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POTENCIALIDADES1
RESUMO
Pode-se dizer que a teoria queer representou uma nova abordagem dentro dos
estudos de gênero, ao questionar o binarismo entre “masculino” e “feminino”,
buscando compreender como esses papeis são produzidos e reproduzidos
socialmente. Diante disso, o objetivo deste trabalho consiste em verificar se as
perspectivas queer foram recepcionadas pelo saber criminológico no Brasil, sobretudo
em suas correntes críticas. Como metodologia, utilizou-se a revisão bibliográfica
através da ferramenta de “busca integrada” no acervo da Universidade Federal do
Paraná (UFPR). A partir dos resultados obtidos, observa-se uma tímida produção
acadêmica em torno de uma criminologia queer, confirmando a hipótese inicial de que
a teoria supracitada não foi incorporada, até o presente momento, no saber
criminológico-crítico nacional. Desse modo, é possível concluir que a falta de uma
abordagem atenta às questões de gênero e sexualidade faz com que as ciências
criminais brasileiras, como um todo, não consigam dar respostas suficientes aos
problemas apresentados pelos movimentos LGBTI, tais como a criminalização da
LGBTIfobia e o encarceramento de indivíduos que apresentam orientação sexual e
identidade de gênero não hegemônicas.
INTRODUÇÃO
1Este artigo, inicialmente, foi apresentado como trabalho científico no Congresso Internacional LGBTI+
realizado em Curitiba/PR (2019). Posteriormente, uma vez aprovado, foi publicado na obra coletiva
denominada “Caminhos da pesquisa em diversidade sexual e de gênero: olhares in(ter)disciplinares”
(Editora IBDSEX), publicado em 2020.
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Ocorre que, mesmo entre os estudos criminológicos críticos, suas
formulações hegemônicas têm como norte a construção de uma teoria materialista do
desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização, valendo-se
de instrumentos conceituais oriundos do marxismo (BARATTA, 2002, p. 159). A
predominância deste enfoque, macrossociológico, fez com que as análises sobre
criminalização e vitimização fossem realizadas sob lentes marxistas, levando-se em
conta as desigualdades econômicas entre os indivíduos selecionados pelo Estado
para compor as estatísticas criminais oficiais. Isto significa que questões de raça,
gênero e sexualidade foram marginalizadas neste campo teórico crítico, o que vem
sendo denunciado – ao menos no Brasil – pela criminologia feminista (MENDES,
2014, p. 157-164) e pela teoria crítica racial que se debruça sobre a criminologia
(FLAUZINA, 2008, p. 149-165).
Se, por um lado, há uma produção acadêmica nacional notável de
criminólogas e criminólogos (embora não consolidada) incorporando contribuições
dos feminismos e da teoria crítica racial ao campo da criminologia, por outro, o mesmo
não pode ser dito a respeito da teoria queer. Portanto, o objeto do artigo é a produção
acadêmica referente à criminologia queer, ao passo que o objetivo consiste em
investigar se esta corrente teórica foi recepcionada pelo saber criminológico no Brasil.
Nesta empreitada, nos valemos da revisão bibliográfica como metodologia,
principalmente a partir da ferramenta da “busca integrada” no acervo da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Considerando a escassa produção sobre este viés na
criminologia, pretende-se confirmar a hipótese central do trabalho, qual seja, de que
ainda não se pode falar em uma criminologia queer desenvolvida no país. Esta
insuficiência teórica gera certa incompreensão, por parte de penalistas e criminólogos,
a respeito de pautas dos movimentos LGBTI, como a criminalização da LGBTIfobia e
o encarceramento de pessoas que não se encaixam no binarismo “homem-mulher”,
nem se amoldam à heteronormatividade.
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tempo, questionaram a maior parte dos estudos gays – que ignorava a produção
feminista – e o próprio sujeito do feminismo – centrado na mulher. Esta desconstrução
se deve ao fato de que o gênero passa a ser lido como categoria cultural: “masculino”
e “feminino” não estão vinculados necessariamente ao sexo biológico, mas às normas
e convenções culturais que variam no tempo e de sociedade para sociedade
(MISKOLCI, 2017, p. 32).
Um dos autores que pode ser considerado como precursor da referida é
Michel Foucault2, principalmente quando – em um de seus livros – rejeita a “hipótese
repressiva” do século XVIII, isto é, de que a sociedade que se desenvolve neste
período (burguesa e capitalista) teria reprimido o sexo, recusando-se a conhecê-lo.
Ao contrário, Foucault entende que foi instaurada uma gama de mecanismos para
produzir “discursos verdadeiros” sobre o sexo (FOUCAULT, 2015, p. 78). Uma teórica
essencial que, em tese3, teria protagonizado o desenvolvimento da teoria queer seria
Judith Butler, a qual procura explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero e
desejo como efeitos de uma formação específica de poder (BUTLER, 2016, p. 9).
Conforme afirmamos anteriormente, as criminologias de viés crítico
apresentam, de forma majoritária, um background teórico influenciado pelo marxismo
e suas categorias fundantes (luta de classes, capitalismo, materialismo histórico-
dialético), fazendo com que outras dimensões do “sujeito” investigado por estas
criminologias (tais como gênero, raça e sexualidade) fossem marginalizadas,
colocadas em segundo plano. Na tentativa de romper esta tendência, alguns
criminólogos brasileiros buscaram compreender o controle social da sexualidade em
determinados períodos históricos, verificando que estes mecanismos ora foram
influenciados pela religião, ora inspirados no modelo científico-médico higienista. Sob
o manto científico, reforçado pela recepção do positivismo criminológico no Brasil,
determinadas práticas punitivas foram direcionadas a categorias de homens
(homossexuais e travestis) e mulheres (prostitutas e negras), estigmatizados por sua
sexualidade rotulada como transgressora (PEDRINHA, 2009, p. 168-186).
Portanto, ao que tudo indica, a teoria queer dialoga com a(s) criminologia(s)
crítica(s) para desvendar as formas de punição aplicadas – seja pelo Estado, seja por
2 Há, contudo, controvérsias sobre a classificação de Foucault como filósofo que impulsionou (ou não)
a formulação da teoria queer, como adverte Tamsin Spargo (SPARGO, 2017, p. 13-14).
3 “Em tese”, porque alguns intérpretes de Butler apontam dificuldades de classificar esta autora apenas
em uma teoria, considerando que suas análises transcendem questões de gênero e sexualidade,
segundo as impressões de Sara Salih (SALIH, p. 9-28).
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outras instituições sociais – a categorias de indivíduos “desviantes” em relação à
cisheteronormatividade. Sendo assim, o controle social (formal/informal) exercido
sobre a sexualidade exige ferramentas teóricas que certamente transcendem a
desigualdade econômica entre pessoas que são alvo preferencial do poder punitivo.
A intersecção entre teoria queer e ciências criminais também revela dois
campos de investigação. Teoricamente, os estudos queer impactam nas ciências
jurídicas (queer legal theory), e sobretudo, no direito penal e na criminologia (queer
criminology), proporcionando a compreensão dos processos de exclusão e da
intolerância em suas especificidades. Politicamente, evidencia as demandas por
direitos e pelo reconhecimento da igualdade, sustentada por movimentos LGBTI
(CARVALHO; DUARTE, 2017, p. 202-203), tais como o casamento homoafeitvo, a
retificação do prenome de pessoas trans, e a criminalização da LGBTIfobia, apenas
para dar alguns exemplos.
O encontro entre teoria queer e a criminologia, a princípio, é marcado por
tensões, na medida em que aquela desestabiliza algumas zonas de conforto culturais
criadas pelo heterossexismo, que é hegemônico nas ciências criminais. Num segundo
momento, esse diálogo procura esmiuçar os níveis de violência heterossexista, como
expõem Salo de Carvalho e Evandro Piza:
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2. HÁ UMA CRIMINOLOGIA QUEER CONSOLIDADA NO AMBIENTE ACADÊMICO
BRASILEIRO?
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Neste universo, alguns artigos e dissertações/teses, por alguma razão, apresentavam
duplicidade, e outros, tiveram de ser excluídos por ainda conterem idioma em língua
estrangeira (espanhol). Vencida esta terceira etapa de pesquisa, foram colhidos 5
(cinco) trabalhos, como demonstra a tabela abaixo:
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Confirma-se, dentro da pesquisa realizada, a hipótese inicial lançada no
artigo, qual seja, de que a recepção da criminologia queer no Brasil é precária,
insuficiente e esparsa, principalmente diante da pequena quantidade de trabalhos
acadêmicos encontrados. Nota-se, ainda, que as discussões têm sido protagonizadas
pela área do Direito, visto que dos 5 (cinco) trabalhos encontrados, 3 (três) deles
pertencem à referida área, sendo que os remanescentes são da Psicologia e do
Serviço Social. Os títulos destas produções acadêmicas, por sua vez, indicam que
elas se inserem nos dois campos mencionados neste artigo: teórico (formação de um
saber criminológico-queer) e político (demandas de movimentos LGBTI por direitos,
igualdade e reconhecimento).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
5 Estas pautas foram reconhecidas através dos seguintes julgamentos: i) Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
nº 432; ii) Recurso Extraordinário (RE) nº 670.422; iii) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
(ADO) nº 26 e Mandado de Injunção (MI) nº 4.733.
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criminalização e reformas prisionais, ainda que de forma parcial, reconhecendo a
limitação do alcance dessa agenda.
Um segundo desdobramento está relacionado à ausência de um paradigma
que consiga explicar as múltiplas violências que atingem o grupo e os indivíduos
LGBTI. Se a criminologia predominante em meios acadêmicos brasileiros é a
criminologia crítica, em seu viés marxista, então a criminalização e a vitimização do
referido grupo será analisadas sob esta ótica. Ou seja, levando-se em consideração
apenas o funcionamento (seletivo) do sistema penal a partir das desigualdades
econômicas. Contudo, as abordagens queer parecem extrapolar questões de classe,
além de permitir que as violências contra pessoas LGBTI sejam analisadas quando
elas são vítimas6, ou quando são encarceradas, duas “frentes” de estudo que
merecem ser aprofundadas.7
O cenário desenhado sugere que se invista em uma (ou diversas)
criminologia(s) queer brasileira(s). Se as estatísticas produzidas por OnG’s e grupos
de Direitos Humanos demonstram que existem dimensões de violências – das mais
visíveis até as mais refinadas – que atingem pessoas LGBTI, somente uma
criminologia com o referido enfoque será capaz de apreender criticamente este
fenômeno, que certamente não pode ser explicado por abordagens restritas ao
funcionamento classista do sistema penal. Observe-se que um diagnóstico preciso da
LGBTIfobia no país abre caminhos para pensar soluções destinadas a lidar com este
problema social, tanto no que diz respeito às políticas de segurança pública para o
grupo mencionado, como no tocante às políticas educacionais inclusivas, combatendo
preconceitos e comportamentos discriminatórios enraizados historicamente na
sociedade brasileira. Ao que tudo indica, a criminologia queer é a única perspectiva
capaz de explorar essas potencialidades.
REFERÊNCIAS
6 Fala-se, nos estudos recentes de vitimologia (BURKE, 2019, p. 99-100), sobre a “cifra aro-íris” da
criminalidade, isto é, os crimes que são cometidos, mas não são noticiados (por inúmeros fatores),
contra membros da comunidade LGBTI.
7 A exemplo dos livros publicados por Clara Moura Masiero (MASIERO, 2014) e Guilherme Gomes
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BUIST, Carrie L; LENNING, Emily. Queer criminology: new directions in critical
criminology. Routledge: London, 2016.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o
projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
MEYER, Doug. Violence against queer people: race, class, gender and the
persistence of anti-LGBT discrimination. New Brunswick, New Jersey, and London:
Rutgers University Press, 2015.
SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Tradução e notas de Guacira Lopes
Louro. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5. ed. rev. São Paulo: RT, 2013.