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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica

criminológica apreensível em pretuguês

CRIMINOLOGIA CRÍTICA E PACTO NARCÍSICO: POR UMA CRÍTICA


CRIMINOLÓGICA APREENSÍVEL EM PRETUGUÊS
Critical criminology and the narcisstic pact: racializing criminological critique
Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 135/2017 | p. 541 - 562 | Set / 2017
DTR\2017\5635

Thula Rafaela de Oliveira Pires


Doutora em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora da graduação e pós-graduação do
Departamento de Direito da PUC-Rio. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Constitucionais
(NEC), do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA) da
PUC-Rio e Colaboradora do Laboratório de Direitos Humanos (FND/UFRJ).
thula@puc-rio.br

Área do Direito: Penal; Direitos Humanos


Resumo: O texto parte da hipótese de que apesar dos desencontros entre a criminologia
crítica no Brasil e América Latina e a agenda dos movimentos negros e de mulheres, há
possibilidade de construção de alternativas radicais e potentes, desde que possamos
repactuar nossas premissas e que os privilégios sejam colocados à mesa. Na primeira
parte busca-se recuperar algumas narrativas que representam a crítica que se pretende
interpelar, bem como enunciadas algumas das dimensões narcísicas de suas
construções. Em seguida, busca-se oferecer uma lente epistemológica imbricada e
decolonial que, através da categoria da amefricanidade, possibilita uma conversa em
pretuguês, assumindo todas as implicações políticas de falar nesses termos. No aspecto
metodológico, faz-se um convite à que a criminologia crítica repense seus marcos
teóricos sobre relações raciais no Brasil, tome consciência dos silêncios reproduzidos e
códigos pelos quais a branquitude operou nesse campo de estudos. Ao revelar o pacto
narcísico que impediu que se pudesse avançar para além da denúncia da seletividade do
sistema de (in)justiça criminal, é possível manter a crítica ao racismo e sexismo na
máquina de controle, gestão e extermínio de corpos em sociedades capitalistas forjadas
na modernidade-colonial-escravista que se desencadeou nas Américas.

Palavras-chave: Criminologia crítica - Racismo - Branquitude - Amefricanidade e pacto


narcísico
Abstract: The article begins with the hypothesis that despite the missed encounters
between critical criminology in Brazil and Latin America and the agenda of black and
women's movements, there remains a possibility of constructing radical and powerful
alternatives, provided that we can renegotiate our premises and put privileges on the
table. The first part of the article seeks to rethink some of the narratives that represent
the criticism that I intend to interpellate, as well as some of the narcissistic dimensions
of their constructions. Then, it proposes an intersectional and descolonial epistemological
lens which, through the category of amefricanity, makes possible a conversation in
pretuguês, capable of responding to the political implications of speaking in these terms.
In methodological terms, it is an invitation to critical criminology to rework its theoretical
frameworks with respect to race relations in Brazil, and to take into consideration the
silences reproduced and codes by which whiteness has operated in this field of study. In
revealing the narcissistic pact that has prevented criticism from going beyond the charge
of the selectivity of the criminal (in)justice system, it is possible to move forward the
criticism of racism and sexism in the regimes of control, management and extermination
of bodies in capitalist societies forged within the colonial and slavocratic modernity that
was unleashed in the Americas.

Keywords: Critical criminology - Racism - Whiteness - Amefricanity - Narcissistic pact


Sumário:

1 Introdução - 2 Criminologia crítica e pacto narcísico - 3 Crítica criminológica em


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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

pretuguês - 4 Considerações finais - 5 Referências bibliográficas

1 Introdução
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Esse trabalho responde ao chamado de produção de um crítica criminológica
efetivamente comprometida com as tensões raciais que pretende denunciar. Diferente
do que hegemonicamente se viu desenvolver no campo consagrado como da
criminologia crítica no Brasil e América Latina, trata-se de uma abordagem que enfrenta
as causas da seletividade penal (racismo, sexismo, heteronormatividade compulsória,
capitalismo e colonialidade) de maneira imbricada.

Estamos afirmando, entre outras coisas, que não basta dizer que há seletividade racial e
de gênero no modo de atuação dos órgãos de justiça criminal. Algo que pode parecer
revelador para importantes representantes da criminologia crítica no Brasil, é
experimentado de maneira indiscutível e secularmente pelos corpos privilegiados do
sistema de (in)justiça criminal que tomamos para análise.

Coloca-se em questão o pacto narcísico que, em grande medida, se revela no


comportamento do campo dos estudos criminológicos. Defendemos que a criminologia
crítica não rompeu com o “acordo tácito entre os brancos de não se reconhecerem
como parte absolutamente essencial na permanência das desigualdades raciais no
Brasil” (BENTO, 2002, p. 26). De forma consciente ou inconsciente, pouco importa, o
fato é que a causa da seletividade racial do sistema de (in)justiça criminal não foi
tratada nos seus devidos termos. O racismo como estruturante e estruturador das
relações políticas, sociais, econômicas, de gênero e sexuais foi, no máximo, tratado
como um problema de negros e negras.

O silêncio pactuado pela branquitude opera de modo a perpetuar o ciclo de privilégios e


vantagens históricas que usufruem corpos brancos em sociedades de base
colonial-escravista. O enfrentamento dos ônus desproporcionais impostos aos negros
pelo sistema penal só pode ser razoavelmente compreendido se desvelados os efeitos de
bônus desproporcionais dedicados aos brancos pelo mesmo sistema. É por isso que
defendemos a racialização da crítica criminológica, para que décadas de silenciamento
sobre as causas da seletividade racial possam ser encaradas, sem as hierarquizações de
humanidade que o racismo epistêmico engendrou.

Buscamos um novo ponto de partida, para que seja desenvolvida uma abordagem
estrutural das tensões raciais no Brasil e seus desdobramentos nas relações
institucionais de controle, governo e extermínio de corpos. A racialização do branco
impede que ele se configure como sujeito universal e permite perceber os códigos
através dos quais o racismo opera estruturalmente, conformando brancos, não brancos e
instituições racistas. Ao racializar a crítica criminológica será possível perceber não
apenas os efeitos do racismo institucional dos órgãos de criminalização primária,
secundária e terciária sobre brancos e não brancos, mas também o seu impacto sobre o
funcionamento de outras formas de dominação e opressão. Dito de outra maneira, não
renunciar a categoria raça ajuda a entender melhor como funciona o patriarcado, a
heteronormatividade e a luta de classes. (PIRES, 2017).

Objetivamos interpelar as narrativas criminológicas produzidas de um lugar que não se


compromete com o racismo em suas mais variadas formas de expressão, aqui
sinalizadas pelas dimensões da colonialidade do ser, do poder e do saber, e que insistem
em reproduzir sua análise a despeito e acima do grito dos corpos negros que, há
tempos, reivindicam integrar a discussão de maneira horizontal. Ao invés de inviabilizar
a conversa, pretende-se que ela possa efetivamente acontecer. Conforme reconhece o
editorial desse dossiê “a produção acadêmica hegemônica pouco avançou na produção
de um diálogo contemporâneo da produção criminológica com os movimentos negros”.

Nesse sentido, na primeira parte desse artigo serão recuperadas algumas narrativas que
representam a crítica que pretendemos interpelar, bem como enunciadas algumas das
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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

dimensões narcisísticas de suas construções. Em seguida, busca-se oferecer uma lente


epistemológica, entre outras possíveis, que possibilite uma conversa em pretuguês,
assumindo todas as implicações políticas de falar nesses termos.

O pretuguês, tal como desenvolvido por Lélia Gonzalez, será tratado mais
adequadamente no item 3. Por ora, é suficiente caracterizá-lo como expressão que
destaca que o português culto falado no Brasil é carregado de sonoridade e influência
das muitas línguas faladas no continente africano (trazidas para cá pelos corpos
escravizados) e nas etnias indígenas que viviam no território brasileiro. Ao reconhecer
isso, pretende-se não apenas o reconhecimento linguístico dessa herança, mas
notadamente, racializar para politizar a maneira pela qual se determina ‘quem fala’,
‘quando fala’ e ‘em que termos pode falar’. Falar em pretuguês é falar em primeira
pessoa, assumindo a defesa radical de nossa humanidade negada e impondo a
tonicidade aos aspectos que nos afetam, sem as mediações e traduções distorcidas que
a branquitude insistiu em (re)produzir.

Parte-se da hipótese de que apesar dos desencontros entre as críticas produzidas e a


agenda dos movimentos negros, há muitas confluências e há possibilidade de construção
de alternativas radicais e potentes para os desafios que nos propomos a enfrentar,
desde que possamos repactuar nossas premissas e que os privilégios sejam colocados à
mesa.

Em termos metodológicos, fazemos um convite à que a criminologia crítica, mesmo


aquela que só vislumbra como caminho possível de crítica aquele trilhado através da
Teoria Social, passe a lidar com as tensões raciais a partir do que Guerreiro Ramos
(1995) chama de negro-vida. Um convite a que repensem seus marcos teóricos sobre
relações raciais no Brasil, levando em conta o que eles permitem desvelar e em que
medida, mantém sobre nós leituras hierarquizadas e eurocêntricas, reduzindo nossas
experiências, saberes e agências a objeto, a um problema que não diz respeito a sujeitos
que nos racializam, mas que naturalizam e normalizam a racialidade não nomeada de
sua branquitude.

Tomar consciência dos silêncios reproduzidos e códigos pelos quais a branquitude operou
nesse campo de estudos é fundamental para que possamos produzir alternativas
potentes ao brutal e perverso modelo de desumanização de corpos que ancora a
criminologia e sua crítica contemporânea.

Tendo como agenda de pesquisa a disputa por uma decolonialidade de perspectiva negra
e como principal farol de orientação a categoria de amefricanidade proposta por Lélia
Gonzalez, esse espaço se apresenta como lugar privilegiado de reflexão e crítica sobre
contextos nos quais a imbricação entre raça, gênero, classe e colonialidade nos capacita
a confrontar a realidade que herdamos.

Assim como Ana Flauzina se define em recente artigo publicado pela revista Discursos
Sediciosos (FLAUZINA, 2017), me coloco nesse espaço como “visitante do clube
criminológico”, alguém que vem da filosofia política e da teoria constitucional e encontra
na discussão criminológica um, dentre outros caminhos possíveis, para dar conta de
(re)existir em meio ao genocídio. O genocídio do povo negro, problema levantado por
Abdias Nascimento (1978), pelo menos desde a década de 1970, pode oferecer uma
chave de compreensão estrutural sobre os efeitos do racismo no Brasil, notadamente
quando se pretende refletir sobre os mecanismos institucionais através dos quais o
Estado controla, acondiciona, fragiliza e extermina corpos. Tal como será desenvolvido
oportunamente.

2 Criminologia crítica e pacto narcísico

Inicialmente, é importante destacar que a conversa proposta nesse artigo só faz sentido
entre perspectivas teóricas comprometidas com uma abordagem crítica do direito,
especialmente do direito penal e processual penal, abordando o sistema de justiça
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criminológica apreensível em pretuguês

criminal, segurança pública, o controle social e os direitos humanos de forma a


denunciar a apropriação violenta e opressora desses modelos e reposicionar resistências
emancipadoras.

Conforme desenvolvido em trabalho anterior, racismo e criminologia mantiveram entre si


movimentos erráticos de fortalecimento/desqualificação que demonstram a
complexidade das estruturas que sustentam o primeiro e os objetos de estudo eleitos
pela segunda. No Brasil, a recepção da criminologia como ciência se deu no processo
jurídico-político de transformação do Império em República e a partir da relação
conflituosa entre a Escola Clássica e a Positivista. A articulação entre os argumentos
raciais que legitimaram o sistema colonial e o discurso científico dava continuidade à
representação que as classes dominantes faziam de sua posição e da legitimidade de seu
poder. (PIRES, 2016).

Ao grupo dominante foram reproduzidos e compartilhados os medos e receios em


relação à convivência em pé de igualdade com o grupo dominado, aprisionado em
estigmas e estereótipos de subalternidade que quanto mais se consolidavam no
imaginário social, mais adquiriram no senso comum o status de verdadeiro (AZEVEDO,
1987). Em uma relação de continuidade, o controle de corpos iniciado no período
colonial, manteve-se durante a primeira República e passou a ser radicalizado por uma
arquitetura punitiva que indicava as agências da criminalização secundária – Polícia,
Ministério Público e Poder Judiciário – e os redutos da criminalização terciária – ingresso
de indivíduos no sistema prisional – como os espaços para a reprodução dos
mandamentos da criminologia positivista (FLAUZINA, 2008, p. 89).

Essa não é a leitura que se pretende confrontar (a da escola clássica e positivista),


porque com essa “não há conversa possível”. É preciso ter como acordo mínimo a
percepção de nossa humanidade plena para que seja possível desenvolver uma análise
no sentido da que se propõe. Assim, chamamos para conversa a criminologia crítica,
concebida por Baratta como movimento de construção de uma teoria materialista e
econômico-política do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da
criminalização (2002, p. 159-161), surgida no final da década de 60.

Para chegar à concepção defendida por Baratta, foram fundamentais as reflexões


promovidas pela(o)s: teoria do etiquetamento, antipsiquiatria, marxismo e ceticismo.
Além disso, a experiência da América Latina, massacrada pela dependência do capital
internacional e pela falta de legitimidade das classes dirigentes, vivida na década de 60
pelo terrorismo de Estado e as formas mais cruéis de repressão pública oficial
informaram em grande medida esse movimento. O momento político de exacerbação
das ideias de ordem, repressão e castigo, traziam para a criminologia novos desafios e
reflexões.

A crítica ao positivismo propiciou a emergência de um conjunto de pensadores que


postulavam a ruptura com o pensamento legitimador ou negador da repressão e da
exclusão: “um pensamento que já pode ser denominado, com propriedade, de
‘criminologia crítica’ teve seu ponto inicial na Venezuela, no ano de 1974” (ANITUA,
2008, p. 676). Essa perspectiva centrou o foco na violência institucional, contra o
imperialismo violento e o papel desempenhado em sua negação pela criminologia
tradicional; na abolição da prisão e de outras práticas coercitivas reprodutoras do
mesmo modelo social; e na discussão sobre a própria função da criminologia que deveria
passar da crítica e da denúncia para a conformação de uma nova ordem mais justa e
igualitária.

Com enfoque multidisciplinar, crítico e radical pensadores como Rosa del Olmo, Lola
Aniyar, Tosca Hernández, Myrla Linares, Eduardo Novoa, Alvaro Bunster, Luis Marcó Del
Ponto, Roberto Bergalli, Emilio Méndez, Elías Carranza, Gustavo Cosavoc, Juan Pegoraro,
Enrique Marí, Raúl Zaffaroni, Heleno Fragoso, Ester Kosovski, Nilo Batista, Juarez
Tavares, Juarez Cirino, Emiro Sandoval, Fernando Rojas, Mauricio Martínez e Juan
Sepúlveda denunciaram os problemas específicos da região: “estrutura social muito
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criminológica apreensível em pretuguês

desigual, uma economia dependente e um Estado coercitivo, que recorria inclusive a


práticas delinquenciais tão graves como matar, torturar e demais ações que não eram
sancionadas como delitivas” (ANITUA, 2008, p. 678).

Longe de legitimar os discursos racistas das escolas clássicas e positivistas, a


criminologia crítica apontou a seletividade racial do sistema de justiça penal e
demonstrou a ofensiva positivista de transformação do negro no signo do criminoso.
Enquanto os defensores da antropologia criminal identificavam no contingente carcerário
a prova inconteste da inferioridade do negro e de sua predisposição natural ao
cometimento do delito, a criminologia crítica evidenciava a perversa estratégia de
estigmatização por que passaram pretos e pardos na realidade pátria, bem como os
reflexos que essa segregação gerava no sujeito encarcerado e na imagem social que
dele se difundia.

Atribuindo uma perspectiva mais determinista à estigmatização ou vinculando-a ao


processo mais amplo da luta de classes, fato é que a(o) negra(o), a(o) louca(o), a(o)
pobre, a(o) anarquista e toda(o)s a(o)s demais tipos representativos da delinquência,
passaram a ter a sua realidade social lida a partir da atuação dos órgãos de controle e
repressão do Estado, bem como do lugar por ela(e)s ocupados ou a ela(e)s renegados
pelo modelo de produção capitalista.

Esse é o projeto que para nós faz sentido disputar. Buscamos recuperar o contato com
os criminológos críticos que, a partir da demonstração da racialização do sistema penal e
da seletividade racial do controle social promovido pela norma penal, tornaram-se
aliados históricos dos movimentos negros e evidenciar alguns dos motivos que nos
distanciou nesse mesmo percurso. Juntamo-nos, assim, aos esforços já desenvolvidos
por Ana Flauzina (2008, 2016 e 2017), Felipe Freitas (2016), Evandro Piza, Camila
Prando, Ricardo Cappi e Marcia Calazans (2016).

Nosso principal ponto de desacordo está em que a denúncia da racialidade do sistema de


justiça penal e do racismo institucional pela criminologia crítica hegemônica reproduziu a
narrativa do “negro-tema” criticada por Guerreiro Ramos (1995). A tradição da
criminologia crítica latino-americana acima destacada abordou a clivagem racial do
sistema penal, a partir de categorias e valores eurocêntricos e de uma visão do negro
estereotipada e homogeneizada. Nesses termos, foi incapaz de desvelar os códigos
através dos quais o critério classe operava de maneira racializada, assim como as
variáveis de gênero, sexualidade e deficiência. O racismo institucional não foi entendido
em termos estruturais, mas como enunciação retórica de que o racismo das relações
intersubjetivas extrapola as relações pessoais.

Nesse sentido, pode-se aproximar essa leitura daquelas que Guerreiro Ramos identifica
como abordagens do “negro-tema”, perspectivas que tomam o negro como mero objeto
mumificado, tornado transparente (1995, p. 215). Apesar de divergentes nas
conclusões, pode-se aproximar a leitura do negro que subjaz à crítica criminológica
daquelas que forjaram a auto-imagem oficial do negro no Brasil, como as desenvolvidas
por Sylvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Viana e Nina Rodrigues,
para citar apenas os autores com os quais Guerreiro Ramos se confrontou mais
diretamente. Racismo institucional é algo que não ocorre apenas nos órgãos de
criminalização, mas que opera, inclusive, entre aqueles e aquelas que se dispuseram a
pensar criticamente o campo criminológico, exatamente porque não romperam com o
pacto narcísico de sua branquitude.

O “negro-vida”, reivindicado pelos movimentos negros e pelo pensamento desenvolvido


por Guerreiro Ramos, Virgínia Bicudo, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Lélia
Gonzalez, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Jurema Werneck, Vilma Reis, Dora Bertúlio,
Maria Aparecida Bento entre outras e outros, se refere a um elemento multiforme, “do
qual não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã
o que não é hoje” (1995, p. 215). Busca-se uma leitura capaz de romper com visões
simplistas do negro que incorrem em estereótipos e, em consequência, perde de vista a
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dimensão plural do significado da negritude no país.

A branquitude – ou aquilo que Guerreiro Ramos chamou de Patologia Social do ‘branco’


brasileiro - pode ser entendida como um lugar de privilégios simbólicos e materiais que
colaboram para a construção social e reprodução de preconceito racial, discriminação
racial injusta e racismo. De forma didática, Ruth Frankemberg apresenta a branquitude
como o lugar estrutural que permite que o sujeito branco atribua ao outro o que não
atribui a si mesmo (FRANKEMBERG, 1999). Trata-se de um comportamento que percebe
o outro a partir dos lugares sociais reservados para sua condição racial, sem perceber-se
como racialidade não nomeada e normalizada como padrão de humanidade (BENTO,
2002). A branquitude traz à cena e nomeia o componente racial branco,
costumadamente ‘neutralizado’/’normalizado’ nas relações sociais, tornando visível o que
socialmente se faz questão de velar. (LABORNE, 2014).

A branquitude, ou identidade racial branca, se (re)constrói histórica e socialmente e não


pode ser concebida de forma estática e homogênea. Apresenta-se como posicionamento
político diante das drásticas assimetrias entre seres humanos, como lugar de poder
estruturalmente definido e estruturante das relações sociais e institucionais, e nesses
termos nos interessa trazer a discussão. Busca-se, ao revelar o pacto narcísico da
criminologia crítica, racializar para politizar as discussões nesse campo de estudos e
atuação, de forma a possibilitar o desenvolvimento de propostas que encarem os não
brancos e não brancas em toda sua humanidade e complexidade, que lhes ofereça
alternativas reais ao genocídio em todas suas formas de expressão, entre elas o
extermínio e o superencarceramento. Aos brancos e brancas, oferece a possibilidade de
explicitar os códigos através dos quais constituíram sua humanidade a partir da
desumanização da(o)s não branca(o)s, eleita(o)s como outros/inimigos/descartáveis,
para que não reproduzam a postura abolicionista hierarquizada do século XIX de achar
que podem dar o tom de toda e qualquer luta.

A luta antirracista é uma disputa de branco(a)s e não branco(a)s, cada um(a) do seu
lugar, entendo as nuances em que o racismo opera sobre cada experiência. Se é certo
que o racismo forja branca(o)s e não branca(o)s, é preciso que não se esqueça de que o
sistema de desvantagens sistêmicas que afetam negra(o)s, tem na sua contra-face o
modelo de privilégios e vantagens históricas usufruídos por branca(o)s.
2
Análises que se intitulam comprometidas com a denúncia da seletividade racial do
sistema penal, mas que menosprezam ou sequer consideram a agenda política dos
movimentos negros, de mulheres e indígenas no Brasil só podem ser compreendidas se
os códigos da branquitude estiverem visíveis. Apesar de se esconder em uma suposta
invisibilidade, a identidade racial branca é anunciada ou tornada invisível, dependendo
dos interesses em conflito. Entender os meandros de operação do pacto narcísico é
fundamental para que possamos repactuar (criminologia crítica e movimentos negros,
por exemplo) o compromisso comum pela luta antirracismo.

Falar em racismo ou nos seus efeitos sem se comprometer na análise é um dos sintomas
do pacto narcísico. De acordo com Cida Bento (2002) há um acordo tácito entre os
brancos de não se reconhecerem como parte essencial na permanência das tensões
raciais no Brasil. A referência ao passado colonial-escravista é feita em termos que
isentam o branco desse legado. É como se ele só tivesse produzido pobreza,
desumanidade e violência para negros, mulheres, indígenas, lésbicas, gays,
transvertigêneros, não cristãos, não proprietários, pessoas com deficiências, mas qual foi
o resultado para os homens, brancos, heteros, cristãos, proprietários e sem deficiência?
Evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio e tem
um forte componente narcísico de autopreservac�ão.

O racismo e, por consequência, a seletividade racial do sistema penal, não é um


problema de negros, é um problema da hierarquização racista, sexista, classista, cristã e
heteronormativa que por aqui se estruturou, e para que a sua enunciação não reproduza
a lógica do inimigo tão contundentemente rebatida pela criminologia crítica, é preciso
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que nesses termos se enuncie. A herança branca da escravidão só pode ser resguardada
em um contexto que reforça a inferioridade negra, bem como sua memória, saberes e
agência.

É nesses termos que a branquitude se impõe como guardiã silenciosa de privilégios


(LABORNE, 2014) e se apresenta mesmo nos pensamentos críticos e reconhecidos como
progressistas. Assim como as abordagens que denunciam, filtram as narrativas que
confrontam seus privilégios, silenciam as disputas que questionam suas verdades e
assumem a condição de única possibilidade de leitura desalienada sobre a realidade.
Uma “desalienação” que se impõe pelo recalque a tudo aquilo que não é espelho. É
exatamente quando a reprodução de práticas que criticam se apresenta aos grupos que
direta e desproporcionalmente sofrem os efeitos da violência seletiva do Estado, que nos
distanciamos. Quando a crítica criminológica se apresenta como mais uma das
ferramentas de subalternização de nossa voz, luta e existência é que deixamos de
acreditar que a aliança é possível.

O esforço aqui é o de desconstruir o legado histórico da branquitude, ou seja, reforçar o


compromisso com a necessidade de ampliar as possibilidades de construção de
identidades brancas que reforçam uma prática antirracista, de desconstrução dos
padrões, normas e pactos que interpelam sujeitos branco(a)s por privilégios e vantagens
não nomeadas. Entender o funcionamento da branquitude permite perceber que a
violência seletiva do Estado ancora-se no reconhecimento seletivo da humanidade da(o)s
branca(o)s, relegando aos não brancos o tratamento próprio da zona do não ser
(GROSFOGUEL, 2016). A construção de uma identidade branca não racista sinaliza uma
nova possibilidade, reafirmando a esperança de que é possível ter aliados brancos na
desconstrução de preconceitos e desigualdades raciais. Uma postura não racista requer
uma atenção contínua e rigorosa para o modo como a construção da raça influenciou os
posicionamentos sociais na sociedade brasileira.

Recorremos novamente a Ana Flauzina (2015), para afirmar que há uma miopia
generalizada que impede que se enxergue o sistema de justiça criminal como
instrumento apoiado, fundamentalmente, na vulnerabilização e exploração de mulheres
negras em todos os níveis de sua intervenção, pelo engendramento do terror sexual e do
terror racial como a matriz central da punição.

Se é para seguir aplicando à criminologia crítica o método da teoria social, porquê não
substituir Florestan Fernandes por Guerreiro Ramos, Virgínia Leoni Bicudo, Lélia
Gonzalez e demais pensadora(e)s que trabalharam o racismo na perspectiva do
negro-vida e do branco como ser histórica e socialmente racializado? Os processos de
normalização questionados pelas lentes de classe precisam alcançar outros padrões a ele
imbricados, sob pena de não ser possível descolonizar a criminologia. A ótica de classe
não racializada e não genderizada produziu interpretações sobre a realidade que
negaram a dimensão estrutural e estruturante da raça e gênero e desenvolveram chaves
de compreensões capazes de se aplicar apenas à classe trabalhadora branca, masculina,
hétero.

É preciso um recentramento epistêmico-institucional, um confronto permanente com os


próprios privilégios e com o sistema de privilégios que o racismo e o sexismo
institucional preserva. Em seguida, nos propomos a oferecer um possível caminho
alternativo para reaproximar criminologia crítica e movimentos negros, a partir de uma
lente epistemológica imbricada.

3 Crítica criminológica em pretuguês

Conforme enunciado acima, partimos do pressuposto de que uma das formas através
das quais o sistema de justiça criminal opera é através do sequestro da palavra. Mesmo
nas experiências mais garantistas, a palavra segue subtraída dos sujeitos envolvidos
com a prossecução penal.

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criminológica apreensível em pretuguês

Na crítica ao uso da linguagem como mecanismo de poder e da sua utilização para


perpetuar hierarquizações racializadas, Lélia Gonzalez confronta os padrões de
linguagem exigidos na academia, com o objetivo de explicitar o preconceito racial
existente na própria definição da língua materna brasileira (CARDOSO, 2012). Lélia
Gonzalez destaca a necessidade de afirmar o pretuguês, a mistura entre a língua
herdada de Portugal e as referências linguísticas africanas que nos apropriamos. Quando
Lélia Gonzalez destaca a necessidade de se afirmar o pretuguês, está chamando atenção
para múltiplas formas em que a colonialidade se impôs às culturas não brancas.

Gonzalez (1988) chama de “pretoguês” a marca de africanização do português falado no


Brasil, igualmente constatável sobretudo no espanhol da região caribenha. Habilitar o
pretuguês como categoria linguística é desvelar o quanto o português cultuado nos
ambientes acadêmicos e demais espaços de poder é encoberto pelo véu ideológico do
branqueamento, recalcado por classificações eurocêntricas, que minimizam a
importância da contribuição negra. Nas palavras de Abdias Nascimento (2009, p.206):

Durante séculos temos carregado o peso dos crimes e dos erros do eurocentrismo
‘científico’, os seus dogmas impostos em nossa carne como marcas ígneas da verdade
definitiva. Agora devolvemos ao obstinado segmento ‘branco’ da sociedade brasileira as
suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo europeu, a lavagem cerebral que
pretendia tirar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, a nossa
liberdade.

Falar em pretuguês é assumir uma postura de confronto ao racismo epistêmico e de


crítica frente às múltiplas formas de manifestação da colonialidade do saber.

A utilização do termo pretuguês nesse artigo reconhece e agrega a riqueza e sonoridade


das línguas indígenas e expressa a vontade de que as reflexões aqui expostas possam
ser compartilhadas e acessadas pelas múltiplas experiências que compõem o tecido
social brasileiro. Com uma abordagem apreensível em pretuguês pretende-se oferecer
uma concepção que restitui a fala e a produção teórica e política de sujeitos até então
infantilizados e destituídos da possibilidade de confrontar a hegemonia das perspectivas
eurocêntricas.

Conforme Lélia Gonzalez defendeu: “(...) o risco que assumimos aqui é o do ato de falar
com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (...), o
lixo vai falar, e numa boa” (GONZALEZ, 1983, p. 225). “O lixo vai falar” e vai confrontar
aquilo que não se quer ver, ouvir e se responsabilizar. Nesse sentido, se tivéssemos que
responder à pergunta colocada por Spivak (2010), poderíamos defender, a partir de
Lélia, que para nós, negra(o)s no Brasil, a possibilidade efetiva de fala só é possível em
pretuguês.

Tem-se por objetivo, mobilizar as categorias de análise desenvolvidas por Lélia Gonzalez
para propor uma crítica criminológica decolonial que “carrega na tinta”, que busca
racializar para politizar as disputas em torno do significado da política criminal, direito
penal e processo penal, segurança pública e direitos humanos, de modo a ser
apreensível pelos corpos que secular e desproporcionalmente aguentam os ônus dos
modelo de extermínio, controle e punição hegemônicos.

No texto A categoria político-cultural de amefricanidade, Lélia Gonzalez propõe uma


maneira alternativa de compreender o processo histórico de formação do Brasil e da
América. Ao eleger a noção de Améfrica Ladina como representativa das experiências
que aqui se conformaram, Gonzalez redimensiona a importância da influência da cultura
ameríndia e africana para produção e compreensão da realidade. Além da afirmação
3
dessas pertenças, o termo ladina assume os processos de aculturação e os desafios do
“não lugar” que se apresentam na dificuldade de integração dessas heranças e sujeitos à
sociedade colonial.

Interessava a Lélia desenvolver uma categoria que levasse em consideração as


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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

similaridades com a África no continente americano e o processo diaspórico


desencadeado com a colonização. Por essa categoria, ela ilumina o processo histórico da
diáspora vivenciada e compartilhada pela(o)s afrodescendentes nesse continente, entre
resistências e reinterpretações de outras formas afrocentradas.

Nas palavras de Lélia Gonzalez:

As implicações políticas e culturais da categoria amefricanidade (“Amefricanity”) são, de


fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as
limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para
um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: a
América e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter
puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo
histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação
de novas formas) que é afrocentrada.

[...] Seu valor metodológico, a meu ver, está no fato de permitir a possibilidade de
resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes
sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo. Portanto, a Améfrica,
enquanto sistema etnográfico de referência, é uma criação nossa e de nossos
antepassados no continente em que vivemos, inspirados em modelos africanos. [...]
Embora pertençamos a diferentes sociedades do continente, sabemos que o sistema de
dominação é o mesmo em todas elas, ou seja: o racismo, essa elaboração fria e extrema
do modelo ariano de explicação, cuja presença é uma constante em todos os níveis de
pensamento, assim como parte e parcela das mais diferentes instituições dessas
sociedades. (1988, p.76-77)

Em sua proposta, a crítica ao eurocentrismo é realizada por uma postura afrocêntrica,


construída a partir da experiência negra fora do continente africano, principalmente na
América Latina e Caribe. A afrocentricidade, além das características sistematizadas por
Asante (2009), passa a ser interceptada na perspectiva do movimento das mulheres
negras no Brasil por características como oralidade, religiosidade, corporeidade,
circularidade, musicalidade, cooperativismo e energia vital (axé), tal como desenvolvida
por Azoilda Trindade e resgatada por Giovana Xavier (2016).

O interesse em trazer para a discussão criminológica as proposições de Lélia Gonzalez,


além das múltiplas possibilidades epistêmico-metodológicas já enunciadas, repousa no
fato de que sua proposta está bastante conectada com as discussões e debates do
Movimento Negro Unificado no momento em que foi formulada e continua a reverberar
nas muitas atuações dos movimentos negros contemporâneos. Trata-se de uma
abordagem que se preocupa em construir um projeto político dos negros para o Brasil e
não apenas para suas próprias trajetórias.

Conforme Luiza Bairros escreveu:

[É preciso] construir uma força política nesse país baseada no povo negro. Uma força
política capaz de disputar com um projeto que seja elaborado a partir da sua própria
perspectiva, do seu próprio lugar. Não o lugar da subordinação em que a sociedade tem
tentado nos atirar ao longo dos séculos, mas, o lugar do sujeito político, responsável por
seu próprio destino. Para além disso, outro aspecto que eu considero super importante
na colocação do MNU, é que não se trata de um projeto político do negro para o negro,
que seja o negro pensando para dentro de sua comunidade, mas sim o negro pensando
para a sociedade brasileira como um todo e levando em conta todos os povos, todas as
raças que a compõem. Considero que isso que dá a mudança efetiva de qualidade deste
projeto que o MNU pretende. Estamos apostando hoje na possibilidade de disputar não
mais um espaço dentro de outros projetos para as nossas questões, que são tidas como
menores. Mas nós estamos apostando na possiblidade de que, através das nossas
questões, nós consigamos efetivamente tocar, e tocar muito fundo, nas questões
nacionais, nas questões que dizem respeito à sociedade como um todo. (BAIRROS,
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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

1991, p. 9.)

No mesmo sentido, destacou Nilma Gomes (2012, p. 741):

Enquanto alguns setores sociais ainda olham com desconfiança a adoção da raça como
categoria de análise para a compreensão das relações étnico-raciais e das formas de
racismo que operam em nossa sociedade e nos demais países latino-americanos, o
movimento negro brasileiro, desde as suas primeiras organizações no início do século
XX, explicita e comprova a centralidade da raça de diferentes formas e por meio de
diversas abordagens. Ao ressignificar e politizar a raça, compreendida como construção
social, o movimento negro reeduca e emancipa a sociedade e a si próprio, produzindo
novos conhecimentos e entendimentos sobre as relações étnico-raciais e o racismo no
Brasil, em conexão com a Diáspora Africana.

Para além dessa dimensão de projeto político interseccional para o Brasil, na categoria
da amefricanidade há um inegável compromisso com o rompimento com qualquer
resquício do colonialismo imperialista, notadamente em termos epistêmicos. Em termos
metodológicos, a categoria da amefricanidade permite o resgate de uma unidade
específica propiciada pela experiência histórica comum do povo negro em diáspora. Os
quilombos, cimarrones, cumbes, palenques, marronages e marron societies
oferecem-nos uma ideologia de libertação e modelos alternativos de punição derivada da
nossa experiência diaspórica, historicamente situada e culturalmente particular.

Apesar das similaridades entre África e América, a experiência amefricana se diferencia


daquela vivida do outro lado do Atlântico. Tentar achar as “sobrevivências” da cultura
africana no continente americano pode encobrir as resistências e a criatividade da luta
contra a escravidão, contra o genocídio e a exploração. Amefricanidade carrega um
sentido positivo, “de explosão criadora”, de reinvenção afrocentrada da vida na diáspora.
Para Lélia Gonzalez (1988, p. 79), “foi dentro da comunidade escravizada que se
desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar
uma luta plurissecular de liberação”.

No mesmo sentido, a categoria histórico-cultural do quilombismo constitui uma práxis


afro-brasileira de resistência e organização política comprometida com a liberdade.
Proposta por Abdias Nascimento e construída a partir do significado político dos
quilombos como genuínos focos de resistência física e cultural, decorrentes da exigência
vital dos africanos escravizados de resgatarem sua liberdade e dignidade, entoam novas
possibilidades de organização social livre, solidária e fraterna. Materializadas pelas suas
manifestações legais – na forma de associações, irmandades, confrarias, clubes,
grêmios, terreiros, centros, tendas, afoxés, escolas de samba e gafieiras – assim como
pelas outras manifestações quilombolas que conhecemos, trata-se de uma prática de
libertação que assume o comando de sua própria história.

Tal como descreve em dois dos 16 princípios fundantes do quilombismo: “A revolução


quilombista é fundamentalmente anti-racista, anticapitalista, antilatifundiária,
antiimperialista e antineocolonialista”. (NASCIMENTO, 2009, p. 214- Princípio 11) e

O quilombismo essencialmente é um defensor da existência humana e, como tal, ele se


coloca contra a poluição ecológica e favorece todas as formas de melhoramento
ambiental que possam assegurar uma vida saudável para as crianças, as mulheres e os
homens, os animais, as criaturas do mar, as plantas, as selvas, as pedras e todas as
manifestações da natureza. (NASCIMENTO, 2009, p.214- Princípio 15).

Apostando em outro modelo de organização política e de relações institucionais,


concretamente experimentadas em processos de resistência negra, Abdias Nascimento
rompe com o determinismo subalternizante dos papéis sociais esperados dos negros e
negras. A partir de outra forma de pensar a República, de experiências concretas de
igualitarismo democrático, redimensiona o uso e a relação com a terra e o trabalho e
propõe a busca da felicidade de maneira não individualizada. Assumindo o compromisso
prioritário com as crianças da comunidade, defende um modelo de sociedade criativa,
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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

educação pluriversal e intercultural, bem como uma economia de base


comunitário-cooperativista no setor de produção, distribuição e divisão dos resultados do
trabalho coletivo. “Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista,
celebramos o advento da libertação quilombista” (NASCIMENTO, 2009, p. 206).

Como método de análise, compreensão e definição de uma experiência concreta, “o


quilombismo expressa a ciência do sangue escravo, do suor que os africanos
derramaram com os pés e mãos edificadores da economia deste país” (NASCIMENTO,
2009, p. 205). Ainda nas palavras de Abdias Nascimento: “Os quilombolas dos séculos
XV, XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista. Cumpre
aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e
de afirmação da sua verdade” (NASCIMENTO, 2009, p. 205). Nesses termos, é possível
redimensionar o papel do controle, extermínio e gestão dos corpos nas sociedades
capitalistas, constituídas através do projeto colonial-moderno-escravista imposto às
Américas.

Se essas experiências constituídas na luta por liberdade dizem muito sobre os modelos
punitivos desenvolvidos no Brasil, de outro lado, podem informar práticas alternativas,
não racistas e não sexistas de lidar com as ações socialmente definidas como desviantes.
No processo de enfrentamento a esse perverso sistema de (in)justiça criminal, múltiplas
foram as estratégias de resistência e modelos experimentados de comprometimento
coletivo com “desvios” individuais. De processos que podem ser identificados como
restaurativos a medidas abolicionistas, há um rico e complexo espectro de possibilidades
que podem ser desvelados para a criminologia crítica, caso se debruce sobre essas
práticas sem as hierarquias míopes impostas pela branquitude.

Exercitar a escuta, colocar-se em contexto, assumir a provincialidade escondida na


defesa de sua condição universal, aprender com aquele que julgava alienado, oferece
uma oportunidade ímpar de lidar com os objetivos da criminologia crítica da forma mais
próxima possível de seus pressupostos. O indivíduo abstrato é da ordem da branquitude,
como uma racialidade não-nomeada. Ao sujeito negro é negada essa individualidade, por
ser visto em termos coletivos, historicamente relacionados aos estereótipos pejorativos
produzidos pelos violentos processos de subalternização e vulnerabilidade que marcaram
as raízes coloniais-escravistas e se reproduzem pela colonialidade não ameaçada pelos
pactos narcísicos assumidos nas mais diversas esferas da vida pessoal e institucional.

Como nos ensina Fanon, sujeitos não-brancos tem sua subjetividade deslocada através
de olhares alheios que não os reconhecem em seus próprios termos. Estamos falando
das implicações de estar na “zona do não ser” (FANON, 2008), de enfrentar o secular
processo de desumanização que se impôs a negros e indígenas, por processos de
extermínio permanente ou das mais variadas práticas de morte em vida que marcam
nossas trajetórias.

O sucesso do modelo perverso de categorização racial de seres humanos deriva, além de


circunstâncias econômicas, sociais, políticas e culturais muito bem definidas, da
naturalização dessa hierarquia, do não reconhecimento do sistema de privilégios que ela
engendra e da consequente negação/cegueira quanto à sua existência (embutida na
própria lógica da branquitude). A determinação ‘natural’ da alteridade isenta de
responsabilidade política aqueles que se beneficiam de uma condição privilegiada. A
partir da naturalização das características biológicas daqueles que exercem funções
valorizadas socialmente, em oposição aos que desempenham o lugar do marginal, do
forasteiro, do primitivo e servil, são definidas as representações dos diversos grupos
raciais que compõem a sociedade brasileira.

Essas reorientações têm por objetivo responder ao mundo herdado, e não ao mundo
idealizado. A normalização de nossa condição marginal, encobre a apoteose da guerra a
que estamos submetidos e acaba por reproduzir e naturalizar o genocídio dos povos
negros e indígenas nas Américas, como um dos pilares de manutenção da colonialidade.
Genocídio que se materializa nas suas mais variadas formas de expressão (FLAUZINA,
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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

2014 e VARGAS, 2010).

O genocídio como prática imposta ao povo negro no Brasil oferece uma chave de
explicação bastante concreta sobre o modo de operação do racismo sobre nossos corpos.
Se tomarmos a convenção da ONU de 1948, podemos destacar algumas práticas
impostas aos amefricanos e ameríndios e que nos habilitam a falar em genocídio, na
medida em que os seus múltiplos aspectos podem ser observados: 1ª) assassinatos de
4
membros desses grupos ; 2ª) imposição de dano grave à integridade física ou mental
5
dos membros desses grupos ; 3ª) submissão intencional do grupo a condições de
6
existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial ; 4ª) medidas
7
destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo ; e, por fim, 5ª) transferência
8
forçada de menores do grupo para outro grupo .

No contexto de discussão que promovemos aqui, o repertório teórico-metodológico da


amefricanidade obriga que as alternativas de política criminal aqui produzidas sejam
capazes, de um lado, de acessar a experiência dos corpos afetados mais diretamente por
elas e, de outro, que não sejam enunciadas em termos incapazes de dar conta da cruel
realidade que desumaniza corpos pretos e que onera desproporcionalmente as mulheres
negras nesse secular processo de genocídio do povo preto no Brasil.

Sendo a amefricanidade informada pelo contato com homens e mulheres negros e


indígenas, através de trocas afetivas e culturais, atravessando fronteiras geopolíticas e
disciplinares, a proposta de Lélia Gonzalez permite uma leitura imbricada do racismo,
9
sexismo, colonialismo e imperialismo, atribuindo centralidade à resistência . Nesse
sentido, além das possibilidades já destacadas, seu pensamento valoriza e resgata
saberes produzidos por mulheres negras e indígenas e os qualifica como práticas
políticas de descolonização do poder, ser e saber.

Se o “pessoal é politico”, é preciso dar conta da questão de gênero e raça em todas suas
imbricações. Conforme nos ensina Ochy Curiel, compreender a imbricação das opressões
não se trata de colocar categorias que conformam um somatório de experiências ou uma
intersecção de categorias analíticas. Trata-se de entender como estas experiências tem
atravessado historicamente nossa região desde o colonialismo até a colonialidade
contemporânea e como se tem expressado em certos sujeitos que não experimentaram
privilégios de raça, classe, sexo e sexualidade, como as mulheres negras, indígenas e
campesinas da região (CURIEL, 2016).

O convite para o desenvolvimento de uma crítica criminológica em pretuguês incita a


que trabalhemos raça, classe, sexualidade e outras categorias genderizadas como
princípios estruturais e estruturantes da sociedade contemporânea. Trata-se de uma
abordagem que racializa para politizar gênero, classe, sexualidade e deficiência como
categorias empíricas, analíticas e normativas. O que nos mantém divididos entre as
zonas do ser e do não ser é a perpetuação de um sistema de normas e pactos que
privilegiam alguns ao custo de outros, e, assim permanece uma esfera de disputa para
des-/re-construções feministas, antirracistas e diálogos através diferenças.

Como as mulheristas negras-africanas (não contempladas pelo feminismo hegemônico)


muitas vezes nos relembram, é impossível se libertar sozinha. Do que basta escolher
uma jogada quando não se escolhe os termos do jogo? É o capitalismo que nos promete
princípios, teorias e práticas sobre indivíduos ‘livres’, competindo para viver como
desejam. Indo além de uma lógica individualizada, mapeando gênero, raça, sexualidade
como conjuntura política, como uma força que nos posiciona em sociedade, será possível
basear uma crítica criminológica na responsabilidade, ou seja, na capacidade de
responder ao mundo que herdamos, cada um(a) do seu lugar.

4 Considerações finais

O presente trabalho se inscreve na tentativa de reaproximar a criminologia crítica


desenvolvida no Brasil e na América Latina dos movimentos sociais, notadamente os
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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

movimentos negros e de mulheres no Brasil, de modo a desvelar as opressões que suas


análises encobriram e reproduziram nas últimas décadas e, de outro lado, reforçar a
aposta política na sua tradição crítica.

Ao enunciar os termos em que os códigos da branquitude operaram nas análises


desenvolvidas, é possível manter a denúncia do racismo, do sexismo e do classismo na
máquina de controle, gestão e extermínio de corpos em sociedades capitalistas forjadas
na modernidade-colonial-escravista que se desencadeou nas Américas, mas não apenas.

Ao revelar o pacto narcísico que impediu que se pudesse avançar para além da denúncia
da seletividade do sistema de (in)justiça criminal, buscou-se oferecer uma lente
epistemológica imbricada, preocupada com uma leitura descolonial da criminologia que
carrega na tinta. Ao sinalizar para uma crítica criminológica apreensível em pretuguês,
chamamos atenção para as permanências do racismo e sexismo nas mais variadas
formas de expressão da colonialidade do poder, do ser e do saber.

Pelo resgate do pensamento negro, crítico da colonialidade por uma perspectiva


amefricana, convidamos a(o)s que se interessam por mecanismos alternativos de
punição e de enfrentamento ao desvio a revisitar experiências e agências até então
silenciadas e invisibilizadas, em nossos termos e sem a mediação de privilégios.

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1 Agradeço pela leitura atenta e trocas em torno do texto com Andrea Gill, Ana Flauzina
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Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica
criminológica apreensível em pretuguês

e Felipe Freitas.

2 A partir de agora vamos assumir o risco de “afirmações genéricas” como as que


iniciam esse parágrafo, por um objetivo metodológico assumido. Não se quer
personalizar a discussão ou produzir uma leitura pontual da produção crimininológica
contemporânea no Brasil. As críticas feitas no decorrer desse trabalho podem ser
aplicadas aos trabalhos que decorrem da tradição já localizada no corpo do texto quando
da referência à criminologia crítica na América Latina e longe de uma “caçada”,
pretende-se promover um espaço de escuta, de revisão dos próprios trabalhos através
do reconhecimento dos códigos através dos quais a branquitude opera e de aprimorar a
crítica através do enfrentamento ao racismo, em outros termos.

3 Outro autor que explora o conceito de ladino para retratar essa dificuldade de
integração de indígenas e negros na colonialidade vivenciada no Brasil é Darcy Ribeiro.
Nesse sentido, ver: RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

4 No âmbito desses assassinatos perpetrados pelo Estado são contabilizados além dos
atos de violência institucional explícita – como os autos de resistência e desparecimentos
forçados – o não acesso a saúde e os índices desproporcionais de mortes por causas
evitáveis que acometem principalmente as mulheres negras; os extermínios recorrentes
em sociedades colonizadas, como o uso de corpos não brancos como carne de canhão
nos processos de independência e demais processos de luta política, entre outros.

5 Entre esses danos pode-se destacar os gerados pelo encarceramento em massa, pelas
torturas físicas e psíquicas diárias promovidas pelo racismo institucional dos órgãos
públicos, os efeitos do racismo epistêmico que, para além de negar a memória negra e
indígena nos processos políticos de luta por liberdade, reitera a expropriação das
reflexões seculares promovidas por essas comunidades nas Universidades.

6 Como os conflitos urbanos e não urbanos gerados pelo racismo ambiental

7 Nesse sentido, pode-se falar não apenas dos problemas de saúde da população negra,
mas decorrentes também da política de drogas implementada no continente e que gera
o superencarceramento que atinge fundamentalmente homens e mulheres negras.

8 Evidenciado, entre outros, pelos mais distintos processos de embranquecimento pelos


quais passamos ao longo das múltiplas violências materiais e simbólicas desde a
primeira infância.

9 A conversa entre as propostas de Lélia Gonzalez e Ochy Curiel podem inspirar uma
perspectiva feminista decolonial amefricana, preocupada com as seguintes
questões-chave: 1 - Entender como se construiu o sistema-mundo-moderno colonial
ocidental que tomou a raça e o gênero como epistemes centrais para garantir a
expansão capitalista através do colonialism; 2 - Compreender a relação atual entre
acumulação capitalista e desterro. Dito de outra maneira, pautar o racismo ambiental
que desterritorializa gente negra, indígena e campesina pobre para instalar
megaprojetos e multinacionais; e, 3 - Entender a relação entre feminicídios, violências
contra mulheres e as lógicas do militarismo, narcotráfico e lavagem de dinheiro, que
colocam como bala de canhão mulheres, meninas e adolescentes de populações
populares, altamente racializadas.

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