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Cap.

I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

impulsionadas, sobretudo, pelo movimento iluminista, tiveram enorme significado


para o desenvolvimento da psiquiatria.
Na Psiquiatria, surge a figura do médico francês Philippe Pinel, responsável
pela realização dos primeiros diagnósticos que diferençavam o criminoso do en-
fermo mental. Com base em seus estudos, mais de 50 (cinquenta) enfermos foram
desencarcerados, entre eles um famoso soldado alcoólatra, Chevigné, o qual, mais
tarde, tornar-se-ia seu ajudante. Essa ação insurgente de Pinel possibilitou ao louco
deixar de ser tratado como alguém que estava possuído pelo mal ou pelo demônio,
como sugeria a demonologia, mas apenas como alguém que padecia de um problema
físico que inspirava tratamento, não castigo.
O grande mérito do pensamento do médico francês foi, efetivamente, promo-
ver a separação entre o binômio enfermidade mental – delinquência e propi-
ciar a criação de asilos destinados a diagnósticos clínicos e tratamento dos
enfermos mentais.
Entre os médicos que se ocupariam da questão do crime, convém mencionar,
também, Esquirol e Morel. O primeiro elaborou e sistematizou a classificação de
enfermidades que domina o pensamento psiquiátrico do séc. XIX, um dos grandes
responsáveis, ainda, pelo indulto de Pierre Rivière. Morel, por sua vez, foi o ponto
de partida para uma “psicopatologia criminal”, na medida em que promovia um es-
tudo paralelo entre a delinquência e a loucura ou doença mental: todo delito seria
um fenômeno patológico, causado pela interação de fatores biológicos hereditários e
sociológicos ambientais87.

3. NASCIMENTO DO MOVIMENTO CIENTÍFICO DA CRIMINOLOGIA


A pretensão de cientificismo no âmbito criminológico somente é alcançada nos
fins do séc. XIX e, como se pode notar, não é possível deixar de creditar a importân-
cia das pseudociências para transmitir à antropologia italiana e, por sua vez, aos
discursos penais e práticas punitivas daquele final de século, a explicação “científi-
ca” para a criminalidade. Bem por isso, Lombroso, nome mais destacado da Escola,
não é original em sua construção teórica, mas um cientista que promove um resumo
genial, nas palavras de Anitua, de todo o pensamento que viceja à sua volta, espe-
cialmente os fisionomistas e frenólogos88.
Tal explicação científica perpassa, necessariamente, pelo conceito estruturan-
te de anormalidade endógena individual. Não por outra razão o cientista desse
período, ao voltar os olhos para o fenômeno do crime, encontrou o criminoso; é ele
o objeto central das pesquisas, e seu comportamento (criminoso) tem como causa

87. Para uma análise de outros nomes importantes da história da psiquiatria cf. Hering, Karl-Heinz. Der
Weg... Op. cit., p. 37-43.
88. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 298.

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etiológica uma necessária disfunção patológica interna. Noutros termos, e admitido


o reducionismo um tanto quanto grosseiro, o crime tem a sua explicação universal
ancorada na ideia de inferioridade racial provocada pela anormalidade do indivíduo
(= o delinquente nato)89. Justamente por isso, pondera a doutrina, o objeto das in-
vestigações não era a sociedade, tampouco o Estado, as leis ou como essas afetavam
os indivíduos. O objeto de estudo era, unicamente, o indivíduo90.
Essa Criminologia tradicional, de etiologia limitada à índole individual, empre-
gou uma metodologia de investigação certamente questionável. Com efeito, desde
aquele período, havia uma classe social alvo preferencial das instâncias punitivas,
daí porque, à evidência, uma tal explicação etiológica individual servia tanto aos
interesses da burguesia quanto à necessidade do imperialismo econômico91.
Contudo, o foco no individual, alheando perspectivas sociais e econômicas co-
mo fatores decisivos para a criminalidade, não é suficiente para descartar a impor-
tância da antropologia italiana, muito pelo contrário. Seus aportes foram não
somente significativos, como igualmente decisivos para o nascimento e difusão
da Criminologia, bem assim para chamar à ordem a necessidade de enfrentamento
da criminalidade a partir das considerações sobre o protagonista do crime. E, certo
modo, no criminoso polarizam-se as discussões que dominam o cenário científico
europeu do século XIX até início do século XX.
A observação da acidentada evolução histórica do Direito Penal representa o in-
dicativo de que a evolução das ideias penais foi o berço de correntes de pensamento
que objetivam converter o estudo do fenômeno criminal em ciência. Essas correntes
são denominadas, genericamente, de Escolas Penais.
Em linhas gerais, as Escolas Penais sintetizam correntes de pensamento
sobre os problemas que envolvem o fenômeno do crime e da criminalida-
de, bem assim sobre os fundamentos e objetivos de todo o sistema penal,
e correspondem, em maior ou menor medida, às fases de evolução do pensamento
metodológico penal. Jiménez de Asúa as define como “corpo orgânico de concepções
contrapostas sobre a legitimidade do direito de punir, sobre a natureza do crime e
sobre o fim das sanções”92.
As construções científicas elaboradas após as impactantes aportações rica-
mente sumarizadas por Beccaria (o Marquês de Bonesana) – em especial sua obra
“Dos Delitos e das penas”, escrita em 1764 – divergem, essencialmente, quanto
à orientação das explicações sobre a natureza das penas e pelo método científico
adotado. As discussões polarizaram-se entre as duas principais Escolas: a Clássica

89. Destacando o reflexo desse ideal racista não apenas no campo criminológico, senão também literário,
cf. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 298.
90. Cf. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 297.
91. Para uma análise com esse viés, cf. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 299-301.
92. Jimenez de Asúa, Luis. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Losada, 1950, vol. II, p. 29.

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e o Positivismo Criminológico. O método lógico-abstrato ou dedutivo foi utilizado


pelos clássicos. Por outro lado, o Positivismo Criminológico empregou o método
indutivo. Essa divergência de métodos ancora o fenômeno conhecido por luta das
escolas. Basicamente as investigações de ambas procuram responder às seguintes
indagações:
1) Em que se funda a responsabilidade penal do criminoso?;
2) Qual é o conceito de crime?;
3) O criminoso é um homem normal ou anômalo?;
4) Qual é o conceito e efeitos da pena?93
Para além do embate entre as duas grandes Escolas, circunstância que determi-
nou o monopólio de grande parte da produção científica restrita às duas direções,
outros corpos orgânicos mais ou menos uniformes sobre a legitimidade do direito
de punir foram paralelamente desenvolvidos durante a luta dos dois grandes blocos.
Certo modo, como é de intuir, essas outras direções tiveram seu brilho dissipado pe-
lo largo horizonte científico de embate entre Clássicos e Positivistas. Mas, isso não
diminui sua importância para a Criminologia, tampouco para o Direito Penal, razão
pela qual dedicaremos atenção específica às outras escolas. Contudo, antes de ingres-
sarmos na polarização propriamente dita das escolas penais, bem assim nas demais
direções científicas, convém agregar algumas linhas referentes ao pensamento pre-
cursor da Escola Clássica, ao pensamento de Cesare Bonesana (o marquês de Becca-
ria). A razão do apartado está duplamente justificada: primeiro, porque, do ponto de
vista sistêmico, muitos autores acomodam o pensamento de Beccaria dentro Escola
Clássica94; segundo, porque muitos dos seus conceitos fundamentais – ainda que
com outra roupagem – orientam as políticas criminais e sistemas jurídico-penais
contemporâneos (abaixo a). Além de Beccaria – e por essas mesmas razões – pare-
ce-me também proveitoso abordar a contribuição do ingês Jeremy Bentham (abaixo
b), cujo trabalho sobre o controle racional do crime contribuiria significativamente
para a formação do pensamento da Escola Clássica.

3.1. Beccaria
Para além dos antecedentes criminológicos investigados, o século XVIII é es-
pecialmente importante para a compreensão do fenômeno criminal, especialmente

93. Aragão, Antônio M. Sodré de. As três... Op. cit., p. 67.


94. Entre outros, cf. Schneider, Hans Joachim. Einführung in die Kriminologie. 3. Aufl. Berlin; New York:
de Gruyter, 1993, p. 10.

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com as aportações95 – cuja originalidade e autoria são questionáveis96, é verdade –


de Cesare Bonesana (173897-1794). Para compreender esse Beccaria, como adverte
Sainz Cantero, é necessário compreender o pensamento de seu tempo98.
Narra a doutrina que a vida na Milão da segunda metade do século XVII era
marcada, por um lado, por um grupo de intelectuais conservadores e integrantes da
alta classe; e, por outro, por um grupo de jovens vanguardistas. Ambos envoltos em
uma atmosfera de luta pela liberdade e rechaço à opressão, tudo bem sintetizado na
fórmula rousseauniana de que o homem nasceu livre, mas vive aprisionado por todos os
lados. No entrechoque entre liberdade e aprisionamento, a questão penal sobressai
como alvo crítico porque é aí, na imposição do castigo, que se manifestam as misérias
do Estado. E é justamente este caldo de cultura que permite eleger o sentimento hu-
manista como mola propulsora do pensamento reformista: uma reação muito mais
apaixonada que técnica; muito mais humanista que jurídica. Em todo caso, contudo,
um movimento de rebeldia contra o sistema punitivo do antigo regime.
De tal modo, no cenário científico, a avalanche reformista que se assenta sobre
aquele período é caracterizada pelo apogeu da razão crítica do homem em detrimen-
to do modelo de “ciência” gestada pela teologia: “a ciência penal deixa de ser serva
da teologia, e também o Estado e o Direito comparecem ante ao Tribunal da razão
crítica do homem”99. Pela primeira vez, então, tem-se a construção de um modelo de
justiça que se faz de baixo para cima e não de cima para baixo100.
Com o intuito de discutir os problemas relacionados à filosofia, política, econo-
mia, um importante personagem do período reformista, mas nem sempre lembra-
do, Pietro Verri, promovia reuniões com jovens animados pela marca humanista101.
Nesse grupo – e naquela atmosfera de ebulição ideológica – estava Beccaria (Titos
Pomponius Atticus, nome romano por ele utilizado)102.

95. Fundamental sobre a transição do regime feudal até as revoluções do séc. XVIII e a sua influência no
pensamento criminológico, cf. Pavarini, Massimo. Control... Op. cit., p. 27 e ss. Para um breve relato do
pensamento criminológico entre os séculos XVII e XVIII, cf, Pinatel, Jean. La pensée criminologique
aux XVIIe et XVIIIe siecles. In: Revue de Sciencie Crimininelle et Dróit Pènal Comparé, n. 2, 1978, p.
407-416.
96. Não por outra razão, aponta Schneider que o próprio Beccaria teria ficado surpreso com o sucesso do
livro, afinal, ele nenhuma novidade disse, tampouco algo original, isto é, nada que não fosse conhecido.
Schneider, Hans Joachim. Einführung... Op. cit., p. 10.
97. Todavia, os biógrafos não estão de acordo com o ano de nascimento. Alguns elegem 1735, outros 1738.
98. Sainz Cantero, José A. Lecciones de derecho penal: parte general. Barcelona: Bosh, 1981, p. 100-102.
99. Mezger, Edmund. Tratado de Derecho Penal; trad. por José Arturo Rodrigues Muñoz. Madri: Editorial
Revista de Direito Privado, 1946, t. I, p. 54.
100. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual de Criminologia Sociopolítica; trad. Amina Vergara.
Rio de Janeiro: Revan, 2017.
101. Cf. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology. 9 ed. New York: McGraw-Hill Educa-
tion, 2018, p. 53.
102. Audegean, Philippe. Introducción. In: Beccaria, Cesare. Des délits et des peines. Lion: ENS, 2009, p. 24.

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Para parcela da doutrina, foi Verri quem encorajou Beccaria a escrever o livro
que, passados mais de dois séculos, continua a influenciar a ciência penal103. Em ra-
zão das várias discussões sobre os delitos e penas que aquele grupo de jovens travou,
Verri teria achado conveniente resumi-las em um livro pequeno e de fácil compreen-
são. Para executar tal tarefa, escolheu a Beccaria, não (somente) pela competência
intelectual, mas principalmente pela sua clareza, eloquência e mente imaginativa,
típicas de um jovem de pouco mais de vinte anos. E assim surge Dei delitti e delle
pene (1764) – Dos delitos e das penas – muito mais como uma obra coletiva do que
individual, muito mais como obra filosófica do que jurídica. Anos mais tarde, com
a publicação anônima da primeira edição e com os créditos de autoria atribuídos
apenas a Beccaria, Pietro Verri se tornaria um impiedoso crítico do pequeno livro104.
Apesar do sucesso mundial meteórico, a rigor, Beccaria “...não disse nada de no-
vo ou de fundamentalmente original, nada que já não fosse sido conhecido”105. Por
isso, talvez, o seu principal mérito tenha mesmo sido o de reunir, em único volume,
um manifesto contra a indeterminação e crueldade das leis penais e a sua aplicação
contra a tortura e a corrupção. Mais ainda: a igualdade na lei não era realizada; entre
acusado e condenados não se fazia distinção; em alguns países na Europa “bruxas”
seguiam sendo torturadas, julgadas e queimadas, tudo isso largamente praticado
naquele período 106. Dos delitos e das penas, portanto, funciona como um libelo con-
tra a genuflexão da lei frente à arbitrariedade humana e, ao mesmo tempo, como
manifesto em favor do império da lei. A importância do livro, nessa quadra de dis-
puta, foi a de sumarizar e indicar todos os princípios programáticos para a reforma
da justiça penal. E a sua sorte foi encontrar um mundo que se encontrava amadure-
cido para receber essas ideias107.
É vasta a bibliografia produzida sobre a obra atribuída a Beccaria, razão pela
qual abordarei alguns dos seus pontos fundamentais108. Esses, a rigor, seguem os
seguintes princípios: a lei deve ser usada para manter o contrato social; apenas le-
gisladores devem criar leis; os juízes devem impor apenas as punições previstas na
lei; os juízes não devem interpretar as leis; punição deve ser baseada no ato e não no
seu ator; a punição deve ser eficaz; todas as pessoas devem ser tratadas igualmen-
te; a pena capital, bem assim a tortura utilizada para obter confissões, devem ser

103. Segundo Sainz Cantero, a crise amorosa de Beccaria com Teresa Blasco, filha de um coronel espanhol,
foi importante para a elaboração do livro. Com efeito, o pai de Teresa recorreu ao poder judiciário para
impor sua autoridade paterna e Beccaria se viu impedido de viver sua paixão. Sainz Cantero, José A.
Lecciones... Op. cit., p. 102.
104. Sainz Cantero, José A. Lecciones... Op. cit., p. 102.
105. Schneider, Hans Joachim. Kriminologie…Op. cit., p. 92.
106. A descrição é de Schneider, Hans Joachim. Kriminologie…Op. cit., p. 92.
107. “Beccarias Buch traf eine Welt, der für seine Gedanken reif war“. Schneider, Hans Joachim. Kriminolo-
gie…Op. cit., p. 92.
108. Para uma análise mais ampla cf. Garcia, Basileu. Instituições de direito penal. 4. ed. São Paulo: Max
Limonad, 1972, vol I, T. I, p. 43-64.

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abolidas; e, finalmente, é melhor prevenir crimes a puni-los109. A seguir, deter-me-ei


em alguns desses pontos.
Inicialmente convém ressaltar que o jovem milanês não deixou de estampar
o seu receio com a publicidade do livro, razão pela qual, além do inicial anonima-
to, deixou a luz das suas palavras ser envolvida por alguma obscuridade. Como ele
mesmo confessou a Morellet: “quando escrevi este livro, eu tinha diante de mim
os exemplos de Maquiavel, Galileu e Giannone. Ouvi o barulho das correntes que
agitam a superstição, e os gritos de fanatismo que ocultam os gemidos da verdade.
Foi isso que me provocou, me forçou, a ocultar a verdade. Eu queria defender a sua
humanidade, sem ser um mártir”110. Ainda assim, foi (e continua a ser) um livro mui-
to influente, talvez isso explique o porquê – mesmo com todo o cuidado ao qual se
referia Beccaria – da obra ter sido incluída no l’Index librorum prohibitorum (ou Índice
de livros proibidos)111.
Em concreto, Beccaria não fornece – nem poderia – um sistema analítico de com-
preensão do delito, como uma espécie de teoria geral do crime. Com efeito, a denúncia
do cruel, obscuro e arbitrário sistema penal de imposição do castigo até então vigente
é o assoalho de toda a obra. É exatamente esse apanhado denuncista que lhe permitirá
abrir caminho para alguns aspectos criminológicos do fenômeno delitivo e, com algu-
ma concessão, talvez sirva para justificar o título de pai da criminologia moderna que
lhe atribui parcela da literatura.
Como anunciado, Beccaria parte da premissa geral de que é melhor prevenir os
delitos que ter de castigá-los112, desenhando um plano de prevenção de delitos que
anos mais tarde é análogo – ainda que por mera coincidência – a algumas propos-
tas das Escolas criminológicas de corte sociológico. Assim, para alcançar aquilo que
ele chama tranquilidade pública (Cap. XI), seriam meios preventivos eficazes, por
exemplo, a adequada distribuição da polícia na cidade e iluminação noturna das ci-
dades, particularidades que deixam bem à vista a estrita obediência à sua premissa.
Toda boa legislação se situa exatamente na arte de conduzir os homens a um
ponto maior de felicidade ou à menor infelicidade possível. Quer evitar delitos(?),
interroga Beccaria, então se faz necessário:
1) que as leis sejam claras e simples, e que toda força da nação esteja empregada
em defendê-las (Cap. XLI);

109. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology…Op. cit., p. 55-56.
110. Beccaria, Cesare. On crimes and punishments and others writings; trans. Richard Davis. Cambridge:
CUP, 1995, p. 121.
111. Convém recordar que a Itália – ainda que em menor escala – também estava sob o regime da Inquisição.
Na Espanha, o Tribunal da Santa Inquisição também proibiu o livro.
112. Falando em conceito fundamental Gramatica, Filippo. Principios de derecho penal subjetivo; trad. Juan
Del Rosal y Victor Conde. Madrid: Reus, 1941, p. 77; ressaltando a importância do ponto de partida
Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 76.

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2) que as leis favoreçam menos as classes dos homens que os homens mesmos
(Cap. XLI);
3) que os homens a temam. O temor das leis é saudável (Cap. XLI);
4) leis que acompanhem as luzes da liberdade (Cap. XLII);
5) funcionamento de uma justiça livre de corrupção (Cap. XLIII);
6) outro meio de evitar delitos é recompensar a virtude. A moeda da honra é sem-
pre inesgotável e frutífera nas mãos do sábio distribuidor (Cap. XLIV);
7) finalmente, o mais seguro, todavia o mais difícil meio de evitar delitos é o aper-
feiçoamento da educação.
Estes pilares “político-criminais” constituem, para Beccaria, um caminho pro-
gramático-preventivo e eficaz para evitar o fenômeno delitivo.
Do ponto de vista penológico, a obra de Beccaria apresenta um (aparente?) pa-
radoxo nem sempre chamado à ordem. Com efeito, é sabença que ele propugnava leis
claras e simples, bem assim contrariedade à pena capital: a medida da pena deve ser
mais doce113, afirmou. E é exatamente neste ponto que a obra de pretensões huma-
nistas se vê enevoada pelo indisfarçável dilema. Simples: para Beccaria, o rechaço
à pena de morte não decorre das multicitadas razões humanitárias que transitam
em sua obra, longe disso. Com efeito, ele agrega argumentos de utilidade e neces-
sidade para justificar a sua abolição, haja vista que a pena capital seria incapaz de
debelar o ânimo criminoso do homem. O argumento gira em torno, portanto, da fal-
ta de eficácia preventiva da pena de morte. Isso permite reconhecer no pensamento
de Beccaria um traço consequencialista de valorização do castigo que não pode ser
disfarçado114. Qualquer dúvida pode ser dissipada recorrendo-se às suas próprias
palavras: não é a intensidade da pena que produz maior efeito sobre os homens,
senão sua extensão; não é o freio mais forte contra os delitos o espetáculo momen-
tâneo, ainda que terrível, da pena de morte de um malfeitor, mas sim o largo e di-
latado exemplo de um homem, que convertido em besta de serviço e privado de sua
liberdade, recompensa com o seu sofrimento a sociedade que ofendeu; tal pena, ao
contrário da pena capital, produziria em cada indivíduo o eco “eu também serei redu-
zido a tão dilatada e miserável condição se cometesse semelhantes delitos” (Cap. XXVIII).
Some-se a esses argumentos mais um: apesar do seu rechaço generalizado à pe-
na de morte, ele a considerava lícita ao menos em duas hipóteses: i) quando interesse
à segurança da nação e o Estado esteja em momentos de instabilidade política e turbu-
lência social; ii) ou quando, ainda que em momentos de paz e tranquilidade política
e social, a pena de morte seja o único meio para dissuadir os demais de cometerem

113. O leitor deve ter em mente que ele está se referindo à desordem e crueldade das penas do antigo regime.
114. Não por outra razão, Hegel, em seus Fundamentos do Direito, tece duras críticas à proposta de Beccaria.

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delitos. Tal permissibilidade certamente permite matizar o inflexível predicado hu-


manista que é agregado à sua obra.
Evidentemente tais argumentos não maculam a generalidade das ideias lan-
çadas, especialmente se se tem em mira a vastíssima repercussão positiva (ou no
mínimo provocadora) quase imediatamente alcançada pelo livro, bem assim sua
contribuição para a suavização da resposta penal115. Como registrou Frederico II,
“Beccaria não nos deixou nada por esclarecer. Nós precisamos somente seguir o
que ele escreveu”116.
Ao fim e ao cabo, partindo de uma compreensão meramente descritiva, bem se
vê que o livro não tinha o objetivo de construir um pensamento sistêmico, uma teo-
ria sobre o fenômeno criminal, senão expor, com clareza e objetividade, o caótico e
cruel sistema jurídico-penal que até então predominava. Por essa perspectiva, o seu
objetivo – plenamente alcançado – foi o de promover a reforma do sistema de Direito
Penal e da Administração da Justiça, fincando os pilares para o florescimento da
Escola Clássica. Em definitivo: como apreciação geral do livro, pode-se dizer que os
seus principais vetores contra a arbitrariedade e crueldade das leis penais e proces-
suais do antigo regime permitiram forjar uma concepção de legislador ideal, vale
dizer, o legislador como hábil arquiteto de um direito (mais) lógico e (mais) racional.
3.2. O utilitarismo de Bentham
Costuma-se argumentar que grande parte da literatura jurídica que se produziu
a partir da segunda metade do século XVIII decorre do trabalho de Beccaria. Mas,
entre esses autores, o filósofo inglês Jeremy Bentham é aquele que mais deve ao
milanês117, de quem coopta a frase “a maior felicidade possível para o maior número
possível de pessoas” para elaborar a sua filosofia do castigo.
Poucas expressões ligam-se tão fortemente a um autor como o termo utilita-
rismo liga-se a Bentham. Com alguma concessão, é possível dizer que o utilitarismo
considera que todas as ações humanas são calculadas de acordo com sua probabili-
dade de trazer felicidade (prazer) ou infelicidade (dor)118; esses são, nas palavras de
Bentham, os senhores soberanos do gênero humano.

115. Sobre isso, esclareceu a literatura “After the French Revolution, Beccaria’s basic tenets served as a guide
for the drafting of the French penal code, which was adopted in 1791. In Russia, Empress Catherine II
(the Great) convened a commission to prepare a new code and issued instructions, written in her own
hand, to translate Beccaria’s ideas into action. The Prussian King Friedrich II (the Great) devoted his
reign to revising the Prussian laws according to Beccaria’s principles. Emperor Joseph II had a new
code drafted for Austria-Hungary in 1787—the first code to abolish capital punishment. The impact of
Beccaria’s treatise spread across the Atlantic as well: It influenced the first 10 amendments to the U.S.
Constitution (the Bill of Rights).” Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology…Op.
cit., p. 56.
116. Schneider, Hans Joachim. Kriminologie...Op. cit., p. 93.
117. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology…Op. cit., p. 56.
118. Não se ignora que há diversas variantes do utilitarismo e que é praticamente impossível sintetizar to-
das as variantes em uma única definição. Entretanto, que esse é a ideia central do utilitarismo clássico
e também é – no mínimo – o ponto de partida para outras ideias utilitaristas contemporâneas.

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Ao avançar na precisão conceitual, Bentham esforça-se para esclarecer o princípio


da utilidade. Segundo ele, deve-se entender aquele princípio que aprova ou desaprova
qualquer ação, segundo a tendência que esse tem de aumentar ou diminuir a felicidade
da pessoa cujo interesse está em jogo119. O termo utilidade significa aquela proprieda-
de em virtude da qual o objeto tente a produzir ou proporcionar o bem, prazer ou a im-
pedir a dor, o mal para a parte cujo interesse está em jogo. Individualmente, a utilidade
é o princípio do prazer; coletivamente, a utilidade será a soma das felicidades indivi-
duais. Isso significa que o referencial de interesse coletivo será sempre um interesse
individual ou – a mesma coisa em outros termos – uma ação estará em conformidade
com o princípio da utilidade quando a tendência que ela tem de aumentar a felicidade
for maior do que qualquer tendência que tenha de diminuí-la.
Tendo essa dualidade – bem e mal, prazer e dor – como pano de fundo, Bentham
considera que as pessoas pesam as probabilidades de prazeres presentes e futuros
em comparação com as dores presentes e futuras. A respeito disso, julgou possível
calcular esse processo psíquico racional por meio de um algoritmo que chamou de
“cálculo hedonístico (felicífico)”. A ideia por trás desse algoritmo é a de que o
homem racional elabora, sopesa todos os fatores (vantagens e desvantagens), para
decidir se realizará – ou não – determinada ação. Nesse sentido, para prevenir a
ocorrência de danos (= reduzir crimes), a dor do castigo deve ser mais prejudicial que
o benefício do crime. Segundo ele, indivíduos violam a lei com o objetivo de ganhar
dinheiro, sexo ou outra coisa que seja valorizada. A estratégia para a justiça crimi-
nal, portanto, é tentar garantir que qualquer prazer obtido pelo crime seja superado
pela dor infligida por meio da punição120. Por isso, dor e prazer são instrumentos
com os quais o legislador precisa trabalhar para controlar o comportamento crimi-
noso121. Quanto ao cidadão, esse deveria obedecer à lei porque isso ofereceria maior
contribuição para a felicidade geral do que a sua transgressão. Vistas as coisas assim,
o castigo não seria somente uma reação contra o mal; no fundo, ele é um bem porque
deveria produzir felicidade para a maioria, isto é, cada indivíduo (felicidade indivi-
dual), exceto quem sofre o castigo, tira proveito ao evitar dores futuras122.
Bentham, ao contrário do quanto essa aproximação pode sugerir, não defendia
a crueldade das penas. Defendia, antes de tudo, que as penas deveriam ser suficien-
temente desagradáveis para o seu autor; a pena deveria gerar desconforto maior que
o prazer da atividade criminosa. Contudo, não é somente isso e esse é um ponto im-
portante. Certamente influenciado pelas ideias de Beccaria123, Bentham considerava
que a certeza e a rapidez da imposição da pena superavam o proveito que se tinha
com a perversidade. Isso repercutiu, no cenário inglês, com a reforma progressiva

119. Bentham, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation…passim.


120. Newburn, Tim. Criminology. 3. ed. London; New York: Routledge, 2017, p. 127.
121. Schmalleger, Frank. Criminology today: an integrative introduction. 8. ed. Boston: Pearson, 2019, p.
60-61.
122. Cf. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 196.
123. Para algumas diferenças entre os dois, cf. Newburn, Tim. Criminology…Op., cit., p. 127-128.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

da legislação, reduzindo-se a admissibilidade de pena capital de 222 para somente


3 crimes: homicídio qualificado, traição e pirataria124. Quanto à dosagem da pena,
Bentham também argumentou que essa deveria ser proporcional ao crime. Conhe-
cendo a sua fórmula hedonística, fica difícil entender o porquê: se duas ações com
gravidades distintas fossem punidas com a mesma pena o criminoso racional teria
pouco incentivo para não cometer a mais grave dessas.
A sua contribuição para a Criminologia, em especial no âmbito penitenciário,
foi a sugestão de que prisões fossem projetadas de acordo com o que ele denominou
“casa panóptica” (abaixo). Segundo descrição registrada na literatura, o panóptico
deveria ser um edifício circular com células ao longo da circunferência, cada uma
claramente visível de um local central com guardas, construída perto ou dentro das
cidades para que pudesse servir como exemplo aos cidadãos do que lhes aconteceria
se cometessem crimes. Ademais, segundo Schmalleger, embora um panóptico nun-
ca tenha sido construído na Inglaterra, as autoridades francesas financiaram uma
versão modificada dess tipo de prisão construída em Lyon – e os Estados Unidos
construíram três prisões modeladas a partir do conceito do panóptico125.

Aquilo que descrevemos até aqui sobre Bentham pode ser assim resumido: de
acordo com o “cálculo hedonístico”, o indivíduo decide por uma ação quando – sope-
sados custos e benefícios – julga que a ação lhe trará maior prazer e redução da dor
(1). Se nisso reside a racionalidade da ação humana, é quase intuitiva a lógica que

124. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology…Op. cit., p. 58.
125. Toda descrição em Newburn, Tim. Criminology…Op., cit., p. 128; Schmalleger, Frank. Criminology to-
day…Op., cit., p. 61.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

se segue: o comportamento criminoso poderia ser eliminado ou controlado se os


possíveis criminosos pudessem ser convencidos de que a dor produzida pela punição
excede os benefícios do crime (2). O propósito da lei é produzir a felicidade total da
comunidade a que serve (3). Como a punição é prejudicial em si mesma, sua existên-
cia somente se justifica se for capaz de prevenir mal maior do que o que cria (4). O
castigo, nesse ponto, deve ser certo, imediato e proporcional ao crime (5). Tudo isso
que separamos expressa a ideia reitora que permanece na consciência coletiva: o
castigo deve servir para convencer o criminoso de que o crime não compensa.
Após esse pequeno percurso prévio, vamos às ideias desenvolvidas pela Escola
Clássica. Nesse ponto, o leitor poderá valorar a importância do pensamento de Bec-
caria e Bentham para edificar os argumentos sustentados pelos teóricos vinculados
à Escola.

3.3. A (Criminologia) da Escola Clássica

3.3.1. O contexto histórico


Uma parcela da literatura científica considera que “a história da Criminologia fi-
caria gravemente truncada se não se estendesse à escola clássica”126. Isso porque se deve
a essa, pela primeira vez, ao menos se consideramos o maior comprometimento com a
questão criminal, uma reflexão sistemática sobre o problema do crime127. E seria jus-
tamente essa sistematicidade que permitiria identificar a Escola Clássica como início
da nova ciência e, ao mesmo tempo, impediria de se falar de pensamento criminológi-
co antes da Escola Clássica128. Essa escola, entretanto, e isso se perceberá logo adiante,
fornece as bases para uma visão jurídica da questão criminal; por isso, identifica-se
muito mais com uma consequência de um programa político-criminal sobre a crimi-
nalidade do que com uma Criminologia clássica129. Para não incorrer em lacunas, mui-
to embora esse marco científico pareça-me equivocado, passo à análise da escola130.
A Escola Clássica tem suas origens nas doutrinas da antiga filosofia grega, a
qual sustentava ser o delito afirmação da justiça, desenvolvendo-se ao longo da
segunda metade século XVIII como uma corrente de pensamento que rea-
ge contra as arbitrariedades do ancien regime para garantir os direitos do

126. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 5-6.
127. Pavarini considera essa perspectiva um tanto quanto reducionista, eis que a atenção científica resta
direcionada apenas a um grupo diminuto de autores, a exemplo de Beccaria, na Itália; Bentham, na
Inglaterra e Hommel, na Alemanha. Segundo ele, “la producción criminológica del liberalismo clásico
debe, por lo menos, comenzar por las obras de Hobbes y puede ser comprendida sólo a través de una
lectura que recorra transversalmente todo el pensamiento político-filosófico de los siglos XVII y XVIII”.
cf. Pavarini, Massimo. Control... Op. cit., p. 28.
128. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 6.
129. Nesse sentido Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Introducción…Op. cit., p. 611.
130. Cf. igualmente: Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 35 e ss.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

indivíduo, o que influenciará todo o movimento codificador humanitário


que se seguiria no século XIX. Sobre esse contexto no qual surge a Escola Clássica,
como bem ressalta a literatura científica, há uma reação contra o sistema bárbaro
de lei, punição e justiça que existia antes da Revolução Francesa de 1789. Àquela
altura histórica, não havia um verdadeiro sistema de justiça criminal na Europa; o
princípio da legalidade – tal como o concebemos – não existia, razão pela qual os juí-
zes tinham poder discricionário para condenar uma pessoa por um ato nem mesmo
legalmente definido como criminoso. Os monarcas, por sua vez, costumavam emitir
o que se chamava em francês lettres de cachet, segundo as quais um indivíduo pode-
ria ser preso por qualquer motivo ou, inclusive, sem motivo algum131. Justamente
por isso, essa escola é caracterizada por ter projetado “sobre o problema do crime
os ideais filosóficos e o ethos político do humanismo racionalista”132 como tentativa
de aplicar a racionalidade e o estado de direito a processos brutais e arbitrários de
justiça criminal133.
Pelas mesmas razões, Lamnek considera a escola clássica um produto da ilus-
tração134 e, por isso mesmo, os autores vinculados a esclarecimento foram filosofica-
mente persuadidos a buscar uma justificativa para o delito e para o castigo135. É de
se questionar, entretanto, se houve um objetivo verdadeiramente humanitário ou
se, ao revés, embora se tenha alcançado alguma humanização com a racionalização
do castigo, essa limitação ao poder punitivo objetivava garantir o livre desenvolvi-
mento da revolução industrial136. No que diz respeito ao princípio da legalidade, por
exemplo, a ideia de proteção do cidadão do Direito Penal ainda não era a razão do
princípio. Essa era somente conferir aos governantes o maior poder possível frente
os juízes e para isso eram necessárias regulamentações mais exatas137. É verdade que
isso coincidiu com as ideias liberais da ilustração, tendentes à limitação do poder
estatal e que se impuseram nas obras legislativas da pós-ilustração138. A contraface
dessas ideias, entretanto, não nos permite ignorar que esse acervo cultural sobre o
qual os argumentos da Escola Clássica foram erguidos buscava – justamente – fun-
damentar, legitimar e delimitar a imposição do castigo. No fundo, portanto, o que

131. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology...Op. cit., p. 52.
132. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 7.
133. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology...Op. cit., p. 52.
134. Lamnek, Siegfried. Theorien abweichenden Verhaltens I. “Moderne” Ansätze. Eine Einführung für So-
ziologen, Psychologen, Juristen, Journalisten und Sozialarbeiter. 9 Aufl. Paderborn: Fink, 2013, p. 65.
135. Isso não significaria, como ressaltou Anitua, que a problemática política tenha sido incorporada a essa
relação entre entre o delito e o castigo. Assim se geraria uma nova epistemologia do direito penal: a
racionalidade lógica. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias…Op. cit., p. 165.
136. Cf. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias…Op. cit., p. 165 e ss.
137. Denunciando que as leis serviam aos que tinham, pois objetivavam defender a propriedade e não a vida
ou a liberdade, Jean-Paul Marat, em seu livro “Plano de legislação criminal”.
138. Cfr. Burian, Paul. Der Einfluß der deutschen Naturrechtslehre auf die Entwicklung der Tatbestandsde-
finition im Strafrecht. Berlin: De Gruyter, 1970; Roxin, Claus; Greco, Luís. Strafrecht. Allgemeiner Teil.
5 Aufl. Berlin: Beck, 2020, § 5, Rn. 13.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

estava em jogo era a racionalização da estrutura do controle, que havia sido antes
objeto de atenção de Beccaria e Bentham.
E, nesse ponto, vale a precisa descrição da literatura: “muitas leis criminais não
eram escritas e as que haviam sido elaboradas, em geral, não especificavam o tipo
ou a quantidade de punição associada a vários crimes. O devido processo no sentido
moderno não existia. Embora houvesse algum consenso oficial sobre o que consti-
tuía crime, nenhum limite real havia para a quantidade e o tipo de sanção legal que
um tribunal poderia impor. As punições incluíam marcar, queimar, açoitar, mutilar,
afogar, banir e decapitar”139 e seguem “...As punições públicas eram eventos popula-
res. Quando a execução de Robert-François Damiens foi marcada para o 2 de março
de 1757, pela tentativa de assassinato de Luís XV, tantas pessoas quiseram assistir
ao espetáculo que assentos nas janelas com vista para o local da execução foram
alugados por preços elevados. A tortura para obter confissões era comum. Um réu
criminal na França poderia ser submetido ao peine forte et dure, que consistia em es-
ticá-lo de costas e colocar sobre ele um peso de ferro tão pesado quanto ele pudesse
suportar...”140.
É possível que algum leitor esteja se perguntando sobre o porquê desse esforço
de racionalização. A razão, mais uma vez, é denunciada pelo contexto histórico: não
se pode ignorar que o século XVIII é marcado não somente pela modernização das
ideias, senão também pela própria modernização das cidades e da indústria. Entre-
tanto, essa prosperidade econômica, que acentuou as diferenças entre ricos e pobres,
contrastava com as práticas ainda medievais de repressão penal. E isso, no mínimo,
desafiava a intuição dos reformadores do período, afinal, apesar de punições seve-
ras, as pessoas seguiam delinquindo: “tanto a igreja quanto o Estado tornaram-se
cada vez mais tirânicos e usaram a violência para conquistar a violência”141. A virada
sugerida pelos reformadores, então, é tão singela quanto intuitiva: era necessária
uma abordagem mais racional da questão criminal.
A argumentação que se sustentará, então, a partir da segunda metade do século
XVIII, tem como centro de gravidade a razão; essa é o marco distintivo do homem,
que tem o seu próprio destino em suas mãos em razão da sua vontade livre. Se o
crime é racional, a reação da sociedade também precisa sê-lo. Com isso, temos os
dois elementos que compõem a equação para a suavização do castigo142. Vamos ao
desenvolvimento (assimétrico) dessa equação criminológica.

139. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology...Op. cit., p. 53.
140. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology...Op. cit., p. 53 (itálico no original). Fou-
cault, por exemplo, abre o seu conhecido livro “Figiar e Punir” com uma narrativa sobre a execução de
Damiens.
141. Adler, Freda; Laufer, Willian S; Mueller, Gerhard. Criminology...Op. cit., p. 53.
142. Kaiser, Günther. Kriminologie…Op. cit., p. 112, Rn. 6.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

3.3.2. As ideias criminológicas


Curiosamente, a denominação Escola Clássica foi forjada por Ferri, represen-
tante da Escola Positiva. Salvo melhor juízo, ao contrário do quanto asseveram se-
tores da doutrina interna e internacional143, quando Ferri assim a denominou, em
seu discurso sobre os novos horizontes do direito e do processo penal, em verdade,
não parece tê-lo feito em tom pejorativo.144 Disse categoricamente “E foi verdadei-
ramente um edifício de clássica majestade e beleza, que os grandes criminalistas
desde Romagnosi a Filangieri, de Mario Pagano a Pellegrino Rossi, de Carmignani
a Carrara, de Ellero a Pessina, construíram numa poderosa sistematização jurídica,
que dominou os legisladores, a opinião pública e a quotidiana jurisprudência, conti-
nuando ainda hoje a sua influência como pensamento tradicional”145.
Não se pense, no entanto, que essa é uma escola uniforme. Sob esta etiqueta,
clássicos, situam-se representantes com pontos de vista de diversos mati-
zes, inclusive divergentes, mas que guardam entre si concepções convergentes sobre
postulados fundamentais146. Justamente por isso, há quem negue a essa corrente de
pensamento a natureza de verdadeira Escola ou, no mínimo, considere temerário
identificar os seus traços gerais147: por um lado, com as obras dos grandes crimina-
listas trazia-se o estudo teórico da justiça penal às doutrinas filosófico-jurídicas;
por outro, seguindo a escola dos criminalistas práticos dos séculos anteriores, conti-
nuou a corrente crítico-forense destinada apenas a ilustrar e interpretar, com maior
ou menor amplitude sistemática de critérios, os códigos penais vigentes em alguns
países; por fim, uma terceira corrente se formou, a Escola Clássica Penitenciária,
mas sem grande desenvolvimento científico, visto que os criminalistas clássicos não
lhe dispensaram atenção148. Essa falta de homogeneidade é comprovada, segundo
parcela da literatura, por exemplo, no âmbito da teoria da pena, em que os seus re-
presentantes – ao menos os italianos – esgotaram todas as opções: oscilaram desde
concepções moralizadoras até aquelas meramente utilitaristas149.
No âmbito da doutrina brasileira, também há referência à divisão da Escola Clás-
sica. Para Bruno, é possível distinguir duas escolas clássicas: “Uma, sob influência do
Iluminismo, pretendeu criar um Direito punitivo baseado na necessidade social”; nes-
sa vertente estariam Beccaria, Filangieri, Romagnosi e Carmignani. Por outro lado, a
outra vertente clássica, que é a fase definitiva da Escola, “a metafísica jusnaturalista

143. Jimenez de Asúa, Luiz. Principios... Op. cit., p. 46; Souza, Artur de B. Gueiros; Japiassú, Carlos Eduardo
A. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 32.
144. Ferri, Enrico. I nuovi orizzonti del diritto e della procedura penale. Bologna: Nicola Zanichelli, 1886,
p. 1 e ss.
145. Ferri, Enrico. Princípios de direito criminal; trad. Paolo Capitanio. 2. ed. São Paulo: Bookseller, 1999, p. 57.
146. Cfr. Jimenez de Asúa, Luiz. Principios... Op. cit., p. 46.
147. Cf. Jimenez de Asúa, Luiz. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Lousada, 1982, vol. II, p. 34.
148. Ferri, Enrico. Princípios... Op. cit., p. 60.
149. Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Introducción al derecho penal. 5 ed. Madrid: Ramon Areces, 2012,
vol. 2, p. 610.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

invade a doutrina do Direito Penal e vem acentuar a exigência ética da retribuição, na


pena”150. Essa vertente compreenderia os nomes de Carrara e Pessina.
Como se vê, não há unanimidade sobre quais autores se filiam à Escola151. Para
alguns, devem-se incluir também Beccaria, Filangieri, Romagnosi e o próprio Ben-
tham152. No entanto, em que pese esse posicionamento, entendemos que tais auto-
res se vinculam muito mais à Ilustração que a uma determinada Escola. São eles,
em verdade, pré-clássicos153. Por outro lado, não existe dúvida em reconhecer como
caudilhos da Escola Clássica Giovani Carmagnani, Pelegrino Rossi, Emilio Brusa,
Enrico Pessina e Francisco Carrara como seu máximo expoente154.
A par dessa divergência, que está longe de ser inumada e que hoje tem fins me-
ramente acadêmicos, é possível identificar os postulados fundamentais que bastam
para caracterizar e individualizar a Escola. A toda escola clássica subjaz, para além
dos postulados abaixo indicados, duas ideias centrais: 1º) o objetivo do direito e da
ciência criminal é prevenir os abusos por parte das autoridades; 2º) o crime não é
uma identidade de fato, mas sim de direito155, afinal se trará de um conceito jurídico
produzido pela definição que a norma penal realizará sobre um comportamento da
vida humana156. Essas são desenvolvidas nos seguintes marcos:
a) O método. O estudo e elaboração de qualquer disciplina científica precisa de
um método. Os clássicos utilizaram-se do método dedutivo ou lógico-abs-
trato. Nesse, o estudioso, alheando ao mundo fático, toma como ponto de par-
tida um princípio geral e dele retira as consequências lógicas. Por isso, o método
dedutivo deve admitir necessariamente um “a priori”, um pressuposto do qual
se derivam proposições sucessivas157. Como consequência, por meio da sua ra-
cionalidade lógica, a escola clássica simboliza o trânsito do pensamento mágico
ao abstrato158. Aqui vale abrir parênteses para evitar, desde logo, mal-entendi-
dos: não é possível identificar paralelismo entre o método empregado pela esco-
la clássica e aquele que depois seria empregado pelo positivismo jurídico. Com

150. Bruno, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 97 e ss.
151. Há na Criminologia, especialmente aquela de tradição anglo-saxã, tendência a considerar Beccaria,
Bentham e Feuerbach genuínos representantes da Escola Clássica. Cf. Vold, G. B. Theoretical…Op. cit.,
p. 18 e ss. Na Espanha, Serrano Maillo também o faz, cf. Serrano Maillo, Antonio. Introducción…Op.
cit., p. 81 e ss. Com opinião discrepante sobre Beccaria e Howard, Cf. Schneider, Hans Joachim. Krimi-
nologie...Op. cit., p. 92 e ss.
152. Bruno, Aníbal. Direito penal...Op. cit., p. 97. Referindo-se a Beccaria, Bentham, Horward e Feuerbach,
Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie. 5. Aufl. München: Beck, 2016, p. 14, Rn. 2.
153. Cf. Sainz Cantero, José A. Lecciones... Op. cit., p. 124.
154. Bettiol, Giuseppe. Direito penal; trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: RT,
vol I, 1966, p. 12.
155. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 7-8.
156. Rivera Beiras, Iñaki. La Política criminal de las Escuelas del pensamiento criminológico. Intentos in-
tegradores y «luchas de Escuelas». In: Rivera Beiras, Iñaki (Coord.) Política criminal y sistema penal:
viejas y nuevas racionalidades punitivas. Barcelona: Anthropos, 2005, p. 46.
157. Rivera Beiras, Iñaki. La Política...Op. cit., p. 129.
158. Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Introducción…Op. cit., p. 611.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

efeito, como registra a literatura, a diferença entre ambos é o objeto que elegem:
o positivismo elege o direito positivo como único objeto da ciência jurídica, en-
quanto a escola clássica orienta a sua atenção ao direito ideal, racional159.
b) O crime. Fundamentados na fórmula de Carrara, para os clássicos o crime não
é um simples fato, mas sim um ente jurídico. Sua essência nada mais é que uma
relação contraditória entre o fato do homem e a lei. Justamente por isso o crime
é definido como infração, ou seja, ideia de contrariedade entre a conduta huma-
na e o que está previsto na lei.
c) Fundamento da Responsabilidade. A responsabilidade se funda na moral e
tem por base o livre-arbítrio, ou seja, parte do pressuposto de que a vontade hu-
mana é livremente determinada. Livre-arbítrio, conceituava Ferri, significa que
“em frente à contínua e multiforme pressão do meio exterior e ao vário debater-se
dos motivos internos, cabe sempre a simples vontade do indivíduo a decisão, em
último recurso, entre duas possibilidades opostas”160. Este é o novo arquétipo de
ser humano, não mais sujeito às forças divinas, mas sim um sujeito capaz de optar
e decidir; um sujeito capaz de reger o seu próprio destino161. A ideia por trás des-
sas formulações é justamente um dos lemas da tríade defendida pela Revolução
Francesa: a igualdade entre todos os homens (cf. logo abaixo, “e”).
d) Fim da pena. Para os Clássicos, a pena é uma retribuição, uma consequência
da natureza humana, a qual é livre em suas ações e tem a opção entre praticar o
bem ou o mal. Por esta razão, a punição deve ser exemplar, pois estava nas mãos
do homem praticar ou não o crime. Nesse sentido, a teorização se concentra sobre
a gravidade do crime e elaboração de um sistema no qual a pena seja exatamen-
te proporcional ao delito, sugerindo correspondência quase matemática entre o
direito violado e a medida da reação penal. Trata-se, pois, de uma orientação da
pena que se volta para o passado: por que punir? Pune-se porque pecou162.
e) Criminoso. Todos os homens são mentalmente sãos, normais e podem fazer
livremente suas escolhas; alguns optam pelo comportamento em conformi-
dade com as leis, mas outros pela prática do crime. Isso significa não haver
distinção entre o homem delinquente e o não delinquente: todos os homens
são qualitativamente iguais163. Nesse contexto, muitos autores da escola
clássica atribuíam o crime à irracionalidade humana. Ao contrário do

159. Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Introducción…Op. cit., p. 611; Mir Puig, Santiago. Introducción…
Op. cit, p. 175.
160. Ferri, Enrico. Sociologia criminal; trad. Antonio Soto y Hernández. Madrid: Editorial Góngora, 1907, T.
II, p. 3, n. 43.
161. Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Introducción…Op. cit., p. 611.
162. Sobre as teorias da pena, cf. abaixo, Cap. XIII.
163. Trabandt, Helga; Trabant, Henning. Aufklärung über Abweichung. Stuttgart: Enke, 1975, p. 15 e ss
(Band 4 von Kriminalität und ihre Verwalter: Sozialarbeit, Justiz, Polizei: zur Soziologie abweichenden
Verhaltens und sozialer Kontrolle. Ausgabe 4 von Kriminalität und ihre Verwalter).

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

que defenderiam os positivistas, a Escola Clássica é animada pelo princípio


do indeterminismo164 .
Desses postulados fundamentais, vê-se, claramente, que o assoalho filosó-
fico e o postulado-guia da Escola Clássica é o livre-arbítrio: o homem é livre
em suas escolhas e, por isso, é moralmente culpado e legalmente responsável por
seus crimes. A concepção básica, portanto, assenta sobre a liberdade e racionalidade
humana, que são, justamente, a prova da liberdade moral. Nas palavras de Exner, o
ponto de partida é o indeterminismo absoluto (der absolute Indeterminismus): “a
vontade humana é totalmente livre, livre de qualquer condição determinante, assim
que subtrai qualquer importância às disposições e influências ambientais”165. Com
isso, fica fácil compreender a equação burocrática manejada pelos clássicos: o cri-
minoso é um ser normal, dotado de liberdade de ação; é essa ação livre, isto é, ter o
comportamento em suas mãos, que converte o indivíduo em único responsável pela
realização do delito; esse, por sua vez, é a simples violação do direito. Nesse con-
texto, a pena surge na forma de retribuição, como uma expressão da defesa social
pelo mau exemplo. Não faltam autores para questionar essa “homogeneização” da
compreensão do criminoso, que – ao fim e ao cabo – o coloca, sempre, na inflexível
posição de inimigo social166.
Pelas mãos de Carrara, a escola adquire prestígio e alcance no velho continen-
te167. Não por outra razão, a ele é atribuído o mérito de construir um harmônico
sistema clássico de delito, dando corpo a toda a filosofia do direito penal italiano
do iluminismo168. Com ele, chama a atenção a doutrina, o direito punitivo adquire
a dignidade de disciplina coerente, de um conjunto de princípios firmemente dis-
criminados, nos quais a força interior logra imprimir certos marcos de beleza de
expressão um pouco grandiloquente169.
Distanciando-se da concepção contratualista de Rousseau, para Carrara a cons-
trução da ordem social parte do dogma da Criação divina. Realizada por um ser
eterno e infinito, a ordem social está sob o jugo de uma lei suprema que se manifesta
de quatro maneiras: lógica, física, moral e jurídica. Essa lei jurídica que confere direi-
tos aos homens deve ter instrumentos para tutelá-los. Daí porque o crime deve ser
entendido como ente jurídico, como uma infração à lei do Estado. E a pena, quando
aplicada, serviria para tranquilizar e restabelecer a ordem externa na sociedade: o
delito ofende materialmente um indivíduo, uma família ou um grupo de indivíduos,
entretanto, esse mal não se repara por meio da pena. Contudo, o delito ofendeu a

164. Expressão de Souza, Artur de B. Gueiros; Japiassú, Carlos Eduardo A. Op. cit., p. 32; cf. Meier, Bernd-
-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 15, Rn. 3.
165. Exner, Franz. Kriminologie. 3. Aufl. Göttingen: Springer, 1949, p. 30.
166. Dão nota sobre isso, Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 10.
167. Cf. Baratta, Alessandro. Criminologia... Op. cit., p. 35-37.
168. Baratta, Alessandro. Criminologia... Op. cit., p. 35.
169. Soler, Sebastian. Derecho penal argentino; act. Guillermo J. Fierro. 10 reimp. Buenos Aires: tea, 1993,
vol II, p. 384.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

sociedade ao violar as suas leis, ofendeu a todos os cidadãos ao diminuir-lhes, com


o mau exemplo, a confiança na proteção da lei170. Isso é certamente importante do
pensamento carrariano, ou seja, a clara separação entre a responsabilidade fundada
na religião daquela fundada no Direito. Deduzindo o Direito Penal a partir da lei,
estabelece a ideia – ao lado da tese da retribuição e expiação – de tutela jurídica como
fundamento da repressão. O fim último da pena, escreveu Carrara, é o bem social,
representado pela ordem que se assegura ao se proteger a lei jurídica; a emenda do
criminoso, a realização da justiça pode ser uma consequência acessória da pena, mas
não a sua função essencial171.
No âmbito sistêmico, o reflexo do classicismo se perpetua, ainda hoje, em uma
das dimensões da culpabilidade, especificamente no eixo da exigibilidade de con-
duta conforme; vale dizer, é imprescindível reconhecer, no caso concreto, que o
indivíduo teve a opção de comportar-se conforme o direito. A ausência da exigibili-
dade de conduta conforme (leia-se: livre-arbítrio) afasta a culpabilidade.
Curioso ressaltar – e essa é a marca que, mais tarde, a Escola técnico-jurídica
tenta superar – que os clássicos não adotaram o direito posto como ponto de parti-
da, mas, sim, orientaram-se pela razão para construir o direito ideal. Anota Bettiol
que o esquecimento proposital do direito positivo vigente era duplamente justi-
ficado: primeiro, em virtude da desconfiança do direito então vigente, eis que não
partidários das concepções filosóficas e jurídicas por eles [os clássicos] professadas;
segundo, em razão das premissas jusnaturalistas ou contratualistas das quais par-
tiam172. É justamente essa dupla explicação que permite compreender com mais
clareza o típico formalismo da Escola Clássica e o porquê de o crime ser considerado
um mero ente jurídico.
Em modo de síntese, a marca da escola clássica e os seus postulados fundamen-
tais são173:
A. Método racional: transição do pensamento mágico para o pensamento
abstrato.
B. Normalidade do delinquente: o homem no uso da sua liberdade escolheu o
crime; princípio, portanto, qualquer um pode ser tornar um criminoso. Por essa
razão o homem não é o objeto de análise, senão o crime.
C. A irracionalidade do crime: o crime é incompreensível justamente em razão
do mau uso da liberdade.

170. Carrara, Francesco. Programa del curso de derecho criminal; trad. Octavio Béeche y Alberto Gellegos.
Tipografia Nacional: San José, t. II, 1890, p. 30-31, §§ 614-615.
171. Carrara, Francesco. Programa…Op. cit., p. 35.
172. Bettiol, Giuseppe. Direito penal...Op. cit., p. 13.
173. Cf. Lamnek, Siegfried. Theorien…Op. cit., p. 69-70; Trabandt, Helga; Trabant, Henning. Aufklärung…
Op. p. 16.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

D. O enfoque reativo em relação à questão criminal: não se investiga o porquê


do crime, senão o porquê da reação ao crime. A teoria da Escola Clássica é, por
isso mesmo, bastante orientada reativamente e pouco etiologicamente, ou seja,
serve aos princípios da justiça retributiva.
Ao leitor não terá escapado a percepção da seguinte tríade: a Escola Clássica tem
um déficit etiológico; nega a definição de criminoso e também rechaça a valoração
negativa da conduta desviada. Justamente por isso, Lamnek consegue visualizar pa-
ralelismo entre essa escola e o labelling aprroach (abaixo, cap. X, item n. 2)174, entre-
tanto, erra ao estabelecer paralelismo entre o pensamento dos clássicos e o labelling,
o qual não pode ser admitido sequer se fazendo muitas concessões científicas. E isso
porque o pensamento do labelling – que surgirá na segunda metade do século XX –
é um pensamento crítico que põe em xeque toda a Criminologia clássica. A Escola
Clássica não teve, e nem poderia ter, qualquer pretensão crítica, seja pela conjuntura
histórica relatada (acima, excurso) seja pela ausência de instrumental teórico. Pen-
so ser possível ensaiar um argumento para a minha posição teórica: a negativa de
definição do criminoso sustentada pelo labelling é fruto de uma concepção de desle-
gitimação do Direito Penal, ao passo que para os clássicos, a legitimação do Direito
Penal passa justamente pela não distinção entre criminoso e não criminoso. Ao que
se pode concluir: os pensamentos podem até desaguar nas mesmas consequências,
mas os caminhos são completamente opostos.
Da análise do exposto, podem-se extrair muitos méritos da concepção clássi-
ca, bem assim aspectos negativos. Quanto aos pontos positivos, primordialmente,
destaca-se a concretização da luta contra as arbitrariedades das épocas anteriores,
uma tendência à humanização, tomando o homem como referência; e, por fim, o
desenvolvimento e aparecimento da fase científica da ciência penal, contribuindo,
especialmente, para a construção de importantes categorias da dogmática penal,
entre elas, o conceito jurídico de crime. Curiosamente, esse último atributo é, tam-
bém, um ponto negativo na medida em que seus princípios isolam o Direito Penal
da realidade social. Este excesso de formalismo, tão caro ao método abstrato, não
mais se adequava às novas proposições científicas sobre o homem, tampouco desem-
penhava papel de oferecer respostas adequadas à realidade que se descortinava na
última metade do século XIX.
Esta breve notícia da Escola Clássica, em especial do seu método, se não com-
preendo erradamente, impede de reconhecer a típica Criminologia da escola clássica.
Com efeito, o método empírico, marca indelével da ciência, é totalmente distante
e avesso à estruturação clássica. O que verdadeiramente foi revolucionado com as
ideias defendidas no período de apogeu da Escola Clássica – isso sim – foi o Direito
Penal175. Contudo, importante setor doutrinário segue insistindo no pensamento

174. Lamnek, Siegfried. Theorien…Op. cit., p. 70.


175. Cf. Kaiser, Günther. Kriminologie…Op. cit., p. 112, Rn. 6.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

criminológico da escola clássica, aduzindo, como se disse anteriormente, que a


natureza sistemática dessa escola permite identificá-la como início da nova ciên-
cia176. Se se quiser insistir com tal perspectiva, melhor que se diga – como também
indicado – que a Escola Clássica simboliza um primeiro esforço para a construção de
uma Política Criminal conscienciosa, nem mais nem menos.
No final do século XIX, e apesar de todo o potente impacto que o pensamento
da Escola Clássica teve em toda a Europa oitocentista, as ideias de racionalidade e in-
determinismo do crime começam a ser desafiadas. A abstração filosófica promovida
pelos reformadores incomodava aqueles que exigiam explicações materialistas para
o fenômeno criminal. Nesse terreno, fica bastante fácil intuir que o caminho mais
promissor era mudar a atenção do ato para o seu protagonista: o criminoso ou, em
outros termos, a tendência ao delito tem que se manifestar em marcas corporais. Es-
se foi o importante giro de paradigma promovido pelos italianos da segunda metade
do século XIX. Antes de abordar essa questão, deixo breve notícia sobre correntes
teóricas modernas que resgatam as ideias da Escola Clássica, as quais servem para
demonstrar que o progresso científico não exibe uma forma linear, senão pendular.

3.3.3. Propostas atuais177


Atualmente existem perspectivas teóricas que seguem a linha projetada pela
Escola Clássica. Destacam-se duas direções:

1. TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL 2. TEORIA DAS ATIVIDADES


(CLARK E CORNISH)178 ROTINEIRAS (L. E. COHEN E FELSON)179

• Assim como a Escola Clássica, perspectiva o • Considera-se devedora da Escola Clássica


delito como fruto de escolha racional (daí o por também perspectivar o crime como re-
nome Rational Choice Theory), baseada na sultado de escolha racional entre custos e
maximização dos ganhos e minimização dos benefícios. Mas também pode ser considera-
custos. A ideia central é: as decisões que os da devedora da Escola de Chicago por ressal-
delinquentes adotam são uma opção racio- tar como a organização social pode facilitar o
nal, ou seja, não derivam de tendências psi- cometimento de determinados delitos;
cológicas ou sociais;

176. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p 44; Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade,
Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 6; Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. 2. ed. São Paulo:
RT, 2008, p. 75.
177. Sobre estas e outras versões atuais de todas as tradicionais teorias criminológicas cf. Cid Moliné, José;
Larrauri Pijoan, Elena. Teorías criminológicas. Barcelona: Bosch, 2001, passim.
178. Em especial no artigo Clarke, Ronald V.; Cornish, Derek B. Modeling Offenders Decisions: A Framework
for Research and Policy. In: Crime and Justice. Chicago: The University Chicago Press, vol. 6, 1985, p.
147-185. A acomodação desse princípio econômico dentro de uma teoria da interpretação do compor-
tamento humano deve-se ao trabalho de Gary Stanley Becker – “The Economic Approach to Human
Behavior” (1976).
179. Cohen, Lawrence E.; Felson, Marcus. Social Change and Crime Rate Trends: A Routine Activity Approa-
ch. In: American Sociological Review, Vol. 44, No. 4, (Aug., 1979), p. 588-608. Para desenvolvimento
posterior conferir, dos mesmos autores, o livro “The Reasoning Criminal: Rational Choice Perspectives
on Offending” (1986).

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

• Os autores são influenciados por conceitos • Ao circunscrever a análise aos crimes que
da sociologia da desviação, criminologia, exigem contato direto entre o criminoso e
economia e psicologia cognitiva; outro indivíduo (ou alvo), considera que as
• Três são os momentos chaves para com- mudanças nas atividades cotidianas influen-
preender a escolha: o início, a persistência e ciam as taxas delitivas ao produzir, no tempo
a desistência. A partir desses três momentos e no espaço, a convergência de três elemen-
elaboram esquemas para exemplificar como tos: 1. infrator motivado; 2. alvo apropriado;
uma pessoa chega à decisão de delinquir; 3. ausência de vigilância;
• Considerando-se estes três momentos, o de- • Ao mirar a realidade estadunidense de 1947-
lito se realiza quando se percebe que esse é 1974, conclui que a explicação da criminalida-
a solução mais rentável para as necessidades de reside no fato de que as mudanças sociais
do delinquente; estruturais trazem consigo uma mudança das
atividades rotineiras da população180;
• O processo de tomada de decisão varia de
acordo com cada delito, razão pela qual en- • Essa mudança da organização das atividades
tender cada processo decisório permitirá rotineiras produz conjuntamente o aumento
adotar estratégias mais eficazes de enfrenta- de objetivos apropriados (acima n. 2) e au-
mento da criminalidade. sência de vigilância (acima n. 3).

3.4. A escola cartográfica e (a transição para) a fase científica da Criminologia


A denominada escola cartográfica foi de especial importância para a conso-
lidação do método que hoje é empregado pela Criminologia181; não por outra razão
argumenta-se que os estatísticos morais foram fundamentais para o posterior sur-
gimento do que se denominaria Criminologia182. O ponto de partida da estatística
moral – condições sociais e criminalidade – está diretamente vinculado à figura do
belga Lambert Adolphe Quetelet (1796-1874)183.

180. A principal tese apresentada tem como pano de fundo, na palavra dos autores, “[...] o aumento dramáti-
co dos índices de criminalidade dos EUA a partir dos 1960”. Op. cit., p. 598. Apesar de extenso, convém
transcrever o irônico paradoxo conlusivo: “very factors which increase the opportunity to enjoy the
benefits of life also may increase the opportunity for predatory violations. For example, automobiles
provide freedom of movement to offenders as well as average citizens and offer vulnerable targets for
theft. College enrollment, female labor force participation, urbanization, suburbanization, vacations
and new electronic durables provide various opportunities to escape the confines of the household
while they increase the risk of predatory victimization. Indeed, the opportunity for predatory crime
appears to be enmeshed in the opportunity structure for legitimate activities to such an extent that it
might be very difficult to root out substantial amounts of crime without modifying much of our way of
life. Rather than assuming that predatory crime is simply an indicator of social breakdown, one might
take it as a by product of freedom and prosperity as they manifest themselves in the routine activities
of everyday life”. Op. cit., p. 604.
181. Téllez Aguilera, Abel. Criminologia…Op. cit., p. 91. Sobre a contribuição de Quetelet, cf., ainda, Brau-
neck, Anne-Eva. Allgemeine Kriminolgoie. München: Rowohlt, 1974, p. 134-135.
182. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias…Op. cit., p. 281; Serrano Maíllo, Alfonso. Introducción...Op. cit., p. 107.
183. Sobre a discussão referente ao pensamento de Quetelet no cenário alemão, cf. Drobisch, Moritz Wi-
lhelm. Die moralische Statistik und die Willensfreiheit. Leipzig: Leopold Voss 1867; Rehnisch, Eduard.
Zur Orientierung über die Untersuchungen und Ergebnisse der Moralstatistik. In: Zeitschrift für Phi-
losophie und philosophische Kritik, n. 68, 1876, p. 213-264.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

Quetelet, por ser matemático, aproximou-se da disciplina da probabilidade184 e,


a essa recorrendo, acreditava ser possível compreender o comportamento humano
delitivo185-186. Para derivar a explicação estatística do delito187, Quetelet estabeleceu
algumas premissas básicas, a partir das quais seria possível derivar leis gerais ca-
pazes não somente de explicar, como também de predizer o aparecimento de com-
portamentos humanos (delitivos). Noutros termos: ele considerou que leis físicas
poderiam medir o comportamento do homem médio. A partir desse homem médio e da
análise de uma série de casos e vetores, argumentava, as individualidades deixam de
ter relevância e seria possível prever o futuro comportamento humano188. As raízes
desse método de investigação, aponta Eifler, são duplas: por um lado, está associado
ao empirismo inglês que, a partir das ciências naturais, também influenciou as ciên-
cias sociais; por outro lado, nos chamados “movimentos de higiene social” (sozialhy-
gienischen Bewegungen) que surgiram em vista da criminalidade massiva que vem à
reboque da industrialização189.
Partindo dos trabalhos de Condorcet, o fundador da “matemática social”, e de
Comte, que inicialmente descreveu a sua ciência como “física social” e somente de-
pois como sociologia, Quetelet empregou o método estatístico para investigar o que
denominou de “mecânica social”190. Quatro foram as premissas utilizadas por ele191:
1. O delito é um fenômeno social, produzido por fatos sociais detectáveis e deter-
mináveis estatisticamente; isso significa que cada sociedade leva em si mesma
o gérmen do crime;
2. Os delitos são cometidos ano após ano com espantosa regularidade e constância;
os totais se repetem tanto no número de delitos quanto na espécie praticada;
3. Uma série de fatores interfere no cometimento de determinados delitos como,
por exemplo, o clima, a pobreza, a situação geográfica, o analfabetismo, mas
isso não quer dizer que a explicação etiológica seja monocausal.

184. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias… Op. cit., p. 282.


185. Téllez Aguilera, Abel. Criminologia… Op. cit., p. 92.
186. Adverte Anitua que ele colocou os seus conhecimentos a serviço da ordem burguesa, precisamente no
fato de (tentar) demonstrar que a distribuição de determinados acontecimentos, como o delito, que
afetavam companhias de seguro poderiam ser medidos matematicamente. Anitua, Gabriel Ignácio.
Histórias… Op. cit., p. 283.
187. “La estadística...se concibe como la ciencia que tiene como fin el agrupamiento sistemático, para un
tiempo determinado, de hechos de carácter social, con la pretensión de valorarlos numericamente”.
Herrero Herrero, César. Criminología…Op. cit., p. 261.
188. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias… Op. cit., p. 283; Rodriguez Manzanera, Luís. Criminologia… Op.
cit., p. 318-319.
189. Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie. Bielefeld: transcript Verlag, 2002, p. 16.
190. Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie…Op. cit., p. 16.
191. Formulação de Rodriguez Manzanera, Luís. Criminologia…Op. cit., p. 318-319. Cf. García-Pablos de
Molina, Antonio. Criminologia… Op. cit., p. 352-353. O leitor encontrará a formulação original de Que-
telet em García-Pablos de Molina, Antonio. Criminologia… Op. cit., p. 351-352.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

4. Considerando-se a regularidade e a normalidade192 do crime, o método adequa-


do para a investigação do crime como fenômeno social somente pode ser o esta-
tístico.
Essencialmente, portanto, a criminalidade era compreendida – em maior ou me-
nor amplitude – como um fenômeno social. Na descrição de Schneider, para Quetelet
“o homem é produto do seu entrono físico e social e de sua singularidade. A socie-
dade prepara os crimes, o autor é apenas o seu instrumento”. O que chama a aten-
ção, entretanto, foi a sua observação de que, ano após ano, a quantidade dos crimes
mais relevantes se repetia com uma constância significativa. À luz dessa constatação,
ele formulou a sua conhecida tese do “orçamento do crime”: “há um orçamento com
espantosa regularidade. Esse orçamento é o das prisões, das galés e dos cadafalsos”.
Noutras passagens: “Cada associação social produz necessariamente uma determina-
da quantidade e qualidade de crime, que cresce quase como uma consequência neces-
sária de sua organização”193; “Cada ano, os números do anterior se repetem com tanta
fidelidade, que é possível predizer o que nos espera para o ano seguinte”194.
A propensão para o crime era, segundo ele, dependente de fatores como a idade,
o sexo, o trabalho, a educação, o clima e as estações do ano195. No que diz respeito a
esses vetores criminógenos, especialmente o último, Quetelet formulou as conheci-
das leis térmicas, cujo teor é o seguinte196:
1 Lei: No inverno são cometidos mais crimes contra a propriedade que no verão.
Isso se deve ao fato de que a vida é muito mais difícil naquela estação197.
2 Lei: Os delitos contra a pessoa são fundamentalmente cometidos no verão.
Isso se deve ao fato de que as paixões humanas se veem excitadas no calor; lo-
gicamente também se consomem mais bebidas alcoólicas. Enquanto no inverno
as pessoas não pensam em “sair do pé forno” de suas casas, no verão elas pensam
em sair do forno que é a sua casa. Isso implica mais contato social e, consequen-
temente, mais discussões, brigas etc.
3 Lei: Os delitos sexuais se apresentam com maior frequência na primavera.
Esse é um fenômeno que se observa nos animais e na espécie humana não seria
diferente: todos saem na primavera para poder perpetuar a espécie.

192. Essa ideia de normalidade do crime, como veremos adiante, pode ser considerada uma antecipação das
ideias mais tarde defendidas pelo funcionalismo de Durkheim (cf. abaixo, segunda parte, Cap. VII, item
2)., por exemplo; ou mesmo um antecedente das leis da saturação de Ferri (cf. abaixo, item 2.3.3). No
mesmo sentido: Téllez Aguilera, Abel. Criminologia…Op. cit., p. 93-94.
193. Cf. Schneider, Hans Joachim. Kriminologie... Op. cit., p. 98.
194. Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie…Op. cit., p. 16.
195. Schneider, Hans Joachim. Kriminologie... Op. cit., p. 98.
196. Cf. García-Pablos de Molina, Antonio. Criminología…Op. cit., p. 353; Rodriguez Manzanera, Luís. Cri-
minología…Op. cit., p. 318-319; Téllez Aguilera, Abel. Criminología…Op. cit., p. 93.
197. O leitor deve contextualizar essa afirmação e não se esquecer que Quetelet fazia referência ao com-
portamento social do século XIX. Por certo, as dificuldades para sobreviver ao rigor do inverno eram
(muito) superiores às que enfrentamos no século XXI.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

Da conjugação das três leis térmicas, chegaríamos à seguinte representação


gráfica:

O que também precisa ser ressaltado, embora, ao mesmo tempo, seja bastante
intuitivo, é que não é o dado climático, em si, o único responsável pela variação
das curvas, senão o impacto que o clima exerce sobre o social e o individual. O
dado climático interfere não apenas na paixão humana, mas também nos hábitos
e costumes sociais e isso, por sua vez, impacta sobre as espécies e os números de
delitos realizados198, formando uma espécie de física social199. Isso quer dizer que
quanto mais evidentes as diferenças estacionais, mais pronunciadas as curvas de
criminalidade.
Quetelet também se pronunciou sobre a relação entre a criminalidade e a idade.
A propensão para o crime, nesse cenário, atingiria o seu cume entre os 20 e 25 anos
de idade, isso porque as forças psíquicas e as paixões são extremas e a razão não é
suficiente para contê-las200. De modo mais preciso, escreveu Quetelet: “a propensão
criminosa se manifesta na primeira infância e na infância, pelos pequenos furtos
domésticos e, mais tarde, pelo impulso às paixões, aparecem os delitos sexuais; ao
completar os vinte anos, quando a força física completou o seu desenvolvimento,
as paixões e os vícios levam a delitos violentos, como o homicídio. Posteriormente,
a maturidade do juízo influencia e transforma delitos violentos em delitos de astú-
cia (ou oportunidade) e ocorrem, então, os abusos de confiança e as fraudes que se
aproveitam da ingenuidade alheia; ao chegar ao período da decadência física, com
a velhice, o desejo sexual domina entre todas as paixões, ainda que não esgotadas
de todo, e aparecem os abusos contra menores de idade, como última manifestação

198. Cf. García-Pablos de Molina, Antonio. Criminologia…Op. cit., p. 353; Rodriguez Manzanera, Luís. Cri-
minología…Op. cit., p. 319.
199. Ensaio de física social (1835) é, inclusive, o título de uma de suas principais obras. Cf. Anitua, Gabriel
Ignácio. Histórias…Op. cit., p. 283; Téllez Aguilera, Abel. Criminologia…Op. cit., p. 92, nota de rodapé
n.264; Göppinger, Hans. Kriminologie... Op. cit., p. 12, Rn. 9.
200. Schneider, Hans Joachim. Kriminologie... Op. cit., p. 98.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

da força sexual em momentânea eflorescência”201. Graficamente, chegaríamos à se-


guinte representação:

Esse enfoque meramente estatístico do crime permite intuir que Quetelet não
defendia as ideias do livre-arbítrio, senão que era, em certo sentido, um determi-
nista social. Entretanto, diferentemente do determinismo clássico, ele acreditava
que o melhoramento daqueles vetores criminógenos (acima n. 3) poderia efetiva-
mente reduzir o risco do crime202. Ao fim e ao cabo, Quetelet não fez outra coisa
senão tentar implementar na ciência social o mesmo grau de certeza estatística que
as ciências da natureza apresentavam203.
Na França, Guerry foi o principal responsável pela difusão do pensamento
cartográfico. Durante trinta anos ele estudou as estatísticas criminais da França,
Inglaterra e outros países europeus e com elas realizou as primeiras projeções car-
tográficas do crime (as cartas da criminalidade), demonstrando a regularidade de de-
terminados delitos em determinadas regiões204. Juntamente com Lassagne, Gerry
utilizou a estatística descritiva para levar a cabo a descrição dos delitos, as suas di-
versas variáveis e circunstâncias205.
Aponta a doutrina que o principal mérito da escola cartográfica diz respeito
ao legado do método estatístico: para alguns, o único válido para a Criminologia206;

201. Rodriguez Manzanera, Luís. Criminología…Op. cit., p. 320.


202. Daí porque alguns autores o consideram, do ponto de vista social e político, um reformador. Assim
García-Pablos de Molina, Antonio. Criminologia…Op. cit., p. 353. Crítico, Anitua, Gabriel Ignácio. His-
tórias… Op. cit., p. 284.
203. Por isso não causar surpresa o fato de que as pesquisas de Quetelet foram importantes não somente pa-
ra o mundo legislativo, senão também para o mercado de seguros. Destacando essa importância, entre
outros, Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias… Op. cit., p. 284.
204. Serrano Tárraga, María Dolores. Criminología...Op. cit., p. 77.
205. Herrero Herrero, César. Criminología…Op. cit., p. 259.
206. Cf. Rodriguez Manzanera, Luís. Criminologia…Op. cit., p. 320.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

para outros, um método criticável, mas inevitável207. Mas não é somente isso. Se
observamos as considerações de Quetelet e a comparamos com as anteriores pseu-
dociências, é possível identificar uma diferença primordial: ele foi o primeiro a en-
contrar uma explicação social para a origem do comportamento criminoso. Se agora
unimos esses elementos, fica clara a relevância da escola cartográfica para a ciência
criminológica: romper com o modelo explicacional voltado unicamente para o autor
do delito para considerar a criminalidade como fenômeno social; noutros termos,
a escola promove a transição da micro para a macrocriminologia e assenta as bases
para a sociologia criminal (i); aporta a utilização do método estatístico que, como
fundamentado, é o mais utilizado no campo da investigação criminológica (ii).
Curiosamente esse mérito também abriu flanco para a mais contundente crítica
formulada pelos detratores da teoria: ao apostar tudo na estatística, como exclusivo
método de explicação do crime, Quetelet tornou a explicação etiológica do crime
refém do método que apenas expressa uma realidade. Essa redução metodológica
permitiu exageros estatísticos, como, por exemplo, a conhecida fórmula de Kropo-
tkin. Segundo o criminólogo russo, a taxa de homicídios em um determinado local
era resultado da soma da temperatura vezes sete com a umidade multiplicada por
dois [TH = (Tx7) + (Ux2)]208.

3.5. A ruptura do Positivismo Criminológico


O método formalista da Escola Clássica provoca uma reação e, por conseguinte,
favorece o aparecimento de uma nova orientação, a qual foca principalmente no va-
zio explicativo deixado pelos clássicos. Com efeito, em razão do fracasso das ideias
reformistas implementadas pela Escola Clássica, que não haviam conduzido à redu-
ção da criminalidade, não fica difícil imaginar que se formará um caldo cultural pro-
penso à mudança de ideias e ao surgimento de outros argumentos: uma mudança
de tônica “do sistema legal para o delinquente e a penitenciária”209. Há, por assim
dizer, uma transição do pensamento espiritual para o natural. A “criminologia clássica”
estudou o “que” e a Criminologia positivista estudará o “porquê”210. Por isso, fica
fácil intuir que se comparados aos clássicos, os positivistas partem de pressupostos
diametralmente opostos211. Talvez isso derive do fato de que ambas as Criminolo-
gias possuíam finalidades claramente distintas: a Escola Clássica tinha como missão

207. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias…Op. cit., p. 283.


208. Téllez Aguilera, Abel. Criminologia…Op. cit., p. 95.
209. Rothman, David J. The discovery of the asylum (Social Order and Disorder in the New Republic). Revi-
sed Edition. New York: Aldine de Gruyter, 2002, p. 57 e ss.
210. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 90.
211. Ressaltando a influência geral do positivismo, Gramatica destaca as figuras de Lamarck e Darwin; o
sociologismo de Comte; o empirismo de Mill; e em especial o evolucionismo de Spencer. Op. cit., p. 96.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

reduzir a punição medieval por meio da compreensão do sistema legal; o Positivismo


Criminológico reduzir os crimes por meio da compreensão do seu protagonista212.
Costumeiramente, assinalam-se como fatores favoráveis ao aparecimento
do positivismo criminológico:
1) Comprovação da ineficácia das concepções clássicas para a diminuição da cri-
minalidade;
2) Aplicação do método de observação ao estudo do homem;
3) Novos estudos no campo das estatísticas dos fenômenos sociais, em especial a
contribuição de Quetelet, a qual demonstrou regularidade e uniformidade na
quantidade de crimes, pelo que era possível formular leis que os expressavam
com precisão;
4) Novas ideologias políticas, as quais reconheciam que a proteção dos direitos dos
indivíduos havia ultrapassado os limites necessários e sacrificado os interesses
da coletividade213.
Além dos já destacados fatores de florescimento, o desenvolvimento e a difu-
são dessa Escola também se alinham ao crescimento do prestígio das ciências
da natureza e ao fortalecimento do método de exploração no estudo da
natureza humana. Com efeito, o foco no mundo sensível, no mundo fenomênico,
não apenas altera o objeto da investigação, como também o próprio método de in-
vestigação e a percepção sobre o adequado modo de apreensão do objeto de estudo.
E isso parece bastante óbvio porque naquele momento a atenção não mais se volta
para o crime em abstrato, mas sim para o seu protagonista, para o criminoso. A
ação humana não mais se vincula à abstração do livre-arbítrio, doravante ela encon-
trará o seu porto seguro e a sua justificação causal no próprio agente. Isso porque o
homem – na sua trágica faceta da criminalidade – não poderia ser exceção ao dog-
ma da causalidade. E é exatamente este modo de enxergar o fenômeno criminal
que converte o positivismo em Escola responsável pela autonomia científica da
Criminologia 214. Em poucas palavras: com o triunfo do positivismo a Criminologia
surge no cenário como disciplina forjada com os mesmos métodos e instrumentos
das verdadeiras ciências215.

212. Ferri, Enrico. The Positive School of Criminology. Chicago: C. H. Kerr & Co., 1908, p. 9.
213. Grispigni, F. Derecho penal italiano; trad. Isidoro de Benedetti. Buenos Aires: Depalma, 1949, vol. 1,
n.1, p. 124; Sainz Cantero, José A. Lecciones... Op. cit., p. 131; Pavarini, Massimo. Control... Op. cit., p.
43 e ss.
214. Em sentido próximo Kaiser, Günther. Introducción a la Criminologia; trad. José Arturo Rodríguez
Núñez (bajo la dirección de José Maria Rodríguez Devesa). 7. ed., Madrid: Dykinson, 1988, p. 42. Para
Pinatel, a Criminologia se fundou graças aos trabalhos de Lombroso, Ferri e Garofalo. Pinatel, Jean.
Tratado de Criminologia; trad. Ximena Rodriguez de Canestari. 2. ed. Caracas: Universidad Central
de Venezuela, 1984, p. 17. Também ressaltando a importância do positivismo para a constituição da
criminologia Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 16, Rn. 5
215. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 11.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

Como esclarece Ferri, a profunda diferença “entre a Escola Clássica e a Escola Posi-
tiva não está tanto nas conclusões particulares, pelas quais, como veremos em seguida,
se pode estabelecer um acordo[...]. A diferença profunda e decisiva entre as duas
escolas está, portanto, principalmente no método: dedutivo, de lógica abstrata,
para a escola Clássica, – indutivo e de observação dos fatos para a escola positiva”216.
Para os clássicos, como escreveu Ferri em resposta à polêmica com Gabelli, a ciência
“só necessita de papel, caneta e lápis, e o resto sai de um cérebro repleto de leituras de
livros, mais ou menos abundantes e feito da mesma matéria”. Para os positivistas, a
ciência exige que muito tempo seja investido, examinando e avaliando um a um os fei-
tos, reduzindo-os a um denominador comum e extraindo-lhes a ideia nuclear217.
Assim é que a Escola Positiva, ao contrário da Clássica, considera o Direito
Penal como expressão de exigências sociais e, precisamente, como aplicação jurí-
dico-penal dos dados da antropologia criminal, da psicologia criminal, da
sociologia criminal e da Criminologia. Outros cientistas, não apenas os juristas,
tomaram a investigação do fenômeno da criminalidade não em sentido abstrato,
senão também, e, principalmente, no sentido concreto, convertendo o homem cri-
minoso em centro e objeto da investigação científica. E é precisamente essa a razão
para alinhar o nascimento da Criminologia à Escola Positiva, com a inevitável subs-
tituição dos togas pretas pelos jalecos brancos.
Em uma primeira aproximação, portanto, o positivismo nega com veemên-
cia o livre-arbítrio e a liberdade humana como fundamento da responsabili-
dade, por ser o homem determinado em suas ações. Isso porque, como bem assinala
Pavarini, para que se pudesse descobrir as leis sobre o comportamento humano era
preciso que esse fosse determinado. Quem exercia a profissão de criminólogo, por-
tanto, não poderia crer em determinismo social218.
Por essas razões, dada a sua orientação científica, os positivistas serviram-se
do método indutivo ou experimental no estudo do crime, que consiste na utili-
zação dos dados particulares e deles se volta a uma proposição geral que compreende
não somente os casos observados, senão todos os demais que com ele guardam relação
de semelhança219. Na prática, isso fez com que a compreensão do comportamento hu-
mano ficasse vinculado a um paradigma etiológico220, isto é, abriu o caminho para que se
conformasse uma ciência criminológica que explica a criminalidade a partir das cau-
sas e dos fatores221. Formulando em outros termos, “a ação desviante e o homem de-

216. Op. cit., p. 64.


217. Cf. Ferri, Enrico. Polemica. In: Lombroso, Cesare; Ferri, Enrico; Garofalo, R.; Fioretti, G. Polemica in
difesa della scuola criminale positiva. Bologna: Nicola Zanichelli, 1886, p. 67.
218. Pavarini, Massimo. Control... Op. cit., p. 44.
219. Sainz Cantero, José A. Lecciones... Op. cit., p. 129.
220. Este paradigma somente seria posto em xeque a partir da segunda metade do século XX, com as contri-
buições do labelling approach (cf. abaixo, cap. X, item 2).
221. Cf. acima, item 1.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

linquente são, pois, realidades naturais e não efeitos de um processo político criminal
que define certo comportamento humano ou certo sujeito como criminoso”222.
A criação da Escola Positiva atribui-se a Cesare Lombroso, com desenvolvimen-
tos de Raffaele Garofalo e Enrico Ferri, esses considerados a trindade do positivis-
mo criminológico. Há, entretanto, outros autores que também contribuíram para
a difusão da Scuola Positiva, como Giulio Fioretti, Scipio Sighele. Na Espanha são
mencionadas as figuras de Dorado Montero, R. Salillas e Bernaldo de Quirós223. No
Brasil, destacaram-se as figuras de Nina Rodrigues e Viveiros de Castro224.
Há, claramente, três orientações na Escola Positiva:
1) Antropobiológica (para alguns autores apenas antropológica), representada
por Lombroso;
2) Sociológica, cujo principal expoente é Ferri; e
3) Jurídica, cuja principal figura é Garofalo.
Em todas elas – essência de uma biologia criminal predominante à época – há
um sistema causal-explicativo edificado pelo comportamento criminal de um lado
e hereditariedade e anomalias do outro. Essa anormalidade somática é a conditio
sine qua non para a existência do crime. Esse modo de compreensão do fenômeno
criminal arregimentou um grande número de adeptos, a exemplo de Morselli, Pu-
glia, Ottolenghi, Frigerio, Laschi, Marro, Zuccarelli, Rossi, Fioretti, Sighele, Tar-
nassi, Virgilio, Fornasari di Verce, Antonini, Ferrari225. Os dois principais veículos
de divulgação das ideias da nova escola foram a revista “Archivio di psichiatria,
scienze penali ed antropologia criminale”, fundada por Lombroso e os seus co-
laboradores em 1880, e a revista “Scuola positiva nella giurisprudenza civile e
penale”, fundada em 1891 por Ferri, Lombroso, Garofalo e Fioretti.
Como advertência, cumpre deixar em evidência que não raramente a Escola Po-
sitiva tem sido duramente criticada. Parte disso deriva, sem dúvida, do arriscado
parâmetro de valoração das “descobertas” da Escola a partir do arcabouço científico
hoje disponível, ou seja, os estudos são avaliados com as lentes de um cientista do
século XXI, e não com as devidas concessões que obrigatoriamente devem ser feitas
a um pensamento gestado dois séculos antes. Por outro lado, as apreciações também
derivam da falta de leitura direta, ou leitura distorcida, das obras dos positivistas
italianos226. O que parece ser extreme de dúvida e, no mínimo curioso, se se tem em
mente a avalanche de críticas negativas levantadas contra a Escola, são as muitas

222. Pavarini, Massimo. Control... Op. cit., p. 44.


223. Sobre essas e outras referências, cf. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 316 e ss; Téllez Agui-
lera, Abel. Criminologia…Op. cit., p. 140 e ss.
224. Cf. abaixo, cap. III, item n. 1.1.
225. Hering, Karl-Heinz. Der Weg…Op. cit., p. 28.
226. Isso foi ressaltado no prefácio à edição brasileira de “O homem criminoso”.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

propostas dos positivistas italianos que perduram até hoje, seja no campo epistemo-
lógico ou no metodológico227. Parcela da literatura científica, entretanto, reconhece
que “a escola representou um salto qualitativo no tratamento do crime”228.
Os objetivos da Escola Positiva italiana e sua justificativa, por assim dizer, são,
portanto:
1) Objetivos: sistematização e a demonstração da necessidade de aproximar a ciên-
cia do indivíduo;
2) Por quê?: atmosfera científica dos fins do século XIX, é dizer, um ambiente
que pretendia converter todo o conhecimento científico em saber empírico.
Nas palavras de Exner, “a escola italiana, enraizada no materialismo cientí-
fico-natural, é filha de seu tempo” 229.
Após essa primeira aproximação marginal, parece-me importante, desde agora,
fixar alguns pontos de distinção entre a Escola Clássica e a Escola Positiva. Os por-
quês do antagonismo descrito abaixo, assim espero, estão estampados nas páginas
que se seguem. Vejamos230:

Distinto Enquanto a Escola Clássica tinha o delito como ente jurídico abstrato, o positivis-
enfoque no mo criminológico compreendia como um fato real, natural, empírico, histórico e
estudo da concreto.
criminalidade

Em razão da orientação garantista, a Escola Clássica consentia com a definição legal


Diferente de delito, enquanto os positivistas entendiam que a essência do crime não se esgo-
concepção taria com a violação da norma jurídica, senão que havia a necessidade de elaborar
do delito um conceito natural de delito, de base sociológica como sinônimo de comporta-
mento antissocial.

Para os clássicos, o binômio de estudo era delito-pena; para os positivistas, não


Estudo
havia delito, senão delinquente. Daí porque volta os olhos para o autor do fato e não
da figura
para o fato mesmo. Dosagem do castigo deve ser mensurada pela periculosidade do
do criminoso
agente e não pela gravidade do fato.

A Escola Clássica assentava suas bases sobre o princípio do indeterminismo; a Escola


Determinismo
Positiva, sobre o determinismo.

O positivismo eleva a defesa social como fator essencial de fundamentação da pena


e deixa de lado a prevenção geral em favor da prevenção especial guiada por um
Defesa
sistema de medidas e tratamentos de readaptação do criminoso. Se para os clás-
da prevenção
sicos a pena se volta para o passado (pune-se porque pecou) as teorias defendidas
especial
para os positivistas se orientam para o futuro: trata-se de utilizar a pena como um
instrumento que permita evitar o delito (pune-se para que não se peque).

227. Serrano Maíllo, Alfonso. Introducción... Op. cit., p. 109, p. 113, nota de rodapé n. 113.
228. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 11.
229. Exner, Franz. Kriminologie... Op. cit., p. 29.
230. Estruturado conforme García Pablos de Molina, Antonio. Tratado…Op. cit., p. 370 e ss.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

Veja-se, portanto, que o positivismo tem estratégias muito evidentes de abor-


dagem científica: os métodos das ciências naturais podem e devem ser aplicados ao
mundo social (i); a base do nosso conhecimento do mundo (nossa epistemologia)
são dados derivados da observação (ii); a base do conhecimento científico são "fatos"
coletados desapaixonadamente pelo cientista (iii); os fatos devem ser diferenciados
dos valores (iv); o método central envolve a coleta de dados, o desenvolvimento de
hipóteses e o teste desses para verificação ou falsificação (raciocínio hipotético-
-dedutivo) (v)231. Essa estratégia científica desembocará nas seguintes exigências
teóricas fundamentais da escola: negação do livre-arbítrio; princípio do determinis-
mo; previsibilidade dos fenômenos humanos, esses reconduzíveis a uma lei causal;
utilização do método indutivo; reivindicação da neutralidade axiológica da ciência;
separação entre a ciência e a moral232. Esquadrinhadas essas precisões e distinções
básicas, que logo adiante ficarão justificadas e compreendidas, é possível passar à
análise de cada uma das fases do positivismo criminológico italiano233.

3.5.1. Fase antropobiológica: o sistema de Lombroso


A primeira expressão da “nova” orientação foi o médico e antropólogo Cesare
Lombroso (1835-1909)234. Partindo da observação empírica, suas proposições cau-
sam uma ruptura com o paradigma estabelecido pelos Clássicos, especialmente no
tocante ao criminoso. Além das diversas e preciosas contribuições, seu nome está re-
gistrado na história da Criminologia, ciência cuja paternidade lhe é atribuída235-236.
Creio que a observação de Gina Lombroso-Ferrero, ao escrever que “para o meu
pai a ciência não era uma arte, mas sim uma missão; e por esta razão ele pôde se
atrever em tantas e importantes tarefas, porque os problemas com os quais ele se
deparou não foram ditados pelo desejo de progresso, mas sim pela necessidade so-
cial...”237, é um importante alerta para que se investigue o que há de mito e o que há

231. Observações de Bottons, em Newburn, Tim. Criminology…Op. cit., p. 131.


232. Cfr. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 12.
233. São mencionados, ainda, como fundadores da Escola Positiva, Franz Joseph Gall, Johann Spurzheim,
J. K. Lavater, Earnest Hooton, Charles Goring. Siegel, Larry J. Criminology. 13 ed. Boston: Cengage
Learning, 2018, p. 141.
234. Sobre vida e obra consultar Jiménez de Asúa, Luis. Lombroso. Buenos Aires: Editorial La Universidad,
1944; Castiglione, Teodolindo. Lombroso perante a criminologia contemporânea. São Paulo: Saraiva,
1962; Wolfgang, Marvin E. Pioneers in Criminology: Cesare Lombroso (1825-1909). In: Journal of Cri-
minal Law and Criminology, vol. 52, n. 4, p. 361-391.
235. Assim Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 17, Rn. 7; Schwind, Hans-Dieter. Kriminologie
und Kriminalpolitik Eine praxisorientierte Einführung mit Beispielen. 23. Aufl. Heidelberg: Krimina-
listik-Verlag, 2016, p. 99, Rn. 2; Hering, Karl-Heinz. Der Weg... Op. cit., p. 48.
236. Esse título, contudo, não é reconhecido por toda a literatura. Argumenta-se que a concepção que tem em
Lombroso o fundador científico da Criminologia seria melhor descrita como um mito. Cf. Lindesmith,
Alfred; Levin, Yale. The Lombrosian Myth in Criminology. In: American Journal of Sociology, Vol. 42,
No. 5 (Mar., 1937), p. 653 e ss.
237. Lombroso-Ferrero, Gina. Weshalb mein Vater Gelehrter wurde. In: Monatsschrift für Kriminalpsycho-
logie und Strafrechtsreform, 1912, B. 8, p. 327.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

de verdade no pensamento lombrosiano. Algo, entretanto, com que somos obriga-


dos a concordar é com a constatação de Wolfgang: provavelmente nunca na história
da criminologia houve uma pessoa ao mesmo tempo tão elogiada e tão condenada
quanto Lombroso238.
Originalidade certamente não é o predicado que deve ser atribuído ao edifício
teórico lombrosiano239. Como ressalta a doutrina, antes dele, Platão e Hipócrates;
Lauvergne e Despine, na França, investigaram crânios criminais e a psicologia do
delinquente habitual; para Lauvergne existe correlação entre a propensão crimino-
sa e o desenvolvimento exagerado do cerebelo; ele também interpreta a hipertro-
fia da mandíbula como estigma de regressão, rebaixando o indivíduo à condição de
primitivo. O belga Morel constrói sua teoria da degeneração: a espécie humana se
perpetuaria a partir de um tipo primitivo ideal que conteria o conjunto dos elemen-
tos de continuidade da raça e qualquer desvio desse esquema corresponderia a uma
degenerescência da nossa natureza. O inglês Prichard assinala o tipo da denomi-
nada moral insanity; segundo ele, os criminosos seriam “loucos morais”, incapazes
de discernir o bem do mal e levados ao crime como a coisa mais natural do mundo.
Finalmente os médicos ingleses descrevem o tipo somático e a índole psíquica do
delinquente habitual. Assinalando-se, ainda, influências de Virchow, na Alemanha;
Broca, na França; e Davis, na Inglaterra240. Anote-se, por fim, que o próprio Lombro-
so reconhece a influência dos três últimos sobre o seu trabalho241.
Na década de deslumbre da antropologia criminal (1890-1900), Lombroso
pretendeu reunir sob o estandarte de uma grande antropologia criminal todas as
disciplinas voltadas ao estudo da delinquência: antropometria criminal, biologia e
etiologia criminais, sociologia e psiquiatria criminais, medicina legal e direito pe-
nal242. É bem verdade que mesmo no período do positivismo triunfante, todo edifí-
cio teórico lombrosiano era séria e duramente combatido; para ficar em um exemplo,
basta rememorar a polêmica em torno do “anjo do crime” (Charlotte Cordey): duran-
te o Segundo Congresso de Antropologia Criminal (1889) Lombroso e Topinard des-
creveram de forma diametralmente oposta o “crânio do anjo do crime”. Para aquele,
um crânio rico em anomalias, platicéfalo, com a fosseta occipital; para Topinard, um
belo crânio, regular, harmônico e com um belo ângulo facial243. Anos mais tarde,
e após longas e calorosas discussões em revistas especializadas, descobriu-se que
o arquétipo do crânio criminoso, objeto de tanta tinta acadêmica, não pertencia a

238. Wolfgang, Marvin E. Pioneers...Op. cit., p. 361.


239. Para alguns precursores, além dos indicados no correr do texto, cf. Darmon, Pierre. Médicos... Op. cit.,
p. 39-44.
240. Mezger, Edmund. Criminologia; trad. José Arturo Rodríguez Muñoz. 2. ed. Madrid: Editorial Revista
de Derecho Privado, 1950, p. 19.
241. Lombroso, Cesare. Über den Ursprung, das Wesen und die Bestrebung der neuen anthropologisch-kri-
minalistischen Schule in Italien. In: ZStW, 1881, n. 1, p. 108.
242. Darmon, Pierre. Médicos... Op. cit., p. 13.
243. Darmon, Pierre. Médicos... Op. cit., p. 14.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

Charlotte Cordey. Ainda assim, as ideias lombrosianas ecoaram em todo o mundo


acadêmico e os crânios assassinos ganhariam destaque internacional.
O sistema lombrosiano apoia-se em três teses centrais244: i. O criminoso diferen-
cia-se dos não criminosos por meio de um sem-número de sinais físicos e psíquicos; ii.
O criminoso é uma variante da espécie humana, um ser atávico (= uma degeneração);
iii. Essa variação é (pode ser) transmitida hereditariamente. É preciso registrar, con-
tudo, que essas linhas reitoras, às quais, aliás, a figura de Lombroso é imediatamente
associada, expressam apenas a primeira fase do seu pensamento. Com o desenvolvi-
mento das suas pesquisas, e especialmente com as contribuições de Ferri, Lombroso
mitiga a sua genuína teoria antropológica chegando a sublinhar, inclusive, a relevância
do momento social no crime245. Passo à análise desses dois momentos.
Lombroso incorpora o método experimental em todos os seus trabalhos – ca-
racterística, aliás, exaltada por Göppinger – derivando da aplicação dessa orientação
a figura do criminoso nato. Examinando o crânio de um criminoso multirreinci-
dente – Vilella – ele encontra uma série de anomalias, especialmente a fosseta oc-
cipital média, e, daí, à vista dessa estranha característica que apresentava o crânio
do criminoso examinado, pensava ter resolvido o problema da origem do compor-
tamento criminoso, formulando a seguinte conclusão: as características do homem
primitivo e dos animais inferiores se reproduzem em nosso tempo. O criminoso se-
ria, no seu sentir, uma variedade particular de homo sapiens caracterizada, especial-
mente, pelos sinais físicos246. A tal fosseta occipital, contudo, não seria encontrada
em nenhum outro criminoso.
Nesse ponto, está clara a influência do pensamento de Darwin. Com efeito, o
atavismo lombrosiano se nutre, sobretudo, da relação entre homem e animais estam-
pada na Origem das espécies (1859) de Darwin. As fortes razões biológicas daquele
momento histórico facilitam o caminho para uma “justificação científica suficien-
temente sólida” que permitisse que os delinquentes (e não seu comportamento) fos-
sem emoldurados como espécie humana primitiva247. Como bem destaca a doutrina,
mais ou menos na época em que as ideias de Lombroso estavam se tornando po-
pulares, Charles Darwin – cujos grandes trabalhos foram publicados entre os anos
– 1850 e 1870 – estava causando impacto substancial no mundo científico com sua
teoria da evolução biológica. Ele propôs que os seres humanos e outros organismos

244. Cfr. Schneider, Hans Joachim. Einführung... Op. cit., p. 14.


245. Adiante destacarei essa mudança de orientação. Cf. Hering, Karl-Heinz. Der Weg... Op. cit., p. 48. Cético
quanto ao significado dessa “mudança de orientação”, pois Lombroso somente reduziu a porcentagem
daqueles criminosos que pertencem à classe dos criminosos natos. Mergen, Armand. Die Kriminologie:
Eine systematische Darstellung. 3. Aufl. München: Vahlen, 1995, p. 75.
246. Seelig, Ernst. Manual de criminologia; trad. Guilherme de Oliveira; revisão Eduardo Correia. Coimbra:
Arménio Amado, 1957, vol. 1, p. 44.
247. Cf. Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 101; cf. Kunz, Karl-Ludwig; Singelnstein, Tobias. Kri-
minologie... Op. cit., p. 45, Rn. 9; Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 17, Rn. 8; Schneider,
Hans Joachim. Einführung... Op. cit., p. 14; Schwind, Hans-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 109, Rn. 34.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

vivos contemporâneos eram produtos finais de longo processo evolutivo governado


por regras como a seleção natural e a sobrevivência do mais apto. Lombroso, então,
adaptou os elementos da teoria de Darwin para sugerir que traços comportamentais
primitivos sobreviveram nas populações humanas atuais248. Ainda segundo Schmal-
leger, o próprio Darwin propôs essa ideia quando escreveu: “Com a humanidade,
algumas das piores disposições que ocasionalmente sem qualquer causa atribuível
aparecem nas famílias, podem talvez ser reversões a um estado selvagem, do qual
não somos removidos por muitas gerações”249. Em termos gerais, portanto, tinha-se
o arsenal conceitual necessário para desenvolver a concepção segundo a qual o com-
portamento humano está determinado pela biologia.
Lombroso encontrou no Manicômio de Pésaro, em 1871, material humano pa-
ra observação e desenvolvimento de suas investigações e, em pouco tempo, sua obra
“L’Uomo delinquente”, com primeira edição publicada em 1876, alcançaria fama e
reconhecimento mundiais250. A sua tipologia de delinquentes se consolidaria a par-
tir da terceira edição do O homem delinquente; categorizada em seis tipos: o nato, o
louco moral, o epilético (considerados congênitos); o louco, o ocasional e o passional
(considerados não congênitos). Centro-me no primeiro251.
Na quadra do delinquente nato, insere-se o capítulo mais polêmico da teoriza-
ção lombrosiana, é dizer, a ideia de condicionamento biológico como fator etiológico
do crime. Segundo pesquisas do médico de Turim, os estigmas do criminoso nato
(expressão criada por Ferri) consistiriam em particularidades da calota craniana,
particularidade no desenvolvimento do cérebro, corpo assimétrico, grande enver-
gadura dos braços, queixo quadrado e proeminente, pouca barba, orelhas em abano
etc. Como características psíquicas, mencionava analgesia (sensibilidade dolorosa
diminuída), crueldade, aversão ao trabalho, tendência à superstição e à tatuagem
etc. Tais particularidades, isso merece destaque, seriam comuns em toda a
parte do mundo, ou seja, o criminoso nato inglês era como o chinês ou ita-
liano, razão pela qual haveria o criminoso nato universal252.
Como já antecipado, a ideia de considerar o delinquente como ser atávico pro-
duto da regressão a estados primitivos da humanidade é o núcleo da construção do
criminoso nato. O criminoso nato seria uma variedade humana que reproduz as ca-
racterísticas próprias dos seus antepassados em linha reta até os animais. Os delin-
quentes e não delinquentes se distinguiriam entre si em virtude de uma rica gama
de anomalias ou estigmas de origem atávica ou degenerativa. Aqueles como espécie

248. Cf. Newburn, Tim. Criminology…Op. cit., p. 130; Schmalleger, Frank. Criminology today…Op. cit., p. 87.
249. Schmalleger, Frank. Criminology today…Op. cit., p. 87.
250. A primeira edição da obra, em 1876, tinha apenas 252 páginas. Na última edição, três volumes e o total
de 1.908 páginas. Cfr. Schwind, Hans-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 103-104, Rn. 15.
251. Para referências às outras categorias cf. Garcia-Pablos de Molina, Antonio. Tratado…Op. cit., p. 376 e ss;
Rodríguez Manzanera, L. Criminologia…Op. cit., p. 258 e ss.
252. Mannheim, Hermann. Criminologia comparada; trad. J. F. Faria Costa e M. Costa Andrade. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, vol. I, p. 320.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

sub-humana ou espécie distinta e inferior ao Homo sapiens253. Sintetiza Rodríguez


Manzanera254 algumas de suas características biológicas, psicológicas e sociais:

1. Grande frequência de tatuagem, em sua maioria obscena.


2. Pouca sensação de dor (analgesia).
3. Indiferença.
4. Intenções suicidas.
5. Instabilidade afetiva.
6. Narcisismo.
7. Vingança e crueldade.
8. Hedonismo (jogo, sexo, álcool, orgias...).
9. Sua periculosidade se comprovaria pela alta reincidência e tendência a associar-se com outros
criminosos para formar bandos, seguindo códigos de conduta muito estritos entre as leis que o
regem, a exemplo da lei do silêncio.

Para além daqueles sinais psíquicos indicados na síntese de Manzanera, destaca


Seelig: “sensibilidade dolorosa diminuída (em virtude disso grande tendência para
se deixar tatuar), crueldade, leviandade, aversão ao trabalho, instabilidade, desper-
tar precoce do instinto sexual, vaidade, tendência para a superstição e para os meios
primitivos de entendimento”255.
Em relação à descrição da fisionomia dos delinquentes Lombroso foi detalhista.
Sobre a fisionomia dos estupradores, por exemplo, descreveu: “o olho é cintilante,
a fisionomia delicada, os lábios e as pálpebras volumosos; em maioria são frágeis,
às vezes disformes”. “Os matadores e os ladrões arrombadores têm cabelos crespos,
crânios deformados, fortes mandíbulas, enormes zigomas, e frequentes tatuagens;
são cobertos de cicatrizes na cabeça e no tronco”. “Os homicidas habituais têm olhar
vítreo, frio, imóvel, algumas vezes sanguíneo, e injetado; o nariz frequentemente
aquilino ou mesmo adunco como o das aves de rapina, sempre volumosos; mandíbu-
las grandes, orelhas longas, largos zigomas, os cabelos crespos, abundantes, escuros.
Frequentemente a barba é escassa, os dentes caninos muito desenvolvidos, os lábios
finos; muitas vezes há nistagmo e a contração unilateral do rosto que mostra os
dentes caninos como uma ameaça”256.

253. Sociedad Española de Criminología y Ciencias Forenses SECCIF, Escuela de Criminología de Cataluña.
El atlas criminal de Lombroso. Valladolid, 2006, p. 6-9.
254. Rodríguez Manzanera, L. Criminologia…Op. cit., p. 261 e ss.
255. Seelig, Ernst. Manual de criminologia... Op. cit., p. 45.
256. Lombroso, Cesare. O Homem criminoso; trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Editora
Rio, 1983, p. 167-168.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

Como se vê, a postura de Lombroso amplia a concepção dos frenólogos, eis que
a sua investigação não se limita à análise do crânio, mas também a outras partes do
corpo humano e aos sinais psíquicos257. Se tivéssemos, entretanto, que nos limitar a
somente duas ideias reitoras do pensamento lombrosiano, essas seriam: i. o cérebro
contém uma base originária para o crime; ii. o criminoso é um representante do es-
tágio primitivo da evolução humana.
A teoria lombrosiana é, sem dúvida, eminentemente antropobiológica, mas, ao
contrário do quanto rotineiramente se afirma, e aqui já se advertiu, as considerações
de causas exógenas e sociais não lhe são alheias. Aliás, não são alheias a nenhuma
das direções positivistas, reconhece Garofalo: “Estamos muito longe de negar influ-
xos de causas exteriores, as quais são as causas diretas e imediatas da determina-
ção, tais como o meio ambiente, físico e moral, as tradições, os exemplos, o clima,
as bebidas, etc; contudo, cremos que existe em todos os delinquentes um elemento
congênito diferencial258”.
O próprio Lombroso, no terceiro tomo da última edição de O Homem Delinquen-
te, ao ocupar-se da etiologia do crime, admite influências meteorológicas e climáti-
cas, culturais, condição social, educação, profissão, inclusive, prisão, todos como

257. O leitor também encontrará uma pequena exposição e crítica às ideias lombrosianas em Aramburu y
Zuloaga, Félix. La nueva ciencia penal (Exposición y Crítica). Madrid: Librería de Fernando Fé, 1887,
p.136-164.
258. Garófalo, Raffaele. La Criminologie. Étude sur la nature du crime et la théorie de la pénalité. Paris: Félix
Alcan Éditeur, 1888, p. 88-89.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

fatores etiológicos, bem assim como força desencadeante do criminoso nato, re-
duzindo essa categoria a número inferior a 35% de todos os delinquentes259.
Oportuno registrar que as formulações lombrosianas não foram adstritas
apenas ao gênero masculino. Com efeito, embora menos conhecida, também é de
especial relevância para a ciência criminológica a obra “La donna delinquente,
la prostituta e la donna normale” (1893), escrita em coautoria com Ferrero260.
Recorde-se o leitor que o material de investigação de Lombroso era fornecido pelas
prisões, nas quais, entretanto, quase não havia mulheres. Lombroso precisava de
uma explicação criminológica, portanto, que fosse apta a justificar não somente a
criminalidade feminina, senão também o porquê de essa ser oculta.
A segunda parte da obra era dedicada à criminalidade feminina. Para eles, o
atavismo feminino aparecia com grande frequência na prostituta. Neste ponto
persiste a diferença para o delinquente nato, ou seja, Lombroso e Ferrero desenvol-
vem a teoria da prostituição como componente equivalente ao crime. Portanto, se o
homem atávico se inclinava para a prática do crime, a mulher estava predisposta à
prostituição. E a degenerescência inerente à prostituta propicia maior inclinação à
morbidez. Salvo melhor juízo, esta concepção decorre das conclusões cranioscópicas
derivadas da relação peso cérebro/capacidade. Como nas mulheres a caixa craniana
tinha menor densidade, restava a prostituição, pois – se comparada ao crime – os
riscos eram menores e o retorno melhor261.
Como era de se esperar, ele também deduz algumas características da mulher
delinquente: ao seu aspecto viril, que a priva da doçura e da graça natural no sexo fe-
minino, soma-se a maior estatura, o maior peso, a assimetria craniana, as anomalias
dentárias262. Sobre a mulher criminosa nata lombrosiana, destaca Darmon: “Na ma-
neira de matar, possuem terrível superioridade sobre o criminoso nato. Cometem o
crime com crueldade requintada e diabólica. É preciso que a vítima sofra e que ela
saboreie a sua morte[...]. É a necessidade de tagarelar, de tornar-se interessante que
faz de toda mulher criminosa uma imprudente nata”263.
Assinala Darmon que a mulher é cruel por gosto de vingança do ponto de vis-
ta psíquico. As mulheres são instintiva e surdamente inimigas entre si. A mentira
alcança na mulher seu mais elevado índice de intensidade. Ademais, carece de leal-
dade e somente concebe a honra por meio do seu senso de pudor: virgindade antes

259. Igualmente Göppinger, Hans. Kriminologie... Op. cit., p. 14, Rn. 16; Kunz, Karl-Ludwig; Singelnstein,
Tobias. Kriminologie... Op. cit., p. 45, Rn. 9. Cf. Hering, Karl-Heinz. Der Weg... Op. cit., p. 48.
260. Sobre a criminalidade feminina cf. abaixo, terceira parte, item n. 1.
261. Lombroso, Cesare; Ferrero, G. La femme criminelle et la prostituée; trad. Louise Meille. Paris: Félix
Alcan, 1896, p. 189 e ss.
262. Aramburu y Zuloaga, Félix. La nueva... Op. cit., p. 141.
263. Darmon, Pierre. Médicos...Op. cit., p. 63.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

do casamento, fidelidade depois. Seu ciúme é congênito. Duas mulheres são amigas
entre si quando têm inimizade comum por uma terceira264.
Como é possível concluir, Lombroso retirou extremas consequências político-
-criminais da sua concepção criminológica. Com efeito, contra o criminoso nato,
eis que inevitavelmente guiado pelo seu impulso criminal, não seria possível impor
punição com finalidade de correção moral. Em razão da sua incorrigibilidade, com
muito mais razão, a ele dever-se-ia impor uma sanção perpétua como medida de pro-
teção social ou a pena de morte como “medida de seleção”265. Seria possível, contudo,
retirar algo positivo desse pensamento lombrosiano ou, ao revés, tudo que foi pro-
duzido serve, apenas, como atestado histórico de um momento da Criminologia ao
qual não mais se deve retornar? É sobre essa questão que o próximo ponto tratará.

3.5.2. Apreciação crítica


Independentemente da avaliação que se pode fazer sobre a obra – especialmen-
te do ponto de vista da questionável validade científica – ela situa-se entre aquelas
(poucas) que marcam uma verdadeira virada mundial na história das ideias penais.
Abreviado o exagero de Nuvolone266, a obra de Lombroso certamente marca o início
de fecundo movimento científico – ainda rudimentar – em torno da questão crimi-
nal. E tem o mérito, sobre isso tem razão aquele autor, de, pela primeira vez, conse-
guir reunir juristas das mais diversas tradições jurídicas.
Sob esse prisma, Lombroso substitui o dualismo metafísico proporcionado pela
Escola Clássica – indivíduo/Estado – por lentes que compreendem o crime como um
fenômeno natural, ancorando o pensamento penal no campo das ciências que com-
preendem o homem a partir da lente sensível267.
É certo, e isto merece destaque, alguns autores consideram que essa investiga-
ção se guia muito mais pela intuição que pela análise. Lembra Mannheim a famosa
descrição lombrosiana de como uma vez segurando o crânio de um conhecido de-
linquente e ponderando sobre a problemática concernente ao crime, deu-se conta
de que, repentinamente, o sol atravessou as nuvens e os seus raios incidiram sobre
o crânio. De súbito ocorreu-lhe a ideia de que a resposta para o fenômeno do crime
estaria no crânio e na sua estrutura anatômica268.
Como parece bastante previsível, não foram poucas as críticas dirigidas ao pai
da Criminologia269. Em verdade, Lombroso teve duros e convictos opositores, in-

264. Darmon, Pierre. Médicos...Op. cit., p. 62.


265. Cf. Seelig, Ernst. Manual de criminologia... Op. cit., p. 45.
266. Para o autor a obra marca o início de um pensamento fecundo que se espraia por todas as nações do
mundo. Nuvolone, Pietro. Lombroso et le droit pénal. In: Cahiers de défense sociale, ano iv, 1977, p. 29.
267. Termo empregado no sentido das ciências naturais.
268. Op. cit., p. 319.
269. Há autores que suavizam essa relevância e consideram Lombroso apenas como o pai da Escola italiana
de criminologia.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

clusive na Itália. Em 1911, Gemelli publica livro intitulado “I funerali di un uomo e


di una dottrina”. A forte carga de significado do título – cuja razão é, seguramente,
a morte de Lombroso, que se dera no ano anterior – é suficiente para comunicar a
opinião desenvolvida na obra, dispensando qualquer apreciação descritiva. Enérgica
reação também foi oposta por Brusa, Stoppato, Mosca e Lucchini; todos esses funda-
mentavam a responsabilidade penal na ideia de livre-arbítrio dos Clássicos270.
Do ponto de vista metodológico, é assinalado que ele cometeu diversos erros
de valoração estatística, seu pobre tratamento dos dados (talvez um equívoco não
tão censurável e voluntário, eis que o desenvolvimento estatístico à época ainda era
muito precário) comprometia um aquilatamento fiável das estatísticas apresenta-
das, daí porque não é equivocado dizer que ele interpretou os dados muito além do
necessário271.
Mesmo com reduzida repercussão em solo germânico272, teve oposição de Baer
e Sommer, por exemplo. Para revisar a teoria de Lombroso, Baer elaborou duas per-
guntas fundamentais, quais sejam: existe criminoso nato?; é ele reconhecível pelos seus
traços exteriores? À primeira pergunta Baer respondeu positivamente, mas à segunda
respondeu negativamente273. Segundo esse autor, não existe comprovação empírica
de que os portadores de estigmas atávicos estejam necessariamente dispostos ao
crime; a uma porque as características numeradas não se encontram em todos os
criminosos, nem nos “verdadeiros”, a duas porque não faltam tais características na
população não criminal. Assim escreveu: “não há particularidade característica no
todo do homem, de cuja existência nós possamos afirmar com alguma certeza que o
portador dessa deformidade individual deva ser um criminoso. Muitos criminosos
[...]não apresentam anomalias na sua constituição corpórea e mental, por outro la-
do, outros indivíduos com acentuados sinais de anormalidade morfológicas jamais
manifestaram inclinação para a vida criminosa”274.
Ainda em solo alemão, Sommer ressaltou a fatal confusão entre duas ques-
tões fundamentais na teoria lombrosiana: se há criminoso nato e se existem

270. Sobre a contribuição de cada um cf. Gramatica, Filippo. Principios de derecho... Op. cit., p. 100-101.
271. Cfr. Bock, Michael. Kriminologie. 4. Aufl. München: Vahlen, 2013, p. 10, Rn. 22.
272. Apesar de ressaltar que a influência das idieas italianas em solo germânico não podem ser infravalora-
das, destaca Ambos: “É certo que a doutrina de Lombroso, ao menos no que se refere à sua radicalidade
em matéria de antropologia criminal (desde disposições criminais hereditárias até elementos consti-
tutivos em nível psicológico do ‘delinquente nato’), foi amplamente rechaçada na Alemanha”. Para um
breve relato sobre a repercussão da antropologia criminal em solo alemão, cf. Ambos, Kai. Criminología
nacional-socialista. Continuidad y radicalización. In: InDret, 1.2020, p. 370 e ss.
273. Cf. Mergen, Armand. Die Kriminologie... Op. cit., p. 75.
274. No original “Es giebt keine charakteristische Eigenthümlichkeit in der Gesammtbildung des Mens-
chen, aus deren Vorhandensein wir mit einiger Bestimmtheit auch nur behaupten können, dass der
Träger dieser individuellen Deformität ein Verbrecher sein müsse. Viele Verbrecher [...] zeigen gar keine
Anomalie in ihrer körperlichen und geistigen Gestaltung, und andererseits haben viele Menschen mit
ausgeprägten Zeichen morphologischer Abnormitäten niemals eine Neigung zum verbrecherischen Le-
ben gezeigt“. Baer, A. Der Verbrecher in anthrophologischer Beziehung. Leipzig: Georg Thieme, 1983, p.
394 (mantive a grafia original).

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

características morfológicas seguras para o delinquente nato. Ao afirmar positiva-


mente pela primeira, é induvidoso que a segunda é negativa275. Exner foi influencia-
do pela perspectiva antropológica, contudo, matizada pelo ponto de vista sociológico
francês. Significativo que seu Kriminologie, até a 2a edição, era denominado de Bio-
logia Criminal (Kriminalbiologie), circunstância por si suficiente para identificar a
influência que a escola italiana teve sobre suas ideias276. Isso não significa, é preciso
pôr acento, que Exner era adepto incondicional das ideias lombrosianas, longe disso.
Com efeito, também foi crítico da teoria do delinquente nato. É categórico ao afir-
mar que o primeiro erro a ser evitado é associar a ambígua expressão predisposição
para o crime (Anlage zum Verbrechen) com a hereditariedade277.
No âmbito germânico, a concreta influência de Lombroso se deu no âmbito da
psiquiatria criminal. Isso ocorreu, esclarece Ambos278, graças a Emil Kraepelin, que
utilizou o conceito de delinquente nato na 7º edição do seu manual Psychiatrie: Ein
Lehrbuch für Studierende und Ärzte279 (1904), e isso fora levado adiante especialmente
pela sua escola de psicologia individual e psiquiátrica (o paradigma de Kraepelin).
Nada obstante, ao eco lombrosiano se opôs a escola de Aschaffenburg280, de orienta-
ção sociológica e psicológica, que rechaçou o conceito de delinquente nato e destacou
o rol dos fatores ambientais (o paradigma de Aschaffenburg)281. A radicalização
das ideias biológico-hereditárias viria anos mais tarde com a ascensão do nacional-
-socialismo282.
Em solo francês também houve resistência às ideias da escola italiana, es-
pecialmente à concepção lombrosiana 283. Gabriel Tarde foi o principal oposi-
tor da teoria do delinquente nato284. Para ele, o fundamental para desvendar a

275. Em Mezger, Edmund. Criminologia... Op. cit, p.27-28.


276. Alertando para a característica meio ambígua de Exner: ora defensor do Estado de Direito ora autor de
afirmações racistas, cf. Ambos, Kai. Criminología...Op. cit., p. 377.
277. Exner, Franz. Kriminologie... Op. cit., p. 111.
278. Ambos, Kai. Criminología...Op. cit., p. 371.
279. Antes disso, Kraepelin já havia dedicado um artigo com positivas impressões do trabalho de Lombroso,
cf. Kraepelin, Emil. “Lombrosos Uomo delinquente“. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswis-
senschaft, 1995, n. 5, p. 669-680.
280. Gustav Aschaffenburg foi o fundador daquela que é considerada, até hoje, a principal publicação alemã
no âmbito da Criminologia, a revista Monatsschrift für Kriminalpsychologie und Strafrechtsreform,
que atualmente leva o nome Monatsschrift für Kriminologie und Strafrechtsreform. Schneider, Hans
Joachim. Kriminalpsychologie gestern und heute. Gustav Aschaffenburg als internationaler Krimino-
loge. In: Monatsschrift für Kriminologie und Strafrechtsreform (MSchrKrim), 87, pp. 170.
281. Ambos, Kai. Criminología...Op. cit., p. 372. Aschaffenburg tem mais de 250 trabalhos científicos
publicados; para um breve inventário sobre a influência das suas contribuições teóricas no campo psi-
cologia criminal alemã, europeia e americana, cf. Schneider, Hans Joachim. Kriminalpsychologie…
Op., cit., p. 17 e ss.
282. Cf. Ambos, Kai. Nationalsozialistisches Strafrecht. Baden-Baden: Nomos, 2020; Ambos, Kai. Crimino-
logía...Op. cit., p. 374 e ss.
283. Ressaltando a resistência francesa Schwind, Hans-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 110-111, Rn. 39-41.
284. Igualmente contrários às ideias de Lombroso, merecem destaque os também franceses Lacassagne e
Durkheim. Ressaltando as ideias de resistência de Lacassagne, cf. Exner, Franz. Kriminologie... Op. cit.,
p. 28-29. Sobre as ideias de Gabriel Tarde cf. abaixo, capítulo IX, item 2.1.1

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

criminalidade é a imitação285. Daí porque, por exemplo, as tatuagens, uma das


marcas do criminoso lombrosiano, são características comuns herdadas do con-
tato de alguns povos com marinheiros, tanto mais raras as tatuagens quanto
mais distância do contato (relação direta)286. Tarde, contudo, deixou um tributo
espirituoso: “Não sei bem o que restará de Lombroso. Eu o comparo ao café que
não nutre, mas que excita e impede que, pelo menos, se morra de inanição. Lom-
broso foi um tônico poderoso” 287.
Nos Estados Unidos, destaca a doutrina americana, as ideias de Lombroso atraí-
ram um círculo de seguidores que expandiu sua visão do determinismo biológico e aju-
dou a estimular o interesse pela antropologia criminal. Para se ter ideia da repercussão
das ideias do médico italiano no novo mundo – e fazendo alguma concessão à boa dose
de exagero que se imprime nesse julgamento – Siegel afirma que ironicamente “a pes-
quisa de Lombroso era mais popular nos Estados Unidos do que na Europa”288.
À evidência, as conclusões de Lombroso também repercutem especial-
mente no modelo de política-criminal a ser adotado para o combate à criminali-
dade289. Como destacado acima, contra o criminoso nato, incorrigível, não caberiam
sanções morais, mas sim preventivas, devendo a sociedade se proteger com aplicação
da pena de prisão perpétua ou de morte. Sendo o autor do fato reconhecido como
criminoso nato, qualquer violação seria suficiente para a aplicação de tais medidas.
Quanto aos demais tipos criminosos, a construção lombrosiana não oferece uma
seta teórica para derivar consequências político-criminais. Mais ainda, como escla-
receu Raine, “sua teoria acabou sendo socialmente desastrosa, alimentando o movi-
mento eugênico no início do século XX e influenciando de modo direto a perseguição
ao povo judeu. O pensamento e o vocabulário das leis raciais criadas por Mussolini
em 1938, que excluíam os judeus das escolas públicas e os privavam de possuir pro-
priedades, têm uma dívida retórica para com os escritos e as teorias de Lombroso”290.
Do ponto de vista da imposição do castigo, então, as consequências são igual-
mente censuráveis. Certamente lembra-se o leitor da severa crítica que os positi-
vistas impuseram à ideia de castigo nos clássicos, qual seja: a de que a habilitação
retributiva do poder punitivo não poderia ancorar-se em uma categoria metafísica,
como o era a do livre-arbítrio291. O positivismo, com argumentos racistas escamo-
teados pelo verniz (aparentemente) científico, daria lugar a outra ideia, (ainda mais)

285. Nesse sentido, cf. Pinatel, Jean. La criminalité dans les différents cercles sociaux. In: Revue de Science
Criminelle et de Droit Pénal Comparé. Paris: Sirey, 1970, n.1, p. 678.
286. Tarde, Gabriel. La criminalité comparée. 8ª ed. Paris: Félix Alcan, 1924, p. 42.
287. Citação em Pereira, José Hygino Duarte. Prefácio do traductor. In: Liszt, Franz v. Tratado de Direito
penal allemão. Rio de janeiro: F. Briguiet e C. 1899, t. I, p. XL.
288. Siegel, Larry J. Criminology...Op. cit, p. 142.
289. Cf. Selling, Ernest v. Lehrbuch der Kriminologie. 2 Aufl. Fachverlag Dr. N Stoytscheff, Nürnberg und
Düsseldorf, 1951, p. 24.
290. Raine, Adrian. A anatomia da violência: as raízes biológicas da criminalidade; trad. Mariza Ritomy Ite.
Porto Alegre: Artmed, 2015, p. 10.
291. Sobre o renascimento das ideias retributivas, cf. abaixo, cap. XIII, item 2.1.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

insustentável, para a fundamentação da imposição do castigo: a (suposta) progno-


se sobre o estado perigoso do indivíduo. Essa nova versão serviria para legitimar
os discursos punitivos raciais nas décadas vindouras, deixando o seu rescaldo ao
longo de todo o século XX.
A par de todas as críticas que sejam lançadas a essa orientação, não se pode ne-
gar o mérito de ter procurado se aproximar do fenômeno criminoso, buscando iden-
tificá-lo, interpretá-lo e explicá-lo. Lombroso, ao reverso de seus predecessores, não
se limitou a especulações metafísicas e abstratas, senão que empreendeu um largo
projeto de análise científica, de investigação e constatação, fato que culminou com
o surgimento da Criminologia292. Não por outra razão, von Hamel, referindo-se aos
dois Cesares, escreveu: “Cesare Beccaria disse ao homem: conhece a Justiça; Cesare
Lombroso disse à Justiça: conhece o homem”293. Dentre outros méritos, reconhece
Seelig, pertence a Lombroso a importância histórica de ter dado, por meio da ob-
servação natural científica do indivíduo criminoso, o impulso para a investigação
criminológica moderna294.
Não é exagero afirmar que as concepções lombrosianas permanecem arraigadas
no consciente coletivo. Não raramente julgamos e condenamos conforme a aparên-
cias. Bem rememora a crença popular – até certo ponto jocosa – de que a culpa está
na cara. Certo que a expressão dá ideia de evidência, não é menos verdade que ela
corporifica o fiat lombrosiano da aparência como espelho da alma e, portanto, reve-
ladora da (maldade) conduta humana. Essa rudimentar intuição de Lombroso será
resgatada, após mais de meio século de descrédito, por “novos” modelos teóricos da
criminalidade de base biológica (cf., especialmente, cap. XVII).
Esquematizando, se bem pudesse resumir a essência do pensamento lombrosia-
no diria tratar-se de perspectiva antropobiológica que considera a etiologia
do crime amalgamada à causalidade humana.
“Não sei bem o que restará de Lombroso...”, ponderou Tarde, e acrescentou: “Eu
o comparo ao café que não nutre, mas que excita e impede que, pelo menos, se morra
de inanição. Lombroso foi um tônico poderoso...”295. A posteridade não foi generosa
com a obra de Lombroso, mas é a esse título que finalizo essa apreciação.

3.5.2.1. Neodeterminismo (Neolombrosianos?)


Ao contrário do quanto se possa imaginar, a concepção de determinação bio-
lógica não é uma absurda hipótese fruto de uma mente maligna. Para se ter uma

292. Para Jimenez de Asúa, ao mesclar uma ciência causal-explicativa, como é a Criminologia, com uma ciên-
cia cultural e normativa, como é o Direito, Lombroso retardou o progresso da Criminologia. Jimenez de
Asúa, Luiz. La ley.... Op. cit., p. 57.
293. Lyra, Roberto. Novíssimas escolas penais. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p. 9.
294. Seelig, Ernst. Manual de criminologia... Op. cit., p. 46.
295. Pereira, José Hygino Duarte. Prefacio. In: Lizt, Franz v. Tratado de direito penal allemão; trad. José
Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C, 1899, t. I, p. XL.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

ideia da repercussão desse pensamento, Leonídio Ribeiro, criminólogo brasileiro,


em entrevista ao jornal Amanhã, Rio de Janeiro, edição de 12 de novembro de 1950,
afirma que os médicos do Congresso Internacional de Criminologia chegaram à con-
clusão de que é possível descobrir e até identificar certos criminosos antes da
prática do delito.
Ainda na mesma linha aparece, na segunda metade do século XX, a genética
do crime com a descoberta do cromossomo assassino XYY. É o que aconteceu com
o caso do francês Daniel Hugon, condenado por haver matado, estrangulada, uma
prostituta de 62 anos. Por vezes, examinado geneticamente, verificou-se a presen-
ça de uma anomalia. Os homens têm o conteúdo cromossômico formado pelo par
XY, em Daniel havia um duplo Y. O mesmo fenômeno genético foi identificado em
Chicago, em 1966, onde um jovem portador do duplo Y, Richard Speck, matou seis
enfermeiras296.
Nesse contexto, as pesquisas em torno do crime e dos cromossomos foram de-
senvolvidas, entre outros, pelos médicos geneticistas Patricia Jacobs e Casey. Como
destaca a doutrina, Jacobs, em um artigo publicado na revista Nature, em 1965, dis-
cutiu um estudo com 197 pacientes de conduta considerada perigosa, encarcerados
em um hospital escocês. Entre esses, a geneticista encontrou 7 homens com um cro-
mossomo XYY, os quais haviam sido condenados 92 vezes em ocasiões anteriores297.
A partir de então, quando o mencionado duplo YY foi descoberto, destaca Mara-
nhão, não faltou quem o identificasse como o gene da delinquência e até pleiteasse a
inimputabilidade criminal para tais agentes criminosos298.
A fronteira das teorias biológicas parece cada vez menos evidente. No ano 2012
a Sociedade Americana de Criminologia publicou mais de uma dezena de investiga-
ções relacionadas à biologia criminal. A edição do New York Times, de 21 de junho
de 2013, publica sugestiva matéria que leva o título “Assassinos por natureza”, em
referência ao livro “The Anatomy of Violence: The Biological Roots of Crime”
(2013), de Adrian Raine299. Ao retomar, em certa medida, a formulação lombrosia-
na e utilizar a neurocriminologia, Raine acredita ser possível encontrar marcos
biológicos para a etiologia do crime; mais ainda, acredita possível o mapeamento
cerebral para a previsão do crime que, segundo ele, em 50% dos casos é (pre)deter-
minado biologicamente. Raine rejeita a escala evolutiva sugerida por Lombroso, mas
acredita que ele estava no caminho certo para uma verdade sublime: a contribuição
genética para o crime. Uma das conclusões a que chega o autor, por exemplo, é a de
que “aspectos biológicos do início da vida podem impulsionar algumas crianças a
serem adultos violentos. Os fatores de risco, como a má nutrição, trauma encefáli-
co devido a agressão na infância e genética estão além do controle do indivíduo; e,

296. Cf. Schwind, Hans-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 117-118, Rn. 10-12.
297. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 533.
298. Ramos Maranhão, O. Citogenética e crime. In: Ciência Penal. São Paulo: José Bushatsky, 1974, vol 2, p. 83.
299. Há uma versão em português citada na nota de rodapé n. 262.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

quanto combinados com desigualdades sociais e com a capacidade anêmica da nossa


sociedade de detectar e tratar potenciais infratores, é provável que essas pessoas
voltem para o crime”300.
Todo esse contexto alinhado desvela que as teorias biológicas, que haviam tido
importância para o nascimento da Criminologia e que, sem embargo, entraram em
queda no segundo quartel do século XX, não estão sepultadas. Com efeito, o cenário
internacional há produzido uma nova lente biológica no âmbito da Criminologia.
Segundo defendem os novos “biologicistas”, os avanços nos estudos das neurociên-
cias301, os neurotransmissores, o estudo do sistema e do ritmo cardíaco aportariam
importantes ganhos no âmbito do estudo da criminalidade (cf. com mais detalhes,
abaixo, cap. XVII).
De tal modo, nos últimos anos, tem-se desenvolvido uma série de modelos teó-
ricos integrados que seriam capazes de incluir diversas variáveis, entre elas a Biolo-
gia, para a explicação da conduta criminal. A atual denominada Criminologia do
desenvolvimento e, inclusive, a Criminologia do curso da vida, por exemplo,
têm reconhecido a presença de variáveis biológicas302. Vale ressaltar, contudo, que
as novas doutrinas consideram que os efeitos de fatores biológicos são indiretos,
ou seja, ainda que possa existir uma inteligência inferior relacionada com a prática
delitiva, o que realmente contribui para a criminalidade é o fracasso escolar, senti-
mentos de frustração303.
Os novos enfoques biológicos teriam como principais características304:

1. Alto nível de sofisticação teórica, técnica e metodológica.

300. “One conclusion I’ve drawn from the research presented in this book is that biological factors early in
life can propel some kids toward adult violence. Risk factors like poor nutrition, brain trauma from
childhood abuse, and genetics are beyond an individual’s control, and when those factors are combined
with social disadvantages and our society’s anemic ability to spot and treat potential offenders, the
odds are that people with these disadvantages will turn to crime”. Raine, Adrian. The Anatomy of Vio-
lence. New York: Pantheon Books, 2013, p. 4-5.
301. Sem dúvida, outro pondo de extrema influência das neurociências é no âmbito da culpabilidade. Relata
Jakobs: o que em dogmática penal é considerado como conduta, o estado corporal conduzido ou suscetí-
vel de ser conduzido, ou seja, a expressão de uma pessoa natural, é tratado (em) pelos resultados da nova
investigação neurológica como produto de processos neuronais que pertencem por sua parte ao mundo
físico casualmente fechado. Contudo, a abordagem dogmática não compreende o objeto de análise deste
livro; o que aparece ao ser humano como sua ponderação racional não é mais que uma consequência de
sua situação neuronal. Cf. Feijoo Sánchez, Bernardo José. Derecho penal de la culpabilidad y neurocien-
cias. Madrid: Civitas, 2012, passim.
302. Cf. Serrano Maíllo, Alfonso. Introducción… Op. cit., p. 250. Sobre esta criminologia do curso da vida, cf.
abaixo, terceira parte, item n. 3.
303. Serrano Maíllo, Alfonso. Introducción… Op. cit, p. 256.
304. Síntese em Serrano Maíllo, Alfonso. Introducción…Op. Cit., p. 256-259.

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Cap. I • NASCIMENTO E DIFUSÃO DA CRIMINOLOGIA

2. Exigem a interdisciplinaridade e a interação de variáveis de natureza heterogênea.


As novas correntes biológicas reconhecem que o comportamento delitivo ou desviado é con-
sequência da interação de fatores de natureza biológica com outros de caráter ambiental. Na
criminalidade, então, vetores biológicos e sociológicos desempenham, juntos, importante papel.
Consequentemente, os efeitos dos fatores biológicos são indiretos.
Isto se traduz pelo fato de (em regra) as novas teorias criminológicas contemporâneas de marca
biologicista (?) se concentrarem na busca de fatores concorrentes da criminalidade.
3. No tocante à Política Criminal, suas propostas são aceitáveis.
As novas posturas sugerem: se o delito é produto da interação de variáveis biológicas e outras
ambientais, devem ser levados a cabo programas de Política social para que, melhorando-se as
condições ambientais, sejam favorecidas interações que não desemboquem no comportamento
antissocial.

Creio que as linhas antecedentes confirmam a hipótese de que a ideia de ras-


trear um código genético para explicar a criminalidade nunca esteve, seriamente,
fora de consideração. As novas tecnologias, especialmente com o avanço das neu-
rociências, instigam e impulsionam novas pesquisas que conduzem, contudo, e em
certa medida, a conclusões próximas às enunciadas no século passado: (co)deter-
minismo biológico (cf. abaixo, cap. XVII).

3.5.3. Fase sociológica: o sistema de Ferri


A segunda orientação do positivismo criminológico, a sociológica, teve em
Ferri seu grande defensor e sistematizador, reconduzindo os principais pontos de
seu pensamento na obra “I nuovi orizzonti del diritto e della procedura penale” (a
partir da 3ª edição, aparecida em 1892, a obra assumiu o título “Sociologia Crimi-
nal”. Essa nomenclatura também apareceu desde a primeira tradução para a língua
francesa). Para muitos, Ferri representa uma das mais importantes figuras da his-
tória da Criminologia305.
Conforme enunciado, os Clássicos baseiam-se em três pontos cardinais: que o
delinquente é dotado do livre-arbítrio; que tem os mesmos sentimentos e ideias,
como qualquer outro; que o efeito principal da pena é impedir o aumento da crimi-
nalidade. O contraponto a essas ideias deriva do avanço nas ciências experimentais:
1) a psicologia jurídica demonstrou que o livre-arbítrio é uma ilusão metafísica;
2) a antropologia demonstrou que o criminoso não é um ser humano normal, mas
constitui-se de uma classe especial, que pela anormalidade física e psíquica
apresenta um retorno atávico às raízes selvagens, em que as ideias de justiça,
moralidade, honestidade, quando existem, estão em estado embrionário;

305. Pinatel, por exemplo, divisa a Criminologia em “antes” e “depois” de Ferri. Em concreto, considera Ferri
o fundador da Criminologia. Pinatel, Jean. Tratado... Op. cit., p. 113.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

3) e, por fim, que a estatística prova que aumentar e diminuir os delitos depende
de outras causas, que não somente as penas previstas nos códigos e aplicadas
pelos magistrados306.
Disso se infere, portanto, que os aportes de Ferri não se limitam à negação do
livre-arbítrio, senão, e principalmente, apoiaram-se em dados obtidos pela aplicação
do método experimental e estatístico de outras ciências. Em razão dessa dialética
científica, ele formulou a lei da saturação e relacionou o crime, para além dos fato-
res biológicos, com os fatores sociais e físicos, ampliando o horizonte de compreen-
são do modelo proposto por Lombroso307.
Os fatores criminógenos, segundo Ferri, seriam de ordem antropológica, mas
também de origem física e social:
1) Fatores de ordem antropológica – aqueles relacionados com a constituição orgâ-
nica, psíquica, características pessoais (idade, sexo, por exemplo) e condições
biológico-sociais (como estado civil, profissão, educação);
2) Fatores de ordem física (ou cosmo-telúrico) – relativos ao meio físico, é dizer, clima,
natureza, sucessão dos dias, temperatura, condições atmosféricas, entre outros;
3) Fatores de ordem social – relacionados com o meio social onde vive o indivíduo, a
exemplo da densidade populacional, religião, família, organização econômica e
política.
O próprio Ferri fornece um quadro síntese das teorizações anteriores sobre a
origem do crime. O delito é um fenômeno de308:

a) Biológica (Albrecht)
Normalidade
b) Social (Durkheim)
a) Atavismo:
Anormalidade
• Orgânico e psíquico (Lombroso, Kurella)
biológica por
• Psíquico (Colajanni)
b) Patologia de:
• Neurosis (Dally, Minzloff, Maudsley, Virgilio, Jelgersma, Bleuier)
• Neurastenia (Benedikt, Liszt, Vargha)
Anormalidade • Epilepsica (Lombroso, Lewis, Roncoroni)
biológica por c) Degeneração (Morel, Sergi, Féré, Zuccarelli, Magnan, Corre e Laurent)
d) Defeito nutricional do sistema nervoso central (Marro)
e) Defeitos de desenvolvimento de centros inibidores (Bonfigli)
f) Anomalia moral (Despine, Garofalo)

306. Ferri, Enrico. I nuovi orizzonti del diritto... Op. cit., p. 5-6.
307. Cfr. Schwind, Hans-Dieter. Kriminologie... Op. cit., p. 110, Rn. 37.
308. Ferri, Enrico. Sociologia criminal; trad. Antonio Soto y Hernández. Madrid: Centro Editorial de Góngo-
ra, [s/d], p. 121. (itálicos no original)

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