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Artigo

ROCHA, Alvaro
CONFLUÊNCIAS
CRIME E CONTROLE DA CRIMINALIDADE NO BRASIL
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

CRIME E CONTROLE DA CRIMINALIDADE


NO BRASIL: A CRIMINOLOGIA CULTURAL
E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA DEBATE*
*
O presente trabalho integra os resultados do desenvolvimento de pesquisa em Criminologia Cultural, decorrente de pós-
doutorado em Criminologia, realizado pelo autor na SSPSSR, School of Social Policy, Sociology and Social Research, da
Universidade de Kent, Reino Unido, a convite do Prof. Keith Hayward.

Alvaro Oxley Rocha


PUC-RS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Brasil
E-mail: alvaro.rocha@pucrs.br

RESUMO
O artigo oferece uma revisão bibliográfica sobre as propostas de pesquisa e análise
do crime e controle da criminalidade, originadas da Criminologia Cultural. Para esse
objetivo, os conceitos de crime e cultura são relacionados e debatidos, de modo a
fornecer algumas referências epistemológicas, contribuindo para o desenvolvimento
da Criminologia no Brasil.
Palavras-chave: Crime ; Controle da Criminalidade; Criminologia Cultura.

ABSTRACT
The article provides a literature review on the proposed research and analysis of
crime and crime control, originating from the Cul-tural Criminology. For this
purpose, the concepts of crime and culture are related and discussed, in order
to provide some epistemological references, contributing to the development of
Criminology in Brazil.
Keywords:
121 Crime;| Revista
CONFLUÊNCIAS CrimeInterdisciplinar
CONFLUÊNCIAS Control;
| Revista Cultural
Interdisciplinar Criminology.
de Sociologia
de Sociologia
e Direito. eVol.
Direito.
15, nºVol.
2, 2013.
15, nºpp. 23-32 pp. 121-136 121
2, 2013.
ROCHA, Alvaro

INTRODUÇÃO perspectivas e metodologias advindas


Preliminarmente, é preciso esclarecer dos estudos culturais, midiáticos e
que o presente artigo é um estudo em urbanos, filosofia, teoria crítica pós-
Sociologia, ou mais precisamente, na moderna, geografia humana e cultural,
chamada Sociologia Jurídica. Quanto antropologia, estudos dos movimentos
ao uso da denominação “Criminologia”, sociais, e abordagens de pesquisa ativa.
destacamos que esta é utilizada em Entretanto, no sentido destacado por
respeito à tradição acadêmica, que assim Hayward1, é bastante grande o complexo
procura enfeixar, ou reunir, os estudos de interelações e homologias que ligam
na área do crime e do controle da crime e cultura, as quais têm sido, ao
criminalidade, que se desenvolvem, sem longo dos anos, uma grande fonte de
nenhuma dúvida, em razão dos avanços inspiração para os criminologistas.
no conhecimento sociológico. Entretanto, apesar de esse complexo
Nesse sentido, pode-se dizer, da haver possibilitado a existência de
Criminologia Cultural, que esta trata alguns dos trabalhos fundamentais da
de colocar o crime em seu contexto Criminologia2, a trajetória do chamado
cultural, o que implica em ver tanto “foco cultural”, nessa disciplina, tem
o crime como as organizações de passado por fases alternadas de interesse
controle como produtos culturais, e de esmorecimento, por parte de
os quais devem ser lidos a partir dos seus estudiosos. O que resulta dessa
significados que carregam. Além disso, dinâmica é que, hoje, aproximar-se desse
a Criminologia Cultural procura aclarar conhecimento significa tomar ciência
a dinâmica entre dois elementos-chave de uma disciplina na qual se cruzam e
nessa relação: a ascensão e o declínio competem muitos paradigmas teóricos
desses produtos culturais. O que se e ideológicos. Isso se torna ainda mais
busca é focar a contínua geração de perceptível no que concerne à relação
significados que surgem: regras são entre crime e cultura. Há pouco mais
criadas ou quebradas, em uma constante de uma década, porém, iniciou-se uma
interação entre iniciativas moralizantes, retomada da tradição cultural, com o
inovação moral e transgressão. Em surgimento de um fluxo mais consistente
razão da complexidade desse foco, a de trabalhos, que gravitam em torno de
Criminologia Cultural é essencialmente
interdisciplinar, e se utiliza de uma 1
HAYWARD, Keith and YOUNG, Jock. Cultural
grande variedade de ferramentas de Criminology. In MAGUIRE, Mike et all. The Oxford
Handbook of Criminology: London/New York: Oxford
análise, que se inicia com uma interface University Press, 2007. p. 102.
direta, não apenas com a Criminologia, 2
Destaca-se como exemplo, nesse sentido, a obra sociológica
a Sociologia e o Direito Penal, mas com clássica de Émile Durkheim.

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um movimento intelectual conhecido CRIMINOLOGIA CULTURAL:


como Criminologia Cultural3, no qual se REFERÊNCIAS INICIAIS
destacam os trabalhos de Ferrell e Sanders Em seus primeiros desenvolvimentos,
(1995); Ferrell (1999); Banks (2000); nos Estados Unidos, a Criminologia
Presdee (2000); Hayward e Young (2004); Cultural se apresentava mais como uma
Ferrell et all. (2004), além de outros referência operacional de pesquisa,
autores, que embora não se intitulem ligada aos estudos de imagem, significa-
criminologistas culturais, muito têm dos e interações entre crime e controle,
colaborado nesse sentido, pelo que serão especialmente voltada para as estruturas
referidos ou citados, oportunamente. sociais emuladas, e às dinâmicas de
Nas palavras desse autor4, “a respon­ experiência relacionadas às subculturas
sabilidade da criminologia cultural é ilícitas, à criminalização simbólica das
manter ‘girando o caleidoscópio’ sobre formas culturais populares, a construção
as maneiras pelas quais pensamos sobre mediadas do crime e dos temas ligados
o crime, e mais importante, sobre as ao seu controle, além das emoções
respostas jurídicas e sociais à quebra incorporadas à coletividade, as quais
de regras”. Deve-se destacar ainda que, moldam o significado do crime. A Cri­
apesar dos avanços já produzidos no minologia Cultural, entretanto, ga­
desenvolvimento do pensamento cri­ nhou força no Reino Unido, onde se
minológico (ou “imaginação crimino­ procurou introduzir uma estrutura
lógica”), a Criminologia Cultural está mais consistente em sua base teórica6.
trabalhando para estabelecer mais fir­ O nome “Criminologia Cultural”7, em
memente suas trajetórias e métodos. acordo com O’Brien e Yar8 pode ser
Contraditoriamente, essa busca pode ser visto como uma designação para um
seu ponto fraco, mas também pode ser determinado número de interesses cri­
seu ponto mais forte, dado que a mesma minológicos, situados na confluência
procura ser menos um paradigma entre “crime” e “cultura”, tomados em
definitivo, e mais uma matriz de pers­ seu sentido mais difundido.
pectivas sobre o crime e o controle da 6
O’BRIEN, M. ‘What’s Cultural about Cultural
criminalidade5, o que evita a centralização Criminology?’. British Journal of Criminology, 45(5): 599-
e a limitação das propostas conhecidas. 612, 2005. p. 605.
7
Ver a obra “Criminology: the Key Concepts”, O’BRIEN,
Martin & YAR, Majid. Oxon, UK, and New York, USA:
3 Routledge, 2008. Essa obra desenvolve boa parte das
Cultural Criminology”, em inglês (Nota de Tradução).
referências conceituais e bibliográficas aqui utilizadas, além
4
HAYWARD, YOUNG, 2007, op. cit., p. 103. de ser um excelente repositório conceitual, bibliográfico e
5 crítico, para o estudo da Criminologia em todos os níveis.
FERRELL, J. Crimes of Style: Urban Graffiti and the
8
Politics of Criminality. Boston, MA: Northern University O’BRIEN, M. and YAR, M. Criminology: the Key
Press, 1996. p. 396. Concepts. London: Routledge, 2008.

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Sobre as relações entre crime e criminosas se apropriam das imagens


cultura, Ferrell9 estabelece alguns pa­ populares, e criam suas próprias formas
râmetros, afirmando que nas socie­ de comunicação mediada; líderes
dades contemporâneas a inter­ secção políticos iniciam campanhas públicas
entre atos criminosos e dinâmica de criminalização e pânico sobre o
cultural está inserida na vida diária, crime e os criminosos, e os cidadãos tem
e que muitas das formas do crime consumido o crime diariamente, como
emergem de subculturas, moldadas notícias e entretenimento. Em razão
por convenções sociais de significado, disso, afirma Ferrell, os criminologistas,
simbolismo e estilo. Essas subculturas, hoje, entendem que uma consiência
então, devolvem intensamente ao grupo crítica da dinâmica cultural das so­
social experiências coletivas e emoções ciedades modernas é necessária, se qui­
que definem as identidades de seus sermos entender até mesmo algumas
membros e reforçam o “status” social das dimensões mais fundamentais dos
marginalizado dos mesmos. Destaca fenômenos do crime e do controle ​da
que, ao mesmo tempo, aqueles que criminalidade10.
se encarregam de empreendimentos A Criminologia Cultural foi inicial­
culturais, como música popular, foto­ mente desenvolvida por Jeff Ferrell e
grafia artística, filmes e programas de Clinton Sanders11. Essa abordagem pode
televisão, com frequência são acusados ser, entretanto, rastreada no passado, até
de promover comportamento infracional escolas sociológicas e criminológicas
ou mesmo criminoso, e comumente bem anteriores. O próprio Ferrell refere
enfrentam denúncias e inquéritos poli­ a “nova criminologia” dos anos setenta
ciais, além de processos, em nome da 12
, em particular, a Escola de Estudos
moralidade coletiva.  Hoje todos es­ Culturais de Birmingham13. Os mesmos
ses fenômenos, desde identidades cri­ antecedentes são também referidos
minosas, controvérsias populares, por outros autores, como Presdee14,
campanhas para o controle de crimes, 10
Optamos por não ocupar o reduzido espaço de um artigo
experiências de vitimização, são casa para expor as definições e controvérsias em torno das
definições de crime e cultura, o que implicaria em longas
vez mais oferecidas e exibidas para o incursões laterais em Sociologia, Filosofia e Direito Penal.
consumo público. Além disso, segundo 11
FERRELL, J. e SANDERS, C.R. (eds) Cultural Criminology.
o autor, todos esses fenômenos ganham Boston MA: Northeastern University Press, 1995.
forma dentro de um grande universo 12
TAYLOR, I., et all. The New Criminology. New York:
Harper & Row, 1973.
de mediação, no qual subculturas 13
HALL, S. et all. Policing the Crisis: Mugging, the State,
9 and Law, and Order. London: Macmillan, 1978.
FERRELL, J. ‘Crime and Culture’. In HALE, Chris, et all.
14
Criminology. London / New York: Oxford University Press, PRESDEE, M. Cultural Criminology and the Carnival of
2007. p. 139. Crime. London: Routledge, 2000.

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o qual também desenvolve aspectos investigaram cuidadosamente a cultura


relacionados aos clássicos da Sociologia, da violência na chamada “economia
em especial os trabalhos de Karl Marx, noturna”. Todos esses trabalhos e autores
Èmile Durkheim, Talcott Parsons e levam muito a sério a noção de cultura
Robert Merton. Ao mesmo tempo, na pesquisa do crime e do controle da
Hayward e Young15 avançam no que se criminalidade, embora nenhum deles
refere à antropologia social e a sociologia se intitule abertamente como crimino­
urbana de Jonathan Raban e Michel de logistas culturais. Além disso, algumas
Certeau. Esses desenvolvimentos, e em abordagens criminológicas, que se afirma
especial as referências aos precursores lançarem luz sobre o crime e o controle
intelectuais, convenceram Ferrell16 a da criminalidade, como as teorias das
sugerir que a criminologia cultural “é atividades de rotina20 e a teoria do
menos um paradigma definitivo do que controle, são abertamente rejeitadas pelos
uma matriz emergente de perspectivas”, criminologistas culturais.
preocupadas com representações, imagens O que se busca destacar, até aqui, é
e significados do crime. que as características de preocupação
É importante notar que muitos ou compromisso com a análise das
criminologistas atuais pesquisam as relações entre crime e cultura não
relações entre dimensões de cultura e são suficientes para uma definição
crime, mas sem se considerar crimino­ satisfatória de criminologia cultural,
logistas culturais. Esse dado não facilita visto que seu objetivo, na realidade,
a tarefa de produzir uma definição de não se insere em nenhuma tradição,
criminologia cultural. Entretanto, pode-se e se define, no mais das vezes, mais
citar Rafter17, que tem pesquisado o crime pelo que combate do que por aquilo
apresentado nos filmes de Hollywood, e que apóia. Os seus adeptos rejeitam,
também McLaughlin18, que esboçou as particularmente, a criminologia admi­
construções populares do típico policial nistrativa, a prevenção situacional do
inglês, o “bobby”, na Inglaterra do crime e a teoria da escolha racional.
pós-guerra, enquanto Winlow e Hall19 Destaca-se Presdee21 que acusa a crimi­
15
HAYWARD, K.J. (eds) Cultural Criminology: some notes
nologia administrativa de ser apenas
on the script, Theoretical Criminology, 8 (3), 2004. uma “fábrica de dados”, que nada
16
FERRELL, 1996, op. cit. p. 396. mais faz do que produzir estatísticas
17
RAFTER, N.H. Shots in the Mirror: Crime Films and
Society, Oxford: Oxford University Press, 2000. and Contemporary Culture, Oxford: Berg, 2006.
18 20
McLAUGHLIN, E. From Reel to Ideal: the Blue Lamp and COHEN, L. and FELSON, M. ‘Social Change and Crime
the Popular Cultural Construction of the English ‘Bobby’, Rates Trends: a Routine Activity Approach’, American
Crime, Media, Culture 1(1):11-30, 2005. Sociological Review , 44: 588-608, 1979.
19 21
WINLOW, S. and HALL, S. Violent Night: Urban Leisure PRESDEE, 2000, op. cit., p. 276.

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que são “demandadas e devoradas” de grafite, as conexões e distinções entre


por seus chefes políticos. Hayward e grafite e a arte “oficial” e a de vanguarda.
Young22 afirmam que tal criminologia Descreve as reações das autoridades e
desenvolve “teorias doentias e análises da mídia locais ao grafite, e conclui com
retrógradas, geralmente seguidas de uma análise política do grafite como
resultados inconclusivos”. Deve-se des­ forma de resistência sub-cultural, um
tacar que muito dessas hostilidades e contraponto de estilo às imposições de
críticas sobre escolas e teorias conhe­ autoridade, uma ação irreverente contra
cidas indica que a Criminologia Cultural a inércia do conformismo, e uma fuga
parece se posicionar mais como uma dos canais convencionais de autoridade
abordagem política do que analítica ao e controle. Desse modo, os grafiteiros
entendimento do crime e do controle não são apresentados como vândalos,
da criminalidade. Basta citar Ferrell antissociais ou inconvenientes, e sim
et all.23, onde o mesmo afirma que o como indivíduos de estilo criativo,
ataque da Criminologia Cultural contra os quais aceitam se arriscar a sofrer
a “chatice”24 da criminologia “empírico- sanções legais, a fim de expressar
abstrata”, deriva mais da “política de sua individualidade artística. Ferrell
seus métodos e teorias”, do que de seu afirma que o sentido do grafite é menos
objeto em si mesmo. depredar a paisagem urbana ou marcar
Para fins de localização temporal, território, com seus símbolos coloridos,
mas também como um bom exemplo e muito mais uma busca subcultural
da proposta da Criminologia Cultural, pela “adrenalina da criação ilícita”, um
destaca-se a obra “Crimes of Style”25, de desafio e uma celebração da imensa
Jeff Ferrell26, na qual o autor relata sua ilegalidade do ato de escrever, no sentido
experiência entre os grafiteiros de Denver, da transgressividade presente nessa
Colorado (USA), movimento no qual ação. Essa última referência destaca
o pesquisador se inseriu, especialmente uma das principais características
entre o grupo de grafitei­ros conhecidos da Criminologia Cultural: um forte
como “Syndicate”. A obra aponta algumas interesse pelo primeiro plano, ou
das fontes culturais do estilo “hip-hop” pelo momento “experiencial” do
22
crime; nesse sentido, a criminologia
HAYWARD, 2004, op. cit., p. 262.
23
Cultural se preocupa com o “sentido
FERRELL, J. et all., Cultural Criminology Unleashed.
London, Glasshouse Press, 2004. p. 296.
localizado da atividade criminosa”27,
24
Boredom, no original (NT).
ou com os “quadros interpretativos,
25
Em português, “Crimes de Estilo”, sem versão em língua
portuguesa (NT). 27
FENWICK, M. New Directions in Cultural Criminology,
26
FERRELL, 1996, op. cit. Theoretical Criminology 8 (3): 377-86, 2004. p. 385.

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lógicas, imagens e sentidos através antecedentes podem ser explicadas: por


dos quais e nos quais o crime é exemplo, por quê os homens cometem
apreendido e realizado28. O interesse mais crimes do que as mulheres, por quê
no “sentido localizado”, e nos “quadros algumas pessoas que vivem na pobreza se
interpretativos” pode ser referido voltam para o furto e os assaltos, mas não
à obra de Jack Katz, “Seductions of outras, e por quê existem variações na
Crime: Moral and Sensual Attractions participação étnica em diferentes tipos de
in Doing Evil”29. Nessa obra, o autor crimes. Para Ferrell, esse foco no primeiro
estabelece uma distinção entre o que plano das sensações ligadas ao crime, leva
chama de “emoções morais” (humi­ a atenção da criminologia para longe
lhação, arrogância, desejo de vingança, das colunas de estatísticas, que mostram
indignação, etc.) espreitando no primeiro propositalmente a extensão do “problema
plano do crime, e “condições materiais” do crime”, e a leva (a criminologia) para as
(especialmente gênero, etnicidade e “imediatas e incandescentes integrações
classe social) como ante­ cedentes do entre risco, perigo e habilidade que
crime. O argumento central de Katz é o moldam a participação nas subculturas
de que uma criminologia que procura desviantes e criminosas”30. Finalmente,
entender os crimes “normais”, - agressão, o autor escreve que o foco no primeiro
assalto, coação, rufianismo, e assim por plano do crime serve para “resgatar
diante - deve prestar especial atenção o empreendimento criminológico de
às recompensas morais e emocio-nais uma criminologia aprisionada no edifí­
que essas ações fornecem para aqueles cio da racionalização científica e da
que as cometem. Com frequência, objetivação metodológica”31.
esses crimes não são simplesmente Um outro importante avanço para
explicáveis a partir de eventuais re­ a Criminologia Cultural, que deve ser
compensas materiais, destacando-se citado, foi o produzido por Stephen
especialmente a violência doméstica, Lyng32, o qual juntou o conceito de ação-
incluindo homicídio. Ao contrário, tais limite33 ao interesse pelo primeiro pla­
crimes surgem no contexto de profundas no do crime. Esse conceito é utilizado
necessidades emocionais e sensoriais, e é
somente pela apreensão dessas profundas 30
FERRELL, 1996, op. cit., p. 404.
sensações que variações nos fatores 31
FERRELL, 2004, op. cit., p. 297.
32
LYNG, Stephen. ‘Dangerous Methods: Risk Taking
28
KANE, S.C. ‘The Unconventional Methods of Cultural and Research Process’. in FERREL, J. and HAMM, M.S.
Criminology’ Theoretical Criminology, 8 (3) 303-21, 2004. p. 303. (eds) Ethnography at the Edge: Crime, Deviance and Field
29 Research, Boston, MA: Northeastern University Press, 1998.
Em português, “Seduções do Crime: Atrativos Morais e
33
Sensoriais na Prática do Mal”, sem versão em língua por- “Edgework”, no original, sem tradução direta em
tuguesa (NT). português (NT).

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para descrever o comportamento de às “comunidades de significados


risco voluntário. Embora não te­ nha mediados e representações coletivas”35.
sido desenvolvido, pelo menos ini­ Portanto, uma psicologia social do
cialmente, para os interesses da Cri­ comportamento de risco estará re­
minologia Cultural, esse conceito tem lacionada aos estilos subculturais,
sido aceito para significar a ligação símbolos e valores do grupo ao qual
entre comportamentos criminais e aqueles que se arriscam estão referidos,
desviantes na aceitação voluntária de no qual, por sua vez, ambos se baseiam
riscos em esferas de atividade mais para desafiar a cultura mais ampla, na
convencionais como, no caso do autor, qual eles estão situados.
o para-quedismo. A ação-limite está Por esse ponto de vista, destaca-se que
referida à experiência subjetiva que uma das mais importantes preocupações
decorre da prática de atividades que con­ da Criminologia Cultural é estabelecer
tenham riscos pessoais inerentes: essa em que medida o comportamento
seria uma forma de “ação proposital, desviante ou criminoso desafia, subverte
baseada no emocional e no visceral”, e ou resiste aos valores, símbolos e
na “excitação imediata”, que provém da códigos da cultura dominante. Nesse
ação arriscada, em si mesma34. Embora sentido, a preocupação em investigar
aparentemente restrita à experiência as subculturas desviantes, nos termos
subjetiva e ao significado da aceitação precisos de desafios e resistências que
de riscos, Lyng e seus colegas argu­ elas oferecem, é a principal linha divisória
mentam que tais significados estão entre a Criminologia Cultural e aquelas
sempre relacionados a um contexto criminologias que levam a cultura a
subcultural: os participantes aprendem sério, mas não representam o desvio
o significado do seu comportamento como desafio e resistência. É preciso
pela interação com outros, engajados ter presente que a ideia segundo a qual
nas mesmas atividades. Além disso, subculturas desviantes desafiam a cultura
eles desenvolvem distintas estruturas dominante não implica que elas o façam
linguísticas e simbólicas: códigos es­ de maneira consciente ou direta. Embora
pecíficos, imagens e estilos, pelos quais Ferrell, em especial, tenha se dedicado
comunicar e entender suas ex­ periê­ à detalhada exploração dos grupos
ncias. Desse modo, o sentido de correr “outsiders”36, incluindo grafiteiros, anar­
riscos está invariavelmente relacionado quistas urbanos, e grupos distintos de

34
FERRELL, J. et all, Edgework, Media Pratices and 35
Idem, p. 179.
Elongation of Meaning: A Theoretical Ethnography of The
36
Bridge Day Event, Theoretical Criminolog 5 (2): 177-202, Essa palavra inglesa, de uso consagrado em português, tem
2001. p. 178. originalmente o significado de “estranho” ou “forastei-ro” (NT).

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catadores de lixo, alguns criminologistas são movidos por energias de humilhação”.


culturais estão mais preocupados em Da mesma forma, Hayward39 também
expor o contexto cultural e social no procura ligar insegurança e exclusão aos
qual esses grupos de “outsiders” agem. problemas do crime, argumentando que
Nesse sentido, é relevante a obra de Jock muitas formas de crime e desvio são
Young, cujo interesse em Criminologia respostas psicológicas às experiências
Cultural é descrever como “as intensas de impotência e marginalização vividas
emoções associadas à maioria dos crimes pelos pobres do meio urbano. Hayward e
urbanos está relacionada a problemas Young40, ao deslocar o foco da discussão
significativos e dramáticos da grande do indivíduo para o grupo, propõem
sociedade”37, que o mesmo descreve que “é através das quebras de regras que
como se constituindo de insegurança, os problemas subculturais procuram
pessoal e econômica, numa combinação solução”. Em outras palavras, formas
de inclusão cultural e exclusão social, de crime e desvio são os sinais visíveis
e perda das identidades conhecidas de problemas coletivos profundos: os
(baseadas em classes sociais), através das criminosos aprendem a quebrar regras
quais se pode compreender coletivamente no contexto de subculturas específicas,
o mundo social. Embora esses problemas que mais tarde aparecem precisa-mente
não possam ser tomados em si mesmos como respostas aos grandes pro­blemas
como causas diretas do crime, eles coletivos. Por essa via, esses au­ tores
fornecem as condições de possibilidade, procuram ligar os sentimentos indi­
nas quais o crime e a transgressão se viduais de impotência e exclusão aos
desenvolvem. Numa cultura que promete estilos subculturais, códigos e valores que
prazeres imensos e liberdade para todos, caracterizam de forma central o trabalho
pelos meios de comunicação de massa, a de Ferrell, Lyng e outros autores.
realidade da marginalização econômica
e da exclusão social, conduzem a sensa­ ALGUMAS PROPOSIÇÕES EM
ções generalizadas de humilhação. CRIMINOLOGIA CULTURAL
Em contrapartida, segundo o autor, é Ferrell41 destaca que, entre as muitas
a experiência de humilhação que fun­ interseções entre crime e cultura, portan­
damenta uma parte significativa do crime, to entre as principais referências da Crimi­
na contemporaneidade. Ao descrever nologia Cultural, podem ser destacadas
criminosos violentos e usuários de drogas, 39
HAYWARD, K.J. The City Limits: Crime, Consumer
Young38 afirma que estes “transgressores Culture and the Urban Experience. London: Cavendish,
2004. p. 165.
37 40
(2003, p. 391). HAYWARD, 2004, op. cit., p. 266.
38 41
Idem, p. 408. FERRELL, 2007, op. cit., p. 141.

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cinco, que aparentemente apresentam membros como adequado, ou mesmo


os “insights”42 mais signi­ficativos para a louvável. Nesses meios sociais também
compreensão da complexa dinâmica so­ surgem as contraculturas criminosas,
cial, dentro da qual a prática criminosa cujo estilo de vida se opõe e conflita com
e o controle da criminalidade tomam os conceitos convencionais de legalidade,
forma. São elas: 1) subcultura e estilo; 2) moralidade e realização. Na maioria dos
ação-limite, adrenalina e com­ preensão casos, essas orientações e valores vêm
criminológica ; 3) cultura como crime;
43
incorporados no estilo que distingue
4) crime, cultura e exibição pública; e cada subcultura, a qual convencional
finalmente, 5) mídia, crime e controle da o modo de vestir, comportar-se, uso
criminalidade. Apresentaremos a seguir, de de códigos linguísticos muitas vezes
forma condensada, cada um desses pontos. incompreensíveis aos estranhos e rituais
Quanto à relação entre subcultura diários criados para definir os limites da
e estilo, o autor44 afirma que muito adesão. Esses aspectos, porém, vão muito
dos objetos que os criminologistas es­ além da simples associação, criando
tudam é organizado e definido por verdadeiras comunidades simbólicas,
subculturas criminosas, que fornecem que definem para seus membros o
um repositório de habilidades, do qual sentido da criminalidade, muito mais do
seus membros obtém o “aprendizado” que o crime em si mesmo.
que lhes permitirá ter sucesso em ações Ainda sobre essa relação, dois
criminosas, como por exemplo, o uso aspectos importantes se destacam,
correto das ferramentas adequadas para segundo esse autor; primeiro: a difusão
furto de veículos ou de residências, ou desses símbolos subculturais, exibidos
o manejo de armas e técnicas para a na vida diária de seus membros, em
violência efetiva. Destaca, entretanto, que atividades como dança e música,
o mais importante é que essas subculturas como no “hip-hop” americano, em
criam um “ethos” coletivo, que pode ser comportamento social e roupas, e em
descrito como um conjunto de valores suas marcas pictóricas nas ruas, não
e orientações (ou ‘regras’), que definem soaria também como um “convite” a
o comportamento criminosos de seus uma maior vigilância e controle por
42
parte das autoridades? Entretanto,
Não há tradução direta para o português. Poder-se-ia
utilizar as palavras “compreensão”, ou “achado”, que não
como se trata, na verdade, de marcas
carregam, entretanto, um efeito dinâmico, mais próximo do de estilo e identidade subculturais, seria
metafórico “estalo” mental da compreensão súbita, como
na sensação da descoberta, o clássico “eureka” (achei!) dos
adequada a utilização desses símbolos
gregos (NT). como indicadores de criminalidade?
43
“Criminological verstehen”, inglês e alemão, no original (NT). Segundo, seria adequado que os
44
FERRELL, 2007, op. cit., p. 142. símbolos de estilos de subculturas
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ilícitas, a partir da difusão midiática, e da crime. Essas afirmações contrariam


apreensão desses símbolos por grandes a ideia psicanalítica de “desejo de
empresas, sejam largamente utilizados morte”, e sugerem, no discurso dos
para a venda de produtos no mercado, agentes, a referência simbólica e de
especialmente para o público jovem? linguagem, vivida e dividida pelos
Ao mesmo tempo, deveriam pais e membros dessas subculturas. Com
autoridades escolares se preocupar com o fim de estender as possibilidades
o fato de os jovens começarem a usar da pesquisa, o autor propõem uma
roupas, linguagem e produtos culturais revisão dos métodos criminológicos,
associados a subculturas criminosas45? que segundo o mesmo, não podem
No que se refere à noção de ação- ficar apenas na organização de dados
limite, adrenalina e compreensão cri­ estatísticos e de questionários. Afir­
minológica, Ferrell46 refere que, além mando que métodos como esses não
dos aspectos antes citados, as vidas dos podem penetrar nos significados
engajados em atividades criminosas transacionados das experiências vivas
também é moldada por algo mais: de primeiro plano. Ao contrário,
uma variedade de experiências cole­ fazem-se necessários métodos que
tivas intensamente significativas coloquem os criminologistas tão
e emo­­­cionais47. Ao examinar uma perto quanto possível do imediatismo
ampla gama de atividades criminosas, dos fatos e das situações criminosas.
desde brigas de rua a incêndios Indo além da pesquisa de campo
criminosos, esses crimi­n ologistas convencional, a proposta seria a
perceberam que os criminosos com aproximação, no sentido da obten­
frequencia aceitam o perigo e os al­tos ção da chamada “compreensão crimi­
riscos que acompanham essas ações. nológica”, um entendi­m en­t o pro­
Ao invés de evitar esses riscos, ou vê- fun­­do, e até mesmo emocional, das
los como uma infeliz consequência de perigosas experiências que definem
seus atos, eles passam a desfrutá-los, a criminalidade, como uma forma
a ponto de, regularmente, afirmarem de obter “insights” criminológicos
est ar “v ici ados” em exp er iênci a inacessíveis à pesquisa convencional.
s pe­ ri­
go­ sas, ou na “adrenalina” do Tr at a - s e   d e   a s s u m i r   r i s c o s   q u e
trazem ao criminologista-pesqui­
45
FERRELL, 2007, op. cit., p. 143. sador de­sa­fios relativos às convenções
46
Idem, ibidem. sobre “objetividade” da pesquisa
47
KATZ, Jack. Seductions of Crime: Moral and Sensual científica, sobre criminologia como
Attractions in Doing Evil, New York: Basic Books, 1988.
LYNG, 1998, op. cit. FERRELL, 1996, op. cit. HAYWARD,
“sociologia” do crime e do controle da
2004, op. cit., cap. criminalidade, e também traz desafios
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envolvendo moralidade e legalidade. às chamadas formas populares da cul­


Entretanto, segundo o autor, se o tura, com programas de televisão, fil­
significado do crime é em grande mes comerciais, música popular, etc,
medida construído no momento de em geral referidas como “cultura po­
sua experiência, de que outra maneira pular”. Mas não importando em que
podem os criminologistas investigá- nível atuem, nunca eles estão livres
lo e entendê-lo? Finalmente, o autor de terem seus produtos redefinidos
pergunta se existem tipos de crime que como criminosos, e serem, conforme
não sejam moldados pela ação-limite a época, acusados de disseminar
e pela excitação. E caso existam, como obscenidades, pornografia, violência,
diferenciar essa suposta categoria estimulando o comportamento social
de crimes, daqueles definidos pela criminoso, in­ f luenciando, especial­
ação-limite? Ainda mais, pergunta mente os jovens, a cometer estupros,
se existiriam limites sobre a pesquisa consumir drogas, co­ meter assaltos,
entre criminosos, orientada pela homicídios ou suicídios, ou, ainda, a
compreensão criminológica, e se cometer crimes copiando48 ou imitan­
existem tipos de crime para os do os conteúdos disseminados pela
quais não se deveria procurar uma mídia. Em alguns caso, as acusações
compreensão emocional; e se existem, apenas circulam, em outros, chegam
qual seria a razão que fundamenta a se tornar queixas, inquéritos e
uma suposta negativa. processos judiciais. Todo esse pro­
Sobre a cultura como crime, cesso mobiliza empreendimentos
o autor principalmente sobre as mo­ rais, movimentos de indivíduos
questões que se relacionam à ação da ou grupos sociais, pa­ ra redefinir o
mídia. Referindo o conceito de cultura que surge na cultura como crime, os
pelo seu significado de complexo de quais, no entanto, ocu­pam os mesmos
imagens e símbolos, o autor refere espaços de mídia (especialmente a
todos os agentes ligados à produção televisão) pelo qual se veicularam os
desse ambiente cultural midiático, conteúdos considerados indutores
ou seja, artistas, músicos, fotógrafos, da criminalidade. O autor se propõe
cineastas e diretores de te­levisão, por um caso, como pergunta49: se num
exemplo. Muitos deles pro­duzem e se processo judicial alguém é acusado
relacionam com o que se identifica por um crime, e a defesa ale­ga ter sido
como “alta cultura”, filmes, música,
fotografia, etc., que é apreciada pelas 48
O crime que decorre da imitação de conteúdo midiático é
elites instruídas, surge em museus chamado “copy-cat crime”, em inglês (NT).
galerias de arte, etc. Outros se dedicam 49
FERRELL, 2007, op. cit., p. 147.

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CRIME E CONTROLE DA CRIMINALIDADE NO BRASIL

o mesmo provocado por excessiva mal­trapilhas e mal­ tratadas, crianças


exposição a imagens violentas, trans­ abandonadas, lixo, paredes sujas, jane­
mi­tidas pela mídia, quer dizer, que las quebradas. Essas considerações
o acusado simplesmente imitou o inspiraram o modelo das janelas que­
que viu, e desse modo não seria pes­ bra­das50, utilizado por grupos políticos
soalmente responsável, que tipo de conservadores para exigir e justificar
prova se poderia usar para apoiar ações duras contra mendigos, sem-
essa alegação? E que prova se poderia tetos, grafiteiros e outros grupos
apresentar em contrário? Ao mesmo visíveis, relacionados aos crimes contra
tempo, que diretrizes poderiam ser a “qualidade de vida” nas áreas urbanas,
desenvolvidas para amenizar o poten­ concentrando-se na ação policial na
cial dano decorrente de ima-gens vida diária. O autor considera51, que
violentas transmitidas pela mídia, a fim de melhor pensar sobre essa
contrariando valores humanísticos relação, seria útil questionar, ao nos
de liberdade de expressão? A mídia movermos em nosso ambiente urbano,
deveria ser limitada, a partir das quantos símbolos relacionados ao
preocupações sobre seus danos sociais crime, controle da criminalidade ou
em potencial? vitimização são identificáveis? E como
Ao procurar relacionar “crime, interpretamos os mesmos no sentido
cultura e exibição pública”, o autor esta­ de nossa segurança ou vulnerabilidade?
belece que os meios de comunicação de E como se pode esperar que variem as
massa produzem e expõem um número interpretações das pessoas sobre esses
incontável de imagens relacionadas símbolos, com base em seu gênero,
a crime e controle da criminalidade orientação sexual, classe social, idade
dia­riamente, para o consumo público. ou origem étnica?
Mas essa não é a única maneira pela Finalmente, o autor procura rela­
qual os temas da criminalidade são cionar mídia, crime e controle da
exibidos na sociedade contemporânea: criminalidade. Destaca que na socie­
eles também são exibidos como parte dade contemporânea, a mídia detém
da movimentação social das interações a preponderância sobre o crime e
diárias, como parte do ambiente cons­ o controle da criminalidade. Desse
truído dentro do qual a vida da so­ modo, para compreender temas como
ciedade continua. Nesse sentido, uma o apoio público à disseminação das
série de outros elementos são exibi­
50
WILSON, J.Q. and Kelling, G. 1982. ‘Broken Windows:
dos, 
relacionados ao crime: obje­ The Police and Community Safety’, Athlantic Monthly,
March: 29-38. 2003.
tos públicos depredados, pessoas 51
FERRELL, 2007, op. cit., p. 150.
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empresas de segurança privada, ou as nenhuma surpresa que o objeto dessas


preocupações sobre a criminalidade no ações, indivíduos e grupos criminosos e
dia-a-dia, as várias formas dos meios criminalizados, também participem do
de comunicação de massa devem ser processo interminável de negociação
examinadas. E desse exame, segundo o mediada. Esses grupos, por exemplo,
autor, resulta um padrão significativo: “gangs” de rua, “skinheads”, grafiteiros
a mídia de massa transmite não e outros, com frequencia possuem web­
apenas não apenas informação, mas sites, construídos para apresentar seus
emoção. Tanto nas notícias quanto próprios pontos de vista sobre crime e
em programas de entretenimento, a sociedade, ou produzem vídeos de suas
mídia superenfatiza, com regulari ações criminosas, no mesmo sentido.
dade, o crime de rua, muito mais do Essa disputa em torno da “ver­ dade”
que os crimes empresariais; focaliza sobre o crime, justifica as crises de
a criminalidade entre estranhos, pânico moral e os movimentos de “em­
mais do que a violência doméstica, a preendedorismo” moral, administradas
criminalidade violenta mais do que pela mídia, que envolve o público, e
os crimes não-violentos e silenciosos media a negociação sobre o significado
contra a propriedade. Enquanto parte do crime em si mesmo. Essas negociações
desses padrões de sensacionalismo necessitam, segundo o autor, de mais
resulta em parte da manipulação po­ pesquisa criminológica, pois são de
lítica da mídia, e confiança da mídia extremo relevo para a compreensão das
nas fontes oficiais, eles parecem ser mudanças na sensibilidade social.
conduzidos, em sua maior parte, pela Nessa linha, então, surge a questão
busca obsessiva da mídia por altos sobre o que pode ser feito para corrigir
índices de audiência, maior venda as distorções da mídia de massa, e
de jornais e revistas, e aumento a superdramatização dos temas do
de lucros financeiros. Entretanto, crime. Além disso, seria adequado a
quaisquer que sejam suas fontes, o criminosos e grupos criminalizados a
efeito cumulativo dessas distorções produção de seus próprios websites e
permanece claramen­ te político; eles vídeos? Deveria haver limites para esses
regularmente ampliam e agravam o tipos de mídia ilícita? Finalmente, o
medo público do crime, esta­belecem autor observa:
inapropriadamente agendas públicas
punitivas, visando o controle da As interseções entre crime
criminalidade, e preparam o público e cultura estão hoje emergindo
para a crise seguinte de pânico moral, como uma área extremamente
sobre o crime e a criminalidade. Não é relevante da crise política e
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moral da sociedade contempo- Trata-se de um posicionamento pouco


rânea. É nele que os temas convencional da tradição das ciências
fundamentais da identidade sociais, mas que entretanto, parece se
humana e da justiça social estão justificar, hoje, pelo avanço lento de
sendo contestados. O objetivo outras metodologias, em contraste
da vigilância e do conhecimento com a forte demanda por res­ postas
dos perfis criminosos, o equi­ consistentes das ciências sociais, sobre
líbrio entre livre expressão e os problemas objetivos do crime e do
o potencial de danos sociais, controle da criminalidade.
a negociação dos limites que
separam arte e obscenidade, CONCLUSÃO
o papel adequado das várias Não se pode negar que a Crimi­
formas de mídia no controle nologia Cultural se apresenta como
da sociedade contemporânea, uma arena nova, emocionante e
todos esses temas tomam for­ politicamente car­regada, para a pes­
ma na interseção entre crime quisa e a teoria cri­ minológicas. E
e cultura. Por essa razão, a também que ela pode ser vista, em
análise da relação entre crime e alguns sentidos, como um ramo da
cultura não é um mero exercício criminologia crítica, na medida em
intelectual abstrato; ela antes que muitas vezes procura, como
de tudo, um exercício de cida- esta, avançar na ligação do mundo
dania engajada e ativismo do desvio e da criminalidade com a
informado (FERRELL, 2007, imensa pressão social e econômica
op. cit., p.153). enfrentada pelos pobres urbanos,
nas sociedades contemporâneas. Por
O autor, desse modo, reafirma o outro lado, da lei­tura de seus críticos,
papel político do estudo científico da fica evidente que ainda persistem
criminalidade, assumido pela Cri­ questionamentos sobre em que medida
mi­no­logia Cultural. Não se trata as noções de subcultura, subversão
apenas de rever e reconstruir o pen­ e transgressão fornecem pontos de
sa­m ento e metodologia crimi­n o­ referência adequados para explicar o
lógicos, mas de esta­b elecer parâ­ comportamento desviante e criminoso.
metros para avanços reais, levando em Entretanto, como antes afirmado,
consideração o conhecimento socio­ essa referência de análise está em
lógico, mas sem se afastar da reali­ desenvolvimento, e por sua postura
dade social contemporânea, por mais mais flexível, acreditamos que merece
caótica que a mesma se apresente. ser conhecida, acompanhada e desen­
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volvida entre nós. Para finalizar, lem­


bra­ mos que a Criminologia Cultu­
ral foi e segue sendo desenvolvida a
partir da realidade social na qual se
inserem seus autores, e visando essa
mesma realidade, não podendo seus
avanços e questionamentos serem
simplesmente transpostos, para a
obtenção de contribuições à aná­
lise, adequadas à realidade social br
asileira. É necessário estudar, com­
pa­ rar e revi­sar seus conceitos e
instru­ mentos cuidadosamente, para
esse objetivo. Portanto, é nesse sen­
tido que o presente artigo também
se constitui em um convite, aos
leitores e pesquisadores interessados,
especialmente aos com formação
sociológica, no sentido de buscar o
aprofundamento dessa referên­ cia, e
os modos pelas quais os conceitos,
posicionamentos e métodos da Crimi­
nologia Cultural podem se tornar
re­ferências valiosas e/ou de auxílio
na produção e operacionalização de
ins­ trumentos de análise adequados
ao con­texto brasileiro de estudos do
crime e do controle da criminalidade.

Alvaro Oxley Rocha


Professor Titular no PPG em
Ciências Criminais da Faculdade de
Direito da PUC-RS, linha: Violência,
Crime e Segurança Pública. Pós-
doutorado em Sociologia do Crime e
do Controle da Criminalidade, na Kent
University - UK.
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