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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIMATER

CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

ISAAC FRIGOTTO WAGNER

ENSAIO SOBRE O “DELINQUENTE NATO”: REFLEXÕES TEÓRICAS


SOBRE LOMBROSIANISMO ATRAVÉS DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

PATO BRANCO – PARANÁ


2022
CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIMATER
ISAAC FRIGOTTO

ENSAIO SOBRE O “DELINQUENTE NATO”: REFLEXÕES TEÓRICAS


SOBRE LOMBROSIANISMO ATRAVÉS DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

Trabalho apresentado à professora avaliadora


do Centro Universitário UNIMATER como requisito
para a aprovação na matéria de “Metodologia da
Pesquisa Científica para TCC

Orientadora: Maureen

PATO BRANCO – PARANÁ


2022
ISAAC FRIGOTTO

ENSAIO SOBRE O “DELINQUENTE NATO”: REFLEXÕES TEÓRICAS


SOBRE LOMBROSIANISMO ATRAVÉS DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

Este artigo foi julgado e aprovado para obtenção da aprovação, na matéria de


Metodologia da Pesquisa Científica para TCC, do Centro Universitário UNIMATER

Pato Branco, 25 de maio de 2022.

Prof. Claudio Roberto Shimanoe


Coordenador do Curso de Bacharelado em Direito

BANCA EXAMINADORA

_____________________ _____________________
Prof Prof

Orientador
_____________________ _____________________
Prof Prof
Dedico esse artigo ao meu pai, pelos
referenciais de dedicação e
perseverança, e à minha namorada Ana
Carolina que foi fonte de inspiração e
também de paciência durante o
decorrer desse processo.
RESUMO

O presente estudo tem como finalidade conceituar através do tempo, partindo de


uma perspectiva histórico-dialética, o surgimento das áreas da frenologia e do
lombrosianismo, bem como suas definições e contribuições de reforço à
instrumentalização do sistema penal punitivo como ferramenta hegemônica de
dominação de classes, e estabelecer uma correlação entre as diversas tentativas de
legitimar a ideologia do “criminoso nato” postulada por Lombroso e outros
mecanismos de identificação e antecipação do comportamento criminoso de forma
biopatológica ainda utilizados hodiernamente. Nessa formulação inicial, alicerça-se a
hipótese central desta tese: uma análise crítica, a estas correntes positivistas e seus
vieses capitalistas, seus impactos na forma como entendemos e percebemos as
definições de “crime” e “criminosos”, com fulcro na criminologia crítica, na sociologia
e na psicanálise.

Palavras-chave: Criminologia Radical. Lombrosianismo. Dialética.


ABSTRACT

The present study intends to concept through time, starting from an historical-
dialectical perspective, the emergence of phrenology and lombrosianism areas, as
well as its definitions and contributions on reinforcing the instrumentalization of the
punitive criminal system as an hegemonic tool of class domination, and establish a
correlation between the several attempts to legitimate the “born criminal”, postulated
by Lombroso and other mechanisms of identification and anticipation of the criminal
behavior in a bio-pathological way used in the present days. In this initial formulation,
it is grounded the central hypothesis of this thesis: a critical analysis, to these current
of thoughts and its capitalist bias, its impacts on the way we understand and perceive
“crime” and “criminals'' fundamented on radical criminology, on sociology and in
some of its authors.

Keywords: Radical Criminology. Lombrosianism. Dialectica.


Sumário

1 – INTRODUÇÃO.
2 – Conceituação acerca dos objetos de estudo e seus respectivos períodos
históricos
3 - A Criminologia Moderna de Lombroso e as Políticas de Combate ao Crime
4 – Freud, neolombrosianismo e a ressignificação da criminologia através da
psicanálise
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO

A sociedade como um todo, sofreu e ainda sofre com os impactos e mazelas


provocados por teóricos da política criminal que na ânsia excessiva de uma
necessidade por progresso e ordem advindos do positivismo, e por terem como
preceitos básicos a busca pela justiça utilitarista, projetaram e espelharam esses
ideais nos sistemas de justiça penal, que hodiernamente ainda funciona de forma
inquisitorial e barbárica. Para trazer substancialidade à hipótese central, Alessandro
Baratta, Raúl Zaffaroni, Vera Malaguti, Nilo Batista dentre outros criminologistas se
fazem presentes na obra.
Então, através da problematização com enfoque dialético, ao comparar ideias
e compreender os antecedentes e as origens desses postulados criados em
contextos de políticas de higienismo social, bem como entender o uso do sistema
penal ao longo da história mundial como uma ferramenta que serve aos interesses
das classes dominantes através da gestão diferencial das ilegalidades, o presente
estudo tem por objetivo norteador a contestação racional-argumentativa à essa
amálgama teórica que surgiu há alguns séculos, chamada de lombrosianismo, e
como essa corrente mesmo após ter sido utilizada em eventos como o Holocausto
Nazista, ainda subsiste na atualidade. Nos últimos anos, houveram diversas
empreitadas cuja finalidade segue sendo a mesma dos estudiosos do século XIX,
identificar os “criminosos natos” ou o “biotipo criminoso”, isto é, padrões
biopatológicos que se repetem nos indivíduos apenados pelo sistema carcerário, em
uma tentativa de antever, ou até mesmo evitar crimes.
No entanto, estas pesquisas, por mais profundamente concretas e lógicas
quanto pareçam, ao buscarem legitimação científica e dados estatísticos, trouxeram
consigo diversas contradições e vieses essencialmente antagônicos ao direito
humanista. Lombroso, ao estudar a população encarcerada, em sua obra “O Homem
Delinquente”, aborda conceitos do darwinismo social, transpondo-os para as
ciências sociais. A problemática central destes estudos, é que foram realizados
somente com a população carcerária, desconsiderando a chiffre noir e a chiffre d’or,
a cifra negra e a cifra dourada, que seriam todos aqueles indivíduos pertencentes à
porcentagem de crimes não solucionados ou punidos, indivíduos detentores de
privilégios e que compõem parcelas mais abastadas da sociedade.
2 CONCEITUAÇÃO ACERCA DOS OBJETOS DE ESTUDO E SEUS
RESPECTIVOS PERÍODOS HISTÓRICOS E BREVE GENEALOGIA DA
CRIMINOLOGIA

É necessário, antes de iniciar o estudo, introduzir alguns conceitos básicos


com a finalidade de enriquecer o presente debate. De acordo com Lola Aniyar de
Castro (1983, p. 52), o estudo criminológico é “a atividade intelectual que estuda os
processos de criação das normas penais e das normas sociais que estão
relacionadas com o comportamento desviante dessas normas; e a reação social,
formalizada ou não, que aquelas infrações ou desvios tenham provocado: o seu
processo de criação, a sua forma e os seus efeitos.”
Ao amparar-se nos estudos foucaultianos feitos por Zaffaroni (2003)
constatamos que a criminologia “começa” a tomar forma como uma questão política
proveniente do século XIII, de uma conjuntura marcada pelo início do processo de
centralização do poder da Igreja Católica e do Estado, do processo de acumulação
de riquezas e é o berço do poder punitivo que começa a operar a tradução da
conflitividade e da violência no sentido “do criminal”. Malaguti (2011, p. 18), pontua
que:

A criminologia não começa na virada do século XIX para o


XX, mas no saber/poder médico-jurídico introduzido pela Inquisição. O
martelo das feiticeiras seria o primeiro livro de criminologia, os demonólogos
seriam os primeiros teóricos e os exorcistas, os primeiros clínicos. O cenário
erguido naquele então, com seus dispositivos, não deixou mais de se
instaurar ao longo dos séculos: estabeleceu-se um tipo de procedimento
que iria criar uma demanda por uma cena judiciária que necessitava de um
saber complementar: o saber médico.

No período da Inquisição, Malaguti (2011, p. 24) aponta que a “objetificação


do herege ou da bruxa pressupunha uma possibilidade técnica de domínio: técnicas
de interrogatório, diagnóstico, construções da identidade criminal e incorporação de
identidades criminosas.” Tem-se aí os primeiros indícios de uma união entre os eixos
“jurídicos” e “científicos”, incorporando aos cruéis vereditos da Inquisição, os
pareceres médicos, que corroboravam com as sentenças dadas pelo poder
Executivo, buscando tornar incontestáveis as decisões tomadas pelo clero ao atrelar
a elas um diagnóstico e/ou laudo dos médicos da época. Percebe-se neste momento
a criação das raízes axiais criminológicas, um “embrião” da criminologia
contemporânea, com estruturas procedimentais que perduraram por muito tempo e
mantém até os dias de hoje alguns resquícios desse mesmo modus operandi.
É de suma importância pautar todas estas coisas, da primitiva política criminal
inquisidora até à construção dos conceitos de “crime” e de “criminoso”, de forma a
afastar destes a ideia de possuírem um caráter ontológico, ou natural. Malaguti
(2011, p. 21) ao descrever sobre a desconstrução do crime, discorre que “Entender o
crime como um constructo social, um dispositivo, é o primeiro passo para
adentrarmos mais além da superfície da questão criminal.” Uma vez postos os
conceitos do que é a criminologia, e de seu início como construção social, devemos
entender a motivação da sua existência, por qual razão e com qual finalidade ela se
fundamenta, e como se manifesta de forma material, uma vez que é apenas uma
ideia, um conceito formal.
Pode-se entender que a função primária do sistema penal como ele é
conhecido, é a contenção e manutenção da mão de obra proletária, o que Foucault
descreve como docilização dos corpos, ou ainda disciplinamento. Esse processo se
faz em várias etapas.

Uma técnica que é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes,


manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao
mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é
centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos
de massas próprios de uma população. (FOUCAULT, 1999, p. 297)

Segundo Nunes e Raitz (2010) das técnicas supracitadas, Foucault as


conceitua como “tecnologias de poder, divididas em duas séries: série corpo —
organismo/disciplina/instituições, que são os mecanismos disciplinares e série
população — processos biológicos (que são os mecanismos
regulamentadores)/Estado.” Todo esse aparato é utilizado com a finalidade de
controle social.

O disciplinamento dos pobres para a extração de mais-valia, energia viva do


capital,vai precisar da ideologia, da racionalidade utilitarista e legitimar as
relações e as técnicas de domínio dos homens e da natureza. A violência e
a barbárie fazem parte desse cenário, produzidas pelo excesso de
civilização, e não pela sua antítese. A partir do século XVIII, o processo
histórico de fortalecimento do contrato social determinará outras
necessidades de ordem. As execuções públicas vão se tornando perigosas
com o protagonismo da multidão que vai produzir a crítica do absolutismo. A
revolução bate às portas da Europa, com suas multidões de pobres a
produzir o Grande Medo: cabeças cortadas, diria Glauber Rocha.
(MALAGUTI, 2011, p. 25, grifos nossos).

O sistema penal virá a ser um desses vários institutos criados com o propósito
de manutenção do individual e do coletivo, em um fenômeno sociológico descrito por
Foucault como “o grande internamento”. A criação destes referidos institutos é a
concretização material da necessidade de controle estatal. Obtemos a partir disto o
entendimento da razão e da finalidade pela qual a criminologia se origina e como se
entrelaça com as instituições carcerárias, como forma de legitimar esse grande
internamento, justificá-lo e solidificá-lo como estrutura ideal, antes de torná-lo
estrutura sensível. Analisa Quinney (1980, p. 236-246)

O direito criminal é usado pelo Estado e pela classe dominante para


assegurar a sobrevivência do sistema capitalista. E como o sistema
capitalista é, posteriormente, ameaçado por suas próprias contradições, o
direito criminal é, crescentemente, usado na tentativa de manter a ordem
doméstica. A classe inferior, a classe que deve permanecer oprimida para o
triunfo da classe econômica dominante, continuará a ser objeto do direito
criminal enquanto a classe dominante procurar perpetuar a si mesma.
Remover a opressão, eliminar a necessidade de uma revolta posterior,
significaria, necessariamente, o fim da classe dominante e de sua economia
capitalista.

Tal como na Europa inquisidora do século XIII se buscava a legitimidade do


julgamento através do parecer médico-jurídico, na Europa punitivista do século XIX
busca-se a legitimidade técnico-científica através das neurociências. Malaguti (2011,
p. 42) explica que “Entre 1812 e 1819, a frenologia 1 de Gall e Spurzheim já tinha

1 A frenologia é esta doutrina segundo a qual cada faculdade mental (totalizando 27) se localiza em uma parte
do córtex cerebral e o tamanho de cada parte é diretamente proporcional ao desenvolvimento da faculdade
correspondente, sendo este tamanho indicado pela configuração externa do crânio;
como objeto de estudo o “espírito” localizado no cérebro. Em seu afã de observar,
medir e comparar crânios, eles buscavam localizar as funções físicas no cérebro,
[...]” Se inicialmente as áreas neurocientíficas e criminológicas eram essencialmente
distintas quanto aos objetos de estudo, progressivamente vão associando-se, como
citado por Malaguti (2011, p. 43, grifo da autora)

Na frenologia (como em certa medida nas neurociências) a delinquência


seria determinada biologicamente. Nesse ponto ela foi precursora para a
passagem do objeto da criminologia. Se o delito era o centro das atenções
no pensamento liberal, o objeto que se impõe agora é o delinquente. As
ciências naturais ajudariam a detectar e corrigir os anormais. Esse grande
discurso contra o igualitarismo se baseava na demonstração científica das
desigualdades.

Percebe-se uma clara correlação entre a busca criminológica de punir o


criminoso e seu comportamento desviante, e os estudos neurocientíficos que
buscavam explicar de forma racional a origem dessas ações. À primeira vista, os
esforços de classificar essas condutas e seus praticantes podem parecer grandes
indicativos de avanços nas pesquisas de ambas as áreas, no entanto o que ocorreu
ao longo das experimentações foram grandes violações de direitos humanos, uma
vez que ao classificar os indivíduos como “incorrigíveis” ou “irrecuperáveis”,
provocam-se aumentos na demanda penal, justificadas pela necessidade de afastar
esses indivíduos do convívio social.
Tem-se aí o que Thiago Fabres de Carvalho (2015) 2 tipifica como função
declarada e função velada do Estado (informação verbal). A função declarada é
proteger a sociedade e combater o crime, enquanto a função velada é favorecer os
interesses das classes dominantes. Essa proteção do Estado figura-se, como
menciona a autora:

no fenômeno (tão discutido na criminologia depois de Foucault) de


expropriação do conflito em favor do Estado embrionário. A gestão
comunitária é banida e a “vítima” (que só recobrará importância no século
XX) passa a ser figurante de um poder que se alimenta do seu próprio
método: não resolve o conflito, mas põe em funcionamento o mecanismo

2 Informação fornecida por Thiago Fabres de Carvalho durante o TEDx Pedra do Penedo, Pedra do Penedo,
2015
que vai unir simbolicamente a culpa com o castigo. (MALAGUTI, 2011, p.
31, grifo nosso) “

Este fenômeno virá a ser definido como o confisco do conflito, termo


extensamente utilizado na Criminologia Radical. Continuando a montagem do
panorama histórico que vai se instaurando na Europa, Malaguti (2011, p. 43, grifo da
autora) comenta:

Em 1823, surge a sociedade frenológica na Inglaterra, em 1832, na França.


Spurzheim vai para os Estados Unidos prestar seus serviços para a
construção do apartheid estadunidense, abrindo espaço para novos
trabalhos como os de Samuel Morton (Crania Americana, 1839, e Breves
comentários sobre as diferenças das raças humanas, em 1842) ou os de
Josiah Clark Nolt, que em seu Das lições de História Natural sobre as raças
negras e caucásicas legitimava a ambiência racista que o escravismo e o
pós-escravismo necessitavam na América do Norte.

É de vital importância perceber que no século XIX, em uma Europa pós


Revolução Industrial, ainda com fortes resquícios do escravagismo, estas teorias
ganham espaço e visibilidade entre os intelectuais da época, sendo amplamente
aceitas pela comunidade científica, uma vez que buscam demonstrar a
superioridade da raça caucásica sobre as demais, principalmente as negras. Um
saber que constituiu-se deveras útil aos ideais colonizadores e escravocratas desse
período. Ainda sobre isso:

A fisiognomia do suíço Johann Kaspar Lavater, buscava na


análise dos rostos a identificação da alma. [...] No nosso
admirável mundo novo, essa técnica tem sido explicitamente
utilizada na segurança dos aeroportos. Em 1855, foi instalada a
primeira cátedra de antropologia física de Paris. Nesse mesmo
período, Joseph de Gobineau assessorava o Império brasileiro
para uma concepção eugenista da população brasileira.
(MALAGUTI, 2011, p. 43-44, grifo da autora)

Joseph Arthur de Gobineau, ou conde Gobineau, foi um dos principais teóricos


da teoria racial. “Sua obra mais famosa é o Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças
Humanas (1853-1855), na que afirmou que a raça dos germanos, que habita na Grã-
Bretanha, França e Bélgica, era a única raça pura em comparação com aquelas que
eram misturadas com as raças negra e amarela.” Esses discursos, por óbvio,
contribuíram para estabelecer outras teorias vindouras ainda mais segregacionistas
do que as primeiras, dando a luz à antropossociologia de Lapouge e ao arianismo de
Chamberlain, por exemplo.
Paralelamente, a Europa encontra-se às vésperas de dar a luz à Criminologia
Moderna, reconhecendo-a como ciência autônoma fundada por Cesare Lombroso,
com a publicação de seu livro “L’uomo Delinquente”, ou o “Homem Delinquente” em
1876, numa obra que viria a ser revolucionária tanto para o Direito Penal quanto
para a Medicina Legal.

3 A CRIMINOLOGIA MODERNA DE LOMBROSO E AS POLÍTICAS DE COMBATE


AO CRIME

Após pontuar brevemente a Escola Clássica e seus alicerces na Inquisição,


chega-se ao ponto principal da presente tese, a Escola Positivista e suas influências
no novo modo de pensar o modelo penal.

Alessandro Baratta entende a escola positivista como aquela que produz a


explicação patológica da criminalidade. Essas teorias patologizantes
trabalham as características biopsicológicas dos “criminosos”; a
humanidade passa a sofrer um grande corte entre normais e anormais.
(MALAGUTI, 2011, p. 44, apud, BARATTA, 2002, p. 38

Tem-se a tradução máxima da escola positivista nas teorias de Lombroso,


“deslocando o objeto de estudo do delito para o delinquente, e a delinquência tem
causas individuais determinantes, atravessadas pelo conceito de degenerescência''.
Malaguti (2011, p. 45). Lombroso, ao estudar as populações encarceradas, e
buscando classificar fenotipicamente o padrão físico do indivíduo criminoso,
delimitou que as características deste seriam: fronte fugidia, crânio assimétrico, cara
larga e chata, grandes maçãs no rosto, lábios finos, canhotismo (na maioria dos
casos), barba rala, olhar errante ou duro etc.
O teórico italiano atribuiu a causalidade do comportamento criminal, às
características corpóreas dos pobres e/ou indesejáveis levados aos institutos
prisionais da época. Esta escola, como cita Malaguti (2011, p. 41) é “uma
sofisticação dos esquemas classificatórios hierarquizantes, produzidos pela
colonização do mundo pelo capital” É importante entender a grande mudança de
perspectiva que ocorre no aspecto ideológico.
Se antes, o liberalismo da escola clássica tinha como preceitos a pena
retributiva com base na culpabilidade moral, aqui a pena agiganta-se. As estratégias
correcionalistas se revestirão de características curativas, reeducativas,
ressocializadoras, as famigeradas ideologias “re” (Malaguti, 2011). Percebe-se um
ponto comum a todas as escolas criminológicas que antecedem a criminologia
radical, sendo este a objetificação e/ou desumanização do criminoso. Na Idade
Média, desassociou-se a “bruxa” do seu lado humano, associando-a a um ente de
caráter sobrenatural, conferindo a esta um aspecto demoníaco.
Cria-se um fértil imaginário maniqueísta que serve tanto para separar bem e
mal, quanto para justificar quaisquer atrocidades cometidas pelo lado “bom” nessa
pugna, mudam-se os contextos e as épocas, mas as ideologias permanecem. É
esse o prólogo do discurso da política de guerra às drogas, ou de combate ao
terrorismo.
Da mesma forma ocorre no controle dos indesejáveis. Desse modo, enfatiza
Hulsman (1997, p. 56-61)

[...] fazem com que acreditemos – e esta é uma ilusão sinistra – que, para
nos resguardar das ‘empreitadas criminosas’, é necessário – e suficiente! –
colocar atrás das grades dezenas de milhares de pessoas. E nos falam
muito pouco dos homens enclausurados em nosso nome.

A criação da pena pública, a apropriação da lesão gerada ao indivíduo em


detrimento da figura da vítima, a sustentação subjetiva destes conceitos através da
disseminação ideológica de que a ofensa nunca é cometida contra uma pessoa
somente: “A infração não é um dano cometido por um indivíduo contra outro; é uma
ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à
soberania, ao soberano.” ( Fabres de Carvalho, Thiago, 2010, pág. 08)
Não obstante, veda ainda a possibilidade da resolução pacífica do atrito
instaurado, e o autor do delito será obrigatoriamente processado, julgado e
condenado, alheio à vontade da vítima.
Ao tentar subtrair da vítima o conflito, o Estado assume o papel da vítima
por excelência, abstrata, acionando o discurso que legitima a sua
supremacia, a ideia de que só ele pode conter o turbilhão das violências
recíprocas, da guerra de todos contra todos, que os ódios da vítima real
tenderiam a impulsionar. Discurso nitidamente desmascarado pela forma
caricatural, seletiva, abusiva e também caótica, pela qual o Estado realiza a
vingança pública por meio do espetáculo dos suplícios, obediente a uma
determinada economia política do castigo forjada pelo poder soberano (DE
CARVALHO, FABRES, 2010, p. 09, grifo nosso)

O autor no trecho supracitado, cita a chamada gestão diferencial das


ilegalidades, ou seletividade penal, conceito que é intrínseco à cifra negra e à cifra
dourada de Edwin Sutherland. Acerca da cifra dourada, pode-se entender que:

Sutherland trouxe como principal exemplo os Crimes do Colarinho Branco


que correspondiam aos delitos cometidos por agentes de classes mais
elevadas que possuíam as mesmas características dos crimes de classes
mais baixas, contudo, não recebiam o mesmo tratamento, muitas vezes
nem resultando em condenações penais (SUTHERLAND, 1940, VERAS,
2006,).

Essa gestão diferencial das ilegalidades consiste na supressão de algumas


infrações, para que ocorra a perpetuação de outras.

Mediante processos de seleção arbitrária, exclusão social e política,


humilhação e degradação do ser humano, “o sistema penal cria e reforça as
desigualdades sociais”. E, assim, reproduz e recria a violência que pretende,
efetivamente, controlar e combater. (CARVALHO, Tiago Fabres de, 2007,
p. 149)

4 FREUD, NEOLOMBROSIANISMO E A RESSIGNIFICAÇÃO DA CRIMINOLOGIA


ATRAVÉS DA PSICANÁLISE

Se de um lado temos Lombroso com o seu positivismo a configurar e modelar


o poder punitivos e suas racionalidades, programas e tecnologias governamentais
na América Latina de forma a funcionar como um grande catalisador da violência e
da desigualdade, transformando-a em gigantesca instituição de sequestro,
concentração de povos “degenerados” e indesejáveis (Malaguti, 2011), de outro
temos o pai da psicanálise, Freud, exercendo contrárias e expressivas forças à
supremacia intelectual positivista que imperava. Malaguti (2011, p. 52-55) nos
mostra a importância do pensador:

Alguns textos de Freud são fundamentais para a história da criminologia, na


contraposição que fazem ao positivismo hegemônico e nessa perspectiva da
reação social ao desvio que seria incorporada pela Escola Crítica que
analisaremos mais adiante. [...] em 196, ele escreve O Delito por sentimento
de culpa, no qual a culpa é anterior ao delito, que dela procederia. Entre
1920 e 1921, aparece Psicologia das massas e análise do ego, que se
contrapõe aos positivismos de Gustav Le Bon, que trabalhava com a ideia de
Multidão criminosa 73 [...]

Quanto ao complicado mosaico que aos poucos tomava forma na Europa do


século XX, pode-se compreender que:

O olhar psicanalítico apresentava, naquela conjuntura em que o positivismo


criminológico se hegemonizou, uma explicação radicalmente diferente do
comportamento criminoso. Outros conceitos aparecem: repressão,
superego, culpa, inconsciente etc. Esse novo olhar [...] produziu uma
negação do tradicional conceito de culpabilidade, trabalhando a reação do
interdito e a função punitiva, demonstrando que a reação social pressupõe
uma identidade entre o autor do delito e a sociedade que o condena.
(MALAGUTI, 2011, p. 56)

Tem-se uma clara antítese, uma ruptura, como define a autora, entre o já
estabelecido modo de pensar positivista de desvencilhar do criminoso o aspecto
humano, e a nova abordagem que engendra o saber psicanalítico a uma
criminologia que a passos lentos encaminha-se para vias mais críticas de se
exercerem políticas criminais. “O certo é que, na história do pensamento
criminológico, a psicanálise contrapôs o fenômeno do crime à sua reação social e
propôs uma interpretação no lugar da etiologia: produziu, então, deslocamentos de
método e de objeto.” (Malaguti, 2011, p. 57)

3 Nesse momento, aos medos da Revolução Francesa somavam-se os medos da Revolução Soviética que
colocava a “multidão” no centro do poder, agora como classe. [...]
Esta é a pavimentação de todo um caminho que doravante será trilhado pela
Sociologia na Criminologia, e posterior a ela, a Criminologia Crítica. Diz-se
pavimentação, pois Freud, advento de um complexo cenário eurocêntrico, possuía
ainda em suas obras uma forte tendência a “traços etiológicos e deterministas, como
a ideia de uma memória filogenética do delito natural, com elementos do racismo
colonizador” (Malaguti, 2011, p. 57). No entanto, como cita a autora:

São muitos os campos abertos pela ruptura psicanalítica na criminologia,


abrangendo da constituição de novos objetos de pesquisa a partir dos
afetos (como medo e culpa) à inovação metodológica (como análise do
discurso), e ainda novas linhas de pesquisa (crimes sexuais, simbologia das
penas, rituais jurídicos, história das mentalidades). (MALAGUTI, 2011, p. 59)

Posteriores aos estudos freudianos, viriam ainda diversos autores com


perspectivas políticas decoloniais e anti eugenistas posteriormente, como Deleuze e
Guattari com a esquizoanálise, Michel Pecheux com a sua análise do discurso, entre
outros, de forma a combater e frenar o firme aperto das garras lombrosianas e
frenológicas que se consolidaram anteriormente ao século XXI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao transitar ainda que de maneira breve, pelos vários períodos da história da


criminologia, conciliando-os com um leque diversificado de autores das mais
diversas áreas que se interseccionam com esta, pôde-se conceituar e esclarecer o
papel que o Estado desempenhou como uma das principais ferramentas de
dominação entre classes, servindo de forma unilateral aos interesses de
manutenção da hegemonia e hierarquia social através das instituições de
confinamento, em especial as prisões.
O objetivo satisfeito deste trabalho, isto é, sua força motriz, para a qual toda a
reflexão teórica caminhou, é nada mais que uma análise ponderativa dos principais
pontos da história da criminologia, e dos fenômenos sociopolíticos que mudaram de
forma radical as relações de poder previamente estabelecidas, tendo como cenário a
Europa, e como evento inicial de estudo a Inquisição, encerrando-se a tese com o
advento da introdução da Psicanálise ao estudo da Criminologia, não se
aprofundando mais em escolas criminológicas posteriores a esta.
A análise dialética, não busca de forma alguma uma atribuição de juízos de
valor quaisquer aos teóricos apresentados. É um convite à ponderação, ao
pensamento crítico, e é também um ensaio sobre como a violência se manifesta das
mais distintas formas, em uma sociedade que como uma corda de arco, é
constantemente tensionada pela luta de classes capitalista. A problemática
trabalhada pela hipótese central segue imutável: Urge a necessidade de um sistema
penal mais humanista a curto prazo, que observe e opere de forma imparcial e
íntegra, de um Estado menos violento, e a longo prazo abolicionista, que atue em
consonância com os direitos humanos ao mesmo tempo em que promova justiça e
devolva o protagonismo à figura da vítima, sem expropriar dela o direito de
manifestar-se de acordo com o próprio querer, e de um ponto de vista jurídico,
trabalhe para dirimir os conflitos de forma a despenalizar os institutos que hoje
atuam de forma punitiva e demasiadamente violenta, contribuindo para que ocorram
massacres e violências sem fim.
Insta ainda a necessidade de desconstrução de um apanhado de ideias já
profundamente sedimentadas nas mentes, a urgência de pensar além do “senso
comum”, e lutar por políticas de desmilitarização das forças estatais, não por
servirem a determinado propósito ou viés ideológico, mas por serem empecilhos no
caminho de progredir para uma política criminal mais equitativa, pacífica e justa.

REFERÊNCIAS

LIVROS:

ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de


Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2008

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução


à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos, 3a ed. Rio de
Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2002.

BARATTA, Alessandro. “Defesa dos direitos humanos e política criminal”. In:


Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, ano 2, n. 3. Rio de Janeiro:
Instituto Carioca de Criminologia, 1997.
BATISTA, Nilo. Intervenção no XIII congresso internacional de direito
comparado. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2006, mimeo.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro:
Revan, 1990.

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