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Voltando para o Brasil, devemos lembrar que nossa história produziu vidas que
deveriam buscar refúgio nos guetos e em uma privacidade sempre ameaçada,
sob o risco de serem exibidas nas cadeias e nos manicômios. Os discursos
científico, jurídico e religioso autorizaram moral, científica e legalmente que as
vidas de negras/os escravizadas/os, de mulheres (cis e trans) e da população
LGBTI fossem negligenciadas em relação à proteção do Estado. Na lógica do
biopoder (FOUCAULT, 1988), eram vidas que, caso não se conformassem às
posições de inferiorização e abjeção nas quais a sociedade as alocava, deviam
ser extintas, uma vez que constituíam um projeto de nação às avessas. Tais
existências foram e ainda são condenadas, mas não são invisíveis. Ao contrário,
para que elas mantenham sua função de reiterar as hierarquias, elas necessitam
ser interpeladas cotidianamente nos insultos, nos desejos – ao mesmo tempo
incitados e proibidos –, no prazer em matar, no gozo no exercício da violência,
que demarca a inferiorização do outro, e que confirma, pela sua expulsão do
campo das vidas legítimas, a dominação sustentada nos privilégios da
normalização. Vidas deslegitimadas e inferiorizadas socialmente que, mesmo
após a democratização recente do país, sofrem a violência do aparato policial e
do ódio religioso, cujos efeitos se fazem presentes na violência cotidiana que
continua reificando vidas tornadas não humanas ou menos humanas. Os efeitos
desse(s) processo(s) são experimentados na violência patrocinada pelo Estado
(da polícia à Universidade) que, se por um lado, afirma direitos, pelo outro,
exerce a violência. São espectros do não acesso ou do acesso pela porta dos
fundos, apesar do reconhecimento parcial e recente de direitos mais igualitários.
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