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Belo Horizonte
2004
Editora Newton Paiva
SUMÁRIO
Apresentação
Introdução
Conclusão
Referências Bibliográficas
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APRESENTAÇÃO
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poucos textos inteligentes, publicado no Brasil, de revisão teórica da bibliografia
internacional sobre o tema, ainda nos anos 80. Paixão, como Beato, foi orientando do
também mineiro Edmundo Campos Coelho – um dos poucos sociólogos brasileiros daquela
época (de meados dos anos 70 ao final dos 80) que não retirou a “criminalidade” do seu
objeto em proveito da “violência urbana”. Tratou de ambas sempre com a atenção voltada
para as reviravoltas da sociologia norte-americana nessa e em outras áreas e praticamente
definiu boa parte da agenda que domina a discussão ainda hoje.
Há atualmente três ou quatro abordagens principais da temática do crime na
sociologia mundial: uma que continua positivista, e que busca as causas (ou denunciar
falsas causas, na certeza de que há as verdadeiras); outra, pragmática, que retoma a
tradição clássica (de Beccaria a Bentham e Mandeville) e não vê razões para diferenciar o
criminoso de qualquer outro ser humano e que se interessa mais pelo crime do que pelo
criminoso. Desloca, portanto, o objeto seja para o cálculo do custo/benefício do crime
(racional choice), incluindo inclusive o próprio apelo sedutor que o crime pode exercer
sobre quem o experimenta; ou seja para as oportunidades que as atividades de rotina da
vítima criam para as atividades de rotina dos criminosos.
Há, finalmente, as abordagens críticas, estruturalistas, interacionistas ou
etnometodológicas – geralmente de tipo construcionista, que pretendem compreender como
se dá concretamente a construção social do crime numa determinada sociedade, como
eventos se tornam crimes e seus autores, criminosos. Enfatiza-se aqui, como faço em meus
estudos, abordagens em quatro níveis analíticos interconectados: 1) a criminalização de um
curso de ação típico-idealmente classificado como “crime” (através da reação moral à
generalidade que define tal curso de ação e o põe nos códigos, institucionalizando sua
sanção); 2) a criminação de um evento, pelas sucessivas interpretações que encaixam um
curso de ação local e singular na classificação criminalizadora; 3) a incriminação do
suposto sujeito autor do evento, em virtude de testemunhos ou evidências
intersubjetivamente partilhadas; 4) a sujeição criminal, através da qual são selecionados
preventivamente os supostos sujeitos que irão compor um tipo social cujo caráter é
socialmente considerado como “propenso a cometer um crime”.
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Neste excelente estudo, Carlos Magalhães examina com perspicácia e originalidade
o fio da meada que leva de Durkheim e sua ainda hoje polêmica tese sobre a normalidade
do crime até aos pragmáticos autores da “teoria das atividades rotineiras”, como Cohen e
Felson, que desprezam a tradicional discussão das “causas” e procuram produzir
explicações ao alcance de formulações práticas. Ao expor, sempre com uma clareza que
não perde o rigor e a visada crítica, os argumentos de James Wilson sobre a incapacidade
das teorias sociológicas de encontrarem aplicação nas políticas públicas, Carlos não deixa
de observar as limitações dessa abordagem e suas implicações pragmáticas para certo tipo e
não para outro de políticas públicas. Expõe e examina desde o velho e bom Merton, que
modestamente chamou sua ambiciosa explicação de “teoria de médio alcance” até o
conhecido livro de Gottfredson e Hirschi intitulado, sem qualquer modéstia ou muita ironia,
de “teoria geral do crime”.
Leitura quase sempre leve, prazeirosa e de muito proveito, este é um livro que
revigora o interesse pelas questões teóricas e pela atualidade do debate entre diferentes
correntes ao mesmo tempo que convida o leitor especializado a se interessar mais pelo
estado das questões em outras paragens que não apenas a nossa, até mesmo para evitar cair
na tentação de usar um autor ou um modelo de explicação sem que suas limitações
intrínsecas, no geral e para o caso brasileiro, estejam sob o seu controle crítico.
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INTRODUÇÃO
que tratam dos problemas do crime e da delinqüência a partir de uma preocupação básica:
perspectiva. Uma boa maneira de iniciar esta discussão é considerar o trabalho clássico de
Robert K. Merton “Social problems and sociological theory” (1966). Merton menciona
modificação das coisas. Não é o caso de dizer, segundo Merton, que a dimensão teórica é
mais ou menos nobre que a dimensão aplicada. O que existe é uma divisão intelectual do
dos aspectos do trabalho científico, outros transitam entre eles e uns poucos seguem um
caminho que estaria entre as duas fronteiras: de uma lado o trabalho teórico e, de outro, o
aplicado. Uma abordagem sociológica dos problemas sociais pode se dar dessa forma. Uma
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tentativa de compreender sociologicamente os problemas sociais, descobrir suas causas e
descrevê-los, que envolve a preocupação prática sobre como esses problemas podem ser
resolvidos. Uma abordagem, no mínimo, ciente dos usos que podem ser feitos de suas
conclusões. Mesmo porque, tratar algum fenômeno social como um “problema” quer dizer
que alguma noção de corrigibilidade está, de alguma maneira, presente, não só para o
problemas por sua relação íntima com contextos institucionais e normativos. São sociais no
sentido de que dizem respeito a relações humanas e a valores sob os quais essas relações se
moralmente desejado por uma sociedade. Na definição apresentada por Merton (1966, p.
780), um dos ingredientes de um problema social é uma discrepância entre padrões sociais
diferentes problemas sociais. Em qualquer sociedade, a disparidade entre o que “é” e o que
as pessoas acreditam que “deveria ser” varia com o tempo e com a posição que diferentes
pessoas ocupam na estrutura social. Somente alguns valores e normas seriam amplamente
padrões sociais ou morais desejáveis e uma realidade social concreta que contraria os
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grupos diferentes podem definir de maneira diferente o que são problemas sociais, além
disso, o que é um problema para um grupo pode ser um bem para outro. É importante saber
como se dá o processo social de definição de um fato como problema. O que acontece é que
pessoas que ocupam posições de autoridade e poder na sociedade têm maior condição de
estabelecer quais fatos representam rompimento com quais padrões sociais esperados e
indicar políticas de correção desses problemas. Muitas vezes pode haver conflito nesse
padrões normativos de um determinado estrato social podem ser vistos por outro como
autoridade, prestígio e poder entre os diferentes estratos que compõem a sociedade pode ser
autor, não é uma criatura estritamente racional. Conclusões da análise sociológica sobre
disfuncionais de uma dada organização social, só pode esperar que, no longo prazo, esse
indicadas) podem ser usados pelos responsáveis por políticas sociais. Mas não
sociólogo, no seu papel específico, deve se limitar a “descobrir para outros o preço que
pagam por suas convicções aceitas, porém pouco examinadas, e por suas práticas
estabelecidas, mas inflexíveis” (p.790). O sociólogo, com seu trabalho, não se exclui das
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Joseph Gusfield, em seu livro, “The culture of public problems” (1981), nos ajuda a
isto é, nem sempre se tornam matéria de controvérsias e polêmicas nas arenas de ação
pública. Nem sempre são objetos de alguma agência ou movimento que procura trabalhar
para a sua solução. Mesmo os problemas sociais abordados pelos sociólogos podem
outros.
reconhecimento de que nos debates públicos os grupos não têm poder, influência e
autoridade iguais para definir a realidade dos problemas. Dessa maneira, “a habilidade para
(Gusfield, 1981, p.10). Segundo Gusfield, em algum momento de algum período histórico,
afirmações, e são considerados e referidos por aqueles ansiosos por definições e soluções.
Têm credibilidade, enquanto outros, que também procuram atrair a atenção pública, não
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Enquanto a noção de propriedade nos diz quem detém o poder de descrever e definir os
responde factualmente por uma seqüência de eventos que diz respeito à existência do
responsabilidade política diz respeito a quem ou qual cargo é responsável pela solução do
problema. Quem pode ou de quem se exige que faça alguma coisa. Estes aspectos da
ou cargo, mas não há necessidade de que isto ocorra. Torna-se, então, uma questão de
livro. Como mencionei no início desta introdução, pretendo discutir algumas teorias e
públicas que visam o controle desses problemas. Em outras palavras, pretendo analisar as
intervenção pertinentes.
No primeiro capítulo, procuro mostrar como o problema social do crime passa a ser
verdade que Durkheim não tratava o crime como problema social no sentido que os autores
mencionados acima dão a esta idéia. Estava interessando em problemas sociológicos que
poderiam ser abordados através da análise do crime e do desvio (Paixão, s.d.). No entanto,
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com Durkheim, a sociologia começa a se tornar a disciplina privilegiada no campo da
mostrar como alguns autores que produziram trabalhos influentes na área da sociologia do
crime partem de uma perspectiva que pode ser chamada, com ressalvas, de durkheimiana.
Autores como Merton (1958), Cloward e Ohlin (1970) e Miller (1970) buscam explicações
comportamento é determinado por forças sociais que fazem com que os indivíduos ajam de
assim posso identificar o tipo de argumentação predominante naquilo que podemos chamar
de sociologia do crime.
Merton (1958), Cloward e Ohlin (1970) e Miller (1970) não trabalham com a noção de
normalidade do crime da mesma forma que Durkheim o faz. O crime deixa de ser normal,
fenômeno. Mas pode ser entendido como um fenômeno normal se considerarmos que,
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apesar de ser causado pela desorganização social e pela anomia, resulta de processos sociais
normais que acontecem em uma sociedade. De qualquer forma é uma perspectiva diferente
interessar pelas causas desses fenômenos não apenas de um ponto de vista teórico, mas
também prático. É importante que se descubram as causas dos fenômenos para que possam
ou orientar, ainda que indiretamente, a ação dos responsáveis pela solução dos problemas.
Enquanto Durkheim se preocupava com o crime e o desvio apenas como pretextos para o
mencionados se preocupam não só com a teoria,m mas também com sua aplicabilidade. As
causas do crime e da delinqüência identificadas por esses autores, como foi mencionado,
são profundamente sociológicas, mas com o detalhe de que são apresentadas como
variáveis que podem orientar a ação dos agentes responsáveis pela eliminação do problema.
sociólogos como Merton (1958), Cloward e Ohlin (1970) e Miller (1970) se expõem a
implicações políticas de seus trabalhos passam a ser objeto de debate. É verdade que a
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posição privilegiada em seus trabalhos, mas isto resulta do modo como esses autores
entendem a relação entre a teoria sociológica e a proposição de políticas. Nos anos sessenta,
nos Estados Unidos, por exemplo, quando o governo passou a requisitar a participação de
sociólogos em comissões que procuravam soluções para esses problemas, uma opinião
freqüente destes profissionais era que a sociologia ainda não tinha chegado a um
conhecimento claro sobre as causas do crime e da delinqüência e, por isto, era difícil a
causas dos problemas e, assim, encontrar maneiras de erradicação dessas causas (Wilson,
1985).
No caso dos debates que incluem a possibilidade ou não de aplicação das teorias
sociológicas do crime e da delinqüência, entramos numa discussão que deve levar em conta
o que foi dito acima a partir do trabalho Gusfield. Não pretendo, neste livro, fazer uma
história da criminologia, no entanto, é preciso dizer que desde o início do século XX até o
medida em se colocam ou são vistos desta forma nas polêmicas sociais, tornam-se
James Q. Wilson (1985, a primeira edição é de 1975). Não pretendo fazer análise de
produzidas. Minha intenção é analisar o tipo de argumentação presente nas teorias que
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No quarto capítulo, procuro discutir as críticas que a sociologia “convencional” do
intencional como foco da análise e que trabalham de alguma forma com a noção de escolha
racional. Faço essa discussão de um ponto de vista teórico, isto é, quais os problemas
ação individual, até que ponto esse desprezo prejudica a compreensão dos problemas do
crime e da delinqüência.
lugar, porque o crime e a delinqüência são problemas públicos e, portanto, levam em conta
orientar políticas se baseia num diagnóstico feito a partir de uma perspectiva que envolve a
intervenção apresentadas por teorias que levam em conta a dimensão da ação individual.
vista da escolha racional aponta para problemas reais e que o desprezo da dimensão da ação
aplicável e, portanto, no caso dos estudos sobre crime, deveria dar lugar à análise de
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reconhecer a pertinência de parte da produção teórica da sociologia do crime, nos permite
afirmar que a análise de políticas não pode prescindir da sociologia se não quiser entrar
num processo sem fim de tentativa e erro. Nesse caso, procuro mostrar como políticas
retributivas e dissuasórias podem ter efeitos limitados para alguns grupos ou situações
sociais. Quando o crime é visto por seu praticante como um ato legítimo, porque tem
pode não fazer o menor efeito (Black, 1983). Além disso, como mostram Cohen e
os indivíduos devem ser tratados como unidades de observação, não como unidades de
situações sociais que poderiam vir a ser alvos de políticas de controle do crime.
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Capítulo 1 - A NORMALIDADE DO CRIME
Adolphe Quételét. Assim é possível mostrar como o crime, antes analisado como um
departamento do país, o Compte media o número anual de crimes (contra a pessoa e contra
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Esta seção tem como fonte o artigo de Beirne, 1987.
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Tanto o governo francês como os estatísticos acreditavam que os dados reunidos no
que é um dos principais fundadores da criminologia positivista, como aquele que abriu o
caminho para o estudo sociológico do crime. Pode, também, ser considerado como um dos
foi apresentado, por colegas, ao movimento estatístico que estava atraindo a maioria dos
cientistas. É nesse momento que ele toma conhecimento das possibilidades do uso da
estatística no estudo dos fatos sociais e passa a se interessar pelas ciências humanas. Vale
ressaltar que o estudo das questões sociais e morais era feito através dos métodos das
que os mesmos tipos de regularidades mecânicas encontradas no mundo natural e nos céus
importante mencionar, que, para Quételét, o grau de perfeição atingido por uma ciência
poderia ser medido levando-se em conta o maior ou menor uso dos instrumentos
estatísticos em suas pesquisas. Na verdade, o autor procurava descobrir aquilo que ele
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Inicialmente, se ocupa de questões como organização de dados sobre natalidade e
partir desses dados o autor calculava os valores médios das variáveis acima mencionadas
para uma determinada população. Esses dados eram relacionados com variáveis como
idade, sexo, ocupação e região geográfica. O resultado final buscado por Quételét era um
conjunto de valores médios que reunidos forneceriam uma imagem fictícia, estatisticamente
criada, chamada por ele de “homem médio”. Este conceito será de grande importância na
análise da criminalidade empreendida por Quételét. Como veremos no final desta seção.
fenômenos morais e sociais é tarefa muito mais complexa que estudar, pelos mesmos
métodos, questões relativas ao mundo natural. O fator responsável pela diferença seria a
vontade livre da qual dispõem os seres humanos. O fato de o comportamento humano ser
acontecidos em um dado período não teria outra causa além das idiossincrasias humanas.
pretendia encontrar leis verificáveis para indivíduos isolados. De fato, pretendia descobrir
instrumentos estatísticos. Nesse caso, segundo o autor, o crime poderia ser observado como
uma atividade humana regida por leis semelhantes àquelas encontradas no mundo natural.
O já mencionado Compte seria, portanto, uma das mais úteis ferramentas a serem
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desempregados e mal empregados seriam os mais propensos a cometer crimes. No entanto,
é importante ressaltar, Quételét rejeita a associação direta, muitas vezes proposta, entre
formal não seria uma variável causal suficientemente forte como poderia parecer.
Argumenta mostrando que em algumas das áreas mais pobres e com menores níveis de
Principalmente quando indivíduos que viviam em uma situação de bem estar passavam a
forma, Quételét negava o fato de que baixos níveis educacionais teriam uma participação
da escola pública como forma de deter o crescimento das taxas de criminalidade, afirmava
que pessoas altamente educadas tendiam a cometer crimes mais violentos como estupro e
assassinato. Seria um erro, portanto, supor que a criminalidade diminuiria pelo simples fato
de que mais crianças estariam sendo levadas à escola. Para Quételét, o tipo de educação
moral”.
mostra que idade e sexo seriam mais importantes na predição do comportamento criminoso.
Diferentes grupos etários teriam diferentes propensões para cometer crimes. Tal propensão
seria menor nos dois extremos da vida: infância e velhice. No primeiro, tanto a força como
a paixão (os dois mais poderosos instrumentos do crime) estariam ausentes; no segundo,
ambos seriam detidos pelos “ditames da razão”. Assim, a propensão para o comportamento
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pessoas entre 21 e 25 anos. Nessa fase, tanto a força como a paixão são muito
desenvolvidas enquanto a razão ainda não é capaz de detê-las. Haveria, então, tipos de
atividade criminosa próprios de cada faixa etária. Os crimes cometidos por jovens seriam
aqueles nos quais é exigida a força física (agressão, estupro, assassinatos violentos), crimes
cometidos por pessoas de meia-idade seriam aqueles que exigem o raciocínio e o cálculo
rebelião), pessoas idosas, privadas de força física, teriam que agir “nas sombras”, contando
masculina. Homens na França do século XIX seriam pelo menos quatro vezes mais
criminosos que mulheres. Para explicar essa diferença, o autor argumenta que para o
e habilidade para agir. As mulheres dariam maior importância, ou seriam acometidas mais
de crianças. Neste caso, a mulher não apenas teria maiores oportunidades que o homem.
Seria, também, levada a cometer esse tipo de crime no intuito de reparar um erro e escapar
cometer crimes porque levariam uma vida mais restrita ao ambiente familiar, menos sujeita
a paixões fortes e menos influenciada pelo álcool. A habilidade seria menor na medida em
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e aleatórias, sua direção não poderia ser prevista. Guerras, fome e desastres naturais seriam
tipos destas causas. As causas variáveis seriam aquelas que poderiam variar entre limites
personalidade. Essas causas atuariam de forma contínua, de acordo com sua presença ou
ausência. Por fim, teríamos as causas constantes. Essas causas teriam uma probabilidade
causas constantes seriam representadas por variáveis como idade, sexo, ocupação e religião.
A predominância desse terceiro tipo de causas seria demonstrada, segundo Quételét, pela
constância do crime e de sua inevitabilidade, Quételét conclui que esse fenômeno é uma
crimes anuais de diversos tipos e isto nada mais seria que uma conseqüência da própria
algum tipo de distúrbio ou patologia. Com Quételét, como foi dito acima, temos a
concepção de que o crime não seria apenas causado pela vontade individual. Para explicar o
fenômeno, no sentido proposto por Quételét, deve-se levar em conta que a organização
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por Durkheim que definia a sociedade como algo mais que um simples agregado de
indivíduos.
determina os valores médios para altura, peso e outras medidas do corpo humano, como
dimensões do tórax, e os correlaciona com variáveis como sexo e idade encontrando assim
passa a buscar não apenas os valores médios das características humanas, mas, também, os
limites para cima e para baixo entre os quais os indivíduos poderiam variar. Teríamos as
pequenas variações que não causariam espanto e as grandes oscilações responsáveis pelas
“mecânica social”, entendia que as variações em torno da média não eram aleatórias, mas
celeste.
postular uma rígida oposição binária entre a média estatística e os desvios. De fato, todos os
escolher o caminho do meio. Entre as virtudes do homem médio estariam, então, hábitos
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citado em Beirne (1987) Quételet, A. (1842). A treatise on man. Edimburgh: Chambers.
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Temos então a contraposição entre o homem médio, respeitador das leis, e os
menor caráter. Estes últimos seriam os possíveis criminosos. Podemos, a partir das idéias
acima esboçadas, afirmar que deficiências morais, apresentadas por algum motivo - origem
Estado identificar em contextos específicos as causas dos crimes e atuar de forma a afastar
estas causas. Como, para Quételét, um mesmo conjunto de crimes teria sempre as mesmas
permitindo que as virtudes do homem médio se estendessem para maior parte da população.
E, assim, “the more do deviations from the average disappear... the more, consequently, do
we tend to approach that which is beautiful, that which is good”4.
modo adequado, estarmos atentos para o que foi dito no início deste capítulo em relação ao
exterminar todas as atividades criminosas. Acredito que tendo em mente estes elementos
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sociedade entendida como agregado de indivíduos.
4
Quételet, A. 1842. A treatise on man. Edimburgh. Chambers. apud Beirne, 1987.
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torna-se mais fácil a aceitação da explicação que envolve o “homem médio” e os indivíduos
conduta, representada pelo virtuoso homem médio. Após identificá-las, deveria trabalhar no
sentido de destruí-las. Além disso, seria necessário, também, criar condições para o
representada por Quételét não passa de um agregado de indivíduos. E, sendo assim, o fato
de Quételét ver o crime como um fenômeno causado pela organização social, perde um
pouco do sentido sociológico que poderia ter. Tomando a sociedade como um mero
regularidades. Acredito ser esse o principal elemento das críticas que Durkheim (1987)
pretendo demonstrar, ganha pela primeira vez uma forma sociologicamente complexa. Tal
diferenças que podemos encontrar entre Quételét e Durkheim. Talvez a mais importante,
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que a simples soma de suas partes. Por conseguinte, não encontramos lugar para um
características de indivíduos seria um grande equívoco. E é esse o equívoco que ele atribui
dessa argumentação, podemos entender melhor a distância que separa os dois autores até
A diferença mais marcante seria que, para Quételét, o crime é um objeto de investigação já
construído, isto é, não se faz distinção entre o problema social e o problema sociológico
que nele estão representados. Durkheim, por sua vez, na medida em que mantém uma
concepção de que a sociologia é uma ciência autônoma, procura fazer do crime um objeto
de análise distinto das concepções de senso comum. Busca, pela análise do crime e do
dessa diferença está no fato de que Quételét, ainda que veja o crime como um fenômeno
normal, acha possível sua erradicação através de políticas públicas específicas. Pois, se as
causas estão no nível individual, não é impossível mudar uma situação que favoreça o
intuitiva procurando, assim, defini-lo de uma maneira não usual. Isto é, enfatizando os
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recrutamento se dá, como veremos, pela capacidade que a sociedade teria de classificar
fenômeno. Assim, doenças mentais, alcoolismo, raça, imitação, são variáveis independentes
afastadas pelo autor através de uma análise multivariada, ainda que pouco sofisticada. Após
concluir que não são as variáveis acima as causadoras dos suicídios – teriam, no máximo,
um papel secundário –, Durkheim afirma que as causas deste fenômeno devem ser
procuradas na própria sociedade. Na verdade, essa seria uma regra geral da sociologia
durkheimiana: “a causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos
lado os fatores individuais e passam a ser considerados os fatores coletivos. O fato é que a
taxa social dos suicídios (e por extensão, como foi dito, do crime em geral) se explica
matarão. No sentido que Durkheim dá às palavras, não há espaço para a metáfora quando
ele escreve que “as sociedades humanas têm tendências” para o suicídio. O autor quer dizer
exatamente isto. Os grupos sociais teriam inclinações coletivas para diversos atos, das quais
marcadas pelo egoísmo, altruísmo ou anomia que atuariam dentro das sociedades
penetrando “de fora para dentro” as consciências individuais. No caso do crime, o fato de
que a consciência coletiva não está presente da mesma forma e com a mesma intensidade
em todas as consciências individuais faz com que alguns indivíduos não compartilhem do
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Contudo, devemos atentar para o fato de que não é nenhum elemento intrínseco aos
atos que os tornam criminosos. É a sociedade que assim os classifica. Portanto, patologias
divergentes em relação aos padrões sociais regulares e, entre esses comportamentos, alguns
apresentadas pelos dados sobre crime se devem à presença de certas “causas constantes”,
Acredito ser possível, inclusive, afirmar que certas situações e grupos sociais seriam
apareceriam com força suficiente para abranger toda a sociedade. De fato, elas prosperam
médios. Penso que tendo em mente estas palavras poderemos entender melhor a filiação
acima, o autor procura uma definição sociológica do crime, pretende se afastar das
5
Este ponto será tratado com maiores detalhes adiante.
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mórbido e patológico, passa a ser visto como um fato normal e necessário. Antes, porém,
por Durkheim (1990) para que um fato social seja considerado normal. São elas: 1) “Um
fato social é normal para um tipo social determinado considerado numa fase determinada
quando o fato se liga a um aspecto social que ainda não cumpriu sua evolução integral”
(1990, p.56).
Usando o crime como exemplo, Durkheim afirma que este fenômeno é um traço
generalizado das sociedades e, por se prender às condições gerais da vida coletiva, mostra-
se normal. Nesse caso, tratar o crime como uma doença social, como um fenômeno
mórbido, seria tornar a doença um traço característico do organismo. Seria, como afirma
Devemos lembrar, por outro lado, que o fato de o crime ser normal não quer dizer que seja
um fenômeno livre de limites. Isto é, que o excesso não implique em prejuízos para a
deve se submeter à condição de que, para cada tipo social determinado, não ultrapasse um
certo nível.
porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele” (1990,
p. 58). Seria impossível porque o crime é um ato que ofende certos sentimentos coletivos
reconhecidos socialmente. Para que os atos ofensivos não fossem mais realizados seria
necessário que sua reprovação estivesse presente em todas as consciências
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particulares de forma definitiva e sem exceção. Mas assim o crime não desapareceria,
apenas mudaria de forma, pois quando certos tipos deixassem de existir – neste caso a
repulsa a este ato estaria presente em todas as consciências particulares – outros surgiriam.
evitar certos tipos de atos considerados ofensivos, faria com que, automaticamente, outros
Durkheim cita o roubo e o furto. O primeiro seria uma ofensa mais séria, causaria maior
repulsa. O segundo muitas vezes não passaria de um leve falta moral. No entanto, se a
intensidade dos sentimentos coletivos fosse forte o suficiente para excluir o roubo da vida
social, essa mesma intensidade seria responsável pela maior repulsa que o furto – antes uma
pequena falta moral – passaria a causar. Assim, escreve Durkheim, mesmo em uma
sociedade de santos, onde os verdadeiros crimes estivessem excluídos, alguns atos, que
argumento, para depois refutá-lo: não seria possível que os sentimentos coletivos fossem
suficientemente fortes para que mesmo os atos mais leves também fossem evitados? Nesse
unânime, impedindo qualquer ato que a ofendesse, fosse um crime propriamente dito ou
uma pequena falha moral (Durkheim, 1990, p.60). Durkheim descarta essa opção
comportamentos possíveis, alguns serão definidos como criminosos. Isso acontece porque,
segundo Durkheim, não é nenhum aspecto intrínseco ao ato que o torna criminoso, mas,
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sim, o modo como a consciência comum o define. Assim, se a consciência coletiva é
presente e forte o bastante para excluir as divergências “sérias”, será, também, mais
– que o crime se liga às condições da vida coletiva, mas não deixa claro o “porquê” disso.
A resposta não será encontrada de forma satisfatória no texto das Regra, será necessária a
consideração de outras obras do autor6.
Esse trabalho será feito por Randall Collins (1992) que estende a intuição de
Durkheim e apresenta o crime e sua punição como parte dos rituais 7 que reforçam os laços
sociais. O autor argumenta que, se tomada do ponto de vista da redução efetiva de crimes, a
punição se mostraria ineficaz. No entanto, do ponto de vista dos rituais que mantêm a
sociedade unida, a punição cumpre um importante papel. Temos que ressaltar que o alvo,
por assim dizer, dos processos punitivos não é o criminoso. Esse é um marginal, não é parte
que o ritual aconteça, mas não faz parte dele, e dele não se beneficia. A lei é para o honesto.
principais valores sociais se mostram. Assim, ao assistir um julgamento por homicídio, por
ganha vida e aparece como algo que não pode ser violado. Os principais fundamentos da
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Penso em A Divisão Social do Trabalho. e Formas Elementares de Vida Religiosa. De qualquer forma,
Durkheim não se livrará de críticas duras relativas à possível inconsistência de seu argumento. Conferir
Cohen e Machalek (1994), texto que será mencionado ainda neste capítulo.
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Segundo Collins, op cit, "a ritual is a standardized, cerimonial behavior, carried out by a group of people. It
involves a common emotion, and it creates a symbolic belief that binds people closer to the group. Carrying
out ritual over and over again is what serves to keep the group tied together."
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A partir da noção de ritual, Collins amplia a afirmação de Durkheim sobre a
crime, pois, do contrário, não existiriam as punições e os rituais decorrentes. Sem os rituais
quando as pessoas reagem a alguma violação das normas não seriam sentidos. Se a
sociedade passasse um longo tempo sem crimes e punições suas próprias bases morais
necessita, caso eles não existam. Dessa maneira, o que é definido como crime pode variar
muito de uma sociedade para outra, mas todas apresentam certos atos socialmente definidos
como criminosos. Temos, então, o já mencionado argumento: até mesmo uma sociedade de
santos terá seus desvios, pequenas falhas morais, que para a pessoa comum não
representam grandes problemas, serão objeto de reação e punição. Pois é dessa forma que
Outros fatores levantados por Durkheim, que ligam o crime às condições da vida
medida, flexível, e com a necessidade de que haja inovações na vida da sociedade. Assim, o
crime existe porque é útil para a sociedade. Se não existissem crimes não existiria
tivesse autoridade para exterminar qualquer tipo de desvio, não teríamos nenhum tipo de
criminoso. Pois, para que seja possível que alguém pense de modo livre e crie coisas novas
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apenas indiretamente útil, segundo Durkheim; ele o é diretamente na medida em que atos
relação ao que foi mencionado primeiro. Sociedades estagnadas podem ter diversos
problemas, mas sobrevivem. Por outro lado, uma sociedade que não tenha suas bases, suas
seria a “normalidade do crime”. O crime é normal não apenas por sua generalidade ou por
sua inevitabilidade. É normal porque se liga às condições da vida social e, portanto, é útil
para a sociedade. Além disso, como vimos, o crime não é uma forma de comportamento
ato como criminoso. Esses atos definidos como criminosos mudam de uma sociedade para
outra e podem mudar mesmo dentro de uma única sociedade, com o passar do tempo. O
crime torna-se, então, um fenômeno social complexo e não um fato bruto detectado
empiricamente por estatísticos ou pelas pessoas em geral. Suas causas são sociais num
vimos em Quételét. Esse autor, embora pioneiro em seu tempo, tinha uma posição que pode
mero agregado de indivíduos. Posição da qual decorria o fato de que seu modo de entender
o crime como algo normal (termo que o autor não usava no caso do crime) se restringia à
de menor qualificação moral, pessoas que, por algum motivo, se distanciavam das
qualidades do “homem médio”. Mais: sendo a “organização social” nada
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mais que um agregado de indivíduos, o número anual de crimes dependeria apenas de como
composição da sociedade, maior seria o número de crimes. Temos, então, mais uma
diferença entre os autores até aqui considerados. Para Quételét o crime poderia ser excluído
da vida social na medida em que seus autores fossem presos e punidos e que o Estado
médio”. Para Durkheim, como vimos, a extinção do crime é algo impossível. Na verdade,
os agentes que cometem os crimes são meros cumpridores de necessidades sociais. São
dessas necessidades9 sociais que derivam os atos individuais. Como no Suicídio, os atos
Por fim, é importante mencionar o que pode ser chamado de uma espécie de reajuste
da teoria que é feito por Collins. O autor quer livrá-la tanto de sua dimensão mais
sociedade, que é um conceito, por um ator social competente. Assim, escreve que o
argumento não deve ser colocado nos termos que Durkheim o coloca: se for para que
sociedade sobreviva, então ela tem que ter crimes (Collins, 1992, p.112). Segundo Collins,
necessidade de que o crime exista por esse motivo. Durkheim deve ser entendido, então,
como autor que expõe um mecanismo (crime - ritual punitivo - coesão social) que algumas
8
Vale lembrar: as causas constantes são representadas por variáveis como idade, sexo, ocupação e religião.
9
A necessidade do crime resulta do fato, já mencionado, de que é através da punição que se reafirmam, do
ponto de vista dos honestos, as leis e normas sociais.
33
solidariedade crescerá, caso contrário, teremos um afrouxamento dos laços de
atos. Os atores reais são indivíduos e grupos. São, portanto, grupos que promovem os
seu poder de dominação sobre outros grupos (Collins, 1992, p.113). Questões relativas a
sociedade. Nesta luta, no entanto, estariam em jogo questões simbólicas. Mesmo porque as
pessoas que mais se preocupam com o crime, segundo Collins, são as menos envolvidas
com o problema, pelo menos de forma direta. Teríamos grupos dominantes que seriam
reforçariam estas definições. Ou seja, como escreve Collins, os rituais de punição unem a
existentes. Os potenciais criminosos serão aqueles indivíduos que, por não estarem
integrados ao grupo dominante, perseguem seus próprios objetivos sem observar os padrões
de moralidade exigidos.
“normalidade do crime” com Quételét. É verdade que ele não usa estes termos, que são de
Durkheim. Além disso, sua concepção, como já foi dito, é marcada pela apreensão pré-
sociológica do conceito de sociedade. O crime seria normal apenas na medida em que sua
34
normal, então, porque é geral (encontrando-se em todos os tipos de sociedade) e, mais
importante, porque se liga às condições de toda a vida social. De onde decorrem sua
fica isento de severas e consistentes críticas. Passo agora a apresentar as críticas feitas a
Durkheim pelos autores Lawrence Cohen e Richard Machalek (1988,1994) e, logo após, a
do crime. A primeira delas se refere ao fato de que a apresentação que é feita da natureza e
35
proposição da universalidade do crime e da punição é teleológica. A terceira objeção diz
sociedade, e não dos indivíduos, como beneficiária última do efeitos do crime e da punição.
identificar as raízes causais do fenômeno. Considero a seguir cada uma das objeções
separadamente.
fato de que tem distribuição geral e está ligado às condições fundamentais da vida social.
No entanto, escrevem, Durkheim não deixa claro quais são as condições fundamentais ou
como o crime se liga a elas. Em vez de esclarecer esses pontos, Durkheim argumenta
ocorrem. Porque o crime pode ser visto como benéfico para a sociedade, Durkheim conclui
necessária e benéfica.
fenômeno é geral e benéfico (no sentido de que se liga às condições fundamentais da vida
problema, afirmam, é que definir como normal algum componente da sociedade que é
apenas declarado como comum e benéfico e, em seguida, afirmar que o crime é um destes
crime. O que Durkheim faz é realizar uma explicação através de um definitional fiat
10
Tomam como evidência a seguinte passagem das Regras... (1990): " Assim então, uma vez que não pode
existir sociedade em que os indivíduos não divirjam mais ou menos do tipo coletivo, é inevitável também
que entre estas divergências, existam algumas que apresentem caráter criminoso. Pois o que lhes confere tal
caráter não é sua importância intrínseca, mas a importância que a eles atribui a consciência comum." p. 60
Discuto oportunamente a importância da segunda frase da passagem.
36
(Cohen e Machalek, 1994, p. 290 - grifos dos autores). A explicação fornecida por
Durkheim seria um exemplo de raciocínio tautológico na medida em que ele toma como
afirma, essencialmente, que o crime existe porque a sociedade precisa dele. O complexo
crime-punição evolui porque a sociedade precisa daquilo que ele fornece, isto é, a
sobre os mecanismos e processos específicos através dos quais traços como o complexo
outros, por que existem variações ao longo do tempo). Sem estes mecanismos específicos,
temos apenas a afirmação de que o crime existe porque está ligado às condições
fundamentais da vida coletiva (os rituais punitivos). Esse tipo de afirmação encerraria uma
“teleologia ilegítima”.
em metáforas usadas no lugar do termo sociedade como, por exemplo, “organismo social”,
que pode, inclusive, ter “saúde” ou sofrer “doenças”. O crime não seria uma doença, mas
sofrerem custos relacionados com a sua vitimização, a sociedade como um todo se beneficia
porque a punição dos crimes reforça a consciência coletiva. Segundo Cohen e Machalek, a
Durkheim impede que o crime seja entendido como uma patologia, sejam
11
Preocupação, como vimos, compartilhada por Collins, 1992.
37
quais forem circunstâncias. O criminoso durkheimiano é sempre uma espécie de benfeitor.
Durkheim presume – não prova, dizem Cohen e Machalek – que os benefícios coletivos do
Não é o caso de afirmar a impossibilidade de se manter uma teoria que propõe causas
quando usado por um sociólogo como Durkheim, que procurava estabelecer as causas
função. Assim pensam Lawrence Cohen e Richard Machalek. Antes, porém, de expor a
citada teoria, é importante fazer uma ressalva quanto à última objeção a Durkheim.
importância de sua segunda parte. É verdade que Durkheim afirma que os indivíduos de
uma sociedade diferem mais ou menos do tipo coletivo e que estas diferenças provocam
12
Cf. nota no 10.
38
entanto, não pode ser deixada de lado a segunda parte da citação onde Durkheim afirma que
é menos importante que a definição coletiva. Com efeito, é a definição coletiva que funda o
individualismo”, mencionado por Cohen e Machalek, temos que reconhecer que ganham
porque está totalmente apoiado em seu modelo teórico que, sem dúvida, encerra problemas
como tautologia, teleologia e reificação, como já foi mencionado. Esses problemas, além de
pelos autores.
tipo atende a propósitos práticos. Não diz respeito a motivações ideológicas. É a eficácia do
modelo que determina seu uso. O esquema naturalista (contra expectativas) seria eficiente
13
Âmbito das decisões individuais.
39
“seleção estratégica” têm em mente o fato de que a produção das estratégias se dá no
âmbito dos processos macrossociais. Os indivíduos que cumprem estas estratégias são de
certa forma meros executores, adotam a estratégia que melhores resultados traz em certo
momento. Contudo, deve ser ressaltado que as diferenças individuais serão importantes na
determinadas estratégias expropriativas serão bem sucedidos desde que detenham certos
recursos. Os detalhes da teoria serão discutidos a seguir. O que é importante repetir agora é
como os níveis macro e micro do processo social interagem para gerar o comportamento
criminoso.
estrategistas. Isto significa que agem no sentido de perseguir objetivos que tendem a ser
benéficos para eles. No entanto, deixam claro que não se trata de um tipo de teoria da
entre outras pela qual indivíduos ou grupos perseguem seus fins, conscientemente ou não.
melhor sucedida será aquela que confere maiores benefícios ao indivíduo que a adota e
executa. Mas o potencial de sucesso de uma estratégia depende muito dos tipos de
estratégias adotadas – e a freqüência com que são adotadas – por outros membros de uma
população. Assim, temos uma das fundamentais premissas da E.E.T., isto é, que a
40
eficácia de uma estratégia depende 14 do número de indivíduos nela engajados. Quanto
menor for a quantidade de competidores, mais atrativa será a estratégia. A tese central,
nível populacional das dinâmicas de interação social entre estrategistas passa a ser uma
autores (a partir da terminologia da teoria dos jogos), o crime expropriativo pode ser visto
como um conflito de soma zero entre potenciais ofensores e vítimas que desejam os
relaciona-se com o fato de que o resultado das disputas só é predizível com base apenas nas
estratégias quando os atores são semelhantes. Por outro lado, quando os atores são
diferentes de algum modo, é importante levar em conta suas características e traços. Nesses
14
Segundo Cohen e Machalek, 1994. "When the average payoff for a strategy varies inversely with the
number of others who are employing the same strategy, the success of the strategy is said to be 'frequency
dependent'".
41
“Potencial de Retenção de Recursos” (P.R.R.)15. Combinando com o P.R.R., temos o valor
relativo que o ator atribui ao bem disputado (bem material ou simbólico). Essa variável é
que seu conhecimento pode predizer de forma mais acurada o resultado das contendas. Isto
é, uma disputa que envolva um ator com alto P.R.R. e outro com baixa pode não ser
vencida pelo de maior potencial. Isso porque o P.R.R. está associado ao V.R. O indivíduo
que detém mais força, inteligência e tecnologia pode dar menor valor ao bem disputado.
Pode não querer se arriscar ou pagar os custos da disputa. Portanto, um indivíduo pode
vencer uma disputa contra outro mais preparado devido à intensidade com que almeja o
bem. Esse seria, muitas vezes, o caso dos conflitos que envolvem “criminosos de rua”.
entendendo-as como entidades que competem entre si, os autores se consideram habilitados
a explicar como as próprias características das estratégias são responsáveis por sua
É no sentido acima que os autores entendem que a E.E.T. inclui tanto a dimensão
42
recursos usadas na sociedade. O ponto mais importante que, segundo eles próprios, devem
apresentar quanto a esse fato é que, para a maioria dos psicólogos e dos economistas que
conjunto de ações individuais. Por outro lado, para os sociólogos preocupados com as
explicação dos padrões de larga escala são encontradas nos processos causais relativos às
comportamento, que são autônomas e independem das escolhas individuais; de outro temos
adquiridas) sem os quais não podemos entender porque determinados indivíduos executam
uma estratégia e não outra. Assim, os autores percebem como padrões normais de
E.E.T. estaria livre dos problemas observados no texto durkheimiano. Assim, a confusão de
premissa de que fatos sociais devem ser explicados por outros fatos sociais, teria sido
43
Mais: a E.E.T. não seria tautológica na medida em que sua definição de sociedade
não inclui, necessariamente, o crime. Este não seria um fenômeno inevitável, como afirma
permite, pelo menos do ponto de vista lógico, que haja uma sociedade sem crimes. Ainda
que tal sociedade seja empiricamente improvável, mesmo porque, segundo a E.E.T., uma
sociedade que se organiza segundo uma estratégia dominante corre sempre o risco de ser
invadida por uma estratégia alternativa; tal possibilidade é importante na medida em que
evita que o crime seja um fenômeno que por definição faça parte das sociedades. Segundo
eles, esse teria sido um dos equívocos cometidos por Durkheim: afirmar que o crime existe
porque está ligado às condições fundamentais da vida social e, por isso, é normal.
criminoso. Como foi dito, uma sociedade que tem como padrão organizacional a produção
recuperação dessa noção é importante, segundo os autores, porque a partir dela é possível
sintetizar as descobertas de diversas disciplinas e construir uma teoria mais inclusiva (1988,
44
Capítulo 2 - ESTRUTURA SOCIAL, CULTURA E CRIMINALIDADE
Embora esse argumento seja alvo de críticas consistentes, é possível dizer que orienta
Mesmo considerando que os autores discutidos a seguir não partem de uma concepção de
fundamental neste capítulo será a discussão das teorias. Farei apenas indicações
preliminares no sentido das implicações políticas das teorias apresentadas. A discussão dos
últimos capítulos.
45
2.1 - Estrutura social, anomia e desvio
explicação durkheimiana na medida em que vê a anomia como causa do crime, que seria
uma conseqüência da desorganização social e não uma atividade benéfica e funcional como
queria Durkheim. No entanto, não podemos dizer que Merton não trabalha com a noção de
normalidade do crime. Pelo contrário, segundo ele próprio, pretende apresentar uma
preocupação principal é descobrir como algumas estruturas sociais exercem uma pressão
a mencionada pressão, pode-se esperar níveis altos de comportamento desviante entre seus
resposta individual normal a uma situação social específica. O crime, portanto, não é
causado por predisposições biológicas ou outro motivo pré-sociológico, mas por uma forma
mertoniana é bem mais restrita. Anomia seria sinônimo de falta de normas, não mais que
isso. A importância disso está no fato de que é a partir de uma concepção “superficial” de
anomia que Merton traça toda a sua explicação do desvio social. Assim, a despeito de
46
qualquer conotação “qualitativa” 16 que o conceito poderia ter em Durkheim, Merton –
quando se refere a anomia – considera apenas o fato de que uma sociedade pode estar
o que pode ser legitimamente desejado em uma sociedade. O que os diversos membros
podem e/ou devem almejar. O segundo nível diz respeito aos controles, definições e
Segundo Merton, todos os grupos sociais ligam seus objetivos culturais a regulações
quanto à sua conquista. Um detalhe que merece destaque é o fato de que o controle dos
caminhos para se chegar a determinadas metas não se dá, necessariamente, por normas
que, do ponto de vista de um indivíduo em particular, podem ser mais rápidos e eficientes
quanto à realização de um objetivo, na maioria das vezes, são proibidos. Mais importante:
algumas vezes, entre os comportamentos reprovados, estão alguns que poderiam ser úteis17
para o grupo. Tal fato confirmaria a idéia de que o que motiva as proibições não são
observados pelos indivíduos. Nesses casos, não só a perseguição da meta, mas também a
16
Para esta discussão ver: Mestrovic, G. S. & Brown, H. (1985) "Durkheim's concept of anomie as
dèreglement". Social Problems. vol. 32. Nº 2. december.
17
Merton menciona, como exemplos, tabus como a vivissecção, a experimentação médica ou a análise
sociológica de aspectos "sagrados" da sociedade.
47
bem como usando os meios socialmente legítimos para alcançá-las18. No entanto, escreve
controle do comportamento não quer dizer que tenham uma relação sempre constante (e
aqui voltamos ao problema da anomia). Existem situações nas quais os objetivos culturais e
metas culturais muitas vezes não é acompanhada de uma ênfase, de igual intensidade, em
relação aos meios legítimos de conquista. Pode-se desenvolver, escreve Merton, uma
pressão muito forte sobre algumas metas sem uma preocupação equivalente com os meios
legítimos de se chegar até elas. O limite é atingido quando um comportamento é regido por
normas meramente técnicas e não institucionais. Qualquer procedimento que possa levar à
(e porque não a brasileira), onde há uma ênfase muito grande no sucesso pessoal
seguir os meios normativamente justos para conquistar o sucesso. Deve ser destacado que,
para o autor, não há sociedade que não controle, de alguma forma, a conduta de seus
culturais sem, contudo, impor os meios legítimos de procedimento de uma forma decisiva.
Nesse caso, o indivíduo que persegue uma meta culturalmente prestigiada se vê limitado
apenas por uma questão de eficiência técnica. A pergunta que o ator se faz, nesses casos, é:
“Qual dos procedimentos disponíveis é o mais eficaz para a conquista do meu objetivo”
(Merton, 1958, p.135)? O procedimento tecnicamente mais eficiente será preferido, seja ou
18
Segundo Merton (1958, p. 134), "It is reckoned in terms of the product and in terms of the process, in terms
of the outcome and in terms of the activities".
48
É importante destacar, em respeito ao modelo, que outros aspectos da estrutura
social, além da ênfase extrema no sucesso pecuniário, devem ser considerados se se quer
problema surge quando são enfatizadas intensamente, para a população inteira, idéias de
para grande parte da mesma população. Teríamos, então, uma contradição entre uma
ideologia igualitária, que coloca metas universais para uma dada população (no caso as já
impossibilita a muitos a conquista do sucesso através dos meios legítimos. Sob esse modelo
pobreza não teria uma relação direta com o desvio. Nem mesmo a pobreza relativa, isto é, a
pobreza situada em meio à riqueza, seria responsável pelo desvio. Esse emerge como opção
valorizados pela sociedade inteira, se ligam a uma ênfase no sucesso pecuniário como meta
principal e universal.
metas culturais que enfatizam o sucesso pessoal e a escassez (causada pela estrutura de
classes da sociedade) de meios legítimos para chegar até elas, surge a conduta alternativa,
49
ou seja, a resposta anômica19. Em outras palavras, a anomia estaria presente quando a falta
de integração entre o nível cultural e a estrutura social tivesse conduzido ao abandono das
normas e a uma situação de falta de normas. Como já foi mencionado, se em uma sociedade
é dado muito valor a algumas metas e os meios legítimos de atingi-las são escassos, alguns
objetivo. Entramos, então, no âmbito dos tipos de adaptação individual. Quanto a isso,
Merton pretende examinar como diversas situações sociais podem exercer pressões
diferentes sobre indivíduos levando-os a adotar este ou aquele tipo de conduta. Vale
ressaltar, entretanto, que não se trata de tipos de adaptação psicológica, mas de tipos de
no nível da estrutura social, são características da posição estrutural e não dos indivíduos
forma mais detalhada, mostra, de forma esquemática, a relação de cada tipo com as metas
sinais de mais (+) representam aceitação, os sinais de menos (-) significam rejeição e os
dois sinais combinados (+ -) significam rejeição dos valores precedentes e sua substituição
por novos.
Modos de adaptação Metas culturais Meios institucionais
1 – Conformidade + +
2 – Inovação + -
3 – Ritualismo - +
4 – Retraimento - -
5 – Rebelião +- +-
19
Este é o caso da "anomia de privação", ao qual me limito, segundo Merton, há também a "anomia do êxito".
50
Como podemos ver na tabela, o primeiro tipo de adaptação considerado por Merton
com as meios institucionais. Podemos dizer que o indivíduo foi socializado de modo a
tipo de adaptação não merece maiores atenções porque Merton está preocupado com os
atingirem o nível exigido. Não interessa se o objeto conquistado por meios ilícitos é
diferente daquele conquistado através dos meios legítimos. Para Merton, a exigência
cultural de posse de algum item pode ser cumprida de forma imperfeita. Nesse caso,
socialmente tem, como conseqüência, no aspecto psicológico, fazer com que esteja
preparado para assumir riscos e agir de modo “ousado”. Essa disposição seria encontrada
em todos os estratos sociais. Mais importante são os aspectos sociológicos desse modo de
características da estrutura social que levam a esse tipo de adaptação e, por conseguinte,
fazem com que diferentes estratos sociais apresentem diferentes taxas desse comportamento
desviante?
20
Merton adverte que está privilegiando a atividade econômica, por isto falamos de sucesso econômico.
21
Por exemplo: privação econômica, baixo nível de escolaridade, socialização imperfeita, lar desfeito, etc.
51
No âmbito dos altos empreendimentos a pressão no sentido da inovação pode acabar
meios inovadores utilizados, seria um bom exemplo de que a empresa econômica caminha
(empresários) é produto de uma estrutura social “in which the sacrosanct goal virtually
aparecendo como parte de estratégias inovadoras executadas por empresas, está o chamado
crime do colarinho-branco (white-collar crime). Esse tipo de crime (na verdade uma
variação da adaptação inovadora), cometido por pessoas de classe média ou alta, seria
muito mais comum do que aparentemente é, escreve Merton. Muitos desses crimes não são
processados porque não são detectados. São, inclusive, menos “visíveis” que os crimes de
rua, assaltos e assassinatos. Além disso, algumas vezes, a pessoa envolvida é poderosa,
são comuns entre pessoas “respeitáveis” da sociedade. Segundo os autores do estudo, 99%
previstas no código penal (penal law) do estado de Nova Iorque, cada uma dessas infrações
sendo suficientemente séria para levar a uma pena máxima de, pelo
22
Merton menciona o seguinte texto: Wallerstein, James S. & Wyle, Clement J. "Our law-abiding law
breakers, Probation, April, 1947.
52
menos, um ano. Mais: 64% dos homens e 29% das mulheres reconheceram serem culpados
de um ou mais crimes que, sob as leis de Nova Iorque, bastariam para privá-los de todos os
comportamento inovador de acordo com o estrato social, Merton afirma que, por mais altos
que sejam os níveis de inovação de “colarinho-branco”, a pressão mais forte nessa direção
recai sobre os estratos mais baixos da população. Isso acontece porque os incentivos para o
sucesso são dados pelos valores estabelecidos pela cultura e internalizados amplamente
caminhos legítimos de acesso à meta cultural são muito restritos devido à estrutura de
classes da sociedade. Assim, seriam poucos os indivíduos que poderiam utilizar os meios
profissional, restaria a opção pelos meios ilegítimos, já que também perseguem a meta
dominante, a afluência. A pressão exercida pelo objetivo cultural dominante faria com que
poderiam ter tido. Ao mesmo tempo passariam a ter maior poder de sedução os meios
freqüente nas classes baixas porque a cultura colocaria para esses segmentos demandas
53
institucionalmente, são raros os postos profissionais e empresariais que possibilitam a
afluência. Os meios legítimos são escassos na medida em que variam de acordo com a
desviante. Cada vez mais, o equilíbrio entre metas culturais e meios institucionais se
legítimos inexistam, com isso, a obrigação de utilizar o meio legítimo diminui. O que
Merton se refere ainda a outros três tipos de adaptação desviante que não são
importantes no contexto deste livro. No entanto, faço uma rápida menção a cada um deles.
Esse procedimento pode ser útil como forma de definir melhor (pelo contraste) o mais
adaptação é o ritualismo. Esse tipo pode ser entendido como o oposto da inovação. A meta
dominante de sucesso financeiro é abandonada ou, pelo menos, as ambições são reduzidas a
níveis muito baixos. Contudo, apesar da meta ter sido abandonada, a adesão às normas
crime. É o modo de adaptação próprio de indivíduos buscando uma solução privada para os
perigos de frustração inerentes à competição pelas metas culturais mais valorizadas. Assim,
23
É importante termos em mente que Merton se refere todo o tempo aos Estados Unidos. No entanto, isto não
impede que tomemos sua teoria como uma explicação geral do problema do desvio.
54
Isso acontece porque nessa classe é comum os pais exercerem uma pressão contínua sobre
os filhos para que acatem os mandatos morais da sociedade ao mesmo tempo em que é
Nesses casos, os indivíduos rejeitam tanto as metas culturais como os meios institucionais
compartilham dos valores comuns à maioria dos indivíduos, não podem ser vistos como
ressaltar, entretanto, que a origem desse tipo de comportamento pode ser uma rejeição da
estrutura social, nesse caso, as atitudes seriam expressão do rompimento com valores
compartilhados pelos demais membros da sociedade. Deve ser dito, também, que o fato de
estas pessoas não fazerem parte da sociedade não quer dizer que não interfiram na vida de
outros membros. Podem, por exemplo, cometer crimes (furtos, roubos, assassinatos, etc.)
a rejeição, em vez de se dar no sentido da alienação pura e simples, acontece como primeiro
passo de uma tentativa sistemática de se instituir novas metas e novas regras. O principal
exemplo deste tipo de adaptação é o grupo revolucionário que surgiria mais provavelmente
55
A explicação mertoniana das relações entre anomia e conduta desviada, embora
clássica, é alvo de críticas e objeções. Em relação aos aspectos teóricos mais amplos,
discute-se a divisão da sociedade em dois níveis analíticos que podem variar de modo
metas dominantes, e da estrutura social, onde são definidos os meios legítimos, pode ser
vista como responsável por alguns de seus supostos equívocos. Um deles é a apresentação
pode ser adotado ou não. Como decorrência destes equívocos, Merton apresentaria uma
organização social muito mais consistente do que aquilo que poderíamos comprovar
próprio Merton faz de uma sociedade dividida em classes. Como seria possível sustentar
que sociedades contemporâneas, urbanas, seculares, têm uma hierarquia comum de valores
metas culturais abstratas, são constrangidos pelo fato de pertencerem a grupos sociais
adaptação interativa recíproca entre atores, não como uma resposta mecânica a uma
situação dada. Uma das críticas que são feitas nesse aspecto é que Merton baseia-se em
dessa opção, é possível acrescentar. A partir das metas-sucesso, dos meios institucionais e
das oportunidades existentes o desvio aparece como uma decisão tomada por cada
indivíduo
56
em particular (Clinard, 1967, p. 41)24 . Não leva em conta, portanto, que a maioria dos
crimes são atos levados adiante por grupos de pessoas que compartilham valores,
informações e técnicas de trabalho. Além disso, com uma concepção normativa, perde-se a
explicação mertoniana perde seu alcance. Como afirma Clinard (1967, p. 43), o problema
teórico não se restringe à descoberta das origens da conduta desviada, como quer Merton. A
questão mais abrangente seria a de como certos desvios conduzem a uma reorganização
simbólica no nível dos objetivos, das atitudes e dos papéis e porque outros não o fazem.
Vimos que Merton explica a inovação como atitude daquele que, tendo
internalizado as metas-sucesso de sua sociedade e não tendo acesso aos meios legítimos de
em dois níveis distintos, separando o âmbito da cultura da estrutura social empírica, o autor
aceitas (as críticas a esse ponto já foram esboçadas anteriormente). Em segundo lugar, na
medida em que reduz o papel dos grupos sociais em sua explicação, acaba por apresentar
uma sociedade onde teríamos os estratos superiores (aos quais estariam reservadas as
24
Estas objeções mencionadas por Clinard são feitas por Cohen, A. K. 1955. Delinquent Boys: The Culture of
the Gang. New York, Free Press.
57
“interior” dos grupos inferiores e, assim, deixar de perceber que podem ter uma dinâmica
própria, uma organização particular, que, enfim, podem constituir uma subcultura.
trabalho de Marvin Wolfgang e Franco Ferracuti (1970). Esses autores estão preocupados
Reconhecem que existem evidências empíricas de que posição de classe, etnia, status
ocupacional e outras variáveis sociais são indicadores efetivos para predizer taxas de
diferentes tipos de desvio. No entanto, fazer uma relação entre estas variáveis e normas
normas, não tem relação com os dados empíricos sobre a violência interpessoal. A
indivíduos marginais que experimentam anomia psíquica como reflexo da anomia social
em que vivem apresentam os maiores índices de homicídio, por exemplo. Para que essa
hipótese fosse confirmada seria preciso comprovar que indivíduos e famílias em situação de
que não existem dados que mostrem altas taxas entre pessoas que demonstram grande
conflitantes. Porém, explicar que os homicídios são cometidos por membros da subcultura
25
Na verdade, o conceito de subcultura violenta fundado por Franco & Ferracuti é usado de diversas formas.
Uma delas é a que usa o conceito para propor uma subcultura regional de violência no sul dos Estados
Unidos. Os negros norte-americanos são também vistos como detentores de valores distintos que
constituiriam uma subcultura. Acredito que, independentemente de questões regionais ou étnicas, qualquer
grupo social que apresente valores em variação quanto aos valores tradicionais da sociedade mais ampla na
qual se inserem ( particularmente no caso de estes valores se referirem ao uso da violência como forma
privilegiada de solução de conflitos), pode ser apreendido nos termos da teoria da subcultura violenta. Cf. esta
discussão em Kposowa, A. (et allii) 1995. "Reassessing covariates of violent and property crime in the
U.S.A.: a county level analysis". British Journal of Sociology, vol. 46, march.
26
Da explicação mertoniana do crime, em outras palavras.
58
sucesso almejadas (dadas pela cultura prevalente) não é a melhor das alternativas. Para os
situados em uma comunidade urbana mais ampla. Tais grupos apresentam sistemas de
valores autônomos27 que constituem uma subcultura violenta. Quanto mais integrado a uma
violento em uma variedade de situações, isto acontece porque quanto mais integrado for o
conduta e absorve tais elementos em sua personalidade. Na verdade, segundo Wolfgang &
Ferracuti, existe uma relação direta entre taxas de homicídio e a extensão na qual a
será a não-violência. O indivíduo que faz parte de uma comunidade onde a violência é o
meio indicado para solução de diversos conflitos será tratado com desdém e indiferença se
não usar a violência nas ocasiões apropriadas. Caso o ator desviante em relação à
subcultura de violência participe de interações com outros membros mais integrados pode
tornar-se vítima em uma situação de conflito. Esse tipo de pressão leva à adesão aos valores
que o uso aberto da violência é parte de um sistema normativo subcultural que tem suas
Cloward e Ohlin (1970, p. 300) aceitam a idéia de que as normas sociais têm dois
“lados”. Uma prescrição sempre traz consigo uma proibição, ou seja, normas que definem
27
Como mostra Miller, acima.
59
correspondente. Assim, o criminoso que se engaja no roubo ou na fraude não inventa um
novo modo de vida. A possibilidade de se comportar de modo alternativo está, pelo menos
tacitamente, dada pelas normas de uma cultura. Esse fato é reconhecido, embora, segundo
mencionada por Merton como a alternativa encontrada pelo indivíduo que não tem acesso
aos meios legítimos. Sem os meios prescritos, o ator é levado a adotar os proscritos como
forma de conquistar seus objetivos. Tais meios ilegais seriam facilmente reconhecidos na
medida em que estão implícitos nas prescrições. No entanto, Merton deixa de lado uma
questão crucial que diz respeito ao aparecimento e à disponibilidade dos meios ilegítimos.
Ele menciona a distribuição desigual dos meios legítimos, isto é, sua escassez. Mas toma os
ilegítimos como se fossem disponíveis a qualquer indivíduo que optasse por eles. De fato,
proliferarem. Como escrevem Cloward e Ohlin, da mesma maneira que a vontade de ser
médico não é suficiente para explicar como alguém se tornou médico, não basta um
indivíduo decidir se tornar um ladrão e agir dessa forma para ser um ladrão. Esse último
acesso depende de uma variedade de fatores, tais como posição socioeconômica, idade,
legítimos são distribuídos de forma diferenciada, mas que os ilegítimos são acessíveis a
60
variáveis quanto ao acesso, no entanto não reconhece a desigualdade de distribuição dos
que cada indivíduo ocupa uma posição não só na estrutura legítima, mas também na
ilegítima. Segundo Cloward e Ohlin, esse é um novo modo de definir a situação. Dessa
ilegítimos afeta a escolha do desvio como modo de vida. O tipo de comportamento adotado
por um indivíduo depende de qual tipo de atividade é suportado pelo segmento da estrutura
social ao qual pertence. Segundo os autores, se uma localidade não dispõe de meios ilegais
ou criminais prontamente disponíveis não devemos esperar que apresente uma subcultura
em áreas onde seu uso está disponível para os jovens. O ponto é que existem diferenças
segmento da estrutura social no qual estão situados. A adesão a meios desviantes como
constrangimentos sociais. É por esse motivo que os autores afirmam que um indivíduo
ilegítimas. Se não têm acesso aos meios legítimos para atingir um fim almejado, podem
observar quais são suas possibilidades no âmbito dos procedimentos desviantes. Essas
especializado para que possam florescer. O mais importante seria a existência de relações
entre criminosos de diferentes faixas etárias e uma estreita integração entre carreiras
convencionais e ilegítimas. Quanto à primeira condição, o ponto é que o acesso aos papéis
ilegítimos será mais fácil para jovens que crescem em vizinhanças onde o crime é comum e
continuamente praticado. Isso porque tais ambientes representam possibilidades
61
de aprendizado e aquisição de técnicas e valores necessários para o desempenho do papel.
A convivência dos prováveis criminosos com outros mais velhos e experientes é o meio
delinqüência proposta por Cloward e Ohlin e, por meio dele, podemos perceber as
Como foi dito anteriormente, além de existir uma integração entre diversas faixas
etárias, é importante que exista uma rede de relações que inclua tanto indivíduos engajados
em atividades ilegítimas como legítimas. Sem uma rede dessa natureza não é possível uma
carreira criminosa estável. O criminoso precisa estabelecer contato com uma variedade de
pessoas, de diferentes categorias, pois cada uma contribuirá de um modo diferente para o
sucesso de seu papel. Entre as categorias que fariam parte da rede, estariam viciados em
como essa rede seria importante é dado pelo receptador. Essa categoria faria o papel de um
intermediário, um guia que indica para o criminoso, principalmente o novato, o que deve
ser roubado, quais as mercadorias são mais rentáveis, como correr menores riscos. Por isso,
ilegítimas.
62
justiça, políticos, advogados. Quando o criminoso atua em conjunto com diversos outros
mundo ilegítimo cresce e novas habilidades são adquiridas. Assim, abrem-se possibilidades
criminosa estável, que constitua um estilo de vida. Nesse sentido, o ambiente que estimula
a orientação para o crime se caracteriza pela estreita integração de carreiras regidas por
valores convencionais com outras regidas por valores ilegítimos. Como já foi mencionado,
o conteúdo de uma subcultura delinqüente vai depender do tipo de estrutura social na qual
grande importância porque representa uma séria ruptura com a explicação mertoniana. Esse
autor vê a atividade criminosa como um simples recurso usado quando faltam os meios
convencionais. Desta forma, as metas almejadas pelos criminosos são as mesmas que o
respeitável cidadão de classe média almeja. Apenas os caminhos de acesso são diferentes.
Mais: o crime é uma atividade disponível a qualquer um que opte por ele. Com a teoria da
meio subcultural que vai possibilitar a integração de criminosos experientes com jovens
pretendentes, dar suporte para que o jovem delinqüente adquira os valores necessários para
pelos membros. As classes baixas teriam seus próprios e distintos modelos de sucesso.
63
sucesso a partir de meios ilegítimos, tornam-se muito visíveis para os jovens e procuram
mesmo se relacionar com eles. Assim, da mesma forma que jovens de classe média por
manterem relações com profissionais liberais, banqueiros ou empresários podem aspirar tal
posição, jovens das classes baixas por terem contato com um bem sucedido “profissional-
do-crime” podem tomar essa trajetória como um modelo28. Para os autores, o ponto crucial
é que as metas-sucesso não são igualmente disponíveis para membros de classes sociais
diferentes. Na medida em que a estrutura social funciona como barreira que impede a
por exemplo, podem não aparecer de forma atraente para os jovens de classe baixa. Por
outro lado, nesse caso, o criminoso bem sucedido pode ser uma figura presente e próxima,
constituído pelo crime. Refiro-me à análise que Walter B. Miller (1970) faz da cultura de
classe baixa (a lower class culture). O autor seleciona um tipo específico de delinqüência
(atos de violação da lei cometidos na rua por adolescentes de classes baixas) para mostrar
que a motivação desses atos encontra-se em uma tentativa apresentada pelos jovens de
de elementos culturais tradicionais, até certo ponto autônomo, diferente do sistema cultural
próprio das classes médias. É importante ressaltar que é diferente, mas não é antagônico no
28
Este exemplo é dado por Cloward & Ohlin (1970) p. 304/305.
64
sentido de se dirigir contra os valores da classe média. Aqui temos uma das importantes
novidades dessa abordagem, que merece, inclusive, um exame mais minucioso. Miller parte
específicos e distintos do que se poderia chamar de uma cultura dominante própria das
classes afluentes. O mais importante, na verdade, não é o fato de serem distintas. Outros
grupos podem ter valores parecidos. O que define a cultura de classe baixa é o peso
dos aspectos seria um tipo de comportamento que provoca problemas com as autoridades
normalmente, brigas ou aventuras sexuais regadas com álcool e drogas. Para mulheres,
comportamentos que violam normas morais ou legais se baseia no cuidado de não criar
Outro aspecto importante é que a noção de problema diz respeito a uma distinção
como uma pessoa se relaciona com cada um destes tipos de comportamento contribui
65
namorado de sua filha não em termos de suas possibilidades de afluência (como poderia
fazer uma mãe de classe média), mas em termos de seu potencial para criar problemas. No
entanto, e isto é significativo na medida em que pode representar um conflito de papéis para
problemas não é sempre negativa. Muitas vezes, ao contrário, pode ser exigido um
Essa noção representaria uma combinação de qualidades e estados. Entre eles estaria a
demonstração de força física, de habilidades atléticas, de masculinidade 29 e de bravura
frente a ameaças físicas. Miller interpreta a presença dessa noção como um resultado do
fato de que as famílias de classe baixa são predominantemente chefiadas por mulheres,
havendo, assim, a ausência de uma figura masculina com a qual a criança possa se
identificar e “aprender” como desempenhar o papel masculino. Com isso, após uma
capacidade de conquistar algo valioso (um bem material ou status pessoal) através do
máximo uso de agilidade mental e o mínimo esforço físico. Na verdade, segundo Miller, os
for definido como controle sobre um sistema formal de conhecimento. Esse tipo de
intelectual definida como astúcia, são atributos muito importantes. Um exemplo disso é o
29
A masculinidade seria representada por um complexo de atos e rejeições: corpo tatuado, ausência de
sentimentalismo, despreocupação com coisas como arte ou literatura, etc.
66
que se exige de um líder. Ele deve demonstrar capacidade em duas áreas: deve ser duro e
astuto. No entanto, o líder astuto tem mais prestígio que o líder duro.
O quarto foco de interesse refere-se à excitação. O estilo de vida da classe baixa tem
como uma das características importantes a busca da excitação, de fortes emoções. Neste
sentido, aparece o consumo de álcool – para ambos os sexos – e o gosto pelo jogo. Existem,
amigos próximos “sem fazer nada”, “deixando o tempo passar”, são atividades valorizadas.
De fato, tem-se uma periodicidade mais ou menos estável. Depois de passar um dia, ou um
O quinto ponto de interesse diz respeito à noção de destino, que envolve as idéias de
sorte e fortuna. O mais importante neste ponto é crença difundida de que não vale a pena
fazer esforços para conquistar alguma meta. Se as cartas estão certas, se os dados estão
bons, se seu número da sorte sair, então as coisas acontecerão da melhor maneira. Caso
contrário, não adianta tentar30. Essas idéias teriam relação com a de que só os “trouxas”
trabalham, os astutos conseguem as coisas através da esperteza. Pois se a sorte está do seu
membros da classe baixa demonstram uma forte repulsa por qualquer atitude alheia que
frases que falam sobre o fato de que não precisam de ninguém, que sabem se cuidar
sozinhos, etc. Por outro lado, apesar das manifestações ostensivas de rejeição de qualquer
controle externo, o comportamento verdadeiro dos membros da classe média revela que
esses indivíduos sofrem um tipo de atração por instituições que limitam severamente a
30
O exemplo é dado por Miller, op. cit. p. 356.
67
liberdade individual. Assim, escreve o autor, pessoas da classe baixa procuram as forças
colegas sobre as restrições que sofrem nesta ou naquela instituição, lamentando o fato.
Porém, uma vez do lado de fora, procuram meios de voltar, ainda que seja através de ações
forma a comportar apenas pessoas do mesmo sexo. A sociedade de classe baixa pode ser
vista como um conjunto de grupos definidos por faixas etárias e sexo. Tais grupos
medida em que cumpre uma série de funções essenciais, psicológicas, educacionais, etc,
que não são cumpridas pela família. O grupo da rua aparece como o mais estável e solidário
grupo primário que um adolescente pode integrar. Para os adolescentes do sexo masculino
tal fato assume maior importância porque será a primeira oportunidade real que terão de
aprender os principais aspectos do papel social que deve ser desempenhado pelos homens.
A forma como se estruturam e as funções que cumprem fazem destes grupos da rua
devem ter uma boa capacidade de submeter os desejos pessoais às necessidades do grupo e
precisam ter disponibilidade para uma interação continua e íntima. Decorre deste estado de
68
distúrbios e aqueles incapazes de tolerar sanções continuas que exigem a manutenção de
um comportamento “desviante”31. Apenas os que são capazes de se comportar da maneira
aprovada pelo grupo serão aceitos. Assim, tais grupos se constituem de modo a promover
disposição para acatar os padrões e valores que são mantidos pela comunidade. Assim, um
baixa, a pessoa pode agredir valores de outros grupos, tais como a classe média, por
exemplo. É importante ressaltar que o indivíduo está todo o tempo se conformando aos
valores na forma como eles são definidos pela classe baixa. A violação de valores da classe
média é um preço que o ator tem que pagar se não quer ser excluído de sua comunidade. Os
crimes cometidos pelas pessoas de classe baixa passam a ter, então, uma outra explicação.
Deixam de ser o resultado de uma estratégia inovadora utilizada para conquistar bens que
são valorizados pela sociedade abrangente. De fato, para Miller, o cometimento de crimes
pelos membros da classe baixa é motivado pela tentativa de atingir fins, estados e
condições que são valorizados – e evitar os que são desvalorizados – dentro do meio
diferentes classes sociais são divergentes, a conformidade dos membros da classe baixa
com seus próprios valores pode parecer afronta direta aos padrões de classe média. No
entanto, segundo Miller, a violação de valores da classe média não é a motivação principal
31
As aspas são de Miller. A palavra desviante aqui não tem o sentido mertoniano de desvio em relação ao
conformismo. O comportamento que contraria os padrões médios tem motivação própria. O fato de ser
contrário em relação às normas dominantes não é fator determinante.
69
específicas, as estratégias que pretendem atacá-los devem ter como propósito a
valores e normas naturalmente constituídos por meio de ações públicas planejadas. Este
mertoniana. A sociedade deixa de ser vista como uma unidade de valores compartilhados
independentemente dos grupos que a constituem. Não é mais o caso de dizer que as metas-
sucesso são as mesmas para todos os grupos e que os meios legítimos de atingi-las são
escassos. As próprias metas podem se modificar nos contextos subculturais. Penso que as
duas teorias tratadas aqui, alternativas à explicação mertoniana do crime e do desvio, têm
agirem segundo determinados valores, ou seja, mostra como o grupo exige de seus
integrantes a adesão a certos objetivos, além de mostrar como os treina nas diversas
seja por causa da posição estrutural que ocupam ou por causa do pertencimento a
subculturas específicas, são empurrados para o crime de forma intensa. Outra suposição
comum, ainda que implícita, é: se as causas do problema representado pelo crime são
70
sociais o controle só é possível por meio de uma intervenção sobre variáveis estruturais e
Discuto a seguir o que foi exposto neste capítulo a partir de duas perspectivas
causado exclusivamente por fatores sociais é uma base eficiente para a orientação da
71
Capítulo 3 - TEORIA SOCIOLÓGICA, ESCOLHA INDIVIDUAL E CRIME
crime, em parte influenciada por Durkheim. Na verdade, com Quételét já podemos perceber
comportamento criminoso. A sociedade passa a ser vista como consciência coletiva e não
mais como um agregado de indivíduos atomizados. Mais: ele nega o caráter criminoso que
poderia ser intrínseco ao ato. Na verdade, nenhum ato seria por si mesmo um crime. Um
crime só existe na medida em que um ato de qualquer tipo é classificado como criminoso
sociológico. Como mostram Cohen e Machalek (1994), embora Durkheim use metáforas
biológicas ou naturais, ele não empreende uma explicação verdadeiramente naturalista para
os fenômenos sociais. Como sabemos, a explicação dos fatos sociais deve ser buscada em
fatos sociais anteriores e não em outras características. O importante é que essa forma de
abordar os fenômenos sociais é seguida por autores que depois de Durkheim procuram
explicar o crime.
72
3.1 - Crítica das perspectivas estruturais e subculturais
começando pelo influente artigo de Robert Merton (1958) temos um problema. Esse autor
se distancia de Durkheim na medida em que trata o crime como problema social e aponta a
anomia como sua causa. Ou seja, seria a anomia, provocada pelo desequilíbrio entre metas
adaptações desviantes. Por outro lado, temos uma aproximação importante quando Merton
afirma que está interessado nas origens sociais e culturais do desvio e do crime e, mais,
quando afirma que são respostas individuais normais a situações sociais específicas. Isto é,
o crime, apesar de ser causado pela desorganização social e não ser um fenômeno positivo
como em Durkheim, é produzido pela própria organização social. Por uma forma específica
Cloward e Ohlin (1970) e Miller (1970). Com estes autores, retoma-se uma explicação do
Miller, o desvio e o crime novamente são vistos como produtos sociais ou culturais não
grupos distintos que têm e perseguem suas próprias metas, que são estabelecidas de forma
73
modificações que apresentam, como vimos no terceiro capítulo, ficam com boa parte da
comum entre essas teorias do que o que há de diferente. Assim nos aproximamos de um
em que ressalta a especificidade, e algumas vezes, a autonomia dos valores, dos padrões de
comportamento ou dos “focal concerns”, para falar como Miller. E o que há de comum é
32
É importante lembrar de uma menção que faço no capítulo 2: podemos inferir da teoria durkheimiana que
alguns grupos sociais podem ser privilegiados no sentido de apresentar comportamentos desviantes. As
correntes sociais, afirma Durkheim, prosperam em ambientes restritos onde as condições são mais propícias
ao seu desenvolvimento. Elas não teriam força suficiente para abranger toda a sociedade.
74
interação social, que pode ser observado em nível microssociológico, será apreendido a
processos de socialização.
prescrito são repudiados. Não são aceitos pelos grupos que valorizam o comportamento
ambientes onde as famílias muitas vezes não podem cumprir as funções de socialização que
se atribuem a elas, o grupo de colegas da rua assume essas funções. Tornam-se assim
exemplo, existe uma cultura abrangente que impõe uma série de metas. Essa imposição de
metas é universal, é válida para os mais diversos grupos sociais. No caso dos grupos que
não têm acesso aos meios legítimos de obtenção das metas, teremos uma situação de tensão
que fará com que os membros do grupo, expostos às metas-sucesso universais, usem os
meios ilegítimos para atingi-las. Há, portanto, uma pressão sócio-cultural no sentido do
75
No caso da teoria da “estrutura diferencial de oportunidades” de Cloward e Ohlin, a
desorganização social leva ao surgimento de subculturas, que são vistas como variáveis
delinqüência aparecem dentro desses contextos (Cohen e Land, 1987). A pressão sócio-
subculturais. Os objetivos sociais que levam ao crime não são mais colocados de forma
uma subcultura criminosa. Isto porque o candidato a fora-da-lei deve passar por um
amplo. A existência de subculturas não está vinculada à desorganização social, são tomadas
76
prestígio. Aderir às “preocupações focais” do grupo é condição indispensável para uma
participação efetiva.
objeto de diversos tipos de controle social. Por um lado, o grupo possibilita o seu
criminosas antes de exercê-las efetivamente. Por outro lado, o grupo faz com que o
sentidos.
Neste ponto é interessante voltar a uma crítica que Cohen e Machalek (1994) fazem
e do desvio.
anteriormente. Particularmente nos trabalhos de Merton e Cloward e Ohlin, que fazem uso
explicito do termo “adaptações individuais”. Os autores,
77
ao mesmo tempo em que buscam explicar o crime através de variáveis estruturais,
mencionando aspectos culturais e sua relação com a estrutura social como causa
diferenças quanto à sedução que um ou outro tipo de adaptação pode exercer sobre
indivíduos diferentes. E por que nem todos os indivíduos que vivem em um mesmo
ambiente fazem a mesma opção. Nos trabalhos mencionados, a resposta vai no sentido de
afirmar a preponderância do grupo sobre os indivíduos. O grupo pode ser visto como uma
categoria ampla, como em Merton (onde a noção de estrato social seria mais pertinente) ou
como entidades mais circunscritas e, por isso mesmo, mais autônomas como em Cloward e
Ohlin. A tensão que leva à inovação é mais forte em grupos de classe baixa, por causa de
sua posição na estrutura social. Esses setores da sociedade estão diante de demandas
de indivíduos. Merton, inclusive, afirma que não trata de adaptações psicológicas, mas de
mas não deixa de ser verdade para a abordagem da “estrutura diferencial de oportunidades”.
78
diferenças individuais. Mas não escapa de indiretamente tocar o problema. Isto acontece
quando se refere à preferência que a gangue tem por membros capazes de submeter as suas
vontades individuais às necessidades do grupo e por aqueles indivíduos prontos para uma
interação contínua e controlada de acordo com as preocupações focais. O fato é que se esta
questão se coloca, ou seja, se a gangue seleciona seus membros, pode-se concluir que
individual nessas teorias. Essas críticas são feitas por Gottfredson e Hirschi (1990), Wilson
importante dar conta da dimensão individual da ação para se chegar a uma explicação
completa do problema do crime. Nesse sentido, usam, ainda que de maneiras diferentes, a
explicação do crime. No caso de Wilson (1985), discutido no quinto capítulo, o foco é uma
avaliação desses modelos segundo a capacidade que teriam de informar políticas públicas
de controle do crime. Ou seja, em que medida seriam úteis na busca de uma solução para o
problema público representado pelo crime. Mas a crítica que se preocupa com as
procurando atingir intencionalmente objetivos da maneira menos custosa. Esse fato, por si
79
comportamento de seus membros de acordo com os interesses da coletividade. Alguns tipos
de comportamento que podem ser muito racionais do ponto de vista de um indivíduo, são
prejudiciais para a sociedade. O uso da força e da fraude, além dos prejuízos óbvios para as
contemporâneos mostram que o crime, na verdade, produz medo e isolamento de modo que
compromete a integração social (Liska e Warner, 1991. Caldeira, 2000). Assim, alguns
comportamentos são alvo de sanções aplicadas pela sociedade, ou melhor, pelo Estado.
mas irracional do ponto de vista da coletividade, a sanção tem como objetivo manipular os
Escola Clássica (representada por J. Benthan e C. Beccaria) passam desse ponto para o
benefícios da ação. Entretanto, para a sociologia, haveria um problema anterior, que deve
ser compreendido: por que indivíduos diferentes reagem de maneiras diferentes às sanções
criminosos.
quais as propriedades formais dos crimes, quais são as condições necessárias para sua
ocorrência, o que acontece quando as pessoas tentam perseguir seu interesse através da
força e da fraude, quais os prazeres e gratificações são atingidos através dos crimes, qual é
a conceituação apropriada do crime e, por fim, o que o crime nos diz sobre o criminoso
(Gottfredson e Hirschi, 1990, p.15). Estas perguntas seriam necessárias porque a descrição
do que diferencia o criminoso só pode ser obtida a partir da análise dos padrões recorrentes
presentes nos crimes realmente acontecidos. Só assim seria
80
possível construir uma teoria coerente com os dados empíricos conhecidos. Dados que
isto é, um ser socialmente constituído que teria aprendido técnicas e habilidades e sido
mundanos, que envolvem pequena perda para a vítima e menor ganho para o agente. Esses
eventos têm uma distribuição espacial e temporal altamente previsível, não exigem
autores concluem que o crime mostra um padrão mais consistente com as atividades
recreacionais dos jovens do que com as atividades vocacionais dos adultos. Mostram que
não há inclinação para o dispêndio de esforço em relação à atividade criminosa, que vítimas
são pessoas em situação vulnerável e que evitar a detenção faz parte do cálculo do ofensor.
Os autores procuram mostrar que habilidades especiais não são exigidas para a
prática de um crime. Crimes como roubo, estupro e homicídio exigiriam apenas a aparência
de força física superior ou a posse de algum instrumento de força (armas). Crimes contra
propriedade podem exigir força física e destreza, mas na maioria dos casos nada mais que o
que se exige para as atividades rotineiras da vida. A maioria dos crimes acontece em locais
percebe a oportunidade, além disso, procura casas que estejam abertas e se concentra em
chave na ignição são preferidos, alvos são escolhidos de acordo com a acessibilidade.
81
Finalmente, os autores analisam as condições necessárias para a ocorrência de um
crime. Nesse ponto pretendem fazer a articulação entre a definição de crime que buscam
propensão individual para o cometimento de crimes. De uma definição de crime, que foi
grandes equívocos da criminologia moderna. A partir dos padrões que são identificados em
valores e normas desviantes, Gottfredson e Hirschi utilizam, como foi dito, a noção de
apresentam. Essa diferença teria fundamentos sociais (tipo de educação recebido, por
forças externas (biológicas ou sociais) que seriam responsáveis pelas diferenças entre
escola clássica, o crime é um tipo comportamento que surge naturalmente se não for
82
comportamento da criança, 2) reconhecimento do comportamento desviante quando ocorre,
3) punição desse comportamento. Dessa maneira, a pessoa que cuida da criança estaria
criança educada dessa forma seria mais capaz de adiar uma gratificação, seria mais sensível
aos interesses e desejos dos outros, estaria mais disposta a aceitar constrangimentos
impostos à sua ação e estaria menos propensa a usar a força e a violência para atingir seus
É importante, para analisar o crime e o desvio, saber como e por que algumas
os autores, é óbvio que não se pode supor a existência de pais que desejassem que seus
filhos fossem mal-socializados. Com esse argumento procuram excluir a idéia de uma
das teorias subculturais. Assim, onde estaria o erro? Por que as coisas não funcionam como
deveriam? Para Gottfredson e Hirschi, em primeiro lugar, os pais podem não cuidar dos
filhos. Em segundo lugar, mesmo cuidando, podem não ter tempo e energia para monitorar
monitorando, os pais podem não ver nada de errado com o comportamento dos filhos. Em
quarto lugar, mesmo com todos os requisitos acima funcionando, os pais podem não ter
disposição ou meios para punir. Como resultado desse tipo de relação teríamos crianças
externos, propensas a usar qualquer meio disponível para atingir um objetivo. Enfim,
83
em grupo, são egoístas. Não se ligam fortemente a outras pessoas ou a projetos coletivos. O
crime é resultado de uma socialização que foi incapaz de incutir o auto-controle. Todo o
são versáteis e não se especializam porque são pessoas orientadas para o presente. Sempre
procuram a opção mais fácil e imediatamente disponível. Não têm qualquer compromisso
com cursos pré-definidos de ação. A especialização não acontece e nem é necessária porque
mostrar que o crime de colarinho-branco, a partir da teoria geral do crime que propõem, é
uma impossibilidade lógica. Se os criminosos são pessoas que apresentam baixo auto-
controle, que se orientam para o presente, que têm dificuldades com a escola dificilmente
O mesmo acontece com o crime organizado. Criminosos, por definição, têm pouca
capacidade de organização. Não são capazes de ações organizadas de longo prazo. Toda a
33
Não é beeeeem assiiiiim!!! A obsessão da teoria geral!
84
por exemplo, é considerada como uma ficção, que é muitas vezes mantida por interesses
das agências governamentais (criar uma idéia de “guerra contra o crime”) e da imprensa. É
possível a ocorrência de ações organizadas bem sucedidas, mas as ações desse tipo são
se dissolvem rapidamente.
O fato é que a maioria das variáveis que são consideradas como causa de crimes
passam a ser vistas como efeito de uma mesma causa: o baixo auto-controle. O
desemprego, por exemplo, é muitas vezes usado como variável explicativa de crimes. A
falta do emprego pode levar à opção pelos meios ilegítimos. Para Gottfredson e Hirschi,
não há relação causal entre emprego e crime. Na verdade, criminosos têm dificuldade de
conseguir empregos por causa do baixo auto-controle, não se interessam por atividades
crime. O criminoso tem dificuldade de manter esses laços. Da mesma forma, o fraco
desempenho escolar não leva à opção pelos meios ilegítimos. É o criminoso que não se
adapta à disciplina imposta pela escola. Criminosos têm dificuldades de manter laços
partir daí determina o sentido das ações individuais, é a variável causal que está por trás de
apontam para problemas reais da teoria positivista do crime. Como já foi mencionado, essas
escolha individual como fator que pode levar ao crime. As críticas à socialização, entendida
85
sucedido, a recolocação do problema da carreira criminosa e da especialização, a
desmistificação do papel dos grupos são pontos que merecem atenção. Por outro lado, é
autocontrole. Essa tendência surge como conseqüência de obsessão pela formulação de uma
teoria geral do crime. Teoria que dê conta do fenômeno em todas as suas dimensões e que
natural que deve ser evitado pela coletividade. Quando os meios de se evitar o crime não
processar todas as informações presentes no ambiente onde age. Não lida de maneira
Devemos, neste ponto em que se encontra a análise, tratar de alguns problemas que
normalidade do crime desenvolvida por Durkheim (1990), e nos ajustes feitos por Randall
em que os padrões de comportamento são não são diferentes de um grupo social para outro.
86
e considerando as teorias contemporâneas, podemos imaginar uma sociedade onde padrões
autocontrole para um jovem que tem amplas oportunidades legítimas à sua disposição é
uma opção racional. Mas pode não ser racional para aquele jovem que não tem acesso às
instituições próprias da classe média. Neste caso, uma perspectiva orientada para o presente
pode ser mais interessante, a concentração no curto prazo pode ser mais produtiva. O
conflito com os padrões de classe média pode aparecer como um subproduto das atividades
de membros das classes baixas. Assim, temos um ator que pratica crimes não porque foi
socializado para praticar crimes, mas porque seu comportamento, socialmente aprendido ou
encontram nos crimes praticados, constroem uma caricatura do criminoso como este fosse
todos os dados sobre crimes a partir da definição que construíram. Assim, se o criminoso
não apresenta autocontrole não pode ter sido socializado para o crime e nem para outro fim
87
Além disto, os argumentos subculturais não são definitiva e consistentemente
descartados apenas com a análise dos padrões recorrentes dos crimes. O fato de que
criminosos são em geral mal sucedidos, que os ganhos pecuniários são restritos e que o
crime é na maioria das vezes uma resposta à oportunidade não necessariamente indica que
o criminoso não tem autocontrole. Pode significar, por exemplo, que estão “making the best
of a bad job” , como dizem Cohen e Machalek (1988, p.495). O fracasso e a precariedade
das estratégias seria um resultado da situação desfavorável na qual essas pessoas estariam
pode carregar não é necessariamente um sinal de orientação para o presente, pode muito
bem ser indicador de bom senso. O mesmo vale para o caso de roubar preferencialmente
criminalidade. Ao mesmo tempo em que recorrem aos clássicos, buscando uma definição
geral da ação (racional) e, por conseqüência, da ação criminosa, os autores criam, através
indivíduo que por ter sido mal socializado é incapaz de avaliar todas as dimensões da sua
ação em relação ao ambiente. Sua orientação para o presente e sua incapacidade de adiar
uma ganho imediato em troca de outro futuro impede uma ação planejada ou coerente ao
longo do tempo. Se for possível criticar os positivistas porque concentram a sua análise em
ou seja, que o criminoso é alguém socializado para o crime “de uma vez por todas”, perde-
se a possibilidade de uma análise neutra da ação desse criminoso, que em alguns contextos
88
pode ser racional. Ainda que em situações específicas possa agir orientado para o presente e
sem nenhuma perspectiva de futuro. A questão é que, mesmo que se diminua o peso das
seus membros. Assim, não há uma relação de necessidade entre os padrões recorrentes que
prazo), que, vale destacar, podem não ser uma descrição completa do que é o crime, e a
“dificuldade” dos criminosos em relação a laços sociais e institucionais, pode muito bem
por meio do trabalho feito por Martín Sánchez Jankowski (1991). Esse autor pesquisou, por
dez anos, gangues de latinos, negros e irlandeses em Nova Iorque, Boston e Los Angeles.
De seu estudo podemos inferir que as explicações estruturais e subculturais não são
completamente suficientes. Gangues não são produtos de uma única causa, como a
desorganização social, por exemplo. Indivíduos não se juntam a gangues para encontrar
uma ordem que não existe em seu ambiente, para substituir a figura paterna ou porque a
os jovens. Não há, também, evidências de especialização, os alvos das gangues podem
variar de acordo com a avaliação das oportunidades. Além disso, por estar em uma gangue,
uma pessoa não abandona definitivamente empreendimentos individuais. Pode agir como
34
Normas e valores que não seriam determinantes no sentido de Miller, mas que fariam parte de um ambiente
que favorece a opção por estratégias desviantes
89
membro da gangue em algumas ocasiões e por sua própria conta em outras. Pessoas se
juntam a gangues por uma série de razões e sempre fazem um cálculo racional sobre a
entrada ou saída.
delinqüente como um ser destituído de autocontrole, guiado pelo momento, sem capacidade
de planejamento não é adequada. Em primeiro lugar, gangues são organizações que, ainda
drogas, podem ser planejados e perseguidos de forma orientada. Como uma organização, a
ou expulsa aqueles que não cooperam. Precisamente, aqueles incapazes de agir de acordo
com objetivos coletivos e de longo prazo. Obviamente existem gangues que se dissolvem
com o tempo, principalmente porque não conseguem se estabelecer como uma organização
e controlar o comportamento dos membros. Mas isso não é uma regra, acontece em
ocasiões específicas.
autocontrole. Segundo Jankowski, o que é típico de membros de gangue é o que ele chama
que percebe uma luta pela sobrevivência onde os mais fortes ganham e para a qual cada um
tem que estar preparado. A partir dessa postura, desenvolvem-se alguns atributos como um
90
educados para apresentar esses traços de caráter, crescem em um ambiente que os estimula.
Jankowski mostra que o “defiant character” é resultado de uma ordem social alternativa,
hobbesiana, onde há uma intensa disputa por bens escassos. A necessidade de disputar a
maior parte dos recursos já é realidade na infância para crianças que vivem em famílias
numerosas e de baixa renda. Além disso, outros incentivos estão presentes para esses
jovens. Muitas vezes são filhos de ex-membros que estimulam a entrada em gangues para
contexto de uma ordem social alternativa é mais apropriado do que afirmar que não é
avalia que essa é a melhor alternativa em um determinado momento, de acordo com seus
objetivos. Mas a gangue também seleciona aqueles mais interessantes de acordo com os
isso, gangues que apresentam uma estrutura hierárquica vertical, com comando
não só as deficiências dos modelos estruturais e subculturais, mas também aponta para as
(1990). Ou seja, supor que processos de socialização são a única causa da motivação para o
crime não parece consistente se considerarmos os dados empíricos disponíveis. Por outro
também inadequado. Afinal de contas, membros de gangue são capazes de planejar ações
91
3.3 - Escolha racional, sociologia e crime
individual da ação pode ser encontrado nos trabalhos de Wilson (1985) e Wilson e
controle do crime. Quanto à crítica mais geral das teorias macrossociológicas do crime, há
mesmo ambiente social, cometem crimes e outras não. Essa resposta só é possível por meio
Jankowski.
Wilson e Herrnstein (1985) utilizam uma variação da teoria da escolha racional para
curso preferido de ação. Não faz parte da premissa a necessidade de que se faça uma
escolhe o que prefere seria apenas uma tautologia, a menos que se identifiquem claramente
92
Considerando uma situação em que um indivíduo se encontra diante de uma escolha
Herrnstein formulam a hipótese que servirá de base para toda a discussão subseqüente:
“The larger the ratio of the net rewards of crime to the net rewards of noncrime, the
greater the tendency to commit the crime”(1985, p.44). Entre os benefícios líquidos do
crime inclui-se não só um possível ganho material, mas também benefícios intangíveis
como uma satisfação emocional ou sexual, a aprovação dos pares, a solução de uma
Segundo os autores, deve-se deduzir desses ganhos qualquer custo que se apresente
crime, o indivíduo pode evitar o risco de ser preso e punido pelo sistema de justiça
criminal. Pode também evitar sanções sociais mais ou menos informais, como a
consciência, a aprovação dos pares, algum senso de injustiça podem aumentar ou diminuir
o valor do crime. Por outro lado, a boa opinião da família, dos amigos e do patrão, e a
mesmo quando essas variáveis se mantêm constantes, deve-se levar em conta que
93
subestimar a dor de consciência posterior ao ato ou o peso que a desaprovação da família
representaria. Vale notar que Wilson e Herrnstein não deixam de se preocupar com o
problema da criminalidade, isto é, com o que diferencia os criminosos dos não criminosos.
exemplo, seria importante na medida em que mostra como a falta de benefícios do não-
crime, falta de acesso a profissões afluentes, por exemplo, é um fator que pode levar à
escolha do crime. No entanto, é parcial porque não considera todos os possíveis prêmios do
crime pode se tornar uma escolha interessante não só pela ausência de empregos, mas,
também, porque a severidade e a certeza das penas diminuíram. Quanto ao valor do crime,
ele não se restringe ao ganho material ou ao status obtido, fazem parte do cálculo os custos
desigualdade. Além disso, as pessoas são diferentes quanto ao grau de impulsividade que
apresentam. A perspectiva do desvio cultural, de Walter Miller, enfatiza, por sua vez, os
crimes. Nesse caso, os valores aprendidos são aqueles presentes nas comunidades de classe
baixa e que entram em choque com os valores da sociedade abrangente. No entanto, não se
explica porque algumas pessoas escolhem a participação em gangues enquanto outras são
94
jovens. Além disso, adolescentes pouco inclinados à conformidade associam-se com outros
na mesma condição sem desenvolver fortes laços de solidariedade ou lealdade por causa de
mais ofensas do que seriam capazes sozinhos. A própria organização seria responsável por
isso. O importante é que, na medida em que a gangue atrai pessoas previamente dispostas a
praticar crimes – e promove estratégias que aproveitam essa disposição –, não é necessário
que consiga tal resultado por meio de processos de socialização. De fato, o recrutamento
seletivo e o controle sobre o comportamento dos membros podem ser fatores mais
É interessante notar que nessa abordagem o crime pode ser uma opção racional. A
posição que o indivíduo ocupa na estrutura social pode fazer com que o crime seja uma
pode preferir atividades que, mesmo que não impliquem ascensão social ou vantagens
entender que é muito mais interessante roubar carros do que lavá-los. Caso o indivíduo
perceba que as chances de ser punido são pequenas, a alternativa fica ainda mais
presente por meio de gangues de rua ou de criminosos mais velhos que podem usar os
serviços de adolescentes ou, ainda, por meio de uma cultura que não avalia negativamente
criminosa.
Deve ser ressaltado que o fato de existir uma cultura (ou subcultura) que suporta
atos de delinqüência não implica, necessariamente, que o crime seja transmitido por
95
importante é que, entre várias alternativas de comportamento possíveis, a delinqüência e o
crime apareçam com relativo destaque. Alguns indivíduos, por causa de predisposições
construir uma teoria que é tão abrangente e detalhada que perde seu potencial analítico. Os
próprios autores admitem que aquilo que apresentam é mais uma perspectiva que organiza
66). Uma perspectiva que não seria empiricamente verificável exatamente por ser muito
ampla. Seria impossível elaborar um teste que pudesse verificar, de uma só vez, todas as
análise da psicologia individual do ator. Estamos, mais uma vez, diante da obsessão
ação sem recorrer à análise da psicologia individual. Estes autores demonstram que o
96
relação à compreensão do fenômeno. O que parece ser mais apropriado quando se pretende
97
4 - TEORIA SOCIOLÓGICA, POLÍTICAS PÚBLICAS E CRIME
são causados primordialmente por fatores sociais. Dado que as críticas das teorias
não é necessária. Mais ainda no caso das perspectivas que foram resumidas na primeira
seção do quarto capítulo. Como foi dito, tais perspectivas são, em boa medida, herdeiras de
Durkheim. Esse autor, quando estudou o problema do crime e do desvio, não se preocupava
especificamente com esses problemas. Como escreve Paixão (s.d.), o crime e o desvio nos
No caso dos autores que foram tratados anteriormente, é evidente que há uma
preocupação clara com a explicação do problema social do crime. Não usam o fenômeno
como pretexto para analisar outras dimensões da realidade social. Mais: não ocupam uma
posição privilegiada em seus estudos as implicações práticas das explicações que propõem.
Não há uma necessidade intrínseca de que tais teorias levem a proposições de políticas
98
fenômeno social, é legítimo em si mesmo. Por outro lado, a partir do momento em que o
crime é visto não só como um problema social que provoca prejuízos sociais e individuais,
mas como um problema público, surgem demandas para que os cientistas sociais
os termos de Gusfield) apresentem soluções, que apontem diretrizes para a ação. Além
Como mostra James Wilson (1985), a partir da década de 60, o governo dos Estados
Wilson faz um longo exame dos tipos de elaboração teórica presentes nos trabalhos
delinqüência. É importante considerar essas críticas porque são feitas a partir de um exame
que se baseiam essas explicações. Embora o alvo seja a incapacidade das teorias em
99
seria impossível, ou muito difícil, resistir. Fatores sociais e sociológicos fazem com que o
indivíduo aja de determinada maneira, não sobraria muito espaço para a escolha individual
apresentado, que o indivíduo não escolhe livremente, tanto do ponto de vista da eficácia,
como do ponto de vista ético, são esses elementos que devem ser atacados no para que se
Segundo Wilson, essa concepção teórica seria responsável pela falha dos sociólogos
causal busca encontrar a origem do comportamento humano naqueles fatores que não são,
eles mesmos, causados (variáveis independentes). Algo não pode ser causa de alguma coisa
se é, por sua vez, causado. Seria, nesse caso, uma variável interveniente. O ponto central da
argumentação de Wilson aparece: “causas últimas não podem ser objeto de políticas
precisamente porque sendo últimas dificilmente podem ser mudadas” (1985, 46).
O autor continua sua argumentação afirmando que nem toda causa primária é
imutável, mas a descoberta de causas primárias não significa que a crime não envolva
100
pelo fraco desempenho na escola. Se essa frustração contribui para o crime, reduzir os
entanto, nem todos que apresentam fraco desempenho escolar tornam-se criminosos (nem
todos desempregados, nem todos que moram em favelas, etc.). Por isto, não pode ser dito
que a falha na escola determina o comportamento criminoso. Não há, escreve Wilson,
políticas, mostrando uma possível oportunidade de mudança. “But the more we understand
the causes of crime, the more we are drawn into a complex and subtle world of attitudes,
difficult” (Wilson, 1985, 47). Segundo o autor, no caso das escolas, o “policy maker”
descobrirá que melhorar o desempenho é muito mais que construir melhores instalações e
Segundo Wilson, é a falha em entender esse ponto que faz com que muitos “homens
de Estado”, cientistas e cidadãos cometam a falácia causal. Isto é, acreditar que nenhum
problema será tratado de forma adequada enquanto suas causas não forem eliminadas.
Sociólogos ligados à tradição positivista estariam entre aqueles que cometem a falácia
irrefutável sobre as causas do crime para só então eliminá-las. Esse tipo de atitude estaria
por exemplo, afirma-se que indivíduos cometem crimes quando fazem parte de grupos que
101
grupos nos quais o crime é visto como um comportamento desejável. No entanto, adverte
Wilson, os autores não apontam nenhuma forma concreta de como essa modificação pode
criação de planos de ação efetivos. Transformar, de modo planejado, normas e valores que
como mostra Jankowski, a ação de instituições como igreja, escola e polícia pode ser
“rebeldes”.
indivíduo que tem oportunidades restritas na estrutura legítima pode ocupar uma posição
delinqüente. O ator não escolhe entre alternativas de ação, mas é socializado de uma
agente que deve escolher entre a via legítima ou a ilegítima. Não seria possível saber, no
102
crime, se o mais interessante é aumentar os benefícios da via legítima ou os custos da
escolha do agente. Além do mais, como foi discutido acima, a importância dos processos de
Gottfredson e Hirschi (1990), Wilson e Herrnstein (1985) e Jankowski (1991). A partir das
na explicação do crime. Isto é, não existem indicações claras que seja interessante
Para a análise de políticas as questões são outras. Não se pergunta qual é a causa de
um fenômeno, mas qual estado se quer atingir, qual tipo de evidência pode informar se o
estado foi atingido e quais são os instrumentos de intervenção disponíveis que podem
produzir o estado desejado a um custo razoável. O governo, escreve Wilson, tem à sua
disposição alguns instrumentos, não muitos. Pode distribuir renda, estimular a oferta de
detenção, iluminar vias públicas, alterar o preço de drogas e álcool, fazer com que pessoas
crime, os benefícios das ocupações não-criminosas, o acesso a objetos que podem ser
roubados, e (em alguns casos) o estado mental de criminosos ou candidatos ao crime, não
mais como objetivo inicial das políticas, mas como um subproduto resultante da
não por uma crença no fato de que tais manipulações atingem as “causas do crime”, mas
pela consciência de que o comportamento é mais manipulável que a atitude. E,
103
principalmente, porque os instrumentos que a sociedade tem à disposição para alterar
comportamentos em curto prazo exigem a suposição de que as pessoas agem de acordo com
as suas percepções sobre os custos e benefícios de cursos alternativos de ação e que levam
atitudes que são socialmente constituídas. Essa suposição, mesmo sendo teoricamente bem
complexos processos sociais não são facilmente mudadas por planejamento. Por outro lado,
o analista de políticas assume que o crime é resultado da escolha racional do ator. Parte de
irrefutável, analisa o crime como se fosse resultado da livre escolha do agente. A idéia é
que “the radical individualism of Bentham and Beccaria may be scientifically questionable
A análise de dados sobre as variações das taxas de crime reforça essa posição.
Questiona, inclusive, a força causal que variáveis sócio-econômicas poderiam ter. Torna-se
claro que tratar o crime como se fosse resultado da escolha individual não é uma opção
delinqüência pode ser resultado de preocupações focais de classe baixa, de uma subcultura
ser atacados para se reduzir o crime. Levar as agências do Estado ou da comunidade até os
104
mencionados de construir ou modificar valores sociais através de ações intencionais e
crime não é estratégia de sobrevivência para a maioria dos pobres, outros elementos, como
a escolha individual, estariam em jogo. Nesse caso, políticas distributivas não seriam
plenamente eficazes. Além do mais, mesmo em um caso específico onde o crime fosse
empregos pode não dar os resultados esperados (a opção pela via legítima). Em uma
permanecem inalterados (se os riscos de punição são pequenos, por exemplo) pode não
haver opção pela via legítima. Particularmente se temos um ator racional calculando os
Wilson (1985) mostra que nos anos sessenta, apesar de uma melhora em diversos
indicadores sociais como níveis de pobreza, qualidade das habitações, freqüência à escola e
em que os indicadores sociais melhorassem. Por que, então, o aumento das taxas? Uma
segunda guerra mundial. Nos anos de 1962 e 1963, as crianças nascidas em 1946 estavam
criminosa. Fato que por si só questiona a relação de causalidade simples entre pobreza e
criminalidade.
Mas a idade não explica tudo. Enquanto o número de pessoas com idades entre 16 e
29 anos cresceu 32% no distrito de Colúmbia entre 1960 e 1970, os problemas sociais
aumentaram muito mais. A taxa de crimes sérios aumentou mais de 400%,
105
taxas de assistência mais de 200%, desemprego mais de 100%, abuso de heroína mais de
1.000%. A interpretação desses dados, feita por Wilson, revela que o crescimento do
número de jovens teria um efeito exponencial sobre as taxas de certos problemas sociais.
Haveria uma “massa crítica” de jovens que quando atingiu certo número desenvolveu uma
problemas sociais. “What had once been relatively isolated and furtive acts (copping a fix,
poderiam processar esses problemas em condições rotineiras foram superados, quando não
entraram em colapso tão intenso que quase pararam de funcionar. A força dissuasória da
polícia e dos tribunais, que não era grande em períodos normais, diminuiu. Não apenas
decresce (o que estaria acontecendo por causa de uma explosão do número de jovens em
idade de ingressar no mercado de trabalho) ao mesmo tempo em que o custo das atividades
Analisando dados sobre a criminalidade violenta no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte (décadas de 1970 e 1980), o autor mostra que, mesmo havendo alguma relação
criminalidade, “as correlações são geralmente baixas e nunca suficientes para atribuir a
106
criminalidade” (Coelho, 1988, 151). No início dos anos 80, por exemplo, quando a
recessão era mais forte, houve queda nas taxas de criminalidade no Rio de janeiro e em São
Paulo. Por outro lado, comparando as variações das taxas de criminalidade com
situação descrita por Wilson. Em um mesmo período, caem os benefícios da via legítima,
via ilegítima, na medida em que há menos policiais nas ruas, menos patrulhamentos
ostensivos, etc. Acrescentando-se à situação um sistema judiciário falido, que faz do crime
correlações são estatisticamente fracas; por outro, nem todos numa mesma situação sócio-
(de dissuasão) que explicariam as escolhas individuais. O fato é que um ator racional leva
relativos a uma opção pela via ilegítima. A situação se torna mais complexa quando
pensamos que não há uma necessidade de que a opção entre via legítima ou ilegítima se
excluam mutuamente.
Vinícius Caldeira Brant (1994) mostra como a imagem do criminoso como uma
equivocada. Por meio de um survey realizado nos presídios de São Paulo, o autor mostra
que há pouca diferença entre a população prisional e a população em geral quanto ao local
menores entre a população presa do que entre a população em geral. Quanto ao desemprego
crônico, apenas 1% dos presos no estado de São Paulo nunca trabalharam.
107
Não é verdade, também, que o criminoso preso é alguém “que não pára em emprego”, em
média, a população prisional permaneceu por três anos e meio em uma ocupação, 60%
tiveram, no máximo, três ocupações anteriores. Além disso, “dos 45% que estavam
(Brant, 1994, p.79). Enfim, o que mais diferencia os trabalhadores soltos e presos, segundo
Brant, pelo menos no caso do perfil sócio-econômico, é o fato de uns estarem fora e outros
dentro dos estabelecimentos penais. O que fica claro é que não se pode afirmar que a
indivíduo socializado para o crime de uma vez por todas. Seria mais apropriado pensar em
um ator racional que parte de uma avaliação do ambiente, ainda que não plenamente
consciente, e escolhe entre alternativas de ação. Mais: os dados mostram esse ator racional
leva em conta outras dimensões da realidade quando escolhe a via criminosa. Como já foi
108
de custos e benefícios inclui não só o valor (não apenas o material) das ocupações
legítimas, mas também das ilegítimas. Isto é, não se leva em conta apenas se há ou não
possibilidades de ascensão social através dos empregos legítimos disponíveis, mas também
os riscos de punição relativos à via ilegítima. Se roubar carros é uma atividade muito
estruturais e subculturais, são criticadas tanto por autores como Gottfredson e Hirschi
(1993) e Wilson (1985). Para os primeiros, partindo da idéia já apresentada de que a causa
distributivas são ineficazes. Indivíduos não optam pelo crime por causa da falta de acesso
aos meios legítimos. A dificuldade de conseguir e manter empregos tem a mesma causa que
o crime. Aumentar a oferta de empregos não teria nenhum efeito sobre indivíduos que
desde a infância não pode ser mudado através de processos de ressocialização. O próprio
109
parte dos crimes. Em um estudo conduzido por Wolfgang, Figlio e Sellin35, de 1972, que
acompanhou jovens da Filadélfia que teriam cometido 10.214 ofensas, descobriu-se que
apenas um sexto desses jovens seriam responsáveis por mais da metade das ofensas. Assim,
crônicos. No entanto, segundo Gottfredson e Hirschi, as técnicas que permitem prever taxas
individuais de crime são ineficientes. Surge um problema não só técnico, mas também
ético: como decidir sobre quem deveria ser objeto de penas especialmente duras, de
incapacitação, a partir de uma expectativa de comportamento que pode não ser exata? Para
saber, com certeza, se uma expectativa é correta, seria preciso esperar que os prováveis
criminosos crônicos cometessem crimes em altas taxas. Mas, assim, perde-se o sentido da
podem estar sendo observados pela polícia, pelo menos os que apresentam um baixíssimo
nível de autocontrole. A polícia normalmente responde ao crime, age depois que o crime foi
problema dessa abordagem é que ela é contaminada pela idéia de que o criminoso é,
35
Wolfgang, M., Figlio, R., e Sellin, T. (1972) Delinquency in a birth cohort. Chicago, University of Chicago
Press.
110
o de Vinícius Caldeira Brant (1994) não parece ser consistente essa idéia de que o
acesso ou a existência de possíveis alvos (carros com a chave na ignição, casas abertas).
métodos de educação das crianças usados pelas famílias. Segundo os autores, o baixo
autocontrole aparece nos primeiros seis ou oito anos de vida. Quando as crianças estão sob
a supervisão da família. Mudar métodos educacionais das escolas não seria suficiente. Uma
criança que desenvolveu o baixo autocontrole nos primeiros oito anos de vida teria,
autores não oferecem nenhuma alternativa concreta de como isso pode ser feito. E se
que as tentativas de “ensinar” pais a educarem os seus filhos podem não ser produtivas.
Como escreve Wilson, podemos identificar uma família que dá uma boa educação a seus
filhos, podemos, inclusive, imaginar uma família sendo orientada por um competente
destinadas a restaurar a afeição, a estabilidade e a disciplina para inúmeras famílias que não
têm essas características (Wilson, 1985, 45). Ainda mais quando supomos que pais que não
111
4.3 – Teoria da escolha racional e controle do crime
acompanham um modelo teórico que supõe que o criminoso age racionalmente. Quando se
judiciário como forças dissuasórias pode ser avaliada com maior acuidade. Existem
prever as conseqüências de seus atos; existem aqueles que mesmo numa situação muito
definição.
redução das taxas de crime. Entender a dissuasão apenas como um fator que reduz o crime
na medida em que aumenta seus custos, evitando que candidatos ao crime optem por esse
sentido usual do termo, é importante levar em conta que o aumento dos benefícios do não-
crime (oferta de empregos, por exemplo) pode fazer com que pessoas que estejam em uma
situação limite, podendo optar pela via legítima ou ilegítima, decidam-se pela via legítima.
De um lado, a manipulação dos custos do crime tenta impedir a adesão do indivíduo à via
ilegítima, de outro, a manipulação dos benefícios do não-crime tenta atraí-lo para a via
legítima. A questão, escreve Wilson, é que uma mesma concepção da natureza humana está
por trás das duas formas de ver o problema: pessoas escolhem racionalmente entre cursos
alternativos de ação a partir do cálculo dos custos e benefícios ligados a cada alternativa. E
não há motivo para tratar separadamente os dois lados do problema, pelo contrário, é mais
produtivo fazer uma análise conjunta desses fatores. São dois lados de uma mesma
estratégia de combate ao crime. As teorias estruturais, tratadas acima, apresentam
112
dificuldades em relação a esse problema porque desprezam a dimensão da ação individual,
apesar de mencionarem as adaptações individuais, e com isso não conseguem avaliar como
Wilson, em uma situação onde há oferta de empregos legítimos, mas os benefícios do crime
aumento dos benefícios do não-crime pode conduzir à opção pela via legítima, diz respeito,
diretamente, à questão da possível relação causal entre pobreza e crime. Um ator racional
quantidade de trabalho que seria exigida e faria uma comparação com o que poderia
conseguir com atividades criminosas, quais seriam os riscos dessas atividades, quais seriam
os riscos de ser detido pela polícia e o que poderia ganhar em termos materiais ou não-
materiais. A relação entre emprego e crime não é, portanto, simples. Como afirma Wilson,
aumento das taxas de crime. Mas isso pode não ser verdade, a opção pelo crime, que no
período teria se mostrado muito atrativo, poderia ser responsável pelo desemprego. Outras
vezes crime e desemprego podem ser efeito de uma mesma causa. De qualquer maneira,
como já foi mencionado por meio dos trabalhos de Edmundo Campos (1988) e Vinicius
Caldeira Brant (1994), a relação entre crime e desemprego, mesmo quando é real não é
estatisticamente significativa e nunca é direta. Não é correto pensar que apenas reduzir a
crime) pode produzir uma significativa mudança nas taxas de criminalidade. Mesmo porque
políticas para aumentar oferta de empregos para jovens em idade e situação sócio-
econômica críticas são ainda mais difíceis de serem implementadas. Não é o caso de dizer
113
que as tentativas de aumentar os benefícios do não-crime devam ser abandonadas, mas que
sempre devem ser acompanhadas por políticas que visem o aumento dos custos do crime.
custos do crime. Ações proativas como a de parar e interrogar pessoas nas ruas, por
exemplo, poderiam dar bons resultados. Programas que usam “bafômetro” para deter
pessoas que dirigem embriagadas podem diminuir o número de acidentes de trânsito. Ações
mais decididas contra maridos que agridem esposas poderiam diminuir casos de agressão.
suspeitos em uma esquina, por exemplo). É menor em relação a crimes que envolvem
Alterar sentenças seria uma forma de dissuasão mais eficaz. Embora não seja uma
tarefa simples, pesquisas indicam que alterar a probabilidade de punição pode levar a
aqui é que há uma tendência de que a “severidade seja inimiga da certeza e da rapidez”.
Juizes, promotores e advogados seriam mais criteriosos ao tratar de penas mais severas e,
com isso, o processo se alongaria. Para conseguir uma maior dissuasão a partir de
mudanças na lei, deve haver um equilíbrio que permita uma pena suficientemente severa,
mas não tanto que provoque a resistência do sistema judiciário, o que levaria à lentidão.
O problema geral que limita as possibilidades da dissuasão é que esse fator conta
mais definitivamente para um conjunto de pessoas que estaria numa situação limite,
Pessoas para as quais o medo da punição ou uma chance real de emprego seriam dados
significativos. Mas essas pessoas (ex-viciados, ex-condenados de meia idade, adolescentes
114
inexperientes) não cometem os crimes mais sérios, que preocupam a coletividade. Esses
crimes são cometidos pelo criminoso crônico, que os pratica em altas taxas. Citando o
trabalho de Marvin Wolfgang, et alli, mencionado anteriormente, Wilson mostra que dos 10
mil jovens pesquisados um terço foi preso, para metade desses a carreira criminosa
terminou na primeira prisão. Mas para um jovem que foi preso três vezes, a chance de ser
preso novamente era de 70%. Esses números confirmam a impressão de que o controle
social informal, o efeito dissuasório da punição e o desejo de entrar para o mercado formal
de trabalho são fatores que impedem um maior crescimento do crime. Mas esses fatores
não têm a mesma eficácia no caso dos criminosos crônicos. Programas de emprego, por
exemplo, não são eficazes. Acredita-se que o aumento da rapidez e da certeza das penas
incapacitação, enquanto essas pessoas estão privadas de liberdade são incapazes de praticar
crimes. O que torna a incapacitação mais interessante é que, nesse caso, não há necessidade
de nenhuma suposição sobre a natureza humana. A dissuasão só é eficaz se for verdade que
as pessoas escolhem entre cursos alternativos de ação com base em um cálculo racional de
custos e benefícios. Embora existam indícios de que as pessoas levam em conta os custos e
benefícios de diferentes cursos de ação, é difícil precisar até que ponto esse cálculo
influencia na tomada de decisões e em que medida certas modificações nos custos do crime
levariam à redução das taxas. A reabilitação só funciona se for verdade que é possível
planejadas. Não existem evidências de que isso possa ser feito para a totalidade dos
criminosos, embora pareça ser verdade que é possível para alguns criminosos, sob algumas
circunstâncias. Por outro lado, a incapacitação age sobre condições objetivas: o indivíduo
115
Uma questão prática que se coloca está relacionada aos custos financeiros desse tipo
liberdade para toda a população criminosa provocaria um grande aumento dos gastos com
redução das taxas de criminalidade. Para muitos criminosos, uma condenação é suficiente
que possibilitem o reconhecimento dos indivíduos aos quais deveria ser aplicada essa
que dificultam o controle do crime. O combate ao crime não pode ser, segundo Wilson,
uma ação meramente utilitária, pois o crime, como já nos mostrava Durkheim, é algo que
aplicar – com base no conhecimento de que se trataria de um criminoso crônico – uma pena
especialmente dura a alguém que foi preso e condenado por um crime leve. Do ponto de
116
praticou um furto, mas que se sabe (por meio de registros anteriores e de outros
pena leve a um homicida passional porque se sabe que muito dificilmente essa pessoa
praticará outro crime. A punição, além de ser importante pelo seu efeito dissuasório, não
deixa de ser também uma maneira de realizar a justiça retributiva. Por meio da punição a
sociedade restitui as coisas aos seus devidos lugares, castiga aqueles que rompem com
se sentiram ultrajadas. É por esse motivo que um ato percebido pela sociedade como
especialmente grave deve receber uma punição proporcional. Enfim, como o próprio
Wilson reconhece, a ação utilitária ou apenas instrumental contra o crime é limitada por
Quando reconhece esses limites, Wilson nos deixa entrever algumas contradições
sérias presentes em seu trabalho. Por um lado, temos que reconhecer que o autor empreende
Por outro lado, considero problemática a conclusão de que seria o caso, então, de se
117
exclusivamente teóricos. O controle do crime seria assunto para analistas de políticas, não
para sociólogos.
de políticas pode levar a um infinito processo de tentativa e erro, que nunca encontra a
política mais eficiente, exatamente por desprezar uma variedade de aspectos que deveriam
Wilson acaba por reconhecer alguns desses aspectos. O fato de o crime ser algumas vezes
aponta para o mesmo problema. E, mais, coloca uma questão sobre o caráter retributivo das
penas. Isto é, a sociedade não é algo tão homogêneo a ponto de tornar desprezíveis as
Estes problemas são bem apresentados e analisados por Donald Black (1983).
Segundo este autor, um crime, muitas vezes, em vez de ser uma violação intencional de
seja, um ato criminoso pode representar para quem o pratica o exercício do controle social
(Black, 1983, p.34). O caráter normativo de atos que são considerados como crime pelas
agências oficiais e pelos códigos legais fica evidente quando se constata que, em geral,
grande parte dos homicídios é uma resposta ao adultério ou a outras questões relativas a
118
sexo, amor e fidelidade; ou diz respeito a afrontas à honra ou a dívidas monetárias. Da
mesma forma, como muitos crimes que envolvem a subtração de bens ou destruição de
propriedade apresentam o mesmo caráter normativo. Segundo Black, mais de um terço dos
crime que teve alguma motivação moral, se estabelece um conflito sobre a definição do
evento. Especialmente sobre quem é ofensor e quem é vítima. Black menciona o caso de
um marido que mata o amante de sua esposa. Para a justiça, o amante é a vítima. Mas, do
ponto de vista do marido, o amante transgrediu uma norma e pode ter merecido a morte. O
fato é que o pretenso “monopólio do uso legítimo da violência” não é alcançado pelo
Estado de maneira efetiva. A violência envolve, muitas vezes, cidadãos que percebem sua
conduta como um exercício plenamente legítimo do controle social. Cidadãos que muitas
vezes podem se sentir moralmente obrigados a “fazer justiça com as próprias mãos”.
Preferir, talvez, enfrentar problemas com a justiça criminal a deixar de respeitar o costume
de uma comunidade.
força que a polícia e a justiça poderiam ter para dissuadi-las diminui. Um estudo sobre os
efeitos de dissuasão que as punições podem ter deve levar em conta que o poder das penas
para deter o crime depende do fato dele ser ou não uma forma de controle social. Desprezar
a contribuição da sociologia, neste caso, faria com que uma dimensão importante do
119
Acredito que a consideração de aspectos individuais é importante, mesmo porque,
como afirmam Cohen e Machalek, são indivíduos, sozinhos ou em grupos, que cometem
crimes. Porém, como mostram os mesmos autores, os indivíduos devem ser tratados como
unidades de observação, não como unidades de análise. Tratá-los como unidades de análise
compromete as possibilidades analíticas daquelas teorias. Mas acredito que não é o caso de
concluir, como o faz Wilson (1985), que perspectivas macroestruturais são, quaisquer que
sejam elas, inadequadas. O trabalho de Cohen e Felson (1979) mostra como uma
do crime. Não só no sentido teórico, mas também no aplicado. Isto se dá justamente pela
das atividades rotineiras” (Cohen e Felson, 1979) supera tanto as abordagens estruturais
crime violento nos Estados Unidos a partir da década de 1960 ao mesmo tempo em que as
condições que poderiam ser consideradas como causas da criminalidade (baixos níveis de
de rotina que emergem da interação social cotidiana (1979, p.588-9). Argumentam que
120
mínimos: (1) ofensores motivados, (2) alvos apropriados, e (3) ausência de guarda contra a
violação 37 . A convergência, no tempo e no espaço, de alvos apropriados e ausência de
guardas capazes pode levar ao crescimento das taxas sem a necessidade de uma
do crime.
temporal das atividades rotineiras contribui para que pessoas traduzam uma suposta
podem, por exemplo, afastá-las daquelas em quem elas confiam (tornando-as os possíveis
de mulheres no trabalho fora de casa pode fazer com que as residências fiquem
paradoxo que as teorias convencionais não conseguem resolver, mostrando que o crime é
priori que o crime resulta de processos de socialização. Desta maneira, a sociologia não se
apropriados para o controle do crime que estão sujeitas às críticas apresentadas por Wilson.
37
A vigilância neste caso não é apenas a policial, mas também a vigilância informal executada pelos próprios
cidadãos.
121
Além disso, a “abordagem das atividades rotineiras”, na medida em que considera
explicações de Wilson. Torna-se possível considerar a variação das taxas de crime tanto no
também, verificar até que ponto certas circunstâncias contextuais – favoráveis ao crime –
proporcione prêmios. Por fim, como mostram Cohen e Felson, o esquema das atividades
rotineiras explica porque o sistema de justiça criminal, a comunidade e a família têm sido
aumentar a certeza, rapidez e severidade das penas competir com mudanças estruturais que
resultam em grande intensificação da certeza, rapidez e valor dos prêmios relativos a atos
ilegais (Cohen e Felson, 1979, p.605). Assim, reconhecer a importância das críticas de
que mantêm um foco na ação individual conseguem explicar as variações macrossociais das
atores individuais.
122
Conclusão
Pretendo, nesta conclusão, considerar brevemente uma questão que me parece ser a
responsável pelas principais insuficiências identificadas nos diversos modelos teóricos de
explicação do crime que foram analisados. Obviamente não há nenhuma intenção de
esgotar o assunto, mas apenas de indicar uma direção para investigações futuras que
considero promissora.
Todos os autores que foram objeto de análise neste livro foram atraídos por aquilo
que, concordando com Miethe e Meier (1994), acredito ser a característica marcante e
comum em toda a chamada criminologia positivista, ou seja, a preocupação com a
identificação dos aspectos que diferenciam os criminosos dos não-criminosos.
As teorias sociológicas discutidas no terceiro capítulo, apesar das suas diferenças,
têm em comum o entendimento de que uma parte fundamental da explicação do crime
reside na compreensão da constituição da motivação individual para a ação. Motivação esta
diferente daquela encontrada no caso da conformidade. Os criminosos seriam diferentes dos
não criminosos porque estariam, de alguma forma, expostos a forças sociais que os
conduziria à prática do crime. A origem da motivação poderia estar na adesão a objetivos
de consumo inalcançáveis pelas vias legítimas ou na filiação a subculturas que
apresentariam valores e preocupações desviantes.
No caso da abordagem do autocontrole, de Gottfredson e Hirschi, há uma
preocupação explícita com a questão da diferenciação entre criminosos e não-criminosos.
Logo de saída os autores reprovam a teoria liberal clássica justamente por não dar atenção a
esse aspecto. No entanto, rejeitam a explicação sociológica convencional, argumentando
que a imagem de um criminoso socializado para a prática do crime não se sustentaria diante
de dos dados empíricos disponíveis. Apresentam, então, a noção de autocontrole como o
elemento que diferenciaria os criminosos dos não-criminosos. Os criminosos seriam
pessoas dotadas de baixo autocontrole. As críticas a essa noção foram feitas no quarto
capítulo. Na melhor das hipóteses, a noção de autocontrole poderia nos ajudar a
compreender algumas modalidades de crime. De modo algum seria satisfatória como
fundamento para a construção de uma teoria geral do crime. Teoria geral que é um objetivo
tão explícito que aparece já no próprio título do livro.
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Wilson e Herrnstein e Wilson, embora sejam críticos mordazes do que eles próprios
chamam, um tanto pejorativamente, de sociologia positivista do crime, não escapam da
tentativa de identificar aquilo que diferenciaria criminosos de não-criminosos. A idéia de
que a opção pelo crime é o resultado de um cálculo racional em que são levados em
consideração os custos e benefícios das diferentes alternativas de ação só é válida se for
acrescentada a condição de que criminosos e não-criminosos são, de alguma forma
diferentes. Para esses autores, as diferenças poderiam ser encontradas em certas
características de constituição biológica e psicológica, que explicariam os diferentes
padrões de decisão apresentados por diferentes agentes.
Esta preocupação com a identificação do que diferencia os criminosos dos não-
criminosos, conduz ao que Michel Misse (1999, 64) aponta como sendo o grande problema
da criminologia positivista. Para Misse, o grande problema dessa vertente “foi o de ter
considerado a transgressão como atributo do indivíduo transgressor [grifo do autor] e não
como um atributo acusatorial sobre um curso de ação que é socialmente considerado como
problemático ou indesejável, e para o qual pode ou não haver demanda de incriminação”.
De acordo com Misse, “ao desviar do curso de ação para o transgressor o núcleo da unidade
de análise, a criminologia reproduz o processo social da sujeição criminal [grifo do autor],
que deveria ser o seu objeto”.
Uma experiência social ou uma trajetória de vida qualquer, na medida em que é
tratada como uma transgressão de alguma norma, terá sido alvo de uma acusação social.
Quando essa acusação é respaldada pela lei penal pode então ser “criminada”. Para que a
“criminação” resulte em uma “incriminação” jurídica é preciso que se dê início a um
processo oficial de incriminação. Considerando que o objeto do processo não é apenas a
transgressão à lei, mas o próprio indivíduo transgressor, dá-se a “sujeição criminal”, ou
seja, a “construção social do agente de práticas criminais como uma ‘sujeito criminoso’”
(Misse, 1999, 67). O que torna a noção de sujeição criminal mais importante e elucidativa
é o fato de que ela pode ser – e na maioria das vezes é – ampliada “como uma
potencialidade [grifo do autor] de todos os indivíduos que possuam atributos próximos ou
afins ao tipo social acusado” (idem, 65). Com isso os negros, os pobres, os desempregados,
os favelados, os vagabundos tornam-se suspeitos em potencial. Quando a polícia busca
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nessa população os seus suspeitos de sempre, estamos diante de uma profecia auto-
cumprida.
Quando a criminologia positivista toma o crime tal como é definido legalmente e
passa, então, a investigar as diferenças entre os que praticam e os que não praticam crimes,
incorre em um sério equívoco. O fato é que o roubo, por exemplo, não é um ato dotado de
um significado intrínseco. É, na verdade, uma definição legal que pode ser aplicada a uma
experiência social ou a uma conduta que será equiparada à definição legal estabelecida.
Mesmo quando o próprio agente vê a sua conduta como roubo ou como um “157” (artigo
do código penal correspondente) isto acontece não porque este seja o significado intrínseco
da conduta, mas porque o agente já se identificou com a tipificação legal recorrentemente
aplicada. Quando a sociologia procura identificar as motivações que levam alguém à
prática do roubo, ou as causas do roubo, o que acontece é uma equiparação ilegítima de
uma ação social com uma definição legal abstrata que traz em si um conteúdo normativo
específico. Assim, a sociologia positivista, ao procurar identificar as motivações que fazem
com que alguém se torne criminoso, ou quais são as causas do crime, entende a sujeição
criminal como se fosse uma realidade objetivamente dada. Aquilo que é, na verdade, o
resultado de um processo que vai da acusação social e termina com a incriminação que
incide sobre o sujeito, e que deveria ser objeto de estudo da sociologia, aparece como um
ponto de partida não problematizado.
Curiosamente, de todos os autores tratados, o que mais se aproximou da
compreensão do problema foi Emile Durkheim. Ao rejeitar a abordagem queteletiana do
problema do crime – que seria mais demográfica do que sociológica – Durkheim estabelece
as bases para um entendimento profundamente sociológico da questão. Não há nenhum ato
que seja intrinsecamente criminoso. O que faz de qualquer ato um crime é o modo como a
sociedade o define. Embora não tenha levado às últimas conseqüências a sua intuição,
efeito talvez de uma concepção holística da realidade social, podemos dizer que Durkheim
é o precursor de todas as vertentes que se interessam pelo estudo da reação social ao crime
e ao desvio. A compreensão das características individuais que fazem com que alguém
pratique o crime ou o desvio deixa de ser o objetivo mais importante. A ênfase analítica se
volta para a compreensão do processo social que resulta na definição de uma conduta como
criminosa ou desviante. Durkheim não aceita de forma irrefletida a definição legal do que é
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ou não um crime. Ao contrário, transforma a definição legal em um problema sociológico a
ser investigado. Acredito ser esta a maior contribuição deixada pela controvérsia em torno
do tema da normalidade do crime, que, infelizmente, parece ter sido esquecida por muitos
estudiosos do assunto.
Acredito que os problemas identificados nas diversas teorias que foram analisadas
ao longo deste estudo são uma conseqüência desse esquecimento. Em todos os casos, seja a
tentativa de explicar as causas sociais do crime, a origem da motivação para o
comportamento criminoso ou as diferenças que separam os criminosos dos não criminosos,
o resultado é desanimador. As conclusões não se sustentam. Isso ocorre justamente porque
o próprio objeto da investigação não é construído sociologicamente, mas apenas
transplantado de um outro contexto – a definição legal-jurídica do que é o crime. Estuda-se
a motivação ou a razão para algo que, a rigor, não existe no mundo social. Existe, sim, no
mundo jurídico e, mesmo quando passa a fazer parte de alguma situação social definida por
uma variedade de atores (juizes, policiais, advogados, criminosos, imprensa), não deixa de
estar preso ao contexto original. Contexto que deveria ser problematizado sociologicamente
e não tomado como ponto de partida da análise, vale repetir.
Acredito que os estudos mais promissores na área da sociologia do crime são
aqueles que evitam esse problema. Vejo pelo menos duas formas de evitá-lo. A primeira e
talvez mais notória é aquela que transforma a reação social à transgressão em objeto de
estudo (Misse, 1999; Baratta, 2002; Becker, 1977). Desde a reação social mais difusa até a
reação organizada e administrada pelo sistema de justiça criminal. Estudos desse tipo têm
um forte potencial crítico e podem ser muito úteis para desconstrução de mitos
estabelecidos. A segunda é aquela que foi esboçada no último capítulo e que recebe o nome
de “abordagem das atividades rotineiras” (Cohen e Felson, 1979), posteriormente
desdobrada nas discussões sobre as oportunidades para o crime e a prevenção situacional
(Clarke, 1994). Na medida em que essa abordagem não enfatiza a ação individual e suas
motivações, tomando os indivíduos como unidades de observação e não como unidades de
análise, se afasta dos problemas enfrentados pela sociologia positivista. Estudam a
interação entre indivíduos dispostos para a prática do crime (independentemente da origem
dessa motivação) e a estrutura de oportunidades oferecida pelas rotinas sociais. Mesmo
quando o princípio da escolha racional é introduzido nesses estudos, aparece não como uma
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forma de entender a motivação para ação, mas apenas como uma ferramenta analítica que
possibilita uma melhor compreensão de como os indivíduos identificam oportunidades para
o crime. Se por um lado essa abordagem não compartilha do potencial crítico alcançado
pelos estudos sobre a reação social à transgressão, por outro, cumpre o importante papel de
oferecer informações valiosas para o estabelecimento de políticas de controle do crime
urbano. O fato é que a sociologia não pode simplesmente desprezar essa tarefa já que o
crime é um problema público dos mais relevantes e já que os sociólogos são vistos, umas
vezes mais outras menos, como os profissionais que devem responder aos apelos sociais
que pedem o controle do problema.
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6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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