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Presidente
Rosane Araujo
Diretor
Aristides Alonso
Preparação do texto
Patrícia Netto A. Coelho
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
Nelma Medeiros
Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso
M176s
Magno, M. D. (Machado Dias), 1938-
O sexo dos anjos : seminários 1986/1987 / M. D. Magno ; preparação do
texto: Patrícia Netto A. Coelho, Potiguara Mendes da Silveira Jr., Nelma Medeiros. – 2ª
ed. – Rio de Janeiro : Novamente, 2009.
530 p.; 16 X 23 cm.
ISBN – 978-85-87727-48-0
Para
Cristina Pierotti
e
Olandina Monteiro Cruz de Assis Pacheco,
babás e mucamas
deste livro aqui.
Sumário
Primeira Parte
Ha-Ley: Cometa Poema
1. COMETA
Cosmologia psicanalítica: Haver – Revirão como função catóptrica – Conjetura de pleni-
tude a partir da função catóptrica do Haver – Modalizações do Haver: real, simbólico e
imaginário – Esquema da antropologia do Sujeito: nirvana, analfabeto primordial, sujeito
analfabeto, sujeito letrado, animal (neurótico), sujeito falante – Mitopologificação do
Sujeito ou Pentagrama do Revirão: neutro absoluto, cisão, separação, distinção, modali-
zação – Homologia do Furo no divino e no falante: função plerômica do sujeito.
15
2. O GOZO DO SENTIDO
Esclarecimentos sobre o Pleroma – Globo da Morte demonstra reviramento do nó bor-
romeano – Lógica da sexuação é ternária – Indicação dos Quatro sexos – Postulação do
gozo-do-Sentido – Questões sobre transexualismo – Corpo e artistificação (techné).
35
4. Nv, Ps, Mf
Retomada da seção anterior – Visão topológica (nó borromeano) de Lacan sobre Ini-
bição, Sintoma e Angústia – Neurose, Psicose e Morfose e suas relações com Inibição,
Sintoma e Angústia – Lugar terceiro do Falanjo em relação a homem e mulher.
73
5. SUJEITO DIVINIZADO
Concomitância de raciocínio binário e ternário no Pleroma – Problema da orientação no nó
borromeano – Correlação entre banda de Moebius e nó borromeano a partir do avessamen-
to – Simetria no Falante é suposição de Deus – Crítica à normalização em psicanálise.
91
Segunda Parte
Pleroma - Tratado de Deus e de seus Anjos
INTRODUÇÃO
Objetivos, hipótese e postulado da Teoria do Pleroma.
135
1. MOTU PERPETUO
1. Há Um – 2. A-Delta (Plenitude) – 3. Estados de A-Delta – 4. Estado neutro de
A-Delta: A – 5. Simetria de A – 6. Dissimetria primordial entre A e à – 7. Diferença
irredutível entre A e à – 8. à não-Há – 9. Para A, à é impossível (pois não-Há) – 10.
A deseja à (não-Haver) – 11. Neutralidade é desejante – 12. Motu perpetuo: Haver
é desejar o impossível não-Haver – 13. Não há falta no Haver – 14. Desejo de não-
Haver é Castração Primordial – 15. Castração primordial se impõe por dissimetria
entre A e à – 16. Simetria como Catoptria radical – 17. Dissimetria de fato: à não
há; simetria de direito: A deseja não-haver – 18. Haver é inocente de fato e de di-
reito – 19. Haver é castrado – 20. Dissimetria externa, simetria interna – 21. Haver
é simétrico (no tempo) – 22. Só há dissimetria externa e parciária – 23. Desejo de
não-Haver é Pulsão de Morte – 24. Haver é imortal e eterno – 25. Haver é constante –
26. Haver é Um – 27. Movimento desejante tende para não-Haver – 28. Haver jamais
encontra não-Haver e revira – 29. Furo primordial entre Haver e sua parciarização
( A/ ) – 30. Simetria homogênea do Haver busca simetria heterogênea em não-Haver
– 31. Simetria heterogênea interna (entre A e A/ ) é diferença – 32/33. Empuxo de
Haver para sua parciarização (A/ ) gera complexidade – 34. Empuxo para não-Haver
tende a neutralizar A/ – 35. Mediante A, A/ deseja à – 36/37/38/39. Esquema Delta:
percurso do Pleroma.
139
2. RSI
40. R S I em seu vigor primordial – 41. Três estados primordiais no Esquema
Delta – 42. R S I como avatares de A – 43/44. Real primordial é o Furo – 45.
Real é ponto-bífido de A – 46. Revirão primordial – 47. Simbólico Primordial
é diferença (A/ ) – 48. Diferença de A/ repete a diferença entre A e A/ – 49. Real é
Terceiro – 50. Não-Haver há de direito e não de fato – 51. Imaginário primordial é
indiferença (no seio de um estado de A) – 52. Entropia como eliminação de diferença
(interna) em A – 53. R S I no Esquema Delta – 54. Real como comutador e barra – 55.
Há nodulação sincrônica de R S I no Esquema Delta – 56/57. Movimento em Revirão
no Esquema Delta – 58. Heterogeneidade e homogeneidade de R S I – 59. Revirão
é função catóptrica – 60. Matéria é substancialidade do que Há e Libido empuxo
para não-Haver – 61. Pulsão de Morte é conjugação de matéria e libido.
149
3. O GOZO QUE HÁ
62. Gozo do A – 63. Movimento desejante do Haver é cíclico – 64. Inércia e empuxo
entre I e R – 65. Empuxo de R – 66. Força diferenciante entre R e S – 67. Entropia e
neguentropia entre R e I – 68. Heterogeneidade e homogeneidade do gozo – 69. Há
três gozos em A – 70. Gozo-Fálico – 71. Gozo-do-Outro – 72. Gozo-do-Sentido – 73.
Duas vertentes do Gozo-do-Sentido – 74. Diferenciação e neutralização no Gozo-do-
Sentido – 75. Espaço e tempo como procrastinação de A.
157
4. O CAMPO DO SENTIDO
76. Campo do Gozo-do-Sentido – 77. Modalizações no Campo do Sentido a partir da cisão
(Spaltung) – 78. Aparência binária da cisão operada pelo Terceiro – 79. Razão ternária opera
o Campo do Sentido – 80. Oposição e ternariedade – 81. Tripartição da cisão: A/ , A e F
ou R S I – 82/83. Entropia e neguentropia como efeitos do Real ou Bifididade no Campo
do Sentido – 84. Postulação do terceiro no Esquema Delta na forma do oito-interior do
Revirão – 85/86. Ocidente escamoteia o terceiro como mero intervalo – 87. Zero como
Função Catóptrica – 88. Valor de insistência do Real na totalidade do campo – 89/90.
Condição de modalização no Campo do Sentido – 91. Lei da diferença nas modalizações
do Campo – 92. Dissimetria em A – 93/94. Generalização da função catóptrica redefine
o conceito de simetria – 95. Música do Campo do Sentido.
163
Terceira Parte
Pleromaquia
1. NOBODADDY
Estatuto da impossibilidade de Não-Haver – Repetição de terceiro no Campo do
Sentido: surgimento do ser humano – Maneirismo e sua relação com a posição An-
gélica – Vertente mística da posição Angélica.
171
2. SUJEITO ESPESSO
Terceiro sexo (Anjo) é referência constante do falante – Função fálica é movimento
desejante – Reavaliação da categoria de Sujeito a partir de R S I – Esquema de trian-
gulação dos Estados, Expedientes, Gradientes e Parlentes do Sujeito.
195
3. SOLÉRCIA
Ordem pulsional do sentido olfativo – Gráfico projetivo do Esquema de triangulação
do Sujeito – Movimento artificioso do Haver – Arte do sujeito (criação de objeto a)
repete a artificialidade do Haver.
215
4. O HEXAEDRO
Descrição e álgebra do hexaedro do Haver – Questão da passagem do não-falante ao
falante – Cibernética e informatização indicam esgotamento do Ocidente – Artifício é
superior à cultura – Exigência de reconsideração do quantitativo na psicanálise – Função
egóica é produção – Falante como fabricação de sentido e animal como sentido dado.
233
5. LILITH
Leitura do mito de Lilith como Não-Haver – Mito de Adão e Eva como surgimento
do Angélico – Possibilidade de formulação lógica do lugar terceiro do Falanjo e da
Morte – Terceiro Sexo é descarnado – Erotismo e a castidade na sexualidade – Tec-
nologia e artificialismo resultam da sexualidade do falante – N’O descanso no Egito,
de Caravaggio, estão representados os Três Sexos do Pleroma.
257
Quarta Parte
Os Quatro Conceitos da Psicanálise, Ainda
– O Retorno de Freud, Via Lacan –
1. A DEUS
Razão Freudiana como angélica, plerômica e maneira – Insistência no retorno de Freud.
277
3. REPETIÇÃO
Esquema Delta é um aparelho de Repetição – Relação entre os conceitos de Pulsão e Repetição
– Desejo de Morte como conceito fundamental e unificador dos quatro conceitos (repetição,
pulsão, transferência e inconsciente) – Trauma e despertar – Psicanálise é Arreligião da Lei –
Notas sobre a psicose a partir do Esquema Delta – Psicanálise como Monoteísmo Ateísta.
301
5. TRANSFERÊNCIA
Comentário sobre o conceito de transferência em Lacan – Interpretar a transferência
é apontar o desejo imortal – Transferência a partir do Esquema Delta – Discussão
sobre o signo – Função catóptrica é máquina de transferência – Reviramento do
signo faz surgir ordem significante – Análise é exercício de reviramento – Terceiro
sexo sustenta regime transferencial no falante.
337
Quinta Parte
Juízo Final
1. DELENDA MELANCHOLIA
“Lacan é pensador terminal” – Psicanálise: nem teísmo, nem ateísmo – Virulência da
psicanálise contra imunidade simbólica.
363
2. O PERI-GOZO
Revirão como máquina de neutralização – Revisão da tese da não-marcação originária –
Sujeito se funda no processo de indiferenciação – Reconsideração do Recalque Originário
freudiano – Proposição de uma Paidéia da Psicanálise – Reavaliação da tese lacaniana da
psicose – Reconsideração da tópica freudiana a partir da estrutura ternária do Revirão.
375
ANEXO
Maravalhas de MDMagno
Todestrieb – Auto-análise – Impotência histérica – Pulsão – Repetição – R, S, I, ou
melhor, F, A/ , A – Haver – Sujeito – Real – Função fálica – Morte (I) – Realidade psíquica
– Ação moral – Instituições psicanalíticas – Morte (II) – Castração – ICS e linguagem –
A Filosofia do Sim – Nome do Pai – Psicanálise e religião – Revirão (citações) – Falanjo
(I) – Verbalização do nome próprio – Universo holográfico – Ego (Moi, das Ich) – E a
nave vai – A cruz do Cristo – Falta original – Religião – Haver – Ser – Estar – Kaosmos
– Amoris – Hetero-lógica – Transmissão – Foraclusão – Não lanceis férulas aos porcos
– Esquema Delta – Em questa de uma civilização pós-cristã – Os Sexos do Haver – O
Outro-sexo do Falanjo – Repetição e Maisalém – Ã e Psicose – Ã e Perversidade – Lacan:
uma teima da psicanálise – Falanjo (II) – De Hilflosigkeit a Gelassenheit – O que fazer com
o sexo? – Economia – Teoria das exceções – Quando eu era lacaniano.
465
ENSINO DE MD MAGNO
527
Cometa
Primeira Parte
HA-LEY
Cometa Poema
1º Semestre 1986
15
O Sexo dos Anjos
16
Cometa
1
COMETA
* * *
17
O Sexo dos Anjos
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Cometa
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O Sexo dos Anjos
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Cometa
ver, mas é o motor de todos os seus movimentos na medida em que não pode
não conjeturar que exista o avesso em petição de nirvana. Há petição de nirvana a todo
momento para o falante. Só que como ele “não tem tu, vai tu mesmo”, ele se satisfaz,
vez em quando, com um objetinho a qualquer. Porque ele é tolo e cego, por enquanto...
Mas quando Lacan diz que o objeto a não é especularizável, é porque ele só pode
estar entre um e outro, portanto, ele “não tem sentido, nem nunca terá”...
* * *
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O Sexo dos Anjos
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Cometa
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O Sexo dos Anjos
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Cometa
* * *
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O Sexo dos Anjos
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Cometa
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O Sexo dos Anjos
* * *
30
Cometa
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O Sexo dos Anjos
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Cometa
20/MAR
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O Sexo dos Anjos
34
O gozo-do-sentido
2
O GOZO-DO-SENTIDO
* * *
Esse termo Pleroma entrou na minha fala não como nenhuma revoga-
ção da força já contida no nó borromeano tal como escrito por Lacan, de real,
simbólico e imaginário, mas sim no sentido de destacar alguma coisa que se
oferece lá, naquela escrita. Interessou-me realçar isto, e talvez mesmo tenha
sido a primeira vez que se aponta algo que lá está implícito, que nem mesmo
Lacan quis, não sei por que motivo, intensificar nas suas últimas falas, embora
ele deixe claro que estava um tanto ou quanto ocupado com isso em seus últimos
Seminários. Esse título, então, que alguém deu para nosso próximo Mutirão
35
O Sexo dos Anjos
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O gozo-do-sentido
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* * *
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O gozo-do-sentido
* * *
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O Sexo dos Anjos
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O gozo-do-sentido
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O Sexo dos Anjos
infelizmente não é), por momentos de angústia, ou seja, por momentos em que o
real comparece, é perfeitamente ótimo: passa-se pela angústia e sai-se do outro
lado, sabe-se dançar, ter jogo de cintura. O que é diferente de ficar aprisionado,
empacotado, diante de uma emergência de real e não ter como “sartar” para a
metáfora, para o sentido. O jogo é dinâmico, não é paralisado.
Fazer sentido, então, é diferente de referir-se ao sentido tido. É preciso
fazer sentido, e há um gozo aí. Lacan escreveu gozo-fálico, gozo-do-Outro, e
por que não escreveu gozo-do-Sentido? Não escreveu porque não quis. Então,
escrevo eu. E já que foi ele quem inventou, vamos na língua dele: jouissance
du sens. Existe um gozo particular de fazer sentido, gozo este que encontra-
mos descrito diversas vezes em Freud, tanto na Traumdeutung quanto no texto
do Chiste, onde ele mostra que é preciso fazer sentido. Por exemplo, ser da
paróquia para entrar no jogo do sentido para rir. E que o gozo-do-Sentido não
deixa de tocar regiões bastante grandes e discrimináveis do chamado corpo,
dos chamados sentidos. Goza-se até – não estou dizendo no corpo, pois quem
goza no corpo é a Outra – em regiões da anatomia. Goza-se dos sentidos, sim!
Até uma coceirinha é um troço muito legal, já notaram? Tem hora que goza:
chega, não precisa gozar mais! E não é gozo-fálico.
Usamos essas palavras sem lhes dar muita importância. Lá na infância,
para quem tem boa memória, quando, por exemplo, a gente aprende a gozar
com o dedinho, essas brincadeiras, a aprendizagem, a transmissão que alguém
nos fez de como se goza falicamente, foi pela via do sentido, dos sentidos e do
que se sente. Isso foi aprendido, e fica até na palavra das crianças. A criança diz
que às vezes sente um “gostinho”. É pela via desse outro gozo que se consegue
até adscrever ao gozo-fálico uma funcionalidade metafórica e sintomática.
Passa primeiro por fazer sentido, tanto numa série verbal quanto no encosto,
na tangência, desta série com partes da carne. Não estou falando de corpo. São
pedaços, regiões da carne. É um gozo de sentido. Falamos dos sentidos, dos
cinco sentidos, etc., mas como os sentidos fazem sentir? Não é preciso ser psi-
cólogo, nem fazer psicologia de laboratórios, para se ter uma certa experiência
de que é de repente. Eis aí uma coisa sobre a qual os estetas vivem escrevendo
44
O gozo-do-sentido
45
O Sexo dos Anjos
preciso estabelecer para além e para aquém das histórias pessoais, das marca-
ções significantes, nodulações particulares, do ponto de vista da topologia do
nó borromeano, onde iremos talvez encaixar uma nosologia muito mais precisa
do que a de Neurose, de Psicose, e do que é uma coisa nova que pretendo trazer
para substituir esse negócio de Perversão, que é Morfose.
Mas, retornando um pouco, se tomarmos por exemplo, na questão da
língua, palavras como sentimento, sentimental, sensacional, sensual, sensação,
sensato, sensibilidade – não dizem que o artista é um cara muito sensível? –, o
sensível mesmo, o sensitivo... Na música, na harmonia clássica, o termo “sen-
sível” indica um certo grau de uma escala, que denota o sentido tonal daquela
escala, é dali que bate o sentido da tonalidade. O sensor (com s), os sensores
no sentido mais fisiológico ou eletrônico, o cálculo sensorial, no sentido de cál-
culo vetorial, ou cálculo sensual, que pode emprestar um valor completamente
novo, por exemplo, às abordagens estéticas. Situar-se, a partir do momento
que se tem as sexualidades desvinculadas das anatomias, por exemplo, para
um sujeito dado num momento, que sexo ele está usando. Uma vez, fui ver
o falecido Charles Mingus e fiquei extremamente impressionado com o cara,
porque, com licença da má palavra, ele tocava “siririca” no contrabaixo, com
uma sensualidade tal que o contrabaixo gozava. Ele ficava gozando de um lado
e o contrabaixo do outro. As aparências metafóricas eram de um erotismo tal...
E ele procurando as notinhas, era alguma coisa espantosa... Quer dizer, estava
lá o anjinho gozando, e o seu instrumento também... Aliás, quero acrescentar
aqui que minha abordagem para conceito de obra de arte até hoje nitidamente
se prende a uma fase em que eu tentava conceber o Revirão. É uma abordagem
em cima do Revirão.
* * *
46
O gozo-do-sentido
do. Mas vocês podem facilmente imaginar que ela revira, bastando puxar esse
vértice por baixo, aí ele revira, e continua o tetraedro. Ou façam um tetraedro
de arame que verão que ele revira, fácil, fácil.
Formulei esse modo de representar porque essa caixinha aqui nos ajuda
a raciocinar. É a pirâmide do Borromeu. Ela certamente deve ter uma normali-
dade de assentamento. Minha questão está em que sempre se disse que há três
sexos. Todo mundo sabe que há três, só não sabe quais são, e se os adscrevem
a comportamentos. Mas se conseguirmos conceituar isso, matemizar um pouco,
quero supor que teremos uma ferramenta de escuta bastante afiada que, talvez –
assim como passamos por aquele anedotário do Édipo na história do analisando,
depois ficamos brincando com palavrinhas, equivocando em cima da língua, e
que qualquer publicitário da pior espécie já está fazendo melhor que os analistas
de televisão, e tudo tem seu tempo, sua emergência, seu espanto, sua vez e sua
hora –, possamos começar a escutar como a patologia que se apresenta para o
analista num tratamento está inscrita enquanto sexualidade. Talvez se possa fazer
o expediente de rotação de maneira que o sujeito venha a ter uma sexualidade
normal, que não é nada do que vocês podem estar pensando.
Vemos isso na própria história da psicanálise. Por mais que os analis-
tas sejam brilhantes, bem analisados, inteligentes e criativos, vemos sempre a
força, a pressão, do imaginário vigorando. Quer dizer, no finalzinho de tudo,
ao tempo dos neo-freudianos, a normalidade virou o que Lacan chamou de
“supremo de genital”: trepou legal, de papai/mamãe, fez neném, é normal.
Agora, mais recentemente, já se fica nessa de homem ou mulher, pois já existe
o neolacanês, como o neo-freudês já aconteceu. As pessoas assustadinhas, desde
suas neuroses particulares, dando uma guinada para insistir em permanecer no
neolítico. Então, vemos as coisas mais estapafúrdias por causa das incertezas,
da prudência do mestre, etc.: as pessoas um pouquinho mais estúpidas tomam
prudência por certeza na estupidez e regridem com a maior facilidade. E nós
continuamos a ver que a proliferação textual, de fala, já dentro do mundo la-
canês, já é no sentido de começar a “normalizar” as coisas. Lacan disse como
são as mulheres, basta a gente se vestir de mulherzinha, já vira mulher; disse
47
O Sexo dos Anjos
como é homem, a gente se veste como homem, vira homem. Já está assim nos
textos. E fica-se surdo – quem sabe, é surdo.
Tomemos um exemplo interessante. Vocês sabem de todos os compor-
tamentos, brincanagens, de posição sexual, na chamada vida – e a gente tem
explicação para tudo. Freud, afinal de contas, explica ou não explica? Mas no
meio dessa coisa, por falta, a meu ver, conceitual, de insistência em escutar
até fazer buraco no ouvido e procurar alguma outra saída, já se fica outra vez
empurrando o sujeito para dentro de uma nosografia extremamente cerrada.
As pessoas sabem dar conta da heterossexualidade – suponho que sabem –, da
homossexualidade, de travesti, etc., está tudo muito bem transado. Mas existe
certa coisa que resiste um pouco ao entendimento: o chamado transexual, o
qual é exemplar para estudarmos essa questão de como situar a sexualidade.
Todo mundo se preocupa, em nosso campo e outros adjacentes, com o tran-
sexual. Existe um famoso Stoller, de quem vocês certamente já leram o livro,
Sex and Gender, que, do ponto de vista médico e psicológico americano, deu
uma cortada nisso; sexo não é gênero. Parece tolo, mas não é, se nos deixarmos
escutar. Há pelo menos um que acha que sexo é diferente de gênero, Lacan já
disse que a sexualidade do falante não é a sexualidade reprodutora do animal.
Mas Stoller continua com dois sexos e, portanto, dois gêneros, e dá lá seus
jeitinhos particulares para conceder em cirurgias de passagem de sexo. Ele tem
um vasto trabalho sobre isso.
Muitos analistas se preocupam com o transexual; no campo dito laca-
niano também. Existe uma senhora, que já escreveu um livro sobre pedagogia,
e parece que recentemente já escreveu um sobre transexualidade, que se chama
Cathérine Millot, estudiosa, lacaniana, etc., tudo direitinho... Outro dia, caiu-
me nas mãos uma Publicação dos Encontros da Clínica Freudiana, com falas
dela e de Gérard Pommier, se não me engano, na Bahia. Só tive tempo de ler
a Cathérine Millot porque me interessava do ponto de vista do meu trabalho,
já que ela falava sobre o transexualismo. Empurra-se ultimamente, de prefe-
rência (não que ela esteja falando do transexualismo em si), o transexual para
a zona da psicose. Uma psicose que se instalou na exigência não de análise,
48
O gozo-do-sentido
não de delírio, mas de quê?: “Estou certo de que a minha identidade sexual
está errada e quero passar para outra” – que seria a verdadeira. Muitos tran-
sexuais até conseguem uma cirurgia e parecem dizer que o que lhes interessa
fundamentalmente é passar por alguma experiência de saída do sexo onde estão
inscritos – porque do outro lado eles não chegam mesmo. A cirurgia não está
tão boa que possa transformar macho em fêmea e fêmea em macho, não dá
muito certo. Mas parece que o interesse deles é poder ser considerado pelos
outros com a identidade sexual que teriam escolhido.
O que os cirurgiões, os psicólogos, os psicanalistas constatam é que,
mesmo depois de tal cirurgia, eles ficam mais aliviados de terem passado do
que de não chegarem ao sexo que queriam – não era bem aquilo, mesmo que
desse certo –, mas, do ponto de vista de sua identidade, eles se sentem mais
aliviados de poderem ser chamados do outro sexo e, sobretudo, de terem pas-
sado de sexo. Stoller, então, se fixa nessa questão da identidade sexual, de que
essas pessoas estarão realmente fora de situação porque sua identidade sexual
é contrária. Ou seja, na formulação lacaniana, seriam, por exemplo, homens
que estariam em corpos fêmeos, ou mulheres que estariam em corpos machos
e, então, querem empatar a identidade. Isto parece uma tolice porque, afinal de
contas, se existe simbólico, não custa nada continuar com o corpo de macho e
ser mulherzinha, é tão simples. E, do ponto de vista psicanalítico, pode dar a
impressão de ser uma psicose, porque eles querem realmente passar para o outro
lado quando podiam simbolizar isso, e até serem mais homens que os machos
ou mais mulheres que as fêmeas. Cathérine Millot põe que “Lacan dizia que
os transexuais confundiam o órgão e o significante”. É disto que estou falando,
ou seja, se eles pudessem adscrever a isso que querem chamar de órgão uma
posição significante, podiam fazer desse tal órgão o que quisessem.
Tudo muito bem! Mas fico muito preocupado com a questão que está
em jogo nesse pedido de travessia do sexo, de corpo, e que parece sobretudo
um pedido de travessia. E que não me parece, bem escutado, no caso de Stoller,
que eles estejam certos, embora digam isto, de que sua identidade é do outro
sexo. No que será que eles mais insistem?
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O Sexo dos Anjos
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O gozo-do-sentido
por estarem seguras de não se sentirem em nenhum caso como mulheres, é por
isso que elas se sentem na obrigação de “passar” – grifo meu – “para o lado do
homem” – não de ser homem –, “mas isto é um ‘quebra-galho’; foi uma pessoa
operada que me falou assim”. Ou seja, foi-lhe dito com todas as letras, a moça é que
não escuta. “Mas esta jovem me diz a mesma coisa que aquela outra pessoa da qual
estava falando antes. Ela me diz que, como não se sentia mulher, precisava ‘passar
para o lado homem’. Mas dizia que também não se sentia precisamente homem” – se-
gundo caso, então. “De certa forma” continua Millot – “essas pessoas se encontram
também na posição de quererem erradicar as marcas do sexo” – fazer sentido,
produzi-lo – , “de querer se situar ex-sexo” – ex-dois conhecidos –, “fora-do-sexo,
num certo além da sexuação, e sua posição fantasística é muitas vezes a de ser o
falo da mulher” – aí já engrossou. “A primeira da qual falei (aquela que me telefonou
e veio por si mesma) dizia que antes de ser operada se sentia como sendo complemento
das mulheres e não somente de uma mulher, mas das mulheres em conjunto”
– uma maneira ignara, quem sabe?, de dizer que quer ser o Anjo das mulheres,
dar sentido a elas: já que não se pode fazer um todo, dá-se um sentido.
Como as mulheres devem ser? Qualquer costureiro sabe! Ele diz:
“Vista-se assim, que você é mulher!” Não é isto, dar sentido? Ao conjunto
aberto das mulheres? Ou não? É dar sentido e não dar gozo-fálico, nem dar um
para-todo à mulher. Porque varia: uma não aceita o vestido igual ao da outra –
mesmo assim ele lhes dá sentido, lhes dá uma moda. Retornando ao texto: “Ela
se sentia sendo o que faltava às mulheres” – naturalmente que a outra pensa
que é falo. Mas é preciso perguntar: o que falta às mulheres? Pode faltar um
vestido adequado: “Você está um lixo, você não parece uma mulher, vá se vestir
condignamente!”. Mas continuando: “E curiosamente a operação a colocou fora
dessa posição, ela parou de ser aquilo que falta às mulheres” – de repente, ela é
que pode dar o que falta às mulheres. “Depois dessa operação, ela não se sentia
mais o complemento das mulheres; isso não funcionava mais. Essas pessoas
de certa maneira, como os homens transexuais, acreditam na Mulher com M
maiúsculo” – nada me indica em sua fala que ela acredite nisso. Dizer que ela
quer tratar do conjunto das mulheres, como qualquer cabeleireiro da zona sul do
51
O Sexo dos Anjos
Rio de Janeiro, não é dizer que há A Mulher. Ele sabe que não há. Ele sabe que
elas não aceitam o mesmo cabelo e até aconselham que façam outro, cada uma
diferente, já que vão à mesma festa. Parece que analista não sabe escutar cabelei-
reiro... “E é exatamente por isso que elas não se sentem mais mulheres. Já que, por não
se sentir como sendo A Mulher” – isto é teorizado a partir do dado –, “elas consideram
que não são mulher absolutamente”. Não é isto! Ela está teorizando aí que o problema
é que, por elas não se sentirem A Mulher, então, pensam que não são mulheres.
Não se trata disso! Isso é histeria e nada tem a ver com transexualismo.
“Aí me parece” – continuo citando – “que está uma mola importante do
transexualismo feminino. Não se sentir mulher, não se sentir nem de um sexo
nem de outro” – ela disse, escutou e botou no papel –, “precisa ser transexual
para dizer tais coisas”. Mas tudo se resolve teoricamente por essa senhora
dizendo que deve ser psicose, deve ser a crença na existência de A Mulher,
etc. Não creio nisso, pois nada qualifica esses sujeitos como psicóticos. Pode
classificá-los como dupes, como tolos, porque não sacam que podem simbolizar,
e não encontram em nenhuma região do planeta um terceiro lugar. Porque o
que dizem para eles é: “Tem terceiro sexo: seja bicha, seja sapatão!” Mas não é
isso: “Só quero que as pessoas reconheçam que eu não sou isso!” E elas dizem:
“Eu sou o terceiro sexo”. Então, o que está envolvido nesse terceiro sexo? Se
isso for simbolizado, analisado e disseminado, talvez muitas pessoas encontrem
formas de não estarem se mutilando dessa maneira. Porque poderão encontrar
que mesmo tomar como significante um órgão não produz gozo suficiente, se
não que esse significante possa se instalar numa série que lhe dê sentido e gozo
desse sentido, gozo dentro desse sentido. Porque muitos encontram essa saída,
se inscrevem no terceiro sexo para valer, suas brincanagens eróticas variam ou
não, isso não interessa, e começam a produzir um lugar de gozo, na fabricação,
no fazer, no doar sentido. E se instalam muito bem por aí, e lhes é um gozo
extremamente superior a qualquer gozo-fálico.
Aliás, encontramos na clínica, embora não nos deparemos com tran-
sexuais, freqüentemente, dubitações, tropeços, escorregões, passando por aí.
E insisto: a própria estruturação da neurose é aí.
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O gozo-do-sentido
Pode ser que haja um certo exagero por parte do transexual de chegar
a lançar pedaços de sua carne nesse jogo de obrigar o outro a aceitar outro sen-
tido, porque é isto que ele quer. Acho que do que sofre o transexual é de uma
retaliação: ele tem que obrigar o outro a engolir que ele trocou o sentido, que
o sentido pode ser outro. E quer isso na carne, concretamente. Ora, na carne,
concretamente, pode ser num quadro, numa peça de música. E também na
carne, concretamente. Mas, eu me pergunto: de onde vem esse moralismo que
há que considerar que porque o cara vai oferecer como tinta, ou como som, a
sua carne, ele é mais doente do que o pintor? Isto não é pertinente à cabeça de
um analista, o qual pode, sim, fazê-lo considerar que é um risco muito grande,
que talvez não seja a hora, que a tecnologia não seja adequada, mas porque
tenho eu que embargar que qualquer material sirva para obra de arte? E se,
amanhã, uma cirurgia, uma biologia nova, conseguir fazer bem feito? Por que
não pode? Não é disto que se trata, portanto. Não é porque o cara quer fazer a
obra com os materiais da sua carne, que ele é mais doente. Ele pode ser mais
tolo, de estar se mutilando sem bons resultados. Mas nota-se em muitos dos que
escrevem a respeito do assunto, que encontram a patologia de o cara querer,
não aceitando que o órgão depende do significante, trabalhar o órgão. Isto não
é tão simples porque, afinal de contas, é aceitando que a tinta não é tinta que
eu trabalho sobre a tinta, e com ela... No que diz respeito ao corpo do cara,
existem estes escrúpulos todos. Eu digo: cagaço do analista. Ele é quem está
encagaçado porque, dentro da produção artística, téchne, do mundo, não se
poderá dizer um dia: “Hoje quero ir a uma festa com uma pele azul, e não com
a morena” – e que isso funcione sem tinta? No momento não é factível...
* * *
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O Sexo dos Anjos
estou fazendo um vocativo histérico. Não me sobra, no caso, outro discurso para
falar com vocês, só tenho este. Então, não vamos confundir posição histérica
ou estar no discurso da histérica, com neurose histérica...
Daqui por diante, das próximas vezes, vou tentar iniciar uma patolo-
gia assentada sobre os defeitos noduladores dos três sexos e a normalização
fantasística, ou fantasmática, ou fantástica, como quiserem, com referência ao
quarto. E tentar estabelecer a diferença entre posição sexual, que um sujeito
pode tomar, e obrigação sexual, que instala uma patologia.
10/ABR
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CONTOS DOS BOSQUES DE VIENA
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O Sexo dos Anjos
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O Sexo dos Anjos
o que seria a sexualidade do falante, o que de normal se pode tirar daí. Normal
no sentido mais matemático e mais amplo do termo. Qual deveria ser, a rigor,
a sexualidade do falante? Se ele pudesse, numa análise, desembaraçar-se das
suas obrigações sexuais e até mesmo dialetizar as suas ligações sexuais?
Minha questão é, então, a distinção entre posição ou ligação sexual –
em qual delas o sujeito está ligado em sua história no simbólico – possíveis
obrigações ou seja, quando o sujeito não só está ligado num determinado ponto,
numa determinada face desse tetraedro que lhes apresentei, mas fica obrigado a
dar conta dessa face o tempo todo, prejudicando uma certa dialética que a mera
ligação possibilita. Mas, a meu ver, adianto logo que a própria ligação também
é prejudicial, pois quero supor que uma cura psicanalítica levada a termo, até
mesmo das ligações sexuais desembaraça o sujeito.
A posição de ligação masculina é aquela que conhecemos, que Freud
chamou de adscrita à perversão polimorfa, com o famoso destaque dos objetos
parciais. Eventualmente ela pode até dar em certa mestria. Ela tem uma certa
finalística, uma certa ideologia teleológica de atingimento de um certo fim cha-
mado gozo-fálico. E, às vezes, pode ter a aparência de uma suave perversão: os
gostos particulares de um homenzinho, na sua maneira particular de gozar.
A posição, a ligação feminina mora lá no gozo-do-Outro, segundo Lacan.
No feminino tenta-se gozar como o Outro goza. Como o Outro não goza, as coi-
sas são quase que uma tentativa e seu estrebuchamento, fazer de conta que está
gozando como Outro. Isso pode dar uma suave loucura: aquela maluquicezinha
das mulheres, quando começam a gozar. E tem também uma certa finalística,
uma teleologia, mas que não é ideológica, e sim mais ou menos signo-lógica. As
mulheres começam a fazer signo do seu gozo. Elas têm que dizer para a gente
que estão gozando, têm que fazer signo, porque aquilo não convence...
Na posição, na ligação angélica, a coisa se passa no regime da ins-
crição. Um gozo angélico, só por escrito se demonstra. E, portanto, ele pode
parecer com uma boa neurose, uma neurose decente... Tem também a sua
finalística particular, que é lítero-teleológica, a teleologia é de letra, é de
inscrever alguma letra.
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Contos dos bosques de Viena
Eu poderia até dizer que há uma espécie de posição plerômica, que não
está nem no masculino, nem no feminino, nem no angélico. Existirá um gozo
pleno do tetraedro por inteiro, sem fazermos nenhuma ligação com nenhum
desses três? Acho que sim. É da ordem do nem homem nem mulher, nem
masculino nem feminino, nem Anjo nem Morte. Um gozo maior, plerômico,
integral – com furo, é claro! O nome seria Sublimação. Não a mera sublima-
ção da escrita, mas uma vontade de sublimação. Pode dar uma aparência de
sublimação total, quem sabe até mesmo de santidade, sem aquela aparência
finalística do cristão. Não é o santo da santidade do catolicismo. É o místico.
Lacan dizia que o santo é “le rebut de la jouissance”, o que se joga fora. É uma
finalística holo-teleológica, ou pleromo-teleológica, porque tem uma vocação
de realismo integral, de um realismo absoluto, fantástico, de fantasia.
Para falar um pouquinho dessa posição do Falanjo, que é um pouco
nova – nova a maneira de abordar, porque ela sempre existiu – é esse gozo ao
Outro, que tem duas concepções na língua: à maneira do Outro, ou um gozo
oferecido ao Outro – diferente da produção do feminino, que é gozo do Outro.
Gozar como o Outro é diferente de gozar à maneira de, que é uma oferta de gozo
ao Outro. É no sentido mesmo de que existe um gozo que se dá por escrito e só
se inscreve, escreve, em nível de carne, na carne de um outro, que vem como
representante do Outro. É diferente do gozo dito feminino, que é o gozo-do-
Outro se apossando da carne da chamada mulher. O gozo do Anjo está em fazer
gozar, gozo oferecido ao Outro: as gueixas são maravilhosamente angélicas.
Todo um malabarismo, e há um gozo naquilo de fazer o Outro gozar.
Em francês poderia ser chamado de jouissens, que é uma maneira de ser
causa do gozo-do-Outro. O objeto a é causa do desejo. O significante é causa
do gozo, como Lacan colocou. Quando um sujeito tenta ser causa do gozo-
do-Outro, de um outro, e não causa do seu desejo, ele simplesmente está se
tornando significante para o Outro, puramente significante. É isso que a obra de
arte fornece. É por isso que Freud, Marx, essa gente toda, ficava se perguntando
como as tragédias gregas fazem isso. Porque elas são causa do gozo-do-Outro.
São angélicas. Para ser causa de gozo de Outro, de outro sujeito, há que ser
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O Sexo dos Anjos
significante, tornar-se compatível com S1 para esse Outro, ou, pelo menos,
ser gozosamente significante para esse Outro, para um outro. Não qualquer
significante, mas um tal que lhe cause algum gozo. Esse significante é posto,
obscenamente, diante do Outro, dos outros, de uma massa, de um público, de
tal maneira que encontra, no enxame significante desses outros, um lugarzinho
por onde pode meter o dedinho dele. Quer dizer, pertencer de alguma maneira
ao gozo desses outros. É o que o artista faz: ele arranca orgasmos, aplausos.
Porque ele vai lá e os escreve. Isso vai lá e escreve, futuca, mas não estabelece
nenhuma relação. O de lá goza também de maneira angélica ou não, orgásmica,
tanto faz... Pois nada impede que esse gozo angélico também produza o gozo-
fálico. É o caso das gueixas, de oferecer o gozo ao Outro, e tirar apenas o gozo
angélico da brincadeira, É uma maneira de existir.
Ser causa do gozo-do-Outro pode ser conseguido por um encontro,
ainda que aproximativo, por uma questão de gosto, na produção do artista, ou
por radicalidade de ato poético: fazer com que, quando tudo se zera, pinte esse
significante lá no Outro. Brandir a neutralidade, o real da escansão entre S1 e S2,
a obra de arte, o ato poético, faz isso. A mera artistificação, não. É preciso tocar
lá, no S1. Quanto a isto, remeto vocês ao Seminário Senso Contra Censo.
Estamos aí no alto regime da instância da letra. A tal insistência da letra
no Inconsciente não é senão causa desse gozo. E fazer reclamar essa insistência
de fora, para alguém, é na produção desse gozo ao Outro. Lacan, por exemplo,
quando fica brandindo a instância da letra, é angelicamente que a brande. Esse
gosto pela carta, la lettre, é o gosto dos anjos. Ele adora escrever carta de amor,
ou de ódio, tanto faz. O gosto do anagrama, do troca-troca, do troca letra, essa
coisa que Lacan redescobriu no regime de jogo das palavras. Ou seja, esse ter-
ceiro sexo subvertendo as ordens por inteiro, manipulação mágica de letras.
* * *
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Contos dos bosques de Viena
letra –, numa posição dessas. Talvez pudéssemos, escutando uma pessoa, des-
cobrir, afinal de contas, qual o sexo em que ela ali se instala. Não que ela não
brinque nos outros, porque, se é apenas uma ligação, é um ponto de referência:
sua referência ali é tal sexo, o que não a impede de passar pelos outros. Lacan
mostrou isto ao dizer que as mulheres ficam partidas entre o gozo-fálico e o
gozo-do-Outro.
Começo, então, a desconfiar que existe alguma coisa de errado com
a nodulação borromeana de um sujeito, que, além de já ter a debilidade de se
ligar a um sexo – porque é uma debilidade nossa: somos débeis para enfrentar
esse terror que é ter a santidade da sexualidade plerômica, de desejar coisal-
guma, de gozar com Nada, de querer a santidade –, se apega a uma posição, se
referencia a uma delas. Aliás, faz parte da identificação do sujeito a sua sexua-
lidade histórica. Mas, afora isso, a grande dificuldade é que os sujeitos, na sua
extensa maioria – deve ser raro que um sujeito não caia nessa, em função das
pressões culturais, das histórias significantes, etc: –, ainda ficam em obrigação
sexual. Não a mera ligação, a simples referência à sua sexualidade, mas ficam
obrigados a sustentar um desses lugares de sexualidade.
Ora, isso se me apresenta como um erro no nó borromeano. Alguma coisa
aconteceu que esse sujeito não pode sustentar a borromeaneidade do nó, pois quan-
do o nó é borromeano, ele se avessa, produz Revirão com facilidade. Mas em algu-
ma parte, o nó deixa de ser extensamente borromeano, uma cunhagem se dá errada.
Como sabemos, um nó borromeano é feito de tal maneira que qual-
quer dos registros é independente de qualquer outro, ele apenas se amarra a
esse outro por um terceiro. Suponhamos, então, que haja um erro de registro.
O erro mais grave é o chamado nó olímpico, no qual, ao contrário do nó bor-
romeano, cada elo se amarra aos outros dois de tal maneira que se cortarmos
um elo, quaisquer dos outros dois não se soltarão. O nó olímpico é, a meu ver,
uma verdadeira situação animal. É o que se poderia chamar de “O Pára-Isso
Perdido” – “pára com isso!” –, tudo está amarrado, não tem soltura, cada elo
se amarra com os outros dois. É mais ou menos o que suponho ser uma es-
trutura de sexualidade num animal: real, simbólico e imaginário – que, para
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O Sexo dos Anjos
ele, não se coloca assim, é para mim que isso se coloca – estariam amarrados,
não adianta cortar nenhum. Isto seria, assim, a bestificação total.
Mas o erro de que quero falar é o que está escrito abaixo, nas ilustrações
2, 3 e 4. São três erros possíveis.
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O que é arriscado para mim, neste momento, é que é sobre esses erros
que vou tentar a minha pato-logia.
Digo-lhes, então, que – pasmem! – temos a obrigação masculina, a
obrigação feminina, a obrigação angélica, e a obrigação plerômica – esta, aliás,
não é a mesma coisa que o outro caso de se ter uma sexualidade plerômica.
É como se o sujeito tivesse uma obrigação plerômica, que é uma espécie de
cretinice total. O sujeito que tem uma obrigação de nó olímpico é um cretino
total. Não é masculino, nem feminino, nem angélico... Estou até fazendo a
suposição de que um cretino desses exista. Esse cara seria uma paralisação
total, uma múmia.
A obrigação masculina, eu a chamaria de ipsogrâmica: uma letra
referida a um self qualquer. É o protótipo do imbecil. É ipso-grâmica porque
fica a referência estrita à nomeação paterna, num sentido preceitual estrito,
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que sobra pala lá, ele sobrevive muito bem a qualquer porrada. Estamos aí na
região do sentido reforçando o sintoma; na região do recalcamento do Nome
do Pai, arrolhando o furo do real com seu sintoma. Proponho, então, que, na
nossa patologia, a neurose se inscreva na obrigação angélica, na obrigação do
gozo-do-Sentido. O neurótico arrolha o furo do real, ou seja, arrolha a própria
repetição de Nada com o seu sintoma.
Estar na obrigação feminina não é senão – e Lacan sugeriu isto, embora
tenha deixado sem solução – a psicose. O psicótico é, aí em 2, o idiota por exce-
lência. Toda referência só pode bater em ego, porque é absolutamente idiota. O
que acontece é que o objeto a é absolutamente deglutido pelo gozo-do-Outro e não
sobra senão um a para ele. Ele é acossado o tempo todo pelo simbólico, que está
fora dessa amarração e que é o terceiro pé da questão, e tudo isso é deglutido pela
nodulação pura e simples, sem rachaduras, do imaginário com o real, IR. Esta é a
mesmice do feminino, como coloca muito bem Jean-Claude Milner, pois no que é
suspensa a função paterna – no masculino a referência é lá fora: ele pode ser imbe-
cil de acreditar absolutamente nessa referência –, a referência fica absolutamente,
inteiramente, particular e nodulando o imaginário, por exemplo, do corpo, com
um real que o sustenta o tempo todo. O simbólico que se dane! Começa a delirar,
a fazer maluquice: fica lá numa outra e sendo deglutido para cá o tempo todo. E
daí, meus caros, a psicanálise ter que repensar o que fazer com o psicótico. Se é
verdadeira essa nodulação, do que adianta cortar no simbólico? Nada! E todos
os analistas deram esse testemunho. Não dá para tratá-lo no regime do corte do
simbólico porque, para ele, isto não quer dizer nada. O real está amarrado com o
imaginário, e ele quer que o analista se dane. Não vai acontecer nada. Ele deglute,
e inventa delírio. Isto é o delírio, a alucinação: pegar o imaginário, amarrar no real
e comer o simbólico, ou delirando ou inventando formas visuais, auditivas, etc. Na
tradição psiquiátrica há coisas mais aproximadas do tratamento da psicose do que
na tradição psicanalítica. O psiquiatra sacou muito antes da psicanálise que não
adianta levar papo com psicótico... E aí, ele dá porrada, mete choque... Não estou
dizendo que se deva fazer isto, mas é aí que está a verdade. Escutem o psiquiatra: ele
está fazendo porcaria, mas no lugar certo.
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e a fobia. Simples, não é? Eu disse que vocês iam pasmar, mas tenho provas
de laboratório: sempre pergunto a cada um como é. Eles me ensinaram isso...
Temos que ir não ao corpo anatômico, não à anatomia do sujeito. Aí
vou lhes pedir licença para dizer uma coisa meio horrorosa: leiam, por exemplo,
Gaston Bachelard: não faz mal, leiam toda a su a obra. É claro que ele tem umas
implicações junguianas, mas isso é da ordem do psicológico... E não há que
jogar o Jung todo no lixo. Por uma razão muito simples: Jung nada tem a ver
com psicanálise, nunca fez psicanálise, nem tomou noção do que isto seja. Mas
é psicólogo, e como psicólogo pôde perceber que arranjos imaginarizados, ou
seja, miragens prontificadas para o sujeito, funcionam apegados aos aparelhos
corporais como verdadeiros paradigmas de funcionamento para o sujeito. São
miragens paradigmáticas sobre as quais o sujeito se referencia. Imagens estas
que vêm dessa dependência nossa da tal Natureza, de não termos nada a ver
com isso, como Picasso diz que não devemos ter, e, no entanto, estamos ape-
gados a essas funcionalidades do macho e da fêmea no processo reprodutivo,
nos atos corporais.
Então, por exemplo, se um sujeito, além de se colocar logicamente na
postura do angélico – aquela que tentei escrever partindo das fórmulas quânticas
de Lacan: existe pelo menos um que afirma a função fálica – ao mesmo tempo
opera isso do lado do fêmeo, esse sujeito é obsessivo: um angélico fêmeo é
obsessivo – angélico no sentido da obrigação. Se a amarração é uma obrigação
angélica operada na fantasia de ser fêmeo, só pode dar em obsessivo.
Vou dar uma dica disso. Desenvolvo melhor depois. Lá na história do
sujeito, mesmo ele dizendo o contrário, quando começamos a sacar as fantasias
que apresenta, vemos que ele sente ou escolhe, na sua história, a via de repro-
dução, o lugar do fêmeo, do materno, no sentido de reprodução, no sentido
carnal. Ele não é um inseminador, ele é um inseminado. É onde a castração, no
sentido freudiano, bate para ele: no lugar do inseminado, e não do inseminador.
A ficção da histérica não é que ela tem que ser masculina, e sim que tem que
ser macha: tem que ser inseminador numa obrigação angélica, numa obrigação
de sentido. A histérica, na verdade, não consegue inaugurar isso, de modo al-
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gum. Mas é a sua questão: como ser inseminador? A inseminação que ela quer
fazer é de sentido. Ela vai fazer um outro gozar, ou todos os outros, se puder,
inseminando... Ela é o macho da questão. Essa fantasia está adscrita à nossa
razão biológica, à nossa razão anatômica, aos processos que estão envolvidos
na produção de um corpo novo, de um novo falante.
Temos que falar sobre isso exaustivamente. Só estou jogando, para
ver se prolifera...
A perda de sentido é uma coisa que ocorre freqüentemente no processo
de análise, sobretudo com o neurótico. No quadrinho, onde ele se amarra? No
sentido. A intervenção analítica vai desbastando esse sentido até chegar um dia
em que ele pensa que não vai conseguir sobreviver sem aqueles sentidos todos,
e fica desesperado. Ele não está acostumado a fazer sentido, e sim a ter sentido.
Fazer sentido não é tê-lo. O neurótico, nessa obrigação, está acostumado a ter
e exigir a freqüentação nesse sentido. E inseminar esse sentido, o tempo todo,
ou ser inseminado por ele.
Não podemos esquecer que, na topologia mesma do comportamento do
sujeito, esta relação dentro/fora, quem está metendo/quem está sendo enrabado,
é muito importante. E a fantasia do social só passa por aí. Por quê? Porque a
grande maioria é de neurótico. E certamente porque toda a fantástica do sexual
só passa nessa de ativo/passivo, quem mete/quem está sendo enrabado, ficam
nesse delírio de fazer sentido pela via do que é oferecido pela anatomia. Quando
não é este o caso, pois o voto de ser inseminado de um obsessivo não o leva
necessariamente a querer ser enrabado, às vezes pode ser o contrário. No entanto,
não deixa de passar essa fantasia, porque ela é a de qualquer sujeito. Se existe
um enrabador e um enrabado, por que não fazer um troca-troca? A analidade
da representação é porque se trata de uma questão anal-lítica...
Recomendei a leitura de Gaston Bachelard porque ele escreveu diver-
sos volumes sobre o que chama de psicanálise: psicanálise do fogo, da água,
da terra... Ele pega essas construções imaginárias, forjadas freqüentemente
de fantasias, e descreve o que pôde perceber na literatura, na arte. Leiam,
porque é instrutivo. São as grandes construções miraginárias que se assentam
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Estamos aí, meus caros, na nossa quiáltera, a três por dois. Por isso é
que dá em confusão poder pensar três sexos num e dois em outro registro. É aí
que está o meu querido sonho de valsa, que espero que vocês queiram receber.
Vamos ouvir uma valsa... Vocês querem sonho de valsa?
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É preciso fazer sentido, e isto solicita inscrição. O que solicita, por exemplo,
inscrição paterna é da ordem do angélico, o que é diferente da inscrição paterna
já escrita. Aí já é da ordem da causa de gozo. Portanto, é preciso saber em que
registro a coisa vige. Aliás, o Marquês de Sade marcava mesmo o número de
bimbadas. Mas ele não era bem o Don Juan que marcava o número de mulheres.
Só é bimbada quando ela chega a um termo. Aí ele ia lá e marcava no regime
da repetição – repetição da mesma inscrição. Ou seja, não estou dizendo que
marcava no regime do gozo-do-Sentido, e sim no do gozo-fálico.
Temos que ter paciência para ver se conseguimos desenvolver isto até
o fim. É perfeitamente natural que as pessoas se sintam solicitadas com o de-
senvolvimento dessas coisas e vão começando a pensar. Refiram-se, por favor,
àqueles nozinhos de neurose, psicose e morfose que apresentei de outra vez.
Aliás, alguém veio me trazer, justo às vésperas de eu falar isso, que seria hoje,
que deveria ter alguma coisa que não funcionaria bem com meus nós porque
Inibição, Sintoma e Angústia ficariam demarcados naqueles lugares, e de ma-
neira que parecia trocada. Por isso, já estou chamando atenção para o fato de
que é preciso jogar nos três elos, se não, realmente fica parecendo assim...
Insisto também em que se lembrem, ao tratar dessa formulação, de que
tentei estabelecer distinção entre posição ou ligação masculina, feminina ou
angélica, e obrigação, ob-ligação, masculina, feminina e angélica. Isto modifica
inteiramente as duas posturas. Estar na posição masculina não é perversidade.
Perversidade é a obrigação masculina. Estar na posição feminina não é psicose.
Psicose seria estar nessa obrigação. Estar na posição angélica não é neurose.
As obrigações são defeitos na nodulação, quando dois registros se pegam de
maneira a ter sua amarração independente do terceiro. O que acontece com
a obrigação é que dois dos registros se seguram bem, mesmo que se retire o
terceiro. Não é que vá se eliminar na cabeça de alguém um registro. Isto não
existe. Por isso é preciso lembrar que ele está em vigor, continua lá. Mas o
desempenho do sujeito é no sentido de se assegurar numa boa amarração de
dois registros e se agüentar nos seus processos prescindindo ou evitando a
participação do terceiro.
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Ainda por cima desse nó, Lacan escreveu Inibição, Sintoma e Angústia
– três coisas levantadas por Freud, e tratadas num volume só sobre isto. Lacan
vai reduzir aquilo tudo a uma visão topológica.
Ele diz que há Inibição quando no regime do Pleroma, do conjunto
do nó, o imaginário invade o simbólico. Quer dizer, há inflação de imaginário
sobre o simbólico. É como se ele estivesse dizendo que, ao invés de os dois
serem considerados com o mesmo peso, o simbólico é comido pelo imaginário,
é imaginarizado – e isto ele chama de inibição, com toda a razão. Pois se ali é
o lugar do sentido, ter o sentido, insistir num certo sentido, inibe os processos
de equivocação, de proliferação de sentido. É preciso não esquecer também
que as duas coisas estão no mesmo lugar. A produção de sentido, quer dizer,
a plenitude de sentido, aquilo que Lacan apontava como palavra plena, que
se possa dizer com grande expansão de sentido, está também ali. Ali, na con-
jugação do simbólico com o imaginário, produzir muito sentido é justamente
fazer com que de um significante muitas possibilidades sejam válidas. Mas
estar amarrado num imaginário dado, isto inibe o processo de proliferação dos
sentidos possíveis de um significante.
Sintoma, Lacan disse que é uma inflação do simbólico dentro do
real. Ora, se o simbólico ocupa o lugar de real, quanto mais o ocupa, mais
se apresenta como essas coisas que vão se repetir sem poderem ser ditas:
esbarram naquela coisa que volta sempre ao mesmo lugar. O que da ordem
sintomática é meramente inflacionário pode ser reduzido. Quer dizer, pode-
se, por via do simbólico, fazer com que aquilo seja bem dito, e, aí, retirar da
Wiederholungszwang, da realização do simbólico. Mas sempre deve sobrar uma
certa região – sintoma fundamental, etc. – que não é que não possa ser bem
dito, é que, para sê-lo, tem que ser bem dito a vida inteira, e nunca chegar ao
fim. Porque a coisa insiste, insiste: instância da letra.
A tal da Angústia, Lacan definiu como sendo uma invasão do real
dentro do imaginário. Quer dizer, alguma coisa que, ao invés de se comportar
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inibidor. As únicas pessoas que são desinibidas com a lei são os advogados.
Advogado é um sujeito cuja profissão é desinibir-se com a lei: “Isto pode ter
outra interpretação, dá-se um jeitinho”. Ou seja, mexe um pouco aí com o sig-
nificante que esse tal sentido que a lei pretende dar não é bem esse. De repente,
não é bem isso. De repente, aquela referência já muda. Ou seja, a profissão de
advogado seria a do desinibidor do texto legal. Ao passo que a polícia seria o
inibidor pelo texto legal.
Operando-se diretamente com o não-senso, acaba-se operando também
no sintoma. Pode-se ser desinibidor pelo simples fato de oferecer ao sujeito
uma outra vertente do sentido. Por exemplo, no trabalho com o analisando,
ao invés de produzir interpretações ao nível do equívoco, o analista amplia as
possibilidades de sentido para desinibir, para ver se ele consegue caminhar. O
analista fica proliferando sentido para ele. Ao passo que, numa equivocação
radical, ela não muda o sentido, pois ela arrasa com o sentido, faz perder o
sentido. Mas às vezes não se tem muito acesso direto ao analisando para ficar
trabalhando com a perda dos sentidos. Porque, no que o sentido cai, ele passa
para o lado de lá, vai para a angústia. Então, o analista tem que atuar como
desinibidor para ver se ele abre um pouco mais as pernas, de maneira a poder
entrar com o seu significante.
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que se foda. Mesmo o equívoco, que é muito destrutivo porque tira a garantia
que ele tem no embasamento significante do sintoma, não é tão destrutivo assim
porque ele se agüenta no real do gozo-fálico, e tudo bem.
Então, é na medida em que alguma coisa se apresenta como o inibidor
do gozo do perverso, que ele entra em problema. Ele só se problematiza quando
alguma coisa vem inibir sua instalação no gozo-fálico. No nível meramente
sintomático, o sentido fica em aberto. Então, se sua garantia é sintomática, ele
passeia à vontade pelo sentido, ele faz qualquer sacanagem. É só quando o
barrarem lá que ele vai ficar tenso.
Não entendo, por exemplo, que se faça remissão da subserviência do
perverso a um gozo de um outro. Precisamos rever isto, pois é um gozo mesmo,
não é outro. Para ele, é mesmo! Achar isto é misturar as categorias. Há muitos
autores que dizem isto e Lacan fala parecendo ser isto, mas não é. Ao que ele
serve? Ao gozo de um superego. E superego não é outro, é o mesmo. Ele é
subdito à ordem sintomática. Ele é mais que subdito, é obrigado, é demolido sob
essa ordem sintomática. Ele não tem um sintoma, o sintoma o tem. Neurótico
pode ter sintoma, mas perverso não.
A angústia ingressaria para o perverso por vias de inibição. Ou, também,
por vias de presença do real. Basta ameaçá-lo de cortar seu peru para ver como
ele fica: em angústia plena. Basta ameaçá-lo na concepção do gozo-fálico. Por
onde se pode cercá-lo é pela via da inibição. Não que se vá trabalhar inibindo-o.
Muito pelo contrário: a única maneira de se levar a vergonha do perverso ao
extremo – pelo menos é o que o meu laboratório me indicou – é concordar com
ele, é ser muito mais sacana do que ele, é desinibi-lo mais do que ele pode, do que
ele agüenta. Aí ele vai ficar procurando onde está a polícia que não comparece.
Afinal de contas, ele invocou a polícia mostrando sua insistência sintomática:
“Pô, ninguém vem dizer que devo me envergonhar disso?”.
Na prática de ditos analistas, sobretudo de ditos edipianos... De vez
em quando, recebo edipianos, recebo um perversinho que veio assim de longas
deitadas em divãs. Divãs onde eles eram moralizados o tempo todo. O que ele
faz? Ele se acostuma imediatamente com esse limite de sentido: “Já sei o que
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O Sexo dos Anjos
a polícia pensa, daqui para cá vou tapeando, fico numa boa, tudo é possível”. E
eles ficam extremamente perplexos, pensam e dizem coisas escabrosas a meu
respeito – por isso é que eu sou tão mal falado... Eles chegam para mim falando
como quem estivesse desafiando: “Quer ver como ele vai ficar envergonhado!
Como eu sou sacana, como eu sou perverso!”. Aí ele diz um troço e eu digo:
“Mas que besteira, isso é porcaria. Me conta uma melhor. Você não é tarado
nada. lsso é brincadeira de criança. Para mim tem coisa muito melhor do que
isso!”. Ele vai perdendo o fôlego. Daí a pouco, para me convencer de que é um
tarado, no mínimo vai ter que trepar com a Lua, fazer uma viagem interplane-
tária... Neurótico, vale a pena coibir porque se começa a mexer onde ele tem
a garantia, proíbe-se em lugares diferentes, etc. O perverso quer é deslumbrar,
assustar, mas se você diz que aquilo é uma grande porcaria, pede para ele contar
uma melhor, ele perde o fôlego. Ou seja, ao mesmo tempo que é isso que o
inibe, ele requisita isso. Quando ele já sabe como a polícia age, ótimo para ele.
Mas no que você o inocenta – não é desculpabilizar, porque ele não tem culpa
–, no que você inocenta suas peripécias, ele fica sempre desconfiado de que,
em algum lugar, você vai pegá-lo e ele não está sabendo onde é. De repente,
ele fica pensando que o analista é muito mais tarado do que ele mesmo. Fica
desconfiado, fala para todo mundo que seu analista faz coisas horrorosas, inventa
histórias. Não tem importância, porque é por aí que ele perde o fôlego. E talvez
por aí possa perder a garantia que tem no sintoma. É difícil como o diabo, mas
é uma chance, pois no que o sintoma está resolvido, o problema aparece para
ele no regime de limitação dos seus movimentos a partir de sua garantia sinto-
mática. Ele tem um know-how do gozo-fálico e precisa, então, saber o que está
falando e quais são os limites de sentido que o mundo lhe oferece. Isto, para,
inclusive, ficar desafiando, brandindo seu know-how erótico. Mas se você faz
vácuo nessa região, se realmente diz que nada tem a ver com a ordem policial,
ele fica completamente perdido e é o sintoma que começa a desgovernar. Isto
o recorta assim como se recorta o neurótico no regime do simbólico no que se
aproveita sua dica, dele neurótico, para interceptar a significação sintomática.
Então, o que está bem solucionado é a inibição. Ele apresenta um sintoma e,
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Nv, Ps, Mf
no que ele fala, você interpreta por via simbólica no sentido de cortar na signi-
ficação sintomática, no núcleo sintomático, com o que ele perde a garantia do
sentido. Não é isso que a gente faz todo dia? Contamos com o sintoma, pedimos
a conivência do sintoma para desfazer a garantia de sentido que ele tem. Todo
mundo faz assim, só estou dizendo de outra maneira.
Pode-se atuar também simbolicamente com o perverso porque é ali
na confluência de real com simbólico que ele vive. Mas não adianta querer
garantir-se na sintomática dele, que é o que o “analista” babaca faz. Fica tra-
tando como se fosse neurótico: moraliza, quer disciplinar, proibir, ao invés de
colocá-lo sem parâmetros.
Um certo perverso, que tive ocasião de trabalhar in vitro, ficava pa-
querando os homens pela rua num afã de insistência no gozo-fálico, uma coisa
meio assim desvairada. Mas o tempo todo, onde quer que fosse fazer alguma
investida, ele pensava: “Isso eu tenho que contar para o Magno”. No começo,
quando ele se lembrava de que se fizesse aquilo tinha que me contar, eu era
um inibidor. Ele não deixava de fazer, mas fazia no desafio à sua inibição que
minha pessoa era. E comecei a fazer o contrário: “Mas você fez só isso? Todo
mundo aí dando sopa, e você só come um? Quero ver você chegar lá e comer
dez. Vai lá se tu agüenta, vai lá se tu é macho!”. Ele respondia: “Porra, você é
doido?!”. Eu dizia: “Só um pouquinho mais do que você”. Aí ele foi perdendo
as estribeiras, porque tinha que me falar. Mas falar para mim dava em nada, pois
eu dizia que era pouco. Ele estava pensando que tinha feito uma grande trans-
gressão, uma grande sacanagem, mas eu sempre humilhava o seu know-how. O
outro analista o proibia. Aí, então, a inibição começou a virar pelo avesso. Ao
invés de ter um outro inibido, ele ficava procurando nos seus elementos onde
estaria o limite de sentido. O sentido começou a fazer problema para ele: “Se eu
for fundo e desesperadamente, perco o sentido”. Aí, começou a me moralizar.
Não deixei, é claro: “Agora tem que ser. Vamos fundo. Que história é essa?
Você comete e eu não posso dizer? Você pode fazer e eu não posso dizer? Eu
vou dizer, sim!”. Ele vai ficando desesperado no nível do sentido. Ele não fica
angustiado, pois, no que a angústia pinta, ele imediatamente traduz para a região
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O Sexo dos Anjos
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Nv, Ps, Mf
* * *
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O Sexo dos Anjos
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Nv, Ps, Mf
ignorância é aceita daqui para lá, não é questionada. Adão, Eva e a serpente.
Adão funciona ali como masculino. Já que o Senhor disse: “Daquela árvore,
não!”, ele se satisfaz com a ignorância. Essa ignorância é tida, dada, ponto!:
ali está meu limite, eu sou um universal. Todo homem como eu está subdito,
chapadão, a essa ignorância. O masculino, então, não é da ordem do mesmo, e
sim da submissão à fundação da Lei, a esse externado, a esse morto.
O feminino nada tem a ver com a ignorância, e sim com o ódio. É o
contrário do que se pensa. O feminino é o lugar do ódio: Eva. O lugar do amor
é onde está a “neura”. Amor é coisa de Anjo. Não que ele seja amoroso, não
que seja o amante ou o amado, é que ele é o futricador dos amores. Eros: um
anjinho de asas, que vai tecendo os amores com a cobra. A cobra, lá no meio do
Paraíso, insinua-se angelicamente e começa a fazer a fofoca: “Você e o Adão
não estão fazendo nada aí mesmo. Esse cara lá em cima está de sacanagem, está
dizendo para você não comer isso para não ficar sabendo das coisas”. Adão se
satisfaz com a ignorância. Eva, que não está no regime do universal, não suporta
a ignorância, suporta é o ódio, fica com raiva do Senhor: “Que porra é essa?
Está me escondendo o jogo? A serpente tem razão. Vou comer, sim, e vou dar
para o outro”. Como o outro é um babaca mesmo, ele vai comer...
O amor, então, é tecido pela posição angélica, que faz a futrica, a chi-
cana, dos amores e fica sempre no meio dos sentidos, ali passeando. É cupido
jogando as flechinhas. E quando os dois caem em relação amorosa, o macho cai
de ignorante, e a fêmea de odienta. É o que se chamou de inveja do pênis, por
falta de nome melhor. É o ódio feminino. Porque não há o para-todo. Imaginem
o que é sustentar uma idiotia, uma particularidade que não faz universal! Só na
guerra, só na demonstração cotidiana de que eu sou diferente. O que sustenta
as mulheres é o ódio. Por isso, sempre parece que elas são histéricas, mesmo
quando não são. Elas estão sempre de olho se aquela lá está com um vestido
mais bonito, se estão supondo que outra é mais gostosa: “Não pode! Sou eu!”.
É no regime do ódio que ela vive, dia e noite.
Sujeitar o outro à lei, como é o caso na universalização, não é ódio.
É amor paterno – embora venha juridicamente como pátrio poder: “Seja um
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O Sexo dos Anjos
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08/MAI
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Sujeito divinizado
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SUJEITO DIVINIZADO
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O Sexo dos Anjos
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Sujeito divinizado
As combinações das letras são estas e não mais que estas. Quer dizer: o ima-
ginário está por cima do real, que está por cima do simbólico, que está por
cima do imaginário, e assim por diante. A setinha quer dizer “por cima de”. Se
viramos a seta ao contrário é “por baixo de”. Mas, se observarmos, veremos
que se chamarmos a primeira combinatória de 1 e a segunda de 2, teremos
que as quatro seguintes são iguais às duas primeiras que começam por outro
lado. Então, essas quatro últimas combinatórias não têm serventia. São duas
e apenas duas. Só temos duas oportunidades de amarração: ou o imaginário
está por cima do real por cima do simbólico, ou o imaginário está por cima do
simbólico por cima do real. Pergunto, então: essas duas que sobram, uma é o
avesso da outra?
Parece cartesiano, mas não é. Lacan vai, numa das últimas sessões do
Seminário Les Non Dupes Errent, tentar responder a alguém que lhe colocara
a questão do que teria a ver o nó borromeano com as fórmulas quânticas que,
como sabemos, ele escreveu quatro, duas a duas. Então, ele faz uma fala mais
longa e, depois de fazer uma porção de manejos com o nó, rebatimentos, etc.,
para estudar sua orientação, ele promove um tetraedro (que não é o meu, que
não é construído assim) para dizer que aquelas quatro fórmulas se inscrevem
nas quatro faces desse tetraedro e dá uma resposta assim: “Me perguntaram,
eu estou dando a resposta”. Só que aquilo não chega a lugar nenhum. Nem
convence. Não leva a nada. Ele estava, a meu ver, inspirando-se numa possi-
bilidade de escrever essas fórmulas numa estrutura qualquer para funcionar. E
eu não vejo funcionar.
Mas, se estou diante do nó borromeano, literal e realmente diante dele,
estou mergulhando este nó num espaço euclidiano. Considerá-lo, mergulhá-lo no
meu espaço euclidiano, deve prejudicar a concepção da sua orientação. Lacan
se aproveita dessas passagens por baixo/por cima, em torno desse triângulo
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O Sexo dos Anjos
É esse miolinho que ele está considerando. Na verdade, não são nem os mes-
mos segmentos que giram para um lado e para outro. De qualquer lado, está
girando para o mesmo lado.
* * *
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Sujeito divinizado
nificação é uma forçação de barra, pois o nó borromeano não tem forma, tem
simplesmente uma amarração. Isto já é forçar a barra, já é segurá-lo numa folha
de papel para poder entendê-lo. O nó, então, é o mesmo do ponto de vista da
orientação do giro – de qualquer lado gira para a direita – sendo que, visto de
cá, a relação por baixo/por cima é a inversa da vista de lá. Que diabo é isto? Aí
Lacan mostra que se faço o rebatimento de um dos elos, se fixo dois na forma
que estava e faço o rebatimento de um, cá está o nó borromeano de novo – e
observem que esse rebatimento não muda a relação por baixo/por cima –, mas
mudou a orientação: para vocês, era destrógiro e passou a levógiro. Então, o
rebatimento de um dos elos mantém a relação por baixo/por cima, mas troca a
orientação do giro aparente. Mas quando Lacan coloca esta questão da orienta-
ção do nó, ele a coloca no nível da representação plana. E eu repito a pergunta:
será que isto serve para alguma coisa? Se serve, para o quê? Na medida em
que represento planificado, estou mergulhando o nó no espaço euclidiano e o
obrigando a se comportar dentro desse espaço. Como, então, devo considerar
a orientação do nó?
No mesmo Seminário, Lacan explica claramente que se tomarmos
uma “esfera” borromeana, uma pseudo-esfera armilar borromeana – como
já mostrei aqui num Seminário em que estava desenhando isso como
triedros cartesianos, quadrantes, e em que botei oito quadrantes –, e to-
marmos um dos quadrantes, teremos uma representação que, no caso desta
que tenho nas mãos, é destrógira, para a direita. Aí ele pergunta: “Posso
transformar esta representação em levógira?”. E responde corretamente
que só há uma maneira de passar essa representação para levógira, com
avessamento das posições, que é pegar o quadrante oposto, traçar um eixo,
e o quadrante oposto me dará a representação contrária da representação
anterior e ainda por cima avessará o por baixo/por cima. Quero dizer aos
senhores que é isto que chamo de Revirão. Porque apenas rebater um
dos aros me dá o avessamento da orientação na representação, mas não o
avessamento do por baixo/por cima... Mas, retornando, se a representação
é levógira, o quadrante oposto é justo aquilo em que está escrito objeto
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O Sexo dos Anjos
* * *
Estou dizendo, então, que isso é uma aparência de quem está mergu-
lhado no espaço euclidiano. Quero perguntar, independentemente de qualquer
representação plana, de qualquer rebatimento de um dos registros, como posso
me orientar mesmo de dentro do nó, participando dele. Quando estávamos
falando da banda de Moebius, lá no seminário d’A Música, eu dizia que um
ponto se deslocando sobre a banda, haverá um momento de vizinhança em
que, se vinha girando para a direita e se encontra comparativamente com a sua
posição anterior – ou seja, numa questão de vizinhança, não importa quantos
degraus da vizinhança tenha que pular – girando ao contrário do que vinha
girando. Não que tenha que sentir esse Revirão, mas que pode, dando um tem-
po, comparando esta sua passagem com a passagem anterior, o próprio ponto
que ele puder marcar, se der uma transparência nisso, ele verá que trocou de
posição. Ele trocou – disse eu naquela época – de sexo, porque o ponto é bífido
e é bissexuado. É esse sexo da banda que quero chamar de macho e fêmeo, e
não aqueles três que nada têm a ver com isso. São sexos efeito da nodulação.
Aquele lá da contrabanda, que eu dizia ser anfissexual, é que chamei agora de
macho e fêmeo.
O problema da psicanálise é resolver uma coisa muito simples e que
ninguém consegue resolver: como ter um raciocínio binário e ternário ao mesmo
tempo? Este é o nosso problema, pois quando se vai para o binário, encaixa,
quando se vai para o ternário, encaixa, mas quando juntam-se os dois dá um
melê. O que acontece, então, com um ponto ou um sujeito, até acéfalo, que
estivesse percorrendo o nó borromeano? Não é ver de fora se é para direita ou
para esquerda, pois isso não interessa. Que orientação ele pode ter lá dentro? Só
por baixo/por cima – mais nenhuma. Vamos até colocar aqui o nó borromeano
nessa forma esférica, asférica, supor que ele esteja fixado nessa posição e que
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Sujeito divinizado
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O Sexo dos Anjos
continua sendo uma posição masculina. A coisa só vai sofrer embaraço, é o caso
de dizer, quando houver obrigação. A obrigação no masculino, como coloquei,
se chama Morfose. Ora, na obrigação morfótica, a coisa não revira mais, o nó
deixa de ser borromeano. Ele tem uma zona de aparência borromeana, tem con-
tatos da ordem do borromeano, mas no nó dessa natureza, onde dois têm uma
obrigação, não posso garantir o por baixo/por cima. Posso garantir no que diz respeito
ao terceiro: este está por inteiro por baixo de um e por inteiro por cima do outro.
O terceiro não tem condições de revirar o nó. Ele tem condições de revirar aquela
orientação que Lacan disse. Mas isto não quer dizer nada porque ele não conse-
gue revirar o nó pelo fato de que o nó assim nem revirável é. Sobretudo, porque
não tenho nenhuma garantia distintiva de por baixo/por cima nesses dois que
estão lá. Não posso dizer que um está por cima do outro. Só tenho a aparência.
Não posso mudar o por baixo/por cima nem do terceiro, mas posso, rebatendo,
mudar aquela orientação que Lacan escreveu: a coisa vira ao contrário.
Minha crítica é o uso da orientação na representação porque ela não
me dá garantias, e estou pedindo o uso da orientação apenas no por baixo/
por cima. E dizendo que se a obrigação pode eventualmente ser representada
como representei, ou seja, que o nó deixa de ser borromeano e tem uma pega
a mais entre dois registros, o terceiro fica numa certa soltura e numa garantia
de estar por baixo ou por cima. Ou seja, se estou percorrendo o terceiro nó,
como no caso daquela “esfera”, encontrarei sempre um à direita e outro à
esquerda, sempre tudo direitinho, mas isso não vai ser trocado. Não há como
trocar, está preso. Além de que, se percorrer outro dos outros dois, nem isso
tenho, nem a garantia de ter sempre um à direita e outro à esquerda. Aquilo
fica ensandecido, fica inteiramente traumatizado. Posso até saber que, se estou
neste, aquele terceiro está sempre do mesmo lado, mas o outro não está. Estou
pedindo esses cuidados nessa representação justamente para não nos perdermos
em cima deste objetinho, desta “esfera”. É muito útil, muito prático, mas não
posso me perder nele.
Pois bem, estou aqui com o tetraedro que apresentei em nosso primeiro
encontro deste semestre. Diferentemente da esfera armilar, nele, posso mexer.
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Sujeito divinizado
A prova é que, embora aqui esteja por baixo/por cima e ali por cima/por baixo,
ou vice-versa, quando confronto os dois, não tenho um avessamento pleno no
sentido de Lacan. Ambos são destrógiros. Ambos estão representados da mes-
ma maneira, chapados. Ambos giram para direita nesta representação. Não há
como mudar essa representação, só se, como disse Lacan, fizermos outro nó.
Tenho, então, duas maneiras de amarrar o nó aprisionado na superfície plana,
as quais me dão a impressão de que não posso passar de um para outro. Só se
fizer outro nó diferente. Mas o nó propriamente dito pode passar, não é preciso
fazer outro, porque só existem estes dois e não mais, e estes dois são um só.
Acho engraçado Lacan dizer isto – que só se fizermos outro nó – quando tinha
falado dos quadrantes e mostrado que se fizermos o rebatimento pelo qua-
drante oposto, ele vira inteiramente: não só passa de levógiro para destrógiro,
ou vice-versa, como muda o por baixo/por cima também. Então, não há duas
amarrações para o nó, e sim uma e apenas uma.
A correlação que quero fazer é que há um comportamento moebiusiano
no nó borromeano. Como o Ponto Bífido que sugeri para a banda de Moebius,
também no nó borromeano, que é um só, há duas posturas possíveis em trans-
formação contínua. Isto para me desinteressar, ainda que por enquanto, da
orientação do giro. Pouco estou me incomodando com isso, porque em meus
devaneios... Meus sonhos são muito atuais. Por isso que gosto desses maluquetes
assim feito Spielberg, desses caras que fazem Guerras nas estrelas... É assim
que imagino as coisas. Às vezes, até, fico com um problema desses na cabeça e
sonho. Sempre me vejo como aqueles caras da nave espacial andando por dentro
do troço. Eu estou lá dentro, sou aquele personagem lá do filme. Se vou dormir,
como ontem, por exemplo, preocupado com isso, aquilo fica lá se resolvendo
por si mesmo... É um barato, há que se manipular muito bem o simbólico para
fazer-se uma defesa tão bem construída, não é? Mas o importante é a gente
conseguir, de um lugar de sujeito, ficar dentro do processo e não olhar de fora.
Estou lançando mão desse tipo de filme porque é perfeitamente possível, com
a aparelhagem que se tem hoje: laser, computador, etc., construir esse percurso.
Construir até em quarta dimensão.
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O Sexo dos Anjos
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Sujeito divinizado
Por ter uma reentrada, por ter uma nova entrada na possibilidade do
simbólico, o que acontece com o sujeito para necessitar – porque ele é ma-
luquinho pleno – passar por essa historinha caseira toda? Historinha caseira
pode ser a evolução da humanidade, se quiserem, se isso existe, essa coisa que
a antropologia procura: fundação de cultura, interdição do incesto, blá, blá,
blá, que é nada mais nada menos do que adequação dessa loucura à ordem
antisimétrica ou dissimétrica de uma posição euclidiana. O que quero dizer é
que falante enquanto tal, na sua emergência no seio do não-falante... O seio
do não-falante só pode ser os resultados parciários, os efeitos modais de um
falante suposto: Deus. Então um suposto sujeito chamado Deus, no que ele,
como falante, diz os palavrões dele, essas palavras viram coisas. Essas coisas
estão limitadas na sua dissimetria. Se aparece um Adão, se sou adâmico, estou
na possibilidade de repetir não a coisa fundada, mas a fundação da coisa. Então
eu sou divinizado... Aliás, Adão não tinha a possibilidade de falar essas coisas.
Não antes da boa foda, como diz Joyce: “Antes da queda, Adão trepava mas
não gozava”. O que é absolutamente perfeito.
Se estou aqui de novo, eu – não é o boneco aqui, não –, eu sujeito,
então, estou em condições de repetir o ato de criação... E se estou em condi-
ções de repetir o ato de criação, eu sou Deus. Isto não quer dizer que sou “O
Deus” ou que “Deus é eu”, que seriam da ordem da psicose. Ou seja, a soma, a
superposição de um zilhão de buracos é um buraco só. Portanto, eu sou Deus.
Fernando Pessoa já o tinha dito. É aquela coisa que os cristãos diziam: “Eu
porto uma centelha divina. Deus está em mim. Eu habito Deus”. Eles ficavam
tentando dizer isto. E é absolutamente correto porque, se faço suposição de
sujeito, tenho que fazer suposição criacionista. Aí é que pega certa briga idiota
de biólogos: “Criacionismo X Evolucionismo”, quando ambos estão certos.
Tenho que supor ato de criação se suponho sujeito: ato de criação de algo, é
claro que sintomatizado, limitado, fechado... O que me atrapalha na minha
divindade não é eu não ser Deus, é eu ser um Deus babaca, decadente, e que
me apego a tal relação sintomática para ser um certo sujeito. E onde sou um
certo sujeito, perco algo da minha divindade. Então, sou um Deus decadente
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O Sexo dos Anjos
porque preciso ser um certo sujeito. Mas além de ser um certo, sou sujeito, e,
se sujeito, está lá essa divindade.
Retomando, então, Freud coloca a questão da dissimetria do Édipo e
Lacan também insiste nela. Correto! Mas essa dissimetria só tem valor opera-
cional no regime da representação desse sujeito, no campo, digamos, da sua
euclidianização, da sua orientação na face do planeta, no sentido topológico
de dizer isto. Do que o falante sofre – não o sujeito que é um certo sujeito,
mas o sujeito tout-court: emergência da possibilidade de falar – é de simetria,
porque ele pode transar de um lado para o outro. Sem isto, o ato criador não
seria possível.
A obrigação é que coloca o sujeito na dissimetria. E mais, não é
nem questão só de obrigação, e sim de simples insistência numa posição.
Se você é localizado pelo simbólico disponível – o qual, no sentido laca-
niano, é metáfora –, se, no campo do metafórico em uso, em qualquer lugar
e qualquer cultura, você insiste, por questões de sobrevivência simbólica,
em ocupar um lugar, por exemplo, do feminino, mesmo que você não seja
obrigado – feminino que, aliás, segundo eu, daria na psicose –, você já está
com isto limitando a simetria e, portanto, fazendo uma dissimetria, por
insistência repetitiva, forçado pelas cadeias, etc.
O que quero dizer é que nem mesmo no regime da relação macho/
fêmea, no anatômico, na possibilidade dessa bipartição, e o corpo – sei lá se é
corpo, é o boneco aí, o cavalo, sei lá quem carrega isso... Porque nós temos essa
coisa horrorosa que é um sujeito divino aprisionado num macaco. Mesmo que
Darwin esteja completamente errado, a metáfora é bonita: um Deus aprisionado
num macaco. E se não nos dermos conta disso, vamos limitar de tal maneira as
potências desse Deus, que a gente vai ficar mesmo é macaco. Porque mesmo no
que diz respeito a essa bipartição, à sexuação enquanto binária, bífida, anfisse-
xual, diferente da sexuação efeito dos três registros, pois são coisas diferentes,
mesmo aí não há dissimetria. Não para o falante.
Há dissimetria para o falante instalado numa metáfora, o que é muito
diferente. Tenho que fazer a suposição de que essa metáfora pode estar em vigor,
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Sujeito divinizado
pode ser trabalhada na análise, etc., mas que algo a antecede, que é fundação
do falante, ato de criação divina. É o que eu já disse num Seminário antigo,
que seria uma fantasia primordial de andrógino – o qual é mera fantasia, pois
não existe. O andrógino estava fantasiando que, do lugar do sujeito enquanto
tal, enquanto Coisa, aquilo que se representa é que é suponível como Deus.
Por exemplo, qual é o sexo de Deus? Não estou nem falando no regime da
ternariedade, mesmo no regime da bifididade, qual é o sexo de Deus? Qual é
o sexo do Pai Simbólico? Não é dizível mesmo no regime da bipartição. Não
é contável. Só é contável no vel. Certamente que o sexo de Deus é homem ou
mulher, masculino ou feminino, macho ou fêmea. Só posso dizer assim: o sexo
de Deus é macho ou fêmea. É o que vai se rebater, como lugar angélico, na
posição de sujeito instalado – coisa que mostrarei no futuro. Isto vai se rebater
naquela tríade sexual, no lugar do Anjo. Mesmo como sujeito instalado, insistir
naquele sexo do Anjo é rebater de maneira decadente nesse vel do sexo divino,
do sexo do Pai.
* * *
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O Sexo dos Anjos
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Sujeito divinizado
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O Sexo dos Anjos
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Sujeito divinizado
não se convence ou quer convencer o cara. Não dá! Psicanálise não tem nada
a ver com isso.
* * *
29/MAI
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Repetição, diferença, distinção
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O Sexo dos Anjos
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Repetição, diferença, distinção
fico, mas de uma coisa mais separada. Jean-Claude Milner, por exemplo, num
livrinho muito inteligente, Os Nomes Indistintos, pega essas três categorias e
chama assim: II y a: Há – isto é o real. Depois, ele diz: II y a de lalangue: Há
a alíngua – isto é o simbólico. E depois: II y a du semblable: Há o semelhante
– isto é o imaginário. Notem, como já chamei atenção aqui, que esse Há na
formulação do real continua nos outros registros. O real está invadindo o imagi-
nário e o simbólico. Será que poderíamos mesmo dizer que “há a alíngua” é o
simbólico? Não me convence: alíngua não é só simbólico, ela é real, simbólico,
imaginário... O simbólico passa por ela, sim, mas ela não é o simbólico. Milner
pode dizer isto no sentido em que há simbólico na alíngua e não há simbólico
no imaginário. Isto está certo, na definição dele.
Alain Juranville toma essas categorias e as reduz às categorias filosófi-
cas com certo sabor heideggeriano. Ele diz que “o real é o tempo”. Ele reduz o
real lacaniano ao tempo. Bem, sim e não. O tempo enquanto tal não é escritível.
O tempo cronológico do relógio o é, mas o tempo enquanto tal não se escreve.
Freud, por exemplo, colocava que o Inconsciente não tem tempo. Não ter tempo
ou ter um tempo real é a mesma coisa. O tempo, para Freud, seria uma defesa
contra a sincronia. E o tempo absolutamente sincrônico do Inconsciente seria
um tempo real... Mas o simbólico, Juranville não o lê como articulação, e o
imaginário, ele lê como antecipação prometida pelo significante. Não estou a
fim de discutir essas coisas aqui. Só estou mostrando como Lacan pôde construir
um grande teorema em cima de pseudoaxiomas e de elementos extremamente
vagos. Coisa talvez necessária para que ele não ficasse aprisionado no seu mo-
vimento heurístico. Eu mesmo, diversas vezes aqui, na tentativa de segurar essa
coisa que me parece meio escorregadia, já tentei categorizar o real, simbólico
e imaginário de diversas maneiras, em diversos Seminários.
Hoje eu poria uma outra coisinha, um outro conceito de real, simbólico
e imaginário. Nada de novo, só uma maneira de pegar no Nó. Eu diria que o real
é da ordem da pura repetição, que o simbólico é da ordem da pura diferença,
e o imaginário da ordem da distinção. Essas três coisas já coloquei aqui. Só
quero conversar um pouquinho mais.
111
O Sexo dos Anjos
Vamos tentar entender o que possa ser uma pura repetição. Suponhamos
que, num fundo absoluto de silêncio, eu escutasse um som, uma nota musical,
por exemplo. Do ponto de vista do que a música pôde organizar, o som, a nota
musical, precisa ter certas bases materiais para estabelecer sua distinção no seio
das outras. Um som qualquer escutado tem: altura – quantidade de vibrações;
intensidade – a força com que ele é produzido; timbre – a qualidade material
de sua fonte sonora, por exemplo, o som da mesma nota no violino é diferente
no fagote; e duração – o quanto tempo esse som se apresenta. Fiquemos só
com a altura, num campo de absoluto silêncio. Se essa nota for prolongada
indefinidamente sem o menor interstício, num silêncio, teríamos aí a sua pura
e simples repetição. Não que ela se repita, ela é contínua, aquilo insiste. O
que seria a mesma coisa que ouvi-la intermitentemente repetida, eliminando
o tempo. Não cessa de haver som, o mesmo. É o reino do mesmo: repete-se e
insiste. O que cabe na outra definição que Lacan dá do real: repete-se incessante
e insistentemente, nunca deixando de retornar ao mesmo lugar. É o que, no
Seminário anterior, eu havia dito que é da ordem do Haver, que não tem nenhum
Não-Haver por trás: Há inapelavelmente, aquilo soa. Aquela nota, sou-a.
Suponhamos que nesse fundo de silêncio e ouvindo-se a repetição in-
cessante de haver som – pois que se há um som sem nenhum outro, não sei nem
que som é: é apenas a insistência de haver som –, de repente, pinta nesse Haver
puro da repetição uma pequena diferença, um outro som, uma pequena variação
de vibração nesse som. Não sei quanto de variação, mas que eu seja surpreendido
por uma diferença que pintou. Não quer dizer que eu saiba a diferença entre
tal e tal nota, pois se estava na constância da nota anterior, nem sei que nota é.
É um som constante e não tenho nenhuma comparação a fazer para saber qual
é esta nota aí. De repente, então, ela faz uma pequena variação e sofro uma
diferença. Só diferença. Não sei qual foi, não posso medir nem nomear ainda.
Então, sofro da diferença pura. Só sei dizer: “É diferente”. Chamemos isso de
simbólico: o exercício da diferença. Nesta minha historinha, como vêem, não
havia uma diferença anterior. Tenho que fazer um mitozinho como este porque,
se tomar um acontecimento possível, já começa com diferença, já começa até
112
Repetição, diferença, distinção
com imagem. Estou, então, isolando elementos para sacar o conceito de dife-
rença: apreendi uma diferença entre dois sons que não distingo ainda qual é um
nem qual é outro. Simplesmente pintou que é diferente. Pintou uma diferença
e sofri da diferença. Trata-se, portanto, de repetição do mesmo. Aliás, nem no
conceito de Lacan caberia, por exemplo, dizer que repetição seria a alternância
de um e de outro porque, afinal, o que é que volta aí no mesmo lugar?
Com o passar do tempo, por exemplo, se esses dois sons começam a se
alternar, de repente, consigo já estabelecer para essa diferença uma distinção.
Então, já sei: este é um que reconheço como tal, e aquele é outro que reconheço
como tal. Os dois agora têm pregnância gestáltica. Há uma diferença de um para
outro. Agora, não sofro só a diferença, sofro de distinção de dois diferentes. É
o que eu chamaria de imaginário: quando consigo estabelecer distinção sobre
a diferença. Pura repetição, puro Haver: real. A diferença pintou: simbólico.
Agora consigo distinguir, fiz uma forma, uma Gestalt para cada um, estou no
imaginário. Isso tudo muito antes de pensar em línguas.
Não estou falando aqui de psicologia de laboratório, da minha expe-
riência de ouvir, e sim de conceitos quando isolo determinadas categorias. Só
posso dizer isto de trás para frente, e não de frente para trás. Tanto é que a psi-
canálise só foi inventada este século. Por isso mesmo: foi preciso passar toda
a trambicagem complexa do imaginário para isso poder ir sendo distinguido,
categorizado, como foi todo o pensamento. Estou, então, indo de frente para
trás – o que é falso, pois só-depois é que posso fazer isto – para depois voltar,
de trás para frente.
Se formos, então, seguir estas tentativas de definição que acabei de
dar, temos que dizer que, do ponto de vista substancial, digamos assim, que lá
está contido na materialidade, na concretude dessas coisas, desses sons, e dos
eventos desses sons em relação à minha subjetividade, o que está acontecendo
é que o real assim definido é puro real, pura repetição. Nele não entra diferença
nem distinção. O simbólico, conceitualmente, é o que ali pinta de diferença.
Mas na materialidade do que há de simbólico, o real está incluso. Para que
pinte diferença é preciso que haja repetição. É o real dessa diferença. Assim
113
O Sexo dos Anjos
como nesse conceito de imaginário, para que pinte a distinção, é preciso que,
substancialmente, inclua a diferença e a repetição. Por isso sempre ficou tão
difícil para o tal do ser falante constituir teoremas. O começo de nossa experi-
ência é igualzinho àquela coisa da história da psicanálise. Como o tal neurótico
chega e fala de papai/mamãe, começou pelo Édipo, o que é uma besteira. Até
o sujeito esmiuçar aquilo tudo e chegar a um outro teorema mais radical, teve
que passar por essa historinha toda. Assim, então, começamos do imaginário,
tudo de cambulhada. Quer dizer, lidamos com distinções. E é um efeito do
aprisionamento nessa força, nessa pregnância gestáltica do imaginário, das
distinções, que até hoje faz com que o analisando inocente, recém-chegado,
custe muito a se dar conta de que, no miolo mesmo do seu imaginário, está
embutido o que há de simbólico e o que há de real. Então, nos acostumamos a
ter a nossa historinha particular começada desse embrulho. E só um trabalho
longo e devagar nos permitiu verificar que embutido ali há de tudo isso. E que
o difícil é conseguir ir separando os elementozinhos.
Esta conceituação de real, simbólico e imaginário, que estou experi-
mentando hoje de novo, é cumulativa do ponto de vista substancial. A expe-
riência que se tem com o que há, com o que se nos apresenta, é da ordem do
imaginário nesse compacto inteiro, substancialmente. Só como um efeito de
aparelho reflexivo, de aparelho analítico, em todos os sentidos, é que se pôde
distinguir, de dentro mesmo do imaginário, o simbólico e o real. Então, do
ponto de vista substancial, o imaginário é pojado de simbólico e real, assim
como o simbólico é pojado de real, e o real é sozinho, é ininscritível por isso.
Mas, do ponto de vista estritamente lógico, quer dizer, feito o artifício analítico
sobre esses acontecimentos concretos, não é assim porque posso dizer que o
real é essa repetição pura em si; que no simbólico, se substancialmente o real
lá está, posso tomar para mim distintivamente, portanto imaginariamente, o que
nele há de puramente simbólico, de pura diferença, mas ao fazer isto já estou
sendo distintivo; e posso também pegar o imaginário e dizer, do ponto de vista
estritamente lógico, que, embora substancialmente lá haja repetição, diferença
e distinção, como falta essa distinção nos outros dois, eu o categorizo pela sua
114
Repetição, diferença, distinção
115
O Sexo dos Anjos
sabe se não precisa ser mais capinada? Quem sabe se o sujeito de que se tem
falado, ainda não é da ordem do sub-sub-grupo? Não sei. Não estou fazendo
nenhuma crítica à teoria lacaniana, pois está tudo lá. Temos é que trabalhar para
cada vez separar mais. O que aconteceu é que, para falar de tanta coisa, de tanto
peso, de tanta invenção, Lacan teve às vezes que fazê-lo muito rapidamente,
em grandes pinceladas.
Freqüentemente Lacan está colocando o processo de simbolização,
etc., como processo, mas vejo as pessoas se confundirem, pensando que é dado
de simbolização. É processo porque, se simbolizou, ferrou. Ele não é tolo e
insiste que o essencial é o desejo. Desejo é sempre de coisalguma. Se nomear
um desejo, ou seja, se disser uma única palavra, você imaginarizou. Não estou
dizendo que esse imaginário é definitivo, que não possa haver equivocação na
minha escuta, mas a minha equivocação não é da ordem, não é compatível,
com o imaginário que corre na palavra dita, e sim com outra coisa, com o meu
desejo. Disto as pessoas se esquecem. A equivocação com que escuto é com-
patível com o meu desejo, e não com a língua em seu estado atual.
Era só o que eu tinha a dizer. Agora vamos brincar.
* * *
116
Repetição, diferença, distinção
temos essa língua, e ela tem valor sintomático. O acesso a ela se dá, portanto,
no discurso do mestre, porque essa língua tem a ver com o real que há, com o
sistema metafórico que permite representar em ausência e com o sistema de
distinção que faz isso ancorar em significado. Agora, percebemos que essa
equação que você fez é impossível na lingüística, quase que literalmente.
Para fazer um parêntese que talvez ajude você a continuar: a pergunta
embutida aí é se há uma fonologia possível para aquém da lingüística.
P – O modelo de estrutura da lingüística vem da fonologia.
Mas da fonologia dos lingüistas.
P – A fonologia deles é de 1917, 1914, tem a ver com a Escola de Praga.
Lévi-Strauss pega aquilo e copia de segunda mão de Jakobson, que foi quem
teve acesso a Troubetzkoy. Mas se formos a Saussure, ao que ele escreveu, às
fontes manuscritas, na lingüística estrutural, o barato dele é distinção. Para
ele, distinção é efeito de diferença. E isto é que gera repetição. Quer dizer, entre
p/b, dois fonemas já atualizados, que vão gerar distinção de sentido de pala e
bala, é efeito de diferença. A diferença, para ele, é essa barra aí. Daí ele falar
da elipse da barra. Mas, aí, ao invés de ele voltar para o real, ele acha que a
repetição disto é que permite você articular...
Aí é que é a questão da diferença, por um sintoma da diferença, da
distinção. A repetição da distinção é puro sintoma.
P – Agora, pelo que você explicou, na psicanálise, isso é cumulativo. Por
exemplo, o simbólico, na ordem da pura diferença, vai dizer de alguma maneira
do impossível da repetição. O que há de impossível da repetição vai gerar em
suplência a pura diferença simbólica. Então, é como se, por ausência, o real
já tivesse contido ali. Embora Jean-Claude Milner insiste, o simbólico não
está dentro do imaginário, mas é condição de articulação do imaginário. Essa
distinção, por sua vez, supõe a diferença simbólica e a repetição imaginária.
Essa coisa cumulativa da psicanálise é que me parece que torna difícil fundar
uma teoria da linguagem a partir daí, porque ficam faltando duas coisas. Quem
é que põe essas coisas – repetição, diferença e distinção – que são quase que
identificações de real, simbólico e imaginário, em funcionamento? A psicanálise
117
O Sexo dos Anjos
nos indica três coisas: a Coisa mesmo, o Sujeito e o Significante. Mas será que
cabe a um deles o papel de ser o gerente da repetição? O outro ser o gerente
da diferença? O outro ser o gerente da distinção? Tomamos, então, aquela
questão do sujeito, que é o significante que representa o sujeito para outro
significante, e aí você, textualmente, diz que representa a fantasia. No nível da
fantasia, representa o sujeito para outro significante. Então, essa representação
já gera efeito de distinção porque a representação é da ordem do signo. Mas
o ato de representar, se quisermos falar assim, é lugar-tenente, é da ordem da
diferença. Mas representa em nome de quê? Em nome da repetição?
O que você acha?
P – Acho que isso passa pela Coisa. É o que mais se parece com essa idéia de
repetição. Aquela coisa que a Coisa é, é real. Quando você fêz aquele quadro,
botou essa Coisa no Haver e, hoje, você está botando o Haver e a repetição
no real. Como, então, o significante seria a representação de um sujeito para
outro significante? Mais ainda: a representação no nível de fantasia sem a
Coisa estar em jogo?
E ela sairia de jogo aí nesse caso?
P – Acho que ela já teria estado em jogo. Porque na fórmula da fantasia o
que está em jogo é o objeto a.
Não posso ver esse a, letra, letra algébrica, por vários registros?
Por exemplo: o a enquanto resultante de real, simbólico e imaginário é real,
simbólico e imaginário. Mas o que é o a enquanto real? Ele é a Coisa! O que
é o a enquanto imaginário?
P – Mas, retornando, eu intuo que esse a, que está aí, quando marca o
sujeito, já está marcando em nome da Coisa. Agora, sê você me pedir
para explicar, eu não sei. É uma coisa meio óbvia: se ele é representante da
Coisa, e se ele marca especialmente o sujeito, e o nome disso é fantasia, e se
a Coisa já ocorreu no real, essa fantasia, se você colocou como equivalente a
significante, você, assim como Lacan, colocou essa operação de significante
no simbólico. Agora, esse a veio parar aí em nome da Coisa como? Isto é que
não sei.
118
Repetição, diferença, distinção
119
O Sexo dos Anjos
quê e não sei o quê. Está doendo uma diferença. Por exemplo, nossa tendên-
cia imaginária é, se sentirmos dor, correr para um médico, para alguém, para
estabelecermos uma distinção – porque a diferença dói mais do que a doença.
Sentir algo e não saber o que é – não saber aí significando não poder distinguir
– faz sofrer mais com a diferença do que com a doença. Depois, o médico diz:
“Não é nada, o senhor só tem um câncer”. Aí sim: “Ah, bom! Agora eu sei: só
tenho um câncer”. Fica-se “feliz” em estabelecer a distinção. Mas Freud, o que
lhe doía mais do que seu câncer no maxilar – porque o câncer ele tirou meio de
letra –, muito antes disso, já estava doendo a diferença. O que lhe doía é o que
pinta como diferença: os mal-estares radicais. Por que não vemos o cachorro, o
cavalo, em tanto mal-estar? De ali estar? Ele pode ter alguns mal-estares de vez
em quando, mas a insistência do mal-estar não é uma coisa muito de sua tran-
sação. Nossa insistência no mal-estar é proveniente de falta de Imaginarização.
Ou seja, pinta a diferença e a repetição é insistente, porque pinta a diferença.
No que, para um determinado ser, um determinado havente aí, a diferença lhe
bate como diferença, sem cair ou sem decadência imediata da distinção, por
causa dessa diferença, o real insiste com muito mais vigor do que quando se
está no jogo da distinção... Não estou dizendo nenhuma novidade. Tudo isto é
velho. Estou chamando atenção.
Deve haver uma possibilidade de se pensar abstratamente, a partir da
experiência analítica – que surgiu dentro desse pântano, desse lodaçal imagi-
nário em que vivemos –, o jogo mesmo da clínica analítica e a tentativa de ir
abstraindo cada vez mais, hoje, de trás para frente e tentando voltar de frente
para trás. E assim se poder categorizar que há real, simbólico, imaginário,
enquanto categorias extremamente limpas, as mais limpas que se conseguir. E
que na interseção dessas categorias vão surgindo categorias sub-categóricas,
sub-sistêmicas, ou sub-registros, digamos. E que precisamos nos dar conta de
que os materiais com que lidamos no trabalho analítico, nos artifícios da cultura,
como, por exemplo, a literatura, a pintura, a música, etc., que têm a mesmíssima
importância, insisto nisso, para um analista que o trabalho de consultório... Sei
que há analistas que sofrem de “analistose” e pensam que essas coisas não têm
120
Repetição, diferença, distinção
nada a ver, que são apenas produtos de cultura... Não são não! É a mesma coisa! Pode-se
até desistir de ser um analista de consultório e passar a querer ser um analista de outra
coisa com preparação psicanalítica, tendo feito sua análise, etc. Ou seja, vai-se
oferecer sua escuta a outra coisa, porque falou, exprimiu-se, é demanda de análise.
O sujeito não precisa me procurar para fazer mais análise. Se ele está falando, esta
pedindo análise, vai por insistência. Quem fala, pede análise, já é pedir análise. Preci-
samos pôr a cabeça nisto, pois essas formações de real, simbólico e imaginário que se
dão por aí, a fala do analisando, a música, o teatro, o cinema, tudo que ocorre
no seio dos falantes, é talvez da ordem de registros secundários e terciários.
Teríamos, então, que tomar todos os baratos que ali ocorrem como fe-
nômenos de distinção e, às vezes, até ter a pachorra de fazer como o lingüista,
pois se estou diante de um imaginário vigoroso de um analisando, ou de uma
obra, e não tenho meios, porque não me são oferecidos às vezes ou porque sou
fraco – ou porque o outro é duro demais, e de qualquer modo sou fraco, pois
isso é recíproco – , de operar a diferença, ou se a opero e ela não é escutada...
Freqüentemente, o que faz um (vamos usar o termo geral sem querer ser cate-
górico:) neurótico? O que quer que pinte de diferença, ele traduz em distinção,
põe no seu mito particular, traduz em sua estorinha. Muitas vezes isto é tão
vigoroso que não se pode, não se consegue fazer operar a diferença diretamente.
Só tenho uma saída: bancar o lingüista e operar a oposição! Porque no que se
opera a oposição entre duas distinções, a diferença se exacerba. Estou chamando
atenção para isto porque freqüentemente vejo pessoas pegarem a prática ou a
teoria de Lacan e fazer um verdadeiro policiamento, um verdadeiro moralismo
psicanalítico. O cerne de uma Escola, no sentido arcaico do termo, que era o
que Lacan queria com a sua, um estilo, não está aí, não é aí que está o cerne
da questão, o que a Escola tem a transmitir. Passa-se ao moralismo idiota de
checar os comportamentos. Não é nem fora da análise, às vezes é até dentro...
Por isso é que tenho certo horror desse negócio que chamam de sessão clínica,
de oficina, supervisão, essas coisas, porque o que se escuta são pontos de vista
absolutamente distintos, distintores, distintivos, a respeito dos comportamentos
de fazer com que o jogo da diferença apareça.
121
O Sexo dos Anjos
Se o que tenho dito aqui for verdadeiro, teremos que dizer que, no tra-
balho analítico, trata-se de que o indivíduo possa ser um pouco mais rarefeito
de que seu imaginário, do que sua distinção, que possa operar em algo mais
rarefeito do que a pura distinção, que se dê conta do jogo da diferença, aliás
irredutível. Dizer que “não há relação sexual” é simplesmente dizer que “há
diferença”. Para aquém da distinção, há diferença. A história da psicanálise é
muito curta, muito recente e, dado o ambiente geral e vencedor da neurose, todos
os movimentos, lacanianos inclusive, tendem para o paletó e gravata, como
Clare Isabella Paine teve a gentileza de me lembrar outro dia. E aí, sim, está a
derrocada radical do que Freud, coitadinho, pensou que fosse peste. O que, na
verdade, se fez, foi, do ponto de vista teórico, estabelecer sub-sistemas para ver
que isto com que estamos trabalhando é algo que existe em níveis grosseiros a
serem rarefeitos. Isto do ponto de vista da teoria, de se dar conta daquilo com que
operamos. E, do ponto de vista da implantação da dita psicanálise no chamado
mundo, esquecer que ela é da ordem da imundície. Se o haver psicanalítico
faz laço social, é o mais precário do mundo. Não é porque faz laço social que
a psicanálise é mundana. É um laço precário, fajuto, neutro demais, sem cara,
sem nenhum caráter. E eu temo por isto. Freud funda a porcaria da IPA, e deu
no que deu. Lacan faz a porcaria da Escola Freudiana de Paris. Deu no que
deu. Aí faz a indecência, graças a Deus!, de tacar fogo nela. Imediatamente,
aparece a Escola da Causa Freudiana... Existe até Colégio Freudiano do Rio
de Janeiro... Se vira algo dessa ordem, teremos Associações cada vez mais
fortes, mais competentes... em destruir, pelo lado errado, a psicanálise. Fico
na suspeita de que não há troço pior contra a psicanálise do que um bando de
analistas. Até o sambista que ouvimos é melhor, graças a Deus!
Não é que não se façam esses trabalhos. Infelizmente, há que se fazer,
é preciso. Mas é preciso estar no pique de relembrar essas coisas o tempo todo
porque a satisfação com os saberes adquiridos é muito grande, e chega ao
pernóstico. O sujeito passa a ser o caga-regra universal sobre psicanálise, etc.
Sabe mais psicanálise do que eu. Não pode, não admito. Eu não sei, como é
que ele sabe? Ouço barbaridades, e não estou dizendo que quem as diz seja um
122
Repetição, diferença, distinção
123
O Sexo dos Anjos
dizendo que vai provar que o copo é branco, eu faço outro dizendo que acho
que o copo é preto, e acabou-se! Como ele vai sair dessa?
Sou contra as grandes empresas psicanalíticas, as internacionais, as
multinacionais, porque acho que isso é opcional. As pessoas devem se ajuntar
em instituições por um certo imposto sintomático. Não há como sair disto. A
única saída é, de dentro, ficar, por exemplo, fazendo isso que estou fazendo
aqui, agora. Tenho mais a criticar do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro do
que das outras instituições, porque nada tenho a ver com elas. Não estou de
olho nelas. Quero que elas morram ou vivam, tanto faz... A crítica deve ser
operada internamente para se tentar salvaguardar a operação da diferença, por
dentro. Por outro lado, Freud escreveu o livro Psicologia das Massas, onde está
demonstrado bastante claro que é difícil cada um per si entrar no barato. Esse
jogo imaginário do neurótico, vamos dizer do falante em geral – que começa
por essa massaroca imaginária, distintiva –, faz com que ele precise supor que
a paternidade tem figura, tem endereço. Se não fizer isso, ele não tem acesso à
paternidade. Mas o verdadeiro acesso à paternidade é ficar sem pai nem mãe,
é ser órfão. Então, porque o imaginário é muito pregnante, o sujeito precisa
passar por isso. O mito do assassinato do pai, no Totem e Tabu, por exemplo, é
também compreensível por este lado. Mas isto não é tão mítico assim. Pode ser
funcional no sentido de que o sujeito precisa ser pato, dupe, para não errar no
outro sentido, embora ele erre muito, até chegar o dia em que possa dissolver o
bastião desse que o faz pato, essa paternidade muito imaginária, para ficar com
o pai verdadeiro, correto, Nome do Pai, o que é a orfandade. Agora, dissolver
essa paternidade não é da ordem da implicância com o papai, fazer pirraça,
isso não fede nem cheira. É dissolver mesmo, é ser tão pato, tão pato, que se
sai do outro lado. É feito aquele cara de que Millôr Fernandes outro dia falou:
“É tão viado, tão viado, que virou machão”. É uma coisa assim, por exaustão.
Por isso que Lacan morre velhinho dizendo: “Sou freudiano. Vocês podem ser
lacanianos, mas eu, sou freudiano”.
A instituição, então, tem essas duas posições de, por um lado, arranjar
um lugar para você não ser muito doido:“Tem gente me vendo, de repente eles
124
Repetição, diferença, distinção
sacam se eu estiver muito doido, eles me ajudam...”. E, por outro lado, para, pelo
menos, se fingir, de preferência bem, que se está indicando uma paternidade.
* * *
Ouço muita coisa, muita rebarba, mas nessas horas, como agora, elas
não aparecem. Seria muito mais eficaz se a gente pudesse discutir um pouco
sobre isso. Estou preferindo hoje as fofocas. Elas são mais eficazes. E vou dizer
por quê. A gente começa a entrar numa região de saber em que é bastante fácil,
no nível assim de discussão, fora do nível dos bastidores, articular coisas que
parecem inseríveis claramente na teoria. Fica-se colocando questões e dando
respostas, o que é tão macio, tão suave, na medida em que se está colocando
algo que facilmente descamba aqui para um discurso teórico, e pronto: está
resolvido o problema. Mas, do ponto de vista institucional, escolar ou qualquer
coisa desse nível, quando as rebarbas pintam na sua crueza, isso nunca é discu-
tido. Não é para se chegar a nenhum fim, não. É para trazer à tona, porque é da
mesma ordem, mas é quente. Não estou falando que estou prezando nenhuma
análise de grupo, mas por que não colocar a questão teórica também no nível
quente da sua emergência no conflito com o meu sintoma?
P – Por que houve prova oral no Curso de Formação em Psicanálise aqui
do Colégio?
Justo por isso! Quem não fala não sabe escutar! Não é para reprovar
ou aprovar, é para ter pelo menos uma resposta. É exigir que o sujeito abra a
boca, com a enunciação. Ao invés de colocar sua coisa tão teórica, ele passa a
sofrer um pouco, junto.
P – Eu soube que o Colégio iria alugar uma casa para sua sede. É verdade?
Taí, uma casa é um bom sintoma. Eu mesmo estou sofrendo de um
desses agora... É uma casa maravilhosa, onde o Colégio se instalaria muito
bem, poderia ter livraria, etc. Já pensamos diversas vezes em fazer isso. Mas
o Colégio tem muito pouco dinheiro, porque os membros são pão-duros, os
alunos são pão-duros, eu sou pão-duro, todo mundo é pão-duro. E o Colégio
125
O Sexo dos Anjos
tem muito pouco dinheiro, e o dinheiro que tem, sempre me pareceu muito mais
de se investir em produção do que em consumo. A maior parte do dinheiro do
Colégio é investida em produção, não em consumo. Essa casa que foi sugerida
é muito cara. E uma casa por esse preço todo, acho que o imaginário fica muito
forte, muito violento. E não há estabilidade política no Colégio Freudiano do
Rio de Janeiro para garantir isso. Era isso que vocês queriam que eu dissesse?
Está dito! Imaginemos em termos de um país, se resolvermos arcar com um
processo de crescimento e de enriquecimento. Sem estabilidade política aquilo
vai à falência. O Colégio Freudiano vai muito bem, obrigado, como Colégio
que é, funciona direitinho. Como instituição psicanalítica, sempre achei um
espanto que ele tenha sobrevivido tanto e até crescido. Embora, sem nenhuma
modéstia, eu atribua muito a meu jogo de cintura, à minha molecagem, à minha
malandragem, que não é das melhores, mas dá para o gasto. Bom, cada um faz
o samba que consegue. Eu comentava há pouco que tenho inveja de bicheiro,
porque nunca vi gente tão estável politicamente: uma estabilidade política in-
vejável por qualquer imperador. Vale o escrito e vale a palavra também, senão
se morre. Não é muito do nosso hábito ficar matando os colegas. Ainda não
começamos com esta prática, embora os assassinatos culturais sejam freqüentes
no meio psicanalítico... Mas não sei por que, não sei se é próprio mesmo de um
bando de analistas, só sei que a instituição Colégio Freudiano do Rio de Janeiro
se segura muito bem, desde que não se faça muito investimento imaginário. O
ritmo do Colégio Freudiano é de um surto por semestre. Podia ser pior, podia
ser todo mês. Mas todo semestre há um surto de imaginário muito grande.
Somos cheios de pecados graves, de nascença, de pecados originais. É
normal. Nossa tradição é muito curta. É muito difícil, não sei até se é possível
ter-se uma instituição muito bem compacta do ponto de vista institucional,
com cada um dos elementos assim muito mafioso, ao mesmo tempo também
que vigore o discurso analítico. Isto é muito difícil e nem sei se é consecutível.
Geralmente a coisa vira só máfia. Por exemplo, a IPA me parece que não é da
ordem só da sustentação da instituição, e sim da sustentação do interesse de
alguns que estão no poder e daqueles subditos àquele poder, e aí a psicanálise
126
Repetição, diferença, distinção
127
O Sexo dos Anjos
vezes, até acho que o Colégio Freudiano é pouco narcísico. Está aí um grave
defeito. Se você assume o seu narcisismo, ele é declarado, é até analisável.
Por exemplo: um sujeito chegar diante de vocês e fazer um Seminário, existe
maior narcisismo que este?
Nossas mazelas se devem mais ao fato de um sujeito se defender
porque sabe, do que por operar a verdade como ela vem. Explico melhor: o
analista – assim como o médico sofre de esmeraldite, como costumam dizer,
pois conhecem as doenças e estão sempre acuados pela imagem de poder estar
nesta ou naquela doença –, os ditos analistas, ou o pessoal que se envolve com
isso, sabe que ego é feio, que narcisismo é feio, então começa a denegar, vive
denegando. Me lembro daquele poema de Fernando Pessoa que num momen-
to crítico desses, há alguns anos, li aqui no Seminário. Todo mundo é fdp, só
eu que não sou! Não conheço nenhum que diga “eu sou um merda!” Eu, sou
extremamente narcísico. Acho que já notaram...
Nunca se opera com o processo, porque o analista é neutro, não fala,
ele é cinza absoluto, não é narcísico, não tem ego... Ele não tem picas! Ele não
existe! É muita pretensão! Daí é que vem esse moralismo, que é baseado nos
saberes que a teoria ofereceu. Quer dizer, um cara fica o dia inteiro se defen-
dendo para que o outro não pense que ele tem essas coisas, não pense que ele é
um reles neurótico... Por que as pessoas ficavam tão espantadas com a audácia
de Lacan? Sujeito audacioso, besta, pretencioso, todo mundo o xingava de
tudo. Porque ele não tinha vergonha de saber que ele era Jacques Lacan. Ele
não era mais do que isso: “Malandro sou eu, sou o que sou, ninguém vai me
mudar”, taí... Quer dizer, vou escorregando como der. Agora, não dá para não
ser ninguém. Isso não dá! Lacan era um sujeito que assumia, era besta, um
cara de quem se contam várias anedotas, e eu acredito nelas. Se chegasse num
lugar e alguém lhe dissesse que não podia entrar, ele dizia: “Mas eu sou Jacques
Lacan”. Parece um troço idiota, mas o cara sabe com quem está lidando. Freud
era muito mais envergonhado, fazia muito mais concessões à sua teoria, era
mais para judeu classe média... Mas já foi herói demais, já fez coisas demais
para sua época.
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Repetição, diferença, distinção
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O Sexo dos Anjos
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Repetição, diferença, distinção
que têm muito para nos ensinar. Poderemos entender com um pouco mais de
clareza, por exemplo, o que é o conceito de alienação, de efeito de alienação,
em Brecht. Talvez conseguíssemos entender o que Lacan está ensinando como
efeito de disparidade, de não-encontro dentro do consultório. Lacan não tirou
isso do nada. Ele era culto, sabia das coisas. Então, parece que há assim uma
barreira: se não se falar S1, S2, a, $, do sujeito em relação ao objeto, não se
está falando nada... Todos os que estão condenados à mudez porque não sabem
falar lacanês. Não estou dizendo que um ou outro que se sinta melhor nesse
lugar não deva restar aí. Está certo, é valorizável. Mas a arrogância com que se
trata, a partir desse lugar, “o resto”, faz com que a gente não tenha vontade de
escutar nem aquilo. Isso é arrogância, é pedantismo. Como é que um analista
não sabe escutar um samba? Neguinho lá de cima do morro pegou e disse! Não
conheço ninguém aqui que tenha feito um samba desses! Muito pretensioso.
Isto é irritante.
O fato de eu votar numa linha de pensamento e defendê-la no sentido
de estabelecer a diferença para ver se sai alguma faísca, não significa que devo
escarrar em cima dos outros. Estávamos conversando, há pouco, sobre um
jornalista que escrevera sobre Michel Foucault. Não quero concordar com as
teses do Michel Foucault, porque estou na patota do Jacques Lacan e acho que
é a que está certa. Mas não admito que ninguém escarre em cima do Foucault!
Não é qualquer um que tem aquele tamanho. Fale-se com respeito porque o
fato inarredável daquela presença vigorosa ter insistido num desejo elaborado
e produzido, ninguém tasca... E vemos desrespeitos dessa ordem, no seio do
Colégio, por exemplo. Vê-se um sujeito de quem se discorda, acha-se tudo
errado, mas vê-se o valor de uma potência de verdade, de insistência absolu-
tamente respeitável. Ou seja: “Não concordo, mas respeito”. E às vezes estas
pedradas vindo de indivíduos menores, que se apresentam ainda menores, no
sentido de menoridade cultural... Isto não pode, é falta de respeito! Discorde,
mas como um castrado.
Nada tenho contra uma pessoa fazer uma chamada de atenção a um ato
ou a um dito meu, ou porque considera que isso possa ser dialetizável, ou por-
131
O Sexo dos Anjos
que não é bem assim, porque não é do maior interesse do Colégio no momento
fazer isto ou aquilo. No entanto, o que mais freqüente se vê, e é normal (o pior
é que é normal, não passa de normal), é que o sujeito está dizendo isso por
inadimplência. Quer dizer, não há nenhum susto, não há nenhuma perplexidade:
“Quem sabe se está se falando de algo que eu não vi”. Não! É imediato! Ou
seja, é da ordem do que eu disse, que é a tradução da diferença imediatamente
em distinção: “No meu samba não tem essa nota, então não pode!”.
Essas coisas todas fazem parte desse processo em que, nós outros su-
postos interessados na psicanálise, devíamos ter como fundamento ético que
somos os zeladores dessa coisa. Não podemos estar agindo assim. Devería-
mos ser os zeladores dessa coisa. Tanto no sentido positivo, às vezes, esse de
insistir nesse jogo da diferença, como, às vezes, no sentido negativo. Ou seja,
está-se numa instituição, apontaram-se lugares. De tal lugar, ninguém é Deus
em pessoa, embora isso seja divino em qualquer um de nós. Então, errâncias
existem, mas se o lugar está apontado, precisava-se ser um pouco mais mafioso
e errar junto. Mesmo com ponderações. Mas também essa instância negativa é
mal utilizada, freqüentemente.
O tempo-para-compreender não é o mesmo para todos. Às vezes, vemos
nitidamente que não conseguimos entender o que um outro está fazendo. Ou
porque o seu é muito mais veloz do que o meu tempo, ou porque não tenho
os elementos para elaborar essa compreensão. Só tenho duas saídas: ou fico
na minha e cada um tem o seu tempo, ou, se indiquei algum lugar de vigor de
ato para alguém ocupar, tenho que “entrar numa” mesmo sem compreender.
Compreendo só-depois. Não há saída. Mas, para isso, é preciso fazer a suposi-
ção de que minha palavra de designação é extremamente castratória para mim.
Não porque um outro seja verdadeiro, e sim porque entrei no jogo e é assim.
Eu, por exemplo, me sinto hoje em dia muito mais solto, pelo simples fato de
que o Dr. Jacques Lacan morreu e não nomeio ninguém para o lugar dele. Mas
isto pode ser papo obsessivo. Estou abandonado: seduzido e abandonado...
Quando o homem estava vivo, se eu fizesse determinada coisa e ele dissesse:
“Não é assim, é assado”, eu dizia na hora: “Sim senhor!”. E as pessoas pensam
132
Repetição, diferença, distinção
* * *
Vocês poderiam dizer que não adianta dizer esse tipo de coisa, porque
depende do nível de castração de cada um. Como se pode exigir de um sujeito
cujo nível de castração seja muito baixo, digamos assim – a baixa castração –,
que ele tenha essa competência? É muito difícil. E isto não é uma achincalhe
dessa pessoa. E porque ele não pode e não há como operar com isso. O que
não me desobriga de o acossar. Não pode? Pudesse! É um jogo... Não existe
instituição em paz. A paz não existe. O negócio é fazer bem a guerra.
19/JUN
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O Sexo dos Anjos
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Cometa
Segunda Parte
PLEROMA
Tratado de Deus e de seus Anjos
2º Semestre 1986 (1)
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O Sexo dos Anjos
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Cometa
1
INTRODUÇÃO
O que se segue não é pura especulação: o que terá que vir a ser de-
monstrado, assim na prática como no saber.
Não deixa de ser uma Teologia – digamos Teologia Libidinal – na qual
um único Deus intercede com a realidade possível da physis: Deus vel Natura,
podemos dizer. Vel de um Deus Desejante de Outra-Coisa que não sua própria
compleição. Um Deus Inconsciente, portanto – na medida em que definamos
o ICS (como aqui se define) como máquina movida por movimento desejante:
Energia Libidinal, portanto.
Diferentemente do Deus sive Natura de Espinosa, este Deus desejante
pode coincidir com o Haver em sua própria compleição, mas o vel de sua in-
terseção (e intercessão) é colocado pelo descentramento de que Ele sofre em
função de Seu desejo da Outra-Coisa, aliás impossível.
Não deixa de ser uma Cosmologia – digamos Cosmologia Libidinal
– na qual, o que quer que haja, enquanto Deus em suas manifestações, se rege
em conformidade com esse UM único que Há através de seus avatares, sem
perder a unicidade de sua compleição.
Não se trata de uma Filosofia, mas de Meta-Filosofia. O termo aqui
sendo entendido como reincidência do discurso da Mestria, mas só-depois
(Nachträglichkeit) da experiência promovida pelo discurso da Psicanálise.
O que aqui norteia a hipotetização é o postulado de que o Homem
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O Sexo dos Anjos
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Motu perpetuo
1
MOTU PERPETUO
1. O que quer que haja está no seio do HAVER. É o que HÁ. Isso Há. Isso é
UM. HÁ UM, e só um.
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O Sexo dos Anjos
Nada, deixe de haver. Como Nada, ele ainda Há: na plenitude, sem falta, no seu
seio, de sua substância. Sua substância é puro Haver; pura Neutralidade. O que
é anulado no seio desse puro haver é a simples diferença. A, está submetido à
entropia absoluta no seu seio.
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Motu perpetuo
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11. Esta tese, como se vê, atribui desejo ao próprio Nada. Não é preciso que
uma neutralidade absoluta (em seu seio) só possa ser pensada como ataraxia.
Aqui, a própria neutralidade do Nada é desejante.
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* * *
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O Sexo dos Anjos
* * *
* * *
15. Tal castração primordial se impõe por uma dissimetria entre e Ã, pois
que a simetria A/Ã, posta por , fica definitivamente prejudicada porque Ã
não há.
* * *
* * *
17. Essa dissimetria (castração) primordial é “de fato” mas não “de direito”.
Dissimetria de fato: porque à não há. Donde ser Um; primo, solitário,
sem par.
Simetria de direito: pois embora não haja Ã, A o requer – há desejo de
não-haver em .
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Motu perpetuo
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20. Seria pobreza da ciência (da física, p.ex.) supor que a neutralidade absoluta
da absoluta entropia, do Nada, seja estática. O panorama é bem diverso se aco-
lhermos o postulado (que aqui se faz) de que esse Nada é desejante – de que o que
Há ( ), mesmo em neutralidade absoluta, deseja não-haver. Isto é dizer, para
a Física, que seu universo pode ser pensado como primordialmente dissimétrico
(externamente), embora no seu seio (internamente) ele seja simétrico.
* * *
21. No seu seio, é simétrico, ainda que isto venha a se demonstrar funcio-
nando apenasmente no tempo.
* * *
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O Sexo dos Anjos
22. Só há dissimetria:
1) Externa (a qual é de fato mas não de direito) com o que Não-Há.
2) Parciária, isto é, em Modos, em partes de (isto quando Ele se dife-
rencia, em seu seio, como – como veremos adiante. Esta é uma assimetria
regional de ).
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25. Também, é constante, isto é, sua plenitude não cresce nem decresce.
Aparentes acréscimos e decréscimos são aspectos modais de seus Estados.
* * *
26. Ã não é Zero. É algo (ou melhor, não-algo) de impensável, para além da
própria nulidade do que classicamente se apresenta como zero.
Para haver zero, é preciso que haja + 1 e -1. Ora, é Um, e à seria -1,
se houvesse. Assim, só há UM = . É no seio de , em seu estado de à que
o zero vai aparecer.
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Motu perpetuo
* * *
28. Ora, porque não há Ã, dele se aproxima o A sem jamais atingi-lo, isto é,
sem se tornar Ã. Apenas A implode. Haveria uma passagem, um Revirão de
A para à se houvesse simetria de fato entre os dois – mas à é impossível. As-
sim, aí sobrevém, então, um evento de outra natureza: A implodido, mas não
passando para Ã, explode cindindo-se em (leia-se A barrado). Este, aliás, o
Revirão possível para
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O Sexo dos Anjos
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Motu perpetuo
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36. Aqui já podemos resenhar o processo num esquema. Haver começado pelo A
é uma escolha arbitrária na suposição de algum didatismo. O processo, porém, é
cíclico, podendo ser redescrito a partir de qualquer ponto para a ele retornar.
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O Sexo dos Anjos
38. Assim, por vigor do desejo de (causado por Ã), A implode para um
Furo que o explode em que se neutraliza em A, etc., etc., etc. ...
* * *
39. Aí está o Motu Perpetuo em sua mais geral manifestação. Graças, Adeus!
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RSI
2
RSI
40. Aqui trataremos do Real (R), do Simbólico (S) e do Imaginário (I) em seu
vigor PRIMORDIAL.
* * *
41. Já no Esquema (36) podemos ver a aparição trifásica do Haver pelo Tempo,
isto é, no movimento do pelo ciclo do desejo. Nesse movimento aparecem,
como três fases primordiais, fundamentais, os estados do : A, F, .
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O Sexo dos Anjos
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RSI
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49. Mas não devemos esquecer que o furo tem sua própria sistência. Que
o Real está no seio de –que ele não é algo que não-há. Assim, o Real
não é um mero entre A e –ele é um TERCEIRO, do qual depende tanto
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O Sexo dos Anjos
* * *
50. Há, de direito e de fato o que quer que haja em . Ora, em há
o desejo de à –mas não há Ã. “Externamente” a só há Ã, que não
há. Então, Ã há de direito, enquanto pro-posição do desejo de –mas
não há de fato.
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RSI
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55. Será que podemos dizer que aqui –apesar da aparição sucessiva, diacrônica,
dos estados de –há nodulação sincrônica de RSI?
Ora, o que se movimenta é –e seus estados sucessivos, no empuxo
de Ã, não se dão, na plenitude do seio de , sem remissão, a cada vez, às três
153
O Sexo dos Anjos
potências em jogo na sua formação. Assim, para que haja em seu movi-
mento desejante –e ele só há nesse movimento, isto é, no tempo –é preciso
que, RSI, cada qual não se ponha sem os outros: não há um sem os dois outros.
O que é de se representar numa cadeia borromeana mínima –onde R, S, I, não
se amarram dois a dois senão pela nodulação aprontada pelo terceiro. O
comparece, no centro do esquema borromeano aplastrado, como nodulação de
seus estados. E seus estados são gozosos.
* * *
56. Note-se que no Esquema o movimento aparente é de mão única (levógiro
no caso do desenho apresentado). Mas esse sentido do movimento, no que ele
descreve um percurso em Revirão, se reverte, paradoxalmente –com o quê,
tanto faz pensar o como destrógiro ou como levógiro, em seu movimento
desejante: ele engendrará automaticamente duas mãos.
* * *
154
RSI
a R. E assim por diante. Porém, no que I quer passar a R, o que ele faz é pas-
sar a S. Assim como S passa a I. E se R quer passar a S, no entanto é por seu
próprio empuxo contrário que ele passa a I.
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* * *
59. É de se dizer que há (entre A e ) função catóptrica no Real –o qual reverte
(em Revirão) o que quer que o toque.
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O Sexo dos Anjos
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O gozo que há
3
O GOZO QUE HÁ
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65. Devemos lembrar aqui que o empuxo de R atravessa o ciclo por inteiro –
157
O Sexo dos Anjos
ora empurrando como explosão, ora puxando como implosão. E que o evento
em R é o reviramento de implosão e explosão, no choque do desejo de à com
o impossível de passar.
* * *
66. Entre R e S vige apenas uma força: a resultante da explosão em sua insistên-
cia diferenciante em S, fazendo-se inércia de diferimento no seio de S.
* * *
67. Entre R e I vigem duas forças: a inércia explosiva de S, que vige diminu-
indo de S para I; a entropia que, no empuxo dominante de R segundo Ã, vige
diminuindo de I para S.
A resultante, por vigor de à em R, será no sentido de I –ao passo que
a inércia (eco) explosiva de S funciona como neguentropia por todo o percurso
de S até I.
Aqui, matéria e libido se dilatam, isto é, espaço e tempo se mirificam
em eventos da mais complexíssima diferenciação.
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O gozo que há
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O Sexo dos Anjos
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* * *
73. Este expediente propicia duas vertentes: 1) a de fazer sentido –a qual, por
ter que considerar S no sentido de I, acaba por ter que considerar I no sentido
de S; 2) a do sentido dado (ou tido), – a qual mimetiza seu destino, apegando-
se ao sentido já disponível, na evitação do S.
A primeira vertente é a verdadeira de J$ embora, ao termo do processo,
o estado vencedor seja I (por vigor de Ã).
* * *
74. Este expediente não é nem mais próximo nem mais distante de Ã: ele tem
que levar em consideração o Haver, não enquanto afirmação ou negação, mas
enquanto diferenciação e neutralização.
Disto resulta que, nessa complexidade, ele não é um mero entre S e I (entre
Ae ) –ele tem sua especificidade radicalmente diversa de J e de J.
160
O gozo que há
Também não se pode dizer que ele seja uma mistura (com dosagem mais
ou menos intensa para um lado) de J e J –pois que estes dois expedientes
não se misturam em nenhuma hipótese, tendo entre eles a barreira do Real (em
Revirão) –eles são heterogêneos.
É claro que, na consideração da diferenciação (de ), não deixa de
comparecer como fundo (ou origem) a afirmação do Haver, assim como sua
consideração da indefectível neutralização (entropia em A) não deixa de com-
parecer como fundo (ou voto libidinal) a negação do Haver (aliás impossível)
161
O Sexo dos Anjos
–mas este expediente se limita, enquanto tal, entre S e I. S e I são seus limites,
e não seus constituintes.
O Real o acossa tanto na diferença quanto na indiferença, fazendo com
que aí não se possa considerar a diferença sem levar em conta a indiferença
(que virá), tão bem quanto não se possa considerar a indiferença sem levar em
conta a diferença (que se impõe).
* * *
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O campo do sentido
4
O CAMPO DO SENTIDO
76. Este Campo vige entre e A. É o Campo aonde impera o Gozo do Sentido
(J$): seja sentido que terá-sido, seja sentido que será-tido. Contudo, imediata-
mente depois de Je até que tudo se neutralize em A, o que aí vige é –como
Estado de cisão (A1/A2) insistentemente renovada no empuxo de longo alcance
da explosão, subdito entretanto, de modo crescente, à gravidade de A como en-
tropia. O que rege essa entropia (como neguentropia) é aquela insistência de
–a ser “finalmente” anulada apesar do delongado processo de procrastinação.
* * *
* * *
78. Dizer que a cisão é binária (A1/A2) é não reparar no verdadeiro efeito da
explosão (como J). Se a aparência modal da cisão é de binariedade (A l/A2) é
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O Sexo dos Anjos
porque o Terceiro (A0) opera aí, não a cada modo, mas na totalidade do Campo,
fazendo com que cada modo seja subdito ao efeito dessa operação.
* * *
* * *
80. A ilusão que se tem (a da ciência, por exemplo) de que a oposição se resolve
binariamente, se deve ao fato de os modos, observados em sua compleição
particular, e retirados portanto de seu Campo, se apresentarem como são, isto
é, binários no que separados do terceiro que vige no Campo Geral em que estão
mergulhados, mas não vige em sua separação. (Daí, por exemplo, a grande
diferença entre um Saussure e a lingüisteria de Lacan.)
* * *
164
O campo do sentido
* * *
82. Entretanto, foi preciso que, a seu tempo, a ciência viesse a tratar do que nela
comparece hoje com o título de entropia –a qual não é outra coisa senão um
efeito do Terceiro, do Real (F), situando na barra entre Al/A2 aquele Ao até então
desconsiderado. O outro efeito do Real aí no Campo do Sentido é justamente
a neguentropia da repercussão explosiva, assim como o primeiro (a entropia)
é imantação da implosão.
* * *
83. Assim, devemos dizer que o Campo do Sentido, embora esteja situado entre
e A somente, não deixa de sofrer do Real (F) –o Real que ali se modaliza em
duas forças opostas (entropia e neguentropia) na procrastinação do Revirão.
Aí nesse Campo, a bifididade do Furo Real (que impõe Revirão instantâneo ao
ciclo de ) comparece como binariedade ou oposição (entropia/neguentropia)
–mas não devemos escamotear que ambas as forças (com apenas diferença de
intensidade), em função da região em que se operam nesse Campo, comparecem
sincronicamente a cada operação: com sua bifididade, portanto.
* * *
* * *
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O Sexo dos Anjos
* * *
86. Em isto é, em A1/A2, a Barra não é só intervalo, mero lugar entre –é um
TERCEIRO (A0): A1, Ao, A2, ou melhor, + A, A0, -A. Daí Lacan, com intuição
genial, ter espessado a barra entre os chamados (por Saussure) Significante e
significado.
* * *
87. Quando da explosão de A em (pela via de F), o Zero assume ele próprio,
como terceiro, a função catóptrica do Haver. Assim, +1 e -1 não são senão
repetições simétricas (com o que de saída já são três). A repetição simétrica aí
(positivo/negativo, ou entropia/neguentropia, se quisermos) é função suces-
sor (l) para os dois lados da simetria. O Zero aparecendo aí como o único
“número” real, capaz de reduzir ao simbólico a série dos números em sua bífida
orientação ().
* * *
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O campo do sentido
* * *
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O Sexo dos Anjos
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* * *
92. Dada a explosão de uma massa inerte e homogênea, nada obriga que a força-
explosiva aja de modo a fracioná-la em partes iguais. Assim também como a
re-explosão subseqüente de suas partes (pelo empuxo da inércia explosiva de
) não se obriga a fracionar as partes em sub-partes iguais, assim como não
obriga que as re-explosões se dêem simultaneamente.
168
O campo do sentido
Começa aí uma dissimetria –que não fez mais do que repetir, em eco, a
dissimetria fundamental que há entre A e Ã, o qual, embora seja, de direito,
o seu simétrico, na verdade, em não havendo, dissimetriza de fato o Campo
do Sentido.
Como disse, nada obriga que a força explosiva, que age sobre A, as-
sim como a força implosiva agindo sobre , se exerça igualmente em todas as
partes do A em sua fragmentação.
* * *
* * *
94. Haverá simetria no tempo? Sim. Entretanto, qualquer lapso temporal entre
dois simétricos estabelecerá, imediatamente, uma dissimetria no conjunto, isto
é, no mesmo Halo. Nem por isso os dois alelos deixam de ser consideráveis
como simétricos (no que avessos por alguma catoptria), dispensada a dissimetria
temporal. É esse elemento de dissimetrização do simétrico que funciona como
o A0 que devesse ser adicionado a Al/A2 para o retorno da compleição. Entre
os dois alelos de um Halo em Revirão, há que considerar o terceiro que vige
no lapso irredutível do seu avessamento.
Assim também como podemos considerar que nem por serem simétri-
cos, em avessamento, os alelos têm que ser iguais. Considere-se, por exemplo,
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O Sexo dos Anjos
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Nobodaddy
Terceira Parte
PLEROMAQUIA
2º Semestre 1986 (2)
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O Sexo dos Anjos
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1
NOBODADDY
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O Sexo dos Anjos
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Há sempre lugar vazio para ser ocupado por algum pai. Mesmo porque
o tal pai, o tal que Freud inaugurou dando-lhe o apelido correto de pai morto,
não é outro senão esse que se resume nessa palavra-poema, de William Blake:
Nobodaddy. Por uma simples razão: que esse pai não é outra coisa senão repre-
sentante do Impossível Não-Haver. Não é lugar vazio; ele é Morto de vazio. Só
como vazio é que ele é morto. Portanto, o lugar é ocupável.
Em nosso Esquema, esse nobodaddy não é senão aquele que com
esse título é o Nome do Pai. O nome que Blake deu ao pai; o Nome do Pai,
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Nobodaddy
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O Sexo dos Anjos
no retrato dos físicos, a explosão, enquanto tal, o Big-Bang, nada tem a ver
com o processo de diferenciação, o qual exige queda de temperatura. Ainda que
seja um zero seguido de quarenta zeros na escala cronológica dos segundos, é
esse átimo aí que se chama de explosão, de gozo-fálico. Eles sabem distinguir
isto do processo de diferenciação, que vem em seguida, quando já começam
a se separar as estruturas maiores, os grandes elementos. Aí já é preciso um
mínimo de entropia, um mínimo de resfriamento, num zilézimo de segundo, e
a partir daí, então, começa o processo de diferenciação que não é senão aquilo
que apontei no meu Esquema como entropia. Depois que entramos na explosão,
gozo-fálico, imediatamente a entropia já começa a comer. Há aí um jogo de
entropia e neguentropia, que já é da ordem da diferenciação. E assim, o processo
de diferenciação depende de dois momentos: o da entropia e o da neguentro-
pia. A pura e simples explosão, que é absolutamente anti-entrópica, ela ainda
não diferencia, ela só explode. Então, sem um mínimo de Imaginário, não há
diferença. É preciso Real, Simbólico e Imaginário para se fazer diferença. Sem
um mínimo de pressão do Imaginário sobre o Simbólico e de pressão de Real
sobre o Simbólico não há diferença. O Simbólico não faz diferença sozinho.
Não teria como.
Desde a vez anterior que venho tentando entrar, devagarinho, no
CAMPO DO SENTIDO. Vamos continuar hoje, ainda, devagar. O Campo do
Sentido, entre e A, entre Simbólico e Imaginário, é esse grande campo do
jogo das diferenças no eco de sua repetição e na tendência de sua relação. Esse
pólemos do universo, quando ele está nessa em que está, entre duas forças. Não
é pelo fato de ele estar no jogo, segundo o Esquema proposto, entre Simbólico
e Imaginário que o Real deixa de empuxar (de estar presente no empuxo) para
o Não-Haver. Constantemente lá está o Real criando caso, explodindo para
cá, implodindo para lá e forçando, portanto, as duas energias do pólemos do
Simbólico: a força entrópica e a força neguentrópica, a força de diferenciação
e a força de indiferenciação. O Simbólico vive desse joguinho, o Simbólico
tout-court ...
E no seio (isto é que é espantoso) desse Campo do Sentido, não se
sabe por que cargas d’água aparece um havente perfeitamente pertinente a
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Nobodaddy
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O Sexo dos Anjos
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Nobodaddy
a sua espécie. E Deus viu que isto era bom” – outra vez. “Deus os abençoou
e os bendisse: frutificai” – disse Ele. É o tal eco da explosão da diferença – ,
“multiplicai-vos, enchei as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre
a terra. Sobreveio a tarde, depois a manhã. Foi o quinto dia”.
“Deus disse:” – não pára de dizer – “produza a terra seres vivos segundo
a sua espécie, animais domésticos, répteis e animais selvagens segundo a sua
espécie. E assim se fez. Deus fez os animais selvagens segundo a sua espécie,
os animais domésticos igualmente e da mesma forma todos os animais que se
arrastam sobre a terra. E Deus viu que isto era bom”.
Então, “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança”.
Esta é a grande diferença. Nunca Ele dissera isto antes. “Que ele reine sobre
os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre
toda a terra e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra. Deus criou o
homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, criou-os Homem e Mulher.
Deus os abençoou e lhes disse: frutificai!” – Ele não disse que era bom. Sabem
por quê?: porque não era mau, nem bom também...
“Multiplicai-vos, disse Ele, multiplicai, enchei a terra e submetei-a.
Dominai os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se arrastam
sobre a terra. Deus disse ainda: eis que vos dou toda erva que dá semente sobre
a terra e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas as suas sementes,
para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves
do céu e a tudo que se arrasta sobre a terra, em que haja sopro de vida, dou toda
a erva verde dos alimentos. E assim se fez. Deus contemplou toda a sua obra
e viu que tudo era muito bom” – aí Ele incluiu tudo. Era bom demais. Não era
à toa que aquilo se chamava Paraíso. “Sobreveio a tarde, depois a manhã. Foi
o sexto dia. Assim foram acabados os céus, a terra e todo o seu exército – já
existe uma guerra? “Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito,
descansou do seu trabalho” – passou a bola, certamente, para os homens. “Ele
abençoou o sétimo dia e o consagrou, porque nesse dia repousara de toda obra
da criação.” Tal é a história da criação do céu e da terra. Fácil, fácil, simplezinho,
acabou. Aí apareceu o tal Paraíso. E veio, depois, a culpa original.
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* * *
Lacan deu indicações, num texto, justo no texto onde fala da palavra
árvore, mostrando que é a relação sincrônica e diacrônica que vem... árvore,
árvore, árvore... que não é outra coisa senão aquela que fica no meio, bem no
meio, do Real. É a árvore da proibição, que tem a ver com o Nome do Pai,
por causa do impossível Não-Há. Alguma coisa aconteceu a esses caras, os
fundados, e eles sofreram do mesmo sofrimento de Deus. Não esquecer que,
com toda razão, Deus disse que eles eram feitos à sua imagem e semelhança.
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Então, isso aí, eles dizem que é um rebuscamento, vem da maniera italiana
(dizem até que o Barroco é menor). Mas não seria esse Maneirismo a única
dessas escritas – apesar de estar marcado por essa coisa do belo, ainda que
situado no discurso da mulher, quer dizer, ainda que fazendo dupla referência
– que tenta pensar esse terceiro elemento?
Eu diria que se alguém fizer um estudo bem apurado do Maneirismo
– justamente nessa dupla vertente de puxar para o feminino quando se está
homossexual demais, puxar para o masculino quando se está louco demais, e
também com grandes períodos de ampla equivocação –, verificará com certeza
que todo esse fenômeno maneirístico não é senão o Angélico enquanto tal. Você
deu mais ou menos uma situada no feminino, porque faz referência ao falo e
ao furo, mas eu diria que não, que é o próprio sistema do gozo-do-Outro, no
feminino, em referência ao furo radical, tanto do ponto de vista do Não-Haver
quanto do furo Real com o qual vai esbarrar, como a referência ao gozo-fálico,
porque é por onde, como creodo, que o movimento que sustenta o gozo-do-
Outro vai ter que passar. E observe que gozo-fálico não tem que, em seqüência,
esbarrar em gozo-do-Outro, ele esbarra no Sentido, na diferença. Eu não poria,
do meu ponto de vista, o Maneirismo no feminino. Prefiro botar essa vontade
barroca naquilo que do Barroco visa algo de místico.
P – Mas o Maneirismo fica entre os dois, entre o feminino e o masculino.
Mas isto, a meu ver, é a visada dos autores que encaram o Maneirismo
na sua vertente (deles, autores) neurótica. Porque a obrigação angélica – coisa
que retomaremos – é que é o preconizar um sentido tido, um sentido dado,
já dado. Mas quero dizer que a cura da neurose instala o sujeito no Angélico
puro, ou seja, no sentido a se dar, a se fazer. A estratégia que o Maneirismo
faz com isto – e não vamos dizer que não há Maneirismo neurótico, porque
há –, se houvesse o Maneirismo purificado de neurose, seria não permitir a
tendência, o tendencioso. Então, ele fica na com-sideração desse furo, porque
vive nesta estratégia. Ele pode passar. Os outros é que não podem. É aí que
ele é angélico.
P – É, porque ele se coloca como aquele que anuncia aos outros o desencanto,
o desconcerto.
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P – Por aí, poderíamos dizer que tudo que sabemos sobre o que ele suposta-
mente faria, é simplesmente porque ele escreveu após um insucesso meio difícil
de explicar num perverso, literalmente existente.
É uma via.
P – Estou cogitando de colocar a questão da obrigação. Onde podemos
dizer que há obrigação? Ele escreve transparecendo que ocorreu com ele uma
obrigação, isto é óbvio. Filosofia na Alcova, isto é explícito. E o que faz, talvez,
Lacan desconfiar que não ocorreu. Ele realmente é empenhado em descrever
que de algum modo essa obrigação fálica é relativa a ele, embora ele tenha
explicações da vicissitude para dizer que foi malsucedido. Mas as explicações
são para o seu insucesso, e não para o seu culto à obrigação fálica.
Não estamos tratando do senhor Alphonse, estamos tratando dessa obra
chamada Marquês de Sade.
Era estrategicamente necessário a Lacan, a seu tempo, fazer tal tipo de
percurso, sem o qual eu não poderia nem pensar no meu. Então, vamos livrar
a cara do velho, porque ele estava com as razões. Mas a minha questão con-
tinua: haverá algo da mesma cepa, embora inversa, do misticismo, nesta área?
Por mais que o místico tente habitar o gozo-do-Outro, ele não está habitando
ali. Ele está habitando o Campo do Sentido. O misticismo funciona mesmo
na evitação do fracasso, na delongação do seu percurso para o Não-Haver. O
que é coisa inteiramente diferente de já partir da explosão, já partir do gozo-
fálico. Minha questão é: será isto necessariamente perverso, isto tem uma
vertente perversa de fixação – aquilo que chamei de aprisionamento do Nome
do Pai no objeto, o perverso propriamente dito – ou é a insistência em querer
desvendar a própria cepa desse gozo-fálico? O que é outra coisa: seria aquilo
que acontece no misticismo, mas numa outra região. Portanto, uma estrutura
completamente inversa.
P – Mas isso pode ser lido como sublimação.
Isso pode ser lido como SUBLIMAÇÃO no percurso da obra, dentro
do gozo-do-Sentido. Do ponto de vista do escritor, angelicamente falando, isto
é sublimação...
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P – ...e aí não pode ser lido como sublimação, porque sublimação nem em
Freud nem em Lacan remete a sentido, e menos ainda a gozo-do-Sentido.
Nenhum deles falou nisso. A sublimação, no Mal-Estar na Civilização, está
ligada à questão da satisfação, que é uma questão pulsional, é a motivação
autoral. Isto é o que ficou demarcado como sublimação. E aí a IPA criou a teoria
da rolha de poço, dizendo que a sublimação era uma transferência de libido
que dava origem a textos, a obras. Não é isto que Freud faz no Mal-Estar.
Elevar o objeto à dignidade da Coisa exige uma intencionalidade quanto
à pulsão de morte. Então, a Coisa é equívoca. Não que o Angélico não pudesse
praticar isto, a sublimação, a partir de referência ao gozo-fálico, insistindo nessa
referência. Mas não dentro dele. O que é possivelmente sublimatório na obra do
Marquês de Sade é que o material a sublimar, insistido na freqüência do gozo-
fálico, por via de obra, é no sentido, dentro do Angélico, na vocação da pulsão
de morte. Mas o que estou colocando é algo um pouco mais difícil de dizer:
como posso reavaliar aqueles que insistem, assim como o místico insiste na sua,
na averiguação da ordem divina do gozo-fálico? Uma coisa interessante, por
exemplo, na fala do repórter de ontem, naquele Globo-Repórter, era a angústia,
que ele conseguiu transmitir para quem soubesse escutar, dos físicos, quanto a
esse pedacinho aí que a gente ainda não sabe dizer nada sobre ele, que eles só
sabem dizer no Campo do Sentido, no campo da diferença. Quero supor, junto
com Sade, com Bataille, com Sollers e com outros, com o pensamento oriental,
por exemplo, que, apesar de toda a aparência ou até mesmo de existência de
perversão aí nesse campo, há algo da ordem da intencionalidade angélica de
dar conta do Masculino. E isso é verificável na obra clássica, por exemplo.
É da ordem de se dar conta disso para o que Aluisio Menezes chamou aten-
ção, de se dar conta de como é que isso vem dar em Traço. Como vem o traço,
marca, após a experiência do Real? Como há Fiat? Onde é que há criação? Não
há criação no pensamento místico. Não estou dizendo que o místico não crie,
por tabela, e sim que o pensamento místico não está interessado na criação. Está
interessado na destruição. Aí a gente pode botar o Mallarmé na ordem mística:
“A destruição é minha musa”, dizia ele. Isto é o quê? O desejo de chegar a
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Não tenho que desvalorizar o que não é sublimatório; não é preciso. É preciso,
talvez, revalorizar a possibilidade do Masculino – não obrigatório – e que é o
Criativo, como nos mostra o I Ching.
P – Pinta uma distinção. Em Freud, a questão da sublimação se limita ao por
que escrever. Por que escrever? Não se trata nem do escrito, nem do efeito do
escrito. Nesse sentido com que estamos acostumados a lidar, como imaginari-
zação do simbólico – que você, na sua obra, diz que é lugar de analisando – , é
o efeito social, portanto cultural e superegóico, do escrito. O escrito, enquanto
tal, de caráter simbólico, também não é sublimação, embora você possa dizer
que ele é um efeito de sublimação.
É prova de gozo.
P – Mas ele não é utopia, não é efeito de afirmação de sublimação. Ele é
efeito para aquém do processo de sublimação.
Ele é prova de gozo-do-Sentido. Mais nada. O escrito é prova concreta
desse gozo... aliás, a única. Portanto, ele é prova concreta do fracasso da sublimação
em elevar, de fato, o objeto à dignidade da Coisa.
P – Sade tinha o projeto de perpetuar o crime, mesmo que ele parasse de
agir. Ele sonhava com um crime único, que esse crime...
...ecoasse pela eternidade...
P – ...sim, o Caos eterno.
Que crime é esse, senão a criação?
P – Mas não pode ser o Caos sonhado e que por ser místico fracassado ele
caísse no gozo-fálico?
Não acho.
P – Acho que é o contrário.
Você está atribuindo a Sade um aspecto de místico fracassado?
P – Isso. Se ele sonha com destruição perene, ele também está imantado pelo
mesmo real do místico. Se ele sonha com essa destruição perene que ecoasse
ao infinito, esse crime...
Mas por que destruição? Acho que ele não fala em destruição.
P – O crime é marcação. Ele escreveu alguma coisa. O crime aí é a criação.
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Quem sabe conseguimos, com isto, dentro de algum tempo, fazer uma
diferença radical entre o que é da ordem do poético e da ordem do místico? O
poeta habita esse Campo. No que ele pede e apoia a criação, só pode manejar
isto de dentro do gozo-do-Sentido e na “visão” do gozo-fálico. É claro que
para ter a visão do gozo-fálico, tem que ter a visão do gozo-do-Outro. Mas na
afirmação do fiat. O que é diferente do místico, que também está na mesma
ordem do sentido, mas na afirmação do caos.
P – Se pegarmos uma fórmula da Santa Tereza, “para se assegurar, trata-se
de não se segurar”.
Santa Tereza é a grande mestra disso sobre o que estou falando. Ela tem
a fórmula lapidar para explicar meu Esquema, quando, desde o lugar do místico,
na vocação do gozo-do-Outro, nos diz: “Morro de não morrer”. Ela confessa:
“O que eu queria era poder morrer mesmo, mas isto não é possível. Se não é
possível, eu morro de não morrer. Mas o que eu queria era não-Haver”.
P – Será que haveria avesso para essa proposição? Eu estava pensando
justamente nesse assegurar-se sem se segurar. Dava para poder entender por
aí. Se faço a inversão, fica: segurar-se para se assegurar, que é da ordem do
gozo-fálico.
Não sei se posso endossar plenamente a fórmula. Segurar-se para se
assegurar garantiria um apagamento do TRAUMA. O gozo-fálico é conseqüente
a um trauma. E do trauma só posso dar conta depois. Não posso me segurar
no trauma. O trauma é da ordem do que antecede o gozo-fálico. É preciso o
trauma. Então, há um não-sabido.
O traumático, de o gozo-fálico só vir de passagem por esse Real, me
deixa ali numa posição de insistência num estrito gozo-fálico, sem poder dar
conta do traumático. A passagem pelo furo é o trauma por excelência. O gozo-
fálico é filho do trauma. Por isso Lacan dizer que ele depende do significante
que o causa. Não posso fazer outra coisa, senão selar com o significante esse
lugar traumático. Em última instância, aquilo que chamamos de Nome do Pai.
E com isto talvez possamos vir a distinguir, com um pouco mais de clareza,
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Pergunta – Não só isso, como ele também disse coisas que não têm nada
a ver...
Sim, mas jornalismo é isso mesmo. Eu não disse nome de pessoas nem
de instituições. Não sou palmatória do mundo. Não estou aqui para ficar batendo
em bundinha de irresponsáveis. Posso apenas, como fiz, chamar atenção para
o fato de certas incompatibilidades.
Bom, como efeito disto, o diretor do Colégio, Potiguara Mendes da
Silveira Jr., já mandou uma carta ao Jornal do Brasil, chamando atenção para o
fato de que eles têm que reconsiderar que o que eu disse pode ser repetido: ele
já transcreveu o que está no gravador e mandou para lá, dizendo que os nomes
de pessoas e instituições são da alçada do jornal. Enviou também a mesma carta,
como cópia, à instituição supostamente agredida. Não estou aqui para corrigir
a casa dos outros; para corrigir a psicanálise, sim; mas a casa dos outros, não!
Assim como não admito que peru de fora meta o nariz na minha casa.
Mas o que me deixou mais perplexo... isso tudo são acidentes de
trabalho, de percurso... o que me deixou mais perplexo foi eu ter escutado a
seguinte coisa, e quero chamar atenção porque essa fala pode ser exemplar
para certo sujeitos. É que alguém chegou para mim e disse: “Como você me
diz uma coisa daquelas no jornal?”. Primeiro, que eu não disse nada daquilo no
jornal. Mas, a pessoa continua: “Não há nada na teoria psicanalítica que diga
que não se pode torturar. Isso aí é uma opinião sua, você é contra, mas não há
nada na teoria que diga isso”. Fiquei perplexo na medida em que são pessoas
que lidam, ainda que de longe, com o Colégio Freudiano: já estou com medo
de vir a ser torturado. Já estou ficando com medo, porque se isto é exemplar...
Vamos começar a estudar tudo de novo. Eu poderei me dar ao trabalho, se vocês
quiserem (não hoje), de demonstrar que é absolutamente incompatível. E acho
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que não é preciso eu mesmo fazer isto. Não é um gosto meu. É absolutamente
incompatível com o pensamento psicanalítico que se possa retirar a verdade de
alguém debaixo de porrada. Debaixo de porrada você pode até enfiar alguma
coisa. Tirar, não vai tirar nada.
P – A tortura, como foi feita várias vezes, não foi nem mesmo para retirar a
verdade de alguém.
Foi para coonestar a verdade suposta, de certos grupos. Mas peço que
vocês reflitam sobre isto e informem, se descobrirem (antes que eu tenha que
explicar), a todos os colegas que isto é absolutamente incompatível, e teorica-
mente. Não é uma questão de gosto estético ou ético. Mesmo porque (alguma
coisa que está, aliás, no texto do jornal) seria simplesmente supor que a relação
sexual é possível.
P – Se a tortura fosse método, ela acabava com as entrelinhas.
Claro, acabávamos com o Inconsciente. Era só torturar todo mundo, e
pronto! Acabava-se com o problema de haver ato falho.
P – E Deus teria aparecido, pronto!
E Deus podia comparecer, pessoalmente. Ou bem a gente acredita ou
bem não, que há Inconsciente e, portanto, nenhuma tortura o resolve. E muito
menos é permitido pensar que o Inconsciente se dobrasse a isso... Como é?
Já não se pode mais mentir? Até sem saber se se está mentindo? O que um
torturado pode fazer senão mentir? Nada mais senão mentir.
* * *
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emergir, no seio do falante, como Sujeito. É essa função fálica, Deus desejante,
que vai emergir no seio do falante como Sujeito. Quem deseja (no seio do
falante)? O desejo é atribuído a quem? A um Sujeito. O Sujeito, na atribuição
do desejo, está em pleno gozo da função fálica. Então, no seio do falante, dessa
função fálica (que é a função desejante tornada significante, a função fálica
divina), o falante vai emergir como Sujeito, Sujeito do desejo.
P – Esse ponto que você acabou de precisar, há uma passagem no Seminário
da Angústia, de Lacan, em que ele coloca a seguinte imagem para poder
situar a diferença entre significante e sujeito: há significante para indicar o
surgimento do sujeito. Ele fala de um significante alado que vem e faz furo
nesse significante conjunto, e esse furo é o nascimento do sujeito. Lendo o teu
Esquema, esse significante alado seria um movimento da ordem do desejo, ou
seja, do Não-Haver. Porque, no momento em que ele bate sobre o significante,
que é o campo do Haver, ele faz furo. Por conseguinte, ele faz diferença entre
o significante e isso que é furo e, enquanto tal, é sujeito.
Então aparece a referência ao Real. No momento em que, no seio da
binariedade, que é o Campo do Sentido em termos de Haver, reaparece, em
referência ao Real, o furo que Lacan quer que seja de um certo significante
alado (o que importa, para mim, é que reaparece esse furo), então, pinta Sujeito.
Agora, precisamos saber qual é a densidade, qual é a espessura desse furo...
Isso que costumamos chamar de a (minúsculo), que se traduz em objeto,
fica sendo então, lá no campo do falante, no seio do Sentido, nada mais nada
menos do que – e por causa dessa re-emergência de trindade, dessa emergência
na trindade – letrinha que é apenas, que designa apenas o representante da falta.
No que isso aparece a três-por-dois, quer dizer, a trindade reaparece no seio
da binariedade, aquilo que era falta para o Haver, reaparece como falta modal,
instalado como a. Esse sentimento de falta que, na verdade, não há, porque o
que falta mesmo é haver falta, pois a falta do Haver é não haver Não-Haver.
P – Somos todos fóbicos.
Eventualmente... por que não? Não a fobia tal como aparece, no falante,
como patologia, no Campo do Sentido. Mas, enquanto estrutura, o desejo é
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fomentado pela falta de falta, porque o que falta, realmente falta. Falta inclusive
faltar – é tão radical assim. lstozinho que chamamos de objeto a, de a minúsculo,
é puro representante da falta. Isto é, do Não-Haver. É um substituto representado
modalmente: esse tal furo, que há no Haver, reaparece no modal dos falantes.
Os falantes não totalizam isso porque têm um prazo. Eles têm seu mal-estar na
carne. Além do mal-estar na cultura, existe o mal-estar na carne. Esqueceram de
tratar disto na história pregressa da psicanálise: o falante, substancializando-se
em significante, é um mal-estar, porque ele está aprisionado nesse boneco, nesse
fóssil que é o nosso “macacão” hominídeo. É o ressurgimento dessa máquina
ternária aprisionada no fóssil, num animal, encarnada num corpo fossilizado,
no que binário. Esse mal-estar é mais fundamental do que o mal-estar na cul-
tura, pois a todo momento a gente se choca com esse duro na carne que, ela...
ela não ajuda, ela não acompanha os movimentos do chamado pensamento.
Por isso é que se falou tanto, no passado filosófico, da alma; o corpo, a alma,
o espírito, etc., tentando encaixar essas coisas, pois o boneco é mais ou menos
fixado. No entanto, a competência discursiva é veloz, é transparente, é falha,
é todas essas coisas que a gente diz, e o boneco não a acompanha. É preciso
um malabarismo extremo, uma tecnologia complicada. É preciso muita arte
para fazer com que os movimentos dos Haveres nas suas modalidades possam
acompanhar um pouco os movimentos dos discursos. Por exemplo, ir à Lua, ir
a Marte, deslocar esse boneco através dos espaços... Assim mesmo, de maneira
muito precária... Compare-se isto com o que se faz nos sonhos...
* * *
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Vocês viram que dei uma pequena guinada redefinindo Real, Sim-
bólico e Imaginário. Na verdade, quando Lacan apresenta o Simbólico dele,
é no jogo da diferença já dada. E o Simbólico só é bem definível no
pensamento lacaniano no regime da metáfora. O Simbólico puro, o jogo
da pura diferença, é um conceito que ali não tem surgimento, senão
ancorável. É preciso pensar o metafórico para se pensar o Simbólico de Lacan.
Então, postulei um Simbólico que é puro jogo de cisão, para a diferença. Agora
é, lá dentro, articular esse metafórico.
Um significante, pensando numa articulação muito abstrata, ele
é, no nível do pensamento lingüístico, uma marca que funciona por
diferença com outras marcas, mas que não comparece (por exemplo, no
seio da língua) senão encarnado em alguma formação imaginária. Não
é por bobagem que Saussure fala em “imagem acústica”. E, sem o jogo
das imagens, não se estabelece nenhuma diferença. É claro, não estou
denegando que Saussure mesmo podia ter pensado isto e que Lacan o leva
mais adiante. É que o que interessa no conceito de significante é esse jogo da
diferença. Mas acontece que ele aparece encarnado numa materialidade
modalizada, configurada. Então, posso compreender o jogo do significante
como a diferença mais encarnação, embora não possa lhe atribuir significação
fora de um Sistema, fora de uma ordem de diferenças, mas modalizado.
Assim, um significante dado na minha experiência concreta, ele é Real,
Simbólico e Imaginário. Mas a gente fica tratando disso como se fosse a ordem
pura do significante, sem Real e sem Imaginário. Eu quero o jogo da diferença,
um Sujeito substancializado ali no meio, jogando com esses elementos que
são da ordem do Real, do Simbólico e do Imaginário, e se articulam na sua
diferença não só de Real para Simbólico ou para Imaginário, mas com outros
efeitos que o amarram.
* * *
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de Sistema (ST). Não sei se dei nomes bons, mas vamos por aí... Vamos evitar
as definições já conhecidas, como da Teoria dos Sistemas e outras, e pensar
simplesmente que entre o gozo-do-Sentido, ou seja, a transação equivocante dos
partidos na cisão Simbólica e a intenção da coalescência imaginária, intenção de
gozo, como gozo-do-Outro no desejo de singularização, enquanto projeção para
o Não-Haver, o gradiente de diferença que se oferece é de caráter sistêmico.
Prefiro este termo de Sistema por causa da idéia de sistência que bem
cabe aí. Quando se trata de explosão e interação, penso em termos de Articu-
lação. Quando penso em termos de Sistema, já não estou articulando, já estou
considerando a interação e o seu fechamento. Interação e singularização. Aquilo
se torna Sistema, é sistente.
Entre o gozo-do-Outro e o gozo-fálico, é o que poderíamos chamar de
Traço (TR). Será que é válido chamar isso assim? Veremos... Uma referência de
gradiente entre o que é da ordem do explosivo e do implosivo, é uma diferença
drástica, catastrófica. E isto, no seio mesmo do Haver, é experiência do encontro
com o Real, um tento, uma batida. Na experiência do falante é tiquê. Tiquê é fun-
dadora, marcadora de traço-unário. Ou seja, o que é pensável como traço-unário
vige na Articulação entre gozo-do-Outro e gozo-fálico, catástrofe nessa oposição
radical. Uma porradita de encontro faltoso com o Real, marcando tento: Tiquê.
No caso da fundação de um Sujeito, é uma certa marca. No caso da
fundação de uma partícula subatômica, também. Pega-se um animal e se vê
isto com certa clareza. Para nós já fica mais difícil, porque gente já tem outras
atrações, Mas na conjuntura de Sistema-Traço-Articulação, as modalidades
se definem. Podemos ver que, na segunda fila do nosso quadro acima, cada
um dos expedientes, decorrentes de Real-Simbólico-Imaginário, é efeito de
interseção de apenas dois estados. O gozo-fálico é só Real com Simbólico.
O gozo-do-Sentido é só Imaginário com Simbólico. O gozo-do-Outro é só
Imaginário com Real. A partir da terceira coluna, o que quer que compareça já
é Real e Simbólico e Imaginário, pois o que é gradiente de Articulação entre
gozo-fálico e gozo-do-Sentido, por exemplo, é, por sua vez, formado de Real
e Simbólico e Imaginário. O Sistema, que é também referência de gradiente
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Esta experiência de hoje diz respeito a algo que sempre me soou como
da ordem do recalcado na história de Freud com a psicanálise. Ouso colocar
essa dúvida atrás da orelha dos analistas. Vocês conhecem o “namoro firme”
que houve entre Freud e Fliess. Namoro que se tornou, no só-depois, só-depois
da primeira análise, aquela que Freud conseguiu propiciar no lugar de analista,
tornou-se fundamento, ou protótipo para o evento psicanalítico. A tal ponto que
Freud chega mesmo a garantir por escrito que a psicanálise não existiria sem
o tal Fliess. Fliess é delirante em seus escritos, nas coisas que faz, e que Freud
ajudou a fazer, questionadíssimos. A relação que Fliess queria estabelecer entre
os órgãos genitais e o nariz... Coisa de que não sei se a gente deve rir, porque
não há prova em contrário.
Pergunta – A cafungação está aí.
A cafungação ali era aconselhada. Uma terapia prescrita. No caso, por
exemplo, da masturbação que afetava certos nódulos nasais do Fliess. Então,
cocaína nele! Não sei o que isso tem a ver com a cheiração contemporânea...
mas quem sabe? O próprio Freud andou por ali...
Bom, a questão não é esta, e sim que há um recalcamento brusco,
repentino, e parece que duradouro, das relações “nasais”, digamos assim, de
Freud com Fliess. Temos as cartas de Freud a Fliess. Certamente que Fliess
guardou as do outro com muito carinho. Ninguém acha as cartas de Fliess para
Freud. Isto é muito interessante, se não for Unheimliche. Aquele negócio de
esfregar nariz. Suspeito mesmo que Freud tenha rasgado esses documentos. Fico
devendo, se encontraram os papéis. Faço a suposição de que ele exterminou
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não tinha nenhum cheiro. Nasceu assim. As babás o rejeitam, porque parece
filho do diabo. Isto não era preciso. Para o autor fazer a demonstração, isto me
pareceu rebarbativo. Mas ele realmente demonstra a possibilidade da situação
de um objeto a e de um movimento pulsional de que a gente se esquece. Ficou
recalcado, no campo da psicanálise, mas comparece no divã. E comparece na
história da gente, nos cheiros fundamentais...
P – Isso é da ordem do respiratório.
Todo o processo é respiratório... e nos esquecemos dessa coisa que o
romance, como tese, nos devolve de um grande mundo dos cheiros. Um mundo
dos cheiros de que a gente não fala. E que vai dar nessa grande indústria do
perfume, na tradição milenar das essências, etc. Isto é fundamental, me parece
um recalque na história da psicanálise: não se fala mais nisso, já que deu merda
no começo. Mas é preciso recuperarmos o aroma como objeto a minúsculo. É
alguma coisa. Esse autor mostra esse princípio de relação entre as pessoas, de
aproximação, de afastamento, de que você não se dá conta. Ele diz que é da or-
dem do aroma. As pessoas não se dão conta disso. O cheiro como significante,
repito: o cheiro como significante. Às vezes temos repelência por um certo odor,
atração por outro. Cada um deve ter também o seu cheirinho mais precioso.
Há vocações eróticas e gozantes as mais unheimlíchicas. Nós, brasileiros, por
exemplo, a gente nunca vai ficar livre da beleza do budum. Está nos textos de
Gilberto Freyre. Havia, por exemplo, entre os senhores de engenho, no nordeste
– isto me lembro que está num texto de Gilberto, não sei se em Casa Grande –,
uma dificuldade erótica dos filhos do Senhor de Engenho: eles se casavam e
broxavam na noite de núpcias. Então, as jovens esposas eram aconselhadas, por
suas mães, a vestirem as roupas usadas das crioulas da favela. Porque se não...
P – Não é da favela, é da senzala.
É. Da senzala. É a mesma coisa. Eu não peguei a senzala, eu só tenho
a minha família. Não peguei, infelizmente. Cada um goza como pode...
É interessante isto: uma prova que não é ficcional. Gilberto conta isto
como um fato corriqueiro.
P – Na Alquimia, a experiência com os textos alquímicos é justamente a de
se ficar numa sala fechada, com um cadáver, até o momento em que desse
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ervas secas. Ele cheirava assim a dez metros. Sabia-se quando ele estava dentro
do quartel. Ele fazia questão daquela sua presença aromática. Acho que há uma
certa urgência de reintroduzir isto... Se não do lado dos Coronéis, ao menos do
lado geral dos narizes, quando a coisa feder de novo.
P – Mulher ciumenta transa muito isso de cheiro.
O ciumento, de qualquer sexo ou idade, sabe exatamente qual o cheiro
do Outro.
P – Esse último livro do Garcia Márquez é todo em cima disso. Ele saca pelo
“sniff, sniff”.
O “faro” é uma metáfora extremamente importante. O Faro, para o
psicanalista, existe. Não que seja necessariamente nasal. Mas deixemos...
* * *
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falando dessa vontade sistêmica, essa vontade de referência recíproca, que não
é necessariamente biunívoca, aos elementos.
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está sendo chamado aqui de Sistema, Articulação e Traço, são arestas, as três
novas arestas surgidas com esse tetraedro constituído por Real, Simbólico e
Imaginário como faces. Gozo-do-Outro, gozo-do-Sentido e gozo-fálico, além
de Sistema, Traço e Articulação, como arestas desse tetraedro.
* * *
Surge ali um plano novo. Isto terminou na terceira coluna. Esse tetraedro
morre na terceira coluna. Então, posso supor uma série muito grande de eventos
dentro do Campo do Sentido – considerado como Campo do Sentido divino,
ou seja, do Outro enquanto está nesse estado –, do A-Delta enquanto se mani-
festando nesse estado. Digamos, em estado de Natureza. Há, então, uma série
infinita de eventos que não precisam de mais do que as razões desse tetraedro
para existirem na fundação dessa nova face, dessa quarta face do tetraedro. Ou
seja, antes ainda que apareça o fenômeno do falante, posso considerar que os
elementos modais da chamada physis, da chamada Natureza, inclusive os
próprios animais, se podem compor suficientemente nessa razão tetraédrica,
quer dizer, podem ser considerados a resultante, como quarta face, dessas conju-
gações. A partir da terceira coluna, Real, Simbólico e Imaginário já se repetem.
Qualquer elemento, daí por diante, já é Real, Simbólico e Imaginário.
Então, podemos considerar uma série infinita, senão mesmo toda a
série de eventos ditos naturais, como estando por ali. É possível talvez repre-
sentar assim, a emergência do falante que, ao invés de ser, como supúnhamos,
re-emergência de Real, Simbólico e Imaginário, é re-emergência dos Gozos,
o segundo ciclo dos Gozos.
Primeiro ciclo: Real, Simbólico e Imaginário. Aparecimento dos Gozos.
Aparecimento desse produto cartesiano novo que inclui em cada elemento já
necessariamente Real, Simbólico e Imáginário, cada um deles. Então, está aí
tudo que há como Real, Simbólico e Imaginário, excetuado o falante. Este
esquema me situa no lugar de dizer que re-aparecimento do falante pode ser
considerado como re-emergência desses Gozos em outro nível. Ou seja, o Su-
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jeitinho que vai aparecer e que não há nos elementos componíveis até aqui, é
re-emergência decadente do Sujeitão suposto ao A-Delta. Apenas suposto pelo
Sujeitinho. Apenas suposto, por comparatividade, de cá para lá. Porque a gente
supõe um Sujeitão, Há-Deus.
P – E a paranóia escreve isto literalmente. A suposição de escrever a língua
de Deus.
Sim. É quando se projeta de cá para lá. Não só a paranóia como também
a transferência. A imputação de sujeito-suposto-saber não deixa de ser certa
deificação de alguém, certa projeção desse lugar subjetivo, no nível do falante,
para um Sujeitão.
Qual a vantagem desta representação, desta representação cartesiana?
É que posso suspeitar que algum evento novo – novo na série, não na história
– vem possibilitar uma nova ordem de produção, tipo produto, sobre esses
elementos que já estão completos e funcionam no seio da chamada natureza.
Alguma coisa complexifica de tal maneira que um produto novo, um produto
cartesiano novo vem se propiciar, de tal maneira que posso ter, por exemplo,
Articulação com Sistema, e gerar um determinado produto cartesiano como
lugar dele. Ficamos numa situação difícil quando Lacan passa da experiência
da escuta e diz que o Sujeito é um lugar que ele põe no Real. Coisa intersticial.
Sujeito comparece, na esquemática de Lacan, apenas como representado de S1
para S2. Tudo bem! Lacan não parece meter o nariz ali diretamente, embora
eu suspeite que se fizermos dele uma leitura com desenvolvimento disto, che-
garemos lá. Vamos ver que ele mete sim. Ele procura assentar esse tal Sujeito
em certos atos. Mas, para ser rigoroso, ele diz que “o Sujeito é representado
de um significante para outro”. E que “o significante é aquilo que representa
o Sujeito”. Ele deixa o Sujeito nesse limbo aí, nesse buraco. No seio desses
significantes, tal como situados por Lacan, o comparecimento só pode ser este,
porque Sujeito, se não é significante, não se exprime diretamente. É expresso
por esse gap e representado de significante a significante. O que pode enriquecer
alguma coisa aí é o fato de que, pelos pratrásmentes da formação do Sujeito,
posso suspeitar que esse lugar onde Sujeito virá a comparecer como represen-
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tado de significante para significante, esse lugar é fundado por esse produto
cartesiano que anuncio.
O Sujeito, só-depois da significância, se representa de significante
para significante. Só-depois, da significância, da emergência do trato signifi-
cante. Mas ele tem lugar substantivo por trás disso, no produto de Sistema e
Articulação. Os quais têm lugar no produto dos Gozos, os quais têm lugar
no produto do que foi referido como Estados: Real, Simbólico e Imaginário.
Isso vai montando uma rede que suspeito possa servir nos lugares onde algum
embasamento para o Sujeito venha a faltar, em nosso patrimônio teórico. Se o
Sujeito só comparece na ordem das cadeias significantes como representado,
sim, de significante para significante, o que se arma no seu lugar para ele vir
a comparecer como representado? A decisão lacaniana é genial, mas é para se
continuar pensando. O que arma um espaço, um lugar para que isto, na ordem
significante, tenha vez? O que arma esse lugar, segundo meu Esquema – se ele
tiver algum valor –, é esse produto cartesiano de Sistema e Articulação.
P – Lacan diz que o Sujeito é emergente.
Porque ele é valor de Traço com valor significante.
P – Que permite a S2 ser metáfora recíproca de S1. Mas para Lacan, ele
emerge da relação de S1 a S2. Então, ele receberia de S2, para emergir, o dom
sistêmico, ou seja, S2 levaria para esse lugar a relação do gozo-do-Outro com
o gozo-do-Sentido. E S1 levaria para ele o dom articulatório, a relação entre
o gozo-fálico e o gozo-do-Sentido. Então, essa sujeito vai viver impregnado
de sentido. Ele recebe sentido por duas vias.
Por duas Vias. Mas uma só valência de Sentido.
P – E recebe gozo-fálico e gozo-do-Outro por uma via só.
É exatamente o que quero dizer. Sendo que J e J têm, também, cada
qual, uma só valência para $.
P – O Sujeito ali é um ponto de interseção entre Sistema e Articulação. No
quadro menor, também. Não há referência do Sujeito ao Traço, porque o Traço
seria um ponto de sustentação entre S2 e S1 para S2 ser metáfora recíproca de
S1. Lacan mantém a questão meio vaga: Sujeito emergente como representado
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entre S1 e S2. Você diz que não, que há um lugar preciso, que seria o lugar dado
pela relação de Sistema e Articulação. Ele só pode receber a relação sistêmica
de S2. E só pode receber a relação articulatória de S1.
Isto, só-depois. Até aqui, Sistema e Articulação depende é dos Gozos.
P – Só-depois. Mas ao levar a relação sistêmica, leva-se aquilo que ela
contém: a relação entre gozo-do-Outro e o gozo-do-Sentido. Ao levar a relação
de Articulação, leva-se o que ela contém: a relação entre gozo-do-Sentido e
gozo-fálico. Então, ele recebe duas nomeações de gozo-do-Sentido, uma de
gozo-fálico e uma de gozo-do-Outro.
Não. Não se trata de relações e sim de produto de gradientes. É difícil,
por exemplo, tanto na psicologia como mesmo na psicanálise, definir o que é
um Traço. Definir como? Fisiologicamente? Vejam o minueto de Lacan para
definir um traço: a pata da gazela não sei onde. De repente, se têm experiências
mais apontáveis para nós sujeitos, as quais estou remetendo ao Haver, entre
gozo-do-Outro e gozo-fálico, o que é algo mais palpável. Marcar como pode
emergir o Traço entre gozo-do-Outro e gozo-fálico. Entre, no sentido de movi-
mento, ou de produto cartesiano. Produto cartesiano no que, se estou em um,
posso ter a memória do outro, numa diagonal. Tal projeção nos dá estrutura
de traço, compatível com a experiência do encontro faltoso e, portanto, bem-
sucedido com o Real, que é Traço mesmo, para valer. Tiro a noção de Traço
não de uma experiência psicológica, mas de uma experiência de consumo, de
Gozo, de usura no Gozo.
P – Alguma coisa do signo do sujeito. Lacan chama de signe du sujet, que
ele diz que há.
Faço a conjetura de que essa armação tetraédrica, quer dizer, a fundação
dessa nova face até ali, talvez seja suficiente para explicar o que há nas mo-
dalidades do que temos suspeitado como sendo Natureza. Que não é natureza
coisa nenhuma, é artifício, vício gozoso do movimento do Haver. Não posso
dizer que ali haja um Sujeito chamado Deus, pois Sujeito é algo menor, nós
falantes. Essa postura subjetiva nossa, que quero pôr como centelha do divino,
há num regime menor, de subproduto. Mas se quiserem usar metaforicamente
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do Traço é horizontal, então essa aresta se chama S2. E essa aresta de Sistema
com Articulação vai se chamar de Sujeito, embora possa parecer espantoso. Da
emergência dessas arestas novas um ponto é demarcável: este último vértice
oposto, em diagonal, ao vértice fundador do triedro que chamei de A-Delta. É
aqui que escrevo a (minúsculo), a ser produzido nessa loucura. O a minúsculo
não é outra coisa senão nossa intenção de A-Delta, que é A Coisa.
Se isso for pensável, o que é o Sujeito? Observem no Esquema: o
Sujeito, como aresta, paralelo nada mais nada menos – como Antônio Sérgio
Mendonça chamou atenção – ao gozo-do-Sentido, mas de maneira reversa.
Observem que temos triedros reversos, construídos dentro de um hexaedro.
Se há algum paralelismo, é do Sujeito com o gozo-do-Sentido. Preciso dessa
estrutura, que ela funcione, para que eu possa instalar o Falanjo no Campo do
Sentido, no vigor em que ele pode subsistir, e tentar eliminar a consistência
dos ditos homens e mulheres.
Estou dizendo que o falante, enquanto tal, nesta quarta geração de
cruzamentos, faz surgir o objeto a. É só para os falantes que ele há. Nas outras
gerações, não se trata de objeto a de espécie alguma, porque o objeto a está
atrás, como Haver. O falante, no movimento de cada um, na transa de S1 com
S2 nessa posição subjetiva, vai ter como resultante o objeto a. Objeto que só é
objeto a como falta de encontro. Falta para trás de encontro para a frente. Por
que a fantasia é importante? Porque se trata de que meu projeto, dentro da vida,
não é senão constituir esse objeto. Eu não o tenho. Esse objeto é efeito da minha
operação subjetiva. Vou criá-lo. E isto tem a ver com a Fantasia. E isto se chama
técnica, quer dizer, Arte. Solércia, portanto. Vou propor aos meus companheiros
falantes um objeto que ninguém pode dizer melhor ou pior do que qualquer
outro. O objeto a é a ser criado no projeto de cada um. Ele é objeto a enquanto
falta durante todo o percurso do Sujeito, e a intencionalidade ÉTICA do sujeito
é propor um objeto a ao mundo. O que é que eu devo? Devo um objeto. Esta é
a minha dívida simbólica. Eu devo aos senhores um objeto a...
Agora, vejam que coisa angustiante. Há Sujeito. E é um sujeitinho
safado. Ele tem substância. E a gente pensava que ele não tinha. Como se pode
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Isto desmistifica muita coisa. Por que as pessoas têm tanto medo dos
engenheiros? Os jornais vivem assustando. Affonso Romano de Sant’Anna está
no Jornal do Brasil de hoje, ou de ontem, com o seu cagaço dos engenheiros.
O tal Affonso diz que a AIDS foi fabricada não sei onde, passou por debaixo da
porta e currou a humanidade. É verdade que há questões éticas em jogo, mas
ficar com medo dos engenheiros? Por quê? O apego a esse macacão é coisa
obscena. Por que não se pode fazer um computador que nem Eu? Pode sim! Um
dia vai poder. As pessoas se sentem invadidas no seu imaginariozinho. Mas o
Falante é muito mais importante do que esse macacão ou esse Ego.
Está pairando por aí um terror, um medo da engenharia em todos os
sentidos: genética, informática, telemática. Papo de neurótico. A psicanálise
tem grande responsabilidade nesse futuro. Não estou sonhando com nenhum
progresso não. Estou sonhando é com riqueza: o inconsciente é capitalista,
Lacan o disse, não eu. Quer dizer, fazer render é preciso, senão aquilo pára.
É uma oportunidade dos falantes: exacerbar esse artificialismo até o ponto da
imortalidade. Por que não? Por que que uma máquina futurista seria menos
interessante do que uma biblioteca?
Não estou dizendo que seja tola a prudência de se saber lidar com
a tal Fatureza. Saber lidar com a Fatureza é importante. Estou dizendo que,
junto com esse cuidado, está retornando o mito da Natureza, de novo, como
romantismo babaca que não nos serve para nada. Estou dizendo que a fatura
do falante não é incompatível, é da mesma cepa que a fatura da Physis. É uma
questão de acordo.
06/NOV
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P – Sim, você está dizendo de uma civilização totalmente voltada para uma
supercibernetização.
É o que estamos vivendo.
P – A gente está vivendo isso, mas tem contrapeso.
Não tem não! É impressão, pura impressão. O contrapeso na cultura de massa é
rock e samba-canção. E não vale nada, isso. Isso dá e passa. Não faz contrapeso.
Não faz mesmo. Há contrapeso em nós que estamos na tentativa de Outro lado.
P – Sim, mas há outras tentativas de contrapeso. Acredito que a Igreja da
Libertação o seja, por exemplo.
Isso não fede nem cheira.
P – É, mas está fedendo.
Isso, logo que for informatizado, cai. Besteira. Isso dá e passa. É da
ordem da demagogia. Quando isso for informatizado, na hora em que isso
for acolhido pelo sistema, acabou. Toma nome, acabou-se. Isso aí é o Velho
Mundo que está acabando. Não tenhamos ilusão. O que estou dizendo não é
que a informatização seja solução, e sim o contrário: que a aparência do dito
mundo contemporâneo é a de uma grande lata de lixo informático-cibernética.
As pessoas estão no sonho de que isto é o começo de uma nova era. Não é. Isso
é o fim. Depois disso, mais nada que tenha a ver com essa história. Só um ato
criador vai trazer outro troço. Essa bobageira toda de que a gente vive, esquemas
neuróticos e ansiosos, como, por exemplo, esses movimentinhos de que você
fala, eles são do passado, eles são destinados a esse lixo. Vão todos desembocar
nesse lixo. A psicanálise que abra o olho para não ser um deles também, um
dos descartáveis da nossa época. Se não, ela vai para o lixo também. O que for
informatizável, no campo psicanalítico, vai para o lixo.
Estou querendo dizer que é preciso reconhecer o ralo da nossa época.
Nossa época tem um ralo. Esse ralo de esgotamento se chama informática,
cibernética, telemática, essas coisas...
P – Você está falando da anti-fantasia.
Esse não é o Outro, esse é o Mesmo. Estou chamando atenção é para
o fato de que depois desse Mesmo, há um Outro. Aí é que o Outro vai se apre-
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depressa a esse movimento espontâneo para poder se preparar com vistas a esse
depois. Para trás não dá mais, não funciona: qualquer intervenção aí vai para
o esgoto, o esgoto come ela. Tudo se equaliza num campo informacional que
não vai dar aparição a nada de novo, vai para o velho.
Quando isso se banalizar, com que ferramentas tratar o depois? Mas
há de sobrar o essencial. O bonito da estória, o bonito do acontecimento, é que
muita coisa que se tem por importantérrima é bagatela, vai para o lixo. O que é
importante mesmo vai sobrenadar. Mas é preciso que haja precursão, que haja
trabalho prévio: já vem sendo feito, está em Freud, está em Lacan. Trabalho
prévio de recomposição.
P – Mas nem em Édipo, nem em AntiÉdipo.
P – A cultura transforma o dito.
Não! Ela não consegue transformar o artifício. É o artifício que trans-
forma a cultura. O artifício é de grau superior.
P – O Magno está levantando o antes disso, Ele fala, na Polética, da relação
simbólica como muito maltratada. Tendemos a achar que a cultura funda o
simbólico, quando o simbólico é que tem condições de fundar certa cultura
se operar para aquém dela. E nós, temos a tradição de achar – é até um erro
conceitual, quantas vezes já não se escutou que a definição de simbólico é o
tal do Outro cultural? – que a cultura vem antes.
Mesmo o meu dizer é logo transformável em cultura. Mas eu sou
chato: continuo dizendo. Por isso botei essa música hoje, “quero mais”,
“não só transas”. Quero a boceta de Pandora. A boceta de Pandora não é
a cultura, é o artifício. Já fiz a denúncia, num Seminário velho, de que a
cultura está apensa a essa distribuição, por exemplo, tipo Lévi-Strauss. A
cultura precisa disso. A informatização da cultura vai demonstrá-la como
mero artifício e indicar como lidar com essa ordem do artifício para além
da informatização. Parece que quem pode pensar isso é a psicanálise. Como
lidar com esse artifício quando me descolo dos meus liames culturais. E
isto não é foraclusão, é descolar-se de uma ordem cultural. Nem cultura
nem anti-cultura.
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Voltando ao hexaedro, começa a ficar um bocado complicado isso. Do
lado de cá, temos esse tetraedro muito esquisito, com essas arestas chamadas
S1, $ e S2. Tetraedro que me obriga a fazer novas considerações a respeito de
muita coisa. Consideremos, por exemplo, o lugar triádico do objeto a, cons-
tituído nesse sarilho aí de Sujeito, Significante-Mestre, Significante-do-Outro.
Vocês conhecem a idéia que Lacan faz do EGO: um a. Essa idéia de Ego que
Lacan nos traz com sua crítica, naquele Seminário antigo, o Dois, como uma
formação imaginária. Isto não é compatível com o próprio futuro de Lacan. É
uma maneira de criticar o Ego bastante importante nesse momento, mas não é
possível, no futuro do próprio discurso de Lacan, o Ego ser puramente imagi-
nário. No que o situa como objeto, já deslocou do Imaginário. Esse a-zinho
minúsculo que está no hexaedro comporta lugar de incrustração de objeto como
lugar de incrustração do Ego. Temos que começar a reformular um pouco esses
conceitos a partir do último Lacan. Não vamos confundir o aprisionamento
do Ego com o Ego. Não vamos confundir o aprisionamento do objeto com
o objeto (que é Real, Simbólico e Imaginário). Estas colocações aqui são no
sentido de readequar.
Há uma coisa que me é bastante cara dentro desse hexaedro. O mo-
mento criativo, produtivo, de Lacan, exigia rigor extremado no que diz respeito
à limpeza dos processos (que estavam muito sujos ao redor), e fixar-se sobre
a questão das estruturas, no sentido lacaniano da matemização das estruturas,
da topologia, etc., sendo que foi por essa via que ele entrou num certo anti-
edipinianismo. Mas algo ficou relegado – o que não é nenhum defeito, a meu
ver, em Lacan, o rigor do seu momento exigia isso –, é um abandono de questão,
para que essa questão não sujasse o panorama dos seus achados: a questão do
QUANTITATIVO. Não há a questão do quantitativo equacionada na obra de
Lacan. Há a questão do quantitativo suscitada no discurso dele, mas não equa-
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Vejam que as setas que estão indicadas são em dois sentidos sobre o
hexaedro. O que acontece com o falante é que, segundo este Esquema, o Haver
é problemático. Se o Haver, enquanto tal, funciona sozinho na sua inconsciência
e produz o que lá aparece nisso que a gente chama de physis, do lado do falante,
nesse gap que existe, que nasce entre o Haver e o novo Haver, o re-Haver, o
re-falante, o re-falar, tudo tem que ser instantaneamente produzido. Temos
então que esse a minúsculo substitui para o falante o Haver que lhe é dado por
um Haver a ser produzido. O Haver que lhe é dado também está em produção,
mas é dado, quando comparece, e há o Haver produzido a partir do seu próprio
lado. Esse objeto novo é problemático. Pois um objeto já constituído, que cai
como resto, passa a fazer parte do dado. Se o falante impõe um objeto novo,
com suas possibilidades simbólicas, esse objeto cai no Haver dado. Passa a
fazer parte do Haver que há.
Mas o falante, no seu movimento desejante, tem que viver constituindo
esse objeto, o que é a mesma coisa que se constituir como esse Haver. Ele tem
que se constituir. E aí muda inteiramente o estatuto do Ego: o Ego é a ser produ-
zido. A função egóica de que Lacan fala é a que ele define como especulação
imaginária, outro modo de definir essa prisão imaginária de reflexo especular
que ele quis chamar de Ego. Mas, na verdade, Ego é a ser produzido. É aquilo
que vivo na tentativa de produzir, quando não estou neurótico. O neurótico é
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aquele que acredita que tem tal Ego, e pronto! Este é o Ego que Lacan critica.
Ego estabelecido, que não desliza. Mas o Ego que não está aprisionado assim,
é esse objeto a ser entregue ao Outro como resto. Entrego meu Ego, como resto
produzido, ao Mundo. É esse corpo estranho, que vou me fabricando, corno Ego.
Mas continua esse descentramento entre esse Ego que fabrico e o Sujeito que
sou. Vou fabricando esse objeto para entregá-lo ao mundo; e aí a importância
do narcisismo. A gente sempre fala tão mal dele, mas há duas faces de Narciso.
Narciso não é senão ser/ter a. O narcisismo desvairado é esse, doentio, de
um sujeito se escorar num ego que ele suspeita ter. Mas Narciso tem sua face
produtiva. A face de se produzir como resto. Então, é preciso tirar Narciso da
sua estupidez. Sem estupidez, Narciso é fundamental. E não há transação fora
do narcisismo. Fora do narcisismo não há transação.
P – Cheguei aqui atrasado hoje, mas logo vi que com essa correção do
narcisismo você dá melhor a entender a distinção brilhante que você fez entre
fantasia, alucinação e delírio, como efeitos do campo do Outro. O campo do
Outro tem S1 , S2, $ e a. Quando $ cinde na marcação de a, a cinde na marcação
de $, isto é fantasia. Você coloca que quando S1 provoca isso, isso se torna
alucinação. Quando S2 provoca isso, isso se torna delírio. Mas articulando
com essa questão egóica que você apontou (que Lacan coloca aparentemente
correspondente a uma visada imaginária direta), na realidade ela nos remete
ao caráter simbólico da constituição do objeto, elide a, ainda que seus
efeitos sejam imaginários. Isto só é possível se distinguirmos, na estrutura do
narcisismo, o seu aspecto produtivo, que é simbólico, do seu aspecto efetivo
no sentido de efeito que cria isso que chamamos grosseiramente de pequeno
narcisismo. Articulando com o que você fez, fica óbvio, pois fantasia incide
sobre Sentido. Há mesmo autores que privilegiam essa incidência, como se
fosse a própria topologia da fantasia. Então, em Sentido falta o quê? Sentido
é simbólico invadindo imaginário. Falta real. Esse real que falta na fantasia
é justamente o lugar onde foi projetado o objeto, sua explicação, isso dá
certo nos três. Alucinação desejante não é literal em Freud, não é na ordem
do onírico. O onírico não é o momento de articulação da verdade do sujeito
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P – A única oposição que você teria é quando Lacan, no Encore, diz que S1
é uma maneira de aparição do falo.
E é! Neste Esquema também.
P – O S2 também é o falo?
Não é o falo. Lacan diz também que o Nome do Pai é o falo. Isto é maneira
de dizer. No nível da minha projeção de S1, o que é que corresponde ao falo, como
projeção do sujeito no Real? O que corresponde lá no Imaginário como projeção
de S1? O que comparece é o que eu gostaria de colocar aí: Traço Unário. Traço
unário no ponto 1. O que Lacan chama de traço unário? Tem a ver com o S1.
É alguma marca retirada do Imaginário que vai ser trazida para composição,
mediante um jogo significante. T maiúsculo, índice um: Traço Unário. O que
será que o significante do Outro, como projetante do objeto no Simbólico, ap-
resenta como projeção lá no Simbólico (no meu Simbólico, não é o simbólico
de Lacan)? S2 projetante do objeto no Simbólico: o que lá se projeta é Nome
do Pai. Ponto 2: o Nome do Pai, para Lacan, é o significante que no campo do
Outro o representa como lugar da Lei. Essa Lei, no que ela vem de fora, tem
a ver com a própria constituição do objeto e do ego. Esse Ego novo que estou
trazendo hoje. Os problemas de Narciso com a Lei. São problemas da projeção
do significante do Outro nesse campo do Simbólico (não o lacaniano).
P – Não é Ideal-do-ego?
Ideal-do-ego quanto Ego-ideal, são formações distorcidas no ponto a,
como objetos, com dois sentidos opostos. Há que saber qual é a composição
que, ao invés de deixar um objeto a em aberto, ou um Ego em aberto, coalesceu
um Ego-ideal ou um Ideal-de-ego. São coalescências do objeto.
Tomemos o ponto 6. Do ponto de vista do hexaedro, ele é diagonalmente
oposto ao ponto . E do ponto de vista da sua constituição, como efeito entre
Sistema e Articulação, ele tem que participar da ordem do que, no campo do
falante, seria Sujeito. Observem dentro do quadrado: o ponto 6, do ponto de
vista do hexaedro, é diagonalmente (diagonal do hexaedro) oposto ao ponto
φ, o ponto 3. Mas, do ponto de vista de sua constituição, como resultante que
é de Sistema e Articulação no tetraedro de trás, ele ocuparia o lugar que o Su-
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jeito ocupa no tetraedro de cá. O Sujeito, no tetraedro de cá, é uma aresta entre
Articulação e Sistema. Tomemos lá atrás: Articulação e Sistema, resulta no
ponto 6, revertido, que seria diagonalmente oposto ao lugar onde compareceria
o Sujeito se ele fosse complicado a ponto de comparecer. Não há sujeito aí.
Esse ponto sobre o gozo-do-Sentido aí, aparece marcado como efeito
dessas duas arestas: Articulação e Sistema. Qual é o efeito disto no tetraedro do
falante? É Sujeito. No outro, não comparece sujeito, comparece um ponto onde
adviria sujeito se ele adviesse, se gnomo fosse mais complicado. Eu aí escrevo
algo de bárbaro: Falo-primitivo. Não é o falo no sentido do Simbólico. É o que,
na instância do que não é falante, teria o valor que o falo tem para nós. O falo,
para o falante, tem valor de significante do desejo que, no tetraedro do falante,
está inscrito sobre o eixo do sujeito como projeção do a, mediante a projetante
sujeito. Na ordem do falante, é significante do desejo, porque ele tem que ser
determinado a cada momento nesse tetraedro variante.
Outra coisa é a ordem do não-falante. Um macaco, por exemplo, que não
é falante, o que ele tem como falo é o sentido do seu gozo, dado. O que é fálico
para o macaco é seu gozo do Sentido lá no Haver, dentro de sua modalidade.
Ele goza com sentido... e consentimento. Basta ler Lorenz, os etologis-
tas... Vocês se lembram de um esquema que fiz n’O Pato Lógico: sexo próprio,
outro sexo, sexo do outro, etc. O que goza, segundo nossa experiência fálica
lá do bicho, é o sentido do seu gozo, entre um sexo próprio marcado e o sexo
do outro marcado nele mesmo. Isto lhe dá sentido. Ele tem sentido. Eu, tenho
que fabricá-lo, não tenho esse sentido.
Então, o que corresponderia à minha indicação fálica, projetada no
Real, lá para ele, é indicação fálica com sentido, gozo do sentido tido, não a
ser dado. O que dá sentido à vida do macaco é tocar punheta, todo mundo sabe.
Essa obsessão masturbatória do macaco é porque ele não pensa em outra coisa
senão na macaca, coitadinho. Ele está com a macaca...
Vamos tomar o ponto 5. Falo-primitivo, ou primevo, se quiserem. O
ponto 5 corresponderia, se fosse o falante, ao S2, no qual se inscreve o Nome do
Pai, como projeção, eu escreveria lá outra barbaridade: Pai-primitivo. Não é à
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O hexaedro
toa que o Pai primitivo – La Bête daquele filme pornô – está em lugar propenso
ao feminino: no gozo-do-Outro.
Isso não é nenhuma paternidade, no sentido do falante, pois não há
paternidade no sentido animal. É no sentido de que, nos eventos lá do mundo
do não-falante, esse lugar designaria as possibilidades de gozo-do-Outro, a
garantia do gozo-do-Outro. O que pode ser o gozo-do-Outro para o macaco?
Vamos pegar o mito da horda primitiva, de Freud: o que pode ser o gozo-do-
Outro para aquele bando que Freud nos designou antes de o pai ser morto? E
o gozo da mãe. Gozo da mãe nos dois sentidos.
É a partir do lugar do falante que faço essa conjetura de um lugar
“semelhante” lá no não-falante. Para ele, não há essa paternidade. Para ele, só
há esse registro: gozo-do-Outro, gozo-fálico, etc. O que se articula lá para ele,
vamos dizer assim, naquele esquema d’O Pato Lógico, é que esse Pai-primitivo
está no lugar do Outro-Sexo. Seja qual for o Outro-Sexo. O Outro-Sexo é que
é parecido com o Pai-primitivo. É por isso que, depois, na ordem do falante,
o Pai é que é amável. O amor vai para o pai. O pai é a própria residência do
Outro-Sexo. Isto é um espanto, não? A residência do Outro-Sexo, é o Pai, não
é a mãe não.
O ponto 4, que é a experiência de gozo-fálico, resultante aí de Articu-
lação e Traço, é onde eu poderia supor, no não-falante, um Traço-primitivo,
experiência de Traço no gozo-fálico. Nessa experiência do gozo-fálico, algo
se apresenta como um Traço demarcatório. Então, teríamos um Pai-primitivo,
um Falo-primitivo e um Traço-primitivo absolutamente pervertidos na do
falante, pois o Nome do Pai não é da ordem do Pai-primitivo. Ele se instala aí
em resultante, a meio caminho do Falo-primitivo e do Traço-primitivo, sem ter
nada a ver com o Pai-primitivo de lá que é outra história.
P – Você poderia talvez desenvolver melhor isso. Qual a necessidade disso?
Até agora, no seu Esquema, os lugares estão justificando essa nomeação. Essas
nomeações, elas me parecem meio vagas.
A mim, também. Só estou procurando o que eu possa referenciar lá no
campo do não-falante como demarcações de surgimento de modalidade. Isto é
251
O Sexo dos Anjos
* * *
252
O hexaedro
hoje, tem problemas feministas, tem problemas bichistas: essa coisa grotesca.
O que se pode colocar como conceitos de homossexualidade e heterossexuali-
dade dignos, ou seja, de acordo com a articulação simbólica de hoje? É preciso
contestar o Partido Feminista, o Partido Machista, o Partido Viadista, o Partido
Sapatista: está tudo errado. Se formos rigorosos, temos que dizer que só existe
uma liberdade, que se chama heterossexualidade. A homossexualidade é, de
qualquer maneira que ela compareça, da ordem do projeto animal. Mas resta
definir o que seja heterossexualidade e o que seja homossexualidade. Existe
uma, e apenas uma, heterossexualidade possível: transar com Outro. Ou seja:
a liberdade de “escolha”, pelo Sujeito.
P – Pelo que você acabou de dizer, volta-se à questão do narcisismo. A única
liberdade é a heterossexualidade que só há na ordem do amor e, portanto, na
ordem do narcisismo. Não é à toa que o narcisismo sofre tanta incidência de
mal-entendido.
Não são só transas e nada mais. Vamos ouvir a musiquinha de novo...
13/NOV
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O Sexo dos Anjos
254
Lilith
5
LILITH
* * *
Há uma questão que foi, durante este Seminário, diversas vezes colo-
cada. Foi colocada, na verdade, por Aluisio Menezes, quando eu comentava
do Masculino, do Feminino e da existência de um Terceiro Sexo: a questão do
mito hebreu da Lilith. Quis me dar a impressão que Aluisio queria forçar uma
posição para a Lilith no terceiro sexo, no Falanjo, e eu disse que não e que
não queria comentar naquele momento. Agora chegou a hora, mesmo porque
está vendendo muito no mercado brasileiro esse livro de um chamado Roberto
Scutteri, dito psicanalista junguiano, intitulado Lilith, a Lua Negra. Ele faz um
estudo junguiano do mito da Lilith. É um monte de baboseiras. É um glosar de
asneiras, o livro, sem, no entanto, deixar de acumular elementos de suspeita
erudição a respeito do tema. Mas é aquele mesmo papo junguiano, só que desta
vez em baixo calão. O máximo que consegue é chegar a um grande horóscopo.
Acaba por recolher tudo que ele consegue ajuntar numa questão de astromancia.
255
O Sexo dos Anjos
É uma besteira. Mas certamente, porque está na moda a astrologia, vai botar
muita gente interessada na questão da Lilith.
Vou tentar situar – não por vias eruditas, que isto não me interessa, mas
por enquadramento na conceituação do meu Esquema – a famigerada Lilith,
de uma maneira que é inédita, já que ninguém a colocou assim.
Essa figura, esse personagem chamado Lilith é parte da mitologia
hebraica, a qual não está incluída no Velho Testamento (que pretende ser um
texto religioso, embora fazendo grande mitologia de Adão, Eva, o Paraíso,
retirando uma série de elementos da mitologia hebraica). Era dita uma figura
feminina, a Lilith, que os mitólogos apresentam como a primeira mulher de
Adão. Antes de Eva, Adão tivera tido outra mulher que se apresentava como
algo de tal maneira horroroso, senão terrorista, pois desafiava frontalmente o
próprio Deus, o, mal-dizia. Ela acaba retirada para as franjas do Mar Vermelho,
uma região desértica, e não entra de modo algum nos aparelhos mitêmicos de
construção do Gênese, no Velho Testamento. O próprio Graves no seu livro
sobre A Deusa Branca, também por duas vezes apresenta muito brevemente
a Lilith como a primeira mulher de Adão. Pelo que conheço a respeito, essa
indicação de primeira mulher de Adão não faz parte de nenhum mito. Fico
com a impressão de ser efeito de leitura de um mito arcaico e que, em função
do manejo do Velho Testamento, no Gênese, as pessoas começaram a atribuir
a Adão essa mulher.
Mas uma vez que esse mesmo mito comparece em diversas culturas,
e não só na hebraica, nada indica que ela tenha que ser, mitologicamente, a
primeira mulher de Adão. As coisas ficam complicadas justamente porque al-
guns mitólogos, e Jung e seus junguianos em particular, nesse afã de resolução
da relação sexual como possível, tentam apresentar com uma leitura talvez
forçada – não posso garantir, porque não conheço aquelas línguas, mas pelo
que se compara em textos traduzidos – dos dois momentos subseqüentes, logo
no começo do Gênese, de surgimento do macho e da fêmea, do masculino e
do feminino, fazendo com que o Adão primitivo, segundo eles, fosse neces-
sariamente andrógino, o que me parece uma acabada bobagem. De onde se tira
256
Lilith
isso? Estou aqui com várias edições do Velho Testamento, da Bíblia em geral.
Sempre uso a Edição Tob, que é aquela ecumênica, que fica bastante fora de
suspeita porque foram tantos interessados na tradução que ela apresenta as vari-
antes possíveis. Vocês se lembram que já toquei nesse assunto num Seminário
velho, tentando mostrar que esses dois momentos de criação do homem, que
aparecem sucessivamente em meios discordantes do Velho Testamento, cor-
respondiam um à criação da espécie, momento da própria criação da espécie
com machos e fêmeas, o qual não tem nada a ver com o momento seguinte,
que é o do surgimento de Adão e Eva, momento do advento do falante inserido
no processo da língua e da Lei. Naquele tempo expliquei assim. A espécie já
existia, com machos e fêmeas, quando o Gênese recoloca uma nova fundação
de Eva como companheira de Adão. Quero entender que isto é no projeto de
explicar o surgimento não do macho e da fêmea, mas do masculino e do femi-
nino, o que é bem diferente, pois não há masculino e feminino entre animais,
só há machos e fêmeas.
A projeção que se tenha feito sobre os corpos é nessa inércia do imaginário
que Lacan acusa fortemente no Seminário sobre o Ego. Nada indica que se tenha
que projetar o masculino e o feminino sobre o imaginário do corpo. Tanto é que
o fêmeo e o macho são anteriores. Eles tentam equivocar no primeiro capítulo
do Gênese. No item 26, Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, se-
gundo nossa semelhança e que ele submeta os peixes do mar, as aves do céu,
os pequenos animais, toda a terra e todos os bichinhos que se movem sobre a
Terra”. No item 27: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o
criou, o homem” – genérico. E em seguida: “Macho e fêmea ele os criou”.
A luta desses junguianos é dizer que esse “os” criou está errado, que o
macho e fêmea ele o criou. Para dizerem com isto que ele criou um andrógino,
o que é uma acabada tolice. Não é necessário pensar assim para se dar conta
de Adão e Eva, porque, lá adiante, quando trata do jardim do Éden, há aquele
velho texto que vocês bem conhecem (2,7): “O Senhor Deus modelou o homem
com a poeira tomada da terra. Insuflou em suas narinas o hálito da vida” – o
sopro divino. “Depois, o Senhor Deus plantou um Jardim no Éden, ao oriente, e
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O Sexo dos Anjos
colocou ali o homem que havia feito. O Senhor Deus fez germinar do solo toda
árvore de aspecto atraente e bom para comer, a árvore da vida no meio do jardim
e a árvore do conhecimento da felicidade e da infelicidade” – bonheur e malheur,
que não é necessariamente infelicidade e felicidade, mas do encontro e do des-
encontro. Mais abaixo (2,18): “O Senhor Deus disse: ‘Não é bom para o homem
que ele esteja só. Quero lhe fazer uma ajuda que seja de acordo com ele’. O Senhor
Deus modelou do solo todos os bichos do campo, todas as aves do céu, que Ele
levou ao homem para ver como ele os chamaria. Tudo que o homem designou,
nomeou, tinha por nome ser vivo” – e aí vai. “Para achar essa tal ajuda o Senhor
Deus fez o homem Adão cair num torpor e ele dormiu, tomou uma de suas cos-
telas e fechou com carne o lugar de onde Ele tirou. O Senhor Deus transformou
a costela que havia tomado do homem numa mulher que Ele lhe levou. Então
o homem exclamou: ‘Eis desta vez o osso dos meus ossos e a carne de minha
carne! Esta chamaremos de mulher, pois é do homem que ela é tomada’.”.
Antes, Ele não fez homens e mulheres, mas sim machos e fêmeas; Ele
criou O Homem. Agora, Ele fez o masculino e do masculino retira o feminino.
Parece-me inteiramente forçado aproveitar-se desses dois momentos para dizer
que Adão era andrógino e que depois há separação de sexos. Isto me parece
absolutamente inoperante.
Não estou interessado nem em erudição nem em cabala, repito, e sim
nisso que vige por aí, o que ficou e que me parece uma construção inteligente:
num primeiro momento, a criação é do homem como espécie, entre machos e
fêmeas, num segundo momento é que vem aparecer um sujeito debaixo da Lei,
com uma proibição de comer de um determinado fruto, e dele se retira alguma
coisa para criar esse feminino através do qual a Lei vai ser, não contestada mas,
equivocada. Isto me parece bem mais brilhante: a criação do macho e da fêmea
nada tem a ver com a criação do homem e da mulher. Exige a passagem desse
momento de legislação, de proibição, de interdição, delimitação criada sobre
o par já constituído, sobre a diferença já induzida.
* * *
258
Lilith
E o que pode ser a Lilith? Nesse jogo, ela não comparece no Velho Tes-
tamento. Por que? Aviso outra vez que estou pegando o texto bíblico e enfiando
dentro do meu Esquema... Quero que seja assim. Vamos ver se funciona ou não.
Jeová é um Deus masculino. A tradição hebraica é de um Deus no masculino.
Mas não é apenas um Deus no masculino e ponto! É um Deus perfeitamente
compatível com a vigência do gozo-fálico, segundo o meu Esquema – por isso
coloquei ali o fiat da criação no gozo-fálico. O Velho Testamento, dos judeus,
começa com a criação a partir de uma posição masculina na produção, na
emergência das diferenças, na emergência do Simbólico.
Jeová é nitidamente um Deus de postura fálica e de produção simbólica,
no sentido do meu Esquema: esse fiat explode imediatamente na criação da
luz, da terra, do céu, dos astros, etc. Esse momento explosivo do gozo-fálico
resulta nesse lugar do , e a criação de todo o Campo do Sentido, segundo
Jeová, segundo a vontade explosiva do Jeová. Eu diria que Jeová é um Deus
epiléptico, no sentido do termo. O que caracteriza o Jeová bíblico é a epilep-
sia, é esse seu ataque... Releiam o que Freud trata sobre a epilepsia, no caso
do Dostoievski, leiam também a crítica de Philippe Sollers, publicada em seu
livro Théorie des Exceptions, à abordagem que Freud fez, e verão que há o que
tornar a pensar sobre a epilepsia, mesmo em termos nosográficos, patológicos.
Passando rapidamente, eu diria que Freud não ligou muito bem para a questão
de Dostoievski, que podia ser um pouco melhor trabalhada, talvez. A questão
que se põe ali, no epiléptico, é a de um ataque da ordem do gozo-fálico sem
correlação corporal, digamos assim, um gozo-fálico sem orgasmo. Algo lá,
de gozo-fálico, acontece na ordem da psiquê do sujeito, e ele entra naquele
estado de epileptikós. Isso é do sentido do termo grego, ação de agarrar, ataque
ou repreensão, ou ser surpreendido, ser pego em flagrante, é da ordem disso
que chamo explosão, em gozo-fálico. Gozo-fálico é epiléptico, é um ataque
epiléptico, no sentido do termo e não no sentido da nosografia.
Então, há esse Deus epiléptico, que o é tipicamente, Jeová. Assim, a
criação, na religião hebraica, é da ordem desse momento epiléptico e da
produção desse Campo do Sentido no projeto da diferença. Ora, atribuem a Lilith
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O Sexo dos Anjos
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Lilith
* * *
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Lilith
P – Como você coloca Jeová ao mesmo tempo como masculino e como ciclo
do Haver?
Não Jeová. Eu coloco o divino, o Pleroma. O meu divino é o da psi-
canálise. Jeová mora em J. Não há nada no Velho Testamento que empurre
Jeová para o lado feminino. É preciso, depois, alguma promessa de destruição,
ou apocalipse geral, para algum feminino. De modo que, Jeová, é sempre cria-
tivo. Ele vai é para a frente. O Deus dos judeus, nitidamente masculino, Jeová,
não desmunheca. Nem há promessa de Ele vir a falecer.
P – Sem dúvida, ele tem essas características. Mas ele não tem só essas caracte-
rísticas. Não vejo como englobar o que vou lhe dizer agora, no teu Esquema.
Jeová não só é o que faz o fiat, como também é o que procura Abraão para
fazer um pacto. Nessa postura masculina, de gozo-fálico, não se faz pacto com
ninguém. Eu posso ler o Javé na sua vertente criativa, tudo bem. Mas na sua
vertente de procurar Abraão, de se abaixar, de se feminilizar, diante de Abraão,
não é naturalmente feminilização, mas...
O recalque do especificamente feminino parece nítido na religião
judaica. Há religiões orientais onde isso não é recalcado, a coisa fica oscilando,
quer dizer, há um feminino capaz de derrocar um Deus masculino. O que quero
dizer é que, na religião judaica, Jeová começa de um fiat nitidamente fálico.
Não digo que ele seja só isto, e sim que ele começa pelo movimento de um fiat
criativo, nitidamente fálico. A religião judaica só concebe algum feminino no
Campo do Sentido, não passa daí. Não estou sendo também radical nisto, pois
teria que fazer um grande estudo clínico. Mas me dá a impressão de que não
existe, no pensamento judaico, o processo da vitória da entropia, o processo
da entrada do caos, do feminino. Daí vem uma idéia constante, por exemplo,
do progresso na religião cristã.
P – A força do apocalipse seria de produzir isso?
A força do apocalipse ainda é isso dentro do sentido. É uma espécie de
comoção dos homens. Não ainda o apocalipse telúrico ou universal. Jeová não
morre: permanece fazendo sentido. É Anjo, Maláki. A morte de Jeová seria ele
virar Lilith. Se meu projeto de ciclos está correto, se Deus começa do Real, um
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O Sexo dos Anjos
dia ele tenta virar Lilith porque o desejo dele é este, está fazendo essa bagunça
toda como um desvio de castrado para atingir a Lilith que ele nunca vai con-
seguir atingir. Só estou dizendo que o projeto judaico é masculino, epiléptico,
explosivo e criativo. E pára por aí na região do Sentido. E só apresenta o
Feminino dentro da ordem do Sentido. Não comparece um Feminino radical,
a não ser num mito que foi jogado fora pelos hebreus, o mito da Lilith. Porque
se trata de um projeto de instaurador de estado. É um projeto nitidamente
masculino. Podem aparecer Adão, Eva, etc. Na região do Angélico, ele se
comporta angelicamente. Não aparece, no texto bíblico, nenhuma idéia da
morte de Jeová no seio de Lilith e a necessidade de começar de novo Jeová
não é cíclico, ele vem do gozo-fálico e resta eternamente no turbilhão do
sentido.
* * *
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O Sexo dos Anjos
depende dos seus atos ao fazerem sentido, e que isso só é ganho com o suor do
seu rosto. Estamos, há séculos, aprisionados nesse imaginário “bestial”, como
diz o galego, de projetarmos o Falanjo – que nunca veio à tona com clareza,
embora tenha comparecido em todas as culturas – no imaginário dos corpos
biológicos e pensarmos que Adão e Eva correspondem aos machos e fêmeas,
os quais, aliás, já estavam por aí, na carne de um cavalo, de um macaco, ou no
corpo de um porco, como se quiser... Este é o golpe que tem advento com a
introdução do Divino no seio do Sentido: o retorno da plenitude do Pleroma –
de Real, Simbólico e Imaginário –, da Trindade, no seio da aparente dualidade
do Sentido. Trata-se é de construir aí uma erótica e uma estética.
P – Ou seja, esse erotismo é função de engenharia e ficção. Essa é, aliás, a
tese de Robert Musil.
Esse erotismo, como uma estética, é função de engenharia e ficção. É
função de escrita. É a tese do Musil? Vocês estão vendo que não estou sozinho.
Quando Lacan diz que a psicanálise deve uma Erótica ao mundo, essa erótica
passa por aí. Erótico mesmo é um avião a jato. É de um erotismo impressionante.
É como se diz de uma bela mulher: é um avião!
E começa a aparecer aí a necessidade extrema de levar a psicanálise
ao seu verdadeiro lugar: a intervenção nessa tolice de projeção imaginária; e
com o sentido de dissecar a cultura até fazê-la mostrar o seu osso de artifício.
Talvez seja esta função primordial da psicanálise, no que diz respeito à meta
fundamental de Freud, que é a cura do mal-estar na civilização. Já citei por aí
algumas vezes uma outra frase de Lacan a respeito desta questão, e destaquei
outra aqui, p. 262 do Seminário 2, sobre o Ego, onde ele diz: “O passo de Freud
não se explica pela simples experiência caduca do fato de ter que tratar fulano
ou sicrano, ele é verdadeiramente correlato de uma revolução que se estabelece
sobre todo o campo do que o homem pode pensar de si e de sua experiência;
sobre todo o campo da filosofia – é mesmo preciso chamá-la pelo seu nome”.
Quer dizer, a cura disso que a esquerda gosta de chamar de social, e que
é simplesmente o projeto civilizatório, está na revisão total do seu processo, de
que talvez só a psicanálise possa dar conta. O que lhes trago não é mais uma
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Lilith
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O Sexo dos Anjos
acreditar que as mulheres não têm. Mas é óbvio que elas têm. Só porque não
é tão grande? Não é esta a questão. Por todo um período longo da história da
psicanálise os analistas quiseram que um sujeito não tenha acesso à castração
porque ele supõe que sua mãe tem o Falo. A gente precisa situar isso em lugar
mais correto. É igual àquela história do Zen: no começo você olha para o morro
e só vê o morro; depois você olha para o morro e não vê mais o morro, mas
no dia em que você chega à mestria mesmo, você olha para o morro e vê só o
morro, novamente, é claro, como havia de ser.
Então, se nessa pregnância imaginária o neurótico olha para a dita
falta de pênis e acha que tem, um dia ele vai ter que chegar à conclusão de que
tem mesmo mas só depois de ele se dizer que não tem não. Mas, na verdade,
ninguém tem.
Lacan, p. 353, chama atenção para essa inércia imaginária que sem-
pre vemos recrudescer no discurso dos sujeitos. Que é um embaralho. O que
é preciso é demover essa inércia imaginária que pretende assentar a questão
da diferença sexual sobre a figuração biológica. E arrumar a questão no lugar
angélico devido. Lacan vem lembrar que “Freud tinha no mais alto grau esse
sentido do sentido, o que faz com que uma de suas obras, Os Três Cofrinhos,
por exemplo, se leia como escrita por um adivinho, como que guiada por um
sentido que é da ordem da inspiração poética. Trata-se de saber se, sim ou não,
a análise prosseguirá no sentido freudiano, procurando, não o inefável, mas
o sentido” – grifos meus. E “o sentido é, continua Lacan, que o ser humano
não é o mestre dessa linguagem primordial e primitiva. Ele foi nela lançado,
engajado, preso em sua engrenagem”. É este o sentido.
O sentido do sentido é estar preso na engrenagem do sentido. É ser
Angélico. E o “quente” do Angélico é que ele nos permite pensar que se a
nossa sexualidade é esta, com pequenas guinadas referenciais ao Masculino
e ao Feminino, ou se não por ataques histéricos, ou epilépticos. (Vejam que o
gozo-do-Outro só comparece nos nossos corpos – não vamos dizer nos corpos
das mulheres, porque isto é besteira – em ataques histéricos: a gente começa a
dar tremeliques de gozo; ou se não, em ataques epilépticos, que são os chama-
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Lilith
dos orgasmos.) Há também uma opção que nem o gozo do Feminino nem o do
Masculino oferecem, que é a possibilidade não só dessa inscrição no mundo do
artifício, do artefato, como a excelsa produção da castidade. Isto é extremamente
importante: uma das possibilidades do Anjo é que ele pode ser maravilhosamente
casto. Se quiser. Por que não? O Masculino não pode ser casto, o Feminino não
pode ser casto. Só o Anjo pode ser casto. Algo que está tão desvalorizado hoje
em dia... Mas os tempos, outra vez, se tornam extremamente difíceis. Se não
por nada, pela nossa vocação sui-SIDA. Houve um tempo em que foi preciso
inventar o Amor Cortês. Alguma coisa mais ou menos assim anda requerendo
invenção. Proponho sugerir que se invente – dada nossa dita “liberação” – o
amor cortesão. Quero dizer: O Amor Cor Tesão. Pois o amor sabe e pode fazer
o tesão, ao passo que o tesão, este não sabe fazer amor.
Para terminar o trecho, p. 354, Lacan diz, falando da satisfação: “O
que insiste por ser satisfeito só pode ser satisfeito no reconhecimento. O fim do
processo simbólico é que o não-ser venha a ser, que ele seja porque ele falou”.
Isto bate inteiramente com a posição do meu Falanjo, na produção do Sentido,
que o próprio não-ser, que não havia no Campo do Haver antes do Falanjo,
se instaure a partir da ordem significante, como pura ordem de produção de
Sentido, para que venha a ser, mediante a nossa sexualidade, uma cafeteira,
um pão, uma obra de arte, um avião. A tecnologia deve tudo à sexualidade do
falante, isto é, ao sexo terceiro do Falanjo criador.
* * *
O que ele está dizendo, e isto é compatível com o percurso que está
fazendo então, é que, de início, só se simboliza a partir de uma pregnância
imaginária. Só que, na medida em que o simbólico vai progredindo, você vai
podendo abandonar essa pregnância imaginária inicial. Tanto é verdadeiro que
os aviões são inventáveis, os anjos também, pois estão na iconografia. Então,
passa-se a ver o que não se via, pelo simbolizar. O que antes se via primeiro para
depois simbolizar, mediante o processo de simbolização vai se propiciar como
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* * *
Apenas para enfeitar o que tenho que terminar, quero apresentar a vocês
um anjinho, de quem eu gosto muito, que se chama Michelangelo Merisi de
Caravaggio, um Mestre Pintor do século XVI, que certos autores insistem em
chamar de barroco, embora ele seja um personagem esquisito, pois dentro do
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O Sexo dos Anjos
barroco, inventou uma coisa nova: queria tirar a pompa do barroco, torná-lo
barroco cotidiano, inventou essa pintura de fundo negro, chamada tenebrismo,
que vai retornar mais tarde, na mão de um Rembrandt, como a tradição do claro/
escuro, e geometrizou bastante a superfície do quadro, de maneira a alguns acha-
rem que ele era um precursor do próprio Cézanne. Era um cara esquisitíssimo
esse rapaz. O pai dele o pegou, quando ele tinha 11 anos e entregou – naquele
tempo havia essa idéia brilhante de entregar-se uma criança a alguém melhor
– a um mestre pintor que não era dos melhores mas para o garoto foi bom. Ele
aprendeu depressa e, com 15 anos, fugiu de casa, da casa do pintor, e foi para
Roma. Tornou-se um grande mestre do pincel e... da espada. Ele se gabava de
manejar muito bem tanto o pincel quanto a espada. Por isso vivia metido em
encrencas. Por qualquer coisinha ele se metia num duelo. Matou pessoas e
também de vez em quando se feria. Vivia metido em grandes embrulhadas de
rua. De certa feita chegou a matar um nobre, em Roma, e teve que fugir. Fugiu
para a ilha de Malta, onde havia aquela tal ordem militar. Lá pintou o retrato do
chefão, deu uma puxada de saco, o sujeito o protegeu e o deixou por lá, esper-
ando o perdão que havia pedido ao Papa, para não ir preso por ter matado o tal
nobre lá em Roma. Mas imediatamente ele arranjou nova briga com outro nobre
da ilha de Malta, meteu-lhe a espada. Desta vez foi bastante ferido também;
levou umas espadadas, teve que ir embora da ilha e morre, na viagem de fuga,
numa praia deserta, porque estava o tempo todo sangrando das espadadas que
levou. Morre muito jovem. E deixa uma obra maravilhosa. Da qual retiro um
monumento para ser o representante do meu Falanjo: um quadro que se chama
O Amor Vencedor. Trata-se de um cupido, se vocês quiserem, que é um anjo
da Grécia clássica. Há também as vitórias, as vitórias aladas da Grécia, mas o
lugar do sentido, o Campo do Sentido, é justo o campo onde se deve colocar
o Amor. Os atos de inscrição exigem a função amorosa. O gozo-do-Sentido,
na escrita, é por via amorosa que ele procede. Observem também, no quadro,
como representação do Falanjo que freqüenta toda a obra de Caravaggio, o
que há espalhado em volta dele? As ferramentas da escrita, os instrumentos
da produção do artifício. Estão aí a literatura, a música, a arquitetura, a arte da
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Lilith
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O Sexo dos Anjos
Vejam que não é uma banalidade, porque ele não pinta bem a fuga para
o Egito, o que aliás muitos pintores fizeram. Ele pinta o descanso no Egito.
Ora, o que se representa neste quadro? Nada mais nada menos do que o meu
Pleroma. A intimidade, de mesmo nível, em que o pintor coloca as figuras, faz
Triângulo evidente. José, com seus apetrechos masculinos, seu burro, sua trouxa,
suas armas, suas ferramentas; Maria, com seu objetinho, o menino, Jesus, lá
na dela, envolvida nos baratos do feminino; e o Anjo, tocando a sua viola. E o
José segurando o que é a partitura da sua inscrição.
Aí estão o Masculino, o Feminino e o Anjo, que é o que toca a música...
José compenetrado com a produção do Anjo. Maria absolutamente “na dela”,
extasiada com aquela música. Aí estão representados há tanto tempo, pelo
Caravaggio, os Três Sexos do meu Pleroma Unário.
Até o próximo semestre. Muito obrigado.
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A Deus
Quarta Parte
OS QUATRO CONCEITOS
FUNDAMENTAIS DA
PSICANÁLISE, AINDA
O Retorno de Freud, Via Lacan
1º Semestre 1987
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A Deus
1
A DEUS
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O Sexo dos Anjos
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A Deus
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O Sexo dos Anjos
o próprio Freud retornar sobre seus próprios passos, e sobre os nossos também,
na re-consideração de cada pegada do gigante em sua referência, necessária e
indefectível, à sua descoberta essencial. Revertendo-se um verso de Fernando
Pessoa, reconhecer que seu fim floresceu em recomeço para nós: o retorno do
sintoma de Freud.
Pois que a Coisa inatingível não obstante inarredável – pois que ela
não-há – que o ato paterno sagital nos relembrou, é para além do inanimado e
para além da entropia que ele empuxa, como falta radical, tudo que há, qualquer
que seja a “vida” ou “morte” que em tal ou qual estado, ou modalidade, nossa
imajada visão se espelha convencida.
“A pulsão como tal”, Lacan para nós a desanuvia (Ética, 251), “e
na medida em que ela é então pulsão de destruição, deve estar para além da
tendência ao retorno ao inanimado”. Se ela é “vontade de destruição”, só o é
na medida em que é “vontade de recomeçar de novo. Vontade de Outra-Coisa”.
“Pulsão de destruição, no que põe em causa tudo que existe. Mas igualmente
vontade de criação a partir de nada”.
E Lacan nos diz ainda que “se tudo que é imanente ou implícito na
cadeia dos eventos naturais pode ser considerado como submetido a uma pulsão
dita de morte, só o é na medida em que há a cadeia significante”.
Ora, se o Tesão conceitual de Freud estava certo, e se é correta a afir-
mação, de Lacan, de sua necessária inserção no significante, das duas uma: ou
bem o que se passa no Haver só é precariamente abordável por mera projeção
da estrutura do falante, ou bem essa mesma estrutura, congruente com o mais-
além e com a pulsão e com o significante, é a mesmíssima que rege o próprio
Haver, permitindo-nos portanto algum certo saber, até mesmo algum pretenso
“conhecimento” científico, é claro que com a parciaridade da impotência
histérica, mas também conforme com o não-universal do eco do impossível
no seio mesmo dos avatares do Haver.
Uma tese da Física atual bem que podia ser – e bem dizer – a alteridade
do Outro sem outra alteridade, nem por isso dela menos desejoso, a reduzir-se
então a só cuidar do seu desejo próprio (de objeto impossível, de causa que
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A Deus
23/MAR
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O Sexo dos Anjos
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O tesão pelo imundo
2
O TESÃO PELO IMUNDO
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O Sexo dos Anjos
dois momentos... goal, esse próprio objetivo da fonte, que é inicial e terminal...
aim, essa lambedura do objeto, que é o trajeto do movimento pulsional em torno
dele... isto, no regime da pulsão parcial...
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O tesão pelo imundo
libido, que circula sobre o círculo do Esquema se processa nos avatares do
Haver, os Estados, no sentido do movimento pulsional...
...o objeto – no caso um objeto radicalmente imundo – é coisa que
não-há... o alvo desse movimento pulsional do Haver não é ACOISA, a qual é
a CAUSA desse movimento... o alvo é o Revirão de retorno que acontece no
Real: o Furo...
...os movimentos desejantes no seio do Haver são movimentos “mun-
danos” (o que pertence ao Haver)... o mundo é concebido como o Haver em todas
as suas vicissitudes... o imundo é o que não há... todos os movimentos pulsionais,
desejantes, conscientes ou não, em qualquer modalidade ou estado no seio do
Haver, se dão também no seio do FALANTE, mas com certa particularidade...
* * *
...o DUALISMO de que Freud não pôde abrir mão no seu aparelho
geral (pulsão de vida × pulsão de morte, pulsão do ego x pulsão sexual, etc.) é
relativizado pelo próprio Freud, diversas vezes, na sua obra... Freud relativiza
a dualidade num MONISMO que é a equivocidade produzida pelo processo
de reviramento, o que pode parecer paradoxal... o primeiro aparecimento da
pulsão sexual é do lado do mortal e o segundo é do lado do Eros...
...no seio do Haver, ao qual poderíamos fazer, e fazemos, uma suposição
de SUJEITO (que é o Sujeito-Suposto-Saber de Lacan –como ele diz: o próprio
DEUS), fazemos a suposição de alguém, sujeito nesse grande Haver, sujeito a
quem o Saber estaria disponível...
...o grande movimento desejante do PAI, que é algo nominal, de DEUS
(não é preciso aboli-Lo, pelo contrário: está no momento de salvá-Lo), ecoa em
todo e qualquer estado do Haver... e, dentro desses estados, em toda e qualquer
modalidade... todo o Haver é carreado num movimento desejante, de algo que
não-há, que é impossível, e que se refestela num Revirão que faz tudo começar
de novo na ordem da repetição (diferente de reproduzieren, de repetir o mesmo
enredo): começar de novo outra vez mesma coisa (Wiederholung)...
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contas, é mesmo... a histeria exibe o seu valor de impotência, tal como na ciên-
cia... a histeria é pré-condição do comparecimento do científico e não se sente
impotente porque sua estrutura seja de impotência e a de outros discursos não:
ela faz é referência à impotência... o que é diferente da neurose histérica, a qual
investe nessa impotência... já o discurso analítico, por exemplo, faz referência
ao impossível... a impotência é fato, a histeria não está mentindo...
...para Lacan, a salvação é a Santidade... só numa visão de aproximação
do imundo é que se pode bem-dizer (benedictus mundus) o mundo... um sujeito
só pode bendizer seu sintoma, não ao reconhecê-lo, mas ao ultrapassá-lo...
bendizer o Sintoma, só o Santo o faz: só no vigor do Sanctus é que o Sintoma
pode ser bem-dito... tê-lo reconhecido não é bendizê-lo... é preciso que ele seja
relativizado em função do sintoma do Outro, que é desejar o Impossível...
...desejar para além da morte é diferente de desejar a morte... Lacan
situa o vigor ético da psicanálise no regime do HERÓI TRÁGICO: Antígona,
por exemplo, entre duas mortes... mas é preciso um Super-Herói que, no seu
regime de sanção, de sancionado, de santidade, visualiza, para além da morte,
não uma segunda morte desde entre a primeira e a segunda, mas a (primeira)
morte pura e simples como Não-Haver... ele não deseja morrer, e sim que seja
respeitado o que fica para além da dita morte, mesmo que por isso tenha que
perecer... não é um kamikaze, pois este está na suposição de que vai conseguir
realizar a pulsão e que para isto está bem pago: seu sintoma é a pátria... o
Sancio de que se trata é pré-cristão... o Santo não pode fazer mais do que dar
exemplo... Antígona quis salvar a Lei, buscar para aquém do rei Creonte o que
o fazia administrador de sentido, de bens... ela brandiu o Bem Supremo, que
não-há e não paga nada por isso...
...a ESCRITA tenta sancionar materialmente certos atos no mesmo
nível em que o sujeito supõe ter reencontrado... uma obra de arte exalça esse
ponto de absolutamente nada, de apagamento de tudo, ponto supostamente
reencontrado em algum lugar, na vida de alguma pessoa...
* * *
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Repetição
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REPETIÇÃO
...o que acontece no Esquema é que ele faz a recorrência de diversos
conceitos... o que, talvez, faça com que alguns fiquem em questão no que diz
respeito às diferenças de conceitos sobre o manejo do Esquema... a intenção
era mesmo essa: fazer um esquema único que tivesse capacidade de recorrer
todos os conceitos em seu funcionamento...
* * *
...eu havia dito que a PULSÃO é isso aí... esse movimento de captura
pelo não-objeto ali no Não-Haver, e o retorno ao ponto de partida: começar
de novo...
...agora, vou dizer que a REPETIÇÃO também é isso aí... no mesmo
Esquema está inscrito o conceito de Repetição... a Repetição é que o Esquema
é um aparelho de Repetição... é um autômato, aquilo funciona sozinho... por
isso chamei de “Motu Perpetuo”, no 1° capítulo do Pleroma... ele funciona
sozinho... o Desejo que o Haver tem de Não-Haver empurra o Haver para o
seu próprio lugar, com tropeço no Real...
...com a ambigüidade lacaniana do Real como impossível e como o
que retorna sempre ao mesmo lugar, com certa indicação para o desempate
que temos com o Haver como tal, fica ali mais ou menos cindido... na medida
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Repetição
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Repetição
* * *
...o que há para saber a respeito de Repetição, está tudo nessas pequenas
páginas, de 55 a 65, do Seminário II de Lacan... a Repetição que nos comparece
no cotidiano e na fala do analisando...
...na medida em que estou partindo de um Esquemão para encaixar o
máximo dentro dele... trata-se de re-traduzir para um escopo bem maior, onde
caibam todos os conceitos na mesma estrutura... depois, ver como isso funciona
nesse pequenininho do cotidiano, da clínica, etc., como é compatível com a
estrutura apresentada por Freud e Lacan...
...Pulsão e Repetição... a coisa é a mesma, o conceito não... no que me
refiro ao Esquema total, é a mesma coisa... o acontecimento é o mesmo... o
conceito de Pulsão é o conceito desse acontecimento... partir de algum ponto,
pretender Acoisa, esbarrar no Real, portanto retornar ao circuito... partida, lam-
bimento e chegada... o conceito de Repetição é o eterno retorno desse mesmo
movimento da Pulsão... a diferença é entre o que comparece no Esquema
como totalidade, e num sujeito falante nas suas idiossincrasias num certo mo-
mento de fala... a diferença é de grau e não de estrutura... é uma estrutura só,
onde temos os conceitos de Pulsão, Repetição, tiquê, autômaton... está tudo
ali... num movimento só...
...quando tomamos o que Lacan diz no Seminário II... o que Freud ex-
plica sobre o movimento pulsional de um sujeito falante num dado momento...
é a tradução que o sujeito tem que fazer, na sua estorinha particular, desse Es-
quema... ele não lida diretamente com Acoisa e, sim, com o objeto... para ele,
já traduzido, via significante, via metafórica, etc., em pequeno objeto... mas que
porta as condições de inatingibilidade que são d’Acoisa... pode-se dizer que o
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O Sexo dos Anjos
objeto que o sujeito define é até disponível... por que a Pulsão, em vez de só
lamber, não come?... porque aquilo é pura metáfora de um aparelho precursor
que está no sujeito, e do qual ele sabe... sabe que aquilo é representante... não
precisa ter “consciência” para saber...
...a diferença, então, no meu aparelho, é de conceito, e não de estru-
tura... não há nenhuma diferença estrutural entre Pulsão e Repetição... agora,
cada sujeito, no que é nomeado, encapuzado pelo significante, etc., vai botar tal
significante-mestre, tal fantasia, como representação do Esquema fundamental
que ele porta...
...se abrirmos o Vocabulário de Laplanche-Pontalis, temos, p. 88
da edição francesa, pergunta do tipo: “A serviço do quê opera a tendência à
repetição?”... se olhamos do patológico, do aspecto clínico, para frente, confe-
rimos que há a Repetição... “a serviço do quê?” é o mesmo que perguntar: Por
quê?... “a serviço do quê?” dá também a impressão de: Qual o atingimento,
o alvo disso? Por que essa máquina faz isso?... vemos os autores angustiados
com o fato de não encontrarem bem a serviço do quê...
...continuando, temos: “Trata-se, como ilustrariam em particular os
sonhos repetitivos consecutivos a traumatismos psíquicos, de tentativas feitas
pelo ego para amestrar e depois ab-reagir de modo fracionado às tensões exces-
sivas? Ou bem é preciso admitir que a repetição deve ser, em última análise,
colocada em relação com o que há de mais ‘pulsional’, de ‘demoníaco’ em toda
pulsão, a tendência à descarga absoluta que se ilustra na noção de pulsão de
morte?”... o tal lúdico da repetição no sujeito falante é a tentativa de mestria?...
ou é esse demoníaco pulsional que visa o Mais-Além?... não vejo o motivo
desse “ou bem”, pois é a mesma coisa...
...o que se tenta amestrar?... o trauma, o impossível de saber... “o que
não tem sentido, nem nunca terá”... tentar amestrar é entre aspas, pois se está
é subdito a essa Repetição... o que não impede que, mediante o lúdico, haja
tentativa de amestrar o inamestrável... dar conta do trauma, entendê-lo... o
que faz com que a Repetição esteja ligada necessariamente à estrutura da
Pulsão...
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Repetição
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Repetição
agora, o que Ele supõe que possa ter como alteridade e que não-há, isso Ele
não entende...
...o serviço que pode prestar uma unificação conceitual como esta
que estou avançando é vermos, por trás, a serviço do quê opera a tendência
à Repetição... parece que é a serviço de algo por vir... estou dizendo que não
é: que é a serviço da estrutura que está por trás... que é assim... não há aí, na
verdade, paradoxo e, sim, equivocação...
...por exemplo, Laplanche-Pontalis dizem que “é evidente que, se
situarmos o princípio do prazer como estando ´diretamente a serviço das pulsões
de morte`, a compulsão à repetição, mesmo tomada no sentido mais radical
em que Freud a admite, não poderia estar situada ‘mais-além do princípio do
prazer’”... eles encontram uma contradição aí... mas não há contradição de
espécie alguma... não segundo o Esquema o princípio do prazer é tudo
o que acontece dentro do Haver... o Haver só trabalha na base do prazer, do
princípio do prazer... portanto, do princípio de realidade... do ponto de vista do
que é possível no Haver, tudo se refere ao princípio do prazer... mas o próprio
princípio do prazer só existe, só funciona na medida em que a Pulsão é de
Não-Haver... essas coisas não são, portanto, opostas uma à outra... elas são da
mesma estrutura... a Pulsão de Vida é a Pulsão de Morte... só existe uma... não
há dicotomia... e sim diferentes efeitos...
...no que o movimento libidinal é no sentido do sumiço, de chegar
ao zero da força, da Kraft, de tudo se tornar prazer... qualquer prazer diverte
o Outro... quero supor que só se vê paradoxo quando não se tem o Esquema
... mas quando se vê que a maquininha, o motu perpetuo, é assim, todo seu
prazer é em função de um gozo absoluto que não-há... seria o gozo-do-Outro
realizado... então, a Pulsão de Morte é a Pulsão de Vida... porque é impossível
morrer... isto não é paradoxo e, sim, o funcionamento da máquina do automa-
tismo de repetição...
...estou conservando os termos de Lacan, autômaton e tiquê, ao dizer que
o movimento, o périplo do Haver é o próprio automatismo... o qual existe causado
em função do Não-Haver... não confundir isto com os acontecimentos pessoais...
para nós outros, que não somos o Haver em sua perfeição, ali, no F do Esquema
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O Sexo dos Anjos
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Repetição
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O Sexo dos Anjos
diante... num aparelho de gozo-fálico, que só não se apresenta como tal porque
o sujeito não engatou com o órgão...
...eu conheci neurótico que engatava com o órgão... quando eu era da
Escola Militar, havia aqueles exercícios horrorosos de guerra... um deles era
subir, num tempo dado, uma corda de uns dez metros de altura... um colega
meu ficou com o apelido de “homem da corda” porque não podia fazer esse
exercício... ele subia, gozava (esporrentamente) e caía... eu não entendia por que
isso acontecia... acontecia porque ele confundia todos os movimentos pulsionais
com o gozo-fálico na carne... traduzia na hora... e aí, para ele, tinha alguma
significação de ascensão... era um vexame... ele era gamado numa corda...
...toda tentativa de consecução de ascensão, de passagem definitiva,
fracassa e se traduz em aparelho de gozo-fálico... ao qual é difícil chamar de
gozo-fálico porque não comparece instalado no órgão... mas é da estrutura de
gozo-fálico... e quando se é doidinho o suficiente para engatar os dois, goza-se
daquele modo...
...daí, não podermos ter certeza diante de uma reclamação de falta
de gozo-fálico... quando uma mulher diz que não goza, está falando de gozo-
fálico... porque o Outro gozo não existe mesmo... ela é que pensa, e diz, que
existe... não podemos decidir, de saída, se é sustentação do gozo-do-Outro na
impossibilidade, ou se é queda imediata no gozo-do-Sentido sem ancoragem no
gozo-fálico do órgão... no primeiro caso, o sujeito fica numa eterna aspiração...
no segundo, ele cai antes ainda... ao invés de sofrer de ejaculação precoce, por
exemplo, ele salta por cima... é tão precoce que não chega ao órgão... ele salta
por cima e começa a fazer sentido... são duas coisas completamente diferentes...
não se pode tratar clinicamente do mesmo modo...
...histérica que diz que não goza, não é gozo-do-Outro... ela está pas-
sando direto e caindo no Angélico... ela começa a bater boca no meio da foda...
isso ninguém agüenta... seria imitação do gozo-do-Outro se fosse certo gozo de
Macunaíma... ele dorme no meio da trepada... a histérica, não, começa a querer
saber, do outro eventual, qual o sentido de estar trepando...
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Repetição
ninguém... ele só escreveu o livro... um ato angélico... por escrito... num ato de
escritura, ele fez, de um gozo que seria perverso se realizado em outro nível,
um gozo-de-Sentido absolutamente compatível com o não-pecado das pos-
sibilidades da crueldade...
...o analista trabalha assim... ele é extremamente cruel... mas na pos-
sibilidade do cru do movimento prazeroso de o Inconsciente comparecer... é
diferente de passar ao ato... não que a psicanálise seja contra passar ao ato... ela é
contra passar ao ato que desrespeite a Lei da diferença, que é fundamental...
...vontade de torturar os outros, eu tenho... todos aqui já tiveram... agora,
quem tortura é um fdp... porque não pode... quando, então, se fala “tortura nunca
mais” é porque ela vem de novo... isso é denegação... a tortura é cotidiana...
passar ao ato da tortura é desrespeito à Lei fundamental da Diferença... então,
não pode... e quando algum sujeito se depara com o chamado torturador, pensa
que ele próprio jamais faria aquilo... faria sim... faria!... todo mundo faria, mas
só o perverso faz...
...portanto, a psicanálise não é a religião do amor... é Arreligião, da
Lei...
* * *
Pergunta –Pelo que você disse, o que há de estrutura comum entre Pulsão e
Repetição é a instrumentalidade da Libido diante de uma efetivação no gozo-
do-Outro.
...muito bem dito...
P – O grau de diferença é no como se daria essa instrumentalidade. Na
Repetição, você deixou claro: ela se dá por impossibilidade. Se a Pulsão faz
a Libido ancorar no regime do Haver, pelo menos em relação ao sujeito a que
isso é “prometido” ela se dá como possibilidade parcial, metaforonímica. Se
é cumprida ou não, é outra história. Então, a SUBLIMAÇÃO tem a mesma
estrutura das duas. A Sublimação faz a mesma coisa, só que realiza como
impotência. No sentido de que interrompe a promessa de Pulsão. Ela não
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O Sexo dos Anjos
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Repetição
obrigação, ele é paranóia. Como fica ele no Esquema ? Onde ficaria como
possibilidade, portanto, Saber possível de emanação feminina, e onde se torna
paranóia? No Esquema , onde essa coisa daria errado e viraria paranóia?
...o que vem antes, a OBRIGAÇÃO ou a foraclusão?... esta é a questão...
Lacan colocou o conceito de FORACLUSÃO... a descrição do que acontece
no psicótico, foracluído do Nome do Pai, é que ele não tem la grand’route...
ao invés de uma auto-estrada que faz um percurso direto, ele vai por todas as
ruazinhas periféricas e se perde por lá... então, em termos do Esquema , o que
falta ao psicótico?... falta-lhe referência DIVINA... por isso, ele é tão irritante
que parece um bicho... alguma coisa aconteceu e ele não faz referência a uma
paternidade, que é o grande Outro, ao circuito integrado...
...o que o psicótico não consegue entender que haja?... não o que ele
seja, pois isto eu também não entendo... é o gozo-fálico... para ele entender,
aceitá-lo, dizer: “É só isso, mas tudo bem!”, é preciso que faça uma referência
ao Esquema na sua plenitude... mas o psicótico não entende, não aceita que
o gozo-fálico (h)aja... daí, a aparência de aprisionamento do gozo-do-Outro...
mas é só aparência... uma vez que o gozo-do-Outro é obrigatório, ele só pode
sê-lo por alguma marcação... aí vai marcar uma configuração que Lacan chama
de egóica...
...quem está no gozo-fálico sem ser psicótico... o místico, por exemplo...
metaforiza, faz poemas, tudo, ele vai em frente... mas está visando lá adiante...
a obrigação do gozo-do-Outro não visa lá adiante... visa um término definitivo
numa parciaridade... não é nem visar um objeto parcial... é visar uma parciari-
dade para trás... um SER... é diferente do neurótico, que se acredita um ser...
o psicótico não tem como acreditar, ele se põe como um ser...
...mesmo o psicótico está sob os efeitos de TRANSFERÊNCIA... não há
falta e, sim, labilidade de transferência ali... se ele não pode ter uma referência
paterna, só pode fazer transferências pontuais, momentâneas... no que escolhe
aqui e agora alguém, é para ser esse referente parecido com a constituição, diz
Lacan, imaginária para botar no lugar da grande estrada que ele não tem... não
é colamento, e sim transferência lábil... mas aquilo não sustenta esse lugar...
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O Sexo dos Anjos
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Repetição
me parecer que o psicótico não encontra, talvez, a tempo, ou não tenha encon-
trado ainda, condições de abstrair, fazer um grande teorema das paternidades
que encontrou... uma grande estrutura...
* * *
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O Sexo dos Anjos
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Repetição
céus”... entre nós assim como no Haver por inteiro... ponto final...
...a segunda parte é meio calhorda... “o pão nosso de cada dia nos dai
hoje”... começa-se a “cantar” o Cara... em absoluta contradição com a primeira
parte que, esta, é a Gelassenheit dos místicos... o Pai total, que é santificado...
a vontade d’Ele será feita... a minha é titica perto da d’Ele...
* * *
30/ABR
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O Sexo dos Anjos
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O ICS: An affair to remember
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O ICS:
An Affair to Remember
...o que vai acontecer hoje neste Seminário?... das duas uma: ou te-
remos um Seminário muito inspirado, ou um Seminário desenxabido... podem
apostar: hagan juego señores!...
...sabem por quê?... porque –because I’m in love... não vou dizer que
estou apaixonado porque to be in love não tem nada a ver com estar apaixo-
nado... I’m in love with someone... sabem com quem?... com Clare... yes: I’m
in love with Clare Isabella Paine...
...não com Clare pessoalmente, mas com a Clare escritora... com a
autora de um livro que ela acaba de aprontar para nós... um livro maravilhoso,
um romance, ein wunderbar Roman, como se diz na língua de Freud... e que,
ainda por cima, tem o poder de me trazer de volta a minha adolescência... ( y
otras cositas más)...
...é claro que a adolescência não retorna... isto é, de fato: nunca mais,
nevermore, como lhe disse o corvo de Allan Poe... o que nos retorna é a sua
significação...
...e qual é a significação da minha adolescência?... é isto que estou
fazendo agora aqui...
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O Sexo dos Anjos
* * *
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O ICS: An affair to remember
...como vemos, tratar o ICS é assunto longo demais para hoje... posso
apenas introduzir a minha questão...
...Lacan diz, no Seminário II, que a verdadeira fórmula do ateísmo...
n’est pas que Dieu est mort:
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O Sexo dos Anjos
considerá-lo já morto, pois não se pode matá-lo... mas, na verdade, é porque ele
é imortal... o morto é imortal, pelo menos no sentido de se poder matá-lo...
...alguns lacanianos ficam muito nervosos com isto... ou melhor, como
dizem lá no interior de onde eu vim, ficam num “estado de nervos de dar
pena”... de dar pena a suas escrevinhações, que são de fazer inveja a qualquer
exorcista medieval...
...para não ficarem em pânico diante da multivocidade, da elefantíase,
produzida pela equivocidade aprontada por Lacan, eles escrevem, por exemplo,
como fez François Regnault em seu livro Dieu est Inconscient, que: “Lacan
declara que Deus... –que Deus é inconsciente. Mas não que: Deus é o Incon-
sciente, passo fatal de Freud a Jung”... quero ver esse autor nos dar toda a conta
de tal equivocação...
...o passo –aliás nada fatal mas apenasmente em falso –de Freud a
Jung não é a suposição, nem a constatação de que Deus é o ICS –o que aliás
Jung não soube sustentar –mas sim a confusão jungiana do ICS com os sen-
tidos aprontados, com os sentidos dados pela produção inconsciente, e que
por aí sobram e soçobram como “restos metonímicos” nos terrenos quase que
baldios aonde o Outro acumula seus escombros” os tais “Arquétipos”, que são
conformes com o Imaginário de Lacan... é na ordem do conteúdo inconsciente
arquetípico que está o passo em falso do Jung... psicologizante, portanto...
...será difícil dizer que Deus é o ICS?... sim, é muito difícil... porém,
é bem menos difícil dizer que o ICS é Deus... pois que “o ICS é o discurso do
Outro”, como mostrou Lacan: o ICS é Deus falando...
...é verdade que Deus-falando não é Deus por inteiro... pois que deve-
mos pensar no Silêncio de Deus... silêncio que Não-Há, aliás... mas nem por
isso deixa de ser a Causa do desejo-sonoroso, de Deus...
...essa estória do silêncio do analista, por exemplo, é mera imitação
do silêncio de Deus que não-há e que é Causa de seu desejo... imitação de
Não-Haver, que Lacan quer configurar como o “morto”... o morto é o nome
do fingimento do analista... fingimento que ele faz de silêncio...
...assim, podemos dizer que o ICS não deixa de ser Adeus... ou seja, o
ICS é o Adeus em sua não-relação com o Ã... por isso mesmo é que o Haver,
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O ICS: An affair to remember
o , o Há-Deus, é o Adeus... pois que ele vive falando (como ICS) de sua
despedida do Não-Haver (Ã)...
...assim, Deus é o ICS, do ponto de vista de sua relação (impossível)
com o Silêncio do Não-Haver...
...”Deus vel Natura”, escrevi em algum lugar... uma fórmula um pouco
troncha de traduzir, para o Esquema , o “Deus sive Natura” do Spinoza... para
ele, é “Deus, ou seja, a Natureza”... é coincidente, é um Deus imanente... eu
digo vel na medida em que há uma interseção entre o e o Ã... Deus está
nessa interseção... esta minha fórmula não é muito adequada, pois não se trata
bem disso... é uma maneira de dizer: Deus vel Não-Deu(s)...
* * *
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O Sexo dos Anjos
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O ICS: An affair to remember
não posso dizer que Deus é o ICS e ponto!... porque, Deus é e não-é o ICS...
pois se, de fato, Deus é igual ao ICS, de direito, no entanto, Deus é maior do
que o ICS, isto é, por seu desejo de Não-Haver... pois que o desejo de Deus
visa, Mais Além da Linguagem, o Silêncio do Não-Haver... porém como o
Não-Haver não-há, o próprio Deus, em sua castração (originária), tem que se
limitar ao seu maior expediente: o Revirão da Linguagem...
* * *
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O Sexo dos Anjos
...é o que apelidei grosseiramente: Deus vel Natura... que seria melhor
dizer: Deus é Não-Haver vel Natura... o Pai que não é puro Nome só serve para
atrapalhar... depois que ajuda, é claro!...
...o ICS do falante (de que Lacan trata) não é senão o outro ICS, o
divino... só que, a cada momento sincrônico fica evidenciada sua impotência
em relação a onipotência do Outro, isto é, em termos de Saber (S2)...
...o ICS é histórico... se história quiser dizer produção de sentido no
só-depois da seriação... fazendo a diferença que Heidegger coloca entre Ges-
chichte e Historie... mas a onipotência do Outro se refere à sua eternidade, a
cada momento, dada a sua infinitamente grande repetição... ou seja, a cada mo-
mento, e no só-depois de sua seriação, o Outro se lembra da “Nova” produção...
é muito velha, mas Ele se esqueceu porque tem que recalcar a impossibilidade
de Não-Haver... mas se lembra concomitantemente com o surgimento... no
só-depois, Ele sabe e lembra... porque Ele tem analista... o silêncio, do outro
lado... Ele vive na “análise infinita” (a de que Freud falou)... Ele não pára de
se analisar, coitado!... Ele pode ficar curado de tudo, menos do Não-Haver...
desejo não tem cura... nem para Papai-do-Céu... então, Ele acha de novo sua
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O ICS: An affair to remember
experiência anterior... justamente porque não a procura –pois que procura pelo
que não-há...
...ao passo que a impotência do Falanjo se refere à sua temporaneidade
(ou contemporaneidade), encontrando-se ele, assim, de algum modo, parciário
em comparação com o Outro... é como se cada falante, ou cada momento de
história dos falantes, fosse um fragmento de um grande Holograma do Outro,
reproduzindo-o completamente, mas com pouquíssima nitidez... só o somatório
dos fragmentos (no espaço e no tempo) podendo igualar (no limite da infiniti-
zação) o Outro Holograma... é hologramático, mas o fragmento do holograma
tem muito pouca nitidez, embora apresente a mesmíssima imagem...
...donde o work in progress, de Joyce... donde o Saber Absoluto, de
Hegel... donde O Livro, de Mallarmé, o qual depende de seu Lance de Dados,
seu cu dedado, como dedo na ferida do Haver... o cu do mundo... o buraco da
virgem... isso impressionava muito os teólogos... como é que Deus e o Haver
por inteiro cabem dentro do buraco da virgem!?... passa por ali... mantém a
virgindade... é o himen hiper-complacente... e se reverte...
...se tomarmos, para falar dessa diferença de potencial, uma velha
lamentação latina: ars longa, vita brevis (a arte é muito longa e a vida muito
pequena para realizá-la), poderíamos dizer: para Deus, para o Outro: ars longa,
vita longa... a duração da vida d’Ele = duração da sua arte... isto é, eternidade...
porque está na eternidade, a arte é do tamanho da vida a cada momento... só-
depois, é absolutamente coincidente com os acontecimentos do Haver... Ele
se esquece, mas a cada acontecimento que produz inconscientemente, Ele se
lembra... Ele é interpretado por seu próprio movimento... Ele faz, como qualquer
analisando, análise o tempo todo... e acertando o golpe, sempre, porque seu
analista é cego, surdo e mudo...
...para o Homem: ars longa, vita brevis... a duração de vida (do
boneco, do macacão) < duração de arte... isto é, essa relação de durações é
tradicionalidade... é preciso ir passando adiante... é preciso transmissão para
tentar igualar o tamanho da arte e o tamanho da vida... é preciso muito falante
fazendo coisas...
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O Sexo dos Anjos
* * *
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O ICS: An affair to remember
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O Sexo dos Anjos
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O ICS: An affair to remember
terminado conceito...
...por isso, Hegel fica imaginando o somatório das subsomas de todas as
discursividades para pensar o encaminhamento para o Saber Absoluto por um
salto conceitual... fica difícil até dizer-se que é impossível porque só há definição
como impotência... a histérica tem razão... daí a paixão de Freud pela histérica...
Lacan fica ligeiramente deslocado porque sua paixão é pela psicótica... e nós
estamos aqui no retorno de Freud, apaixonados de novo pela histérica...
...Lacan disse que a psicanálise está aí para reintroduzir na ciência o
Nome do Pai... a historicização do Pai... as conseqüências disso se o fracasso
não for extremamente grandiloqüente serão uma grande ampliação do escopo
científico, regido pela psicanálise... a ciência já foi serva da religião, da filosofia,
de uma de suas próprias partes: a física... por que não ser serva da psicanálise?...
por uns tempos, pelo menos... a gente também tem o direito...
* * *
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O Sexo dos Anjos
28/MAI
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Transferência
5
Transferência
Se mentes me semeia
Teu desejo de outra messe.
Esse amor declarado
é só clamor de arado:
Toda terra o esquece.
Sebastião do Rio ele Janeiro, p. 28...
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O Sexo dos Anjos
se acobertar um pouco com os longos cabelos que possuía: saiu montada sobre
um cavalo branco a louraça-belzebu, a louraça-satanás... não se sabe se, depois,
ele abaixou os impostos –a história não conta... não interessa...
...isso talvez seja exatamente da ordem da relação transferencial e
da interpretação... das demandas do povo, representadas pelas demandas da
Godiva, o conde fez uma interpretação para o que devia apontar: o desejo...
“O que quer esse povo? Você fica aí falando pedintemente das demandas desse
povo! Eles querem é saber do meu desejo. Vai lá e mostra para eles verem!” –é
uma maneira de interpretar... outra, é a própria ambigüidade da Godiva entre
o povo e o marido: “Vai lá e mostra o objeto para eles! Vamos mostrar o que
é pulsional neles! Eles estão choramingando, pedindo, vamos mostrar o seu
desejo para eles!”... de qualquer modo, é uma interpretação brilhante...
...a Godiva de Irajá já é um pouco diferente... ela mostra dentro da
equivocação... calcinha! calcinha! calcinha de morango! calcinha anti-aérea!
calcinha comestível! calcinha bélica!... é a chamada Boceta de Pandora, na
mitologia... que está por trás da calcinha... é muito inteligente essa música: o
objeto se apresenta como requerível e agressor... no mesmo nível da resposta
do conde a Lady Godiva e do ato que ele a mandou fazer: apresentar o objeto...
é um terror... primeiro, ela tinha que ter a coragem de fazer aquela coisa ob-
scena... segundo, porque o povo, justo porque ia ter seu desejo desnudado, ia
ficar com ódio... imediatamente, ia baixar o moralismo em cima... estamos no
século XI, segundo o conto...
...e a transferência é essa anedota complicada... de saber se tiramos ou
botamos a calcinha da Lady Godiva, se apresentamos ou não a verdade que
está movimentando o que está por detrás da demanda...
...a interpretação seria exatamente essa: mandar a Lady Godiva passear
nua... toda nua... toda nua...
* * *
...no Seminário II, edição brasileira, p. 167, Lacan diz que: “A interpre-
tação concerne a esse fator de uma estrutura temporal especial que tentei definir
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Transferência
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O Sexo dos Anjos
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Transferência
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O Sexo dos Anjos
mito está até hoje no Cristianismo –que pode ser a metade macha, fêmea,
mas não é o que está interessando...
...Agatão faz seu discurso... ele é o mais jovem, o mais engraçadinho,
fala muito bem para a idadezinha dele, etc. ... todos admiram o jovenzinho... faz
parte do “nepotismo”... logo após, é a vez de Sócrates falar... ele começa com
sua dialética, a qual vem a ser interrompida pela entrada abrupta de Alcebíades,
com um bando de gente de porre e esculhambando com todo o discurso... Al-
cebíades –que não era neurótico, talvez fosse perverso –era aquele famoso
general jovenzinho da Grécia, que quebrou as piroquinhas dos Dionísios do
templo e foi punido... a Grécia, aliás, por causa disso, perdeu uma guerra, pois
ele não pôde participar por estar cumprindo pena... Alcebíades, então, começa
a fazer um elogio a Sócrates... diz que já tinha cantado Sócrates de todas as ma-
neiras, mas Sócrates não transava com ele... uma coisa horrorosa, o Mestre não
dava colher de chá... está evidente no texto que, pelo menos naquele momento,
Sócrates está de olho é no Agatão... nem que seja só para ficar admirando, o
que já é uma maneira de resolver alguma pulsão: a escópica, pelo menos... Al-
cebíades continua fazendo o grande elogio de Sócrates, de sua espiritualidade,
de sua inteligência, etc. ... Sócrates retoma isso e faz a INTERPRETAÇÃO
da fala de Alcebíades... o que permite Lacan dizer que era evidente que o dis-
curso psicanalítico não foi inventado por Freud –nem pelos analistas –, mas
foi apenas destacado por ele... já estava lá no texto de Platão o funcionamento
do discurso analítico...
...qual é a interpretação?... a de que Alcebíades estava fazendo uma
declaração de amor a Sócrates, visando Agatão... “sua aparência de demanda
de amor para cima de mim é seu tesão por Agatão que está aqui do meu lado
me paquerando”... mostrou o desejo de Alcebíades... mas Sócrates ficou nisso
ou levou a análise até o fim?... ele requisita outra vez, como faz em quase todos
os Diálogos de Platão, sua figura mítica: Diotima, uma sábia de algum lugar,
no feminino, para levar a análise mais adiante, até à última instância... e vai
mostrar que para além do desejo por Agatão está o DESEJO DO ANALISTA
–desejo de Sócrates –de referir-se a uma alteridade radical aonde o desejo
340
Transferência
* * *
...um grande poeta nosso, bastante pouco lido hoje em dia, chamado
Augusto dos Anjos, diz:
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O Sexo dos Anjos
MORTE –não pensem que estou pedindo arrego –, mas porque o que quer
que se faça como interpretação visando a eliminação do que é brandido na
transferência –a eliminação dessa relação amorosa, a queda da transferência
–é apontar para o desejo... e apontar para o desejo para além do desejo de
Alcebíades por Agatão é apontar para o desejo enquanto tal, enquanto é, nada
mais, nada menos, movimento pulsional, e ponto!...
...por isso diz Lacan, Seminário II, p. 243: “A distinção entre pulsão de
vida e pulsão de morte é verdadeira na medida em que manifesta dois aspectos
da pulsão. Mas com a condição de conceber que todas as pulsões sexuais se
articulam no nível das significações no inconsciente, na medida em que o que
elas fazem surgir é a morte –a morte como significante e nada mais que como
significante [grifos meus], pois será que se pode dizer que há um ser-para-a-
morte?”...é Lacan quem pergunta... “Em que condições, em que determinismo,
a morte, significante, pode ela brotar toda armada na cura? É o que só pode ser
compreendido por nossa maneira de articular as relações”...
...“Pela função do objeto a, o sujeito se separa, deixa de estar ligado
à vacilação do ser, ao sentido que constitui o essencial da alienação. Ela nos
é suficientemente indicada há muito tempo por traços suficientes. Mostrei a
seu tempo que é impossível conceber a fenomenologia da alucinação verbal se
não compreendemos o que quer dizer o termo mesmo que empregamos para
designá-lo –quer dizer, vozes”... o objeto...
...“Na medida em que o objeto da voz está presente, é que está presente
o percipiens”... o ser que percebe... “A alucinação verbal não é um falso per-
ceptum” –falso ato perceptivo, falsa percepção –“é um percipiens desviado.
O sujeito é imanente à sua alucinação verbal”... é causação do sujeito e não da
percepção... “Esta possibilidade está aí, o que nos faz colocar a questão do que
tentamos obter na análise, no que concerne à acomodação do percipiens”... do
sujeito que faz sentido, do sujeito-signo...
...“Até à análise, o caminho do conhecimento sempre foi traçado no
de uma purificação do sujeito, do percipiens! Muito bem! Nós, nós dizemos
que fundamos a garantia do sujeito em seu encontro com a porcaria que pode
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Transferência
suportá-lo, com o a minúsculo do qual não é ilegítimo dizer que sua presença
é necessária”...
...o que se faz também com essa morte, que só há como significante,
portanto não precisa ser de fato, mas só de direito, é alucinatório... o medo
de morrer, as relações do sujeito com a suposta morte tout court, é da mesma
ordem do percipiens desviado... o sujeito não tem a menor condição de abordar
morte nenhuma...
...o que é mortal na interpretação e na cura não é senão brandir-se o
significante, enquanto tal... o que, no meu projeto, no meu modo de escrever
isto, no meu Esquema, é brandi-lo por inteiro... aí é que há uma pequena di-
ferença, uma pequena articulação que faço sobre o que Lacan vem fazendo, de
mostrar que brandir o significante por inteiro é brandir o desejo, é brandir esse
halo da Pulsão... isto é, o único mortal que há... a única morte de que se pode
sofrer nesse Revirão... não há nenhuma outra concebível... no que a morte é
apresentada como Pulsão de Não-Haver, é imediatamente apresentada como
PULSÃO DE VIDA...
...Lacan diz, p. 240 –tratando da questão do desejo do analista, do desejo
do analisando e do que acontece como encontro possível numa análise –que
Freud, ao tratar de que desejo está em questão numa análise, diz por uma espécie
de escamoteamento que “depois de tudo, é apenas o desejo do paciente –coisa
para serenar os confrades. É o desejo do paciente, sim, mas no seu encontro com
o desejo do analista”...
...“Não é mesmo singular, esse eco que encontramos –por menos que
vamos meter ali nosso nariz –entre a ética da análise e a ética estóica? O que é
a ética estóica, no fundo? –senão, será que jamais terei tempo de demonstrá-lo
para vocês, o reconhecimento da regência absoluta do desejo do Outro, esse
Seja feita a vossa vontade! retomado no regime cristão”...
...taí o trabalho de Sócrates, n’O Banquete... o desejo do analista diz: “Seja
feita a Vossa vontade”... diz a quem?... ao Outro... esse Outro que, no meu Esquema,
se exprime a cada passo de sua modulação em qualquer lugar e tempo do Haver..
...retomo outro poema de Augusto dos Anjos...
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O Sexo dos Anjos
...quem é esse Outro que assim se manifesta, que não é preciso ser
beata de joelho roxo para poder entender que ele há?... no meu Esquema, a
Transferência se garante dentro desse movimento desejante, que não é senão a
própria estrutura da Pulsão, como um certo Sujeito adscritível a esse Haver –
com todas as suas manifestações significantes, significativas e de significação
–que é o suporte fundamental da Transferência: o chamado Sujeito-Suposto-
Saber... que Lacan nos indicou dizendo: “Deus ele-mesmo”... eu é que estou
apenas situando deste modo...
...quero dizer é que qualquer Transferência se suporta, em sua aparência
imediata de amor, nessa necessidade fundamental do sujeito falante em fazer a
suposição de um Sujeito radicalmente Outro que é suposto saber o que se passa
na região do sujeito menor que somos nós... para isso não preciso dizer que ele é
onisciente, a não ser só-depois... mas fazer a suposição do Sujeito Outro, dessa
divindade que abrange o Haver, é o suporte das transferências locais...
...a Transferência é, portanto, a relação mais ou menos amorosa entre
o Filho e o Pai... não há Transferência de um lado só, ela é recíproca, embora
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ser mais nem menos que o Revirão... trata-se aí da morte enquanto significante,
porque os outros animais também “morrem” e não tratam disso... por isso La-
can, não sendo imbecil, diz que não há morte senão como significante... só há,
então, emergência de sujeito no regime do significante... o regime do signo não
propõe sujeito e, sim, ordens projetivas de reciprocidade, cuja subjetividade é
distante: depende do terceiro, pois entre dois não há amor... esse terceiro é o
Sujeitão lá de cima, cuja instância nós outros lemos aqui colocada...
...mas o que é essa passagem do signo ao significante?... Lacan chega
a articular muito bem o processo, o tempo todo, mas no respeito que fica a
certa lingüística e a certo estruturalismo, isso parece que não se diz muito
claramente... o como funciona essa passagem, é essa maquininha que uma
lingüística tipo saussureana não nos empresta, não nos presta muito... minha
questão está aí... sim, é preciso que nasça uma criança que tenha aparelhos
semelhantes ao do animal, que reconhece, que lida com a mãe signicamente,
se não cinicamente... mas como brota daí o significante como tal?... e o que
tem isso a ver com a Transferência, com a interpretação, com a análise e com
a queda da Transferência?...
...qual é, então, a máquina que faz isso?... é a função catóptrica... é
isso que quero recolher nessa coisa mal explicada no Estádio do Espelho, por
exemplo... não que Lacan não nos tenha servido nesse propósito, mas isso
nunca foi explicitado... e eu ponho, repito, a responsabilidade disso num certo
apego à lingüística saussureana... se eu não tiver a concepção de uma catoptria
inerente –e a isto não sei responder: por que apareceu um animal que tem essa
função catóptrica tal como ela se apresenta na minha suposição de Haver? –
de um aparelho de linguagem funcionando assim, não há a menor condição de
o signo passar a significante... dado um signo, ao qual, etologicamente mesmo,
um bebê, ainda que prematuro, está afeito –ele responde a essa linguagem com-
portamental animal: bota-se teta na boca e ele chupa, etc. –eis senão quando é
preciso que o significante se apresente na EQUIVOCAÇÃO do signo, ou seja,
constituindo o HALO significante por inteiro daquela relação sígnica... alguma
coisa tem que avessar essa experiência sígnica de um sujeito para que ele possa
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Transferência
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O Sexo dos Anjos
do falante como muito mais atuante do que a função significante... não estou
dizendo que tenha maior importância teórica e, sim, que é mais presente...
...é função do DISCURSO ANALÍTICO introduzir-se, intervir –até
no seio da cultura –reclamando o Revirão disso, reclamando o distanciamento
dessas relações amorosas com vistas a uma relação de respeito à ordem do
significante, do reviramento que é a verdadeira ordem da diferença...
* * *
...Lacan teve que fazer um grande esforço para mostrar que quando se
deseja um objeto, este é desejado como representante da falta... é signicamente
que o sujeito trabalha... minha questão é simplesmente mostrar que o signo é
para-aquém e para-além do significante...
350
Transferência
que é para-aquém.
...a função significante é operada pelo halo enquanto Revirão... quero
dizer que podemos até acompanhar, na história do falante, um acrescentamento
de significantização dos signos... quando Lacan diz que o sujeito vai buscar
o significante dentro do real –real lá dele –isso é colher o significante como
signo... é no que ele significa algo para alguém instalado com-sentido, ou seja,
faz sentido e tem consentimento, é que é colhível para ser tornado significante...
minha implicância é com a lingüística que amarrou os processos...
...o que há de interpretação, de intervenção, é estrito reviramento... toda
vez que, na sua relação transferível –que é o suporte e dá condição à análise –
o analisando mostra o signo, a única função do analista é operar no sentido do
reviramento, do avessamento para que se torne significante... ou seja, só posso
conceber, como já disse, a árvore em termos sígnicos porque há aparelhos
fabricados na zona do Haver, no campo do Sentido, já estatuídos com sentido,
e é signicamente que abordo esse sentido...
...o processo do falante não é produzir inicialmente, a partir de coisa
alguma, o significante... mas o significante só faz Nada de Coisalguma na medida
em que faz o Revirão, que atravessa a coisalguma no ponto F –aí ele se torna
significante... mas a base sobre a qual o significante se instala é o reviramento
de um signo... o avessamento... então, tudo se torna neutro, porque o que era
isto pode ser o anti-isto... é ai que o sujeito pinta no seu modelo articulatório
e concreto...
...evidentemente que, de entrada na fala e no hábito significante, di-
gamos assim, posso trazer o avesso disso... é o que chamo de signo para-além
do significante... aí posso, em trabalhando de maneira significante, operar a
recriação de signos... estão aí as obras de arte, as invenções... quando o sujeito
inventa algo novo, foi preciso que atravessasse pela via significante e, de dentro
da ordem significante, instalasse um signo novo: ele acaba fazendo alguma
coisa que faz sentido... é onde coloco a região do meu Falanjo... mas não há
produção, invenção sígnica sem esse lugar do sujeito revirando de alguma
maneira e funcionando de maneira significante, isenta...
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* * *
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Agatão, como Sócrates sacou... Lacan afirma (Sem. 20, p. 44) que “o que vem
em suplência à relação sexual é precisamente o amor”...
...ora, aquela declaração de amor, de Alcebíades a Sócrates, é denotada
por Lacan como Transferência... o que não o impede de dizer (Sem. II, p. 133)
que “a transferência é atualização da realidade do inconsciente”... e, mais adiante
(p. 138), que “a realidade do inconsciente é sexual”... no entanto, ele diz também
(Sem. 20, p. 27) que “quando se ama não é de sexo que se trata”... e (p. 77) que
“falar de amor” –como faz Alcebíades, e todos, aliás –“é, em si, um gozo”... ora,
com isto, Lacan só pode estar apontando para o que quero chamar de Gozo-do-
Sentido, J$... Lacan diz, no Seminário 20, que essa falação indica o Gozo-do-Outro
como Mulher, mas não diz que ela é o Gozo-do-Outro... portanto, é gozando do
Sentido que ela pode falar de um Outro a que não tem acesso...
...mas se não coloco uma Terceira Instância, que exige uma sexuação
para ela, isso tudo fica sem pé nem cabeça... tenho que colocar quatro sexos,
senão isso não funciona...um deles é cego-surdo-e-mudo: o sexo da Morte...
e não há que falar do Gozo da Morte, mas ele é conjeturado pelo falante, ele é
pró-posto pelo Haver... então, do ponto de vista da proposição da morte –como
significante, nada mais do que como significante, repito Lacan –o gozo só pode
ser Angélico, na produção sígnica e na produção significante... não tem outra
saída... Lacan diz que o Falo está lá, se apresenta como signo e é tomado como
significante no regime do gozo-fálico... claro, porque, na ordem animal, aquilo
é signo... signo de: “Vamu fudê” –como é entre nós... só que a gente diz: “Não,
ele está pirado, esse cara, não é nada disso”... a gente pode revirar... ou seja, o
próprio falo que ele institui como significante do desejo, é signo de desejo na
ordem natural...
...então, é nesse regime que é preciso re-enquadrar os modelos e as es-
truturas para a coisa se esclarecer, tornar-se menor, portanto, mais matemizada,
mais compreensível... o processo é apenas este: ali dentro, esse furo, F, reaparece
como processo de decadência ou de criação... então, aparece um ser que tem
a condição, a possibilidade, que o define como tal, de fazer o Revirão... mas é
o que menos se faz... o drama do falante, na face do Planeta, é que ele insiste
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Transferência
em ser animal... é confortável: nasceu menino, taca azul; nasceu menina, taca
rosa; vira bicha, taca roxo ou maravilha; nasceu sapatão, bota preto... isso é de
uma santa burrice... é a burrice do ser falante...
...por que não se pode estabelecer que o falante extrapola tudo isso?...
é preciso fazer a interpretação de cada signo, lembrar que eles são meros si-
gnos... é isto que o neurótico não sabe fazer... o signo para ele não é mero, ele
é mesmo...
...o que me deixa perplexo é que, no chamado meio psicanalítico –ou
como me dizia uma doida: a “comunidade psicanalítica”, como se existisse isso –,
muitos trabalham no signo a vida inteira, numa “boa” e tudo bem... e tudo
lacaniano...
...ali no campo do Sentido, do Falanjo, o sujeito trabalha no nível
do signo, portanto, no nível de fazer sentido... não é que ele trabalhe só com
signo... ele trabalha em operações significantes para fazer sentido... o neurótico,
por exemplo, não acredita que tem que fazer sentido nem que tem que abordar
nada significantemente: ele tem que usar o signo, conformar-se com ele, mesmo
sofrendo... portanto, há muito amor no campo do Sentido... por exemplo, há
todos os sentidos, todos os campos sociais etc., os quais, se forem operados
como obrigação, estão no regime da neurose, que é o mais freqüente... se forem
operados como movimento produtivo, criativo, tudo bem... é o que o artista faz
o dia inteiro: no que ele revira, ele inventa um signo novo e por aí vai... por
isso, a coisa mais importante na face da Terra é a MODA... a coisa mais séria
é estar na moda...
Freud, Lacan estavam na moda –eu me viro para estar, mas não con-
sigo... a moda é seríssima porque é a tentativa de fazer sentido... taí um Mal-
larmé, um Barthes, um Gilberto Freyre (que acaba de lançar um livro sobre
a moda)... as pessoas sérias só pensam em moda... intelectual é que só pensa
essas besteiras chatas que não interessam a ninguém... intelectual é, antes de
tudo, um chato... ele não é o artista, nem o poeta: é esse chato de galocha que
freqüenta a universidade e o Jornal do Brasil...
...Lacan diz que é quando se é mulher que se ama... isto terá que sofrer
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O Sexo dos Anjos
uma ligeira deformação dentro do meu sistema... Lacan não tinha os anjinhos...
eu os tenho... Lacan trabalhava só com dois sexos, coitado!... ele não conseguiu
ver os três que indicou, nem os quatro necessários...
...onde se exacerba essa questão para com Deus no sentido de imitar o
fundamento do amor divino e do desejo divino –que é o desejo do Não-Haver
–pode ser na mística... lembro o que já disse numa Maravalha que publiquei...
temos os quatro sexos... pois bem, os Homens são responsáveis pelo gozo-
fálico... a relação sexual, além de ser impossível no regime do Haver, porque
tudo que se deseja é o Não-Haver, mesmo no regime cotidiano dos falantes, é
impossível... quando digo que tudo é possível, continuo dizendo que o que não
é possível não-há... não há relação sexual e ela se espelha aí em uma impos-
sibilidade que comparece o tempo todo como impotência... mas não é por ela
não haver, ainda que eu tenha certeza disso, que eu não tento...
...os Homens não têm o menor interesse pelas Mulheres... todas elas
sabem disso... Clare Isabella Paine teve o desplante de escrever isso num
livro... pois bem, o Feminino, não há nenhuma possibilidade de ele encantar
o Masculino... isto é evidente... no interesse do gozo-fálico, o que encanta o
Masculino, os Homens, são os Anjos, que são os verdadeiros portadores dos
objetos, que fazem sentido... os portadores dos signos são os Anjos... é quando o
sujeito goza no Sentido que ele encanta os Homens, que os faz bander... mostra
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Transferência
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O Sexo dos Anjos
* * *
25/JUN
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Delenda Melancholia
Quinta Parte
JUÍZO FINAL
2º Semestre 1987
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Delenda Melancholia
1
DELENDA MELANCHOLIA
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O Sexo dos Anjos
cometeu este crime para se casar com outra mulher; pagará ainda por cima 52
libras e 9 sous. Aqueles que ajudaram o marido no assassínio serão absolvidos
por duas libras por cabeça.
“Aquele que sufocar seu filho pagará 17 libras e 15 sous. Pelo assas-
sínio de um irmão, de uma irmã, da mãe ou do pai, serão pagos 17 libras e 6
dinheiros.
“Um bispo ou um abade que cometer um assassínio por emboscada,
ou por acidente, ou por necessidade, pagará pela absolvição de tal delito 179
libras e 14 sous .”
...excertos da Taxae Sacrae Chancellariae Apostolicae, et Taxae Peni-
tentiariae, itidem Apostolicae... Taxa de Chancelaria publicada em 1319 pelo
Papa João XXII –precursor de João XXIII –de modo a melhorar as condições
do Tesouro pontifical... isto está na Histoire des Souverains Pontifes qui ont
siégé à Avignon, de um chamado J.B. –que não é Pontalis –Joudon, Avignon,
1855... e está citado por Gilbert Lely no seu formidável “romance”, que é a sua
Vida do Marquês de Sade, Paris, Cercle du Livre Précieux, 1966, p. 8-9...
...é por isso que o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro precisa ficar
pedindo doações de livros para sua Biblioteca... a gente ainda não fez essa
lei... a gente chega lá... mas é difícil inventar perversão nova... os “home”
inventaram primeiro...
* * *
364
Delenda Melancholia
* * *
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O Sexo dos Anjos
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Delenda Melancholia
* * *
...o que tenho dito na tentativa de dar um pequeno passo –para não
ficarmos apenas no mercado: nada tenho contra ele, só que não devemos ficar
apenas no supermercado –apesar da semelhança de alegorias e metáforas,
não depende de teísmo, nem de religião... se seguirmos a distinção de Kojève,
podemos encarar a religião como postura e promessa de outra vida com be-
atitude e/ou salvação... e o teísmo como postura e recurso a um outro sujeito
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O Sexo dos Anjos
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Delenda Melancholia
ponto de vista do sujeito, quanto da Outra vida, sabendo que isso é para lá, no
Não-Haver... Revirão para Outro mesmo mundo... o Pai como Outro mesmo
lugar... de qualquer forma, há um antes e um depois, o qual pode ser averiguado
só-depois... nem por isso deixamos de pensar na imortalidade do Haver, velha
palingenesia do que há, na imortalidade do Pai e na imortalidade do Filho como
Falante... já que nenhuma morte pode ser atingida hic et nunc, in praesentia,
a própria saída da psicanálise não é, então, nem religiosa nem teísta, nem ar-
religiosa nem ateísta...
...ciência?... a psicanálise, pode-se dizer que ela (ainda?) não é uma
ciência... às epistemologias que ficaram tão em moda no vigor do discurso
científico, amarrando conceitos, se substitui necessariamente, na Teoria do
Conhecimento que a psicanálise pode invocar, em Gnoseologia ou em ca-
tegorias, mas não necessariamente epistemologias, conceitos... acontece que a
mais contemporânea ciência, ao invés de estar depurando conceitos, cerrando
epistemologias, está muito ao contrário... no dizer, por exemplo, de Cohen-
Tannoudji e Spiro, no livro La Matière Espace-Temps –um belo livro didático,
pelo menos da física atual, da Editora Fayard, 1986 –eles preferem pensar o
Universo em termos de categorias gnoseológicas e, não, de conceitos episte-
mologicamente fundados... aliás, Begriff, como usava Freud, é mais para idéia
do que para conceito...
...é a ciência, hoje, que se aproxima do tom da psicanálise... racionalis-
mos surrados e iluminismos de ocasião não garantem as lógicas possíveis...
qualquer iluminismo, hoje, pode ser obscurantista, ou se amarrar em lógicas
precárias para o tratamento do que é da linguagem... tudo isto não impede que,
com a teoria certa ou errada, talqualmente acontece na prática freudiana –está
aí Melanie Klein que não me deixa mentir –teorias certas melhores ou piores,
mais erradas ou menos erradas, acaba-se inventando tecnicamente –produção
artística, techné –algumas coisas de estarrecer...
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Delenda Melancholia
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aquilo sempre esteve por aqui... que desde a sua derrota na famosa e grande
guerra, chamada de segunda, que sua vitória bem conta do lado dito oposto e
que supostamente a derrotou...
...dois suicídios de macróbios terminais... um evidente e outro oculto...
se não por nada, por motivo que não precisa ser maior do que o tédio obrigatório
e, quem sabe, por vontade de gozar um gozo-Outro definitivo e sonhadamente
bem maior, mas que, infelizmente, simplesmente não há...
...mas a Fortuna não se esqueceu –embora poucos dias depois –talvez
para chamar melhor nossa atenção –de nos brindar com uma morte terceira,
nem clássica nem barroca, nem secreta nem obscena, embora tenha encenado
publicamente sua secreção... eis que o clássico moleque de rua, promovido a
peça de devoção depois de barrocas esfregações camerísticas com uma alta
dama teatral, explode, ele mesmo, em grand finale tragicômico, na cena maior
do crime sem correta direção –em exato não-senso –de volta ao papel principal
do qual jamais saíra, mesmo quando do cinematográfico e ecológico sucesso
de sua aposta em qualquer recuperação social...
...eis que os dois gumes da escandida faca daqueles dois primeiros
casos oficiais terceiramente se apresentam mais como punho de faca meio es-
quecida dos dois gumes de sua operação –para cair ambidestramente em nossa
mão mais como faca-cega de não melhor serventia do que passar a manteiga
supérflua, se não amenizante, no pão cotidiano de nossa própria enrabação...
aí o sentido está por se fazer...
...ao mesmo tempo secreto e obsceno desafiando qualquer camisa de
força moral, eis que um terceiro denuncia troca-troca geral, nos deixando per-
plexos sem outra que não certa ética, centrada no real, e que não nos oferece
nenhum definitivo gozo, mas tão somente aqueles que nos esbarram no périplo
do Haver –esse perímetro cujo gozo não é mais que um peri-gozo... perigoso
contorno que não nos oferece ACOISA assim assaz desejada justamente por
ela não haver...
...daí só o que nos sobra, o que só nos sobra, todo o nosso lucro, que
nos só sobra –é esse peri-gozo, que sobra mas não fica, a não ser o que dele
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se obra como pura sobra –e a cujo fazer, seja o que for, damos o nome de
sublime-ação...
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próprio Haver que não é binário, como já coloquei semestre passado... então,
este lugar terceiro que Lacan freqüentemente atribuía ao Sujeito, quero pensá-lo
como sendo o ponto neutro da catoptria, que dá essa condição de não-marcação
diante do marcado: não é preciso que se venha sem nenhuma marcação para
que a tabula rasa se apresente enquanto neutralização dessa marcação por seu
avessamento, +1 e -1 se neutralizam – a metáfora seria esta...
...isso amplia um pouco o campo porque posso propor para minha re-
flexão que até se tem de onde tirar o que originariamente aconteceu na ordem
simbólica do falante que é nada mais nada menos que a disponibilidade das
diferenças, disponibilidade de significantes, se quiserem, que vêm do real, do
natural, do Haver (que é o termo correto) sendo avessadas por esse aparelho
catóptrico, neutralizando tudo e possibilitando que o Sujeito saia das marcações,
mediante a neutralização, para o avesso das marcações... isto para aceitar até
o que não há disponivelmente in natura, mas que ele possa requerer na sua
posição simbólica avessante desse Haver dado como tal...
...se concebo, então, o reviramento, tenho de onde tirar essa constituição
simbólica do falante, que faz metáforas até sobre o que não está disponível...
consegue fazer isso que chamamos de CRIAÇÃO... Lacan não está errado
quando diz que só o significante se faz ex nihilo, se esse nada for o ponto de
neutralização... mas eu me pergunto mais para trás: por que esse nada se ofe-
rece, sobretudo quando ele não se dispõe para nós in natura?... ele só se oferece
porque é uma máquina de Revirão, a qual revira o quê?... nada?... não!... revira
o que está disponível... isto faz uma mudança de grau exagerado, em nossa
abordagem pelo menos... posso conceber a partir daí que o que se oferece como
criação do significante no seio dos falantes é nada mais nada menos do que
a recuperação do reviramento do que se oferece na estagnação sincrônica no
momento contemporâneo a esse falante... ele ultrapassa os dados porque revira
não só os dados como sua combinação... não há, então, criação do significante
absolutamente novo senão a partir do nada da neutralização, que se faz em cima
de algo que se oferece por dicção divina... e nossa criação deixa de ser misterio-
samente vinda de nada para vir de alguma coisa: a partir de algo dado, minha
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o qual sujeito, a partir daí, só encontra expressão entre uma diferença e outra
diferença... mas o lugar que ele ocupa, justo para reconhecer a diferença, é um
lugar de indiferenciação... e é justo essa indiferença que um animal não com-
porta, não pode indiferenciar... no vigor da diferença o sujeito se representa de
diferença para diferença, mas estou procurando mais atrás: o que funda esse
lugar capaz de se demarcar a ponto de se representar de uma diferença para
outra é esse lugar de indiferenciação, que é emergência absolutamente nova
(porque a mais antiga) dentro de um estado do Haver... a mais antiga porque
o Haver na sua estrutura maior, funciona assim: é a partir da indiferença, ou
seja, da simetria hiper-simétrica, que o sujeito começa a produzir quebras de
simetria... trata-se, então, de uma guinada... não desdiz o que foi dito, mas olha
um pouco mais para trás nas fundações do processo...
...o Inconsciente se torna, portanto, como conteúdo, um grande saco
de gatos, mas, na sua essencialidade, é apenas uma maquininha de Revirão...
suponhamos que isso seja encontrável em nível de análise de estrutura cerebral
–não se encontrou ainda nada de muito bom, mas se procura... o que minha
conjetura propõe é que essa complexidade cerebral não é senão uma máquina
catóptrica: uma máquina de avessamento das informações, das Bejahungen que
possam ter entrada nela... o resto é conteúdo, é quebra de simetria, é processo
de diferenciação... ao mesmo tempo, então, que o inconsciente é essa totalidade
do Haver, é muito mais do que o Haver propõe nesse momento porque ele
próprio é inconsciente, ele próprio tem futuro e passado, embora infinitamente
grandes... ele é essencialmente nada mais nada menos que uma maquininha
de virar pelo avesso... só isso!... e maquininha de virar pelo avesso em ritmo
ternário –isto é que é importante...
Pergunta –Há conseqüências muito importantes aí, pois estamos como que
podendo vivenciar isso com certo sucesso literário do livro O Tao da Física. É
perigoso, no sentido em que se, por um lado, temos, pelas indicações da física,
algumas coisas que interessam, por outro, não se tem indicações desse ponto
terceiro que você está questionando. A í temos um risco grave. Li recentemente
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vivência, para a manutenção desse sistema vivo, não são pressão suficiente
para recalcar os avessamentos que pintarem?... pois se a espécie sobreviveu
foi porque não enlouqueceu de saída: ela se afez às disponibilidades sígnicas
que estavam marcadas nas operações animais que ela portava... para o que ela
teve que, freqüentemente, operar o recalque dado, que é originário –não há
outro...
...não preciso mitificar nenhum recalque originário para saber que se um
sistema tenta se impor como sobrevivente dentro da sua especificidade, da sua
parcialidade, ainda que porte a máquina de avessamento e de neutralidade, ele
operará, por questões de sobrevivência, com maior ou menor eficácia –tenho
que pensar nisso: quantos milhões não terão morrido de loucura porque aves-
saram na hora errada?... isto faz pressão para um recalque originário dado pelo
aparelho biológico...
...isto começa a mudar um pouco certas visões, mas é estritamente
freudiano... Freud sempre fez questão de não paranoizar demais, de não de-
lirar demais... sempre fez questão de dizer que, se este troço se dá no falante,
está inscrito em algum lugar, concretamente... esse interregno que tivemos de
viver, de suspender essas questões e partir para a visão das estruturas dentro
da linguagem, foi da maior importância, condição sine qua non de se chegar a
alguns achados... mas é hora de se distender um pouco... o que noto em Freud
é a visão lúcida de exigir que isso não venha diretamente do céu, de repente,
mas que esteja aí em algum lugar... Freud era tão imodesto que supunha poder
manipular diretamente tudo isso... ele não procurava salvar a psicanálise como
uma eterna função... ele até achava que uma tecnologia avançada poderia intervir
nisso diretamente... tais diatribes são questão de mercado: o analista não quer
perder o emprego para o bioquímico, e o bioquímico não quer perder o seu...
nada a ver com o pensamento... o que não é a mesma coisa que se acreditar que
já exista manipulação direta, quando não existe... psicanálise ainda tem vez
porque não existe, porque não está disponível essa manipulação direta?...
...os signos são dados, são formações do Haver... o que nossa máquina
tem, é que ela pode avessar esses signos: aí sim, e só aí, eles se tornam signifi-
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cantes... isso que Lacan diz do “significante no seio do real” –porque ele opera
o significante como metáfora –são signos dados... e, diferentemente de outros
seres que conhecemos, é nossa competência plerômica que nos permite, em
avessando isso, induzir o significante, o qual, se o que estou dizendo é verda-
deiro, se impõe imediatamente como halo significante, não hemiplégico mas
ambidestro... isto porque uma terceira posição se impõe –não haveria essas
duas se não houvesse uma terceira... a dificuldade é falar dela...
...a proposta é, então, de que não é preciso mitificar, não é preciso
fazer referência a um ponto indizível, porque, simplesmente, se a máquina é
de avessamento, o disponível se avessa, ou pelo menos tem a possibilidade de
se avessar... isto tem conseqüências enormes, e temos de tratá-las lentamente,
cuidadosamente...
...qual é, por exemplo, a relação da PEDAGOGIA com o que a psi-
canálise possa fazer, não direi de pedagógico, mas dentro de uma PAIDEIA
possível?... houve um tempo em que a psicanálise se propunha intervenções
sérias na pedagogia... Freud apoiou: um livro, pelo menos, era da filha dele, e
ele lhe tez um belo prefácio... Anna Freud ficou encantada com psicanálise e
pedagogia... mais recentemente, na vertente dos ditos lacanianos, tenta-se fazer
uma distinção absoluta em que esses discursos se mostram incompatíveis... isto
porque estão tomando apenas a ordem discursiva: na comparação discursiva a
psicanálise não pode ter nada a ver, nada a fazer com a pedagogia, pois que esta
é uma injeção de saberes de modo a produzir um certo sujeito... a psicanálise
é o contrário disto... isto é verdade no regime discursivo... Cathérine Millot, o
máximo que aconselha é que os professores sejam analisados, é a única relação
que ela vê da psicanálise com a pedagogia... eu, não vejo assim...
...se faço, portanto, a hipótese de que a inércia, a inércia do recalque
originário –que tirei do mito e botei no concreto –impede, ou pelo menos tira
bastante, a propiciação do avessamento, existe (não direi pedagogia mas) uma
Pedousia, uma PAIDEIA DA PSICANÁLISE, que, ao contrário do processo
de introjeção que a pedagogia patrocina, tem a ver com a operação constante
sobre os sujeitinhos, desde o seu nascimento, no sentido de facilitar, urgentizar,
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psicose, ou seja, rompe-se a ordem sígnica que nos circunda, como limite, e
que Lacan quis chamar de Nome do Pai... rompe-se a idéia que o sujeito faz
do que seja o Haver, ou do que seja Deus...
...daí esse estatuto reacionário do POVO... povo é a gente... para sobre-
viver, ele precisa dessa referência, ainda que ela o torne escravo... está aí uma
outra explicação para o tal servil do La Boétie... fica no ar esta pergunta: por que
essa vontade de servidão?... porque o povo é imbecil!... isto não é xingamento,
é constatação: as inércias sígnicas que ele tem que sustentar para não sucumbir,
em regime de significação, o fazem preferir a tirania à loucura...
...a psicanálise só é uma boa opção dentro do que Lacan chamou
“prudência do analista”... em nível de povo, é uma ótima opção, na me-
dida em que quanto menos ele se virar mais servil ele será: quem não se
vira, morre do mesmo lado... é uma faca de dois gumes... aquele sujeitinho
lá, cada um de nós, a gente sente que está nas brebas do limite de um
processo de contestação sígnica... por isso há progresso no saber: Freud
coloca certas coisas, vem Lacan dá um passo... porque se está dentro das
possibilidades sígnicas do momento, vai-se indo sem se arrebentar, sem se
enlouquecer...
...não faço a menor idéia de se isso que se teria rompido, uma vez
rompido, seja possível de suturar... pelo menos, quero supor que, por esta via
de compreensão da psicose, pode-se tentar tomar o tal Nome do Pai em estrita
coincidência com o delírio em que foi tornado, o que alguns psiquiatras já
sugeriram... se um outro entrar em estrita coincidência com o delírio formado,
e que é na verdade uma “sutura” do rompimento, talvez a partir daí se possa
mesmo suturar... estou falando em coisas que devem ser pesquisadas, estou
me arriscando nos limites das minhas competências sígnicas, e não estou a
fim de ser herói...
Pergunta –Lacan, no Colóquio de Bonneval, diz que o Inconsciente é o que
falta ao sujeito para restabelecer seu discurso concreto, para restabelecer
seu signo primordial. A psicose seria a impossibilidade do restabelecimento
do Inconsciente...
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...ainda nesse texto d ‘O Inconsciente, p. 171, Freud põe uma frase que
freqüentemente esquecemos de lembrar: “Em Psicanálise não há escolha para
nós senão afirmar que os processos mentais são em si mesmo inconscientes”...
é uma frase de muita força... Freud, antes ainda de dizer isto, disse, no mesmo
texto, que não há acessibilidade direta ao inconsciente senão por vias de
tradução... daí, ele ter paquerado os sonhos, os atos falhos, etc., para cercar esses
objetos... se, apesar de todas as Tópicas, dos estudos de Lacan sobre o ego, etc.
(Lacan insistiu que o Inconsciente é que é conceito fundamental e, não, ego,
id e superego), temos que repensar um pouco, em cima dessa esquemática, a
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estruturação desse tal Inconsciente... por que a ele não se tem acesso direto?...
direto por via externa... por via interna, ele está funcionando e tenho acesso
direto o tempo todo... mas não tenho acesso direto por via externa, de transmis-
são... por que não há esse acesso direto e por que é preciso tradução?...
...vou me aventurar um pouco ainda hoje nisto... vejam que não estou
fazendo um Seminário exaustivo... estou abrindo frentes...
...se pegarmos a construção que Freud fez sobre o aparelho psíquico,
o que ele propõe na 1ª Tópica?... Inconsciente, Pré-consciente e Consciente...
é claro que, freqüentemente, ficou misturando o pré com o consciente, mas,
também, por vários momentos, ele deixa nítida a distinção entre os dois...
sabemos que há uma passagem –desde Freud e ainda em Lacan –mais ou
menos à vontade entre o Consciente e o Pré-consciente... difícil é passar ao
In... por quê?
...operamos com as maquininhas disponíveis... ainda naquele recalque
originário de que falei, de uma certa metade que tem que ser avessada e que
resiste, existe mais um fator... a estrutura sígnica herdada do mundo biológico
é nitidamente binária, e qualquer aparelho de análise binária da conta disso
–num laboratório de biologia, por exemplo... ao passo que, se a estrutura que
apresentei está certa, o aparelho de avessamento, que ressurgiu com a espécie
humana, é ternário... ou seja, a estrutura do Inconsciente é ternária... e há que
ser traduzida em binariedade para poder surgir no nível do pré e do consciente...
daí a dificuldade de qualquer acesso direto: a língua –embora aparentemente
se revire por pressão do Inconsciente, por pressão da máquina de avessamento,
embora na poesia ela obrigatoriamente indique esse terceiro lugar –sua apa-
relhagem sígnica no sentido saussureano é binária... este é o grande problema;
a própria língua funciona, no seu cotidiano de expressão, binariamente, tendo
que traduzir algo que tem estrutura ternária... algo aí se perde...
...é preciso, então, o poeta se virar, por meios expressivos, para incluir
no processamento binário da língua uma indicação de terceira posição, mas
sem apresentá-lo, só podendo indicá-la... pensemos no golpe genial de Lacan
quando retira a enunciação dos embreadores de Jakobson... quando Jakobson,
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Consciente trabalha no modelo da Recusa: se digo tal frase, tenho que recusar
as demais, o outro dessa frase... o Pré-consciente é a sede –releiam à luz disso
que estou trazendo o texto Die Verneinung, de Freud –da Denegação: o sujeito
denega porque ele pode dialetizar gramaticalmente, e Freud diz que isto não
prova que ele foi até lá, ele só está dialetizando, sincronicamente... o fenômeno
da denegação é dizer sem assumir, e isto é simplesmente dialetizar... embora
eu possa operar dialeticamente com o analisando, a pura e simples operação
dialética não me dá pega no Ics., é preciso algo mais, que essa dialética se
apresente como Revirão e não como dualização... ao passo que o Inconsciente
não trabalha nem com a Recusa, nem com a Denegação, mas com a Renegação
Originária, que ficou tão mal falada na história da psicanálise... Inconsciente
renega, ele é atemporal... eu disse –e fiquei espantado depois, porque disse
– no Seminário chamado O Pato Lógico, que a estrutura é perversa... não
no sentido da perversidade, mas no sentido que chamei de Veränderlichkeit,
do perversátil... o Inconsciente é perversátil... está em Freud, o qual, na falta
de melhor nome, chamou isso de perversão polimorfa, quando se mostra na
sexualidade...
...no regime da Consciência, então, tenho a oposição entre a e não-a, ou
a ou não-há: a/ã... no regime do Pré-Consciente, tenho a ou não-a: avã... e no
regime do Inconsciente tenho que ter a e não-a: a^ã... a estrutura borromeana
que Lacan encontrou no seu nó a três é a estrutura de Inconsciente... nos níveis
menores, o nó borromeano não se exibe com tanta evidência para o falante... no
Pcs., isso é dialetizável dentro da gramática... no Ics. é, aqui e agora, a e não-a,
mas se avessa de imediato, é atemporal... não que o Inconsciente não gaste nen-
hum tempo para fazer o avessamento, mas é como se fosse o padrão absoluto do
Inconsciente, como se tem a velocidade da luz como padrão absoluto do Uni-
verso... a luz tem certa velocidade, mas podemos igualá-la à unidade na medida
em que é velocidade máxima... a velocidade máxima, então, de avessamento, que
não deixa de gastar algum tempo, se nos apresenta, porque é o padrão freudiano
de mensuração, como atemporal... é a mesma coisa que falar numa konstante
Kraft do organismo, não se precisa contá-la porque ela é constante... então, ela
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(́Nada
‘ além do Princípio do Prazer)
...o que é que não pode ser que não?... é o REVIRÃO –se seu teorema
é verdadeiro...
...não há passagem para o Não-Haver... o que quer que haja dentro
do Pleroma passa a ser gratuito, inocente gratuidade e inocência absolutas...
portanto, saber absoluto mais do que o queria Hegel... inocência, gratuidade e
saber absoluto: ars gratia artis, arte pela arte...
...no texto d’O Masoquismo, Freud lembra um certo autor que trocou
‘ ́, o
a Moira, o Destino dos gregos, por uma dupla de deuses e
Logos e a Necessidade, o verbo e a necessidade... essa gratuidade artística do
Pleroma é feita de verbo e necessidade... é construção Lógico-Verbal, se quis-
erem ampliar o termo verbo na necessidade do eterno retorno, da repetição,
portanto, na eterna pulsão... e não pode ser que não... arte pela arte... artifício... e
tudo isso regido por um único princípio, o PRINCÍPIO DO PRAZER... ́, ‘
o prazer rege o Haver...
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a punheta do século –vou tocar a punheta do século, vou fazer mais do que o
ioga, vou me encaminhar para esse nada e gozar absolutamente, divinamente,
como nem Deus consegue, pois Ele quebra a cara e passa à falicidade –en-
tão, no percurso disso, eu me encaminho –femininamente, aliás –para estar
presente, na minha particularidade, ao meu passe para a paz absoluta... este é o
orgasmo divino, que mesmo Deus persegue e não consegue... no que isto, este
atingimento do prazer absoluto, é impossível, o que sobra nesse percurso é o
que chamamos de gozo-do-Outro, que é ir-se desgastando no caminho, nesta
tentativa de se condensar, de se particularizar extremamente para passar para o
Outro lado: quebra-se a cara e goza-se falicamente... uma queda vertiginosa...
e vergonhosa...
P – O andrógino seria a fantasia a ser alcançada.
... se eu pudesse alcançar, na minha presença, o Outro lado, eu fundaria
o andrógino, que não é senão o nirvana, zero... o único andrógino que existe é
o zero absoluto, suspeitado apenas... se o Haver, como Haver, pudesse passar
a Não-Haver, ele fundaria o Andrógino Real... por isso, o andrógino não há...
ainda que o Haver pudesse passar a Não-Haver, ele não passaria como tal ...
suponhamos até –e, de fato, isto é impensável –que o Haver pudesse passar a
Não-Haver, como isso se registraria?... suponhamos que a morte fosse possível,
onde ela encontraria registro?... em parte alguma, portanto ela não há... vamos
fazer a hipótese, que alguns físicos fazem, de que um dia o Universo some...
some para onde?... onde é registrável isso?... se não é registrável, não há...
...a morte não há... vejo perecimentos, desarticulações, deteriorações,
estragos, ou seja, é a CASTRAÇÃO que me aterroriza... não é ninguém estar
presente, não é passagem para a morte nenhuma, porque só há o Princípio
do Prazer, que seria passar para lá numa ótima... as religiões, ao invés dessa
crueza que a psicanálise trouxe, fazem a ficção de que você passa e cai no
nirvana ou vai para o Céu, transcendência para uma outra vida in praesentia...
por exemplo, a igreja católica pode abrir mão, por acaso, de que o sujeito vá
pessoalmente para o céu?... estragaria a brincadeira, ninguém acreditaria mais
nela, pois estão sendo pagos por isso... o salário da fé é ir pessoalmente para o
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... por que uma pintura –que, a meu ver, consegue decantar o Incon-
sciente sobre a tela –é, para Lacan, hiperverbal e não pré-verbal?... como estou
brincando, brinco à vontade, posso fazer a seguinte conjetura: suponhamos,
aquilo que eu trouxe da vez anterior, que isso que Freud chama de Cs. é algo da
ordem do unário, do um a um... se tenho, então, um aparelho perceptivo, quer
me parecer que o que é da ordem da percepção se me apresenta no nível do
binário... digo isto esteado em certos achados, por exemplo, da Gestalt, que não
são de se jogar fora, como a experiência, que já trouxe aqui, de Gelb e Goldstein,
de forma e fundo, de variação de forma, etc.: diante de qualquer ato perceptivo,
fico imediatamente, se não ponho uma informação determinando o lado que
quero, em processo equívoco, mas não concomitante, uma equivocação que é
oscilatória... tomemos um objeto desses de que a Gestalt se utiliza, uma simples
perspectiva de um cubo com todas as arestas desenhadas igualmente e teremos
duas possibilidades de enxergar esse cubo: se não sou fanático e deixo o olho à
vontade, ele vai ficar oscilando, ora vou ver isso de baixo, ora de cima... isto é
o que quero chamar, pensando na Gestalt, de uma postura binária, oscilatória
e binária da percepção, e posso comprovar isto na audição, no olfato, no tato,
limites perceptivos, limiares de percepção que extrapolados me põem com-
pletamente doido, do ponto de vista perceptivo... se colocarmos numa pessoa
um ponto quente e um ponto frio, ela poderá até oscilar, mas vai controlando
qual é o quente e qual é o frio, mas se levarmos a um excesso de temperatura,
para mais e para menos, a coisa se torna indistinta, queima do mesmo modo...
são os limites de percepção, os quais entram assim no tal aparelho pcpt. de
uma maneira que põe o meu Revirão para funcionar na hora porque existem
limiares que neutralizam absolutamente a percepção binária...
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...mas quero supor –contra alguns, analistas até, que trabalham desenhos
de crianças em comparação com desenhos de adultos e ficam meio invocados
com o que a criança desenha –que isso sugere que talvez haja alguma coisa de
“total” que a gente não consiga bem apreender... talvez a criança esteja querendo
representar essa ambigüidade das duas marcações num desenho só, e nós não
entendemos porque estamos no regime de, conscientemente, perguntar ao Pré-
consciente qual é a memória que ele tem desta dubiedade e, assim, fazer escolhas
parciais e enunciar frases... o tal Ics. freudiano não pode não ser alguma coisa
da ordem do três... e como os nossos aparelhos de linguagem, de representação
sígnica, na ordem do verbal, do lingüístico, não funcionam ternariamente, não
temos como dizer isso no nível da binariedade pré-consciente...
...Freud diz que na tradução do Ics. ao Pcs. há uma Censura... suponha-
mos que seja censura em certo sentido: proibição de falar... mas há uma censura
mais grave: tem-se que fazer uma quiáltera, dizer o que é três, em dois... ora, se
o Pcs., que é da ordem do dois, é regido por uma outra ordem, ternária, posso
supor que essa neutralidade que encontrei no Revirão comparece como capaz
de pôr, aqui e agora, os dois ao mesmo tempo, que é o que Freud suspeita no
duplo sentido das palavras primitivas: uma palavra só que, uma vez, significa
isso, outra, significa aquilo, não é junto... mas, em algum lugar do Inconsciente,
uma posição subjetiva saca isso como um todo só, como a plenitude do Haver
significando Nada, Coisalguma, absolutamente sem sentido, mas que pode
receber sentido quando é bilateralizada no Pré-consciente... haverá algum
lugar onde isso se diga, se exprima de algum modo?... pela via do lingüístico,
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animal... só que não posso falar de sujeito aí porque só posso dizer que há sujeito
quando essa consciência se reconhece em outra marcação... então, o lugar do
sujeito fica sendo o reconhecimento plerômico da consciência maquinal...
P – Então, você está dizendo que ali na Consciência I, por efeito da estru-
tura desse sujeito, tudo que funcionava no Pré-consciente como binário foi
neutralizado.
...foi neutralizado, mas por ser referido... a questão é montar um aparelho
semelhante a esse... um raio constante de referência que, na interferência com
a binariedade, torna aquilo não um intervalo entre dois, mas um ternário, em
terceira dimensão...
...outra imagem que posso fazer, que não explica muito bem mas que
dá certa idéia do que quero dizer, é, por exemplo, o sistema projetivo... um
objeto de três dimensões pode ser projetado sobre duas... pode-se também
tomar um só plano, projetar nele um cubo marcando as cotas, e teremos todas
as marcações desse cubo... pode-se pegar a forma que está sob esse plano em
duas dimensões e projetar sobre uma só linha... é algo da ordem da queda de
dimensões... Cs. tem uma dimensão, que prefiro dizer, no plano perceptivo, um
de cada vez... percepção e Pré-consciente são as duas ali inscritas: o aparelho
perceptivo e o aparelho pré-consciente inscrevem duas memórias... e depois vai
surgir o falante... isso que é inscrito perceptivamente e pré-conscientemente há
até nos animais –os quais têm o regime cibernético de jogar com as coisas em
nível pré-consciente... já no falante isso vai ser calculado e organizado por uma
repetição do mesmo esquema, repetição que funda um aparelho ternário...
...são, então, dois sistemas de três, sendo que o Ics., com seu raio de
referência, empacota tudo numa globalidade só... por isso Freud diz que não se
pode trazê-lo para o Pcs., porque isso tem que ser traduzido em dois... mas eu
pergunto: pode ou não pode?... pode!... não na fala, mas na escrita... é quando
um homem, dito homem, além de falar, de fazer suas referências dialéticas no
regime do binário, colabora com o trabalho do Haver, ou seja, deforma tec-
nicamente, artisticamente, o Haver, e assim exprime essa pleromia... é a isso
que quero chegar...
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* * *
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o que chamo de saber absoluto como o saber absoluto de Hegel, como es-
gotamento de todas as possibilidades de contradição, isso não chega a lugar
nenhum, isso é história total do Haver, e não é para nós... o empuxo disso, o
modo de funcionamento disso, é a certeza de que se está no saber absoluto da
produção: isto é possível... é a certeza que o sujeito tem... é a certeza de que
até o psicótico, porque é falante, tem, de estar falando como sujeito... ele está
confundindo campos, mas não está deixando de falar como sujeito...
P – Fernando Pessoa/Álvaro de Campos te dá razão. Em Páginas Íntimas
e de Auto-interpretação, chama atenção que há uma poesia “páulica”, que é
uma poesia unária que só percebe um vértice do cubo, que não dá conta das
outras duas, é uma poesia que confunde idéia, palavra e sensação. Há uma
poesia que ele chama de “intersensacionista”, que entra em sensação, que já
vê dois vértices de um cubo, que já consegue representar uma sensação através
de palavras que associa. E tem uma poesia que ele chama de “sensacionista’’,
que se situa nos três vértices de palavras, que isso se torna a representação
de uma própria sensação...
... o que Freud chama de possibilidade de regressão ... é preciso muita
atenção para o conceito de regressão... a regressão acontece quando a coisa
chega a ficar viva na ordem perceptiva... ele diz que o sonho é uma regressão...
ao quê?... ao Inconsciente... regressão no sentido de que o Pleroma é posto, é
dado... a alucinação é como um holograma, que dá a volta por trás e vai aparecer
como percepção... vejam que há uma simetria nesse esquema que apresentei
sobre a primeira tópica freudiana: o terceiro elemento da direita é o Haver, que
é hologramático... minha percepção capta binariamente o Haver que é ternário,
então, quando isso regride a ponto de fechar o Inconsciente com o Haver, há a
alucinação... o sonho fecha o Inconsciente com o Haver: sinto dor, sinto coisas,
sinto o diabo no sonho –porque fecho o Inconsciente com o Haver...
P – Uma das críticas de Lacan à estrutura do Inconsciente de Freud é essa
ternariedade. Ele vai abordar isso n’O Mito Individual do Neurótico, onde
coloca a questão do Édipo e diz que a tese de uma estrutura do inconsciente
em Freud só poderia ser sustentada se se colocassem quatro termos, senão
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É o que não pode ser que não
freado aqui e ali por organizações sistêmicas, ele se chama de tempo: tempo
psicológico, tempo lógico... o que é o tal do tempo lógico?... posso adscrever
tempo lógico ao Inconsciente?... não posso, isso não existe... o tempo lógico é
uma relação entre o Inconsciente e o Pré-consciente... não há o tempo lógico
no Inconsciente, pois Freud disse que ele não tem tempo, não tem contradição,
aqui e agora ele apresenta o Pleroma inteirão... agora, no que vou girar em
torno do pleromizado, vou temporalizar isso por minhas posições sistêmicas,
de instante de ver, tempo para compreender, etc. ... tudo isso é jogo da ordem
binária de Pré-consciente com a ordem ternária do Inconsciente... é tentativa
de tradução... isso não gasta tempo, isso faz tempo, produz tempo... isso não
consome um tempo que há por aí, isso faz o tempo... quando o universo na
sua materialidade começa a se diferenciar, ele começa a criar tempo: não há
um tempo que ele gaste, é ele quem inventa o tempo... o tempo não existe, se
não se o fizer... aquelas pessoas que dizem: “eu não tenho tempo, não faço isso
porque não tenho tempo”, é o caso de se perguntar: como é que Picasso tinha?...
porque ele era picasso, certamente...
24/SET
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...vamos ver que ele é nada mais nada menos do que o movimento de
constância que quero considerar como qualitativa e quantitativa de energia do
Haver, se quiserem dar este nome, da força do Haver, ou da constância libidinal
do Haver... quero propor que podemos entender, segundo certos aparelhos de
raciocínio da física mais atual, que há toda razão de Freud pensar a necessidade
dessa constância...
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K: no princípio era o fim
vazio não há o Não-Haver; esse vazio, por essa simetria absoluta, se espreme
de alguma maneira porque não pinta diferença dentro, mas pinta, conjeturada
por ele, por repetição de simetria, uma diferença fora, e ele se espreme de
alguma maneira para eliminar essa última diferença que ele propõe de direito,
mas que não há de fato... posso imaginar que esse vazio sofre comoções diante
do seu Outro, que é o Não-Haver... e no que ele se comove no seu Não-Haver,
no seu Outro, ele faz PLICAS... do verbo plicar: faz dobras, se enrosca sobre
si mesmo... faço questão desse termo porque tem aí o implicar, o explicar, o
complicar e faz referência também ao pensamento de David Bohm, um físico
que gosto de ler porque o delírio é parecido com o meu, que criou essa ordem
implícita, ordem explícita, implicante, ou explicante...
...no que isso se comove na suposição que faz de um Não-Haver, isso faz
plicas, faz ondas... dobraduras são repetições de energia sobre energia... então,
alguma coisa, dentro, começa a se condensar nessas plicas, nessas dobraduras
da energia sobre si mesma... estou fazendo uma grande fantasia, mas que alguns
físicos não acham delirante, acham possível e procuram equacionar de algum
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O Sexo dos Anjos
modo... eles dizem que há uma quebra espontânea de simetria e não se sabe por
quê... estou dizendo para eles que é porque a constância da simetria –eu sonhei
a palavra constância –no seio dessa neutralidade exige a última das simetrias
que, por Não-Haver, cria um impedimento... então, a coisa se comove... se
pudesse passar para o Não-Haver, não faria plicas, esvaziaria o próprio vazio,
mas, não podendo esvaziar o vazio, faz marola, se comove... no que faz marola,
faz condensações... fazendo condensações ali dentro desse grande Chi, por
causa dessas plicas –talvez a exposição que eu tenha feito do Esquema Delta
até hoje tenha dado a impressão da exigência de que toda a massa do Haver
passe imediatamente por aquele circuito, em F, não necessariamente –pode
ser que essas plicas façam pequenas, pequeníssimas regiões dentro do vazio,
de condensações, e o resto continua neutro... então, se de repente aparece uma
pequena condensação, esse vazio, ele, no seu estado de neutralidade, começa a
funcionar como aquele A, o qual, por não ter mais diferença interna e excitado
pela diferença externa que ele próprio se propõe, torna-se gozo-do-Outro...
...esse estado geral de vazio que estou apresentando aqui é o que, no
Esquema Delta, está aparecendo como A, o Nada... na medida em que essa neu-
tralidade está ali absolutamente cheia de energia, porém sem diferença, no que
ela se propõe uma diferença externa e se comove com isso, significa que ela faz
essas marolas, essas plicas... no que ela, por essa suposição que faz, começa a se
comover com a sua alteridade, que não há, mas que ela se propõe, ela começa
a funcionar enquanto A no regime do gozo-do-Outro, de querer passar para o
Não-Haver... esse movimento último do Haver em sua neutralidade é o que
promove as tais plicas, as quais não são outra coisa senão o gozo-do-Outro, o
qual não vai ter um final feliz como o gozo-fálico pode ter... esse movimento
é o gozo-do-Outro... não havendo o Outro do Outro, esse gozo não faz mais
do que conseguir criar grandes acúmulos energéticos, grandes prensamentos
energéticos que vão explodir ali no lugar do Furo, F, num grande Big-Bang...
o gozo-do-Outro seria dado como tal se pudesse passar para o Não-Haver, mas
que, não podendo, prefiro chamar –e há aqui uma pequena diferença em relação
ao que Lacan chama assim –esse próprio movimento de gozo-do-Outro... não
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explosão fálica, referida, e de cisão... lá adiante isso vai funcionar entre entropia
e neguentropia como princípio de cisão e princípio de recolagem... teremos
lá, então, Pulsão de Vida e Pulsão de Morte, Eros e Tânatos, tudo isso como
modalizações do princípio de neutralidade, que é o referente... e como está tudo
isso mergulhado dentro dessa neutralidade do vazio, a sua referência constante
é o vazio no qual ele bóia... é o vazio mais pleno que há...
...é o vazio querendo ser nem mesmo vazio, não querendo nem ser
nada... é como eu disse lá no texto do Revirão nº 3: ele quer ser Não-Haver,
não quer nem ser nada... nada já é muito para ele... se ele conseguisse não ser
nem mesmo nada, não teria nem nomeação possível... não se poderia chamar
nem de nada...
...o Não-Haver é a constante da libido... o desejo, o movimento dese-
jante, é uma constante, mas ainda por trás dele há a constância de sua chegada
ao fim de si mesmo: a simetria absoluta, onde não há mais diferença nenhuma
dentro do seu seio... e continua a imperar a constância do pedido, mas esse
pedido é interno, é de direito, e não de fato... mas eu digo: assim mesmo substan-
cialmente temos Chi como um vazio, neutralidade, sendo referente, a constante
plerômica, aquilo que Einstein procurava como uma constante universal...
...Chi é a materialidade, a substancialidade do A... não tem coisa mais
caótica do que Eros, o qual quer apagar as diferenças... o ódio, não... aliás, não
gosto de chamar de ódio, prefiro chamar de Anteros, que é o nome do deus
grego... então, Eros e Anteros: a tendência à fusão e a tendência à separação,
a qual vem do criativo, que é masculino... pela explosão da distinção aquilo
cresce, depois vem a tendência amorosa de apagar as diferenças, “seremos um
só”, inapelavelmente...
* * *
...é esse Princípio de Constância que quero fazer com que entendam
como sendo o referente que apontei quando trouxe aqui o que acontecia na
explosão e que ficou mal compreendido e mal explicado...
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O Sexo dos Anjos
...estamos aí, no seio daquilo que Lao Tsé disse: “Todos os seres saíram
do Ser, mas o ser saiu do Não-Ser”... o que quer que compareça com aparência
de ser, um estado ou modalidade, saiu de Chi... todos os seres saíram do ser,
da explosão do Furo –que Lacan gosta de chamar de real –mas o Furo saiu
do não-Furo, do nem-furo... quando digo que no processo do gozo-fálico há
explosão em , temos o mau hábito de pensar que a cisão é necessariamente
binária... mas insisto em que é preciso pensar que a cisão é ternária senão jamais
vamos entender, ou produzir uma lógica a três termos que possa dar conta da
estrutura do falante e da estrutura do Haver...
...com essa introdução do Chi como constante, posso qualificar o Ter-
ceiro, o qual não é senão Chi, pois por mais que isso faça marola, plicas, se
condense e crie algum cosmos, esse cosmos não tem, não reflete, não toma,
digamos, “consciência” do Chi onde está nadando, por causa dessa neutralidade
do Chi... mas a reflexão pensante dentro desse cosmos pode imediatamente
conjeturar, como conjeturou no passado, no mais antigo pensamento chinês,
esse Chi presente... porque aqui se condensou e explodiu em dois, na oposição
1
/ 2, não comparece sozinho: se não foi todo o Chi que passou pelo Furo,
está presente o Chi como terceiro e neutro o tempo todo diante da binarie-
dade da partição dentro do cosmos... então, o cosmos se apresenta, à nossa
vista, sempre dual, mas se penso nele só dualisticamente, ele fica sem termo,
sem possibilidade de ser pensado porque tenho que pensá-lo como partição
binária no seio de uma neutralidade constante energética que o suporta, a qual
funciona, diante das oposições, como esse lugar do vazio em que Lacan quis
colocar até o sujeito como mero interstício, mas é substancial, é o operador e
o sustentador –essa é a mutação que vai aparecer aí e que, se é neutro na sua
constância, não é neutro diante da diferença porque a diferença tomará essa
neutralidade, sim ou não, a partir da sua ordem diferenciada... portanto, ele
passa a terceiro termo...
...a aparente partição, cisão binária, o aparente dualismo do Haver, é
por relegação, por desprezo que fazemos do terceiro que está embutido ali...
tanto podemos pensar que isso partiu em dois e ficou no seio de Chi, como que
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K: no princípio era o fim
a energia que passou pelo Furo – pensemos agora que ela passou toda – para
passar ela tem que se condensar para explodir... mas se pensarmos que isso faz
o movimento, ela parte, passa por dentro do Furo e parte, continua o caminho
em torno do que passou pelo Furo: um vento... não existe o vento solar?...
...o que se condensou e passou explosivamente pelo Furo não é senão
uma condensação do Chi, o qual, se permanece presente, tem valor igual ao
da explosão, neutralidade... o ponto-bífido é no meio, neutro, é Chi, o próprio
Chi, na sua neutralidade... e quando digo “a enquanto Chi’’ é substancialidade e
mais nada... substancialidade, orientação e modalização são coisas diferentes...
não confundir aparelhos categóricos com substâncias... estou categorizando
diferente a substancialidade do que ocupa o a como Chi, estou categorizando
o a como modalidade no seio do Esquema do Haver, do Esquema Delta... são
nomes, comportamentos diferentes para a mesma coisa... e mais, posso chamar
esse Chi nada mais nada menos que de Falo: o Falo é isso, essa neutralidade...
então, posso dizer que ele comparece como a minúsculo e não como F, o qual
é a situação de passagem do Revirão... F não tem substância, sua situação é
a de que condensou demais, explodiu... esse interstício é o que chamo de F...
posso dizer que ele é cheio de Chi, posso botar o objeto a lá dentro, mas o F é
a categoria de passar, de avessar, mais nada: categoria de avessamento...
...o erro de todo o pensamento, principalmente ocidental, é só ter pen-
sado na dualidade da partição –que é evidente, razoável, pois do ponto de vista
científico, da pesquisa, etc., sempre se encontra dualismo –não querendo pensar
que isso exige um terceiro... uma vez proposto o dualismo, não podemos mais
pensar que o que haja para além disso seja um campo onde isso está mergulhado,
porque pensado isso é pensar necessariamente como terceiro: se tenho dois aqui,
aquele já é o terceiro... esse terceiro –que não se sabe dizer bem, o tempo todo,
pelo menos, dentro da modalidade dual da língua –está sempre presente nos
atos: nos atos poéticos por exemplo... ele está sempre exigindo sua presença
densa... aí, então, que posso pensar: se isso explode em dois por que vai se
juntar outra vez em um no campo do A?...
...Chi é neutro, não tem mistura possível, é heterogêneo... o terceiro
é heterogêneo aos dois... no que Chi é referente a empuxo geral, aquilo vai se
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O Sexo dos Anjos
partindo, partindo, cria o seio da diferença, o seio do sentido, etc., mas, quando
perde a força, começa-se a acabar com as diferenças dentro do próprio Haver...
é a tese da termodinâmica, a entropia: no que as diferenças vão se terminando,
isso vai ficando cada vez mais próximo de Chi até ser tudo reduzido ao seio de
Chi, que está passando do lado e engole tudo de novo... quem é constante é Chi...
aliás, é um engano pensar que ele vai por fora, porque se ele é sustentáculo do
que vai por dentro, ele está dentro com sua neutralidade... não se deve pensá-lo
na sua quantidade, e sim na sua presença pura e simples... ele vai dentro: estão
lá os dois e está lá o Chi, se não não tinha nem a separação dos dois...
...essa constância do Haver, que se manifesta em função das modali-
dades, das transformações e das metamorfoses dos princípios, é que re-com-
parece... se tenho a coisa dualística posta no seio do que é cósmico e tenho o
terceiro como referente, o que acontece aqui como sistema dual não pode querer
senão a sua própria neutralidade, a sua própria constância, que é constância
de sistema... portanto, é nada mais nada menos do que homeostase, a qual é a
aparência que o referente toma no seio de um sistema limitado: manter-se na
sua própria neutralidade... aí que Freud diz –e parece incongruente, mas não
é –que o Princípio de Constância aparece também como mínimo de tensão,
com tendência ao zero... onde?... no gozo-do-Outro... no sentido freudiano em
que a Pulsão de Morte é, primeiramente, pelo menos, situada para ele como
destruição do orgânico, queda no inorgânico... então, a Pulsão de Morte, situada
como transposição para o Chi, para o A, ela se dá... ela não é plenificada, pois
quando tudo isso chega no A já é um primeiro movimento de Pulsão de Morte
realizado, realizável... o que não é realizável é o que está para além disso, para
além do impossível regional: o impossível absoluto, que vai criar a comoção
chamada gozo-do-Outro... chegou no A, acabou a diferença interna... estamos
em pleno Chi, o qual vai se comover com a diferença externa, produzir gozo-
do-Outro e produzir Furo...
...por isso Freud diz que a Pulsão de Morte trabalha em silêncio e o
barulho do mundo se deve a Eros –e a Anteros, que ele esqueceu de apontar...
ela trabalha em silêncio, porque é compatível com o referente, que é neutro...
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a gente nunca se deu conta disso, e o ocidente fez todas as suas coisas em cima
de Eros e Anteros...
* * *
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dentro... por isso ele é reflexivo sobre o universo... por isso a CONSCIÊNCIA
pinta... por isso a linguagem tem vez... é uma ordem ternária, agora, dialogando
com a outra... se tomarmos o animal, é uma ordem binária cujo terceiro está
lá, mas é o terceiro de todo o campo, é o Chi do campo todo fazendo terceiro
para o conjunto de todas as modalidades: isso não se fala como terceiro, mas
só como segundo...
...no ser falante, no nível disso que chamamos de Inconsciente, de
produção de linguagem, etc., a coisa se reinscreve outra vez não com a bina-
riedade computacional dos movimentos comportamentais de um animal, mas
sim como possibilidade de referir-se internamente ao Terceiro, de fazer Revirão
e acrescentar modalidades práticas –a prática do tecnológico, por exemplo –
porque manipula diretamente o Terceiro... daí a problemática ocidental com
o tal de SUJEITO, porque no seio da binariedade computacional do Haver
aparece um ser que recapitula tudo em nível do ternário, então: ressurgimento
do sujeito... ressurgimento porque tenho que fazer a suposição de um sujeito
ao Haver que é o tal Sujeito Suposto Saber... Deus, se quiserem...
...isto politicamente é o máximo de revolução... eu não sou Heidegger...
no sentido de constância e não de conservação: é o princípio de criação, de
invenção de possibilidade... o que é constante é a plenitude energética, que não
tenho nem que medir, é sempre constante, mas é multifária na sua manifestação...
é Princípio de Constância, e não de conservação...
...o Terceiro Sexo fica, então, como sexo de referência, no caso do
falante... o xx, a função fálica pura e simplesmente a partir de experiência
do Masculino e do Feminino só se define claramente no campo do A enquanto
desejo inarredável de Não-Haver... mas uma vez que se possa escrever “existe
a função fálica”, temos que dizer “não-todo x é não função fálica”, xx... este
é o sexo de referência, porque a função fálica pode ser negada, mas não por
inteiro: ela permanece em Chi como referência constante, como o K, como o
Falo, o dos outros sexos...
...o Masculino, comparecendo como criativo, só se dá pela negação,
proibição, castração, etc., da função fálica: existe pelo menos um que nega a
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O Sexo dos Anjos
função fálica para que todo o processo consiga, embora limitado pela castração,
tomar forma... o que há aí é a negação da função fálica, mas não por inteiro...
tanto não é por inteiro que é porque se nega que se pode dizer que todos são...
é parcialização da função fálica no universal: a função fálica de Chi é parciali-
zada num conjunto que é chamado universal... o Feminino como destrutivo,
o Feminino é destrutivo no Esquema Delta, é rememoração de que não há
como negar universalmente a função fálica... é reafirmação disso mediante a
negação daquilo que possa negá-la... o Feminino diz: “Não existe nenhum que
diga não”... e não há outro Real disponível para o falante, para o Falanjo, senão
aquele da diferença que, para ele falante, se joga entre o e o A... ou seja:
entre neguentropia, Anteros, e entropia, Eros... não há outro Real comparecente
para o falante, há sim conjeturável como está conjeturado no meu Esquema,
mas que compareça, que o falante lide diretamente no campo da praxis, não...
ele só lida com entropia e neguentropia, mais nada...
...é o que podemos chamar de AGONIA do falante, no sentido eti-
mológico... agonia quer dizer luta... luta contra a morte, por exemplo, ou luta
de vida e morte... esse é o tal do mal-estar no Haver, é a agonia do falante...
só se pode lidar dentro dessa agonia com aquilo que os gregos chamavam de
techne agonistiké, a arte da luta, a parte da ginástica que tratava da luta dos
atletas... o falante não pode fazer mais do que techne agonistiké... donde aquilo
que falei no Rio Grande, no IV Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil: a
sagacidade na solércia agônica...
* * *
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nº 3 , p. 357...
...essa posição terceira de Maneiro, que venho invocando para nós,
talvez permita que, no nosso movimento, a gente acrescente a psicanálise e a
leve para o seu lugar...
* * *
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gia da diferença... não sei de onde vem essa memória, deve estar escrita na
neutralidade de Chi...
... o Não-Haver é uma proposição constante do Haver... afinal de con-
tas, lá no meu texto do Pleroma, a conjetura foi de que a libido não precisa da
diferença interna: é potência, força... se é força, ela quer algo, ela se movimenta
para algo: “Se não tem tu, vai tu mesmo”... se não tem externo vai interno...
...a memória da dissimetria é a própria simetria... repetindo o que já expli-
quei: de tanto simetrizar, aquilo simetriza, simetriza, a ponto de pedir a simetria
absoluta, que é o avesso de si mesma, que é o Não-Haver... é uma exigência tão
grande de simetria que ela comparece como simetria porque não há o Outro lá... se
houvesse, ele passava... vou caminhando, vou pedindo simetria, encontro simetria
o tempo todo, essa simetria tanto se repete que ela pede simetria de si mesma...
e a simetria da simetria é a dissimetria... o avesso do simétrico é o dissimétrico,
é Não-Haver nem avesso... ou seja, o Haver é lógico...
...isso vai dar resultantes das mais importantes, no percurso e na própria
prática da psicanálise, porque tenho que conjeturar muitas coisas de outro
modo... tenho, por exemplo, que repensar, até psicologicamente, a diferença
entre o falante e o não-falante... adianto hoje, aqui, o que vou dizer talvez bem
mais no futuro: há que fazer a crítica do Estádio do Espelho, de Lacan, o qual
é, talvez, um erro grosseiro por causa de um mal-entendido de Henri Wallon...
há que demonstrar isso... em cima de um mal-entendido da psicologia, Lacan
montou o Estádio do Espelho com muita sutileza, mas que, posteriormente,
se transforma –não é que seja ruim, ao contrário, é excelente –por causa do
mal-entendido, num erro grosseiro, que é a suposição da falta como dada, e não
como a ser produzida... coisa de que ele mesmo discorda, critica de si mesmo,
sem dizer que está criticando, quando diz que é o significante que faz furo, que
é a linguagem que faz furo... isso me parece incongruente com o Estádio do
Espelho tal como está desenhado... isso vai dar uma concepção radicalmente
diferente da prática analítica: trata-se de fazer furo, de produzir o Reviramento
que não se deu... é muito diferente de supor que o Inconsciente já funciona
estabanadamente... não!... trata-se de produzir Inconsciente... o Inconsciente
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22/OUT
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TO SIR WITH LOVE
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..o Seminário deste ano, pelo menos para mim, foi muito proveitoso... es-
pero que também vocês tenham encontrado alguma coisa nele para aproveitar:
...aliás, o ano de 1987 pode ter sido sofrido, mas, entre nós, foi grande-
mente produtivo... e tomo, em homenagem, como exemplar dessa produtividade,
o trabalho do Joãozinho, o Pequeno Trans –nomeadamente representado pelo
Desejo Descola que vocês viram sobre o vídeo...
...que todos vocês sejam tão condescendentes e carinhosos para comigo
como o belo Sandro se declarou para o Joãozinho... está aí essa bandeira que
lhes dou –na demanda de amor...
...hoje quero lhes falar de sonhos –e se, como demonstra Freud para
nós, todo sonho significa um desejo, na medida em que aponta para O Desejo
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To sir with love
que corre por detrás de cada desejo, então, no que se apresenta como signo de
um desejo, todo sonho é um sonho de amor...
...e amor, como ensinou Lacan, a Mais, Ainda, “o amor é um signo”
(p. 21)... “o amor é signo de que a gente muda de discurso”... e ele ensinou
também (p. 16) que “não há gênese senão de discurso” –quer dizer, gênese
é no amor, o amor é que é genésico, só o amor é verdadeiramente genético,
senão mesmo que é o amor que é verdadeiramente genital, na medida em que
ele é, segundo Lacan, justamente “o que vem em suplência ao impossível da
relação sexual”...
...donde, a lição de Fernando Pessoa:
...por Isso, por Razões de Amor é que dedico, hoje, o meu Seminário
to SIR with love...
...a quem o dedico?...
...ao meu Dono... um certo Senhor que me fez mudar de discurso... ao
Anjo da minha anunciação, que me faz de novo virgem para o Outro, por mais
puta que tenha sido a deriva enunciada de minha enunciacão... virgem, a receber
no seu seio o afeto que se encerra na bandeira seminal do Grão Senhor...
...então...
...to SIR, with love, quer dizer, ao Anjo, com amor... ao S,I,R, com
amor, e com amor, e com amor...
...ao Simbólico do Anjo, com amor...
...ao Imaginário do Anjo, com amor...
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do Outrão...
...assim, a transferência é possível sem o amor... embora o amor possa
elevar a transferência à dignidade da referência, sem outra reverência senão
aquela que visa a Coisa para a qual aponte, eventualmente, o referente meta-
transferencial...
...übertragen, transferir na língua de Freud, é encarregar, isto é, dar
um encargo, nomear para um cargo, fazer com que alguém venha a arcar com
um fardo ... um fardo com que o analista, na verdade, não pode arcar...
...Freud chamou de “neurose de transferência” essa “neurose artificial”
que se monta numa análise, na qual o analista venha a se encarregar da neurose
do analisando... isto ele pode ...
...ora, encarregar-se da neurose do analisando é encarregar-se, na
verdade, de sua transferência anterior... isso que Lacan chamou de SsS, é o de
que sofre o neurótico –o qual sustenta seus recalques na suposição de que tal
sujeito saiba do que se trata no fato de ele haver...
...daí se dizer que o perverso e o psicótico não “fazem” transferência, não
transferem... sabem por quê?... porque a transferência é a neurose... donde, se não
há transferência, não há neurose, se não há neurose, não há transferência...
...mas pode haver referência a um sujeito, enquanto mediador da
reverência para com o verdadeiro SsS...
...a neurose, então, se qualifica pela transferência, aliás sustentadora
do recalque –do que se aproveita o analista para deslocar o recalque, baseado
justamente na garantia, que sobre ele é colocada, de sustentador do recalque...
ora, se o próprio sustentador do recalque permite e mesmo suscita o desrecalque
–então, tudo bem...
...assim, então, a liquidação, a solução, a dissolução da transferência,
é possível... sim...
...liquidada a transferência, pode-se passar à referência – e mesmo
à reverência para com A Coisa ulterior... assim, não há a tal de “neurose ir-
redutível” a que nos temos referido tanta vez...
...a transferência –que precisamente está do lado do analisando –não
é amor... é, justamente, inadimplência para o amor...
458
To sir with love
* * *
...então, pela última vez, pelo menos, por hoje: como fazer amor?...
...o que lhes posso dizer, por ora, é que há duas vertentes de fazer-amor...
a segunda delas apresentando-se com duas modalidades, a segunda das quais
é a superior se não a excelsa modalidade do amor...
...definamos essas vertentes em conformidade com a sublimação de
Lacan: Como sublimar?: “elevar o objeto à dignidade da Coisa”...
–pela Primeira Vertente, como fazer amor?... assim eu lhes digo: fazer
amor é encarnar a Coisa na efemeridade do objeto...
...efemeridade, de efeméride (quer dizer, tiquê) e de efêmero (quer
dizer, perecível)...
...é por esta vertente que corre o rio, mais ou menos caudaloso, da
produção de sentido (em téchne), tal como acontece na arte nossa de cada dia,
que exige também o cuidado (a cura) das águas desse rio...
...é por esta vertente que se faz amor... com a Obra... é por esta vertente
que se faz amor com um-corpo, esse lídimo representante do Outro... é por
esta vertente que se cuida do produzir e do produzido, para que o produzido
renove o seu sentido...
...encarnar A Coisa na efemeridade do objeto, não é, diretamente, nem
tesão, nem paixão, nem transferência, nem sublimação, mas, referindo-se ao
impossível da Coisa, tornar possível que algum objeto, achado ou produtível,
venha a ser cuidado com a sacralidade (sacer) do imundo...
...”amor objetal” –alguns assim o dizem... é o amor da mestria enquanto
produção de bens e maravilhas...
–pela Segunda Vertente, como fazer amor?
... assim eu lhes digo: confiar A Coisa ao cuidado eterno de outro
459
O Sexo dos Anjos
sujeito...
...não há o tal “amor dom de si” a não ser que ele aja enquanto amor donde
se visa A Coisa entregue a alguém em quem se aposta por um pacto preciso...
...mas há duas modalidades dessa confiança, dessa aposta...
...primeira, o amor do Pai, que segue em linha reta, sem retorno e não-
recíproco... que só parece dom-de-si no que projeta o narcisismo para a frente
–e em vez de ser recíproco, é amor transmissivo, porque transitivo...
...aliás, não é outra a postura, aliás ética, do analista... daquele que não
cai na transferência, nem a favor nem contra –muito pelo contrário, equivoca-
damente, em questa do Revirão fortuito em prol do amor-paterno, sustentado
num NOME...
...é também o amor, específico, de pais para filhos, o qual não é recí-
proco senão no impulso, de um lado, do empuxo do outro lado, para a herança
em linha reta...
...é também o amor do Mestre pelo Discípulo, cuja reciprocidade só
se dá na reverência que já não visa o Mestre, mas a Coisa que ele suporta ou
porta embora reduzida como agalma...
...será esta a modalidade maior da maior vertente do amor?...
...alguns assim o dizem... mas não eu, que assim lhes digo: a segunda,
a excelsa modalidade, não é o amar isto ou aquilo, do amor objetal... também
não é o amar para, do Amor do Pai, que só se precipita (como no analista), mas
sim o amar com –amor de pleno risco, mas precisando reciprocidade absoluta...
o que não há sem sacrifício, como qualquer amor, que em fim de contas, visa
o sacer da Coisa imunda inatingível...
...Amor de Servidão –como Camões nos explica: em sete vezes quantos
Setes sentenciem eternidade:
e mais servira
não fosse para tão longo amor
tão curta a vida.
460
To sir with love
* * *
461
O Sexo dos Anjos
sentido, não é outra coisa senão a nossa caríssima prática freudiana... pra
alegrias, certamente...
19/NOV
462
Maravalhas
ANEXO
MARAVALHAS
TODESTRIEB
463
O Sexo dos Anjos
464
Maravalhas
AUTO-ANÁLISE
465
O Sexo dos Anjos
pai-menor de que ele faz sua referência. Donde o sentido de alienação (não-
autonomia) do psicótico.
Só o Sujeito curado (seja pela prática analítica ou não) não é alienado
(neste sentido), pois sua alienação (entre S1 e S2) encontra esteio definitivo na
sua entrega, no seu abandono (Gelassenheit) ao Pai, o qual não é Outro senão
o próprio Sujeito enquanto Filho que reconhece o Pai.
Neste sentido, mesmo a neurose tem a ver com o Nome do Pai em sua
estruturação: se o fundamento da neurose é o recalcado, é porque o recalque
é exercido não pelo Pai enquanto Lugar da Lei, mas por parcialização da Lei
em Regras menores que, se por um lado representam a Lei enquanto limitações
regionais (castração), por outro lado diminuem sua compleição, produzindo
assim mutilações (modais) em forma de castração.
Assim, o que garante uma análise de um Sujeito é a auto-análise, na
transferência, com outro Sujeito capaz de funcionar como ressoador do Pai.
IMPOTÊNCIA HISTÉRICA
466
Maravalhas
Não é à toa que a revolta (histérica, aliás) dos Anjos (do Senhor) os
levou a serem condenados ao Inferno (da impotência).
Lúcifer é o Anjo da Luz –que queima suas asas no desejo de ser Outro.
Não há dicotômica oposição entre Anjo-Bom e Anjo-Mau senão por
questões interesseiras de pontos-de-vista. O Anjo-Bom quer mais luz (Mehrlicht!,
Mehrlust!), mas recai, como Anjo-Mau, na sua própria impotência. Assim, o
que faz o Anjo-Mau não é ele afrontar o impossível, e sim ele se defrontar com
sua própria impotência. Afinal de contas, afrontar o impossível é reconhecer
a Potência do Pai.
Não é que Deus lhe dê uma punição por ele querer igualá-Lo, e sim que
o Anjo sofre (como se fosse decadência) de sua própria impotência em se igualar
(em compleição mas não em estrutura, pois esta já é igual) ao próprio Deus. Não
há, na queda de Lúcifer, nenhuma punição, mas puro e simples funcionamento
da estrutura do Pleroma. Lúcifer só tem culpa e vai viver no Inferno, quando
toma o funcionamento estrutural por punição e abre mão, então, do seu desejo
de igualar a Deus –desejo legítimo –e passa doravante a atemorizar os demais
Anjos com a intenção de coibi-los em sua insistência nesse desejo.
O Bom-Diabo é aquele que apesar de reconhecer sua impotência insiste
no seu desejo de Mal-Deus: sem punição, e portanto sem culpa, mas entregue
à Vontade do Pai, não obstante graciosamente decepcionado.
A virtude diabólica da insistência no desejo de tornar-se Deus é o que
fabrica o Progresso. Lacan dizia que o Progresso não há: “o que se ganha de um
lado, se perde do outro”. Isto é verdade, mas só do ponto-de-vista divino (que,
aliás, a santidade pode reconhecer, mas que nenhum Falanjo ocupará): isto só
é verdade sub species aeternitatem. Isto quer dizer que não há mesmo nenhum
progresso na transformação de Deus em Deus –que é o que se verificaria no
escopo geral da imersão do Campo do Sentido no Nada e no Real. Do ponto-
de-vista das modalidades, porém, assim como do ponto-de-vista plerocinético
do Haver (isto é, de seu movimento libidinal, necessário em função do seu
desejo de Impossível), do ponto-de-vista do divertimento divino, do ponto-de-
vista da brincanagem do Pai, há progresso sim, ou seja, maior aproximação da
467
O Sexo dos Anjos
468
Maravalhas
PULSÃO
REPETIÇÃO
469
O Sexo dos Anjos
do Revirão.
A Pulsão (a tensão, o Tesão) não é outra coisa senão a única maneira
de movimentação da libido (konstante Kraft), na medida em que o alvo (Ã) é
impossível de ser atingido. E daí que o alvo se torna Furo (F) Real do Revirão,
que só é borda por sua topologia unilátera que lhe impõe bifididade.
Talvez possamos desenvolver uma Teoria da Satisfação (da libido). A
satisfação libidinal (mesmo na sublimação) sendo topologicamente um Revirão,
isto é: a falta visada pelo tesão procura um objeto (faltoso) que mais intensifica
a falta a ponto de avessar o tesão, transformando-o em aversão (temporária, é
claro). A impressão de gozo fica referida à passagem pelo ponto bífido do Re-
virão, lugar de neutralização (por avessamento) da demanda que substituirá o
desejo naquela ocasião. Neutralização esta que estanca o processo, emprestando,
ali nesse ponto da série, sentido à operação de satisfação.
O modelo da fome saciada fica aquém do esquema da satisfação
pulsional, embora possa ajudar no seu entendimento. Satisfeita a fome, é
abandonada a busca de alimento e mesmo mais alimento é defastado –isto
no regime homeostático do animal. Ao passo que a satisfação pulsional exige
–freqüentemente muito para além ou para aquém da satisfação homeostática
de uma necessidade – exige que o objeto seja circundado, por não se sabe
quantas voltas, até que se produza o avessamento de sua requisição, isto é, até
que haja Revirão.
Daí que uma necessidade não tem chance de sublimação fora do falante,
ao passo que uma pulsão pode ser sublimada com satisfação, pois o avessamento
do seu empuxo pode ser operado por via metaforonímica.
Devemos lembrar que o movimento libidinal do Homem é pulsional.
Não é jamais uma necessidade (em estado puro) que comanda esse movimento,
mas o impossível de ultrapassá-lo. As ditas necessidades (fisiológicas, por exem-
plo) é que se estabelecem assentadas no aparelho pulsional –e não o contrário
–quando o circuito libidinal do Haver é imbricado com um modo (sistêmico)
limitado por suas operações de auto-manutenção. O neurótico, por exemplo,
confunde seus movimentos pulsionais com necessidades modais (animais,
470
Maravalhas
orgânicas, fisiológicas, etc.). Ele não se dá conta de que, por exemplo, pode
“escolher” não defecar, mesmo quando isto é necessário, assim como pode
escolher não ser sodomizado quando isto é desejado.
A compulsão à repetição (Wiederholungszwang) não encontra embargo
eficaz em alguns casos, encontrando-o como desvio em outros –em ambos os
casos de maneira por vezes desvinculada de qualquer inteligível necessidade.
Assim, para o falante, a diferença entre pulsão e necessidade se estatui
pela possibilidade de desvio para a satisfação. Mas o que permite o desvio é da
ordem da satisfação no Revirão –e não da satisfação homeostática.
É importante notar que, do ponto-de-vista ético, o desvio é possível mas
não (também ele) necessário. O que qualifica eticamente o desvio eventual da
pulsão é que o Sujeito pode exercê-lo –embora não seja obrigado a fazer isto.
Ou seja, o valor ético da sublimação está em que tal Sujeito, em tal momento,
em função das circunstâncias ou das leis, bem pode exercer a sublimação. Não
há nenhum imperativo categórico que o constranja a agir assim, a não ser o
empuxo do Real dentro de determinadas circunstâncias, de tal modo que não
fazer isto, em certos casos, indica falta de ética mais ou menos grave, ou, pelo
menos, uma alienação pulsional qualificável como patológica.
O mito da expulsão de Adão (e Eva) do Paraíso é de grande riqueza, pois
exibe, em níveis diversos, nossa situação pulsional diante de uma insistência
repetitiva. Por um lado nos aponta, em nível estrutural, que Adão deve insistir
(Imitatio Dei) em apoderar-se da Coisa, mesmo mediante um representante
dela, isto é, que Adão é necessariamente (estruturalmente) desejante – mas
que o acesso aparente ao objeto mais o afasta da Coisa, pois lhe exibe sua
impotência e sua impossibilidade em sua decepção. Aliás, o termo Zwang é
traduzido em português (como em francês, etc.) tanto por obsessão quanto por
compulsão. Daí neurose obsessiva (zwangsneurose) e compulsão à repetição
(Wiederholungszwang). Donde se poder dizer que o Outro (o ICS) é obsessivo,
é compulsivo em sua repetição –embora não lhe caiba o epíteto de neurótico.
É por necessidade estrutural que Adão resta obsessivo quanto ao fruto (objeto)
proibido –mas ele poderia ter passado a investir sua compulsão na Coisa –
471
O Sexo dos Anjos
R, S, I, OU MELHOR, F, A, A
472
Maravalhas
HAVER
O Haver ( , Bíos, o vital, o que Há, o Pai, Deus, sei lá mais o quê), eu
o distingo do Real (termo que em Lacan se equivoca entre o Haver e o Impos-
sível). O Real, (F) como Furo, ponto-bífido do Revirão, centro de imantação
de implosão e de explosão. O Simbólico ( ), o Anteros, lugar de separação. O
Imaginário (A), Eros, lugar de conjunção.
Tânatos não se opõe a Eros. Quem se opõe a Eros é Anteros. Tânatos,
a própria libido enquanto desejo de Não-Haver (Ã), se opõe a Bíos, a libido na
impossibilidade de chegar a Ã, isto é, a libido enquanto R.
Enquanto que consubstancial ao Pai, o Falante, o Falanjo, Adão, Homo
Sollers, éternário, isto é: RSI, F A, podendo ser representado, como o Pai, por
um nó borromeano de três anéis ou por um triângulo equilátero.
473
O Sexo dos Anjos
SUJEITO
474
Maravalhas
REAL
Esse lugar não demarcável do Revirão, pelo qual tem que passar o
‘ ). Lugar esse que proíbe inapelavelmente (o
Haver, necessariamente (́
impossível) que o Haver venha a passar a Não-Haver. Condenação absoluta,
da qual nem mesmo o Haver (seja ele Deus) pode escapar.
É tal aparente proibição –que na verdade só designa o impossível –que
se põe como o núcleo no qual está centrada uma moral (racional) unicamente
compatível com o achado freudiano.
Há que Haver –sem saída, sem Outra opção.
Para o Filho, que não abarca a compleição do Pai, enquanto vivente, há
a mesma condenação. Somente a Morte lhe sendo conjeturável como possível
escapatória de tamanha cruel condenação (donde o suicídio dos estóicos).
Aí é que a ética freudiana do Wo Es war soll Ich werden encontra
explicação. Pois o que é real para um falante é o ponto do seu Revirão que o
subjuga a uma férrea lei de repetição do seu desejo enquanto o vicário Real de
sua particular instalação. Assim é que a dimensão moral o enraíza no próprio
desejo. Ele não pode ser outro que não ele mesmo, que não tal ser –quando é
bem Outro que ele desejaria ser.
Pois que o desejo mais fundamental do falante não é aquele, que ele
pode bendizer, enquanto particularidade positiva . Ao contrário, como bem o
exprime Sófocles mediante o desejo de Édipo enunciado no seu Mé-Funai e
re-enunciado no sumiço luminoso do seu final em Colona –seu desejo funda-
mental é o de não ser tal, ou seja, de ser outro, o qual, por indefinível, passa
a ser o Outro enquanto Pai. Ora, é justamente aí que o desejo do homem é o
desejo do Outro. Para o Pai, o desejo de Ã, para o filho, o desejo de ã. É aliás o
que se designa na religião budista quando se intenta anular o desejo (os desejos)
pois tal anulação esvaziaria a particularidade do desejante –para inseri-lo no
desejo enquanto tal.
Tudo isto entretanto não impede o pacto e a lealdade para com outrem
–muito pelo contrário. Na medida em que tal desejo bem pode sustentar-se
475
O Sexo dos Anjos
FUNÇÃO FÁLICA
MORTE (I)
476
Maravalhas
477
O Sexo dos Anjos
o conceito de criminoso que pesará sobre o autor de tal ato para aqueles que
sobrevivem a ele.
Mesmo porque sua recusa de continuar vivente é, freqüentemente,
recusa de sobreviver às perdas e danos (castração evidente) que algum cata-
clisma lhe infligiu.
A Coisa é a Morte –que não há: nem mesmo para Deus. É o que se
deseja –mas em vão. Por isso mesmo é que a relação sexual é impossível –
pois é a Coisa que se visa ao se querer morrer de amor no seio do Nirvana
sem pulsão.
REALIDADE PSÍQUICA
Não há nenhuma realidade psíquica que não o que se passa nessa es-
trutura pulsional (do Esquema ) que traça o caminho (Tao) do desejo.
Mas, para o falante, o que nele corresponde ao impossível Não-Haver
que co-move a instância divina, é o seu impossível de não-haver como tal –que
lhe impõe a criação (ex-nihilo) de sua particularidade dentro da modalidade
que ele habita. Realidade psíquica tão inelutável em sua precariedade quanto é
inelutável para o próprio Deus o impossível de sua desejada de-sistência.
AÇÃO MORAL
478
Maravalhas
INSTITUIÇÕES PSlCANALÍTICAS
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O Sexo dos Anjos
480
Maravalhas
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O Sexo dos Anjos
MORTE (II)
482
Maravalhas
CASTRAÇÃO
ICS E LINGUAGEM
483
O Sexo dos Anjos
A FILOSOFIA DO SIM
484
Maravalhas
NOME DO PAI
O Nome do Pai não é senão o Nome de Deus –de quem Um Pai, sob
qualquer aspecto e em qualquer circunstância, não passa de representante
(Repraesentanz), lugar-tenente, com toda precariedade com que tal rebaixa-
mento o predica.
A foraclusão do Nome do Pai, na Psicose, como proposta por Lacan,
não é outra coisa senão a indisponibilidade do psicótico para negar ou afirmar
efetivamente a existência de Deus (existência, pois que o Haver ek-siste ao
Não-Haver).Não se pode nem mesmo dizer que o psicótico não crê em Deus:
é que ele não teria como crer ou descrer –o que não o impede de suspeitá-Lo,
de supô-Lo, embora precariamente, por detrás de sua não transferência, a qual
seria melhor chamada de transferência lábil, labilidade esta que prejudica mas
não anula definitivamente a suposição.
A falta de crença efetiva em Deus (coisa que, ao contrário do bate-boca
atual, é bastante rara) não indica psicose, mas perversidade. O perverso é aquele
que se recusa peremptoriamente a crer em Deus porque O objetificou num
mandamento. O que faz com que, na verdade, um perverso creia na existência
de um deus que tem a compleição de sua própria (do perverso) tomada num
certo momento de sua definição da instância paterna.
Pois a crença em Deus é suposição de um Outrem Absoluto –o que
elimina qualquer aparelho de sua minuciosa definição. A crença do Homem
em Deus é a crença do Homem na crença de Deus. Isto é o mesmo que dizer
que “o desejo do Homem é o desejo do Outro”. E qual seria a crença de Deus?
Segundo a precária conjetura do Esquema , Deus crê em Não-Haver: o Não-
Haver é o sonho de Deus.
Ao psicótico (Lacan, Seminário XI, p. 225, edição brasileira), lhe
falta “a abertura dialética que se manifesta no fenômeno da crença”, pelo
485
O Sexo dos Anjos
que ele não pode crer, dada a labilidade de sua transferência por não-recurso
ao Nome do Pai.
Já o perverso, ele “sabe” positivamente qual o desejo do Pai enquanto
um desejo modalizado, ele “conhece” seu comando de gozo. Ao invés de
reconhecer que há desejo (na verdade, enigmático) no Pai, ele pretende saber
de que desejo se trata, não havendo crença portanto, e sim “conhecimento”
de certo desejo que ordenaria hegemonicamente toda e qualquer significação.
Trata-se portanto de certeza definida e definitiva a respeito (não de sua posição
de Sujeito mas) do conteúdo explícito de sua própria posição.
Conjeturar (como necessidade estrutural) o Não-Haver como Causa do
desejo do Pai não é conhecer o seu desejo. Pois se o Haver sonha incessante-
mente com o Não-Haver, os conteúdos dos seus sonhos resultam na produção
de tudo que Há, cujos avatares não podemos perfeitamente controlar. Sabe-se
que o Outro deseja, de um desejo causado pelo Não-Haver –mas que sonhos,
por causa desse desejo, ele há de sonhar?
PSICANÁLISE E RELIGIÃO
486
Maravalhas
487
O Sexo dos Anjos
Pois que, Deus, muito ao contrário de ele estar morto, ele não pode
morrer, limite aliás de todo o seu poder. Se é no feminino que Deus melhor
exprime o seu desejo (de morrer), é bem no masculino que ele pode realizar
esse desejo, isto é, por um Revirão, sustentá-lo eternamente sem solução.
Para Deus, A Morte Não-Há: este o Seu limite. Ao passo que, para o
Homem, se não há nenhuma morte feliz, há pelo menos perecimento –aonde
ele conjetura se limitar. No entanto, Deus pode (pelo menos estatisticamente
–e esta é uma das teses da Física atual) obrigar o Homem a ressuscitar –o que
retiraria, claramente, o seu perecimento, da chance de qualquer Morte definitiva
e alcançável, ao mesmo tempo que lhe proporcionaria (como repetição e não
como reprodução) nova chance de começar de novo a sua aproximação do seu
alvo que é seu Pai.
De se pensar tudo isto, é de se aventar que se a Psicanálise não é Re-
ligião, sendo melhormente sua rival e substituta –é como sua herdeira (embora
diversa) que ela deve talvez se repensar e se refundar como o que poderíamos
bem nomear com o termo tão significante de Arreligião.
REVlRÃO (citações)
A way a lone a last a loved a long the (p. 268) riverrun, past Eve and
Adam’s (p. 3)
•••
brings us by a commodius vicus of recirculation back to Here Comes Every-
body (p. 3)
The proteiform graph itself is a polyhedron of scripture. There was a time when
naif alphabetters would have written it down the tracing of a purely deliques-
488
Maravalhas
Je ne peux pas considérer comme libre un être n’ayant pas le désir de trancher
en lui les liens du langage. (Sollers, Paradis, p. 8)
FALANJO (I)
489
O Sexo dos Anjos
UNIVERSO HOLOGRÁFICO
490
Maravalhas
E A NAVE VAI
491
O Sexo dos Anjos
dentro das condições eventuais que ela própria (a NAVE) lhe oferece em
sua relativa autonomia.
A CRUZ DO CRISTO
492
Maravalhas
cimento, mas sem morte, sendo dada a ficção da ressurreição como prova de
imortalidade. Ali estão TRÊS em UM criando o QUATRO a partir do ZERO
–ciclo original. No símbolo da cruz o “corpo” de Jesus é sim o terceiro eixo
de sua correta construção.
FALTA ORIGINAL
RELIGIÃO
493
O Sexo dos Anjos
494
Maravalhas
KAOSMOS
O termo é de Joyce.
A função do Terceiro, isto é, do Real (R) no seio do Gozo do Sentido (J$),
ela se efetiva ali como entropia/neguentropia (R1) para todas as modalidades do
Haver, exceto para o Filho enquanto tal (ótima intuição de Norbert Wiener).
Para o Filho, há reinclusão (repetição) do Real (como Estado) no seio
do Gozo do Sentido. No nível do biótico (o Macacão) o Filho iguala os outros
modos: (R1,S,I) ou [R(S/I)]. Mas no nível do Verbo ele iguala o Pai ( =
(R,S,I)), reincluindo o Revirão.
O “Corpo” do Haver é composto de:
CARNE, isto é, a substancialidade material ou energética do Haver.
ALMA, isto é: (R,S,I) ou (R1,S,I) em sua impostação ternária, funcio-
nando como aparelho de significação de (Lacan: l’âme-à-tiers).
ESPÍRITO, isto é, a Libido enquanto tal, ou seja o movimento (ple-
rocinético) no sentido de Ã.
495
O Sexo dos Anjos
496
Maravalhas
AMORIS
HÉTERO-LÓGICA
O coração de Pascal tinha razões que sua razão não conhecia. Assim
como religiões, das mais antigas às mais recentes, insistem nalguma “sabedoria do
coração”. Há também os “artigos de fé”, freqüentemente garantidos por “dogmas”
que se impõem, arbitrariamente, contra toda e qualquer veleidade dita racional
–donde o credo quia absurdum de Tertuliano que Freud tanto repudiou.
497
O Sexo dos Anjos
498
Maravalhas
para muito cedo se dar conta de que elas se degringolam –e se reviram pelo
avesso quando é bastante longa a série de suas articulações. É talvez ocasião
para se sugerir a criação de uma linguística ternária (a três termos), na qual um
termo oposto a outro solicite um terceiro, mediante o qual não só a oposição se
possibilite como também se faça comutação para um outro par de oposições.
O que a Psicanálise vem sugerir e deslanchar é uma lógica ternária –
não apenas contra o terço excluso, mas sim a favor da regência do terceiro em
todos os processamentos racionais. Não apenas uma lógica compatível com
a para-consistência-ou-completude, mas uma lógica consistente e completa,
porém em verdadeira terceira posição. Assim seria a Lógica do Falanjo, uma
verdadeira Heterológica, para a nomearmos com propriedade e distinção. Uma
lógica que não tema o Revirão, uma lógica da equi-vocação dos opostos por as-
sentamento no terceiro anfitópico, com alguma anfilogia trançada pelo terceiro
como comutador heterogêneo a ambas as “metades” desse binário usual.
Eis aí uma lógica que bem explicaria que o famoso indizível sempre
foi de certo muito bem-dito por “poetas” e por “místicos” (como os quiserem
chamar), mediante expedientes metaforonímicos capazes de se coadunarem
com a heterológica de sua sustentação.
Temos contudo que reconhecer que o Falanjo, como o único terceiro
incluído no Campo do Sentido (onde exceto ele próprio qualquer ser movi-
menta seu desempenho no binário), tivesse que espontaneamente começar por
aí, no espelhamento de sua articulação com a binariedade do panorama que de
imediato se lhe ofereceu –colocando-se, assim, inteiramente à parte, como o
Sujeito de todo acontecer.
Mas, agora, já foram bem dados os primeiros passos para a Outra
Aventura do seu desvelamento do Haver.
TRANSMISSÃO
Joyce: “The Seim Anew” É disto que se trata quando se fala de transmis-
são, especialmente na Psicanálise. É precisamente disto que se trata. Cada análise,
499
O Sexo dos Anjos
mesmo cada sessão de análise, deve ser co-memoração do the same a new. É isto
que se transmite numa cura –e é a respeito disto que se faz a teoria psicanalítica.
Ou, como diz o vulgar: “a merda é a mesma, só mudam as moscas” –e
isto faz muita diferença, quer dizer, a mesma diferença de-novo. É a konstante
psicanalítica por excelência. É esta a nossa E = mc2 einsteiniana. A transmissão,
na repetição, pelo Verbo des-sido do céu: descei-me, anil!
FORACLUSÃO
500
Maravalhas
501
O Sexo dos Anjos
502
Maravalhas
A
OS SEXOS DO HAVER
503
O Sexo dos Anjos
504
Maravalhas
505
O Sexo dos Anjos
Tratemos agora dos outros dois sexos: aqueles que a gente supõe, in-
genuamente, encontrar com mais freqüência por aí: a idiota e o trouxa. Pois que
são três os sexos efetivos do Haver, os quais poderíamos chamar, estropiando
a língua de Freud: “das” Engel, “der” Bündel und die Idiotin.
Em terceiro lugar, o sexo dito feminino. É o sexo que se extrai da in-
tensificação da vertente particularizante do sexo próprio do Haver. Este sexo
foi matemizado por Lacan assim: xx xx. Fórmula que escreve que é no
feminino que o Haver propõe a Morte, isto é, que é no feminino que há suspensão
do impossível pela negação da negação da função fálica. Donde resulta uma
abertura para a absoluta alteridade como havendo de-fato (Ã). Em conseqüên-
cia, nenhum universal encontra limite para se estatuir –e o Haver se infinitiza,
tornando-se encontradiço apenas no particular (se não no singular): idiotia. É
que a libido, em seu expediente feminino, nega que haja limite para sua função
(fálica = desejo de Ã). A experiência do limite não é reconhecida pelo feminino
–ela é sofrida no seu encontro com o Real (F) que lhe sobrevém como marca
do Impossível (Ã): fracasso da função-fálica e Revirão para o Gozo-Fálico, no
sentido do desvio para sustentação da própria x. Daí Lacan poder dizer que
A Mulher não existe –que elas só são encontradiças uma a uma. Também a
expressão xx indica que o feminino não irá encontrar seu objeto (Ã) pois que
ele não-há: a função fálica se exerce aí o mais intensamente, mas não chegará
a termo (x) pois que fracassará, no Real, por força do Impossível.
Devemos aqui chamar atenção para a diferença de qualidade que há
entre o x no contexto do feminino e no contexto do angélico. No primeiro
caso, o x prejudica o universal e impõe a inexistência d’A Mulher, pois é a
afirmação da x que se vê prejudicada em sua universalidade, isto é, o desejo de
Morte é que não se universaliza. No segundo caso, é a negação da x que tem
prejudicada a sua universalidade, donde o reconhecimento do desejo do Haver,
para além da Morte por ele postulada, no desvio pelo Real e na eternidade do
seu périplo. Aqui, embora o universal seja prejudicado (mas negativamente),
não se pode dizer que não exista o Haver. Nem se pode dizer que ele se par-
ticulariza (ou singulariza) e sim que ele se modaliza (internamente) no seu seio:
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Maravalhas
são os avatares do Haver. Mas não se pode falar dos “avatares” da mulher... A
Mulher, se ela houvesse, seria A Morte (= Ã).
É aí que Heráclito tem A Razão: O Haver é UM e em perene DEVIR:
o UM triádico que Freud nos mostrou como Inconsciente, o qual se expressa
como o UM diádico no enunciado de sua manifestação, pois que UM enquanto
Bivisto (das Unbewusste, o Umbivisto) já faz três.
O OUTRO-SEXO DO FALANJO
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REPETIÇÃO E MAISALÉM
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à E PSICOSE
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FALANJO (II)
“Imago Autem Dei non est masculus neque femina; ista enim divisio
naturae propter peccatum facta est.”
Escoto Erígena
(DDN V, 896B)
DE HILFLOSIGKEIT A GELASSENHEIT
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própria morte conjeturada e mesmo esperada como certa, nos deixa perplexos
e incientes. Sua chegada se nos aparece como uma cesura rítmica, sobre a qual
não podemos registrar mais do que uma perda mais ou menos acompanhada
de um desaparecimento.
Foi aí que Freud entrou com sua castração: o que, para nós, vem em
suplência à impossibilidade de inscrição do Não-Haver, é justamente a inscritibi-
lidade da castração (como Furo), a qual nos remete à diferença (sexual) exarada
nos alelos do halo significante, com os quais se defronta (equivocamente) o
Sujeito situado como terceiro nessa operação.
A castração do falante não é outra coisa senão o repique da castração do
Outro no seio da repetição de sua própria estrutura dentro do Campo do Sentido.
Repique este que acaba por rebaixar a impossibilidade, para o Outro, de alcançar o
Não-Haver, em impotência para o Falante, de alcançar a compleixão do Haver.
É o reconhecimento e a aceitação de sua própria castração que eleva
sua própria impotência ao estatuto da impossibilidade do Outro –condição sine
qua non da passagem da derrelição (Hilflosigkeit) em que o sujeito se encontra
diante do impossível, à entrega (Gelassenheit) de si mesmo às aventuras do
Outro sem, por isso, deixar de partilhar de sua essência desejante.
Uma coisa é o abandono passivo, quando um sujeito se encontra
deixado à sua solidão aparentemente absoluta: momento trágico do mé-funai
edipiano, em que o sujeito só aspira por um radical sumiço que lhe sobrevenha
no lugar do impossível socorro que ele requer. Outra coisa é o abandono ativo,
quando um sujeito se deixa flutuar nas ondas e aos ventos da alteridade, sem
contudo tirar a mão do leme do seu próprio barco, fazendo da tragicidade um
“tudo é lucro” e aspirando agora por mais uma aspiração. O fato de aí haver
ainda sofrimento, em nada diminui a Glória de sua bendição.
De tudo isto devemos ainda concluir –outra vez com Freud –que um fim-de-
análise passa necessariamente pelo Recife da Castração. Uma coisa, porém, é tomá-lo
pelo Cabo-Não; bem outra coisa é dele fazer o Cabo-da-Boa-Esperança da grande
navegação. É a partir de então que “navegar é preciso – não é preciso viver”.
Se um fim-de-análise passa pelo Cabo-Não, o passo do sujeito, nesse
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fim, é dobrar esse cabo, no desejo, sustentado, de encontrar o seu caminho para
as próprias Índias ab-originais: mas em nome do Pai.
Diga-o Fernando Pessoa:
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
–“Aqui ao leme sou mais do que eu;
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o monstrengo que me’a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”
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ECONOMIA
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agora, séde de um feito (tanto mais milagroso quanto mais “natural” no Pleroma
da Physis, quer dizer, do Haver disponível) espantoso: a repetência do divino
Revirão em nossa carne. Odiento milagre, e odioso e odiável –para os que
nunca farejam o que se prenuncia, além de mal e bem, para além da moldura,
para além de qualquer trave.
Feminino esse encore? Pode ser. Mas feminino de Anjo. Pois eu não
vejo, no quadro, as asas lá pintadas?
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Ensino de MD Magno
SOBRE O AUTOR
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Ensino de MD Magno
ENSINO DE MD MAGNO
3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa
3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p.
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8. 1982: A Música
2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p.
13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final
Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de
Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.
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O Sexo dos Anjos
Formato
16 x 23 cm
Mancha
12 x 19 cm
Tipologia
Times New Roman e Amerigo BT
Corpo
11,0 | 16,5
Número de Páginas
530
530