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A CONCEPÇÃO DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS SOBRE

O PRÍNCÍPIO DA IGUALDADE

Lígia Loregian Penkal

PUCPR

RESUMO
A Convenção de Viena determinou os Direitos Humanos como universais, inerentes ao homem e
independentes de determinações locais ou ocasionais. Seu conteúdo é determinado pela consciência
desenvolvida por certa comunidade em dado momento histórico. Formam uma unidade na qual não
se pode aplicar apenas alguns Direitos Fundamentais reconhecidos e deixar de executar outros:
existe a necessidade de respeitar e desenvolver todas as categorias desses direitos. São considerados
cláusulas pétreas e mesmo previstos pela Constituição, lhe conferem limites formais pelo controle
de constitucionalidade. A tentativa de criar conceitos hegemônicos estabeleceu uma ideologia como
parâmetro, por exemplo “dignidade humana”, o núcleo essencial dos Direitos Humanos, reflete um
conjunto de direitos ocidentais, capitalistas e essencialmente europeus, que reproduzem um padrão
social e acarretam diversos problemas, que podem ser explicados sob a ótica do Multiculturalismo e
necessitam, para Boaventura de Sousa Santos, da “teoria da tradução”. Esta pesquisa não possui o
objetivo de esgotar o assunto, pelo contrário, visa ao conhecimento analítico do tema para ampliá-lo
e suscitar futuras discussões.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Multiculturalismo. Igualdade.

Introdução
É preciso analisar a real importância, o alcance e os limites dos Direitos Humanos no con-
texto atual, considerando seu objetivo de garantir uma vida minimamente digna, igualdade perante a
lei, liberdade de pensamento e de expressão para todos os indivíduos, independente do país ou tra-
dição cultural. Entretanto, não se pode ignorar que tais direitos também estão submetidos a uma
base de valores eurocêntricos e estão inseridos nas nuances políticas e econômicas do sistema inte-
restatal capitalista.
De acordo com o “Manual de introdução ao estudo do Direito”, de Dimitri Dimoulis, é ne-
cessário superar os limites da dogmática jurídica para desenvolver uma visão ampla e crítica dos
problemas jurídicos, visto que o direito surge de opções e sua aplicação influencia as lutas políticas.
Tal objetivo requer o estudo das relações entre o direito e a realidade social, além da preocupação
com as consequências da aplicação do direito. Neste sentido, é fundamental a pesquisa do Direito
Internacional contemplando outras esferas além da jurídica, utilizando-se de aspectos históricos,
políticos e econômicos para uma melhor compreensão, tanto da comunidade internacional, quanto
dos Estados tidos separadamente.
A atual política internacional está configurada em torno do poder econômico, centrado no
dólar como moeda principal, e do político, cujo núcleo é a Organização das Nações Unidas (ONU),
ambos constituídos pela hegemonia estadunidense após a Segunda Guerra Mundial. A criação da
ONU viabilizou um fórum para o desenvolvimento e a adoção dos instrumentos internacionais de
Direitos Humanos e a maioria dos países também adotou constituições e outras leis que protegem
formalmente os Direitos Humanos básicos, o que diferencia Direitos Humanos (independente do
reconhecimento constitucional) de Direitos Fundamentais (consagrados na Constituição e represen-
tam as bases éticas do sistema jurídico nacional).
O contexto da Guerra Fria polarizou os direitos entre capitalistas e socialistas e com o fim da
União Soviética, muitos países do Leste europeu aderiram à democracia. Foi possível um diálogo
maior entre a sociedade internacional, o que afetou diretamente a noção de soberania estatal. Neste
panorama de transformações surge outra dimensão dos Direitos Humanos, contemplando os Direi-
tos Coletivos (destinados à coletividade) e os Difusos (com destinatários indeterminados).
Os Direitos Civis e Políticos foram os primeiros a se consolidar a partir das conquistas bur-
guesas, refletindo os valores dessa classe social emergente no século XVII. Essa primeira geração
ou dimensão de direitos denota a reação da luta burguesa por liberdade, igualdade e fraternidade,
perante o Estado absolutista, o qual intervinha na esfera de discricionariedade individual. Não im-
portava a condição econômica de cada um, o Clero e a Nobreza detinham privilégios políticos. As
Revoluções Americana e Francesa ilustram a materialização das conquistas burguesas no contexto
de enfraquecimento do poder aristocrático.
Internacionalmente, os Direitos Humanos são a expressão das vontades das potências que
detêm o controle do sistema internacional e seu discurso pode justificar tanto a proteção quanto a
violação das garantias individuais, quer a efetivação da justiça social, quer dos interesses das gran-
des potências. Com isso ressurgem questionamentos sobre a real efetividade dos Direitos Humanos
na complexa dinâmica das relações internacionais. Conforme o momento histórico em que foram
reconhecidos, os Direitos Humanos são classificados em direitos de primeira, segunda e terceira
geração. Há ainda, autores como Ingo Sarlet Wolfgang e Paulo Bonavides que discorrem sobre a
existência de direitos de quarta geração, os quais seriam o resultado da globalização dos Direitos
Fundamentais. Outros autores, por exemplo Joaquin Herrera Flores e Jayme Benvenuto Lima Juni-
or, não concordam com a classificação dos direitos em gerações, visando à indivisibilidade e inter-
dependência desses direitos.
A Democracia está intimamente relacionada com os Direitos Humanos: não existe regime
democrático sem a garantia básica de direitos individuais, sociais e políticos. Esse regime político
possui uma estreita relação com direitos, sobretudo, a dicotomia: direitos sociais (educação, saúde,
transporte, moradia) e individuais (vida, propriedade, inviabilidade da casa e se defender perante à
justiça). Não existe direito ilimitado ou absoluto, todo direito é relativo ou contextualizado e tam-
bém pode haver confronto entre direitos, por exemplo direito à vida e as questões do aborto, eutaná-
sia e legítima defesa, cabendo à justiça avaliar o conflito entre direitos para garantir a democracia.
No contexto contemporâneo, a discussão nos foros regionais e mundiais sobre a proteção
dos direitos dos indivíduos ganhou mais força, o que alavancou o desenvolvimento normativo e ins-
titucional do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário. A aplicação das
regras humanísticas na sociedade internacional se mostra extremamente discriminatória e seletiva, o
que ressalta o caráter do Direito Internacional, fortemente influenciado pelas Relações Internacio-
nais e fundado na soberania dos Estados.
É de grande relevância o conhecimento e a interpretação dos Direitos Humanos dentro de
seu contexto histórico e no cenário atual para criticar a inserção estatal na sociedade, visto que não
basta somente a presença de uma legislação sobre o respeito à dignidade da pessoa humana e às li-
berdades individuais, é preciso a garantia plena dos direitos preconizados.

Desenvolvimento
Para o professor Boaventura de Sousa Santos, o direito à igualdade deveria ser na verdade
um “direito à diferença”, pois existe um paradoxo: ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer as
diferenças tal como se constituíram historicamente, ainda assim é indispensável um olhar de igual-
dade e reconhecimento dos direitos de uma multiplicidade de culturas que convivem em sociedade.
Na tentativa de compatibilizar esses direitos coletivos com os individuais, há duas posturas opostas:
a cosmopolita, junto aos Tratados Internacionais essencialmente eurocêntricos, ou regionalista que
respeita as tradições locais.
O direito à igualdade e à diferença estabelecem uma dicotomia: ao mesmo tempo em que é
preciso reconhecer as diferenças tal como se constituíram através da história, ainda assim é indis-
pensável um olhar de igualdade e reconhecimento dos direitos e das múltiplas culturas que convi-
vem em sociedade. Boaventura de Sousa Santos e João Arriscado Nunes abordam essa oposição em
“Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade” e as dúvidas
que surgem quanto a reconhecer ou combater a desigualdade, como compatibilizar direitos coleti-
vos e individuais, além de qual a melhor postura a se assumir: cosmopolita, junto aos Tratados In-
ternacionais essencialmente eurocêntricos, ou regionalista para enaltecer a tradição.
A partir da estruturação dos Estados Nacionais (séc XVIII) e o advento do Capitalismo, a
relevância da cultura para o novo sistema econômico é a simples reprodução das relações sociais,
produção e ampliação de desigualdades fundamentais para a lógica do sistema. O trabalho se torna
mercadoria e a cultura se torna política, ocorre a “mercadorização de tudo e o colapso do cultural
no econômico”. É desenvolvido um modo preconceituoso de descrever as diferenças culturais nesse
novo contexto transnacional e global, no quadro dos Estados-nação do hemisfério Norte (sociedade
industrial, desenvolvida) que impõem sua condição histórica e identidade aos do Sul (subdesenvol-
vidos): o multiculturalismo. Esse método expressa a lógica cultural do capitalismo multinacional ou
global (sem pátria) e trata as culturas da mesma forma como o colonizador tratava os povos coloni-
zados.
Os autores preconizam uma teoria da tradução, que permite “criar inteligibilidades mútuas e
articular diferenças e equivalências entre experiências, culturas, formas de opressão e de resistên-
cia”, como alternativa ao método eurocêntrico racista do multiculturalismo. Assim, as culturas seri-
am analisadas como diferentes e incomensuráveis (não podem ser medidas e comparadas) para a
adoção de padrões relativistas e definição das diferentes identidades no mundo contemporâneo.
Dessa forma, opõe-se a Interculturalidade (associações sem a intenção de compreender, mas de di-
ferenciar) em prol da Intraculturalidade (aceita a heterogeneidade, desigualdade e a diferença dentro
dos espaços nacionais) de um Relativismo Cultural.
Há até hoje uma herança de pressupostos eurocêntricos em diversos termos científicos e na
tentativa de criar conceitos hegemônicos, os quais estabelecem uma ideologia como parâmetro, por
exemplo “Dignidade Humana”, o núcleo essencial dos Direitos Humanos, reflete um conjunto de
direitos ocidentais, capitalistas e essencialmente europeus, o que produz e reproduz esse padrão
social e enaltece a necessidade de desconstruir tais conceitos para reconstruir um novo vocabulário
emancipatório.
Com o processo de globalização, as distinções entre as sociedades ocidentais e orientais es-
tão desaparecendo e surgem diversos problemas, como a xenofobia e a crise de refugiados que pode
ser explicada sob a ótica das consequências do multiculturalismo. A condição de migrante ignora os
indivíduos e comunidades que resistem à “migrância” na base de seus laços com a família, tradição,
comunidade, língua e religião nativas. Torna-se necessário implantar políticas de identidade, as
quais reconhecem as diferenças e garantem visibilidade às culturas marginalizadas ou excluídas
pela modernidade Ocidental, conferindo um caráter anti-eurocêntrico e não anti-europeu.
A Guerra Fria foi o universo político que, segundo o professor Joaquin Herrera Flores, estru-
turou os Direitos Humanos. Herrera enaltece tais direitos como resultados provisórios de lutas soci-
ais, iniciadas pela dificuldade de acesso a determinado bem vital. Dessa forma, os Direitos Huma-
nos não são concedidos pelos Estados ou mesmo pela ordem internacional, mas resultam de uma
conquista de quem buscou o acesso a certo bem jurídico.
Em seu livro “A (re)invenção dos Direitos Humanos, o autor distingue o plano da realidade
e o plano das razões dos Direitos Humanos, estudando seu conceito, origens e finalidade. Critica, a
concepção tradicionalista de Direitos Humanos como prerrogativas que já possuímos pelo simples
fato de sermos humanos. No seu entender, tal visão é reducionista e prejudica a efetiva compreen-
são dos Direitos Humanos, pois não tem como centro os bens garantidos por esses direitos, as lutas
sociais e condições materiais para exigi-los.
O autor enaltece a dignidade humana como o núcleo dos Direitos Humanos, no sentido do
acesso igualitário e não hierarquizado aos bens materiais e imateriais, somado à institucionalização
de mecanismos de garantias para os Direitos Humanos, para que assim possam ser empiricamente
observados.
Refere-se aos Direitos Humanos como “diamante ético”, uma alegoria pedagógica utilizada
pelo autor para definir os elementos dos Direitos Humanos em conceituais (teorias de como concei-
tuar tais direitos; a posição ocupada por eles nas relações sociais; o espaço físico, geográfico, hu-
mano ou cultural em questão; os valores ou preferências; como se determina a participação nas re-
lações sociais; instituições e seu conjunto de normas, regras e procedimentos) e materiais (proces-
sos econômicos; consciência de classe; criação de condições que possibilitam ou não o acesso a
bens; práticas sociais; historicidade; como se relacionam quem intervém na produção, entre si e
com o meio-ambiente).
Herrera analisa diversas complexidades dos Direitos Humanos: complexidade cultural (cho-
ques culturais ao se aplicar em escala mundial um “mínimo ético indispensável à dignidade” com
valores ocidentais), empírica (o simples fato ter nascido garante o gozo desses direitos), jurídica
(caráter programático das normas que estatuem Direitos Humanos), econômica (necessidades ideo-
lógicas do mercado financeiro), científica (princípios abstratos reguladores da investigação científi-
ca), filosófica (vínculo do objeto com a realidade) e política (caráter ideológico do contexto históri-
co em que o direito está inserido).
O autor após analisar essas complexidades dos Direitos Humanos, aponta quatro condições
para uma teoria crítico-realista de tais direitos, sendo a primeira condição a visão realista do mundo,
propriamente dita, com o conhecimento da realidade sob uma ótica racional; a segunda condição é a
conscientização em favor da luta pelos direitos; o caráter de coletividade na construção de uma
nova visão de mundo como terceira condição, juntamente com o estabelecimento de garantias for-
mais juridicamente reconhecidas e o empoderamento de minorias; e a última condição a demonstra-
ção da insatisfação com o atual sistema dominante.
Para tanto, Herrera Flores estabelece que, para a concretização de sua teoria, é necessário
sobretudo o reconhecimento da importância das mobilizações populares; o respeito às diferenças;
reciprocidade no sentido de solidariedade; responsabilidade política e a redistribuição de bens em
nome da dignidade humana, devidamente regulamentada juridicamente.
Assim, o autor propõe uma nova atitude teórica diante da realidade contemporânea dos Di-
reitos Humanos, que se aproxima da realidade de desiguais. Sua perspectiva é integradora para que
a dignidade humana alcance um caráter global, sem a distinção de “classes de direitos” com a divi-
são de gerações, que incita uma visão unilateral e evolutiva do tema. Pretende vincular os Direitos
Humanos às políticas de desenvolvimento integral, comunitário e local, contextualizando tais direi-
tos com as práticas sociais.
O pesquisador procura um critério que permita afirmar ou negar a generalidade de um direi-
to, teoria ou prática social. Deduz, no entanto, que isto não é possível, por inexistir um critério de
valor: seria impossível enxergar os Direitos Humanos de modo generalizado, pois tais direitos so-
frem influências externas. A concepção de Direitos Humanos como sendo aqueles decorrentes do
simples fato de se ser humano, prevalece certamente uma visão ocidental dos mesmos.
Para a construção de uma prática de Direitos Humanos, Joaquin Herrera Flores defende a
essencialidade de um espírito de rebeldia e de resistência, por meio dos seguintes pontos: construir
um espaço público com o ideal participativo de democracia; recuperar a ação política, visto que os
Direitos Humanos detêm uma indiscutíveis dimensão política; trazer as lutas sociais novamente
para o centro político e evidenciar a crítica à dominação e ao etnocentrismo característicos do libe-
ralismo;
Boaventura de Sousa Santos segue a linha de pensamento de Joaquin de Herrera Flores e,
inclusive, a amplia: Santos busca uma visão complexa, intercultural, racional e de resistência, ca-
racterizada pela polifonia discursiva sem o ideal de alcançar uma síntese universal de direitos, reco-
nhecendo as diferenças. Ou seja, o pesquisador propõe uma prática que não seja universalista, ou
multiculturalista mas intracultural.
Considerações Finais

Os Direitos Humanos não são apenas um fenômeno jurídico, mas também político, sujeitos
à ideologias, e não podem ser compreendidos fora de seu contexto histórico e cultural. Por seu cará-
ter político, os Direitos Humanos também possuem consequências políticas, visto que tais direitos
foram fruto de lutas sociais que buscavam a garantia de liberdades. Hoje, trazem novos desafios a
serem enfrentados com o atual panorama político-econômico, em face do neoliberalismo e da glo-
balização.
Direitos Humanos possuem caráter universal, independem de reconhecimento constitucional
e, ao receber tal positivação, passam a ser denominados Direitos Fundamentais, direitos consagra-
dos na Constituição que representam as bases éticas do sistema jurídico da Nação.
É importante ressaltar que esta pesquisa não possui o objetivo de esgotar o assunto, pelo
contrário, visa ao conhecimento analítico do tema para ampliá-lo e suscitar futuras discussões. Me-
lina Fachin, Flávia Piovesan, Danielle Anne Pamplona, dentre muitos outros autores de livros e pu-
blicações importantes sobre o assunto, que merecem ser estudados dando continuidade ao processo
de pesquisa e aprendizado.
O conhecimento dos Direitos Humanos possui uma importante função social: saber inter-
pretar o mundo. Entender o contexto histórico-cultural, bem como as características desses direitos
permite a conclusão de que nenhuma alegação de dificuldades econômicas e sociais poderia servir
de justificativa válida para a limitação de Direitos Humanos ou da Democracia.

Referências

DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do Direito. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2016.

FLORES, Joaquin Herrera. A (Re) invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boi-
teaux, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Rio de Ja-
neiro: PUCRJ em parceria com o Instituto de Relações Internacionais, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do
reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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