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RESUMO
Esse texto explora as transformações observada na teoria crítica dos direitos humanos desde a
perspectiva da antropologia jurídica. Tem como objetivo descrever uma proposta teórica
alternativa que surge a partir do pensamento latino-americano, contextualizando as mudanças
operadas com a assimilação dos estudos interculturais. No contexto de inter-relações-culturais
(interculturalidade), ao interpor novos rumos ao velho dilema da “universalização x
relativização” dos direitos humanos, surge a proposta de uma epistemologia pluralista a ser
aplicada. A metodologia de pesquisa empregada, para além da revisão bibliográfica,
fundamenta-se em análises empíricas e estudos de casos. Os resultados apontam para uma
renovação crítica da teoria dos direitos humanos. Ao abrir-se à uma outra epistemologia capaz
de absorver as plurais cosmovisões em interação e diálogo, a interculturalização do direito
estatal tende a ampliar a eficácia jurídico-cultural dos direitos humanos.
ABSTRACT
This article explores the transformations observed in critical human rights theory from the
perspective of legal anthropology. It aims to describe an alternative theoretical proposal that
arises from Latin American thought, contextualizing the changes made with the assimilation
of intercultural studies. In the context of cultural interrelationships (interculturality), by
introducing new directions to the old dilemma of “universalization x relativization” of human
rights, the proposal for a pluralist epistemology to be applied arises. The research
methodology employed, in addition to the bibliographic review, is based on empirical analysis
and case studies. The results point to a critical renewal of human rights theory. By opening up
to another epistemology capable of absorbing the plural world views in interaction and
dialogue, the interculturalization of state law tends to increase the legal-cultural effectiveness
of human rights.
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O trabalho foi apresentado no GT 09 - Teoria Crítica dos Direitos Humanos.
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Doutora em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), atua
como Pesquisadora do Programa de Mobilização da Competência Nacional para Estudos sobre
oDesenvolvimento (PROMOB), na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (DISOC/IPEA). isalunelli@hotmail.com.
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1. INTRODUÇÃO
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Como resultado de lutas sociais e políticas, estas últimas décadas, sobretudo a partir
do final dos anos 70, estão marcadas pela conquista e reconhecimento de direitos humanos
pelos e para os povos indígenas. Quando as reivindicações indígenas passaram a ser tratadas
desde o ponto de vista jurisdicional (GÓMEZ, 2002), um aperfeiçoamento da compreensão
das e dos juristas sobre a diversidade cultural e as relações advindas desse ininterrupto contato
foi demandada. Isso porque, como afirmou Hector Díaz-Polanco (2009, p.19), a diversidade
cultural “não se apresenta como um conjunto de culturas em perfeito equilíbrio”, mas “como
um emaranhado dinâmico de tensões, pressões mútuas, fricções e, às vezes, conflitos entre
valores e estilos de vida”.
Nesse contexto é quese tornou obrigatória a inserção dos conteúdos essenciais da
antropologia nos currículos dos cursos de graduação em direito. Instituído por meio da
Resolução n. 9 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação
(CES/CNE), no final de setembro de 2004, novas diretrizes curriculares nacionais para o
curso de graduação em direito foram definidas, dentre elas, determinando-se a abordagem
compulsória dos “estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre antropologia” durante a
formação de bacharéis em direito (art. 5º, I).
Ao estabelecer relações com a antropologia, o campo jurídico inaugurou uma nova
linha de pesquisa dentro dos círculos acadêmicos: a antropologia jurídica. Por antropologia
jurídica, a comunidade científica tem passado a designar os estudos produzidos sobre “os
direitos”, entendendo o direito sempre num sentido plural e manifestado nas mais diversas
culturas.
Desde a inclusão curricular nos cursos de direito de conteúdos relacionados à
antropologia, temas relacionados com diversidade cultural e o pluralismo jurídico vêm
despertando o interesse de pesquisadores. No Brasil, com referência ao pluralismo jurídico
muito já se escreveu desde o inaugural estudo do sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos, durante a década de 70, encontrando atualmente um vasto campo para as pesquisas
jurídicas como meio de questionar a noção positivista, formalista, dogmática e, até mesmo,
colonial de direito. Em que pese os conceitos construídos pela doutrina, vindo a fornecer
importante material teórico sobre as correntes atuais do pluralismo jurídico, tratam-se, de uma
forma ou de outra, de trazer ao conhecimento formas plurais de manifestação do direito para
além da clássica relação “direito e estado”.
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Com uma tendência para descrever o direito como manifestação cultural dotada de
singularidade e dinamismo, a antropologia jurídica vem ampliando as potencialidades de
conhecimento com relação a outras práticas jurídicas, viabilizando autorreflexões sobre a
própria cultura e suas manifestações. Ao fortalecer e amplificar novas concepções teóricas, a
antropologia jurídica tem viabilizado, inclusive, novas perspectivas críticas sobre a teoria dos
direitos humanos.
Àsteorias críticasdo direito, de certa forma, cabem-lhe“o exercício reflexivo de
questionar a normatividade que está ordenada/legitimada em uma dada formação social e
admitir a possibilidade de outras formas de práticas diferenciadas no jurídico” (WOLKMER,
2015, p. 117).O pensamento crítico no direito possibilita encará-lo como “uma ferramenta
viva e um processo contínuo de reflexão e transformação (SOUSA JUNIOR, 2016, p. 138);
possibilita não apenas “esclarecer, despertar e emancipar o sujeito histórico submerso em
determinada normatividade repressora, mas também discutir e redefinir o processo de
constituição do discurso legal mitificado e dominante”(WOLKMER, 2015, p. 46).
Ao se buscar expor a perspectiva da antropologia jurídica acerca dos direitos
humanos, o que se enfatiza nesse artigo é o delineamento de uma nova orientação
jurídicabaseada na percepção da diversidade cultural e da coexistência e da correlação de
sistemas jurídicos culturalmente diferenciados. Ao se buscar a superação de um modelo
ocidental moderno/colonial a partir de novos referenciais teóricos epistemológicos latino-
americanos (decoloniais e interculturais),a antropologia jurídica vem a fomentar aportes
àsteorias críticas que visem a ampliação da efetividade dos direitos humanos dos povos
indígenas(LUNELLI, 2019).
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Como já se discorreu, a diversidade cultural tem trazido implicações à concepção de
diversidade de culturas jurídicas – ou na “jusdiversidade”, como denomina o Prof. Carlos
Frederico Marés de Souza Filho.3 Esta forma de pensar o direito, em que várias formas de
pensar, várias epistemes são postas em jogo e em movimento, apresenta-se dentro desta
heterogeneidade como um “ecletismo jurídico” ou, como chamou Raul Prada Alcoreza, desde
a manifestação de um pluralismo epistemológico.
Este pluralismo epistemológico tem sido decisivo no reconhecimento de formas
alternativas de pensar o direito nessas últimas décadas, ampliando as possibilidades
democráticas e, inclusive, do próprio desenvolvimento da antropologia jurídica como linha de
pesquisa nas ciências jurídicas. O reconhecimento da existência de outros sistemas jurídicos
coexistentes ao sistema jurídico estatal – dentro de território estatal – é pressuposto básico,
portanto, em qualquer pesquisa que se insira dentro da antropologia jurídica.
O pluralismo epistemológico, enquanto um pensamento da pluralidade e do
acontecimento, “trata de uma forma de pensar, de conhecer de conceber, de ciência, de
imaginar, oposta ao pensamento universal, [...] aos modelos explicativos baseados na
totalidade e na dedução”. Ao supor “uma ruptura epistemológica com as formas de pensar
modernos”, esse pluralismo epistemológico tem servido à retórica da desconstrução da
pretensa universalidade dos direitos humanos, requerendo uma atenção ao respeito das
particularidades (e das relatividades) atinentes à cada cultura.Assim, se por um lado é possível
afirmar que o direito está presente em todas as culturas, pois todas as culturas conhecem o
direito, não é possível afirmar ainda, cientificamente, que no estudo dessas possam se extrair
um núcleo idêntico, universal e comum a todas trazendo à tona a sua intrínseca diversidade.
Por algum tempo, os debates teóricos acerca dos direitos humanos que permeavam o
pluralismo epistemológico estiveram alocados entre a universalidade ou a relativização das
normas positivadas diante de relações do estado com culturas distintas. É dizer, entre a
vigência universal dos direitos humanos, ou sua relativização, o fio condutor dessa discussão
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Conforme Carlos F. Marés de Souza Filho, “os princípios universais de reconhecimento integral dos valores de
cada povo somente podem ser formulados como liberdade de ação segundo suas próprias leis, o que significa, ter
reconhecido o seu direito e sua jurisdição. Poderíamos chamar isto de Jusdiversidade”. SOUZA FILHO, Carlos
Frederico Marés de. Os direitos humanos e os povos indígenas. s/d.
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era estabelecido acerca do alcance de sua efetividade sobre outras culturas, distintas da
civilização ocidental.
Na base dessa discussão sempre estiveram presentes os exemplos classificados como
bárbaros e, por vezes, exóticos. As práticas de circuncisão do povo judeu, a mutilação gentil
feminina na África ou mesmos casos de infanticídio ou de linchamento por alguns povos
indígenas acabavam pautando polêmicas discussões sobre que qual sistema jurídico seria
válido e aplicável, sem encontrar alguma solução plausível ou pacificada.
A vista disso, a proposta teórica alternativa que surge a partir do pensamento latino-
americano, contextualizando as mudanças operadas com a assimilação dos estudos
decoloniais e a fixação de conteúdos interculturais é pautada pela substituição de um
pluralismo epistemológico por uma epistemologia pluralista dos direitos humanos.
Cumpre explicar que, para o filósofo bolivianoRaúl Prada Alcoreza (s/d, p. 11-12),
há duas formas de abordar a epistemologia diante da diversidade cultural: um pluralismo
epistemológico e uma epistemologia pluralista. Enquanto o pluralismo epistemológico
exprime uma demanda democrática de tolerância com a diversidade de epistemes, a
epistemologia pluralista, por sua vez, denota um pensamento crítico pressupondo uma ruptura
epistemológica.
Como meio de superar o dilema entre universalidade e relatividade dos direitos
humanos, que tem esbarrado numa disputa aparentemente insolucionável ao pluralismo
epistemológico, Alcoreza propõe, então, o exercício de uma epistemologia pluralista.
Direcionada e aplicada à interpretação dos direitos humanos, a epistemologia
pluralista representaria uma epistemologia “capaz de interpretar a integralidade, a
interconexão e interdependência dos ciclos vitais dos seres da Madre Tierra e dos cosmos”
(ALCOREZA, s/d, p.11). Dessa forma, a epistemologia pluralista trata de uma estrutura de
pensamento que não alude a um “ecletismo” – no qual “vários paradigmas, vários modelos,
várias epistemes, várias formas de pensar” são postas “em jogo e em movimento” –, mas,
sim, do desenvolvimento de uma “hermenêutica múltipla e dinâmicas das culturas”
(ALCOREZA, s/d, p.16-17).
Uma epistemologia pluralista dos direitos humanos versa, nesse sentido, sobre a
circulação de saberes e práticas agenciados à emancipação das culturas, fundindo “horizontes
sem perder a diferença de cada um deles, recorrendo a dinâmicas interpretativas abertas e ao
mesmo tempo respeitosa de símbolos próprios”. Enfim, discorre sobre um modelo tendente a
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“evitar a colonização de uns saberes por outros ou de um saber dominante sobre os outros” e
liberar “as interpretações possíveis a partir dos próprios substratos culturais”(ALCOREZA,
s/d, p.16-17).
Ao invés de um direito universal, com traços e características marcantes passíveis de
encontrar (ou “revelar”) em todas as culturas, a epistemologia pluralista se debruça numa
busca universal por justiça entre as culturas. A “justiça cultural”, tal como Raul Fornet-
Betancourt aborda, trata da reinvindicação do reconhecimento de todas as culturas em
condições de igualdade, rompendo com assimetrias decorrentes da negação, do silenciamento,
da discriminação, da opressão. Ao se estudar o direito estatal em interação com os direitos
produzidos por povos indígenas, por exemplo, se propõe uma prática baseada numa
epistemologia que recorra ao pluralismo das cosmovisões indígenas sobre o jurídico, “capaz
de interpretar a integralidade, a interconexão e a interdependência dos ciclos vitais dos seres
da Madre Tierra e dos cosmos” (ALCOREZA, s/d, p.11).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
GALLARDO, Helio. Teoría crítica y derechos humanos: una lectura latinoamericana. REDHES,
Revista de derechos humanos y estudios sociales, ano II, n.4, julho-dezembro 2010, p.57-89.
7
GÓMEZ, Magdalena. En busca de la justicia: análisis del proceso mexicano de reformas en materia
indígena (1992 y 2001). La jornada, México, 8 de fevereiro de 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Trad.
Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007.
SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel da; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. La lucha por la
constituyente y reforma del sistema político en Brasil: caminos hacia un “constitucionalismo desde la
calle”. La Migraña, Revista de Análisis Político. La Paz, Bolivia, n.17, p. 136-141, 2016. p.138.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo. El derecho hallado en la calle. Tierra, trabajo, justicia y paz. In:
TORRE RANGEL, Jesús Antonio de la (org). Pluralismo Jurídico: Teoría y Experiencias. San Luis
Potosí, México: Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Padre Enrique Gutiérrez (CENEJUS), 2007,
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SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Os direitos humanos e os povos indígenas. s/d.