações, e o resto continua neutro... então, se de repente aparece uma
pequena condensação, esse vazio, ele, no seu estado de neutralidade, começa a
funcionar como aquele A, o qual, por não ter mais diferença interna e excitado
pela diferença externa que ele próprio se propõe, torna-se gozo-do-Outro...
...esse estado geral de vazio que estou apresentando aqui é o que, no
Esquema Delta, está aparecendo como A, o Nada... na medida em que essa neu-
tralidade está ali absolutamente cheia de energia, porém sem diferença, no que
ela se propõe uma diferença externa e se comove com isso, significa que ela faz
essas marolas, essas plicas... no que ela, por essa suposição que faz, começa a se
comover com a sua alteridade, que não há, mas que ela se propõe, ela começa
a funcionar enquanto A no regime do gozo-do-Outro, de querer passar para o
Não-Haver... esse movimento último do Haver em sua neutralidade é o que
promove as tais plicas, as quais não são outra coisa senão o gozo-do-Outro, o
qual não vai ter um final feliz como o gozo-fálico pode ter... esse movimento
é o gozo-do-Outro... não havendo o Outro do Outro, esse gozo não faz mais
do que conseguir criar grandes acúmulos energéticos, grandes prensamentos
energéticos que vão explodir ali no lugar do Furo, F, num grande Big-Bang...
o gozo-do-Outro seria dado como tal se pudesse passar para o Não-Haver, mas
que, não podendo, prefiro chamar –e há aqui uma pequena diferença em relação
ao que Lacan chama assim –esse próprio movimento de gozo-do-Outro... não

432
K: no princípio era o fim

poderíamos falar, por exemplo, que a mística diz do gozo-do-Outro senão de


dentro desse gozo, senão fazendo plicas, marolas no seio do Simbólico... no
seio da neutralidade, o Haver faz marolas no seu gozo: uma maré de gozo, não
um gozo taxativo como o gozo-fálico, uma maré gozante que não encontra
termo... isso é o que estou chamando de gozo-do-Outro...

* * *

...chamo, então, campo do Chi, onde o gozo-do-Outro é possível, onde


se pode operar como grandes marés no sentido de chegar ao Não-Haver... só
que não chega e o que acontece é que isso se condensa nessa marola e, não
agüentando de tanto tesão, de tanta tensão, dentro da condensação energética,
explode... explode no Real do Furo e se transforma em gozo-fálico... então,
no esquema acima, o gozo-fálico no que é explosivo constitui o que quero
chamar de Simbólico como partição... depois, vem o campo do Sentido de
dentro dessa partição... o Real do Furo recomparece lá como diferença entre
entropia e neguentropia e desaba na morte pelo Amor, pelo Eros, o qual não é
senão isto aqui mesmo...

433
O Sexo dos Anjos

...estou apenas realizando o mesmo Esquema no seio de Chi, se não,


pode-se ficar pensando que ali por dentro do Esquema tem que passar o Chi
todo... não há Chi todo, o que vimos são manifestações cósmicas do Kaos... e se
tenho manifestações cósmicas do caos posso supor o caos como Chi e até como
movimento do Chi para o Não-Haver enquanto gozo-do-Outro... talvez essa
idéia de Kaos dos gregos seja isso... ...então, isso se condensa em A e explode
porque não pode passar para à –sua vocação, seu desejo é para à –e vai per-
correr aquele circuito todo... só que, aqui, estou abrindo o circuito para mostrar
que de A até F, isso recai no campo imenso –u pequenininho, não é questão
de tamanho –no vazio, que é muito mais potente em termos de energia do que
tudo que acontece dentro do A-Delta enquanto manifestação do Esquema... Chi
pertence ao Haver, isso aqui é apenas uma das formas... o fato de o Esquema
ser inteiro não significa que uma de suas partes não possa ser muito maior do
que o resto... isto enquanto potência... e é uma coisa que os físicos aceitam:
eles acham que na medida em que procuram a força fraca, essas coisas todas,
no interior do átomo, em última instância, deve existir uma força compatível
com a idéia de vazio, a qual é impensável porque a potenciação algébrica dessa
força é fora dos limites do que já se concebeu como força... então, isso que
chamamos de Cosmos pode ser um traque de velho, um peidinho divino, uma
bobagem no seio da grande massa energética do que seria o Chi...
...aquilo que ali está chamado de Nada e que se comporta entre esse
Nada e o Furo como gozo-do-Outro é essa massa do Chi... não é um outro es-
tado, pertence ao A-Delta e é uma região dele que engole as outras de montão...
é muito maior do que as outras e permanece lateral ao A-Delta... Chi é Nada
com toda a sua pujança... é preciso, para pensar o que tenho a dizer a respeito
do Princípio de Constância e do seu surgimento no campo do Haver, que vocês
entendam que não é necessário que toda a massa, digamos assim porque não
se trata de massa, que toda a potência de Chi passe pelo Furo para criar um
Cosmo e só ter ele... não, podem ser pequenas regiões que criam um cosmo e
a grande parte de Chi continua ali... pior, não continua só ali, é como se fosse
assim o oceano dentro do qual está de molho esse universo...

434
K: no princípio era o fim

...desde o começo, isso é temporal, consecutivo... é como se fosse um


nó borromeano de um jeito só... eu não penso sincronicamente mas diacroni-
camente, não importa qual é o tempo, se lógico, cronológico... os estados do
Haver dentro desse caso aí são simultâneos... devemos pensar isso também na
sincronicidade do nó borromeano... eles podem ser sincrônicos, nada impede,
mas o que estou dizendo é uma coisa muito particular: ainda que esses três
estados não fossem sincrônicos, pelo menos um resta como constante no fundo,
que é o Chi, o oceano onde bóia o A-Delta presentificado como cosmos... o
cosmos está de molho no Kaos, no caos... eles não tratam um com outro porque
a própria neutralidade com que o caos se apresenta, antes de fazer marola, no
que ele não está fazendo marola no momento dado, é tão neutro que aquilo que
está modalizado não se dá conta da água onde está mergulhada, ela é neutra...
não havendo comoções dentro, ela não se dá conta: é uma neutralidade... nesse
sentido, o próprio Esquema seria a primeira modalização... o próprio Esquema,
no que ele represente um cosmos organizado, está de molho no Chi...
...o Esquema Delta não tem forma circular... eu desenhei uma forma
circular para dizer que ele é cíclico... ele está de molho, é como se fosse uma
representação, por exemplo, de faixa de Moebius ou mesmo euclidiana dentro
do plano projetivo: Chi é o plano projetivo... quando alguma comoção se dá e
se rasga como explosão, começam a aparecer a banda de Moebius por um corte,
bilateralidade por recortes de cortes, etc., mas está tudo mergulhado no seio
do plano projetivo, se quisermos falar topologicamente... se quisermos falar
cosmologicamente, há o grande campo energético de éter, como pensam físicos
de hoje, e dentro dele pequenas comoções criam um cosmos que continua de
molho naquela neutralidade... a esquematização disso, sem a explicação deste
modo, já está publicada na revista Revirão nº 3: um certo percurso que faço do
plano projetivo até o falante...

* * *

...então, concebido o Esquema Delta aqui dentro, começa-se a entender


não só a necessidade de Freud como a necessidade do próprio Haver, mesmo em

435
O Sexo dos Anjos

suas modalidades de sentido, de fazerem referência a uma constante... postulada


a constante Chi, a constante do vazio, ela é o referencial econômico, diz Freud,
de tudo que funciona: é o padrão, o paradigma do Haver, uma vez que Chi
sempre está presente... aqui e ali podem aparecer gozo-fálico, gozo-do-Outro,
gozo-do-Sentido, dentro do próprio Chi, comoções que são gozo-do-Outro,
mas Chi enquanto A, enquanto vazio, está sempre presente... então, há uma
constância, uma constante não universal, porque isso não é um universo, não
é uma constante de vazio... é o sentido do Haver, um sentido sem sentido que
é absolutamente neutro... quando acontece, ele é neutro, é perda radical dos
sentidos, mas é uma massa energética, força e nada mais... isso em termos cos-
mológicos, em termos de significação, etc., é que toda e qualquer significação,
por Revirão, acaba dando em não-senso, Lacan já disse isto...
...o que me interessa é ressaltar que há Chi como constante do campo...
Chi este que fica sendo em toda e qualquer manifestação no seio de A do Haver,
portanto no seu próprio seio, de Chi, fica sendo referente fundamental do que
der e vier... então, o Princípio de Constância é o padrão ouro do que no Haver
acontece, o padrão econômico, o metro iridiado... é o metro, é o significante-
mestre, se quiserem... e não é um significante porque não tem bulhufas... talvez
a idéia de significante seja a idéia de Chi, de vazio... se pensar esse vazio –
coloque onde quiser: na física, na linguagem –como massa mais dominante
de potência, e neutro, ele se torna em qualquer situação o referente do que
quer que haja, o referente de haver –e não do Haver, porque ele é o Haver...
portanto, referente de haver é Chi...
...esse Chi, no que as coisas tornam estados, e no que dentro dos esta-
dos as coisas se modalizam, no estado do gozo-do-Sentido, por exemplo, vai
repercutir, ecoar, com novas constâncias em função do Princípio que estiver
em jogo... o grande movimento nirvânico é o Princípio do Prazer, o qual acossa
o próprio Chi, fazendo gozo-do-Outro... acossado, não encontrando o Outro,
isso explode, passa pelo Furo primeiro, revira e explode em gozo-fálico... ex-
plosão que tem como resultante o que quero chamar de Simbólico: a partição...
temos aqui, então, o Princípio de Constância funcionando como princípio de

436
K: no princípio era o fim

explosão fálica, referida, e de cisão... lá adiante isso vai funcionar entre entropia
e neguentropia como princípio de cisão e princípio de recolagem... teremos
lá, então, Pulsão de Vida e Pulsão de Morte, Eros e Tânatos, tudo isso como
modalizações do princípio de neutralidade, que é o referente... e como está tudo
isso mergulhado dentro dessa neutralidade do vazio, a sua referência constante
é o vazio no qual ele bóia... é o vazio mais pleno que há...
...é o vazio querendo ser nem mesmo vazio, não querendo nem ser
nada... é como eu disse lá no texto do Revirão nº 3: ele quer ser Não-Haver,
não quer nem ser nada... nada já é muito para ele... se ele conseguisse não ser
nem mesmo nada, não teria nem nomeação possível... não se poderia chamar
nem de nada...
...o Não-Haver é a constante da libido... o desejo, o movimento dese-
jante, é uma constante, mas ainda por trás dele há a constância de sua chegada
ao fim de si mesmo: a simetria absoluta, onde não há mais diferença nenhuma
dentro do seu seio... e continua a imperar a constância do pedido, mas esse
pedido é interno, é de direito, e não de fato... mas eu digo: assim mesmo substan-
cialmente temos Chi como um vazio, neutralidade, sendo referente, a constante
plerômica, aquilo que Einstein procurava como uma constante universal...
...Chi é a materialidade, a substancialidade do A... não tem coisa mais
caótica do que Eros, o qual quer apagar as diferenças... o ódio, não... aliás, não
gosto de chamar de ódio, prefiro chamar de Anteros, que é o nome do deus
grego... então, Eros e Anteros: a tendência à fusão e a tendência à separação,
a qual vem do criativo, que é masculino... pela explosão da distinção aquilo
cresce, depois vem a tendência amorosa de apagar as diferenças, “seremos um
só”, inapelavelmente...

* * *

...é esse Princípio de Constância que quero fazer com que entendam
como sendo o referente que apontei quando trouxe aqui o que acontecia na
explosão e que ficou mal compreendido e mal explicado...

437
O Sexo dos Anjos

...estamos aí, no seio daquilo que Lao Tsé disse: “Todos os seres saíram
do Ser, mas o ser saiu do Não-Ser”... o que quer que compareça com aparência
de ser, um estado ou modalidade, saiu de Chi... todos os seres saíram do ser,
da explosão do Furo –que Lacan gosta de chamar de real –mas o Furo saiu
do não-Furo, do nem-furo... quando digo que no processo do gozo-fálico há
explosão em , temos o mau hábito de pensar que a cisão é necessariamente
binária... mas insisto em que é preciso pensar que a cisão é ternária senão jamais
vamos entender, ou produzir uma lógica a três termos que possa dar conta da
estrutura do falante e da estrutura do Haver...
...com essa introdução do Chi como constante, posso qualificar o Ter-
ceiro, o qual não é senão Chi, pois por mais que isso faça marola, plicas, se
condense e crie algum cosmos, esse cosmos não tem, não reflete, não toma,
digamos, “consciência” do Chi onde está nadando, por causa dessa neutralidade
do Chi... mas a reflexão pensante dentro desse cosmos pode imediatamente
conjeturar, como conjeturou no passado, no mais antigo pensamento chinês,
esse Chi presente... porque aqui se condensou e explodiu em dois, na oposição
1
/ 2, não comparece sozinho: se não foi todo o Chi que passou pelo Furo,
está presente o Chi como terceiro e neutro o tempo todo diante da binarie-
dade da partição dentro do cosmos... então, o cosmos se apresenta, à nossa
vista, sempre dual, mas se penso nele só dualisticamente, ele fica sem termo,
sem possibilidade de ser pensado porque tenho que pensá-lo como partição
binária no seio de uma neutralidade constante energética que o suporta, a qual
funciona, diante das oposições, como esse lugar do vazio em que Lacan quis
colocar até o sujeito como mero interstício, mas é substancial, é o operador e
o sustentador –essa é a mutação que vai aparecer aí e que, se é neutro na sua
constância, não é neutro diante da diferença porque a diferença tomará essa
neutralidade, sim ou não, a partir da sua ordem diferenciada... portanto, ele
passa a terceiro termo...
...a aparente partição, cisão binária, o aparente dualismo do Haver, é
por relegação, por desprezo que fazemos do terceiro que está embutido ali...
tanto podemos pensar que isso partiu em dois e ficou no seio de Chi, como que

438
K: no princípio era o fim

a energia que passou pelo Furo – pensemos agora que ela passou toda – para
passar ela tem que se condensar para explodir... mas se pensarmos que isso faz
o movimento, ela parte, passa por dentro do Furo e parte, continua o caminho
em torno do que passou pelo Furo: um vento... não existe o vento solar?...
...o que se condensou e passou explosivamente pelo Furo não é senão
uma condensação do Chi, o qual, se permanece presente, tem valor igual ao
da explosão, neutralidade... o ponto-bífido é no meio, neutro, é Chi, o próprio
Chi, na sua neutralidade... e quando digo “a enquanto Chi’’ é substancialidade e
mais nada... substancialidade, orientação e modalização são coisas diferentes...
não confundir aparelhos categóricos com substâncias... estou categorizando
diferente a substancialidade do que ocupa o a como Chi, estou categorizando
o a como modalidade no seio do Esquema do Haver, do Esquema Delta... são
nomes, comportamentos diferentes para a mesma coisa... e mais, posso chamar
esse Chi nada mais nada menos que de Falo: o Falo é isso, essa neutralidade...
então, posso dizer que ele comparece como a minúsculo e não como F, o qual
é a situação de passagem do Revirão... F não tem substância, sua situação é
a de que condensou demais, explodiu... esse interstício é o que chamo de F...
posso dizer que ele é cheio de Chi, posso botar o objeto a lá dentro, mas o F é
a categoria de passar, de avessar, mais nada: categoria de avessamento...
...o erro de todo o pensamento, principalmente ocidental, é só ter pen-
sado na dualidade da partição –que é evidente, razoável, pois do ponto de vista
científico, da pesquisa, etc., sempre se encontra dualismo –não querendo pensar
que isso exige um terceiro... uma vez proposto o dualismo, não podemos mais
pensar que o que haja para além disso seja um campo onde isso está mergulhado,
porque pensado isso é pensar necessariamente como terceiro: se tenho dois aqui,
aquele já é o terceiro... esse terceiro –que não se sabe dizer bem, o tempo todo,
pelo menos, dentro da modalidade dual da língua –está sempre presente nos
atos: nos atos poéticos por exemplo... ele está sempre exigindo sua presença
densa... aí, então, que posso pensar: se isso explode em dois por que vai se
juntar outra vez em um no campo do A?...
...Chi é neutro, não tem mistura possível, é heterogêneo... o terceiro
é heterogêneo aos dois... no que Chi é referente a empuxo geral, aquilo vai se

439
O Sexo dos Anjos

partindo, partindo, cria o seio da diferença, o seio do sentido, etc., mas, quando
perde a força, começa-se a acabar com as diferenças dentro do próprio Haver...
é a tese da termodinâmica, a entropia: no que as diferenças vão se terminando,
isso vai ficando cada vez mais próximo de Chi até ser tudo reduzido ao seio de
Chi, que está passando do lado e engole tudo de novo... quem é constante é Chi...
aliás, é um engano pensar que ele vai por fora, porque se ele é sustentáculo do
que vai por dentro, ele está dentro com sua neutralidade... não se deve pensá-lo
na sua quantidade, e sim na sua presença pura e simples... ele vai dentro: estão
lá os dois e está lá o Chi, se não não tinha nem a separação dos dois...
...essa constância do Haver, que se manifesta em função das modali-
dades, das transformações e das metamorfoses dos princípios, é que re-com-
parece... se tenho a coisa dualística posta no seio do que é cósmico e tenho o
terceiro como referente, o que acontece aqui como sistema dual não pode querer
senão a sua própria neutralidade, a sua própria constância, que é constância
de sistema... portanto, é nada mais nada menos do que homeostase, a qual é a
aparência que o referente toma no seio de um sistema limitado: manter-se na
sua própria neutralidade... aí que Freud diz –e parece incongruente, mas não
é –que o Princípio de Constância aparece também como mínimo de tensão,
com tendência ao zero... onde?... no gozo-do-Outro... no sentido freudiano em
que a Pulsão de Morte é, primeiramente, pelo menos, situada para ele como
destruição do orgânico, queda no inorgânico... então, a Pulsão de Morte, situada
como transposição para o Chi, para o A, ela se dá... ela não é plenificada, pois
quando tudo isso chega no A já é um primeiro movimento de Pulsão de Morte
realizado, realizável... o que não é realizável é o que está para além disso, para
além do impossível regional: o impossível absoluto, que vai criar a comoção
chamada gozo-do-Outro... chegou no A, acabou a diferença interna... estamos
em pleno Chi, o qual vai se comover com a diferença externa, produzir gozo-
do-Outro e produzir Furo...
...por isso Freud diz que a Pulsão de Morte trabalha em silêncio e o
barulho do mundo se deve a Eros –e a Anteros, que ele esqueceu de apontar...
ela trabalha em silêncio, porque é compatível com o referente, que é neutro...

440
K: no princípio era o fim

a gente nunca se deu conta disso, e o ocidente fez todas as suas coisas em cima
de Eros e Anteros...

* * *

...este é o Esquema $, o esquema da tripartição e trijunção do campo


do Sentido entre e A, no Esquema Delta: uma coisa explosiva, que, quando
chega à inércia de movimento, aquilo começa a sair e se condensa de novo...
mas tenho que considerar três: 1, 2 e 0... toda oposição tem um terceiro
que faz silêncio, mas tem força e substância... esse terceiro como constante K
é o campo de referência, o qual suporta e comanda... é a hegemonia que Freud
empresta ao Princípio de Constância, sem o qual nada teria uma economia
possível... é a hegemonia no campo do Sentido entre e A... é um campo de
referência como é, por exemplo, a velocidade da luz no sistema do Einstein...

441
O Sexo dos Anjos

...posso dar uma idéia melhor comparando, mera comparação, com o


esquema do holograma a que já me referi diversas vezes... no holograma temos
um raio laser de referência e um raio de iluminação, que ilumina o objeto e
projeta essa iluminação sobre o filme... o filme tem apenas marcas, não tem
figuras... sem o raio de referência ele não apresenta a sua dualidade, a binarie-
dade que comporta –aí é o caso de dizer, por diferença de claro e escuro, etc.
–digitalmente a figura... ora, a imagem não aparece se não for atravessada
pelo terceiro que é o raio de referência... e estou dizendo que não poderíamos
ter acesso à diferença binária do que o cosmos nos apresenta sem o atraves-
samento desse terceiro iluminando não o cosmos, mas a sua ordem implícita
inscrita no filme... iluminando a ordem do cosmos, que tem o terceiro como
substancialidade energética... é o campo de referência...
...assim como o que quero chamar de TERCEIRO SEXO no campo
do Sentido, não entre o primeiro e o segundo, mas o Ex-Sexo, ex-sexivo, ele
é que é implicante e implicado... é implicante como Chi e implicado dentro da
condensação... ele está implicado nos outros dois sexos e é o implicante que
faz esses dois sexos funcionarem... sem ele não há o primeiro e o segundo...
esse Terceiro Sexo do Haver é o lugar e a freqüência da anfissexualidade...
com o que Freud confundiu os comportamentos e chamou de bissexualidade,
isto não existe... o que existe é a anfissexualidade: determinação pelo ponto de
passagem, pelo terceiro sexo, do primeiro e do segundo...
...o Campo do Sentido vai ter o surgimento do Falanjo, o qual, no meu
postulado, reinscreve o Terceiro como sexo de referência... o surgimento do
falante no seio de tudo isso que é aparentemente binário –todo o seio do cosmos
é aparentemente binário; o terceiro faz silêncio –não re-comparece inscrito
em nenhum ser outro conhecido... no ser falante ele se reinscreve... então,
começa-se a ter uma ordem ternária inscrita dentro de outra ordem ternária...
como isso se reinscreve?...
...se tenho, dentro do Esquema Delta, no Campo do Sentido, depois que
isso partiu, uma ordem ternária em que dois são aparentes e um é silencioso,
no que o falante aparece, ele comparece de novo com outra ordem ternária aí

442
K: no princípio era o fim

dentro... por isso ele é reflexivo sobre o universo... por isso a CONSCIÊNCIA
pinta... por isso a linguagem tem vez... é uma ordem ternária, agora, dialogando
com a outra... se tomarmos o animal, é uma ordem binária cujo terceiro está
lá, mas é o terceiro de todo o campo, é o Chi do campo todo fazendo terceiro
para o conjunto de todas as modalidades: isso não se fala como terceiro, mas
só como segundo...
...no ser falante, no nível disso que chamamos de Inconsciente, de
produção de linguagem, etc., a coisa se reinscreve outra vez não com a bina-
riedade computacional dos movimentos comportamentais de um animal, mas
sim como possibilidade de referir-se internamente ao Terceiro, de fazer Revirão
e acrescentar modalidades práticas –a prática do tecnológico, por exemplo –
porque manipula diretamente o Terceiro... daí a problemática ocidental com
o tal de SUJEITO, porque no seio da binariedade computacional do Haver
aparece um ser que recapitula tudo em nível do ternário, então: ressurgimento
do sujeito... ressurgimento porque tenho que fazer a suposição de um sujeito
ao Haver que é o tal Sujeito Suposto Saber... Deus, se quiserem...
...isto politicamente é o máximo de revolução... eu não sou Heidegger...
no sentido de constância e não de conservação: é o princípio de criação, de
invenção de possibilidade... o que é constante é a plenitude energética, que não
tenho nem que medir, é sempre constante, mas é multifária na sua manifestação...
é Princípio de Constância, e não de conservação...
...o Terceiro Sexo fica, então, como sexo de referência, no caso do
falante... o xx, a função fálica pura e simplesmente a partir de experiência
do Masculino e do Feminino só se define claramente no campo do A enquanto
desejo inarredável de Não-Haver... mas uma vez que se possa escrever “existe
 
a função fálica”, temos que dizer “não-todo x é não função fálica”, xx... este
é o sexo de referência, porque a função fálica pode ser negada, mas não por
inteiro: ela permanece em Chi como referência constante, como o K, como o
Falo, o dos outros sexos...
...o Masculino, comparecendo como criativo, só se dá pela negação,
proibição, castração, etc., da função fálica: existe pelo menos um que nega a

443
O Sexo dos Anjos

função fálica para que todo o processo consiga, embora limitado pela castração,
tomar forma... o que há aí é a negação da função fálica, mas não por inteiro...
tanto não é por inteiro que é porque se nega que se pode dizer que todos são...
é parcialização da função fálica no universal: a função fálica de Chi é parciali-
zada num conjunto que é chamado universal... o Feminino como destrutivo,
o Feminino é destrutivo no Esquema Delta, é rememoração de que não há
como negar universalmente a função fálica... é reafirmação disso mediante a
negação daquilo que possa negá-la... o Feminino diz: “Não existe nenhum que
diga não”... e não há outro Real disponível para o falante, para o Falanjo, senão
aquele da diferença que, para ele falante, se joga entre o e o A... ou seja:
entre neguentropia, Anteros, e entropia, Eros... não há outro Real comparecente
para o falante, há sim conjeturável como está conjeturado no meu Esquema,
mas que compareça, que o falante lide diretamente no campo da praxis, não...
ele só lida com entropia e neguentropia, mais nada...
...é o que podemos chamar de AGONIA do falante, no sentido eti-
mológico... agonia quer dizer luta... luta contra a morte, por exemplo, ou luta
de vida e morte... esse é o tal do mal-estar no Haver, é a agonia do falante...
só se pode lidar dentro dessa agonia com aquilo que os gregos chamavam de
techne agonistiké, a arte da luta, a parte da ginástica que tratava da luta dos
atletas... o falante não pode fazer mais do que techne agonistiké... donde aquilo
que falei no Rio Grande, no IV Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil: a
sagacidade na solércia agônica...

* * *

...a fala do falante é efeito de linguagem, isto é, da ordem trina do


Revirão... o sujeito só é aquilo que um significante representa para outro sig-
nificante na medida em que tal sujeito é o Terceiro referente desse significante
e sem o qual tais significantes não funcionariam... substancialidade lógica do
sujeito da fala... a enunciação é a constante substancial desse sujeito... ele não
é um efeito do entre-significantes, mas é o suporte deles... suporte mediante o

444
K: no princípio era o fim

qual se pode operar a anfilocação do significante, aquilo que Freud chamava


de duplo sentido das palavras primitivas... a anfilocação dos significantes tem
assentamento na substancialidade de enunciação, que é o Chi do sujeito na
fala... o Chi do sujeito no campo da fala chama-se enunciação, é o referente...
é isso o que vocês viram no Humberto Haydt se espremendo como suspeita
de essencialidade do mito... ele está sofrendo desde 84, mas sem conseguir
exprimir nada, por penúria categorial e matêmica... eu já o informei do meu
desenvolvimento e indiquei o que já foi publicado... mas ele quer arrancar as
fezes do próprio rabo... vamos ver aonde isso vai dar... no próximo Congresso,
quem sabe?... a não ser que, como no Congresso passado, recente, se finja que
não se leu o que tenho publicado e se o apresente como novidade...
...há muita coisa para tirar daqui ainda, ainda preciso trabalhar muito
isso com vocês em termos de linguagem, de topologia, de apresentar isso na
clínica, etc. ...
...fazendo um abreviado para terminar: isso aí diz do porquê da minha
vocação ser não nacionalizante, mas brasileirante, no sentido, atualmente,
que se encaminha para as LUSIADAS... a perversão brasileira, aquela que
Oswald et caterva chamaram do que quero chamar de Heterofagia, é a nossa
Versão Paterna, é a nossa diversão, herdada do Pai... Portugal não é Europa,
não é também África, Ásia ou América... é uma situação estranha, eles sofrem
com isso, ficam se perguntando... tem sido a charneira do ocidente, portanto,
a charneira do oriente... alguns autores portugueses recentes dizem que não é
Europa... na história, aquele cantinho de península ficou como charneira entre
ocidente e oriente...
...talvez seja esta a razão da paralisia neurótica de Portugal, que deu
no nosso mazombismo... no que isso se manifesta em termos neuróticos, fica
paralítico... mas tem a diversão, a Père Version, viajora, descobridora, alterofilia
e assimilação... talvez não seja ingloriamente que Fernando Pessoa esperasse
pelo Quinto Império: “Quanto é melhor, quando há bruma, esperar pelo Dom
Sebastião, quer venha ou não”... e a gente precisa pensar em Fernando Pessoa
de costas para a Europa bradando o seu Ultimato, que está na revista Revirão

445
O Sexo dos Anjos

nº 3 , p. 357...
...essa posição terceira de Maneiro, que venho invocando para nós,
talvez permita que, no nosso movimento, a gente acrescente a psicanálise e a
leve para o seu lugar...

* * *

...nas próximas vezes, vou passar para as conseqüências topológicas


e linguageiras disso que apresentei hoje... mas antes responderei a algumas
questões que me colocaram...
...o Haver, a conjetura que posso fazer, de tanto simétrico que é não pode
deixar de se propor simetria absoluta, até externa... temos a mania de pensar
que neutralidade tem que ser ataraxia, quando não tem que ser... a Suíça é um
bom exemplo, está sempre neutra, está cheia de grana, a economia está lá... o
fato da neutralidade que estou dizendo é: indiferença, equilíbrio, por absoluta
simetria interna... mas no que isso vai simetrizando, simetrizando, aspira pela
simetria de fora, que há de direito... ela pede simetria, mas não encontra...
por isso faz onda, marola... uma maneira algo mítica de colocar as coisas,
reconheço, mas a física não me disse nada... do ponto de vista da linguagem,
só posso dizer isto, conjeturar o Não-Haver... esse equilíbrio, por mais neutro
que o troço seja, ainda ali resta uma diferença essencial, que é: há... ainda
não é a paz absoluta, é uma certa paz... no que isso seja movimento libidinal,
deseja ainda a paz absoluta, edipiana, de nem ter havido... isso se movimenta
no sentido de chegar à paz absoluta, no sentido da morte, mas não há morte...
não há senão jeito de fazer a transa interna: “Vamos inventar por aqui mesmo
porque não tem saída”...
...se chamarmos de sujeito a essa substancialidade, esse sujeito é op-
erante e, quando chega em A, ele sobrenada, porque não se apresenta divisão
interna... ele vai ter que se propor uma divisão externa... é como se o Haver
sofresse de tédio quando tudo fica em paz... mesmo porque em algum tempo,
em algum lugar, ele teve a experiência da diferença... então, ele tem a nostal-

446
K: no princípio era o fim

gia da diferença... não sei de onde vem essa memória, deve estar escrita na
neutralidade de Chi...
... o Não-Haver é uma proposição constante do Haver... afinal de con-
tas, lá no meu texto do Pleroma, a conjetura foi de que a libido não precisa da
diferença interna: é potência, força... se é força, ela quer algo, ela se movimenta
para algo: “Se não tem tu, vai tu mesmo”... se não tem externo vai interno...
...a memória da dissimetria é a própria simetria... repetindo o que já expli-
quei: de tanto simetrizar, aquilo simetriza, simetriza, a ponto de pedir a simetria
absoluta, que é o avesso de si mesma, que é o Não-Haver... é uma exigência tão
grande de simetria que ela comparece como simetria porque não há o Outro lá... se
houvesse, ele passava... vou caminhando, vou pedindo simetria, encontro simetria
o tempo todo, essa simetria tanto se repete que ela pede simetria de si mesma...
e a simetria da simetria é a dissimetria... o avesso do simétrico é o dissimétrico,
é Não-Haver nem avesso... ou seja, o Haver é lógico...
...isso vai dar resultantes das mais importantes, no percurso e na própria
prática da psicanálise, porque tenho que conjeturar muitas coisas de outro
modo... tenho, por exemplo, que repensar, até psicologicamente, a diferença
entre o falante e o não-falante... adianto hoje, aqui, o que vou dizer talvez bem
mais no futuro: há que fazer a crítica do Estádio do Espelho, de Lacan, o qual
é, talvez, um erro grosseiro por causa de um mal-entendido de Henri Wallon...
há que demonstrar isso... em cima de um mal-entendido da psicologia, Lacan
montou o Estádio do Espelho com muita sutileza, mas que, posteriormente,
se transforma –não é que seja ruim, ao contrário, é excelente –por causa do
mal-entendido, num erro grosseiro, que é a suposição da falta como dada, e não
como a ser produzida... coisa de que ele mesmo discorda, critica de si mesmo,
sem dizer que está criticando, quando diz que é o significante que faz furo, que
é a linguagem que faz furo... isso me parece incongruente com o Estádio do
Espelho tal como está desenhado... isso vai dar uma concepção radicalmente
diferente da prática analítica: trata-se de fazer furo, de produzir o Reviramento
que não se deu... é muito diferente de supor que o Inconsciente já funciona
estabanadamente... não!... trata-se de produzir Inconsciente... o Inconsciente

447
O Sexo dos Anjos

de Lacan, o Inconsciente que Freud prometeu no campo da psicanálise, ele foi


historicamente produzido... e isto sugere uma praxis da psicanálise no mundo,
para tirá-la desse ambiente fedorento em que ela vive, de bolor...
...o fato de não termos tido acesso à infância da humanidade nos
deixou sem eira nem beira para pensar como é que isso pode ter se acumu-
lado... Lacan não é bobo, ele chama atenção para que esse Outro simbólico
foi acumulado aí nos dejetos, nos detritos, no lixo simbólico, nos restos me-
tonímicos que ficaram por aí, etc., e que ninguém sabe fazer história disso...
então, para recuperar essa história, há que recuperar na história individual,
mas, um erro de perspectiva na psicologia da infância, é possível que dê
num pequeno deslize no Estádio do Espelho... estou, agora, falando muito
amplamente porque é para trabalhar depois...
...é preciso reconsiderar a espécie dita humana como uma espécie ani-
mal igualzinha às outras, que, por um acidente qualquer, seja evolutivo, seja o
que for, por uma estrutura qualquer, permite o uso do Terceiro... permite mas
não obriga... então, precisamos reconsiderar, chamar de volta as ciências ao
nosso convívio, tudo de novo... acabar com certa soberba psicanalítica, chamar
os saberes ao convívio porque isso é remanescente na história de cada um... o
boneco, o macaco como aquilo que nos porta, ainda tem uma história muito
longa de aparelhos imaginários bem construídos, os quais são revirados no
processo criativo e progressivo da história... a psicanálise no que ficou ciumenta
da filosofia entrou numa fase extremamente frutífera, porém depressiva a meu
ver... sorry, há caminho à frente...
...Freud sempre foi cuidadoso... ele se pergunta por que o sujeito goza
por tal lugar e responde que é porque ele tem uma predisposição assim... tem,
há, também entra isso... e isso há que se revirar... o que há de ÉTICO fundamen-
tando os atos do falante é a possibilidade do ato... não se tem a possibilidade
do ato no animal... nossa possibilidade de ato é nessa passagem pelo Terceiro,
pelo Furo, no Reviramento...
...no tempo em que seguia ipsis litteris o fundamento da falta como
pré-dada e tendo subvertido de saída, pela prematuração do neonato, todo o

448
K: no princípio era o fim

aparelho, eu ficava conjeturando –quase escrevi um livro chamado Macaco


Maluco –que deveria ter começado tudo psicótico e morrido... um dia, pensei
que estava errado, pois, ao contrário, era um bando de animais mesmo, aquilo
foi revirando devagar e é a acumulação dos reviramentos que obriga o sujeito
a fazer furos... então, aparecem os seres excepcionais –que é a teoria das ex-
ceções de Philippe Sollers... um ou outro faz um furo aqui adiante... primeira
coisa que acontece é que ele é imediatamente odiado... ninguém ama o poeta...
quando ama é porque não é poeta, bota no jornal, na televisão... se fosse poeta
ninguém falava... poeta é odiado, porque tirou todo mundo da santa paz de uma
alteridade mais ou menos sabida, os furos já estabelecidos, já organizados, sin-
tomatizados, com os significados mais ou menos estabelecidos... então, como
o sujeito passa para o lado da exceção fundadora de regra futura, ele é odiado,
porque obriga todo mundo a se deslocar...
...um ódio estrutural, está inscrito no Esquema, e vem antes do amor...
depois que o novo é assimilado, um grande amor vai fazer todo mundo ficar
igual de novo... por exemplo, agora todo mundo já entendeu Lacan, todo mundo
é lacaniano, a felicidade está instalada... se não tiver um sacana para dizer que
não é nada disso, todo mundo fica feliz e felicidade e animal são a mesma
coisa... ou é de brincadeira que Freud diz que a massa é imbecil, que o nível
baixa imediatamente?... aí é que Marx quebra a cara e imagina a revolução
do proletariado... pode um negócio desses?!... jamais!... quem faz revolução
são os excepcionais, o resto entra na onda porque começa a entender alguma
coisa, os interesses são bons, é mau negócio ficar de fora, etc. ... ou seja, é um
fracasso absoluto... é uma maneira de enganar o povo dizer que ele é capaz
de revolução... não é não!... ele é capaz de ajudar a passar ao ato, ou seja, de
passar ao amor o que fora exceção... passar ao amor o que fora ódio... mas na
hora do ódio, é ódio!...
...sinto muito se desencantei vocês... até a próxima...

22/OUT

449
O Sexo dos Anjos

450
To sir with love

5
TO SIR WITH LOVE

Início do Seminário com a audição de Azul da

Cordo Mar , com Tim Maia.

...hoje é dia do meu Seminário... o último deste ano... porém, prin-


cipalmente, hoje é dia da minha Bandeira... que hoje coincidiu com o dia do
meu Seminário...
...alguns de vocês, por algum mal-entendido, fizeram correr o boato de
que dissolvi a minha Bandeira... não é verdade... apenas aproveitei a fortuna
desta coincidência do dia do meu Seminário com o dia da minha Bandeira
para fazer uma pequena suspensão, ou melhor, uma fermata, para retomar
minha Bandeira em outro contexto – o contexto dos três próximos anos suces-
sivos de batalhas pela conquista de uma escuta mais ampla por este mundo
afora...
...ou bem conseguimos, ou bem não –mas no tesão da batalha, havere-
mos de Haver...
...aproveitemos, então, a coincidência do dia do Seminário com o dia
da Bandeira para hastear nossa Bandeira, assim como eu mesmo, pessoalmente,
aproveito a feliz coincidência para dar Bandeira para vocês... neste dia 19 de
novembro, dia da Bandeira Nacional...

451
O Sexo dos Anjos

Recebe o afeto que se encerra


em nosso peito juvenil
querido símbolo da terra
da amada...

..o Seminário deste ano, pelo menos para mim, foi muito proveitoso... es-
pero que também vocês tenham encontrado alguma coisa nele para aproveitar:

1º semestre: Os 4 Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Ainda


1. A DEUS: O Retorno de Freud, via Lacan
2. O Tesão pelo Imundo (pulsão)
3. A Repetição
4. O ICS: An Affair to Remember (love affair)
5. A Transferência (Kátia Flávia: eu)

2º semestre: Juízo Final


1. Delenda Melancholia
2. O Peri-Gozo

3. ́: Nada Além do Princípio do Prazer
4. K: No Princípio era o Fim (constância)
5. To SIR With Love

...aliás, o ano de 1987 pode ter sido sofrido, mas, entre nós, foi grande-
mente produtivo... e tomo, em homenagem, como exemplar dessa produtividade,
o trabalho do Joãozinho, o Pequeno Trans –nomeadamente representado pelo
Desejo Descola que vocês viram sobre o vídeo...
...que todos vocês sejam tão condescendentes e carinhosos para comigo
como o belo Sandro se declarou para o Joãozinho... está aí essa bandeira que
lhes dou –na demanda de amor...
...hoje quero lhes falar de sonhos –e se, como demonstra Freud para
nós, todo sonho significa um desejo, na medida em que aponta para O Desejo

452
To sir with love

que corre por detrás de cada desejo, então, no que se apresenta como signo de
um desejo, todo sonho é um sonho de amor...
...e amor, como ensinou Lacan, a Mais, Ainda, “o amor é um signo”
(p. 21)... “o amor é signo de que a gente muda de discurso”... e ele ensinou
também (p. 16) que “não há gênese senão de discurso” –quer dizer, gênese
é no amor, o amor é que é genésico, só o amor é verdadeiramente genético,
senão mesmo que é o amor que é verdadeiramente genital, na medida em que
ele é, segundo Lacan, justamente “o que vem em suplência ao impossível da
relação sexual”...
...donde, a lição de Fernando Pessoa:

O amor é que é essencial.


O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.

...por Isso, por Razões de Amor é que dedico, hoje, o meu Seminário
to SIR with love...
...a quem o dedico?...
...ao meu Dono... um certo Senhor que me fez mudar de discurso... ao
Anjo da minha anunciação, que me faz de novo virgem para o Outro, por mais
puta que tenha sido a deriva enunciada de minha enunciacão... virgem, a receber
no seu seio o afeto que se encerra na bandeira seminal do Grão Senhor...
...então...
...to SIR, with love, quer dizer, ao Anjo, com amor... ao S,I,R, com
amor, e com amor, e com amor...
...ao Simbólico do Anjo, com amor...
...ao Imaginário do Anjo, com amor...

453
O Sexo dos Anjos

...ao Real do Anjo, com amor...


...mas como situar o Anjo senão pelo objeto que só ele porta e que me
fascina, e que me faz sina e que a sina me faz, porque assina o que me faz?...
...lá do meio vazio desse nó regórdio do meu SIR, o pequeno a me
acena, um pequeno a me faz-cena, me faz-signo...
...é para ti, meu E.T., meu marciano Joãozinho, meu pequeno Trans,
que eu dedico este meu sêmen, unário, caro Anjo, para que o leves, sob as
asas, para o meu Senhor, para o meu SIR –Simbólico, Imaginário, Real, do
meu amor...
...e todo amor, que o seja, constrói o seu Pequeno Trans –e é por isso
que somos, todos, necessariamente, trans-sexuais...
...caro Senhor...
O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... Brandas as brisas
brincam nas flâmulas, teu sorriso... E o teu sorriso, no teu silêncio, é as escadas
e as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
...assim me faz dizer-te o meu amado Fernando Pessoa, cuja data só
tu ouves, meu Anjo, só tu sabes, meu Senhor... ...o teu silêncio só me diz que
navegar é preciso (embora eu saiba, e bem, que navegar é impreciso)... porém,
é o teu sorriso que dá bandeira para eu navegar...
...o só-riso que acaso tenha vindo desabrochar-se no teu rosto, para
mim... todos os teus sorrisos –e sobretudo aquele só, sorriso especial que só
foi, ainda que impreciso, sem tido sentido, só para mim, eu, só, navegante
porque preciso...

* * *

...então, falemos de amor... que mais fazer?...


...a relação sexual, meu Anjo, como já aprendemos, é impossível... então
é impossível eu fazer sexo contigo... fazer-sexo, deixemos isto para o artifício
dos gametas, entregues ao acaso fortuito de seus encontros futuríveis...
...aonde a relação sexual é impossível, meu Anjo, é impossível fazer

454
To sir with love

sexo –só é possível, fazer sentido...


...eis aí, meu Anjo, a definição mais ampla, e a mais perene definição
do Amor: FAZER SENTIDO...
...e ai de nós, se não fizermos sentido... pois aí, tudo fica sem sentido,
ou senão, só sentido, quer dizer, sofrido, só-ferido, sem sentido, só...
...e sentido, meu Anjo, se faz, segundo sua definição, se faz de amor...
sentido se faz com sentimento, e com consentimento para a sensação, e para
a sensualidade, mas também com senso, e com sensatez, pois que o sentido é
puro sexo sensitivo, gozo de Anjo em angélica sexão ...
... mas, como fazer sentido, isto é, como fazer amor? ...
...ora, todo mundo sabe, ou devia saber, que o amor, qualquer amor, é
narcísico... fora do narcisismo não há salvação –quer dizer: não há salvação
fora do amor...
...não estou repetindo aqui o que se diz do amor na verdadeira religião,
quer dizer: o Cristianismo... qualquer religião é neurose obsessiva, isto é, a
verdadeira religião é transferência não resolvida, não dissolvida, a um Deus
suposto Pessoa e não a um Deus, único possível Sujeito Suposto Saber –que
só Deus o É...
...a psicanálise não trata deste “amor” (entre aspas) que requer a neu-
rose obsessiva... a psicanálise cuida do Amor –o que não significa que ela seja
suposta saber o amor... mas ela tem que saber falar de amor –e tentar situá-lo
nalgum lugar mais ou menos distinguível em sua diferença radical...
...o fato de qualquer amor ser narcísico –pois a dissolução do narcisismo
é impossível –não significa que não haja graus de ascese do narcisismo... há
narcisismos mesquinhos e há narcisismos sublimes... a própria Santidade é puro
narcisismo: nada menos do que pretender arrolar-se, um sujeito, ao universal
da Lei do Haver, embora na decepção, aliás masculina, do impossível gozo-
do-Outro... o próprio misticismo é puramente narcísico: nada menos do que
pretender identificar-se, um sujeito, à causa do desejo em seu absoluto impos-
sível –passar a ser, a confundir-se com A Coisa que não Há...
...sem falar de todo o restante que por história e falação, já é hoje ob-

455
O Sexo dos Anjos

viamente narcísico... narcisismo que se evidencia no seu campo próprio, no


próprio Campo do Sentido, quer dizer, no campo onde o amor é possível...
...é possível: Sim – eu lhes digo – o amor é possível... o que não
anula o fato de ele nos parecer praticamente impossível, dado o seu extremo
de difícil...
...então, como fazer amor?
...com tesão ?... não... não com o tesão enquanto tal... o tesão, en-
quanto tal não é o amor –embora possa achar de ser meio de exprimi-lo...
não antes, só-depois, depois do amor... o tesão é possível sem amor, pois o
tesão não tem que fazer sentido, mesmo porque, o mais freqüentemente, o
tesão já tem sentido...
...mas o amor pode fazer o tesão, isto é, fazer sentido, pode resultar em
fazer tesão, pela anamorfotização do objeto causa do desejo...
...’’quem ama o feio, bonito lhe parece”, diz a experiência popular...
...bonito, para o tesão, é o objeto que a para o tesão suscitado... e o
tesão não é mais do que, instalado na carne, um desejo causado... e o objeto
causal inscrito no axioma da fantasia, bem pode, por artes do amor, ser meta-
morfoseado...
...como então fazer amor?...
...com a Paixão?... não... a paixão enquanto tal não é o amor –embora
bem possa constituir um meio de exprimi-lo... não antes, porém, pois só-depois,
depois do amor...
...a paixão é possível sem o amor, como você bem sabe... também
ela não tem que fazer sentido, e o mais freqüente também, é que a paixão já
tem sentido...
...mas o amor pode fazer a paixão... a paixão que não é mais do que
fascinação pelo objeto... nada melhor do que o olhar, com ou sem visão, isto
é, a constituição de um objeto escópico, para exemplificar a fascinação com
esse olhar que sustenta a paixão... mas fascinar-se por um olhar não é fazer
sentido, mas encontrar-se com sentido dado...
...aqui, também, o belo pode ser feito pelo amor quando o amor renova

456
To sir with love

a paixão, antes ainda que ele não se cristalize...


...como, então, eu insisto, como então fazer amor?...
...com a Sublimação?... ora, a sublimação, também ela, é narcísica...
...a sublimação, pasmem vocês, ainda ela, não é o amor... só que sem
amor, não é possível a sublimação...
...eu repito: a sublimação não é possível sem o amor... e talvez seja daí
que nos venha toda a dignidade, todo o prestígio que se atribui à sublimação...
...esta, a sublimação, Lacan a deixou definida com precisão: “elevar o
objeto à dignidade da Coisa”... vejamos bem, não se trata de elevar o objeto ao
estatuto, ao estado mesmo da Coisa, quer dizer, do Não-Haver, pois que isto é
simplesmente impossível, caso contrário teríamos a relação sexual realizada...
...elevar o objeto ao estatuto da Coisa não passa além, a cada caso, a
cada passo, a cada passe, de elevar o objeto ao estado de um objeto melhor,
digamos, de um objeto superior –ascese, é o caso de dizer...
...ou seja, fazer, do objeto dado, um objeto que faz um outro sentido,
maior, mais amplo, mais pleno, mais parecido com o Pleroma Original...
...então, fazer sublimação não é fazer amor, embora, sem fazer amor,
não se consiga fazer sublimação...
...ora, ora –e agora –como então fazer amor?...
...com transferência? ... não... dizem que a transferência é uma espécie
de amor: “amor de transferência”, dizem assim... mas não é verdade não...
...o que é a transferência?... é a colocação, por um sujeito, de um outro
sujeito no lugar do Sujeito Suposto Saber...
...ora, nenhum de nós, sujeito falante, tem a menor condição de ocupar
esse lugar –e uma análise se processa no sentido de fazer com que tal sujeito
(analisando) venha a fazer, com segurança e sem posterior repetição disto,
com que o outro tal sujeito (analista) desocupe esse lugar por ele ocupado por
impostura –não por impostura do analista, mas por impostura do analisando,
se não por uma imposição...
...Sujeito Suposto Saber, só Deus, isto é, só essa conjetura de Sujeito,
que não podemos não fazer, enquanto falantes subditos às diabruras aparentes

457
O Sexo dos Anjos

do Outrão...
...assim, a transferência é possível sem o amor... embora o amor possa
elevar a transferência à dignidade da referência, sem outra reverência senão
aquela que visa a Coisa para a qual aponte, eventualmente, o referente meta-
transferencial...
...übertragen, transferir na língua de Freud, é encarregar, isto é, dar
um encargo, nomear para um cargo, fazer com que alguém venha a arcar com
um fardo ... um fardo com que o analista, na verdade, não pode arcar...
...Freud chamou de “neurose de transferência” essa “neurose artificial”
que se monta numa análise, na qual o analista venha a se encarregar da neurose
do analisando... isto ele pode ...
...ora, encarregar-se da neurose do analisando é encarregar-se, na
verdade, de sua transferência anterior... isso que Lacan chamou de SsS, é o de
que sofre o neurótico –o qual sustenta seus recalques na suposição de que tal
sujeito saiba do que se trata no fato de ele haver...
...daí se dizer que o perverso e o psicótico não “fazem” transferência, não
transferem... sabem por quê?... porque a transferência é a neurose... donde, se não
há transferência, não há neurose, se não há neurose, não há transferência...
...mas pode haver referência a um sujeito, enquanto mediador da
reverência para com o verdadeiro SsS...
...a neurose, então, se qualifica pela transferência, aliás sustentadora
do recalque –do que se aproveita o analista para deslocar o recalque, baseado
justamente na garantia, que sobre ele é colocada, de sustentador do recalque...
ora, se o próprio sustentador do recalque permite e mesmo suscita o desrecalque
–então, tudo bem...
...assim, então, a liquidação, a solução, a dissolução da transferência,
é possível... sim...
...liquidada a transferência, pode-se passar à referência – e mesmo
à reverência para com A Coisa ulterior... assim, não há a tal de “neurose ir-
redutível” a que nos temos referido tanta vez...
...a transferência –que precisamente está do lado do analisando –não
é amor... é, justamente, inadimplência para o amor...

458
To sir with love

...o analista, este, não está de molho no mesmo caldo sulfuroso do


analisando –e, por isso, não pratica nem transferência nem contra-transferência,
mas anti-transferência, a qual só pode ser praticada pela via do amor...

* * *

...então, pela última vez, pelo menos, por hoje: como fazer amor?...
...o que lhes posso dizer, por ora, é que há duas vertentes de fazer-amor...
a segunda delas apresentando-se com duas modalidades, a segunda das quais
é a superior se não a excelsa modalidade do amor...
...definamos essas vertentes em conformidade com a sublimação de
Lacan: Como sublimar?: “elevar o objeto à dignidade da Coisa”...
–pela Primeira Vertente, como fazer amor?... assim eu lhes digo: fazer
amor é encarnar a Coisa na efemeridade do objeto...
...efemeridade, de efeméride (quer dizer, tiquê) e de efêmero (quer
dizer, perecível)...
...é por esta vertente que corre o rio, mais ou menos caudaloso, da
produção de sentido (em téchne), tal como acontece na arte nossa de cada dia,
que exige também o cuidado (a cura) das águas desse rio...
...é por esta vertente que se faz amor... com a Obra... é por esta vertente
que se faz amor com um-corpo, esse lídimo representante do Outro... é por
esta vertente que se cuida do produzir e do produzido, para que o produzido
renove o seu sentido...
...encarnar A Coisa na efemeridade do objeto, não é, diretamente, nem
tesão, nem paixão, nem transferência, nem sublimação, mas, referindo-se ao
impossível da Coisa, tornar possível que algum objeto, achado ou produtível,
venha a ser cuidado com a sacralidade (sacer) do imundo...
...”amor objetal” –alguns assim o dizem... é o amor da mestria enquanto
produção de bens e maravilhas...
–pela Segunda Vertente, como fazer amor?
... assim eu lhes digo: confiar A Coisa ao cuidado eterno de outro

459
O Sexo dos Anjos

sujeito...
...não há o tal “amor dom de si” a não ser que ele aja enquanto amor donde
se visa A Coisa entregue a alguém em quem se aposta por um pacto preciso...
...mas há duas modalidades dessa confiança, dessa aposta...
...primeira, o amor do Pai, que segue em linha reta, sem retorno e não-
recíproco... que só parece dom-de-si no que projeta o narcisismo para a frente
–e em vez de ser recíproco, é amor transmissivo, porque transitivo...
...aliás, não é outra a postura, aliás ética, do analista... daquele que não
cai na transferência, nem a favor nem contra –muito pelo contrário, equivoca-
damente, em questa do Revirão fortuito em prol do amor-paterno, sustentado
num NOME...
...é também o amor, específico, de pais para filhos, o qual não é recí-
proco senão no impulso, de um lado, do empuxo do outro lado, para a herança
em linha reta...
...é também o amor do Mestre pelo Discípulo, cuja reciprocidade só
se dá na reverência que já não visa o Mestre, mas a Coisa que ele suporta ou
porta embora reduzida como agalma...
...será esta a modalidade maior da maior vertente do amor?...
...alguns assim o dizem... mas não eu, que assim lhes digo: a segunda,
a excelsa modalidade, não é o amar isto ou aquilo, do amor objetal... também
não é o amar para, do Amor do Pai, que só se precipita (como no analista), mas
sim o amar com –amor de pleno risco, mas precisando reciprocidade absoluta...
o que não há sem sacrifício, como qualquer amor, que em fim de contas, visa
o sacer da Coisa imunda inatingível...
...Amor de Servidão –como Camões nos explica: em sete vezes quantos
Setes sentenciem eternidade:

e mais servira
não fosse para tão longo amor
tão curta a vida.

460
To sir with love

...Amor de Revirão, como Lacan nos demonstrou no Seminário da


Ética, que se prova num passe –aquele, necessário, do dito amado ao lugar
do dito amante...
... “eu te amo”, nos diz Lacan, “mas como viso, em ti, algo mais do que
tu, eu te mutilo; e a ti só me ofereço como o presente de um dejeto”...
...encarnar nesse objeto a dignidade da Coisa, é congruente com confiar
nossa Coisa ao cuidado eterno de um Sujeito...
...tu és o portador do meu agalma, por princípio e por pacto... eu sou o
zelador do teu agalma, só por pacto e princípio... e vice-versa-mente...
...tu és meu Mestre, porque sou teu Escravo, assim como és meu Es-
cravo porque sou teu Mestre...
...amor de risco absoluto, aonde a castração mais se enuncia...
...daí que a transferência, bem como o casamento, podem ser dissolvi-
dos, como bem se sabe... os vínculos são frágeis... mas, este amor, se vincula
no Eterno, e é, portanto, AMOR INDISSOLÚVEL...
...não que ele não fracasse, com freqüência, mas, dado o seu eterno,
será fracasso eterno, indissolúvel...
...portanto, meu Anjo, todo cuidado é pouco e todo zelo preguiçoso...
...dizer, deste amor, “que ele seja eterno enquanto dure”, já é pecar
mortalmente, e falar do amor errado, da paixão certamente... pois ele tem que
ser eterno, e o é, enquanto eu dure –e nem a Morte, que não Há, jamais sepa-
rará o que ela não une... ...amor de Sempre: até que a Morte não nos separe,
eternamente...
...amor, no entanto, possível –mas só para falantes: eticamente insta-
lados na prisão da liberdade...
...”Tu pensas que é o pássaro que é livre”, nos diz Edmond Jabès, “Tu
te enganas: é a flor”...

* * *

...assim, meus caros, tenho lhes falado do Amor – e Amar, fazer

461
O Sexo dos Anjos

sentido, não é outra coisa senão a nossa caríssima prática freudiana... pra
alegrias, certamente...

...e eu me entrego por inteiro:


Revezes da minha Sorte,
minha Vida, Paixão e Morte,
dedico aqui e agora ao meu amor possível.
Quem sabe se a você
que mais, ainda, não me vê
e nem me escuta, mais, ainda...
Entanto eu te ofereço, Anjo, o albardo canto,
Prova Real do eterno amor em que me espanto.
Veramor de falanjo, como eterna flor.
Rosa dos Ventos azuis do sonho antigo
da minha direção, do meu sentido,
azulescente rosamar rubro-marinho,
incandescente azul celeste rosamor.

Término do Seminário com a audição de


Primavera, com Tím Maia. Enquanto o autor
lançava rosas à platéia, só depois de ofertá-las
a seus Anjos.

19/NOV

462
Maravalhas

ANEXO

MARAVALHAS

O Boletim do Colégio Freudiano do RJ, nomeado Maisum, publicará,


sempre que disponíveis, as Maravalhas que eu assino. Como se fossem bilhetes
esparsos para compadres e confilhos.
Maravalhas são lascas de madeira (materia) –tão freqüentes na oficina
do Mestre Carpina –que vieram a significar, por metafóricas, os fragmentos de
um fazer. De que Pau somos feitos? As minhas maravalhas são lascas do meu
Pau –quer dizer, são gravetos do meu Pai.
É pegar ou largar. Que sejam de proveito a quem quiser, ou desquiser.
MDM

TODESTRIEB

O Tesão pelo Imundo. Não é apenas hipótese especulativa de Freud,


mas necessidade estrutural. Isto é: necessidade lógica para a construção do seu
aparelho conceitual.
O Princípio do Nirvana –princípio econômico de redução das tensões a
zero –é que rege o desejo do Outro em sua fuga para o Não-Haver. O Princípio
do Prazer-Realidade é que rege o desejo do Outro em seu périplo libidinal, sob o
empuxo do Princípio do Nirvana, na impossibilidade de passar a Não-Haver.

463
O Sexo dos Anjos

O Imundo é o Não-Haver (Ã), o Sacer nirvânico que não pode ser


aproximado. Tudo que Há em é Mundo. O que insiste, segundo o desejo
(do Outro) em se aproximar do sagrado (sacer), é Sanctus: é da ordem do santo
desejo, da libido santa.
Sanctus, a, um –é particípio passado de Sancio: estabelecido (com
respeito à Lei), sancionado, ratificado, confirmado, consagrado (benedictus),
venerando.
Pater pecavi! é petição de miséria, declaração de filiatura, certificado de
castração. Não por abandono do desejo, mas por reconhecimento da limitação
do Filho, correlata da falta do Pai (sua imortalidade, seu impossível Não-Haver).
Menos do que isto não é pecado –é pusilanimidade. A demanda, pobre vicária
do desejo, é só pecado venial. Mas abrir mão do desejo, é pecado mortal. Mortal
para quem? –Para o Pai: tentativa de parricídio.
“Pater noster, qui es in caelis: Santificátur nomem tuum: Advéniat
regnum tuum: Fiat volúntas tua, sicut in caelo, et in terra. Amen.”
O desejo do Pai não tira férias. A característica da Pulsão é ser uma
konstante Kraft, para Freud, e não apenas uma momentane Stosskraft, mera
força de choque.
Daí o Pai ser imortal. Os perecimentos modais não são da ordem da
Morte (que, aliás, é impossível, como o incesto e a relação-sexual), mas da
ordem da devolução. Daí que o Filho (enquanto tal), também ele é imortal: “Et
ex Patre natum ante ómnia sáecula... Génitum, non factum, consubstantiálem
Patri: per quem ómnia facta sunt... descéndit de caelis... Et homo factus est”.
Consubstancial ao Pai, isto é, da mesma estrutura congênita –diferen-
temente dos outros facta que também ele pode produzir –o Filho imortal deve
reconhecer, no entanto, que não alcança a compleição plerômica do Pai. Daí sua
dependência de falo e sua dívida-simbólica de direito, no que de direito e de fato
ele deve acrescentar significância para aproximar-se do Pai (Imitatio Dei):
“Panem nostrum quotidiánum da nobis hódie: et dimítte nobis débita
nostra, sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris. Et ne nos indúcas in ten-
tatiónem. Sed líbera nos a malo. Amen”.

464
Maravalhas

AUTO-ANÁLISE

Ao contrário de dizer que não existe auto-análise, devo dizer que só


existe auto-análise. É o paciente que produz sua auto-análise –a qual não é
possível sem transferência, isto é, sem Sujeito suposto Saber atribuído a algum
outro que funcione como analista, isto é, que assuma a função do Pai. Sabe-se
que o Pai é o amado e o inalcançável. Daí se segue...
O Sujeito suposto Saber lacaniano não é nada-mais nada-menos do
que o Pai. A presença do analista atualiza o Pai, na medida em que é em res-
sonância com o Pai que o analista opera mediante sua insistência, no lugar do
agente, como simulacro da falta.
O agente é então aí aquele (e só aquele) que num fim-de-análise al-
cançou a vontade plerômica do Outro (do ICS), isto é, conseguiu reconhecer o
Nome do Pai, reconhecimento este que determina um fim-de-análise.
É conforme com este sentido que Lacan genialmente detecta a psicose
na foraclusão do Nome do Pai.
O pai-oficial (seja ele carnal ou não) é comumente (por força da trans-
ferência) situado como Sujeito suposto Saber. É preciso que o passo seguinte
seja o da baixa desse lugar-tenente, não para se patentear num outro equivalente
(o que didaticamente pode ser importante, até mesmo por várias vezes, no
percurso de um Sujeito) mas para se nomear o Pai como Outro.
É na falha disto que se instala a psicose –quando um Sujeito se vê
absolutamente desprovido de representante (relictus) – o que Lacan indica
como o encontro do psicótico com UmPai –e sem condições plerômicas (la
grand’route) de fazer apelo ao Pai enquanto Filho, isto é, ao próprio Filho (que
ele próprio é) enquanto Pai (borromeanamente).
Daí Lacan acertar em cheio quando diz que o psicótico resta aprisio-
nado ao Ego, que ele só fala com (instrumental) o Ego, quer dizer, com o puro
imaginário (no sentido lacaniano) pois que o psicótico, na falta do Pai, assim
como na falta de alguma referência paterna ainda que menor (didática), tem
que reconstruir (de maneira delirante ou alucinada), e incessantemente, esse

465
O Sexo dos Anjos

pai-menor de que ele faz sua referência. Donde o sentido de alienação (não-
autonomia) do psicótico.
Só o Sujeito curado (seja pela prática analítica ou não) não é alienado
(neste sentido), pois sua alienação (entre S1 e S2) encontra esteio definitivo na
sua entrega, no seu abandono (Gelassenheit) ao Pai, o qual não é Outro senão
o próprio Sujeito enquanto Filho que reconhece o Pai.
Neste sentido, mesmo a neurose tem a ver com o Nome do Pai em sua
estruturação: se o fundamento da neurose é o recalcado, é porque o recalque
é exercido não pelo Pai enquanto Lugar da Lei, mas por parcialização da Lei
em Regras menores que, se por um lado representam a Lei enquanto limitações
regionais (castração), por outro lado diminuem sua compleição, produzindo
assim mutilações (modais) em forma de castração.
Assim, o que garante uma análise de um Sujeito é a auto-análise, na
transferência, com outro Sujeito capaz de funcionar como ressoador do Pai.

IMPOTÊNCIA HISTÉRICA

A histérica tem razão quando enfatiza a impotência no seu discurso.


Pois se o impossível absoluto (externo) é que rege a impotência (interna), no
entanto é mesmo por impotência que não se alcança a compleição do Outro.
Não há Outro do Outro (Ã) –este é o impossível –mas no seio do Outro tudo
é possível (universal).
Impossível (absoluto) não há no seio do Haver. O que há é impossível
modal, relativo, que a histérica bem reconhece como impotência, o que é indu-
bitavelmente correto no que diz respeito às possibilidades do artifício.
O discurso da Histérica não é outra coisa senão o esforço ingente de não
ser tal, não no sentido do Édipo trágico exigente de Não-Haver, mas no sentido
de se ultrapassar a limitação da modalidade impotente, na mira de ampliação
congruente com a compleição do Pai: “vers un signifiant nouveau”.
Daí se pode tirar que a Histérica (a histórica) é madrinha do progresso
–que há sim, pelo menos regionalmente.

466
Maravalhas

Não é à toa que a revolta (histérica, aliás) dos Anjos (do Senhor) os
levou a serem condenados ao Inferno (da impotência).
Lúcifer é o Anjo da Luz –que queima suas asas no desejo de ser Outro.
Não há dicotômica oposição entre Anjo-Bom e Anjo-Mau senão por
questões interesseiras de pontos-de-vista. O Anjo-Bom quer mais luz (Mehrlicht!,
Mehrlust!), mas recai, como Anjo-Mau, na sua própria impotência. Assim, o
que faz o Anjo-Mau não é ele afrontar o impossível, e sim ele se defrontar com
sua própria impotência. Afinal de contas, afrontar o impossível é reconhecer
a Potência do Pai.
Não é que Deus lhe dê uma punição por ele querer igualá-Lo, e sim que
o Anjo sofre (como se fosse decadência) de sua própria impotência em se igualar
(em compleição mas não em estrutura, pois esta já é igual) ao próprio Deus. Não
há, na queda de Lúcifer, nenhuma punição, mas puro e simples funcionamento
da estrutura do Pleroma. Lúcifer só tem culpa e vai viver no Inferno, quando
toma o funcionamento estrutural por punição e abre mão, então, do seu desejo
de igualar a Deus –desejo legítimo –e passa doravante a atemorizar os demais
Anjos com a intenção de coibi-los em sua insistência nesse desejo.
O Bom-Diabo é aquele que apesar de reconhecer sua impotência insiste
no seu desejo de Mal-Deus: sem punição, e portanto sem culpa, mas entregue
à Vontade do Pai, não obstante graciosamente decepcionado.
A virtude diabólica da insistência no desejo de tornar-se Deus é o que
fabrica o Progresso. Lacan dizia que o Progresso não há: “o que se ganha de um
lado, se perde do outro”. Isto é verdade, mas só do ponto-de-vista divino (que,
aliás, a santidade pode reconhecer, mas que nenhum Falanjo ocupará): isto só
é verdade sub species aeternitatem. Isto quer dizer que não há mesmo nenhum
progresso na transformação de Deus em Deus –que é o que se verificaria no
escopo geral da imersão do Campo do Sentido no Nada e no Real. Do ponto-
de-vista das modalidades, porém, assim como do ponto-de-vista plerocinético
do Haver (isto é, de seu movimento libidinal, necessário em função do seu
desejo de Impossível), do ponto-de-vista do divertimento divino, do ponto-de-
vista da brincanagem do Pai, há progresso sim, ou seja, maior aproximação da

467
O Sexo dos Anjos

compleição (hologramática?) do Pai.


Se quisermos tomar o Holograma como modelo didático (como fazem
Pribram e Bohm, aliás não só por didatismo), poderemos dizer que se a imagem
grafada na chapa completa está por toda parte dela, no entanto em qualquer
fração do grafismo veremos que quanto menor o fragmento, mais ele perde
em nitidez. Aí está a impotência da fração, embora estruturalmente ela iguale
o todo. Neste sentido, o progresso deve ser entendido como processo (evolu-
tivo) de incorporação (complexificação) de frações para aumento de nitidez,
no intuito da aproximação do Grau de Outro Holograma (no caso, o Haver)
com sua nitidez absoluta.
Pater pecavi significa simplesmente o reconhecimento de ser menor
que o Pai. O pecado de que aí se fala não é cometido pelo Sujeito, mas o Sujeito
é dele acometido, por razão estrutural.
Confiteor: eu pecador me confesso impotente –isto é, embora tenha a
estrutura do Pai, reconheço que não tenho a sua compleição.
Vê-se que a Histeria não é uma neurose, mas sim que é um patos
disponível ao falanjo. Patos aliás inarredável quando há certas intenções.
A ciência, por exemplo, é indispensável, em sua clara histeria, aos projetos
do Falanjo, exibindo nitidamente a impotência que o acomete. Já a neurose
histérica é bem outra coisa: o investimento na impotência, e não a impotência
como resultante da prática discursiva da histeria.
Quando Lacan escreve para nós o matema do Discurso da Histérica,
devemos entender que ali se anota uma modalidade discursiva em sua nor-
malidade –a neurose histérica sendo um certo jeito de operar nesse discurso.
Pode-se talvez melhor entender isto ao se imaginar o funcionamento desse
discurso para um sujeito antes e depois da cura.
O Discurso da Histeria não só é normal, como demonstra a razão da
impotência, a qual não é para ser sarada (o que resultaria em megalomania),
mas para ser curada: reconhecida e bendita mesmo no seio de sua própria
prática discursiva –ainda que um perecimento (morte modal) venha sempre
interromper sua prática desejante.

468
Maravalhas

PULSÃO

Reportemo-nos ao Tesão e suas Aventuras (Trieb und Triebschiksale) de


Freud. Podemos lembrar que Freud nos apresenta quatro “vicissitudes”, como
dizem, ou “destinos” –o que é pior. Quais sejam: o recalque, a sublimação, a
reversão no contrário e o retorno sobre a própria pessoa.
Os dois últimos, como enfatizam Laplanche e Pontalis no seu dicionário
(p. 408 da edição francesa), Freud chama atenção para a impossibilidade de
descrevê-los separadamente. O primeiro concerne ao alvo (Ziel) e o segundo
ao objeto – mas de fato há tão estreita ligação entre eles que, mais do que a
distinção, o que os qualifica é seu mesmo movimento de avessamento, como
prefiro dizer.
Freud opera sobre sadismo/masoquismo, voyeurismo/exibicionismo,
ativo/passivo, ódio/amor –tudo isto com forte ancoragem na fantasia. Mas o
que ressalta disso tudo é o mecanismo do que chamo Revirão. Verkehrung ins
Gegenteil (reversão no contrário) e Wendung gegen die eigene Person (retorno
sobre a própria pessoa) querem me parecer evidências freudianas, avant la let-
tre, do que posturei como Revirão.

REPETIÇÃO

O Esquema  (Adeus) é um aparelho de repetição, isto é é


autômato.
O Haver é automático, isto é: na impossibilidade de Não-Haver, o
Haver se repete.
Daí que a repetição (Wiederholung) comparece nos seus três estados,
assim como a tendência à repetição insiste nos modos do Campo do Sentido.
Afora o encontro (faltoso) do Périplo libidinal do Haver com o Furo
(Real) é neste campo que o autômato topa com a Tiquê.
O estado do Real é o do impossível à tornado ponto bífido no Furo

469
O Sexo dos Anjos

do Revirão.
A Pulsão (a tensão, o Tesão) não é outra coisa senão a única maneira
de movimentação da libido (konstante Kraft), na medida em que o alvo (Ã) é
impossível de ser atingido. E daí que o alvo se torna Furo (F) Real do Revirão,
que só é borda por sua topologia unilátera que lhe impõe bifididade.
Talvez possamos desenvolver uma Teoria da Satisfação (da libido). A
satisfação libidinal (mesmo na sublimação) sendo topologicamente um Revirão,
isto é: a falta visada pelo tesão procura um objeto (faltoso) que mais intensifica
a falta a ponto de avessar o tesão, transformando-o em aversão (temporária, é
claro). A impressão de gozo fica referida à passagem pelo ponto bífido do Re-
virão, lugar de neutralização (por avessamento) da demanda que substituirá o
desejo naquela ocasião. Neutralização esta que estanca o processo, emprestando,
ali nesse ponto da série, sentido à operação de satisfação.
O modelo da fome saciada fica aquém do esquema da satisfação
pulsional, embora possa ajudar no seu entendimento. Satisfeita a fome, é
abandonada a busca de alimento e mesmo mais alimento é defastado –isto
no regime homeostático do animal. Ao passo que a satisfação pulsional exige
–freqüentemente muito para além ou para aquém da satisfação homeostática
de uma necessidade – exige que o objeto seja circundado, por não se sabe
quantas voltas, até que se produza o avessamento de sua requisição, isto é, até
que haja Revirão.
Daí que uma necessidade não tem chance de sublimação fora do falante,
ao passo que uma pulsão pode ser sublimada com satisfação, pois o avessamento
do seu empuxo pode ser operado por via metaforonímica.
Devemos lembrar que o movimento libidinal do Homem é pulsional.
Não é jamais uma necessidade (em estado puro) que comanda esse movimento,
mas o impossível de ultrapassá-lo. As ditas necessidades (fisiológicas, por exem-
plo) é que se estabelecem assentadas no aparelho pulsional –e não o contrário
–quando o circuito libidinal do Haver é imbricado com um modo (sistêmico)
limitado por suas operações de auto-manutenção. O neurótico, por exemplo,
confunde seus movimentos pulsionais com necessidades modais (animais,

470
Maravalhas

orgânicas, fisiológicas, etc.). Ele não se dá conta de que, por exemplo, pode
“escolher” não defecar, mesmo quando isto é necessário, assim como pode
escolher não ser sodomizado quando isto é desejado.
A compulsão à repetição (Wiederholungszwang) não encontra embargo
eficaz em alguns casos, encontrando-o como desvio em outros –em ambos os
casos de maneira por vezes desvinculada de qualquer inteligível necessidade.
Assim, para o falante, a diferença entre pulsão e necessidade se estatui
pela possibilidade de desvio para a satisfação. Mas o que permite o desvio é da
ordem da satisfação no Revirão –e não da satisfação homeostática.
É importante notar que, do ponto-de-vista ético, o desvio é possível mas
não (também ele) necessário. O que qualifica eticamente o desvio eventual da
pulsão é que o Sujeito pode exercê-lo –embora não seja obrigado a fazer isto.
Ou seja, o valor ético da sublimação está em que tal Sujeito, em tal momento,
em função das circunstâncias ou das leis, bem pode exercer a sublimação. Não
há nenhum imperativo categórico que o constranja a agir assim, a não ser o
empuxo do Real dentro de determinadas circunstâncias, de tal modo que não
fazer isto, em certos casos, indica falta de ética mais ou menos grave, ou, pelo
menos, uma alienação pulsional qualificável como patológica.
O mito da expulsão de Adão (e Eva) do Paraíso é de grande riqueza, pois
exibe, em níveis diversos, nossa situação pulsional diante de uma insistência
repetitiva. Por um lado nos aponta, em nível estrutural, que Adão deve insistir
(Imitatio Dei) em apoderar-se da Coisa, mesmo mediante um representante
dela, isto é, que Adão é necessariamente (estruturalmente) desejante – mas
que o acesso aparente ao objeto mais o afasta da Coisa, pois lhe exibe sua
impotência e sua impossibilidade em sua decepção. Aliás, o termo Zwang é
traduzido em português (como em francês, etc.) tanto por obsessão quanto por
compulsão. Daí neurose obsessiva (zwangsneurose) e compulsão à repetição
(Wiederholungszwang). Donde se poder dizer que o Outro (o ICS) é obsessivo,
é compulsivo em sua repetição –embora não lhe caiba o epíteto de neurótico.
É por necessidade estrutural que Adão resta obsessivo quanto ao fruto (objeto)
proibido –mas ele poderia ter passado a investir sua compulsão na Coisa –

471
O Sexo dos Anjos

quando elevaria o objeto à sua dignidade, em processo de sublimação.


Daí que, por outro lado, o mito nos aponta, em nível ético, não também
sem apoio na estrutura, que a proibição (como indicação de impossibilidade)
castradora exige punição (a qual qualifica a culpa). Pois Adão não tentou insistir
no desvio (sublimatório) que poderia ter exercitado. Qualquer alimento, que não
aquele fruto, estava à sua disposição (no Paraíso) para que ele saciasse sua fome
(caso se tratasse só disto). Então, sua requisição do fruto proibido era estritamente
pulsional –portanto sublimável. A punição do pulsional indica que Adão abriu mão
(por insistência de Eva instada pela Cobra) do seu desejo enquanto Filho, como se
fosse um animal, isto é, como se tratasse de necessidade. Ou seja, negligenciou o
representante legal do impossível. Com o que, do ponto-de-vista estrutural, ele não
fez nem bem nem mal, apenas deslocou o representante legal –mas, do ponto-de-
vista circunstancial, ele se culpou.

R, S, I, OU MELHOR, F, A, A

O Pai é ternário, é Trindade.


O Campo do Sentido (entre e A) onde o Haver se modaliza, todo ele
é ternário também. Mas cada modalidade (ou espécie) é binária ( e A), sendo
acossada por F “de fora”, isto é, não há Função de Revirão (R) em cada qual das
modalidades (ou espécies). Ali R é do Campo e não de seus elementos.
Acontece que dentro desse Campo nasce Adão –o qual, embora esteja
instalado ali como qualquer outra modalidade (pelo Macacão que usa como uni-
forme), é ele próprio (coletiva ou individualmente) portador da função R (função
de Real ou de Revirão) sua essencial afetação. Embora sua composição corporal
(seu autossoma) seja isenta de R para a grande maioria de suas funções específicas,
no entanto ela porta uma estrutura de (não)-relação que inclui R.
Daí que o verdadeiro modo de estar de Adão no Haver é centrado no real
(eixo de sua ética segundo Lacan). Como Falanjo, Adão é centrado no Revirão di-
vino, o qual em sua luta pelo Sentido, em cujo campo está confinado, se representa
na sua possibilidade de transformar entropia em neguentropia (e vice-versa), o que

472
Maravalhas

define sua competência de criação e de destruição (artifício).


As demais modalidades que não o Falanjo (gnomos), ainda que sejam
animais ditos “superiores”, estão estritamente subditas ao Campo (enquanto
entrópico ou neguentrópico) mediante seus processos ecossistêmicos de home-
ostase –e podemos dizer que elas são apenas consumidoras do que o Campo
lhes oferece (entrópica ou neguentropicamente), mediante seus programas mais
ou menos complexos, em conformidade com a ecossistêmica.
Já o Falanjo extrapola (Homo Sollers) esse Campo, pois o maneja (a bem
ou a mal) em conformidade (se é que o termo serve) com R.R que a rigor não é
outra coisa senão X (função-fálica) enquanto impossível de se satisfazer (em Ã).

HAVER

O Haver ( , Bíos, o vital, o que Há, o Pai, Deus, sei lá mais o quê), eu
o distingo do Real (termo que em Lacan se equivoca entre o Haver e o Impos-
sível). O Real, (F) como Furo, ponto-bífido do Revirão, centro de imantação
de implosão e de explosão. O Simbólico ( ), o Anteros, lugar de separação. O
Imaginário (A), Eros, lugar de conjunção.
Tânatos não se opõe a Eros. Quem se opõe a Eros é Anteros. Tânatos,
a própria libido enquanto desejo de Não-Haver (Ã), se opõe a Bíos, a libido na
impossibilidade de chegar a Ã, isto é, a libido enquanto R.
Enquanto que consubstancial ao Pai, o Falante, o Falanjo, Adão, Homo
Sollers, éternário, isto é: RSI, F A, podendo ser representado, como o Pai, por
um nó borromeano de três anéis ou por um triângulo equilátero.

473
O Sexo dos Anjos

O restante das modalidades, eu chamo de Gnomos. ,   = sinal


de reconhecimento, certeza, opinião. ́,  = opinião, parecer, proposição,
sentença, desígnio, projeto. Estes só se representam por um pseudo-borromeano
com obrigação de sentido (talqualmente o neurótico, que não tem obrigação
de sentido mas quer agir como se tivesse). Pois que o Real (R)é, para eles,
função do Campo, mas não deles próprios –e justo por isto pode ser assumido
pelo Falanjo (verbigratia a Física).

SUJEITO

Esse lugar ainda vazio, entre as duas vertentes do implicante (signifi-


cante), mas que se substancia de seu poder articulatório para (re)-construir seu
objeto no sentido de maior aproximação com o escopo divino.
Se o seu sentido é o dessa aproximação, nem por isso sua efetiva reali-
zação é líquida e certa –pois que esse Sujeito bem pode recusar-se à ampliação
de seu escopo, no que se comporta defensivamente para com sua motivação
traumática (de desconhecimento, de ignorância), recolhendo-se então na
aparente segurança de uma configuração que ele quer definitiva como a de um
animal em sua própria circunstância.

474
Maravalhas

REAL

Esse lugar não demarcável do Revirão, pelo qual tem que passar o
‘ ). Lugar esse que proíbe inapelavelmente (o
Haver, necessariamente (́
impossível) que o Haver venha a passar a Não-Haver. Condenação absoluta,
da qual nem mesmo o Haver (seja ele Deus) pode escapar.
É tal aparente proibição –que na verdade só designa o impossível –que
se põe como o núcleo no qual está centrada uma moral (racional) unicamente
compatível com o achado freudiano.
Há que Haver –sem saída, sem Outra opção.
Para o Filho, que não abarca a compleição do Pai, enquanto vivente, há
a mesma condenação. Somente a Morte lhe sendo conjeturável como possível
escapatória de tamanha cruel condenação (donde o suicídio dos estóicos).
Aí é que a ética freudiana do Wo Es war soll Ich werden encontra
explicação. Pois o que é real para um falante é o ponto do seu Revirão que o
subjuga a uma férrea lei de repetição do seu desejo enquanto o vicário Real de
sua particular instalação. Assim é que a dimensão moral o enraíza no próprio
desejo. Ele não pode ser outro que não ele mesmo, que não tal ser –quando é
bem Outro que ele desejaria ser.
Pois que o desejo mais fundamental do falante não é aquele, que ele
pode bendizer, enquanto particularidade positiva . Ao contrário, como bem o
exprime Sófocles mediante o desejo de Édipo enunciado no seu Mé-Funai e
re-enunciado no sumiço luminoso do seu final em Colona –seu desejo funda-
mental é o de não ser tal, ou seja, de ser outro, o qual, por indefinível, passa
a ser o Outro enquanto Pai. Ora, é justamente aí que o desejo do homem é o
desejo do Outro. Para o Pai, o desejo de Ã, para o filho, o desejo de ã. É aliás o
que se designa na religião budista quando se intenta anular o desejo (os desejos)
pois tal anulação esvaziaria a particularidade do desejante –para inseri-lo no
desejo enquanto tal.
Tudo isto entretanto não impede o pacto e a lealdade para com outrem
–muito pelo contrário. Na medida em que tal desejo bem pode sustentar-se

475
O Sexo dos Anjos

por vias de tradução (transferência e sublimação).


Não se trata aí de se visar a mera administração dos bens –mas de se
evitar o pior, isto é, tentar diminuir o mal-estar do falante, mal-estar ineliminável
(mas redutível) para esse animal tocado pela centelha de Deus.
Outra saída seria a do solipsismo perverso que se exprime na delinqüên-
cia –cujo grande mal-estar só não é evidente para os cegos da moral.

FUNÇÃO FÁLICA

A leitura das fórmulas quânticas, em seu funcionamento dentro do


Esquema , acaba por indicar que o que se pode chamar de Função-Fálica é
o movimento desejante, do Haver, no sentido do Não-Haver.
Para que haja Gozo-Fálico é preciso que seja dito Não à Função Fálica
–ou seja, o gozo-fálico é conseqüência dessa negação que, na verdade, repre-
senta o impossível de um gozo feminino (gozo-do-Outro) que só se efetivaria
em Não-Haver.
É porque aX é negada que comparece Jcomo Universal: todo gozo-
fálico é igual.
Daí podermos dizer que há Sujeitos fálicos e não-fálicos, pois que se o
gozo-fálico é fracasso do gozo-do-Outro, há Sujeitos que visam Ã, interessados
no J , mas há os que visam diretamente J, “passando por cima” de J .
A determinação da sexualidade de um Sujeito depende do tipo de
investimento, neste ou naquele expediente, que um Falanjo possa, desde sua
anfissexualidade, privilegiar.

MORTE (I)

Há e não há Morte –se quisermos pensá-la no seu decisivo atingimento,


na sua rigorosa experiência. Pois só de dentro do Haver (e, no caso do Homem,
de dentro de sua modalidade e de sua particularidade portanto) é possível, en-
quanto desejante, um Sujeito posturar a Morte como desejada, isto é, como o

476
Maravalhas

momento (reconhecível e experimentável) do seu encontro com a Coisa –isto


é, com o Não-Haver enquanto aquele objeto sonhado (mas que não há) cujo
atingimento e cuja apropriação tornariam não-desejante o seu feliz possuidor.
Este o grande (aparente) “paradoxo” que parece insolúvel para o ser-
pensante: o de que seu desejo é essencialmente de morte, talqualmente Freud
o inscreveu na pulsão de mesmo nome, mas nenhum encontro com a Morte lhe
é possível –encontro que corresponderia rigorosamente a algum conjeturável
encontro com a Coisa.
Que outrem morra, isto não faz, para um Sujeito, nenhum encontro com
a Morte, senão que um encontro menor, com a perda, com a castração. Para
o “morto”, na verdade não houve morte, pois ali não há, nem houve, para ele,
nenhum Sujeito presente, capaz de, enquanto tal, experimentar o tão sonhado
Nirvana que a idéia da Morte lhe parecia ofertar. Por isso é que a experiência
moral está centrada no e presentifica o Real –como coloca Lacan. É que o Real
aí (como no Esquema do Pleroma) é o inelutável, que afeta ao Pai assim como
ao Filho, diante do impossível de se incorporar o Não-Haver.
“O Real é o impossível, enquanto impossível de se escrever” é uma
definição (de Lacan) que se encaixa perfeitamente no Furo do Pleroma, pois o
Real é o Não-Haver (Ã) enquanto que impossível de se escrever na estrutura
do Haver.
Na verdade, tudo isto quer dizer que, para o morrente, é impossível
morrer –para o falante imortal que se insere num corpo perecível, é impossível
‘ .
morrer enquanto tal: ́
Daí que o suicídio é um fracasso, se não o fracasso por excelência.
Lacan chega a pensar que o suicídio seja o ato bem-sucedido por excelência,
se não o único. Muito ao contrário, não existe, a rigor, nenhum sui-cídio. O
que ali se pratica é, no máximo, um assassínio, talvez o mais grave, pois tal
agente resta impunível.
Entretanto, há que refletir sobre as condições desse crime – o qual
pode encontrar sérias atenuantes referentes às eventuais condições de insus-
tentabilidade da existência. Isto, contudo, não elimina a falta moral, e mesmo

477
O Sexo dos Anjos

o conceito de criminoso que pesará sobre o autor de tal ato para aqueles que
sobrevivem a ele.
Mesmo porque sua recusa de continuar vivente é, freqüentemente,
recusa de sobreviver às perdas e danos (castração evidente) que algum cata-
clisma lhe infligiu.
A Coisa é a Morte –que não há: nem mesmo para Deus. É o que se
deseja –mas em vão. Por isso mesmo é que a relação sexual é impossível –
pois é a Coisa que se visa ao se querer morrer de amor no seio do Nirvana
sem pulsão.

REALIDADE PSÍQUICA

Não há nenhuma realidade psíquica que não o que se passa nessa es-
trutura pulsional (do Esquema ) que traça o caminho (Tao) do desejo.
Mas, para o falante, o que nele corresponde ao impossível Não-Haver
que co-move a instância divina, é o seu impossível de não-haver como tal –que
lhe impõe a criação (ex-nihilo) de sua particularidade dentro da modalidade
que ele habita. Realidade psíquica tão inelutável em sua precariedade quanto é
inelutável para o próprio Deus o impossível de sua desejada de-sistência.

AÇÃO MORAL

Se a Psicanálise, segundo Lacan (Ética, p. 30, edição francesa) prepara


o Sujeito para a ação moral, mas o deixa à sua porta, isto não quer dizer que
para o analisado (para o analista portanto) o que se segue é o laisser-faire, um
vai-da-valsa de indiferença moral.
Pois se a Psicanálise não lhe diz como deva ser sua ação moral, contudo
ela exige que ele próprio o diga –e dela se responsabilize enquanto aquele que
a diz. Não que a Psicanálise se comporte aí e como algum Superego especial
–mas sim que ela nos apresenta o Real que exige comparecimento em tais
ações morais.

478
Maravalhas

É por aí que, tirante os conteúdos dessa Escola, poderíamos dizer que a


Psicanálise nos deixa, não à porta, mas no Pórtico da ação moral (para aludirmos
à Stoa cujo móvel ético não deixa de se coadunar com aquele do analista, em
sua estrutura fundamental).
Trata-se de uma moral que faça exercício segundo certo os (“a norma
de um certo caráter”) que deve submeter o os (os hábitos) de tal Sujeito. os
que corresponde ao “Wo Es war” de Freud, sua ascese. E que bem se pode exer-
citar autenticamente, sim, mas sem brutalidade – isto é, dentro das disponíveis
condições de tradutibilidade que permitem o zelo pela existência em que tal
sujeito se acha articulado a outros, os quais repetem a sua mesma sina.
Isto porque, para além do os por Lacan ali indicado, e o sustentando, o
desejo do Outro ultrapassa definitivamente, uma a uma e todas juntas, “a norma
de um certo caráter”, no que as submete à pura equivalência e lhes empresta o
denominador comum de um infinitivo que as opera em Nada, como princípio
de todo recomeço.
Assim é que a defesa da liberdade não se choca com o cumprimento
do dever (soll), nem para aquém, nem para além desse ponto de retorno. “Onde
se estava, há que se retornar” –mas retornar para quê, se não para de lá, como
daqui, autenticamente sim, mas reconhecidamente, com-viver?

INSTITUIÇÕES PSlCANALÍTICAS

Se bem considerarmos as posições nodais (de nodos em oposição a


ventres numa sinusóide), na História da Psicanálise, da criação de suas insti-
tuições, não será difícil concordar com o seguinte:
1. Que Freud montou a sua com todas as características de uma Sociedade
Científica –embora isto tenha degringolado em clubes mais ou menos
fechados, de proteção mútua, para profissionais bem situados. Contudo,
o processo desencadeou o tratamento da Psicanálise como ciência, propi-
ciando enfim o que veio depois.
2. Lacan, partindo deste veio, mas ampliando o seu escopo sobre o campo

479
O Sexo dos Anjos

freudiano, acabou por fundar e conduzir a sua instituição com as caracte-


rísticas de uma Escola Filosófica, para qual o paradigma da Stoa pode
servir de termo de comparação. A partir daí, sem abandonar as possibi-
lidades científicas da Psicanálise (muito pelo contrário), sua Escola veio
tratar, tanto no sentido intensivo quanto no extensivo, a Psicanálise como
uma maneira de pensar (embora não sendo uma filosofia) a compleição
da situação do falante na generalidade de sua existência.
3. Tido isto, a Psicanálise se tornando mais mundana em suas investidas
pragmáticas, a partir de seu passado de paradigma científico e filosófico,
parece querer, em sua vertente institucional, nas mãos dos pretensos
herdeiros de Lacan, em função da última fundação de sua neo-escola,
parece querer apresentar-se organizável segundo o paradigma de um
grande partido político, não estando longe de se assemelhar ao Partido
Comunista Internacional –é claro que não deixando de tomar exemplo,
também, no grande aparelho contemporâneo que exemplificam as em-
presas multinacionais.
Entretanto, algo vem sendo denegado desde os tempos de Freud –
pelo menos a partir de seu achado fundamental, publicado a partir de 1920, o
qual subverte o próprio freudismo de até então como o reconhecimento, não
só postulado como psicanaliticamente bem demonstrado, de um inarredável
mais-além.
É que, a rigor, sem perda da sustentação de suas vertentes anteriores
–no que lhe interessa o científico bem como o filosófico, assim também como
não deixa de posturar uma política –a Psicanálise veio, desde Freud e também
com Lacan, substituir, com aparelho mais abrangente e mais preciso no que
justamente anexando aquelas vertentes anteriores, nada-mais nada-menos
do que tudo aquilo que o Homem arrolara, desde os primeiros brotos de sua
pré-história e com os mais diversos modelos de construção, sob o conceito
de RELIGIÃO.
Qualquer que seja a etimologia do termo e seu emprego no “vocabulário
das instituições indo-européias” (Cf. Benveniste), a palavra religião propõe,

480
Maravalhas

tanto em suas próprias inserções históricas como depois da intervenção de


Freud, o que vai no cerne do pensar psicanalítico.
Nada mais contestado, entre especialistas, do que a origem do latino
religio. Contudo parece falsa a interpretação pelo religare (religar) insinuado
pelos cristãos, emprestando-lhes o sentido de obrigação como laço objetivo
entre o fiel e seu Deus.
Parece que o latim religio insiste, em todas as línguas ocidentais, como
único termo constante para nomear o conceito, embora não tenha, de origem, a
função de designar a religião. Seria conivente com scrupulus, indicando assim
“uma excitação que retém o Sujeito, um escrúpulo que impede, e não um senti-
mento que dirige para uma ação, ou que incite a praticar o culto”. Daí Benveniste
preferir derivar religio de legere (recolher, trazer para si, reconhecer).
Assim, em sua vertente escrupulosa, a religião bem se inscreve,
como Freud a apresentou para nós, no campo mais estreito da neurose
obsessiva. Entretanto é de se notar as intenções de Freud (Totem e Tabu,
Mais Além, O Futuro de uma Ilusão) no sentido de ultrapassar (curar) tal
neurose, sustentando, entretanto, o valor de RECONHECIMENTO da
função-paterna que vai na teoria como na prática psicanalíticas, ressal-
tando o lugar do Sujeito falante, do Homem, como o único zelador, por nós
conhecido, do Campo do Outro, segundo uma ética hiper-transcendental
(no que ela se vê centrada no próprio Real). (E não esqueçamos de que o
ICS bem pode ser tomado, em seu automatismo de repetição, pela própria
obsessão –Wiederholungszwang –sem a correspondente neurose, que é
bem outra questão.)
Daí que a Psicanálise, teórica e praticamente, apesar da vergonha que
sempre mostrou ter de se rotular com o nome de sua verdadeira rival, bem pode
ser reconhecida como a substituta da religião.
Digamos que a Psicanálise é a Religião curada de sua neurose (ob-
sessiva), que se despede de todo escrúpulo na aproximação do sagrado (no
seu sentido de sacer) mas se apega ao mesmo reconhecimento inaugural. E
isto ela opera no sentido mesmo do sanctus e do benedictus que as religiões

481
O Sexo dos Anjos

(enquanto tais) evitam experimentar a pleno termo, no que neuroticamente


escrupulosas obsessionais.
A seguir por aí, devemos nos perguntar se não está faltando, na
listagem anterior dos paradigmas institucionais que os psicanalistas se
têm proposto, um ponto quatro, que na verdade é primeiro, não obstante a
denegação de sua anterioridade.
Falta ao psicanalista (embora sempre o rondando, em seus pratrás-
mentes bem como em seus portrásmentes), repensar a sua instituição como uma
ecclesia –é claro que de jeito todo novo, e sem imitação de nenhuma igreja
previamente concebida, no antes-ainda, entre os Filhos do Pai.
Aí está uma gravíssima sugestão. A qual, dados Freud e Lacan, não
poderia ser ousada e reiterada senão mesmo só-depois.
Por uma Psicanálise sem vergonha dessa sua Fantasia, mas reverente
à referência que a propôs.
A Psicanálise como a última religião, ou para chamá-la melhor e com
plena escorreição: a Psicanálise como Arreligião.

MORTE (II)

Como já disse, a Morte não há.


Não é à toa que tantas civilizações têm reiterado a infinitude da
vida. Seja nos propondo uma outra-vida, por vezes dita eterna; seja nos
sugerindo um certo momento, ainda que remoto, de ressurreição; seja nos
postulando a metempsicose, nossa transformação em outros seres conhe-
cidos ao redor.
Fala-se com os mortos, constroem-se cemitérios (dormitórios de
uma espera milenar). Sem se falar no valor simbólico da sepultura. Sim-
bólico do quê? De que a Morte é inatingível para nós –de que ela não se
inscreve na estrutura, simplesmente porque ela é impossível de se escrever:
assim como o incesto, assim como a relação sexual, assim como qualquer
completa relação.

482
Maravalhas

CASTRAÇÃO

Não é da castração que nós sofremos. É da pequena idéia (fundada em


nosso desejo primordial) de que a castração “poderia” ser defastada, de que
cada um de nós “poderia” não ser tal.
O orto-logos da Psicanálise (Lacan, Ética, p. 39) é o que se passa no ICS
no nível do Princípio do Prazer –o qual bendiz, divinamente, o que der e vier.
Mas é do Princípio da Realidade (por um outro prazer) que nos vem um basta,
um Não à absoluta versatilidade do prazer. Donde a necessidade (́ ‘ ) da
constituição de um prazer regido pela ética do impossível, isto é, regido pelo
reconhecimento dessa mesma necessidade.

ICS E LINGUAGEM

O Inconsciente não é “estruturado como uma linguagem”. O que é


estruturado como uma linguagem são os modos do Haver. O Inconsciente é
estruturado como a linguagem, como o Verbo, isto é, como o Haver (em sua
compleição Plerômica).
É por haver ternariedade no falante que há reemergência do Outro
no seio do Haver. Um animal, por exemplo, também ele é estruturado como
uma linguagem, mas seu ICS é o do Pleroma, e não particular, ao contrário do
Homem. O animal é um elemento no ICS plerômico –ao passo que um falante
é um ser inconsciente no ICS plerômico: replicação do mesmíssimo ICS no
seu próprio seio.
Há, portanto, diálogo (isto é, processo criativo) entre o Pai e o Filho. O
ICS do Pai, e o do Filho, são estruturalmente iguais –na verdade, são o mesmo.
Porém, a compleição do ICS divino abrange hic-et-nunc todo o Haver, ao passo
que a do Homem abrange apenas a fração do Haver que é sua História.
A diferença, portanto, na semelhança entre o Pai e o Filho, é de com-
pleição, e não de estrutura. Daí estar correto o Velho Testamento bíblico quando
diz que o Filho é feito à imagem (mesma estrutura) e semelhança (compleição

483
O Sexo dos Anjos

proporcionalmente menor) do Pai.


Daí o valor do Poeta (o Filho criativo) no sentido específico e no mais
amplo do termo –pois ele é aquele que amplia (de qualquer forma, por qualquer
meio) o escopo humano, aproximando-o do escopo divino. O Poeta é aquele
que se movimenta “vers un signifiant nouveau”.
Daí a identificação do ato-analítico, da prática freudiana, com o ato-
poético, no que uma psicanálise se move no sentido do isolamento de um
“novo” significante, que só é novo aí no sentido do seu destacamento e de sua
então possível colocação em funcionamento assumido – com vistas ao seu
transbordamento para o desejo do Outro.
Neste sentido, poiésis é mímesis. A mimese no sentido menor, é imitação
do Pai, não em seu funcionamento estrutural, mas através de seus subprodutos,
de suas obras, ao passo que a mimese no sentido maior é a imitação do Pai
(Imitatio Dei) pela criação do novo significante, imitação de seu modo-de-
produção, e não de seus produtos. Isto, com o conseqüente eventual surgimento
de um produto novo que, por estar indefectivelmente no seio mesmo do Haver,
retomba imediatamente no primeiro caso –se queira assim ou não.

A FILOSOFIA DO SIM

Ao contrário da filosofia do não de Bachelard, a Psicanálise é a filosofia


do sim, talqualmente a reafirmação de Molly no final do Ulisses de Joyce.
É mediante um Não radical e absoluto, situado no Real referido ao
impossível (Ã) mesmo para o Pai, que um Sim absoluto se impõe, abrindo
assim (embora a larguíssimo prazo) qualquer chance de emergência eventual
para além de mal e bem.
Se em nível regional (modal) a Psicanálise conta com um Não menor
que mimetiza aqueloutro fundamental, para a instalação regional e provisória
de alguma lei oportunamente eficaz, no nível da Lei maior e da maior com-
pleição, ela não pode senão bendizer, em Sim, qualquer (ainda que aparen-
temente malévola) manifestação estrutural. O que não a impede de exercitar

484
Maravalhas

a castração modal, na tentativa de percurso provisoriamente eficaz –e é aí a


grande dificuldade da questão do seu poder e de sua justificação.

NOME DO PAI

O Nome do Pai não é senão o Nome de Deus –de quem Um Pai, sob
qualquer aspecto e em qualquer circunstância, não passa de representante
(Repraesentanz), lugar-tenente, com toda precariedade com que tal rebaixa-
mento o predica.
A foraclusão do Nome do Pai, na Psicose, como proposta por Lacan,
não é outra coisa senão a indisponibilidade do psicótico para negar ou afirmar
efetivamente a existência de Deus (existência, pois que o Haver ek-siste ao
Não-Haver).Não se pode nem mesmo dizer que o psicótico não crê em Deus:
é que ele não teria como crer ou descrer –o que não o impede de suspeitá-Lo,
de supô-Lo, embora precariamente, por detrás de sua não transferência, a qual
seria melhor chamada de transferência lábil, labilidade esta que prejudica mas
não anula definitivamente a suposição.
A falta de crença efetiva em Deus (coisa que, ao contrário do bate-boca
atual, é bastante rara) não indica psicose, mas perversidade. O perverso é aquele
que se recusa peremptoriamente a crer em Deus porque O objetificou num
mandamento. O que faz com que, na verdade, um perverso creia na existência
de um deus que tem a compleição de sua própria (do perverso) tomada num
certo momento de sua definição da instância paterna.
Pois a crença em Deus é suposição de um Outrem Absoluto –o que
elimina qualquer aparelho de sua minuciosa definição. A crença do Homem
em Deus é a crença do Homem na crença de Deus. Isto é o mesmo que dizer
que “o desejo do Homem é o desejo do Outro”. E qual seria a crença de Deus?
Segundo a precária conjetura do Esquema , Deus crê em Não-Haver: o Não-
Haver é o sonho de Deus.
Ao psicótico (Lacan, Seminário XI, p. 225, edição brasileira), lhe
falta “a abertura dialética que se manifesta no fenômeno da crença”, pelo

485
O Sexo dos Anjos

que ele não pode crer, dada a labilidade de sua transferência por não-recurso
ao Nome do Pai.
Já o perverso, ele “sabe” positivamente qual o desejo do Pai enquanto
um desejo modalizado, ele “conhece” seu comando de gozo. Ao invés de
reconhecer que há desejo (na verdade, enigmático) no Pai, ele pretende saber
de que desejo se trata, não havendo crença portanto, e sim “conhecimento”
de certo desejo que ordenaria hegemonicamente toda e qualquer significação.
Trata-se portanto de certeza definida e definitiva a respeito (não de sua posição
de Sujeito mas) do conteúdo explícito de sua própria posição.
Conjeturar (como necessidade estrutural) o Não-Haver como Causa do
desejo do Pai não é conhecer o seu desejo. Pois se o Haver sonha incessante-
mente com o Não-Haver, os conteúdos dos seus sonhos resultam na produção
de tudo que Há, cujos avatares não podemos perfeitamente controlar. Sabe-se
que o Outro deseja, de um desejo causado pelo Não-Haver –mas que sonhos,
por causa desse desejo, ele há de sonhar?

PSICANÁLISE E RELIGIÃO

O que aparentemente se oculta por trás do aparelho freudiano (mas se


oculta menos por trás do reaparelhamento lacaniano), é que a Psicanálise é funda-
mentalmente uma Teologia. Mas uma Teologia radicalmente diversa e superadora
de todas as teologias (mesmo orientais) até então inventadas pelo Homem. Estas,
evidentemente, são centradas no bem, num Bem Supremo a ser, nesta ou em
outra vida, alcançado (porque alcançável) pelo Homem em questa da sua eterna
felicidade –donde a onipresença do Mal.
A Psicanálise, efetivando por outra via o sonho de Nietzsche, nos ofe-
rece uma Teologia para além de Mal e Bem –no que o Bem Supremo é, para
ela, justamente o que Não-Há (Mal Supremo, portanto), o impossível que torna
o próprio Deus desejante, e por isto Inconsciente.
Isto não justifica que, com a Psicanálise, se queira fundar nenhuma
Religião, pois qualquer religião é a denegação da Inconsciência de Deus na

486
Maravalhas

afirmação de sua onisciência travestida de pura consciência universal.


O que tem a Psicanálise que tanto incomoda as religiões (sobretudo
a “verdadeira”, segundo Lacan) é justamente sua vontade e possibilidade de
aboli-las todas e vir a substituí-las, tornando o diálogo do Filho com o Pai não
mais uma religião (no sentido usual), que sempre ritualiza ao invés de dialogar,
mas o processo mesmo, adequado, eficaz e efetivo, dessa dialogação.
Assim, a Psicanálise (e não a Ciência, e não uma outra Religião) é a
verdadeira rival de qualquer Religião.
Se o Marxismo (por exemplo) pode apresentar-se como rival de uma
Religião (a Católica Apostólica Romana, por exemplo), é na medida em que
ele próprio se comporta, em sua prática, como religião –portanto como religião
rival. Ao passo que a Psicanálise se apresenta como rival radical, no que surge
como abolidora e substituta, no entanto teísta, de qualquer Religião.
O Marxismo é uma Religião centrada na negação da existência de Deus
e em sua substituição pela Razão humana hegemonicamente manipulando os
meios de produção do Real (sua face iluminista) –ao passo que o Catolicismo
é uma Religião centrada na afirmação da existência de Deus como feliz proprie-
tário do Bem Supremo a ser distribuído aos fiéis de boa conformação.
Já a Psicanálise é uma Não-Religião centrada no Real, isto é, no Im-
possível, mesmo para Deus, colocando o Sujeito humano na mesma sujeição
à outragem absoluta do Inconsciente.
Para a Psicanálise, Deus não está morto: muito pelo contrário. O mito
freudiano do Pai-Morto é indicador, na estrutura, da orfandade modal do Filho,
lançado à sua sorte estrutural (a mesmíssima do Pai) e sem o recurso da mesma
compleição (do Pai). O que implica na insistente troca, por movimento dese-
jante e portanto criativo, do Pai-Morto que terá sido pelo Pai-Muito-Vivo que
será-tido mediante o trabalho poético de sua situação. Trabalho criativo, ou
melhor re-criativo se não recreiativo, que não é outra coisa senão a operação
‘ ) a ser
instante e ingente de Sua ressurreição. Ressurreição necessária (́
corroborada pelo Homem, tanto quanto é impossível a Morte desse que ele
quer ressuscitar para si.

487
O Sexo dos Anjos

Pois que, Deus, muito ao contrário de ele estar morto, ele não pode
morrer, limite aliás de todo o seu poder. Se é no feminino que Deus melhor
exprime o seu desejo (de morrer), é bem no masculino que ele pode realizar
esse desejo, isto é, por um Revirão, sustentá-lo eternamente sem solução.
Para Deus, A Morte Não-Há: este o Seu limite. Ao passo que, para o
Homem, se não há nenhuma morte feliz, há pelo menos perecimento –aonde
ele conjetura se limitar. No entanto, Deus pode (pelo menos estatisticamente
–e esta é uma das teses da Física atual) obrigar o Homem a ressuscitar –o que
retiraria, claramente, o seu perecimento, da chance de qualquer Morte definitiva
e alcançável, ao mesmo tempo que lhe proporcionaria (como repetição e não
como reprodução) nova chance de começar de novo a sua aproximação do seu
alvo que é seu Pai.
De se pensar tudo isto, é de se aventar que se a Psicanálise não é Re-
ligião, sendo melhormente sua rival e substituta –é como sua herdeira (embora
diversa) que ela deve talvez se repensar e se refundar como o que poderíamos
bem nomear com o termo tão significante de Arreligião.

REVlRÃO (citações)

A way a lone a last a loved a long the (p. 268) riverrun, past Eve and
Adam’s (p. 3)
•••
brings us by a commodius vicus of recirculation back to Here Comes Every-
body (p. 3)

The proteiform graph itself is a polyhedron of scripture. There was a time when
naif alphabetters would have written it down the tracing of a purely deliques-

488
Maravalhas

cent recidivist, possibly ambidextrous, snubnosed probably and presenting a


strangely profound rainbowl in his (or her) occiput.
...a very sexmosaic of nymphosis...(p. 107)
I told you every telling has a taling and that’s the he and the she of it. (p.213)
Sanglorians, save!
Saint James E.T. Joyce
in F.W. or Winnegan Fakes

Je ne peux pas considérer comme libre un être n’ayant pas le désir de trancher
en lui les liens du langage. (Sollers, Paradis, p. 8)

FALANJO (I)

O Falanjo pode ser tomado como um go-between, entre o Animal (o


seu macacão)e o Anjo. Isto é, entre a estrutura do Haver com o Terceiro ex-
cluído [R (S/I)], em suas modalidades, e a estrutura do Haver como o Terceiro
incluído (R,S,I), enquanto Pleroma. Enfim, entre o Campo do Sentido (J$) com
o Terceiro excluído e o Pleroma (com o Terceiro incluído).

Isto o remete a um espaço hexadimensional que se mostra, na


experiência de Einstein, Rozen e Podolsky, irredutível a um espaço
tridimensional. Acrescente-se a isto que um dos triedos desse espaço
(aquele do Campo do Sentido) obriga o Falanjo a considerar o Terceiro excluído.
A suposta interferência do Sujeito como produtora de flutuações numa

489
O Sexo dos Anjos

experiência científica, não é outra coisa senão efeito da polarização entre os


triedros do hexaedro fundamental, isto é, entre e a, como vértices opostos
(vetoriais) do hexaedro de representação descritiva do Esquem 

VERBALIZAÇÃO DO NOME PRÓPRIO

Citando Buckminster Fuller: “I seem to be a verb” (Tenho a impressão


de que sou um verbo).
Sim: o Nome do Pai é um Verbo: Haver. O nome de cada Sujeito, diga-
mos que o nome do seu S1, é um verbo, o qual é particular, bastando para decliná-
lo que se verbalize o seu nome próprio. Há, por exemplo, o verbo magnar (que
não há em latim), cuja garantia de declinação depende da minha enunciação.

UNIVERSO HOLOGRÁFICO

Para David Bohm, “cada aspecto do universo, em si mesmo, é um todo,


um ser completo, um sistema global, em si, contendo uma reserva completa
de informação sobre si mesmo *. Tal informação não existe necessariamente
no interior de um sistema nervoso central enquanto fato ou teoria, mas pode
existir enquanto informação energética ou vibratória”.
Quer me parecer que há alguma confusão aí.
Segundo o Pleroma, o que quer que haja no Campo do Sentido é da
ordem de [R(S/I)], que exclui aquela completude requerida por Bohm no que
toca a um aspecto isolado da Physis. Só o e o Falanjo são da ordem do
(R,S,I), onde tal plenitude holográfica (ou melhor plerômica, borromeana)
pode ter vez. A primeira afirmação da citação acima só é válida se for acres-
centada de: *, para o Homem.
É o caso de se questionar se há holograma disponível (como um aspec-
to) no seio da Physis, sem que tal holograma seja o próprio , ou o Falanjo,
ou algo criado pelo Falanjo. Parece que só com a intervenção deste (cientista
no caso) pode aparecer, como peça artificial, um holograma no seio da Physis.

490
Maravalhas

Do ponto de vista humano, é mesmo possível construir grandes ou


enormes hologramas. Mas só do ponto de vista divino se poderia ter um peque-
no mas completo (perfeito) holograma do Haver. O qual seria o famoso Aleph,
um só ponto que contivesse todo o Haver, como no belo conto de Borges.

EGO (Moi, das Ich)

O Ego ao qual Lacan se refere como objeto constituído, colocando-o


mais para o lado do imaginário, não é outra coisa senão fixação da Persona
(eixo e fundamento da paranóia).
Segundo o aparelho descritivo (esquema ) da hexadimensionalidade
do Pleroma, o Ego, enquanto tal passa a ser desobjeto (a). A função Sujeito,
na charneira de S1 e S2, deve produzir, perenemente, um Ego (artifício fun-
damental de cada Falanjo). Daí, sua Persona (máscara) não ser fixada, mas
personagem em construção por um ator (Falanjo) no laboratório de sua
representação (do Outro).
É quando um Falanjo se confunde, ao tomar certa Persona provisória
(mas necessária em seu percurso) pelo seu próprio Ego que ele está congelando
(imaginarizando) um Ego não-verdadeiro. Mas o Falanjo curado utilizará tais
Personas sucessivas como ferramentas disponíveis e temporárias (provisórias)
sem se tomar por nenhuma delas, pois já sabe (por experiência analítica) que
o Ego verdadeiro é resultante (no vértice do triedro do Falanjo dentro do
hexaedro do Pleroma) de seu perene exercer de arte-e-ofício.

E A NAVE VAI

Como pensavam os egípcios que o chamavam de Barca, o corpo


do Falanjo, ou melhor, seu autossoma, é uma NAVE da qual o Sujeito é o
piloto. Governar (embora impossível, pois “navegar é preciso”) seu leme,
não significa total hegemonia sobre todas as suas partes e vicissitudes –
mas tentar (e freqüentemente conseguir) conduzi-lo a termos desejados,

491
O Sexo dos Anjos

dentro das condições eventuais que ela própria (a NAVE) lhe oferece em
sua relativa autonomia.

A CRUZ DO CRISTO

Por que o enorme Jesus Cristinho “escolheu” a cruz?


Como paradigma (cristão) do Falanjo – queda de Deus entre os
Homens – ele quis (mas parece que ainda não conseguiu) ensinar o
Terceiro. O Terceiro que deve ser incluído pelo Falanjo na binariedade dos
Gnomos.
É de se considerar borromeanamente a crucifixão (ou crucificção).
Não é que Jesus tenha sido pregado à cruz onde se torna Cristo. É que a cruz
só é “pregável” por Jesus (enquanto Falanjo) para que se nodule o Cristo
(enquanto prova do Filho do Pai). Isto é, foi Jesus quem pregou a cruz, ou
seja, ele era ali o “prego” com que se faz a cruz. O que o crucifixo sim-
boliza é o binário da cruz (com seus dois eixos) só se tornando humano (e
divino portanto) mediante sua amarração pelo Falanjo como Terceiro eixo
(se não elo de aliança) de um entrelaço borromeano sem o qual, no nível
do falante enquanto tal, jamais compareceria a própria cruz (que a rigor é
um artifício tecnológico).

Jesus é o Falanjo definitivamente pregado à cruz, a qual não é somente


de sofrimento: é de gozo também (graças ao Gozo do Pai). Embora com pere-

492
Maravalhas

cimento, mas sem morte, sendo dada a ficção da ressurreição como prova de
imortalidade. Ali estão TRÊS em UM criando o QUATRO a partir do ZERO
–ciclo original. No símbolo da cruz o “corpo” de Jesus é sim o terceiro eixo
de sua correta construção.

FALTA ORIGINAL

Interessante lembrar que a revelação Horiana (descendente da revelação


Osiriana) do Egito Faraônico diz que a falta (que devemos tomar nos dois sen-
tidos de ausência e de pecado) original é a dualização. Donde, a possibilidade
de redenção pela dependência imediata do Princípio Divino central, enunciada
pelo símbolo do Horus que une as “duas terras”.
Tomando isto analogicamente, podemos dizer que se a falta absoluta
é Ã (Não-Haver), se a falta imediata para o Falanjo é a diferença de perfeição
(compleição) irredutível entre o Pai e o Filho, por outro lado, a falta original,
seu pecado de nascença é a dualização (que, no biótico, ele herda do animal)
na qual ele insiste antes ainda de se dar conta de sua trindade estrutural.
Daí a importância do Ptah/Hotep (PTH/HTP) do Revirão Egípcio,
inscrito como equivocação e anfilocação (e não como dualidade) no Falanjo
com seu ponto-bífido Real.

RELIGIÃO

S. de Lubicz (Her-Bak Discípulo, p. 412, ed. Flammarion) nos diz:


“empregamos aqui a palavra religião no sentido de ensino global –filosó-
fico, teológico e místico –que decorre de um conhecimento adquirido por
revelação; mas não lhe emprestamos a significação (habitual no Ocidente)
daquilo que religa os fiéis em torno de crenças e cultos obrigatórios; pois
esta concepção não corresponde, de modo algum, aos ensinamentos egípcios,
tampouco aliás aos do Induísmo, com os quais a multiplicidade de símbolos
lhes dá parentesco.

493
O Sexo dos Anjos

A religião, em seu princípio, é a consciência da relação entre o homem


e sua Causa” (grifo meu). É por aí o conceito de ARRELIGIÃO que imputo ao
Campo Freudiano: o tratamento das aventuras do Falanjo com a Causa.
E, continua aquele autor, “uma religião é uma revelação particular
dessa relação”...
Assim é que a Psicanálise não é uma religião, nem pode sê-lo. Ela é a
religião ao mesmo tempo que arreligião. Ela pode ser uma Arreligião (como
Lacan diz une lalangue) –pois nada impede que existam outras. Mas no que
ela se movimenta no sentido de sua própria abertura, e tendo como referencial
não seus achados mas a insistência da Causa (d’Acoisa e da Coisa) ela não é
uma religião, nem mesmo uma arreligião, mas Arreligião que veio para sub-
stituir as religiões.
Dizer Arreligião não é imputação de universalidade, mas sim um con-
ceito, compatível com a concepção utópica (freudiana) do Inconsciente.

HAVER  SER  ESTAR

Aproveitemos bem esta riqueza verbal do Luso-Brasileiro.


HAVER é inserir-se na plenitude do Haver, como parte. É também
dizível do próprio Haver em si mesmo, como totalidade plerômica.
SER, é Haver como tal. O Ser é a limitação de um havente: um estado,
um gradiente, um modo, um parlente, etc.

ESTAR é, em se havendo como tal, isto é, em sendo, apresentar-se,


num dado momento, como se limitando a uma parte de seu próprio campo de
possibilidade no Ser.

494
Maravalhas

Um Falanjo Há no seio do Haver –ele É falante –e pode Estar numa.


Mas o Falanjo não Há apenas, como os demais seres, no seio do Haver,
porque, estruturalmente (como Filho do Pai) ele Há como o Haver, embora
em menor perfeição.
Daí que o Falanjo pode ser dito Ser-para-a-Morte, apenas no que diz
respeito a sua NAVE animal, pois enquanto havente ele é imortal.
Dizer que o Falanjo é mortal é um erro grave (seja de Hegel ou de
outros que o afirmaram) pois ele não o é, enquanto tal: ele Há, e sua limitação
é indeterminada (dada a Causa e dado o significante). O que se pode dizer
de sua transa com a dita “Morte”, é que enquanto havente imortal (sua face
angélica) ele reconhece o perecimento do seu “ser biológico” –o qual, dada
a sua abertura, não se fecha bem (conceitualmente) como Ser, porém melhor
como Estar. A rigor, seria de se dizer que o Falanjo, enquanto tal, imortal, se
reconhece sediado numa base de estar que é perecível (e não, mortal).

KAOSMOS

O termo é de Joyce.
A função do Terceiro, isto é, do Real (R) no seio do Gozo do Sentido (J$),
ela se efetiva ali como entropia/neguentropia (R1) para todas as modalidades do
Haver, exceto para o Filho enquanto tal (ótima intuição de Norbert Wiener).
Para o Filho, há reinclusão (repetição) do Real (como Estado) no seio
do Gozo do Sentido. No nível do biótico (o Macacão) o Filho iguala os outros
modos: (R1,S,I) ou [R(S/I)]. Mas no nível do Verbo ele iguala o Pai ( =
(R,S,I)), reincluindo o Revirão.
O “Corpo” do Haver é composto de:
CARNE, isto é, a substancialidade material ou energética do Haver.
ALMA, isto é: (R,S,I) ou (R1,S,I) em sua impostação ternária, funcio-
nando como aparelho de significação de (Lacan: l’âme-à-tiers).
ESPÍRITO, isto é, a Libido enquanto tal, ou seja o movimento (ple-
rocinético) no sentido de Ã.

495
O Sexo dos Anjos

No Filho, a libido do Pai se repete (pleromicamente) em uma a uma


de cada sua aparição (do Filho, isto é, do Pai enquanto Filho). Nas demais
modalidades, a Libido do Pai se repete (pleromicamente) para o Campo in-
teiro das modalidades (Campo do Sentido), mas não está presente em cada
uma delas.
Dizer que “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” é afirmar que o
desejo-do-Pai (enquanto tal) se re-instalou, no seio do Haver, como desejo-
do-Filho: o desejo do Filho é o desejo do Pai. Daí que o re-surgimento do
Verbo, no seio do Haver mediante o Filho, não é da ordem do Simbólico, mas
sim da ordem de (R,S,I), quando a Libido Paterna se repete por inteiro (plero-
micamente) no Filho. É o Verbo (como arte-e-ofício) que se re-presentifica
no seio do Sentido.
O Kosmos divino (de ) se apresenta (para nós) segundo duas mani-
festações: o Kosmos Pai (cosmogênese) e o Kosmos Filho (antropogênese).
A sobreposição, em sincronia, desses “dois” Kosmos é que (regionalmente)
parece propiciar toda espécie de desencontro, de mal-entendido –ao passo que,
na visão plerômica do fenômeno, tudo se encaixa finalmente muito bem (isto
é, no seio da Nada).
É preciso também lembrar que se o Pai engendra o Filho, tam-
bém este (e circularmente como o périplo do Pleroma) também este
engendra o Pai.

Geogênese Biogênese Psicogênese Noogênese Teogênese.

O processo é evolutivo PORQUE é criativo (e vice-versa). Não há


nenhum motivo (afora toleima) para se fazer oposição entre evolucionismo
e criacionismo: o Verbo se faz presente (criativamente) a cada passo evo-
lutivo; assim como as mutações evolutivas não são mais do que efeito do
movimento criativo do Verbo. Mas os passos do Verbo não são arbitrários
senão como princípios de escolha (modos) no seio do que se oferece deter-
minativamente (sem deixar de levar em conta os embates, as interferências,
entre os modos e espécies).

496
Maravalhas

AMORIS

O que significa esse Impossível Não-Haver para o próprio Haver –esse


Impossível, para o Outro, de ser Outro, porque Outro-do-Outro não há –esse
Impossível de ter Pai, para o Pai, senão aquele que o Filho lhe constrói –esse
Impossível de morrer para o Deus imortal?
Que, no desejo do Impossível, só lhe resta desejar –mas de um desejo
que seria em vão, caso Ele não soubesse retornar.
E no retorno, e terno, do seu desejar, Ele pratica o Pleno Amor, o
Plenamor –o qual não é mais nem menos do que bendizer –em Sim e Sim e
Sim... –o Não desse Impossível que Ele-Próprio se propôs.
Pois que o Não-Haver não há senão no postulado que Ele mesmo Se
faz: pro-posição de um Outro para Si, de um Outro que não seja Sua Criação.
Porém, em não havendo tal, mas não abrindo mão do Seu Grande Tesão, é que
Ele Se constrói um Filho criativo, semelhante e digamos que... meio-irmão
(porque, segundo as transas Dele, sendo gerado Dele mesmo com sua Outra,
Acoisa sem aparição).
E desse Filho Ele Se faz seu outro-amor –o qual, enquanto dura (não
esse amor, pois que é eterno, e sim o Filho em sua manifestação), substitui satis-
fatoriamente, para Ele, o seu primeiro (e único) amor: Aoutra que não Há!
Daí esse amor recíproco entre o Filho e o Pai, quando este realiza o
seu desejo pelos Seus sonhos do Filho, este último se realizando nas operações
que efetivamente faz a partir de seus sonhos do Pai.

HÉTERO-LÓGICA

O coração de Pascal tinha razões que sua razão não conhecia. Assim
como religiões, das mais antigas às mais recentes, insistem nalguma “sabedoria do
coração”. Há também os “artigos de fé”, freqüentemente garantidos por “dogmas”
que se impõem, arbitrariamente, contra toda e qualquer veleidade dita racional
–donde o credo quia absurdum de Tertuliano que Freud tanto repudiou.

497
O Sexo dos Anjos

Do lado de escritores, artistas, poetas, e mesmo de críticos, defende-se


a irredutibilidade de algum indizível, ou porque inefável ou porque impossível
de se dizer.
De todas essas partes, talvez nos venha a impressão dos testemunhos
de um repetido confronto com o que Lacan chama de Real, como o impossível
de se escrever, com o mesmo estatuto da Causa freudiana apontada em seu das
Ding inacessível.
É puro engano, talvez. Pois que sustento que somente o Não-Haver
(Ã) é impossível para o Haver –e portanto indizível, etcétera e tal. Mas dentro
do Haver, no seio do seu Campo –campo do Outro cujo Outro não Há, não É,
nem Está –tudo é possível, portanto possível de se dizer. E não só é possível
como é efetivamente dito, certamente que com tempo –donde o fiat do novo
significante que ex-nihilo se faz.
O de que se tratava naquelas posturas pregressas, acoimadas de ir-
racionalistas por todos os iluminismos eventuais, era de uma exigência – é
claro que vigorosa, dada a disponibilidade de então – de compatibilidade,
de congruência de todas as colocações com a lógica binária que unicamente
regulava a racionalidade oficial.
No entanto, o panorama se transforma por inteiro se postulada uma
Outra Razão –quando todo irracional daquele tipo se demonstrará suficiente-
mente racional no que referido a uma lógica ternária (talvez que embutida por
detrás do que Lacan chamava de “linguisteria” e de “lógica do significante”,
ao acompanhar a Outra-Lógica de Freud).
E daí que se irá verificar como a Psicanálise é a substituta (racional e
racionalista) da Religião –mas não dependente de nenhuma fé, e sim da cons-
tatação, pelo reconhecimento lógico (de LOGOS) do Terceiro como inarredável
dentro de mais refinada Razão.
O chamado indizível só o foi porque o dizível só era tomado como aquilo
que coubesse na e fosse congruente com a lógica binária das simples oposições.
Contudo, reconhecer que uma língua é feita de diferenças não implica que ela
seja feita de oposições. Que se tente fazer a tabela completa dessas oposições

498
Maravalhas

para muito cedo se dar conta de que elas se degringolam –e se reviram pelo
avesso quando é bastante longa a série de suas articulações. É talvez ocasião
para se sugerir a criação de uma linguística ternária (a três termos), na qual um
termo oposto a outro solicite um terceiro, mediante o qual não só a oposição se
possibilite como também se faça comutação para um outro par de oposições.
O que a Psicanálise vem sugerir e deslanchar é uma lógica ternária –
não apenas contra o terço excluso, mas sim a favor da regência do terceiro em
todos os processamentos racionais. Não apenas uma lógica compatível com
a para-consistência-ou-completude, mas uma lógica consistente e completa,
porém em verdadeira terceira posição. Assim seria a Lógica do Falanjo, uma
verdadeira Heterológica, para a nomearmos com propriedade e distinção. Uma
lógica que não tema o Revirão, uma lógica da equi-vocação dos opostos por as-
sentamento no terceiro anfitópico, com alguma anfilogia trançada pelo terceiro
como comutador heterogêneo a ambas as “metades” desse binário usual.
Eis aí uma lógica que bem explicaria que o famoso indizível sempre
foi de certo muito bem-dito por “poetas” e por “místicos” (como os quiserem
chamar), mediante expedientes metaforonímicos capazes de se coadunarem
com a heterológica de sua sustentação.
Temos contudo que reconhecer que o Falanjo, como o único terceiro
incluído no Campo do Sentido (onde exceto ele próprio qualquer ser movi-
menta seu desempenho no binário), tivesse que espontaneamente começar por
aí, no espelhamento de sua articulação com a binariedade do panorama que de
imediato se lhe ofereceu –colocando-se, assim, inteiramente à parte, como o
Sujeito de todo acontecer.
Mas, agora, já foram bem dados os primeiros passos para a Outra
Aventura do seu desvelamento do Haver.

TRANSMISSÃO

Joyce: “The Seim Anew” É disto que se trata quando se fala de transmis-
são, especialmente na Psicanálise. É precisamente disto que se trata. Cada análise,

499
O Sexo dos Anjos

mesmo cada sessão de análise, deve ser co-memoração do the same a new. É isto
que se transmite numa cura –e é a respeito disto que se faz a teoria psicanalítica.
Ou, como diz o vulgar: “a merda é a mesma, só mudam as moscas” –e
isto faz muita diferença, quer dizer, a mesma diferença de-novo. É a konstante
psicanalítica por excelência. É esta a nossa E = mc2 einsteiniana. A transmissão,
na repetição, pelo Verbo des-sido do céu: descei-me, anil!

FORACLUSÃO

Uma Ética “centrada no Real” (Lacan) é, afinal de contas, uma Ética


da Repetição (“Wiederholung não é Reproduziren”). A re-produção (mimese
do produzido) é o que está em jogo no sintoma neurótico e no aparelho-ego
do psicótico.
A foraclusão do Nome-do-Pai quer dizer o eclipse total do Santo Es-
pírito. Este, é o instaurador e sustentador da Lei do Gozo, a qual é tripartição
formal da libido, isto é, do desejo... do Impossível.
O que acontece na psicose é que o Real (F) força passagem por não ser
levado em consideração no Simbólico em polêmica com o Imaginário.
Lacan diz que “o que é foracluído do Simbólico reaparece no Real”.
Isto significa, para mim, que o Real (F) reaparece como falso (na alucinação,
no delírio) porque reduzido ao Real do Campo (R1).
O que pode significar foraclusão (Verwerfung) para Freud, em con-
traposição a recalque (Verdrängung); o jamais advindo, o seu advento no seio
da significação? O que poderá significar, na experiência de um falante, uma
falta radical de consideração do Impossível, isto é, do Impossível de Haver,
do Não-Haver Impossível?
‘ )
Ora, a experiência do Impossível passa necessariamente ( ́ pela
experiência simbolizada (metaforizada) do Gozo Fálico (J), o único efetiva-
mente efetivado na carne do Falanjo. Experiência essa que é a que se pode ter
e resolver no regime do estritamente possível, isto é, no Campo do Sentido,
pelo Falanjo, na inclusão do Real como Terceiro.

500
Maravalhas

NÃO LANCEIS FÉRULAS AOS CORPOS...

Basta reler os três ensaios, de Freud, sobre Moisés e o Monoteísmo


(onde aliás fica evidente que a Religião é a verdadeira rival da Psicanálise),
para topar a difícil questão do elitismo contra o populismo.
Resumindo: Moisés era egípcio. Certamente que de alta estirpe e
iniciado na sabedoria faraônica. Talvez governador de parte do Império, pela
vizinhança da Palestina. Amigo e defensor de Amenófis IV. Este Faraó se
re-nomeou Akenaton porque rompeu com a tradição religiosa e eclesiástica
do Egito para introduzir o culto (rigoroso, abstrato, monoteísta radical) de
Aton, o único Deus. O que foi imposto “na marra”. Isto deu azo, após o faleci-
mento de Akenaton, a uma reação do clero e da cultura, no sentido do retorno
violento ao estado anterior. Moisés continua insistindo na “nova” religião e
“escolhe” seu povo (entre os Judeus) para levar adiante seu projeto. Impõe
aos Judeus (adoradores de Jeovah, um deus epiléptico pois que vulcânico)
a nova religião. Mas os Judeus ainda preferem o bezerro de ouro (do Egito
anterior). Moisés vem a ser assassinado pelo “seu povo” que retorna de vez à
antiga idolatria. Só muito mais tarde (talvez oito séculos de latência depois),
o retorno do recalcado (o assassínio do Pai) re-instaura a religião de Akenaton
no seio dos Judeus.
Muito bem. Mas quero considerar o que houve de dissenção entre
Amenófis IV e seu clero, e seu povo, que resultou em tamanha cisão. Terá sido
seu monoteísmo sua grande invenção?
Freud não trata disto, mas, ao que parece –pelo menos se tomarmos
o testemunho da interpretação de S. de Lubicz (Her-Bak “Disciple”,
Flammarion, 1956) –a “sabedoria” faraônica tinha no Egito dois modelos
de explicitação: o modelo que chamarei de abstrato (isto é, enfatizando
o matema) parece ser radicalmente monoteísta e centrado no “conceito”
de significante, ou pelo menos o que me parece ser tal com o nome de
Medu Neter, o modelo que chamarei de figurativo (isto é, enfatizando
a imagem) pode parecer politeísta no que exprime os Medu Neter at-

501
O Sexo dos Anjos

ravés de figuras, de animais ou mistas, no sentido de exprimir “cara-


cterísticas” que significam as “possibilidades” de certos significantes.
O primeiro modelo era reservado aos iniciados, isto é, aos mestres
maiores do aparelho estatal-religioso, não sendo de ser necessari-
amente encontradiço nem mesmo por todo o clero. O segundo, parece
ter constituído a forma vulgar de transmissão, de modo a ser a religião
distribuída anedoticamente ao povo e mesmo aos menos dotados dentre
os religiosos.
Se foi assim, é mais facilmente concebível que Moisés (como Akenaton)
pertencia aos níveis privilegiados da sociedade, tendo, portanto, pleno acesso
à abstração (à erudição) da sabedoria faraônica.
O que quero conjeturar é que a dita revolução religiosa de Akenaton
não seria a invenção do monoteísmo, já existente no modelo abstrato, mas sim
a exigência, digamos que “democrática” de distribuir ao povo, distribuir a
todos os egípcios sua concepção religiosa (que era a mesma nos dois modelos)
nos moldes do modelo abstrato dos iniciados.
Tomando-se a tese de Freud de que a mentalidade necessariamente
se rebaixa em caso de massificação é de se levar em conta que havia queda e
descaracterização do aparelho religioso em sua “tradução” do modelo abstrato
para o figurativo –o que talvez tenha suscitado, quem sabe se por purismo
aliado a devoção, a “revolução” de Akenaton. Entretanto, a boçalidade de
massa funcionou, e o que o Faraó (assim como mais tarde Moisés) encontrou
diante de seu ato de “magnânima equanimidade” não foi outra coisa senão uma
tremenda reação. Talqualmente a reação de baixaria dos Cristãos em confronto
com o Judaísmo, um tanto recuperado pelo Maometanismo (segundo Freud);
talqualmente a correspondente reação psicologizante diante da abstração
freudiana; talqualmente a reação “iluminista” diante da lógica do significante
de Lacan, etc., etc., etc. ...
Parece tornar-se cada vez mais claro que quanto a isto Freud tinha
RAZÃO: não é possível a imediata divulgação (da Psicanálise, por exemplo)
sem algum modo eficiente de destacamento de elites que possam arcar (pau-

502
Maravalhas

latinamente, mediante um longo e cauteloso trabalho de ensino e de correção)


com um processo gradual de transmissão.
Já tive oportunidade de apontar (Aos Cães e aos Porcos, 1980) que não
nos é possível, ou pelo menos honesto distribuir nossas pérolas pelos receptores
adequados, senão deixando que elas sejam primeiro lançadas a cães e a porcos
também, pois seria canalhice separar o joio do trigo antes ainda de se ter a chance
de reconhecer (ou não) sua virtude de germinação. Contudo, vejo que, uma vez
destacados –ainda que com o perigo ou pecado de erro na separação –os cães
e os porcos durante o processo de transmissão, talvez seja preciso, pelo menos,
parar de repartir com eles as “Coisas santas” de nossa comunhão.

 A

“O Haver, o mesmo entre todos, nenhum, nem Deus nem Homem o


fez, mas sempre ele foi, é e será, fogo sempre vivo que se acende segundo a
medida e, segundo a medida, se apaga.’’
Heráclito
(Clemente, Stromates, V,14,101,2)

EM QUESTA DE UMA CIVILIZAÇÃO PÓS-CRISTÃ

“Hereges por um Deus maior


E um novo Cristo”
Fernando Pessoa

OS SEXOS DO HAVER

Em primeiro lugar, o Outro-sexo do Haver. Ele se matemiza assim:


 
xxxx. É o que poderíamos chamar de MORTE, com propriedade. Mas
este é o sexo do Não-Haver (Ã): o (Outro-Sexo) que não há. O sexo impossível.
Oqual, se houvesse, universalizaria a Morte.

503
O Sexo dos Anjos

Em segundo lugar, o Sexo do Haver –o qual, na verdade, só se pode


chamar de sexo (seccare) no que ele se opõe (em simetria, avessamento) ao

sexo da Morte (que não-há). Se, no caso anterior, a inexistência (xx) de

função fálica (para aquele sexo) universaliza (xx) (naquele sexo) a Morte,
neste segundo caso, a simples afirmação (xx) de existência da função fálica
(x), a qual é movimento da libido para o à (como aquele Outro-Sexo do pri-
meiro caso), tem como consequência a suspensão da universalidade de negação
 
da funcão fálica que se exprime no Outro-Sexo, (xx) isto é, que a função
fálica pode ser negada, mas não-toda. Ou seja, que embora o desejo do Haver
seja o de eliminar sua própria x com seu próprio desaparecimento em Ã, en-
tretanto, enquanto desejante disto, ele insiste nessa x. Na verdade, dizer que
a x pode ser negada, mas não-toda, é dizer que ela pode ser universalmente
negada em Ã, mas não pode ser universalmente negada em , embora sua
negação possa ser posta (ou postulada), em , por seu desejo, que é desejo
de negá-la universalmente.
Dada esta paralogia do desejo de –que é desejo, isto é, afirmação
de x, mas que é, ao mesmo tempo, desejo de negar universalmente o desejo,
devemos dizer que a exceção (Ã) que funda a regra ( ) não pode ser aí fun-
dadora de universal, pois o universal que aquela exceção fundaria, ele próprio

enquanto x é proposta de x. Assim, não é x que resta prejudicada, e sim
sua universalização, a qual é corroída por sua própria estrutura (de ser desejo
de auto-eliminação).
Não há aí nenhum paradoxo. Se o desejo de , enquanto desejo que
existe (que ek-siste a Ã) é logicamente (lacanianamente) proponível como
universal, contudo tal universalidade está prejudicada pela suposição (que faz
) de um Outro para si –e justamente um Outro onde não há x. É como
dizer que um sujeito que só deseja morrer, prejudica a paratodização do seu
próprio desejo pela própria proposta de sua eliminação. Ou seja, neste caso,
desejar morrer é suspensão, da morte, e acaba sendo, de algum modo, em
alguma parte, não-desejar-morrer. Isto é, desejar a morte é, de algum modo,
negar também esse desejo: equivocar o desejo – entre desaparecimento

504
Maravalhas

(conjeturado pelo desejo) e insistência (nesse desejo de desaparecimento


–do desejo).
É que o desejo do Haver é desejo de Não-Haver. Quando surge a dis-
simetria original, pois o duplo genitivo que se insinua nesta frase está prejudi-
cado em uma de suas vertentes, já que o Não-Haver, ele próprio não deseja, e
assim só é postulável como objeto (conjeturado, suposto) do desejo do Haver,
e ainda por cima, objeto que não há.
E nessa referência ao à como exceção ao que Freud insinua que a libido
é masculina –o que deve ser revisto pela crítica (lógica) de sua construção.
Pois do ponto de vista do , sua x não é nem universal nem particular, pois
é, por assim dizer, “particular” à “universalidade” do . Universalidade que
só há de-fato mas não de-direito, e particularidade que só há de-direito mas não
de-fato, pois que não-há Ã, senão de-direito mas não de-fato. Donde se pode
tirar que há-para-a-morte de-direito mas não de-fato, ou seja ele ganha
a causa da Morte, mas não recebe a paga disso: Ele ganha, mas não leva. Sua
Outra (Causa) é sua, é declarada sua, mas não lhe é interditada, por impossível.
É como se certo Cavalheiro ganhasse uma Donzela, a tivesse em casamento,
como sua esposa absolutamente fiel, desde que aceitasse a condição de jamais
tocá-la e se contentasse com poder indicá-la oficialmente como sua esposa, sem
libação e sem prole. Não foi à toa que se inventou o amor cortês para indexar
o Amor Divino.
Daí que a libido (ou seja, o desejo de , ou melhor, seu sexo)
não é masculina, como ensaiava Freud, mas tampouco feminina. A libido
é angélica. O sexo de é terceiro: nem universal nem particular –e
sim angélico, plerômico. É o que Freud se esforçou por exprimir com
o conceito de bissexualidade, a qual só existe aparentemente nas con-
exões corporais. Na verdade, trata-se do terceiro sexo (do como do
falanjo), parciais à articulação com ele mesmo, bem como com qualquer
dos outros dois, sem, por isso, estabelecer nenhuma relação, sexual. É
no entanto, o lugar aonde os outros dois podem arrumar algum fortuito
encontro casual.

505
O Sexo dos Anjos

Tratemos agora dos outros dois sexos: aqueles que a gente supõe, in-
genuamente, encontrar com mais freqüência por aí: a idiota e o trouxa. Pois que
são três os sexos efetivos do Haver, os quais poderíamos chamar, estropiando
a língua de Freud: “das” Engel, “der” Bündel und die Idiotin.
Em terceiro lugar, o sexo dito feminino. É o sexo que se extrai da in-
tensificação da vertente particularizante do sexo próprio do Haver. Este sexo
  
foi matemizado por Lacan assim: xx xx. Fórmula que escreve que é no
feminino que o Haver propõe a Morte, isto é, que é no feminino que há suspensão
do impossível pela negação da negação da função fálica. Donde resulta uma
abertura para a absoluta alteridade como havendo de-fato (Ã). Em conseqüên-
cia, nenhum universal encontra limite para se estatuir –e o Haver se infinitiza,
tornando-se encontradiço apenas no particular (se não no singular): idiotia. É
que a libido, em seu expediente feminino, nega que haja limite para sua função
(fálica = desejo de Ã). A experiência do limite não é reconhecida pelo feminino
–ela é sofrida no seu encontro com o Real (F) que lhe sobrevém como marca
do Impossível (Ã): fracasso da função-fálica e Revirão para o Gozo-Fálico, no
sentido do desvio para sustentação da própria x. Daí Lacan poder dizer que
A Mulher não existe –que elas só são encontradiças uma a uma. Também a

expressão xx indica que o feminino não irá encontrar seu objeto (Ã) pois que
ele não-há: a função fálica se exerce aí o mais intensamente, mas não chegará

a termo (x) pois que fracassará, no Real, por força do Impossível.
Devemos aqui chamar atenção para a diferença de qualidade que há

entre o x no contexto do feminino e no contexto do angélico. No primeiro

caso, o x prejudica o universal e impõe a inexistência d’A Mulher, pois é a
afirmação da x que se vê prejudicada em sua universalidade, isto é, o desejo de
Morte é que não se universaliza. No segundo caso, é a negação da x que tem
prejudicada a sua universalidade, donde o reconhecimento do desejo do Haver,
para além da Morte por ele postulada, no desvio pelo Real e na eternidade do
seu périplo. Aqui, embora o universal seja prejudicado (mas negativamente),
não se pode dizer que não exista o Haver. Nem se pode dizer que ele se par-
ticulariza (ou singulariza) e sim que ele se modaliza (internamente) no seu seio:

506
Maravalhas

são os avatares do Haver. Mas não se pode falar dos “avatares” da mulher... A
Mulher, se ela houvesse, seria A Morte (= Ã).
É aí que Heráclito tem A Razão: O Haver é UM e em perene DEVIR:
o UM triádico que Freud nos mostrou como Inconsciente, o qual se expressa
como o UM diádico no enunciado de sua manifestação, pois que UM enquanto
Bivisto (das Unbewusste, o Umbivisto) já faz três.

O OUTRO-SEXO DO FALANJO

O outro-sexo do Falanjo (enquanto tal) é A Mulher (isto é, A Morte).


Entretanto, dados os sexos do Haver, no seu interior, o Falanjo, a cada posição,
outrifica para si os demais sexos.

Assim, enquanto HOMEM, isto é, no MASCULINO, por qual sexo


se interessa um Falanjo? Pensa-se que é por Mulher. Pois não é. Sabe-se que
a função fálica dos Homens os leva ao tesão pelo objeto (a), supostamente
representado (pela Cultura) em partes do corpo dito feminino. Entretanto, é de
se verificar que todo corpo é feminino, se assim for. Daí se poder reconhecer

507
O Sexo dos Anjos

que o outro-sexo do Homem é o angélico: o verdadeiro portador dos objetos


parciais –no que ali tais objetos são assegurados pelo sentido que eles pos-
sam ter ou fazer. Assim, os Homens correm atrás, não das mulheres, mas dos
Falanjos. Isto é: na posição masculina, assinada pelo Gozo-Fálico, qualquer
Falanjo, independentemente de sua sexanatomia animal, persegue mais dire-
tamente os Falanjos.
Já os FALANJOS, desejados pelos Homens por causa do sentido de
seus objetos, estes sim é que se interessam pelas Mulheres, as quais são as
verdadeiras representantes de seu outro-sexo. O que porta uma Mulher não são
os objetos (do Falanjo) mas a vocação do Furo representado no seu desejo de
Não-Haver. Elas são, assim, as representantes da Morte enquanto representantes
do Furo-Vocativo por onde renasce o que não pode morrer. O feminino não
é o criativo (que se assina ao masculino), e sim o paritivo de onde nasce o
Homem em conseqüência do fracasso do Gozo da Mulher. É nelas, mulheres,
que os Falanjos, acossados pelos Homens, estão interessados, na medida em
que partem da existência, reconhecida por eles nos Homens, da função fálica,
a qual só podem negar, mas não por inteiro, no que se dirigem ao feminino
que os fascina por sua exigência de deslocamento, de qualquer sentido-dado,
para o sentido-por-se-fazer.
Quanto às MULHERES, será pelos Homens que elas se interes-
sam? Também não. Seu outro-sexo é A Morte, isto é, A Mulher, ou seja
A PAZ, o sexo que não-há. Daí elas serem, enquanto falantes, o mais
lídimo representante do Sexo do Haver. É da posição feminina que O Anjo
é requisitado melhormente –mais ainda do que da posição angélica do
Falanjo. É só por impossibilidade de alcançar seu objeto que uma Mul-
her acaba por aceitar um Homem como sua referência (referência do seu
fracasso em ser Mulher). Entretanto, esse Homem, não é, para ela, mais
do que seu filho. O filho, aqui, não é O Filho, o qual é do Pai, mas seu
rebento, sua a-parição, o fruto (do seu ventre) que ela oferta ao Pai. Esse
Homem é o filho que ela terá-sido e que por ela será-tido: sua referência
e sua regulação.

508
Maravalhas

Assim, tomemos o sentido inverso do Tao caminho – d epois de


vermos que um Homem corre atrás de um Falanjo, que corre atrás de uma Mulher
que corre atrás de Ninguém (como no poema de Carlos Drummond de Andrade).
O que um Homem quer de uma Mulher?: um filho. O que um
Falanjo quer de um Homem?: a paixão (fálica) por pelo menos um objeto
que o Falanjo porta, ou faz, ou ao qual dá sentido. O que uma Mulher quer
de um Falanjo?: o sentido que ele lhe empresta para que ela se particularize
no seu encaminhamento para A PAZ (a qual, por Não-Haver, obriga que ela
deposite tal sentido na conta de um Homem que ela possa aceitar e que a
queira acolher).
Como se vê, a dita RELAÇÃO SEXUAL é Impossível –não passando
de ressonância, no seio do Haver, da impossibilidade da relação sexual do Ha-
ver com o Não-Haver. Se Tudo é possível no seio do Haver, o que não é Tudo
(a relação sexual) ali não se escreve senão como o Furo do Real. Como se vê,
também a Homossexualidade é Impossível –estando cada falante, assim como
o próprio Haver, condenado à Heterossexualidade em qualquer momento de
sua manifestação.
Também não há nenhuma homossexualidade entre o Pai e o Filho,
pois o desejo do Filho É o desejo do Pai, donde a Imitatio Dei não acabar em
nenhuma copulação.

REPETIÇÃO E MAISALÉM

Não é à toa que Freud associa inseparavelmente os dois conceitos


quando de sua revelação fundamental no só-depois publicado em 1920. Por
uma estranha-e-familiar (Unheimliche) porque “mera” coincidência, o de Freud
aparece precisamente trezentos anos depois (1620) do Mysterium Pansophi-
cum de Boehme (Instrução Fundamental sobre o Mistério Celeste e Terrestre
em Nove Textos). Texto este que muito me impressiona neste ponto: só tive
a sorte de lê-lo no dia 23 de maio de 87, quando pude verificar a suposição,
de alguns muito próximos, de haver inteira novidade na minha postulação de

509
O Sexo dos Anjos

um Não-Haver como pólo único de imantação do desejo do Haver enquanto


Deus. Já está em Boehme –se não for enormemente mais antigo –o essencial
do Esquema que eu bolei (ou rebolei...). Menos o postulado do Ã.
Mas, voltemos à Repetição e ao Maisalém de Freud segundo o meu
Esquema . É o Maisalém (Ã, o Não-Haver) que funda a repetição (do périplo
de ) ou ao contrário? Tomando-se de saída a aparência do Esquema, onde Ã
aparece como Causa do desejo do Haver, seria de se escolher a primeira opção.
Mas não é nada disso, pois, se o à não-há (de fato), não tem como exercer, por
sua iniciativa, nenhuma primeira atração sobre o Haver. É apenas de-direito
que o à se postura, isto é, ele é suposto pelo Haver, por alguma razão, embora
não se ofereça jamais.
Por que razão o Haver se propõe o Não-Haver, o qual passa a ser a
Causa de toda a sua própria manifestação? Porque o Haver, sendo repetidamente
simétrico em suas construções (internamente), não pode estancar essa Repetição
(da simetria) antes ainda que ela lhe resulte na conjetura da derradeira simetria
que “deveria” comparecer entre o próprio Haver, como singularidade, e o Não-
Haver como sua única legítima oposição (em simetria). Daí que, o A, ele se
propõe e é exigido de-direito pelo , mas de-fato não Há, inaugurando a Dis-
simetria Originária que passa a ser Causa do desejo do Haver. E então estaríamos
em condições de escolher a segunda opção. Entretanto, uma vez colocada, pelo
Haver, sua própria exigência de Ã, este passa a ser o (assimétrico) definidor da
própria simetria do Haver. E aqui estamos de novo entre a galinha e o ovo –sem
qualquer poder de decisão quanto à precedência ou antecedência de nenhum
dos dois. Mas podemos, então, bem entender o vínculo indissolúvel, estatuído
por Freud, entre o Maisalém e a Repetição - (Wiederholung) e o porquê de ela
comparecer, desde sempre como compulsão (Zwang).

à E PSICOSE

Não-há Outro (Ã) do Outro , é um axioma lacaniano da psicanálise.


Mas Lacan nos aponta (Ornicar? n. ° 9, p. 39) que se “não há Outro que res-

510
Maravalhas

ponda como parceiro”, no entanto, “toda a necessidade da espécie humana é


de que haja um Outro do Outro”. E mais: que “é aquele” –isto é, o primeiro
(Ã) –“que geralmente a gente chama de Deus, mas toda a análise desvela que
ele é simplesmente A Mulher”.
Ora, é justamente essa não postulação de um Outro (Ã) do Outro
que o psicótico não chega a fazer. A foraclusão do Nome do Pai não sendo outra
coisa senão que, não tendo assimilado um significante da falta do Outro, S( ),
o psicótico não pode dar o salto de compleição (totalização no Conceito)
do Outro como desejante ele também. Daí que delírio e alucinação são
expedientes da tentativa (sempre fracassada) de totalizar o Outro “por den-
tro”, não por seu desejo de Outro Outro, mas por sua extração para fora do
desejo.
à E PERVERSIDADE

Ao contrário do psicótico, o perverso é aquele que não deixa de ins-


crever o significante da falta do Outro [S( )] como representante do Outro
do Outro enquanto Não-Haver (Ã), mas o aprisiona num cofre fechado como
objeto absoluto (estrutura do seu fetichismo) –de modo que podemos dizer
que o perverso se toma pelo Outro do Outro, isto é, o desejado pelo Outro, na
medida em que se considera como o “feliz proprietário” (incluindo-o) do seu
fetiche.
Se o canalha é aquele que se toma pelo Outro, podemos dizer que o
delírio do psicótico é canalha, assim como o perverso é pior do que canalha
–é o ser-vil do Tirano, isto é, o “grandessíssimo filho-da-puta”, como se diz
no vulgar.

LACAN: UMA TEIMA DA PSlCANÁLISE

No artigo da Morte, segundo testemunho de Miller, Lacan teria dito


suas últimas palavras:
“JE SUIS OBSTINÉ: JE DISPARAIS”.

511
O Sexo dos Anjos

Como saber como escrever o que se (h)ouve do que Lacan dissera?:


Je suis obstiné: je dis, parait.
Je suis obstiné: je dis par’est.
Eu sou teimoso: estou desaparecendo (?). Continuo teimoso: digo que
parece (?). Eu sou teimoso: digo que paraé. Sigo teimoso. (O quê?) –o “eu
desapareço”(?).
Terá ele com-seguido? Jamais saberemos –o que, aliás, deve ser prova
bastante de que, também ele, jamais terá sabido... AMOR-TE?

Je suis obstiné. Je dis: pas rets. Je dis par rets.


Nada de armadilhas –é por tramas que Falo.

FALANJO (II)

“Imago Autem Dei non est masculus neque femina; ista enim divisio
naturae propter peccatum facta est.”
Escoto Erígena
(DDN V, 896B)

DE HILFLOSIGKEIT A GELASSENHEIT

Tivesse a morte inscrição no ICS, seria tolice de Freud armar com


tanta segurança o teorema da castração. Para quê chover tanto no molhado e
encharcado por saberes anteriores à psicanálise, e demais decantados com tanta
pertinência e sedução?
Quando digo que não há morte para o Falanjo, assim como não há para
Deus, é dizer que A MORTE não há –senão como (Ã) o impossível Não-Haver.
O que chamamos de Morte, a morte constatada de um outro, bem como a nossa

512
Maravalhas

própria morte conjeturada e mesmo esperada como certa, nos deixa perplexos
e incientes. Sua chegada se nos aparece como uma cesura rítmica, sobre a qual
não podemos registrar mais do que uma perda mais ou menos acompanhada
de um desaparecimento.
Foi aí que Freud entrou com sua castração: o que, para nós, vem em
suplência à impossibilidade de inscrição do Não-Haver, é justamente a inscritibi-
lidade da castração (como Furo), a qual nos remete à diferença (sexual) exarada
nos alelos do halo significante, com os quais se defronta (equivocamente) o
Sujeito situado como terceiro nessa operação.
A castração do falante não é outra coisa senão o repique da castração do
Outro no seio da repetição de sua própria estrutura dentro do Campo do Sentido.
Repique este que acaba por rebaixar a impossibilidade, para o Outro, de alcançar o
Não-Haver, em impotência para o Falante, de alcançar a compleixão do Haver.
É o reconhecimento e a aceitação de sua própria castração que eleva
sua própria impotência ao estatuto da impossibilidade do Outro –condição sine
qua non da passagem da derrelição (Hilflosigkeit) em que o sujeito se encontra
diante do impossível, à entrega (Gelassenheit) de si mesmo às aventuras do
Outro sem, por isso, deixar de partilhar de sua essência desejante.
Uma coisa é o abandono passivo, quando um sujeito se encontra
deixado à sua solidão aparentemente absoluta: momento trágico do mé-funai
edipiano, em que o sujeito só aspira por um radical sumiço que lhe sobrevenha
no lugar do impossível socorro que ele requer. Outra coisa é o abandono ativo,
quando um sujeito se deixa flutuar nas ondas e aos ventos da alteridade, sem
contudo tirar a mão do leme do seu próprio barco, fazendo da tragicidade um
“tudo é lucro” e aspirando agora por mais uma aspiração. O fato de aí haver
ainda sofrimento, em nada diminui a Glória de sua bendição.
De tudo isto devemos ainda concluir –outra vez com Freud –que um fim-de-
análise passa necessariamente pelo Recife da Castração. Uma coisa, porém, é tomá-lo
pelo Cabo-Não; bem outra coisa é dele fazer o Cabo-da-Boa-Esperança da grande
navegação. É a partir de então que “navegar é preciso – não é preciso viver”.
Se um fim-de-análise passa pelo Cabo-Não, o passo do sujeito, nesse

513
O Sexo dos Anjos

fim, é dobrar esse cabo, no desejo, sustentado, de encontrar o seu caminho para
as próprias Índias ab-originais: mas em nome do Pai.
Diga-o Fernando Pessoa:
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
–“Aqui ao leme sou mais do que eu;
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o monstrengo que me’a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”

O QUE FAZER COM O SEXO?

Vocês sabem que, para Freud, a função da reprodução, dita sexual, do


falante, não se apresenta como tal no psiquismo. Daí Lacan poder dizer (Seminário
XI, p. 186 da edição francesa) que “no psiquismo não há nada pelo que o sujeito se
pudesse situar como ser de macho ou ser de fêmea. No máximo” –como continua
ele –“disso o sujeito, em seu psiquismo, só situa equivalentes –atividade e pas-
sividade, que estão longe de representá-la (a sexualidade) de maneira exaustiva.
Freud acrescenta a isto até mesmo a ironia de sublinhar que essa representação
não é nem tão imperativa nem tão exaustiva assim’’. Pois que “a polaridade do
ser macho e do fêmeo só é representada pela polaridade da atividade, que se
manifesta através das Pulsões, e da passividade, que só é passividade face ao
exterior” –o que embanana inteiramente o meio-de-campo, pois que nada impede
que haja movimento pulsional que leve à demanda de atividade exterior para gozo
na passividade (como na anedota do pai judeu querendo saber se o filho estava
dando ou tomando, para considerá-lo razoável no segundo caso).
Lacan vem dizer, em seguida, que “as vias do que se deve fazer como
homem ou como mulher (sic) são inteiramente abandonadas ao drama, ao enredo,

514
Maravalhas

que se coloca no campo do Outro –o que é propriamente o Édipo”. E resume,


finalmente, que “o que se deve fazer, como homem ou como mulher (sic outra
vez), o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro”. É aqui
que entra seu exemplo de Dafnis e Cloé, aonde o tal ser-humano comparece
como a cera-humana, bem diferentemente do furo-mãos (l’être humain ou le
trou-mains) que Lacan nos inventa de outra vez.
Enquanto que le trou-mains, não há mais o que fazer senão meter os
anéis nos dedos ou meter os dedos nos anéis, a não ser que se prefira enroscar os
dedos ou encadear os anéis, afora a opção suprema de manter distanciados anéis
de dedos, dedos de dedos e anéis de anéis (mas haja santidade!).
Porém o que bem nos importa aqui, em tudo isso que nos disse Lacan
nas citações acima, é que a tal aprendizagem do Outro supõe um Outro cuja
alteridade, não sendo radical, não vai mais longe do que o contrato social. O
que nos apresenta um Outro sabichão. Ou melhor, um Outro que, uma vez
suposto Sujeito, enquanto Saber, passa a ser Sujeito suposto Saber. E estamos
aí no coração da transferência.
Assim, é de dentro da Neurose de Transferência (como a nomeava
Freud) que o Sujeito “aprende” do tal “Outro” o que deve, com seu sexo, fazer
(as aspas no aprende vão por conta do que, por causa do Outro Radical, sobrevém
freqüentemente como engano, ou como tropeço, ou mesmo como inversão, nessa
tal aprendizagem...).
Ora, o que acontece numa análise, no que diz respeito à transferência, isto
é, ao Sujeito-suposto-Saber, não é outra coisa senão sua liquidação –a qual não
é sumiço, mas reconhecimento de que, o Outro, ele também não sabe o que fazer,
donde bem podermos segui-Lo, no só-depois de sua sacação. É transferência
ainda, mas referida a um ainda-não-saber, epocal e com sentido por se fazer.
Daí podermos dizer que, se análise há, depois dela um sujeito não pode
mais saber o que deve fazer com “seu” sexo... Ora pois pois...
Daí, o que ele deva fazer vir a passar a ser o que de tático lhe seja de melhor
alvitre em conformidade com sua estratégia do sobre-viver, a qual será necessariamente
centrada no seu verdadeiro (Real) lugar, ao qual (Wo Es war) ele deve retornar...

515
O Sexo dos Anjos

Não é à toa que Novalis ensina (Aforismos Políticos, in Obras Com-


pletas, Gallimard, vol. I, p. 393) que “os traveses do espírito nas opiniões e nas
convicções têm uma causa –é a confusão do fim com os meios”.

ECONOMIA

Por que Lacan chega a dizer que o ICS é capitalista?


Ora, qualquer economista de respeito sabe muito bem que os limites
da calculação econômica estão circunscritos pelo ciclo do desejo do falante.
Donde a Economia, por mais rigor que se lhe aplique, seja tal rigor filosófico
ou matemático, não passar de uma das ditas “ciências humanas”, todas elas
dependentes de alguma concepção da linguagem (desejante) e de seus efeitos
inconscientes em formações discursivas.
Ainda outro dia, num jornal de TV, o nosso caro Gordo, o clown Jô
Soares criticava um Ministro de Estado. Este teria dito, diante da tela marrom
do jornalismo, que a inflação (nesse momento, galopante) era fundamentalmente
uma questão psicológica (sic). Ao que retrucou nosso engraçado: “a gente não
sabe se deve “internar” a inflação... ou o Ministro”.
Só que, desta vez, o Ministro ganhou do Cômico. Pois que qualquer inflação
é, na verdade, fundamentalmente uma questão... não direi psicológica, pois que es-
taria errado... mas metapsicológica, de acordo com o conceito freudiano de ICS.
Para nós, não há menor dúvida de que a única Economia (oicos-nomos, aliás
impossível) compatível com o movimento espontâneo das transações do falante é
aquela (aliás capitalista) de Mercado. A Economia de Mercado (latu sensu) é a única
convergente com o movimento articulatório do ICS e, portanto, congruente com a
teoria psicanalítica. Qualquer intervenção, de Mestria, na Economia de Mercado,
como por exemplo a Economia Marxista, recai imediatamente na Neurose Obses-
siva tal como ela se caracteriza nas religiões. Não é por nada essa hainamoration
da Igreja Católica de Roma com o Comunismo Universal.
Nenhuma “Ditadura do Proletariado” é viável – se ela fosse (pelo
menos) possível, jamais teria existido nenhum proletariado. Qualquer Estado

516
Maravalhas

que aparentemente se apresente em qualquer tempo como dependente de tal


estrutura será, no mínimo, mentiroso. Tratem de desvelar o verdadeiro Ditador
por detrás de tal proletariado.
E não é preciso ser Cristão nem Comunista para se interessar pela perene
diminuição do Mal-Estar e mesmo agir a seu favor. Não é a golpes de estatização
(maternalista –e não, paternalista) da economia que vamos resolver a neura social.
Uma razoável economia de mercado não leva necessariamente à pauperização de
grupos ou mesmo de massas: essa pauperização –sintomaticamente –já estava
lá, desenhada no gosto da servidão.
Daí a “função social” como gostam de dizer, da Psicanálise. Sua postura
–a única verdadeiramente revolucionária porque conservadora da tradição –é a
de tratar, dentro do que chamei de Clínica Geral, da Outra Economia, isto é, de
Economia Libidinal. Só por sua intervenção –embora precária –é que se poderia
promover a cura desse muito prazer na servidão, o qual impede qualquer gozo
(fruição) do embate superativo no mercado, isto é, na feira sócio-cultural.
Pois o horror do Escravo é o pavor da castração.
É claro que, numa simples economia de mercado, as diferenças espontanea-
mente apareceriam –e mesmo diferenças brutais. Porém, a intervenção do Estado não
deveria ser a de tentar sanar diretamente (populismo) essas dife-renças (econômicas),
mas indiretamente promover a cura para que os menos dotados tivessem novas con-
dições de competição. Ao invés do milagre idiota da multiplicação (e distribuição)
dos peixes, que se providenciasse a multiplicação e distribuição dos caniços e anzóis
(Marx). Ainda assim, a diferença (mesmo econômica) persistiria, mas sem a brutali-
dade com que ora se exprime, e com a justificativa do gradus de (mais aproximada-
mente verdadeira) competência nas competições. Quem sabe?

TEORIA DAS EXCEÇÕES

Por que inserir entre as minhas Maravalhas um textinho inteiro


de Sollers? Para fazer minhas as suas palavras –como se diz em qualquer
discurso brega de beira-ocasião. Além do mais, há a questão da horda

517
O Sexo dos Anjos

primitiva e o assassínio do pai –isto é, a entronização do Pai enquanto tal,


quer dizer, enquanto estritamente nominal. Não que o Pai, segundo o meu
Pleroma, acabe sendo mero nome, pois que lá, o que fica indicado é que o
Pai é o Sujeito suposto ao Haver enquanto tal –mas que não pode por nós
bem ser aproximado senão por essa nomeação, ou seja, certa instalação
significante segundo Lacan: não há outro caminho para o pai, (vers le père
na língua dele, quer dizer, pèrevers). Aliás, é nesse caminho aí que alguns
“paizinhos”, como dizem carinhosamente os russos de todos os gulagues,
devem ser substutivamente nomeados –e conseqüentemente assassinados,
de modo a irem de uma vez ocupar definitivamente o lugar de exceção que
acaso lhes aprouve ou coube apresentar, nesta vida imbecil de aquém-túmulo,
para as massas em mal de castração. É que a exceção é, para o grupo da regra
que ela funda, brandimento inescamoteável de castração –só devolvível
pelo linchamento que acaba por situar mais um paizinho imortal. Donde
o mesmo Sollers parafrasear (e não, parodiar) o dito princeps de Lacan
(“l’inconscient est structuré comme un langage”) de que “o inconsciente
é estruturado como uma linguagem” com a interpretação de equivocação
significante por subtroca fonológica, aliás ao gosto lacaniano, dizendo que
“o inconsciente é estruturado como um linchamento” (“I’inconscient est
structuré comme un lynchage”). O que, emparelhado com outra definição,
também de Sollers, do inconsciente como “a inibição de ler Sade”, bem
empata com o que vai, no Totem e Tabu, de destacamento daquele assassínio
com a verdade que o garante por detrás.
O tal texto, que abaixo traduzo, está em Théorie des Exceptions, Paris,
Gallimard, 1986, aparecendo como Introdução nas páginas onze e doze da
edição. Então, lá vai:
“Sempre sonhei um espaço movente e contraditório onde se veria
aparecer, do interior, no momento mesmo em que acontece, o gesto da criação.
“Ali, nada de tempo, eu acho, ou então o tempo verdadeiramente reen-
contrado: Montaigne é contemporâneo de Proust, Sade de Faulkner, Saint-Simon
de Joyce, Watteau de Picasso, Webern de Bach. O antigo e o moderno se confir-

518
Maravalhas

mam, se iluminam, se multiplicam um pelo outro. Homero e Freud são simulta-


neamente necessários. Mas também a Bíblia e Les Demoiselles d’Avignon.
“Este sonho é possível. Basta situar-se de chofre no sistema nervoso da
palavra em ato, do traço e da cor, da melodia e do ritmo. É, a cada vez, o mesmo
corpo que se revolta contra a evacuação hipocritamente silenciosa dos corpos.
É o indivíduo extremo, o elemento indivisível, que afirma ser a única realidade
verdadeira, a última ponta do real. Longe de justificar o fluxo biológico de onde
ele sai, cerca-o de fora, o marca, o julga, o anula, o esquece. Exceção: tal é a
regra em arte e em literatura, donde, periodicamente, os escândalos morais, os
embaraços legais, os rebotes sociais. Quanto à significação da palavra teoria,
sabe-se que se trata também de uma embaixada, de uma procissão, de uma
festa. Um desfile, ou melhor, uma dança de exceções? Sim, como um renque
irreconciliável de heróis através da duração profana.
“No começo do canto XXII da Ilíada, Aquiles, matador em fúria, aparece
no horizonte de Tróia como um astro “em meio às estrelas sem conta, no pleno
coração da noite”. Não é proibido pensar que ele é, nesse instante preciso, o men-
sageiro íntimo da poderosa resolução verbal de Homero. Uma aparição de estilo é
desta ordem. Ela não deveria ter existido, a Cidade a ela se opõe com todas as suas
forças, os Deuses tentaram desviá-la ou impedi-la, e são agora forçados a jogar
com ela. Aí está, então, de repente, inesperado, perturbador, portador de liberação
ou de maldição, “um cometa a mais”, uma causa de esperança ou de desordem,
de interrogações ou de revelações. É sem dúvida esse surgimento, no avesso da
condição física, que escuta o personagem de um quadro de Fragonard cuja atitude
pode aqui servir de emblema. A cabeça voltada, a caneta na mão, solidamente
apanhado na notação em vôo, como inscrito definitivamente no meio do tempo, ele
está lá, ele vai se mexer, despencar, dizer o que acaba de exceder a moldura, o que
estava oculto e que sopra, o que acontecerá num futuro que re-tira de si o passado
por inteiro. Este quadro se chama A Inspiração. Está em Paris, no Louvre”.
E aqui onde Sollers faz ponto eu faço alto, em memória, diante do
mesmo quadro que admirei no mesmo Louvre –para revê-lo ali me apresentando
um certo corpo –un corps, encore, mais, ainda, vida mais do que nunca, aqui e

519
O Sexo dos Anjos

agora, séde de um feito (tanto mais milagroso quanto mais “natural” no Pleroma
da Physis, quer dizer, do Haver disponível) espantoso: a repetência do divino
Revirão em nossa carne. Odiento milagre, e odioso e odiável –para os que
nunca farejam o que se prenuncia, além de mal e bem, para além da moldura,
para além de qualquer trave.
Feminino esse encore? Pode ser. Mas feminino de Anjo. Pois eu não
vejo, no quadro, as asas lá pintadas?

QUANDO EU ERA LACANIANO

No tal encontro de Caracas –aonde eu já não fui bem de propósito


–soube que o Mestre afirmou a seus lacano-americanos: “Vocês podem ser
lacanianos, se quiserem. Quanto a mim, eu sou freudiano”. De um mestre,
melhor que sobra é seu exemplo, pois não? Pois que o tomemos, então. Se não
quiserem, o tomo eu.
Sou freudiano ortodoxo –e não conheço agora nenhum outro que o
seja tanto quanto. Não que não haja, mas não me foi manifestado como tal.
O freudiano ortodoxo não é o papagaio, que se espera, dos ditos de Doktor
Freud. É quem sustenta a mesma teimosia (uma teima de Freud), obstinado
na travessia do deserto que nos barra o outro-lado, obstinado pela clareza do
mesmíssimo sol. É não largar de supor que não há psi que se agüente sem
qualquer ancoragem lá no bio –sem que com isto se faça render a psicanálise
a nenhuma biologia. Pois se esse corpo ou troço, que por aí deu de surgir no
espontâneo, é séde necessária de máquina significante, nem por isso o operador
que ele suporta tem que dar conta, só pela descrição lá de sua estrutura, das
operações que promove e dos efeitos que procura. Segundo o que suspeito, é
máquina de Revirão –ponto morto portanto, a reduzir a só matéria-prima o
que quer que se lhe impute, vindo de antes ou só-depois de sua aparição, que
isto seja bio ou psi ou qualquer outra realíssima ilusão. É insistir na crueldade
que fica para além de mal e bem –como Nietzsche loucamente anotou –sem
nenhuma maldade supostamente sadiana, mas também sem nenhuma bondade

520
Maravalhas

dos beócios à Rousseau. E não se trata de nenhuma “postura científica”, tão


afeita aos assassinos dilúvios de amor –mas sim de uma ética que não se quer
por menos que imitatio dei, embora, da paranóia à histeria, tenha que fracassar
bastante no seu percurso de gozante sublimação.
Bastante tempo levou o nome de Freud para se tornar a sigla de um
fantoche manipulado por uma certa “burritzia” oficial. Bem menos tempo já
levou Lacan –antes ainda dos dez anos das exéquias o seu fantoche já fingiu
oficial ressurreição.
Há os que temem –e me procuram para aviso –pela minha posição.
Mas sobretudo o que temem é a possibilidade de se verem caçados, se não gar-
roteados, pela expedita vocação dos burocratas internacionais –aos quais não
falta o bom apoio de cucarachas e mazombos –tão contumazes na curetagem
de nossas gestações originais (haja exemplo na abominável Missão Francesa de
1816, sintoma nosológico que freqüente se repete nessa neurose nacional).
Ainda agora me anunciam os efeitos de um tremendo malentendido que
se comediou na capital do marketing nacional (em Curitiba): –Olha, a Geléia
da Causa está querendo virar Geléia Geral!
Que se a funde por aqui, o avesso da lacanagem, pouco me importa se
me importa alguma vez. Solenemente, estou chiando (como se diz lá na língua
do francês). Vão tomar o poder? Pois nâo farão isto melhor do que qualquer
generalzinho de republiqueta “latinô”. Vão tomar o mercado? (O que na ver-
dade é o que melhor se visa, pois nada mais eles têm a dizer). Pois não farão
isto melhor do que qualquer multi-nocional por mais que pequenina, já que
mazombo adora mesmo é acumular bijuteria nas prateleiras do feijão-com-arroz.
Novidade nenhuma. É o mesmo cíbalo trocando de moscas mais uma vez.
Quando eu era lacaniano, também sofria desse furor. Mas de Lacan eu fui
analisando e bom discípulo –e muita coisa já curei e aprendi: E agora até já tenho o
que elaborar e transmitir. Os que me seguem serão os meus colonos? Tanto melhor.
Plantar o meu machado (com seu talho), replantar o meu ´s (que aliás são três),
pode talvez resultar numa fazenda própria para o colono que não se abichorna a
ser caixeiro-viajante de geléia importada com corantes de iludir e intoxicar.

521
O Sexo dos Anjos

Quanto a mim, estou aqui –presente e apresentado –sem ser represen-


tante de mais nada e mais ninguém.
O que nós temos para tratar (para cuidar, para curar) não vale nada para
a mão mais ou menos armada do assaltante. E no que há de essencial, nosso
prejuízo será mesmo nenhum. O a dizer será dito –“apesar de vocês”. É pegar
ou largar –quem quiser. E o prejuízo do desprezo é todo seu.
Bom proveito, neném.

BIBLIOGRAFIA (parcial) para o Pleroma de MDMagno

1) RUFFIÉ, Jacques. Traité du Vivant. Paris, Fayard, 1982; 795 p.


2) CHANGEUX, Jean Pierre. L’Homme Neuronal. Paris, Fayard, 1983; 420 p.
3) DANCHIN, Antoine. Ordre et Dynamique du Vivant. Paris, Seuil, 1978; 380 p.
4) GARDNER, Martin. Les Miroirs de L’Espace-Temps (1964). Paris, Seuil, 1985; 360 p.
5) CAPRA, Fritjof. The Tao of Physics. New York, Bentam, 1975; 330 p. (Há edição
brasileira)
6) COHEN-TANNOUDJI, Gilles e SPIRO, Michel. La Matière-Espace-Temps (la logique
des particules élémentaires), Paris, Fayard, 1986; 400 p.
7) WILBER, Ken (1982) Le Paradigme Holographique. Paris, Le Jour, 1984; 440 p.
8) BOHM, David. Wholeness and the Implicate Order. London, ARK, 1980; 224 p.
9) NOVELLO, Mário. Cosmos et Contexte. Paris, Masson, 1987; 120 p.
10) MORAZÉ, Charles. Les Origines Sacrées des Sciences Modernes. Paris, Fayard,
1986; 500 p.
11) ANGELUS SILESIUS. Le Pèlerin Chérubique (2 volumes, editados e comentados
por Eugène Susini). Paris, PUF, 1964, (vol. 1); 465 p.
12) BOLLAK, Jean e WISMANN, Heinz. Héraclite ou la Séparation. Paris, Minuit,
1972; 400 p.

NOTA: Maravilhas acima foram originalmente publicadas no Maisum, Boletim Periódico do


Colégio Freudiano do RJ, nº.s 60 a 63 e 65, abr.-set. 1987.

522
Ensino de MD Magno

SOBRE O AUTOR

MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias):


Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938.
PSICANALISTA.
Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia.
Psicólogo Clínico.
Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação –
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil).
Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS,
Brasil).
Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro.
Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris
VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan.
Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fun-
dador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise).
Criador e Orientador de , Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e
Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise.
Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de
sua produção teórico-clínica (work in progress) em Falatórios e Oficinas Clínicas,
realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.

523
O Sexo dos Anjos

524
Ensino de MD Magno

ENSINO DE MD MAGNO

MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde


1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro.

1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte


Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p.

2. 1976/77: Marchando ao Céu


Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de
Janeiro (Parque Laje). Inédito.

3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa
3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p.

4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p.

5. 1979: O Pato Lógico


2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 252 p.

6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.

525
O Sexo dos Anjos

7. 1981: Psicanálise & Polética


Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real,
1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora,
1986. 498 p.

8. 1982: A Música
2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p.

9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso


2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 264 p.

10. 1984: Escólios


Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de
Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985.

11. 1985: Grande Ser Tão Veredas


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p.

12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos


Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de
Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final
Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de
Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise


Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p.

15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.

526
Ensino de MD Magno

16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols.

17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2)


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols.

18. 1992: Pedagogia Freudiana


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p.

19. 1993: A Natureza do Vínculo


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p.

20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise


2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 310 p.

21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral


2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 264 p.

22. 1996: “Psychopathia Sexualis”


Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p.

23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p.

24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da


Comunicação
Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p.

25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era


Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise
2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 224 p.

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O Sexo dos Anjos

26. 2000: “Arte da Fuga”


Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro:
NovaMente Editora, 2003. 656 p.

27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito


Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro:
NovaMente Editora, 2003. 656 p.

28. 2002: Psicanálise: Arreligião


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p.

29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p.

30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 260 p. [a sair].

31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p.

32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p.

33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía


Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair]

34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento [a sair]

35. 2009: Clownagens [a sair]

528
Ensino de MD Magno

529
O Sexo dos Anjos

Formato
16 x 23 cm

Mancha
12 x 19 cm

Tipologia
Times New Roman e Amerigo BT

Corpo
11,0 | 16,5

Número de Páginas
530

530

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