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[HISTÓRIAS [IMPOSSÍVEIS]: VIOLÊNCIA E O FEMININO NAS

NARRATIVAS DA IMPRENSA BRASILEIRA, CASO ÂNGELA DINIZ


[IMPOSSIBLE] STORIES: VIOLENCE AND THE FEMININE IN
BRAZILIAN PRESS NARRATIVES, THE CASE OF ÂNGELA DINIZ
HISTORIAS [IMPOSIBLES]: LA VIOLENCIA Y LO FEMENINO EN LAS
NARRATIVAS DE LA PRENSA BRASILEÑA, EL CASO DE ÂNGELA
DINIZ
Iêda Mayara de Santana.

https://orcid.org/0009-0003-5859-9511 , ieda.santana@prof.ce.gov.br, Centro de Humanidades


Universidade Regional do Cariri, URCA, Ceará, Brasil.

Resumo:

Esse estudo buscou investigar a invenção de um comportamento social e do corpo feminino


no Brasil, a partir de narrativas sobre violências cometidas contra mulheres, noticiadas
pelos veículos de imprensa de grande circulação no país entre 1905 e 2015, quando foi
instituída a Lei 13.104, que qualifica o feminicídio. Com o objetivo de perceber as ações
violentas sobre o corpo feminino a partir da forma como a sociedade se apropria da
linguagem jornalística deixada no texto. Portanto, um corpo sobre o qual a ordem social é
fundada e que está sempre em vista e a vista. Assim, as seguintes questões foram
levantadas: esses discursos jornalísticos constroem padrões de comportamento feminino?
Eles colocam o corpo como base de papéis sociais? Partem de inclusões ou exclusões?
Credibilidade ou incredibilidade? Podem gerar mais violências? Outra questão levantada se
refere ao marco legal. A criação de novas leis de proteção às mulheres influenciou
historicamente a forma como as notícias sobre violências, e não apenas o feminicídio, eram
narradas em jornais, no período estudado? Todas elas foram analisadas de uma perspectiva
micro histórica com o método de análise do discursos foucaultiano, pautando-se em três
nuances principais, sendo a primeira a dos discursos em caráter dialógico a partir dos quais
se constitui a ação, a segunda, da ausência do corpo não físico nas investigações históricas
e a terceira, do corpo como local e material para a explicação da história.

Palavras-Chave: Violência, Corpo, Imprensa.

Abastract:

This study sought to investigate the invention of a social behavior and the female body in Brazil,
from narratives about violence committed against women, reported by mainstream press vehicles in
the country between 1905 and 2015, when Law 13.104 was instituted, which qualifies feminicide.
With the goal of perceiving the violent actions on the female body from the way society appropriates
the journalistic language left in the text. Therefore, a body on which the social order is founded and
which is always in view and in sight. Thus, the following questions were raised: do these journalistic
discourses construct standards of female behavior? Do they place the body as the basis of social
roles? Do they start from inclusions or exclusions? Credibility or incredibility? Do they generate
more violence? Another question raised refers to the legal framework. Did the creation of new laws
protecting women historically influence the way news about violence, not only feminicide, was
narrated in newspapers during the period studied? All of them were analyzed from a micro historical
perspective with the Foucauldian discourse analysis method, based on three main nuances, being

1
the first one the discourses in a dialogic character from which action is constituted, the second one
the absence of the non-physical body in historical investigations and the third one the body as place
and material for the explanation of history.

Key-words: Violence, Body, Press.

Resumo:

Este estudio buscó investigar la invención de un comportamiento social y del cuerpo femenino en
Brasil, a partir de narrativas sobre la violencia cometida contra las mujeres, divulgadas por los
vehículos de prensa de amplia circulación en el país entre 1905 y 2015, cuando fue instituida la Ley
13.104, que califica el feminicidio. Con el objetivo de percibir las acciones violentas sobre el cuerpo
femenino a partir de la forma como la sociedad se apropia del lenguaje periodístico dejado en el
texto. Por lo tanto, un cuerpo en el que se funda el orden social y que siempre está a la vista y la
vista. Así, se plantearon las siguientes preguntas: ¿estos discursos periodísticos construyen
normas de comportamiento femenino? ¿Ponen el cuerpo como base de los roles sociales? ¿Parten
de inclusiones o exclusiones? ¿De la credibilidad o de la incredibilidad? ¿Pueden generar más
violencia? Otra cuestión planteada se refiere al marco jurídico. ¿Influyó históricamente la creación
de nuevas leyes que protegen a las mujeres en la forma en que las noticias sobre violencia, y no
sólo sobre feminicidios, fueron narradas en los periódicos durante el período estudiado? Todas
ellas fueron analizadas desde una perspectiva micro histórica con el método foucaultiano de
análisis del discurso, basado en tres matices principales, siendo el primero los discursos en
carácter dialógico a partir de los cuales se constituye la acción, el segundo la ausencia del cuerpo
no físico en las investigaciones históricas y el tercero el cuerpo como lugar y material para la
explicación de la historia.

Palabras Clave: Violencia, cuerpo, prensa.

Apontamentos iniciais:
O feminino já foi definido de muitas formas. São vários os comportamentos
esperados e ditados para que a fêmea possa ser considerada socialmente como
mulher. Para Simone De Beauvoir 1, 1949, não nascemos mulheres, tornamo-nos a
partir de construções sociais diversas, pois nenhum destino biológico, psíquico ou
econômico justificam a forma que assumimos na sociedade, eu diria que essas
construções têm ganhado novos aditivos, elas variam e se tornam cada vez mais
sutis. Assim, a biologia fornece a base lógica para a organização social, e tem no
corpo a chave de divisão dos papéis de comportamento, bem como das inclusões
e exclusões, credibilidade ou incredibilidade.
O corpo feminino é elaborado em oposição a outro tipo de corpo, o do homem 2,
mas ao contrário desse, é criminalizado, local e causa de violências múltiplas. O
sexo anatômico, como trataremos nesse estudo a noção de sexo biológico que
distingue machos e fêmeas; é o que confere crédito a discursos e tarefas. Dessa
1
BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: a experiência vivida, vol. 2. 3º ed, 2016, originalmente publicado
em 1949. Na obra a autora lança as bases para se pensar o gênero como construção social, e a mulher
enquanto “outro” fruto desse constructo.
2
Oyèrónké oyewùmí, em “A invenção das mulheres”, 2021, usa o conceito de “bio-lógica” para se referir a
lógica cultural segundo a qual a biologia fornece a base lógica para a organização do mundo social, onde o
corpo feminino é elaborado em oposição ao masculino e essa oposição determina a posição social.

2
forma, trabalhamos o conceito de gênero como parte da realidade organizacional
da sociedade, onde a categoria mulher, de acordo com Oyewùmí, 2021, é pré-
cultural, fixada no tempo histórico e espaço cultural em antítese ao homem. E é
sobre esse corpo/espaço não físico feminino, que lançaremos luz à investigação
histórica, tendo como ponto de partida os jornais, por considerar que os discursos
produzidos nessa instituição social inscrevem, a partir dos corpos femininos
violentados, normas a serem seguidas, entre elas as normas de gênero. (LOURO,
2008)
Outra questão levantada se refere ao marco legal. A criação de novas leis de
proteção às mulheres influenciou historicamente a forma como as notícias sobre
violências, e não apenas o feminicídio, eram narradas em jornais, no período
estudado? Além da inquietação sobre o que levava um caso a ser mais
amplamente investigado e divulgado pela mídia jornalística em detrimentos de
tantos outros? A quem eram reservadas notícias curtas e puramente factuais?
Quem era ouvido para a construção dessas narrativas? Como as notícias são
construídas ao tratar de mulheres pretas e pobres? É dada a mesma atenção? As
respostas a essas questões tem influência direta para a construção de papéis
femininos, bem como de ideias de corpos e comportamentos esperados.
Os discursos contidos em jornais apresentam caráter dialógico, pois se
inscrevem em um horizonte social, e se dirigem a um auditório social
(BRONCKART, 2008), as ações desse auditório social são o resultado da forma
como nos apropriamos da linguagem. Ela, por sua vez, inventa papéis sociais,
molda comportamentos, valida ou invalida determinadas ações, em alguns casos,
viola nosso corpo/espaço de vivências, ao criar narrativas nas entrelinhas para o
ser mulher. Em outros, acrescenta-se a violência contínua as vítimas, quando
determinados aspetos, como traição são enfatizados na cobertura do episódio,
deixando de lado os desdobramentos que levam ao crime. A forma como são
noticiados esses casos, hierarquiza e estratifica o sexo, pois, desvelam um sexo
bom e correto, recompensado socialmente, e um sexo errado, por tanto, passível
de punição.3
A análise foi realizada em fontes jornalísticas, disponíveis digitalizadas na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, e nas hemerotecas digitais dos
próprios jornais. A periodização escolhida leva em conta dois marcos importantes:
1905, ano em que casos de “Legítima defesa da honra” são mais amplamente
divulgados nos noticiários e 2015, ano em que a Legislação qualifica o crime de
feminicídio para assassinatos de mulheres, pela condição de ser mulher.
A escolha dos jornais se deu a partir da busca pelas palavras-chave: “ciúme”
“assassinato” e “mulher”, os resultados incluídos em tabelas, que levavam em
3
Em “Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade”, 1984, a pesquisadora
feminista Gayle Rubin, propõe uma discussão sobre sexualidade onde discute as práticas sexuais dos sujeitos
dentro e fora das normas de sexualidade, notando a existência de fronteiras que definem o que é natural e
bom dentro das práticas sexuais e o que é considerado “mau” sexo, para o qual são aplicadas punições.

3
conta o crime, as fontes, o tipo de violência e a construção do feminino no
discurso jornalístico. Após a triagem das notícias encontradas e inclusão nas
tabelas, seguiu-se a análise do discurso com o método foucaultiano.
Os jornais dos quais trataremos nesse artigo são: “Jornal da República”,
Janeiro de 1979, com a notícia sobre o caso do assassinato da empresária Ângela
Diniz pelo então marido Doca Street, o caso teve ampla divulgação, tanto pela
forma como se deu, quanto pela posição social do casal. O “Jornal do Brasil”, 19
de Agosto de 1958, com as notícias sobre o assassinato da jovem Aída Cury, por
menores de idade em Copacabana que também recebeu ampla divulgação pelos
jornais da época; o “Correio Paulista”, em 11 de Setembro de 1905 que trouxe a
narrativa sobre o “Amor barato” para se referir a agressão sofrida pela rainha do
baile Joanna Maria Ramos, por um pretendente que teria sentido ciúmes da
atenção dada pela mesma a outro homem. O mesmo jornal, na edição de 14 de
Dezembro 1912 que anuncia: “O delírio fatal do ciúme: sinistra caçada duma
mulher pela calada da noite” para narrar o assassinato Ana Levy Barreto, grávida,
morta pelo marido, o poeta João Pereira Barreto. Além de duas dezenas a mais de
casos noticiados no período estudado.
Pelo olhar da micro-história, analisamos essas narrativas de violências para
fazer inferências mais gerais sobre como os jornais corroboram para a construção
do corpo e de papéis sociais designados à fêmea na sociedade, quais as
características priorizadas pela imprensa para a divulgação dos casos, a quais
casos é destinada maior atenção da mídia, como as narrativas são percebidas ao
isolarmos o fator raça e posição social das vítimas.

A terceira revolução: considerações sobre a imprensa no Brasil


Em pelo menos quatro momentos a comunicação atingiu níveis de
transformações muito radicais: o primeiro, com a invenção da escrita, que mudou
a forma de comunicação e perspectiva de tempo, levou a criação e organização
de sociedades e suas hierarquias. Segunda, a invenção do alfabeto que trouxe a
escrita ao alcance de pessoas comuns; a terceira a invenção da imprensa,
levando a mudanças sem as quais é difícil imaginar o mundo. A quarta, e mais
recente, foi o advento da internet, que acelerou a forma como percebemos o
tempo, levando a mudanças antes inimagináveis na forma como nos
comunicamos e vemos o mundo.
Nesse estudo vamos nos ater ao terceiro momento, quando há mais de
quinhentos anos a invenção da imprensa de tipos móveis num piscar de olhos,
provocou um novo mundo na comunicação, na forma de viver e se relacionar em
sociedade. A invenção de Gutenberg foi o adubo para o solo de onde brotaram
muitas revoluções. Com ela:

4
Num determinado ano, levava-se um mês para se produzir a
simples cópia de um livro; no seguinte, podia-se ter quinhentas
cópias em uma semana (quinhentas era uma média razoável
naqueles primeiros dias). A distribuição ainda era a pé ou de
cavalo, mas isso não importava. Um livro copiado apenas ficava
ali, esperando por leitores, um a um; um livro impresso de sucesso
é uma pedra jogada pela água, sua mensagem repercutindo em
dezenas, centenas, milhões de leitores. É difícil imaginar que
algum aspecto da vida tivesse permanecido intocado. (MAN, 1941,
p. 12)

Essa invenção levou a disseminação textos numa escala antes desconhecida.


Nas cidades europeias da época, por exemplo, a escrita impressa tomou conta
dos muros, colocando material de leitura em espaços públicos, (CHARTIER,
1945). Com o impresso a palavra estava mais acessível e com ela a formação de
opiniões, e moldura de comportamento sociais.
No Brasil, em relação a Europa ou outras partes da América, os papéis
impressos surgiram mais tarde. Oficialmente apenas em 1808, com a chegada da
Corte portuguesa, é instalada a tipografia da Impressão Régia. No entanto, há
registro de tentativas de estabelecendo da impressão no país, em cidades como
Vila Rica e Rio de Janeiro, anteriores a 1808, tendo sido inventariados mais de
trezentas obras de autores brasileiros, incluindo livros e outras formas de
impressos. Mostrando a intenção de divulgar ideias anterior ao estabelecimento
formal da imprensa oficial, esses:

Eram textos variados: desde narrativas históricas até poesias,


passando pela agricultura, medicina, botânica, discursos, sermões,
relatos de viagens e naufrágios, literatura em prosa, gramática e até
polêmicas. (...) Além dessas experiências tênues, vale lembrar as
quatro tipografias instaladas pelos jesuítas no começo do século
XVIII na região das Missões, no Sul do continente americano:
localizavam-se próximas aos rios Paraná e Uruguai, em territórios
que hoje pertencem à Argentina e ao Paraguai, área contígua às
fronteiras com o Brasil. Os impressos ai produzidos por tipógrafos
(que eram índios guaranis) circularam entre os demais
aldeamentos, inclusive os situados em região hoje brasileira.
(MOREL, 2015, p. 25)

Atraso e censura não são suficientes para definir os primeiros anos da


imprensa no Brasil, uma vez que já existiam formas de transmissão, na qual a

5
imprensa se inseria; e a imprensa, a julgar pelo estabelecimento de tipografias
pelos jesuítas nos aldeamentos, já era utilizada como instituição que cria e firma
papéis sociais e comportamentos esperados. Dessa forma, apesar da censura
prévia oficial, o papel impresso e a palavra já transmitiam conteúdos no país, além
dos manuscritos. Basta pensarmos em movimentos como a chamada
Inconfidência Mineira, que tinha claras inspirações no movimento iluminista e a
Conjuração Baiana que agrupava os ideias da Revolução Francesa. Ambos os
movimentos, mesmo tendo sido sufocados pela coroa, mostram que a colônia,
tanto consumia quanto produzia ideias.
Com a imprensa enquanto espaço social, surge também a chamada opinião
pública. No Brasil, as duas primeiras décadas do século XIX viram crescer esse
recurso, muitas vezes usado para legitimar posições políticas e transformar
“algumas demandas setoriais numa vontade geral” (MARTINS, 2015). Essa
opinião pública era ora vista como sinônimo de soberania da razão, por ter sido
elaborada por sábios ilustrados, ora como resultado da vontade da maioria do
povo. Formalmente, em 1821, com a suspensão da censura prévia para a
imprensa em geral, nota-se o crescimento da imprensa, com o surgimento, por
exemplo, da imprensa de opinião.
Com o passar dos anos, multiplicaram-se os jornais e periódicos no país, assim
como sua influência e capacidade de moldar a sociedade. Aos jornais era
conferido status de veracidade e seriedade, portanto, as notícias configuravam-se
enquanto relatos dos fatos reais. Daí o peso da imprensa não apenas como
formadora de opinião, mas enquanto espaço de construção e reconstrução de
padrões comportamentais e, no caso em questão nesse estudo, de invenção de
corpos e padrões de comportamento.
A partir da do crescimento da imprensa, conselhos, propagandas, modos de
vestir e se comportar são insistentemente divulgados, comportamentos são
moldados em conjunto com a chamada opinião pública e assistimos a imprensa
ganhar cada vez mais espaço na vida política do país. Os escritos, em especial
jornalísticos, sempre foram encarados como verdades absolutas, a ele é
concedido crédito pela população, e de maneira quase involuntária sua ação na
sociedade ganha força a cada ano.

Pensando a imprensa feminina no Brasil


A primeira imprensa feminina especializada é a de moda, que se inicia no
século XVIII, em sua grande maioria, escrita por homens, apontando o total
controle masculino sobre os corpos e o que era considerado bonito ou feio, certo
ou errado para mulheres. Almanaques com dicas de economia doméstica eram
igualmente populares. No Brasil, a chegada da família real, no século XIX cria a
necessidade de uma imprensa voltada para as mulheres. O Rio de Janeiro, agora

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sede do império, estava em contato com o mundo, e as mulheres que residiam na
cidade, em especial as da alta sociedade, importavam a moda vinda da Europa,
daí a popularidade de uma imprensa que as ensinasse sobre as últimas
tendências da moda, e apontasse os modelos a serem seguidos. A moda então,
copiada da Europa, foi responsável pela criação de um mercado ideal.
Além das publicações de moda, a literatura também era direcionada e
apreciada pelas mulheres ricas do Brasil, fato também comprovado na literatura
clássica, obras como as do escritor Machado de Assis nomeiam os leitores como
“pessoas inteligentes”, sendo o ato de ler, considerado um costume nobre. A
literatura brasileira nos dá indícios do quanto a leitura era bem quista, o que nos
faz pensar se nesse aspecto ela também não acabava por ser uma imposição
social.
No sentido de uma imprensa editada por mulheres, mesmo com a existência de
alguns jornais, ainda eram muitos os entraves para uma imprensa feminina no
Brasil, um país colonizado sob a égide do patriarcalismo católico que agia na
mentalidade da época. Ou seja, as primeiras manifestações de uma imprensa
voltada para as mulheres findavam por não ser um espaço de manifestação
dessas e seus anseios, mas de imposição de normas e formas de viver, pensar a
agir.
Apenas em 1889 0 jornal “A família” traz matérias cujo conteúdo demonstrava
uma defesa a emancipação feminina. Embora o objetivo aqui não seja fazer uma
historiografia da imprensa feminina, vale a pena apontar que, a existência de
jornais que defendiam os direitos femininos e jornais acadêmicos, como “A
Camélia”, aponta para duas nuances: de um lado a vontade de surgir dessa
manifestação imprensa por mulheres, de outro, a permanência de padrões e certa
ritualização do ser mulher. A maioria dos jornais e revistas direcionados a esse
público carregava nomes de flores, ou alusão à família.
Ao passo em que noticiavam os mais diversos acontecimentos, esses jornais e
revistas criavam uma imagem de mulher a ser seguida, um ideal e idealização do
ser feminino que impunha regras e controle aos corpos.
As décadas seguintes trazem atreladas ao desenvolvimento da imprensa, e de
alguns jornais editados por mulheres, acontecimentos históricos que hora
colaboram com, hora atrapalham seu desenvolvimento. Um exemplo é a criação
do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, que na década de 1960, com
a Ditadura Militar no Brasil, a partir do controle e censura à imprensa cria uma
outra imagem para a mulher, que já havia sido vista como flor, delicada e frágil; em
seguida, no período da Primeira Grande Guerra, tem sua imagem atrelada Às das
mães de soldados, que sentem dor e sofrem pelos seus; com a ditadura configura-
se um padrão de mulher comparada a personagem de José de Alencar, “Iracema”,
a “virgem dos lábios de mel”.

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De todas as formas, a imprensa desenvolvida por e para mulheres ainda é
recente e escassa no Brasil, as dificuldades para seu estabelecimento
permanecem praticamente as mesmas com o passar do tempo, uma sociedade
alicerçada no patriarcalismo, de base sexista e excludente, não deixa muitas
oportunidades.

Corpos desfeitos: pensando e repensando a história das mulheres


Pensar, e sobretudo repensar a história das mulheres é uma das formas de luta
feminista e busca por transformação social. A superação do sexismo perpassa
necessariamente pelo entendimento dos meios a partir dos quais a sociedade tem
mantido a opressão feminina, que são cada vez mais sutis. Com muito esforço
conseguimos construir determinados espaços, escrever histórias, dar crédito a
tantas mulheres que, por muitos anos, foram invisibilizadas e tiveram suas
produções roubadas. E a cada avanço nesse sentido, novas necessidades de luta
vão surgindo.
Existem discursos em abundância sobre mulheres. Estamos presentes em
imagens, notícias, comerciais, obras literárias, em sua grande maioria, criados por
homens, que ignoram quase sempre o que pensamos a respeito desses
discursos, como os vemos e como os sentimos. Eles não levam em conta o corpo
não físico feminino:

A prolixidade do discurso sobre as mulheres contrasta com a


ausência de informações precisas e circunstanciadas. O mesmo
ocorre com as imagens. Produzidas pelos homens, elas nos dizem
mais sobre os sonhos ou os medos dos artistas do que sobre as
mulheres reais. As mulheres são imaginadas, representadas, em
vez de serem descritas ou contadas. (PERROT, 2019, p. 17)

É necessário desfazer esses corpos criados, questionar sua presença e a


quem se destinam, repensar historicamente a construção subjetiva deles enquanto
espaços de violências que começam pela própria forma como são pensados, o
lugar de marginalização e pecado concedido a esses corpos/espaços não físicos.
Em todos os casos, corpo envolve comportamento, padrões esperados que devem
ser seguidos, podendo levar a violências múltiplas quando não se dispõem a
seguir o que deles é esperado.
Por muitos anos o copo feminino amedrontou, foi coberto, de roupas e de
segredos, não revelados nem mesmo para as próprias mulheres, o pudor sempre
pregado exigia o maior dos silêncios. Silêncio, aliás, é sempre palavra de ordem
ao estudarmos a história das mulheres. Por muitos anos apagadas, a dificuldade

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em recompor suas trajetórias está em sua invisibilidade imposta. Os séculos que
antecedem o XIX não deixavam, das mulheres, nem mesmo o sobrenome.
O casamento, quase uma ordem universal, a busca por manter a honra para
então constituir família, eram por si só a história única possível para muitas delas
e como se inserir na história quando seu destino esteve pronto mesmo antes de
nascer? Ser uma dona de casa, mãe, cuidar dos filhos e manter a harmonia do lar,
nunca foram vistos como atividades dignas de honra, por isso a dificuldade em
montar o verdadeiro quebra-cabeças que constitui sua presença histórica nos
séculos passados. Poderíamos nos questionar se essas mulheres viviam a
imagem criada para elas, se aceitavam, se submetiam ou se recusavam e
subvertiam, mas as fontes escassas nos dão poucas possibilidades, como disse
Michelle Perrot, 2009, “sente-se o peso do silêncio”. Até que o século XIX traz
novas perspectivas, e uma presença, mesmo que acanhada, feminina.
Autobiografias, cartas, diários, escritos diversos, nos apontam a partir dai a
possibilidade de pensar uma história feminina, subjetiva e recriada a partir de
visões, sentimentos, da perspectiva de mulheres que estavam vivenciando
momentos e explorando, através da escrita as possibilidades de ser. Escrever
sempre foi nosso refúgio principal, e a formação de um público leitor feminino foi
essencial para que esses registros pudessem existir. O Brasil vê esse público
crescer entre as classes abastadas, mulheres pertencentes a uma elite letrada,
com acesso a leitura e escrita, e ao longo dos anos se dissemina também entre as
mulheres da classe proletária e camponesa.
Esse é, aliás, um recorte essencial quando se trata da história das mulheres.
Como todos os pretéritos, o nosso não é homogêneo. Se pensarmos em
dificuldades enfrentadas para recriar, as mulheres de classes mais pobres e as
mulheres pretas encontram ainda maior dificuldade em deixar registros através
dos quais possamos reconstituir suas trajetórias. Em ambos os casos, uma
possibilidade é pensar a partir do trabalho, uma vez que para estas sobreviver
estava relacionado a produzir os meios para tal.
Um fator que independe do recorte de raça ou classe social é que esse corpo
feminino é construído a partir de uma noção de pecado. O discurso social é de
proteger e guardar esses corpos, torná-los o mais próximo possível da imagem da
virgem Maria. A mãe, pura, sensível e protetora que, criada socialmente, é
esperado existir em cada uma de nós. O dom da maternidade, a imagem da mãe,
única possível a mulheres, é uma criação que antecede o medievo, pois já em
Aristóteles encontramos a alusão a mulher como um bom receptáculo, que, no
entanto, seriam frias, inacabadas, apenas um vaso.
Biblicamente é prescrito o silêncio, a sujeição. Paulo, na primeira Epístola a
Timóteo, o ensina que a mulher deve aprender o silêncio e não ter autoridade
sobre o marido. Precisamos lembrar que a bíblia é, até hoje, um norteador de
comportamentos dos cristãos, portanto essa imagem de mulher submissa e

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silenciada permanece e construção e reconstrução. No medievo a teologia de
Tomás de Aquino retoma o pensamento aristotélico sobre a frieza e inatividade da
mulher, até a medicina recria, com alterações, a oposição quente/frio para
homem/mulher. É de Bossuet a teoria de um absolutismo conjugal onde o homem
seria absoluto, assim como o rei, tendo recebido de Deus seu poder.
Por um lado, frias, passivas. Por outro, castas, e assim deveriam se manter. O
corpo não físico é uma criação social voltada a impossibilidade feminina de
manter-se nos padrões impostos. Basta pensarmos no mito 4 da virgindade, essa:

(...) é cantada , cobiçada, vigiada até a obsessão. A Igreja,


que a consagra como virtude suprema, celebra o modelo de
Maria, virgem e mãe. Os pintores da Anunciação, grande
tema medieval, representam o anjo prosternado no quarto da
jovem virgem, diante de seu leito estreito. Essa valorização
religiosa foi laicizada, sacralizada, sexualizada também: o
branco, o casamento de branco, no Segundo Império,
simboliza a pureza da prometida. (PERROT, 2009, p. 45)

O Ocidente como um todo é guiado pelo visual, e não diferente com relação a
pureza esperada da mulher, a virgem é visivelmente uma virgem, pois seus traços
e sua aparência de castidade e santidade precisam estar envoltas em seus atos,
fala, na forma como se locomove. Essa virgindade é tão socialmente construída
quanto todo o corpo feminino. Ela faz parte da bio-lógica ocidental, onde:
Categorias sociais como “mulher” são baseadas em um tipo de corpo e são
elaboradas em relação, e em oposição, a outra categoria: homem. A presença ou
ausência de alguns órgãos determina a posição social. (OYEWÙMÍ, 2021, p. 16),
logo, a configuração de virgindade é criação. Não nego a presença biológica do
hímen na mulher, mas a criação em volta da virgindade o tendo como parâmetro –
onde o seu rompimento indicaria o fim da castidade – não passa de um mito, o
mito da virgindade. Ele serve tão somente como mais um meio de opressão,
controle da sexualidade e desinformação sobre o corpo/proibido feminino.
Essa colocação está também na medicina, as médicas norueguesas Dahal e
Brochmann, no livro Viva a vagina, são enfáticas ao afirmar a virgindade como
mais uma construção e imposição social sobre o corpo feminino, uma vez que o
hímen, visto como símbolo da virgindade, é composto por pedaços de carne que
4
Trabalho nesse estudo a concepção de virgindade enquanto mito, por acreditar que, assim como outras
imposições sociais, o estado da “virgem” seja impossível socialmente, e apenas um meio de construir sobre
o corpo feminino a culpa e o pecado que seriam inerentes ao fim desse estado de castidade. Essa é uma
ideia que apresento com base no estudo da construção de um corpo feminino a partir de discursos diversos
que mostram ser impossível atingir o padrão de “virgem” que a sociedade como um todo espera, em
especial na atualidade.

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não são uma película fechada – em casos de mulheres que nascem com o hímen
fechado, é indicativo de uma má formação – pronta para ser rompida com o ato
social, comprovando a pureza da mulher. Segundo elas:

A ideia da mulher como uma flor inocente e de que perder a


virgindade é a mesma coisa que uma flor arrancada é plenamente
difundida. O rompimento do hímen, que pode acontecer quando se
faz sexo pela primeira vez, é chamado de defloração, revelando
uma abordagem indescritivelmente antiquada. Pode até parecer
que os homens de todas as culturas e em épocas históricas
diversas se juntaram para procurar métodos destinados a controlar
e restringir a sexualidade feminina e a tomada de decisões sobre o
próprio corpo. (BROCHMAN & DAHL, 2017, p. 24)

Basta pensarmos no quão conveniente seria existir uma parte do corpo


feminino exclusivamente comprobatória da presença ou ausência de sua
castidade e pureza, e essa presença/ausência do hímen pode definir o destino,
vida ou mesmo morte de muitas mulheres. A ideia do hímen e do pregado
sangramento associado a ele é fundamentada, segundo as autoras, em um mito
que diz, caso haja sangramento na primeira noite, está comprovada a virgindade.
Caso contrário, a mulher perde a “validade” de pureza. Ao longo da história,
tradições como pendurar o lençol manchado de sangue para que pudesse ser
visto, ou se pensarmos em tradições da corte, a presença de testemunhas na
primeira noite, serviram tão somente como meio de vigiar e fazer os corpos
femininos. Mais uma vez ressalto, é necessário questionar e desfazer esses
corpos.
O mito da virgindade e toda a opressão social que ele desencadeia aponta a
necessidade de um recorte na temática: as mulheres negras, que historicamente
foram sexualizadas e violentadas, não podem ser pensadas na mesma estrutura
que as mulheres brancas. No Brasil ouve-se que existem mulheres para casar, e
existem mulheres para se divertir. E a cor é, claramente um dos marcadores dessa
diferenciação feminina socialmente construída e, honestamente, dolorosamente
naturalizada ao longo dos anos. Se voltarmos nosso olhar para a escravidão,
poderemos entender do que se trata.
Mesmo antes de chegarem as Américas, ainda nas embarcações, essas
mulheres eram vítimas de abusos sexuais, além de violências físicas e
psicológicas, a exemplo de serem mantidas nuas pelos navios, e das ameaças de
estupros, segundo bell hooks:

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A nudez da mulher africana servia como um constante lembrete de sua
vulnerabilidade sexual. Estupro era um método comum de tortura usado pelos
escravizadores para subjugar negras recalcitrantes. A ameaça de estupro e de
outras violências físicas causava terror psíquico nas africanas que haviam sido
deslocadas. (HOOKS, 2020, p. 41)

Se a virgindade, tão valorizada, é toda uma construção mitológica e opressora,


para as mulheres negras a ênfase na opressão é ainda maior. Não se trata de
mulheres que estavam optando por ter relações sexuais, mas que sofriam
violências múltiplas em uma relação de terrorismo institucionalizado. Muitas delas
já chegavam grávidas as colônias, onde os estupros e abusos continuavam:

Ao confrontar a mulher negra como adversária em uma contenda


sexual, o senhor submeteria à forma mais elementar de terrorismo,
especialmente adequado à mulher: estupro. Dada a essência
terrorista da vida na plantação, era como vítima potencial de
estupro que a mulher escravizada estaria mais vulnerável. Além
disso, ela poderia ser muito convenientemente manipulada se o
senhor criasse um sistema aleatório de classes, forçando-a a
pagar com o corpo por comida, diminuição da severidade do
tratamento, segurança de suas crianças etc. (DAVIS, 2019, p. 78)

Essa exploração sexual em massa das mulheres negras no período da


escravidão deixa profundas marcas na psiquê da mulher negra, e cria um padrão
social que sexualiza e menospreza seus corpos. O corpo negro não é visto como
corpo para o altar, o branco dos vestidos de casamento, que representa a pureza
da noiva nas cerimônias católicas, não é bem visto em mulheres negras. Todos os
anos de exploração sexual dos corpos negros no período da escravidão findam
por criar sexista racista nas populações das antigas colônias escravistas e uma
desvalorização da mulher negras que até hoje permeia a psique das populações
de países onde houve o trabalho escravo.
A continuidade do estupro de mulheres negras mesmo após a abolição da
escravidão e o mito de que mulheres negras somos mais permissíveis ao sexo,
inviabiliza colocarmos o debate sobre virgindade e o hímen como sendo universal
a todas as mulheres. No caso, não havia opção pela castidade e virgindade
quando pensamos o recorde de cor. Os anos pós 1888, no Brasil, com a abolição
da escravidão sem um projeto anterior de possibilidades de vida para os negros e
negras ex escravos então libertos, fez crescer, nas páginas policiais de jornais, por
exemplo, as notícias sobre vadiagem e prostituição. De escravas, as mulheres
negras passavam a ser vistas como putas e vadias. Como então poderíamos
tentar aplicar a ideia de virgindade nesse caso?
12
Não obstante, é preciso também pontuar que essa construção social do sexo é
baseada em uma dualidade homem/mulher, através da qual a sociedade se
organiza, deixando de lado a presença de corpos e formas de existir múltiplos.
Lembremos o caso descrito por Foucalt, em 1978, de Herculine Barbin, ou Alexia
B, um intersexo, considerado mulher, mas que se sentia homem e mesmo tendo
conseguido o reconhecimento enquanto homem, suicidou-se por causa da
dificuldade em viver de acordo com a sua existência, a hierarquia das formas de
existir extingue possibilidades, dividir o mundo entre homem/mulher chega a ser
criminoso, quando pensamos em tantas outras manifestações de sexualidade.
Pensar a história das mulheres, em especial quando se faz como introdução ao
debate sobre corpos violentados femininos, perpassa, necessariamente, por
entender a diferenciação imposta historicamente ao que convencionou-se chamar
gênero e suas implicações, bem como diferenciar de sexo, sexualidade,
dimensões da existência ou imposição social. Ademais, é preciso desfazer o
“corpo” que a sociedade tem construído para as mulheres, entendendo que a luta
feminina não é homogênea, que grupos específicos de mulheres tem demandas
específicas e é imprescindível repensar a história das mulheres a partir da
perspectiva de desfazer corpos.

Histórias (IM)possíveis: análise da violência contra mulheres nos discursos


jornalísticos
A análise dos arquivos jornalísticos sobre os crimes que serão trabalhados
nesse estudo nos passam justamente essa impressão: São histórias impossíveis.
Pensar na forma como ocorreram e a cobertura (mal) dada pela imprensa da
época remete a construções sobre o corpo e comportamento das mulheres presos
a nossa psiquê feminina até hoje. Vamos iniciar pelo caso da empresária Ângela
Diniz, que impressiona tanto pela forma como ocorreu, quanto pela cobertura e
atenção dada pelos veículos de imprensa.
O jornal escolhido foi “Jornal da República” 5 de 1979. São três anos após o
assassinato e o julgamento de Doca Street, o assassino ocorreria poucos dias
depois. A escolha pelo jornal e pelo período tem intenções bem delimitadas: trata-
se de uma matéria cheia de insinuações, com títulos absurdos e contendo toda
uma narrativa que conduz a criminalização da vítima. Ademais, os jornais
publicados no mesmo ano do crime trazem um conflito de versões que torna difícil
a análise. Passados três anos, mesmo sem a elucidação do que poderia ter
levado ao crime, percebemos uma construção jornalística que busca inocentar o
criminoso.

5
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=194018&pagfis=776&url=http://
memoria.bn.br/docreader
Acesso em: 20/03/2023

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Ângela era uma mulher separada, mãe, vinda de uma família rica do Rio de
Janeiro. Conheceu Raul Fernando de Amaral Street, o Doca Street, e iniciaram um
namoro. No dia 30 de Dezembro de 1976, Doca desferiu quatro tiros contra ela,
sendo três no rosto e um na nuca. Começavam ai as especulações sobre os
antecedentes do crime, e o que teria levado Doca a assassinar a então namorada.
A defesa do criminoso, encabeçada pelo advogado Evandro Lins da Silva, usou a
tese de homicídio passional e criou todo um cenário onde Doca era aplaudido,
enquanto Ângela, seguidas vezes assassinada. A cobertura do caso teve uma
especulação intensa da imprensa, tratava-se de um casal da alta sociedade, e um
crime brutal, mesmo se pensarmos na época onde o machismo era ainda mais
escancarado sob a perspectiva dos “costumes” e da “família”. Alguns jornais de
modo estritamente factual, outros com cunho mais sensacionalistas, mas de todo
modo, a imprensa esteve presente em todos os momentos.
A edição 00045, do Jornal da República trazia a matéria: “Os mistérios que o
caso Ângela Diniz deixou”, acompanhada pelo subtítulo: “Testemunhas que
sumiram, tráfico de droga, ligações homossexuais... ainda hoje essa é uma
história mal contada”. Tanto a chamada da notícia, quanto todos os subtítulos que
ela contém nos levam a perceber que havia a clara intenção de insinuar sobre
Ângela. Até mesmo o fato de terem selecionado se referir ao assassinato como
“Caso Ângela Diniz” e não usar o nome do assassino.
Acompanhando a notícia há uma gravura que tenta reproduzir a cena do crime,
conforme indicada abaixo. O que percebemos é uma invenção sexualizada de
Ângela, seios a mostra, contorno da face, lábios, toda uma perspectiva que
objetifica a vítima. Enquanto Doca é representado com ares de atormentado,
cabelo desgrenhado e barba por fazer, uma alusão aos tormentos que
supostamente estaria vivenciando na vida conjugal.
Imagem 01: Manchete do jornal. Fonte: Jornal da República, 1979.

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Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=194018&pagfis=776&url=http://
memoria.bn.br/docreader

Em seguida o jornal recria a trajetória de Doca, sob o título: “Doca, só um


aventureiro?” Na matéria ele é colocado como um homem que aventurou sempre
na vida, não tendo nascido em berço de ouro, batalhou fora do país para construir
seu destino. O jornal inclusive se refere a ele como playboyzinho tropical e narra
seus empregos e trajetória até conhecer Ângela. Nesse caso, o discurso mostra
uma perspectiva do redator sobre o que teria sido a vida de Doca.
Ao tratar sobre Ângela temos:

(...) dondoca mineira, mimadíssima pela mãe (“Fui preparada pela


minha mãe para frequentar a sociedade e ser uma grande dama”)
menina arrogante, decidida e namoradeira, como ainda se
lembram os então rapazes do pacato bairro de Lourdes, em Belo
Horizonte.

A ênfase na vida sexual da vítima é colocada em todos os momentos da


reportagem, alusão a quantidade de maridos e namorados que a vítima tivera, a
referência ao abandono aos filhos, do qual é acusada em trechos da narrativa.
Ângela é, literalmente, inventada como uma culpada pelo crime que sofreu. As
razões apontadas? Como o trecho nos mostra, namoradeira desde menina,
arrogante e ousada. Em outro trecho nota-se a inferência a uma possível ligação
romântica de Ângela com uma amiga, que teria sido provocada na frente de Doca.
Mais uma vez, a sexualidade de Ângela é usada como meio de desacreditá-la. O
jornal também dá a entender que Ângela teria, ainda quando casada, sequestrado
a própria filha. Nas palavras de José Meirelles Passos, o redator:

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Sequestrara a própria filha (sob custódia do pai) no Natal de 74.
Antes, em junho de 73, o ex vigia de sua casa em Belo Horizonte
foi morto a tiros, no quarto de Ângela: ela confessou a culpa, mais
tarde assumida por Arthur, (Tuca) Vale Mendes com quem tinha
um affaire d’amour, como escreveu Ibrahim Sued, o penúltimo de
seus amores. Em outubro de 75, quando ela transava com o papa
da crônica mundana, a polícia federal apreendeu tóxicos em sua
casa, no Rio.

A sequencia de matérias segue esse padrão: envolvimento de Ângela com


drogas, outros homens, mulheres e até tráfico de drogas. Como a narrativa sobre
a vítima é construída a partir de sua sexualidade, fica implícita a mensagem às
leitoras: sexualidade ativa, drogas, e casos amorosos fazem o que chamaremos
aqui de “não-ser-mulher”, termo que optei por usar para definir os casos em que a
vítima é desqualificada enquanto mulher e essa desqualificação é usada como
justificativa para o crime sofrido.
Por “não-ser-mulher” o crime “passional” encontra justificativa, compreensão e
perdão por parte da sociedade. Vemos o corpo/vida da vítima ser violado seguidas
vezes, mesmo se tratando de uma matéria curta. Esse discurso sobre o corpo não
físico, corpo que peca, corpo que viola, corpo que atraí e erra, é intensamente
levado a opinião pública e implicitamente cria padrões de comportamento
esperados para o ser mulher, ou seja, todos opostos aos que a vítima em questão
seguiu. A tabela abaixo foi construída para a análise da narrativa do caso:
Tabela 1: Análise do caso
TABELA B: TERRITORIALIDADE, MODALIDADE E MOTIVAÇÕES APONTADAS
Espaço de ocorrência: Motivações apontadas:
Apartamento da vítima, na Praia dos A motivação mais divulgada e na qual há
Ossos, Rio de Janeiro insistência da mídia é o crime passional,
provocado pelo ciúme de Doca. Toda a
construção da matéria se dá de modo a apontar
possíveis motivos, desde as primeiras
descrições sobre a vítima e o assassino, ao
perfil que é traçado de ambos, dando ênfase a
vida sexual da vítima, a um possível
envolvimento homossexual, com tráfico de
drogas, e até mesmo ao afirmar que Ângela teria
mostrado interesse por uma amiga alemã, e em
seguida sumido, assim como essa e um amigo
que possuía uma lancha. A ideia que a matéria
passa, mesmo sem afirmar, é que a discussão
teria sido iniciada pelo ciúme de Doca após

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perceber que a vítima havia sumido com o
amigo e a amiga em sua lancha.
Modalidade do crime: Violências anteriores:
Assassinato. Na época foi julgado como A matéria traz o depoimento de uma das
crime passional. empregadas de Ângela, que afirma que esta
sofria agressões físicas e psicológicas, como o
controle sobre as roupas que usaria e a restrição
a sair de casa.
Fonte: Autoral

A base da defesa, e de muitos veículos de imprensa, é de que Ângela era a


verdadeira culpada, enquanto Doca, uma vítima da paixão, sobre a qual não se
pode ter controle. O que percebemos é que, para o corpo feminino, o lugar
esperado é de santidade, castidade e pureza. Quando se foge a essas exigências
a possibilidade de morte é eminente.
Existe, na condução da matéria, uma clara alusão ao comportamento de
Ângela. Em determinado momento a narrativa dá a entender que ela teria saído
com um amigo, de lancha, deixando Doca na praia, em outro trecho, essa saída
parece estar relacionada a uma amiga, com quem Ângela teria um caso.
De todas as formas, a busca pela “verdade” no jornal em questão é, uma busca
por motivo que justifique o crime cometido contra a vítima. Em nenhum momento a
vítima tem voz, e as fontes, oficiais, são unidas a uma intensa investigação sobre
a vida sexual de Ângela. Se entendemos o discurso como:

(...) nada mais ´é do que a reverberação de uma verdade


nascida diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode,
enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito,
a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo
manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à
interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCALT,
1970, p. 49)

Em seu famoso “A ordem do discurso”, aula inaugural no College de France,


Foucalt lança as bases para pensarmos o discurso e a construção de sujeitos, tal
qual acontece a partir de jornais. Lançar esse olhar histórico sobre o corpo não
físico feminino nos ajuda a criar um campo de estudos que desmistifica as
imposições que ainda hoje, sutilmente, são lançadas sobre o que precisamos
obedecer para ser consideradas mulheres, e não sermos invadidas e violentadas.

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A culpabilização da vítima acontece diariamente, podemos percebê-la ainda
hoje em casos de violência contra as mulheres, cabe-nos agora que os estudos
feministas já são fortes nos ambientes acadêmicos, lançar nossa atenção à
investigação desses meios sob os quais reside a permanência da violência ao
corpo, físico e não físico feminino. Questionar os discursos e as narrativas,
entender a partir de que meios eles tem moldado a sociedade.

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Considerações Parciais
Os casos abordados dão uma noção geral de que, nem a raça, as relações
sociais, ou a classe, nos livram, enquanto mulheres, das opressões impostas por
uma sociedade sexista e racista que nos incrimina, violenta e assassina
diariamente. São também parâmetros para percebermos que apesar das
conquistas engendradas ao longo dos anos pelos movimentos feministas,
seguimos sendo vítimas, culpabilizadas e colocadas em papéis de inferioridade.
Antes de modo escancarado com palavras, desqualificações, ofensas e piadas,
hoje por meio de ações sutis e naturalizadas.
Por acreditar que o Estado, através de sua política de proteção, com leis,
punições e encarceramento aos considerados culpados, ainda assim não
consegue garantir a nossa segurança, pois sentimos medo e culpa, justifica-se
socialmente a necessidade de problematizar narrativas já naturalizadas, e
entender o peso que elas exercem sobre as invenções e reinvenções de papéis
sociais para mulheres ao longo da história. Trata-se, academicamente, de incluir o
corpo feminino, não físico, mas narrado, inventado; na investigação histórica,
ressaltando as mudanças e permanências nos discursos que constroem o gênero.
Ademais, cabe inferir que o poder de formar opiniões concentrado pela mídia,
pode e deve ser espaço para diálogos que vão além de coberturas factuais dos
casos. Através de narrativas midiáticas comprometidas com os desdobramentos
históricos e sociais que levaram a tais episódios em diálogos com os grupos de
pesquisa feministas que vem ao longo dos anos construindo conhecimento sobre
violências de gênero e podem contribuir de maneira ímpar para que a construção
de notícias sobre violências não acabe, mesmo que involuntariamente,
desqualificando as vítimas, responsabilizando-as, ou sendo ainda mais criminosas
com quem já foi violentada.
O caso analisado nos dá ampla visão sobre a instituição de regras e deveres
ao corpo feminino, e de como os discursos impõe esses padrões sociais a serem
seguidos, sob penas muito duras para aquelas que, de uma forma ou de outra,
ousam desafiar a ordem que lhes é imposta.

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