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Mídia e política

caminhos cruzados
Mídia e política
caminhos cruzados

João Somma Neto


Hendryo André
organizadores

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade


Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade
Corpo docente efetivo
Celsi Brönstrup Silvestrin
Glaucia da Silva Brito
Jair Antonio de Oliveira
João Somma Neto
Kelly Cristina de Souza Prudencio
Luciana Panke
Regiane Regina Ribeiro
Rosa Maria Cardoso Dalla Costa
Sérgio Luiz Gadini

Revisão
João Somma Neto
Hendryo André

Projeto gráfico e diagramação


Hendryo André

Ilustração da capa
Daniela Zandonai

Ficha catalográfica

Mídia e política: caminhos cruzados / João Somma Neto; Hendryo André [orgs.]. —
Curitiba: UFPR-SCHLA, 2011.
132f.

ISBN 978-85-99229-11-8

1. Jornalismo 2. Televisão 3. Relações de poder 4. Discursos

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade


Rua Bom Jesus, 650, Juvevê, Curitiba, PR – 80.035-010
(41) 3313-2025 | (41) 3313-2000
http://www.humanas.ufpr.br/portal/comunicacaomestrado

Copyright © Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade, 2011


Os direitos desta edição são reservados ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Sociedade da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Impresso na Imprensa da UFPR.


Sumário

Caminhos cruzados (apresentação) ............................................ 07

Show e poder no telejornalismo


João Somma Neto ............................................................................. 11

Brasileiros: na ética e na estética


Claiton César Czizewski ............................................................. 31

Entre o silêncio e o ataque: os interesses privados


e a cobertura midiática da Confecom
Jocelaine Josmeri dos Santos ................................................................ 51

Mídia, poder e discurso: escândalos de poder e os embates


entre Record e Folha durante o caso da “ditabranda”
André Bonsanto Dias ........................................................................ 65

A cruzada pós-moderna: o escândalo religioso e a guerra


Globo X Record
Lucas Gandin .................................................................................... 85

Um escândalo anunciado: o agendamento do caso de


estelionato da VC Consultoria em cinco telejornais locais
Hendryo André ............................................................................... 101
Caminhos cruzados

Os caminhos da comunicação midiática e da política se


cruzam e se sobrepõem em aproximações e distanciamentos
que incluem relações de poder, tanto no plano institucional
e ideológico, como no plano mercantil, resultando inevitavel-
mente no envolvimento de parcelas significativas da popula-
ção, mesmo que a percepção quanto a isto nem sempre seja
clara o bastante para gerar ações objetivas.
Com a intenção de fazer uma reflexão crítica a respeito e
estudar como a atuação da mídia se vincula às estruturas de po-
der instituídas e às ações e relações resultantes de seu exercício,
sobretudo em fenômenos midiáticos específicos, foi organiza-
da esta publicação, que apresenta textos oriundos de pesquisas
acadêmicas desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em
Comunicação e Sociedade da Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Os trabalhos, produzidos na disciplina “Poder e política
na mídia televisiva”, trazem à tona problemas observados no coti-

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Mídia e política: caminhos cruzados

diano da comunicação praticada por meio da mídia, que afetam


em maior ou menor grau a vida social.
De natureza ensaística, Show e poder no telejornalismo abre
o livro traçando um panorama abrangente do jornalismo de
televisão, no qual são apontadas características genéricas e
pontuais do poder, sua gênese e dispersão em rede na socie-
dade, seus agentes e representantes, sua prática e ligação com
o atual modelo de jornalismo televisivo calcado em uma con-
cepção que privilegia a atração ou o espetáculo. No âmbito da
comunicação midiática é objeto de discussão também a ques-
tão dos escândalos políticos tão presentes como temáticas às
quais a mídia dá mais espaço, tempo e atenção.
O programa Brasileiros, produzido e transmitido pela Rede
Globo de Televisão, é objeto de análise no texto seguinte. Bra-
sileiros: na ética e na estética avalia como ocorre a construção nar-
rativa do programa, idealizada em torno da concepção de que
os brasileiros usam a profissão ou conhecimentos particulares
para a promoção de ações sociais que visem a interferir de for-
ma positiva na realidade. A hipótese central do trabalho levanta
a possibilidade de que os demais elementos formais e estéticos
que constituem as reportagens são usados intencionalmente para
difundir e exaltar esses valores éticos. Da análise, resulta a per-
cepção da semelhança entre o discurso do jornalismo e a poesia
épica grega e da predominância de ideias cristãs e liberais.
Na sequência é apresentado o trabalho Entre o silêncio e o
ataque: os interesses privados e a cobertura midiática da Confecom, que
trata da relação entre os interesses privados das empresas midiá-
ticas e a cobertura jornalística dos veículos O Globo, Estado de
S.Paulo, Rede Bandeirantes de Televisão e Jornal Nacional em
matérias e editoriais sobre o assunto. Uma explicação possível é
que os veículos, mesmo usando argumentos de defesa do estado
de direito e/ou o interesse público, atuaram motivados principal-
mente por interesses particulares.
Em Mídia, poder e discurso: escândalos de poder e os embates
entre Record e Folha durante o caso da “ditabranda” são discutidos
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Apresentação

os embates travados entre a Rede Record e a Folha de S.Paulo


no período do caso da “ditabranda”. O fato surgiu com um
editorial, publicado pelo jornal em fevereiro 2009, que criou
o neologismo para qualificar o regime militar (1964 e 1985)
como “brando” se comparado a outros da América Latina. O
texto gerou uma série de críticas e manifestações por parte do
público. A Record foi o único órgão da grande imprensa que
se manifestou sobre o caso para aferir críticas ao jornal. O
artigo procura identificar o suposto “interesse” da emissora
durante os embates travados ao longo do caso, que acabam
por evidenciar complexas relações de poder.
A disputa entre duas grandes redes nacionais de televi-
são está na base da reflexão posta no texto A cruzada pós-mo-
derna: o escândalo religioso e a guerra Globo x Record. A briga pela
audiência gera um conflito simbólico e ataques entre as duas
emissoras. O estudo busca compreender como os escândalos
religiosos, presentes nas reportagens sobre denúncias de en-
riquecimento ilícito e uso indevido do dinheiro dos fiéis da
Igreja Universal do Reino de Deus servem como disfarce para
a luta pela audiência entre as duas corporações midiáticas.
Para fechar o quadro analítico, há o texto Um escândalo
anunciado: o agendamento do caso da VC Consultoria em cinco telejor-
nais locais. A partir da cobertura da investigação policial que
resultou no fechamento da VC Consultoria – empresa que re-
alizava empréstimos a aposentados e pensionistas do INSS e
que investia maciçamente em publicidade na maior parte dos
veículos de comunicação de Curitiba – buscou-se identificar
os motivos pelos quais a mídia local protagonizou um escân-
dalo midiático em torno de um anunciante incomum.

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Show e poder no telejornalismo
João Somma Neto1

INTRODUÇÃO
Pensar a comunicação e o jornalismo em suas conexões
com a área da política é um desafio constante para a necessá-
ria reflexão sobre o papel fundamental dessa atividade na vida
social, como elemento da mais elevada importância para nossa
jovem democracia e para o pleno exercício da cidadania a partir
do acesso irrestrito à informação.
Vivemos cada vez mais intensamente junto à atuação da
mídia na contemporaneidade. Praticamente não há mais nada de
interesse social ou pessoal que escape aos olhos do complexo mi-
diático mundializado, globalizado e tornado onipresente pelo em-
prego de equipamentos tecnológicos sempre mais sofisticados.

1. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade e do Departamento


de Comunicação Social da Universidade Federal do Paraná. Coordenador do grupo de pesquisa
Estudos da Imagem, registrado junto ao CNPq.

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Mídia e política: caminhos cruzados

A incrível velocidade com que o desenvolvimento da


tecnologia e novos instrumentos de trabalho, sobretudo nos
meios eletrônicos, permitem o acesso a informações para
número crescente de pessoas, simultânea ou isoladamente,
provoca também novas maneiras de se instituírem ações e
relações entre as instâncias do poder constituído e os pró-
prios organismos que compõem aquilo que se convencionou
denominar de mídia.
O exercício do poder de modo geral na sociedade presen-
te, e do poder político em particular, compreende um processo
de relação com as empresas e instituições da comunicação bem
como com tudo o que produzem, e em especial com o jornalis-
mo, desembocando permanentemente em caminhos entrecru-
zados. O campo da política é alvo de interesse permanente do
jornalismo, assim como a atuação jornalística interessa muito
à esfera política, principalmente no âmbito governamental e
partidário. A realidade das últimas eleições (2010) em nosso
país demonstra de modo cabal as aproximações e os distancia-
mentos entre os dois campos.
Tudo que diz respeito à vida cotidiana, em seus aspectos
individuais e coletivos acaba abarcado pela mídia de uma forma
ou de outra, incluindo não apenas aquilo que comporta a po-
lítica entendida genericamente, mas as mais diversas instâncias
de poder, representadas pelas várias instituições sociais como
as igrejas, a escola, os governos, a própria família, as entidades
representativas ou órgãos de classe, entre outras.
Apesar da mídia globalizada, do emprego de tecnologia
de ponta e da especialização profissional na área da comuni-
cação jornalística, não é difícil observar a manutenção do di-
recionamento do fluxo de informação, havendo uma verticali-
zação na difusão dos conteúdos. Esse direcionamento é dado
por aqueles que produzem as notícias, as opiniões, reproduzem
fatos firmados em relatos pretensamente objetivos, neutros, ou
imparciais, em que pesem novos procedimentos adotados em
função de agentes sociais que atuam como difusores de con-
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Show e poder no telejornalismo

teúdos a partir do uso de tecnologias mais recentes como o


telefone celular, com capacidade para captação e transmissão
de imagens em conjunto com instrumentos da internet.
Contudo, esses agentes pertencentes aos diversos seg-
mentos sociais não chegam a protagonizar uma comunicação
jornalística, servindo meramente como fornecedores de sub-
sídios informacionais aos profissionais da mídia que utiliza
esses conteúdos retrabalhados e conformados aos seus pa-
drões usuais, e de acordo com interesses privados das empre-
sas para as quais trabalham, ou ainda de outras instituições,
quando não de grupos.

INFORMAÇÃO E PODER
O acesso à informação sem restrições deveria ser um direi-
to, com base nos princípios constitucionais, funcionando como
um dos meios elementares de amplo exercício da cidadania. Na
atualidade a garantia do acesso parcial do cidadão às informa-
ções básicas é dada, em sua maior parte, pelos veículos de comu-
nicação que compõem a mídia.
Em nosso país, a mídia envolve, entre outros, os veículos
impressos tradicionais – jornais e revistas – considerados eliti-
zados por sua circulação restrita e pouca abrangência em temos
de público, além dos componentes da chamada mídia eletrô-
nica – rádio e televisão – classificados como mais populares e
abrangentes, ambos atingindo contingentes de mais de 90% da
população, e que desempenham importantíssima função como
difusores de informação e de opiniões. Estudos acadêmicos in-
dicam que a grande maioria dos brasileiros se informa a partir
do que esses meios produzem.
Em complemento a esse quadro situam-se as chamadas
mídias emergentes que incluem a rede mundial de computado-
res e as redes de telefonia celular, as duas operando com alta
tecnologia, a qual também se estende aos outros grandes meios
de comunicação, sobretudo a televisão e o rádio, no fenômeno
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Mídia e política: caminhos cruzados

já conhecido como convergência midiática. Com isso, passamos a


conviver praticamente com multimeios, pois se torna cada vez
mais difícil identificar onde começa, ou onde termina, a atuação
de uma mídia específica.
A produção e difusão dos conteúdos de informação e
de opinião ocorrem num processo multimidiático, com ações
conjuntas e simultâneas, pois uma transmissão de TV ou rádio
pode ser captada ao mesmo tempo pelos aparelhos receptores
convencionais, ou pelo computador via internet, ou ainda pelo
mágico e diminuto telefone celular.
Nesta análise nos interessa de maneira especial a televisão
e o telejornalismo, bem como os conteúdos de caráter políti-
co que são produzidos e transmitidos por essa mídia. O ponto
de partida é o pressuposto de que não existe neutralidade no
processo de produção jornalística de televisão devido à própria
natureza das relações de poder que se estabelecem no domínio
e aplicação das rotinas e procedimentos do trabalho jornalístico,
e que estão presentes igualmente no meio televisivo, ao lado das
ações e relações de poder que existem e normatizam a vida social
e se desdobram na atuação da mídia.
A mídia televisiva, como integrante institucional da co-
letividade, também exerce e está submetida, ao mesmo tem-
po, às relações de poder que permeiam todo o funcionamento
da sociedade. Essas relações de poder, geralmente aceitas de
modo tácito por todos os segmentos sociais e seus integrantes,
é que vão interferir com mais ou menos força na produção e
transmissão das informações, opiniões, e demais gêneros co-
municativos, chegando muitas vezes a determinar os elementos
inerentes à forma e ao conteúdo escolhidos para conformar
a noticia ou qualquer outro produto jornalístico que deve ser
transmitido aos espectadores.
Neste sentido, alguns dados podem ser tomados como indi-
cadores da maneira com que as relações de poder estão presentes
no modo de produção do telejornalismo, entre eles destacam-se
as fontes utilizadas para apurar informações, a quantidade, quali-
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Show e poder no telejornalismo

dade e variedade das mesmas. Também devemos prestar atenção


aos agentes falantes, ou seja, quem aparece e tem oportunidade
de falar, expor suas ideias, opiniões, ou informações que conhe-
ce. A escolha desses agentes está diretamente relacionada com a
intencionalidade e o tratamento que os produtores desejam dar
ao conteúdo expresso para o público.
Outro elemento importante são os tempos que cada um
dos agentes falantes dispõe ao aparecer, uma vez que nem to-
dos têm garantidos períodos temporais idênticos, mas que são
decididos conforme o grau de importância conferido pelos
produtores à própria figura do falante e àquilo que ele tem a
dizer. Muitas vezes os agentes falantes são utilizados somente
para referendar posições, ideias, valores e opiniões defendidas
pela empresa de comunicação.
Ao mesmo tempo, não se pode perder de vista ainda que
as relações de poder que permeiam as aproximações e distancia-
mentos entre a política e o jornalismo refletem as próprias rela-
ções sociais que ocorrem na vida cotidiana, as quais são norma-
tizadas e reguladas por mecanismos instituídos e mais ou menos
aceitos pela sociedade em seu conjunto.
São as ações coletivas e individuais que dão sentido para
as relações de poder, que por sua vez orientam o processo de
produção jornalística nos diversos suportes possíveis e mais ain-
da na televisão, vista pelas instâncias de poder como um dos
principais, senão o principal representante da mídia, tanto que
nas campanhas políticas de eleições no Brasil coligações chegam
a ser definidas a partir do tempo que os partidos têm no horário
eleitoral gratuito estabelecido pela legislação.
A televisão e o telejornalismo atuam na aquisição de co-
nhecimento, pela produção e transmissão de informações a um
público extenso, ao mesmo tempo em que contribuem para
adoção e defesa de valores e visões de mundo que servem para
definir e manter o ordenamento social, funcionando como es-
paço de atuação de agentes sociais que representam efetiva-
mente as estruturas de poder instituídas. Assim, a produção
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Mídia e política: caminhos cruzados

jornalística na TV se constitui em ação midiática, a qual fun-


ciona como utensílio a ser usado a fim de garantir visibilidade
a grupos, ou representantes de grupos sociais, que veiculam
sua visão de mundo a partir de pontos de vista determinados.
Esse tipo de comunicação da mídia televisiva acaba servindo
de suporte, ou de apoio ao poder, na medida em que as infor-
mações e demais conteúdos transmitidos integram operações
de visibilidade que resultam até certo ponto na legitimação do
poder, concomitantemente ao reconhecimento de sua existên-
cia e exercício por aqueles que de “direito”.
Os procedimentos técnicos de produção no jornalismo
empregam critérios que valorizam a importância do assunto, ou
de personagens, a partir da pertinência que é dada pela própria
empresa ou por profissionais. No entanto não se questiona para
quem o assunto ou personagem é importante, nem em que con-
texto ou circunstâncias. Os conteúdos produzidos e difundidos
pelo telejornalismo, na mesma medida, atuam na manutenção
da organização do espaço social e dentro dele das instâncias de
poder e seus prepostos.
Desse modo, as relações com a mídia englobam não só o
problema do acesso à informação como elemento fundamental
do exercício pleno da cidadania, nem o conhecimento dos ci-
dadãos acerca dos meandros do poder político, incluem ainda a
efetivação do modelo que mantém a estrutura de funcionamen-
to institucional da sociedade, com a segmentação inerente a ele.
Isto implica pensar que a conceituação de poder é necessária
para o entendimento de toda essa realidade, para tanto são úteis
as noções apresentadas por Foucault.
Segundo ele, é preciso considerar que o poder se carac-
teriza pela interferência da vontade. Sendo assim, as relações
de poder tendem a implicar em domínio ou dominação, com
submissão voluntária de quem não exerce o poder. No âmbito
da política, os detentores do poder em nosso país são repre-
sentantes escolhidos pelo povo, os quais concentram o poder
decisório e a ação política.
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Show e poder no telejornalismo

PODER: IMAGEM E ESPETÁCULO


É possível entender, em decorrência, que o poder inde-
pendentemente de sua tipologia está inserido na força política,
abrangendo a totalidade das relações sociais e mesmo a atua-
ção do Estado tornada presente pelas ações das ‘’autoridades’’,
de quem se espera a observância estrita dos regulamentos e
normas sociais e conduta ilibada. Qualquer desvio é terreno
fértil para o cultivo de escândalos. Além disso, há tendência de
privilegiar aquilo que aparece como espetacular na televisão e
no telejornalismo, o que leva a uma excessiva valorização do
escândalo na área da política.
A avidez com que se persegue o escândalo político para
sua veiculação na mídia, segundo Thompson, surge e se am-
plia de acordo com a evolução das sociedades modernas. Ao
longo da História, as mudanças nas consequências, natureza e
tamanho dos escândalos se ligam às diversas formas midiáticas
de comunicação. Os escândalos políticos transformados em
midiáticos mantém uma ligação bastante forte com a natureza
comercial da mídia.
Um dos principais fatores de interesse pelos escândalos é
sua potencialidade mercadológica, pois existe a ideia corrente de
que “o escândalo vende”. Investigações e o tratamento jornalís-
tico na publicação dos escândalos resultam invariavelmente no
aumento nas tiragens e venda de jornais e revistas, e em cresci-
mento nos índices de audiência dos meios eletrônicos.
O anseio pelo escândalo se justifica pelo fato de a mí-
dia, em sua maior parte, ser formada por empresas de caráter
comercial, que têm preocupações principais com a receita e
rentabilidade, obtidas por meio da comercialização de pro-
dutos simbólicos que ocupam espaço na mídia impressa ou
tempo na eletrônica.
Junto a isso, a grande atração da mídia pelos escândalos na
área da política tem a ver com a possibilidade de revelação dos
segredos do poder. Na base desse processo está a noção de que
o jornalismo tem a obrigação de atuar de acordo com o interesse
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Mídia e política: caminhos cruzados

público, se bem que no final não se saiba muito bem quem defi-
ne o que é efetivamente de interesse público.
Os conteúdos elaborados por iniciativa da própria mí-
dia, ou produzidos pelas instâncias de poder, inegavelmente
traduzem intencionalidades que podem visar a reafirmação, ou
reconhecimento, de atos de poder, ou ainda questionar atos ou
situações acarretadas por ações e relações de poder. Uma das
consequências disso é a produção dos chamados escândalos
midiáticos e escândalos de poder, em geral ligados ao exercício
do poder político. Aqui também existe intencionalidade na di-
vulgação, a qual predetermina enfoques, abordagens, formas e
elementos sintáticos e semânticos dos conteúdos.
Os escândalos políticos mostrados, repercutidos ou de-
nunciados pela mídia, apresentam evolução compatível com o
próprio desenvolvimento tecnológico e com a ampliação de
cobertura e amplitude dos meios de comunicação. Diversos ca-
sos podem ser citados como exemplos, tanto no plano nacional
como no internacional, como Watergate e Bill Clinton e Monica
Leviski nos Estados Unidos, e aqui no Brasil a operação Uru-
guai no governo Collor, o mensalão e caso Erenice no governo
Lula, os atos secretos do Senado Rederal e os diários secretos na
Assembleia Legislativa do Paraná, para ficar apenas em poucos
exemplos.
Esse tipo de escândalo pode ser definido como todo
aquele que abrange líderes ou figuras políticas reconhecidas,
ou seja, pessoas que detêm algum tipo de poder assegurado
por amplo conjunto de relações sociais e institucionais. Por
sua natureza esses escândalos despertam especial interesse da
mídia, porque na maioria das vezes estão ligados a transgres-
sões praticadas por pessoas que representam determinado
nível de autoridade. As transgressões são vistas como viola-
ções de regras e procedimentos legalmente e/ou eticamente
obrigatórios para o exercício do poder político, e que devem
ser publicizadas pela mídia em um contexto no qual vigora a
liberdade de expressão.
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Show e poder no telejornalismo

Os atos que caracterizam esses escândalos normalmente


estão ligados ao abuso ou uso inadequado do poder, portanto,
essa ligação se efetiva também por meio de relações de poder.
Quanto à atuação da mídia frente aos escândalos políticos
vale destacar que diversos fatores estão presentes, com ênfase
para os conflitos e competição político-eleitoral, necessidade de
reafirmar uma boa reputação para o exercício do poder político,
a autonomia relativa da mídia, que não é totalmente independen-
te do poder político.
A instituição midiática tem uma série de limitações, sobre-
tudo os meios eletrônicos, rádio e TV, que operam conforme
regulamentação estatal. Outras formas de pressão, diretas e in-
diretas, também interferem na produção e veiculação midiática,
como a distribuição de verbas de divulgação em volumes consi-
deráveis pelo poder governamental; concessões de financiamen-
tos públicos, ou privados; existência de instrumentos de censura
conforme interesses determinados; dependência da comerciali-
zação dos índices de audiência e tiragens dos meios impressos.
A busca e utilização do escândalo político, ou do poder, como
produto midiático se deve também a uma diversidade de fatores,
que acabam contribuindo decisivamente para a frequência extraor-
dinária com que se permite a aparição de fatos dessa natureza na
mídia. Podem ser listados vários desses fatores como, por exemplo,
a necessidade cada vez maior de visibilidade por parte dos políticos
que sempre procuram aumentá-la; as constantes transformações
tecnológicas dos mecanismos produtivos dos meios de comuni-
cação; mudanças importantes tanto na cultura midiática como na
cultura política; a maior regulamentação da vida política e normati-
zação maleável do funcionamento dos meios de comunicação.
Fatores secundários e aparentemente estranhos como o
jogo de influências, sexo, dinheiro, clientelismo, corrupção, etc.
também podem estar relacionados com os escândalos políticos,
que resultam muitas vezes do desrespeito as leis e as normati-
zações da atividade política e colaboram para a subversão dos
verdadeiros fundamentos do poder considerado legítimo.
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Mídia e política: caminhos cruzados

Em muitas situações os escândalos políticos apresentam


alguns aspectos peculiares, aproveitados muito apropriadamen-
te pela mídia na espetacularizaçao da vida cotidiana. Essas ca-
racterísticas podem incluir a revelação de formas ocultas de
poder dentro do estado ou de governos, abusos reais ou su-
postos de poder ocultados nos ambientes públicos, e existindo
juntamente com determinadas condições como constituição
de novas formas invisíveis de poder configuradas em redes de
influência, os padrões de atuação da mídia e o desenvolvimen-
to tecnológico, levam à existência e exploração dos escândalos
políticos e/ou de poder.
Nesta questão ocorre uma vinculação a partir de mudan-
ças sociais as quais redefinem as relações entre a vida pública e
a vida privada e criam novos tipos de visibilidade. Tanto o que
é público quanto o que é privado passam a ser alvo de mais in-
teresse e, portanto, se tornam mais visíveis com a atenção da
mídia voltada para ambos. Essa visibilidade também passa por
transformações causadas pela evolução tecnológica dos meios
de comunicação e por necessidades novas de ser visto no campo
especifico do poder político.
Ressalte-se que a mídia, em geral, e especialmente a televi-
são veicula conteúdos que expressam as relações de poder exis-
tentes na sociedade. Muitas vezes, esses conteúdos são transmi-
tidos mediante uma espetacularização, ao mesmo tempo em que
se processa uma ligação com o campo do conhecimento, ou do
saber. As informações acerca do poder e seu exercício, difundi-
das e direcionadas ao público, genericamente, caracterizam mais
um conceito formulado por Foucault, no sentido de considerar
que o poder está amplamente articulado com o saber.
Conforme o autor, os dispositivos de poder empregados
culturalmente podem ser vistos como ferramentas e práticas he-
terogêneas que incluem as instituições em sua totalidade e os
discursos, entre outros elementos. Então, não há como negar
que a mídia se constitui de forma institucionalizada, e tudo o que
produz se expressa como uma diversidade de discursos.
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Show e poder no telejornalismo

Os discursos midiáticos incorporam o jornalismo de tele-


visão que de certa forma, por meio de sua prática, baliza as temá-
ticas importantes na sociedade, designando agendas e pautando
discussões. Trata-se, por conseguinte de um tipo de jornalismo
que funciona como dispositivo de saber para amplas camadas da
sociedade, o qual trabalha com a informação que nada mais é do
que sua matéria-prima.
Ao mesmo tempo em que mantém uma relação muito pró-
xima com as instâncias de poder, o telejornalismo se coloca no
campo do saber, produzindo e manifestando discursos com con-
teúdos explícitos, implícitos, interditos e rituais. O interdito está
presente no jornalismo, naquilo que por algum motivo ou devido
a alguma norma ou circunstância não pode, ou não deve ser dito,
ao lado da necessidade quase total de elementos de qualificação
daqueles a quem é dada a oportunidade de falar e de aparecer.
Na prática jornalística são empregados evidentes mecanismos
de controle, e no caso do telejornalismo pode-se exemplificar com
os procedimentos de produção e edição do telejornal, os quais se
assemelham às características do ritual do discurso e dos interditos
discursivos; imagens e narrações verbais, faladas e/ou escritas, for-
mam um discurso fabricado de antemão, de onde se excluem de-
terminadas informações, personagens, fatos, opiniões, valores, etc.
Outro fator importante para se analisar a questão que en-
volve poder no jornalismo de televisão é a sua influência sobre
o conjunto de espectadores. Isto, sob certo aspecto pode ser
considerado como o exercício de um poder simbólico, mediante
o emprego de forças simbólicas como a crença, por exemplo.
De acordo com Bourdieu, quem é sujeitado ao poder simbólico
tende a acreditar, ou confiar, em quem o exerce. A mídia, no
contexto geral, envolvendo suas práticas significativas como o
telejornalismo, desempenha esse poder porque detém a posse da
palavra autorizada. O telejornalismo, trabalhando com imagens,
representa a possibilidade de fazer ver, e consequentemente o
público passa a crer no que vê, pois ninguém apenas falou, e sim
lhe foi mostrado com autoridade.
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Mídia e política: caminhos cruzados

Os profissionais do telejornalismo de maneira geral são


considerados sujeitos que ocupam posição de autoridade no con-
texto midiático por produzirem informações, opiniões e pontos
de vista reconhecidos em relação a outros pontos de vista singu-
lares, e por isso mesmo exercendo influências na construção do
mundo social. Tem-se então o telejornal emitindo enunciados
que se sustentam pelo poder simbólico oriundo dessa ‘’autori-
dade’’ emanada dos repórteres, âncoras, comentaristas e outros
profissionais reconhecidos, bem como das imagens.
Pelo poder de tornar visível, é inequívoca a aproximação
que o veículo televisivo mantém com o público se estendendo ao
gênero telejornal. Essa condição é obtida pela credibilidade, que
situa o grau de confiança que os telespectadores têm em relação
a esse meio de comunicação e aos profissionais que nele atuam.
Esta atuação é desencadeada também pelas técnicas
de produção empregadas no telejornalismo, cujas finalidades
compreendem do mesmo modo a obtenção de uma necessá-
ria aproximação com o público, uma vez que uma das metas
constantes é a manutenção ou aumento dos índices de audi-
ência. Isto é verificado no polo da produção e da transmissão
dos conteúdos próprios do telejornalismo, no entanto, para os
receptores dessas mensagens chega a haver certo desconheci-
mento do modo de produção do telejornalismo e dos interes-
ses existentes por trás da ‘’informação’’.
O poder simbólico que transcorre e conforma o modo
de fazer do telejornalismo se apoia na busca pela credibilida-
de por parte da emissora, de seus programas, e dos profissio-
nais. Essa credibilidade se sustenta pela sensação de verdade
sentida pelo público em relação àquilo que assiste diariamente
na tela de seus aparelhos.
Na prática jornalística de TV, essa sensação se processa
mediante o emprego de técnicas, procedimentos e métodos es-
pecíficos de produção, onde a impressão de veicular a verdade
é obtida pelas opções e escolhas às quais os profissionais estão
submetidos no exercício de sua atividade. Alguns aspectos dessa
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Show e poder no telejornalismo

atuação envolvem a escolha dos temas e assuntos pautados no


dia-a-dia, a escolha daquilo que deve ser visto pela audiência, a
escolha da forma de captação e edição das imagens, a escolha de
como se mostrar o que deve ser visto, a escolha de palavras e ter-
minologia, a escolha do tempo de duração da “notícia”, a escolha
das fontes e sujeitos falantes e ainda a escolha do valor-notícia e
critérios de noticiabilidade que definem aquilo que pretensamen-
te é de interesse público.
Além de ser problemática a definição dos temas, acon-
tecimentos, problemas ou ações que são realmente de interes-
se público, o grande e veloz desenvolvimento da tecnologia,
com o surgimento e implementação de novos meios técni-
cos de produção, a adoção de novos procedimentos e rotinas
produtivas que revolucionam constantemente o fazer jorna-
lístico, são estabelecidas concomitantemente novas formas de
interação midiática.
Assim, o público em geral passa a ter acesso a uma ampla
diversidade de conteúdos simbólicos, entre os quais quantidade
enorme de informações transmitidas cada vez com mais agilida-
de pelo aparato midiático. Ao mesmo tempo a vida social tam-
bém sofre constantes reordenações, a partir do funcionamento
inquestionavelmente eficaz e a evolução dos meios de comuni-
cação massiva tanto no aspecto tecnológico, como no lugar que
ocupam simbolicamente no dia-a-dia das pessoas.
Sob o manto da atuação da mídia aparece também uma
nova visão e noção a respeito do que é publico e o que é privado.
O conceito do que é público se relaciona com a compreensão do
que é aberto, ou acessível a todos, tendo ampla possibilidade de
ser visível ou observável. Já o conceito do que é privado se liga
ao entendimento do que é fechado, ou oculto, sendo observável
somente por um número muito restrito de pessoas.
Se nos colocamos em condição de avaliarmos a dicotomia
público/privado a partir do ponto de vista midiático, reafirmam-
se ainda mais os polos diametralmente opostos da publicidade/
privacidade, do aberto/fechado, da visibilidade/invisibilidade.
23
Mídia e política: caminhos cruzados

No entanto se nos ativermos às mudanças nas formas de publi-


cidade ou de visibilidade que ocorrem com frequência no meio
social, poderemos perceber que essas modificações estão rela-
cionadas com outras alterações, aquelas ocorridas no exercício
do poder político, ou na maneira de exercê-lo.
Nos diversos regimes políticos constata-se preocupação
quanto às relações estabelecidas com a mídia e também com o
modo de utilização dos meios de comunicação pelos detentores
do poder. Cada vez mais, sobretudo nos regimes mais abertos e
populistas, os governantes passam a usar a mídia na divulgação
de atos oficiais e também na construção de auto-imagem. Essa
utilização da mídia, com frequência é definida pelas próprias
esferas de poder como forma de divulgar e atender aquilo que
se considera de interesse público, segundo o que as esferas de
poder entendem por interesse público.
Dentro desse contexto, há uma valorização extrema do
meio televisivo, uma vez que a TV apresenta características
que permitem extensa variedade de ações simbólicas, levando
até certo ponto à reprodução da interação “face a face”, pois
tecnicamente permite que se vejam detalhadamente expres-
sões faciais, aparência pessoal, e linguagem corporal entre
outros detalhes pessoais e de ambientes. Diante da câmera,
políticos se dirigem ao público como se fossem familiares ou
velhos amigos.
Esta situação é diferenciada quanto à realidade do passado,
quando os lideres políticos se encontravam em um relativo isola-
mento pessoal, agora substituída por certa intimidade midiática,
ou seja, os líderes políticos têm necessidade de se mostrar como
comandantes e procuram aparecer também como indivíduos co-
muns, na busca de uma relação empática com cada integrante
do grande público. A ideia é passar a imagem de que os líderes e
autoridades são exatamente como cada cidadão. Nesta medida,
a mídia se tornou importante instrumento usado para promover
e realçar imagens de personagens, mas que pode também ser
empregado para denegrir essas imagens.
24
Show e poder no telejornalismo

Relacionada com a noção de visibilidade e do interesse


público se intensifica a atribuição de valor à liberdade de ex-
pressão como direito individual e coletivo. No âmbito do jorna-
lismo, essa afinidade vem ao encontro do conceito de liberdade
de imprensa, tão presente em nossa recente eleição presidencial
brasileira, oportunidade em que inclusive manifestos em defesa
da mesma foram lançados por expressivos segmentos sociais e
avalizados pela mídia nacional.
O conceito usual de liberdade de imprensa, associado à li-
vre manifestação do pensamento, firma-se no século XVIII como
direito coletivo contra a atuação restritiva e opressora do Estado,
portanto de governos. De acordo com esse ideário, é permitida a
expressão de críticas abertas a governantes, e ações governamen-
tais, mas também é admitida a utilização da mídia pelas esferas do
poder no intuito de alcançar seus objetivos políticos.
Em nome da liberdade de expressão, e de imprensa, defen-
de-se a autonomia total da mídia, que não abre mão de se auto-
regulamentar e não prestar contas sobre aquilo que transmite
e de como faz seus conteúdos chegarem até o público. Junto
a isso não se pode então perder de vista o caráter comercial da
maior parte da mídia, por outro lado, que a leva invariavelmente
a buscar com mais ou menos ênfase a produção e transmissão
do espetáculo como meio de carrear maior público e audiência,
envolvendo nesse processo as temáticas políticas.
No telejornal, formato jornalístico de TV dos mais impor-
tantes pelo que representa em termos de oportunidade de infor-
mação para a grande maioria da população, imagem e poder se
combinam em uma fórmula aplicada na configuração do show,
pois na atualidade, o gênero telejornal também é concebido den-
tro da ideia do espetáculo televisivo.
Na televisão se produz e se apresenta o telejornal como
um autêntico espetáculo, numa sequência basicamente de infor-
mações e opiniões vertidas em imagens, falas, palavras escritas,
sons, efeitos e vários outros elementos formais e de conteúdo.
Isso tudo distribuído dentro do tempo presente, pois as ima-
25
Mídia e política: caminhos cruzados

gens do telejornalismo e sua linguagem privilegiam o presente,


seguindo a lógica do espetáculo e levando os espectadores a uma
espécie de contemplação.
A apreciação contemplativa por parte do público relacio-
na-se à possibilidade de auto-reconhecimento nos conteúdos
apresentados por meio de um sistema produtivo e de transmis-
são que mistura informação com imagens de entretenimento,
de exacerbação da violência, de apelos emocionais, do extraor-
dinário e do espetacular.
Na comunicação espetacularizada feita pelo telejornal a
informação e abordagens que repassam opiniões e valores exer-
cem uma função própria de instrumento de ordenação social, ou
de controle, na sociedade do espetáculo, onde não se verifica a
existência de um único poderoso que manda, mas há o funciona-
mento de uma rede de poderes instituída por interesses de diver-
sas ordens, incluindo a ordem política e econômica. São poderes
locais, nacionais, transnacionais e globais, que têm no espetáculo
algo que funciona também como instrumento com capacidade
de instigar o consumo não só de bens utilitários ou culturais,
como igualmente de certas ilusões.
A hegemonia da comunicação espetacular televisiva pode
originar na audiência fenômenos como o desconhecimento his-
tórico das condições sociais, a valorização despropositada daqui-
lo que não é realmente importante do ponto de vista coletivo,
o imediatismo, o individualismo, e a ausência de reflexão crítica
acerca da realidade vivida.
No telejornal espetacularizado se identifica uma caracte-
rística principal, em termos estruturais, em que cada informação
é substituída rapidamente por outra que a supera em grau de
interesse, ou outro aspecto de relevância arbitrariamente apon-
tado pela “técnica” jornalística. Assim, o telejornal apresenta um
espetáculo do cotidiano, até por sua periodicidade diária entre
outros pontos, praticando o não diálogo, mas oferecendo dados
e notícias sob formas altamente atrativas em imagens produzidas
para serem consumidas com voracidade.
26
Show e poder no telejornalismo

As imagens espetaculares do telejornalismo se apresentam


mais reais do que o próprio contexto real de onde são provenien-
tes, para tanto contribui o modo de captação e edição ao privile-
giar aquilo que é claramente visível, deixando de lado praticamente
tudo o que ocorreu antes daquele registro especifico, e sequer é
mencionado, por palavras ou imagens, como aconteceu o fato.
Percebe-se um padrão definidor da maneira de se fazer
o jornalismo na forma espetacularizada da TV, as notícias são
apresentadas mediante montagens e com a grandiosidade que
o espetáculo exige. A sensação de realidade e o efeito de verda-
de estão presentes, obtidos por meio de técnicas especificas de
produção que permeiam a captação, a edição e a apresentação
do material jornalístico encadeado de acordo com determinada
maneira de observar as coisas.
Mas não é só isso, por trás das câmeras acontece outro
espetáculo, essencial para o show a ser mostrado, que a maio-
ria dos telespectadores desconhece. Tratam-se das rotinas e
procedimentos de produção, que compõem um espetáculo
dentro do espetáculo, dividido em diversos atos que se desen-
volvem no interior de uma sequência, iniciando com a pauta
e seguindo com o espelho do telejornal, com a atuação das
equipes em campo captando as imagens e apurando infor-
mações, depois com a edição das reportagens que se confun-
de com a fabricação da notícia, e após com a montagem da
edição do programa que irá ao ar materializado pelo script e
culminando com a apresentação ao vivo.
Tem-se como produto final espetáculos cujos produtores
não se constrangem em qualificar de shows da vida, só para citar
um dos slogans mais conhecidos. Assim é estabelecido um modo
particular de se pensar, estruturar e produzir o telejornalismo,
configurado como espetáculo, o qual obedece estratégias de
construção da notícia e, principalmente reportagens, difíceis de
serem identificadas pelo público que recebe os conteúdos trans-
mitidos, mas que trabalham, com maior ou menor intensidade, a
projeção do imaginário social sobre o fato relatado. E este ima-
27
Mídia e política: caminhos cruzados

ginário é modelado pelas relações de força, entenda-se de poder,


existentes na sociedade.
Não escapa também a esse processo relacional o agenda-
mento das notícias, principalmente nas áreas de política e eco-
nomia, de modo a englobar mesmo uma forma de construção
da realidade, apresentando como a própria realidade apenas
recortes da mesma. O agendamento acaba sendo utilizado na
produção jornalística da mídia televisiva para “programar” os
acontecimentos, numa espécie de cardápio de ocorrências diárias
imposto aos consumidores-espectadores e reproduzido em sua
maior parte nos programas telejornalisticos, independentemente
de qual empresa os produza e veicule, marcando a adoção de um
modelo em que não existe a menor possibidade de o telespecta-
dor escolher as informações transmitidas a ele, e muito menos
como os conteúdos serão emitidos.
Mesmo assim, os telejornais informam, promovem o en-
tretenimento ao veicularem amenidades, e envolvem a audiência
permanentemente adulada e mantida fiel por meio de mecanis-
mos de aproximação e empatia estudados e aplicados em seus
mínimos detalhes, porque deste modo se assegura a condição
mais importante para a manutenção e reconhecmento, como le-
gítimo, do status-quo.
Constata-se para além desses aspectos a junção manifes-
tada entre dois campos sociais, o campo midiático e o campo
político, onde ambos agem e executam exercícios de poder, com
base na noção de autoridade reconhecida. A obtenção desse re-
conhecimento ocorre alicerçada, como já se viu, no chamado
poder simbólico. No caso da mídia, trata-se de instituição reco-
nhecida por sua capacidade na produção, transmissão e recepção
de informações, entre outras competências.
As organizações midiáticas exercem esse poder simbólico
por meio de suas atribuições profissionais de produção e vei-
culação de conteúdos, defendendo explícita ou implicitamente,
sobretudo opiniões, princípios e valores disseminados no meio
social, como balizadores de condutas.
28
Show e poder no telejornalismo

Em consequência, na contemporaneidade a mídia se torna


uma espécie de local onde se trava a disputa pelo poder simbó-
lico, transformando-se no meio de maior importância na media-
ção e no relacionamento entre os agentes políticos e os cidadãos.
A atuação midiática acaba cooperando para a construção do cha-
mado capital simbólico dos políticos perante os outros segmen-
tos da sociedade e principalmente ante os contingentes eleitorais.
Os produtos midiáticos, compreendendo aqueles elabora-
dos pelo telejornalismo, operam segundo um modo de produção
para o qual são expressas ligações entre integrantes do campo
político e do campo da comunicação. Os profissionais da mídia,
como os jornalistas, mantêm aproximações com os políticos que
dentro do esquema tradicional da apuração de informações no
jornalismo são considerados como fontes, podendo implicar em
desvios éticos de conduta profissional.
Diante desse panorama dinâmico descortina-se um hori-
zonte onde os caminhos da comunicação midiática representa-
da pelo telejornalismo e os caminhos da política se apresentam
permanentemente entrecruzados e sobrepostos, muito embora
possam levar a direções opostas em muitas circunstâncias.

29
Mídia e política: caminhos cruzados

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
GOMES, Mayra. Poder no Jornalismo: discorrer, disciplinar, controlar.
São Paulo: Hacker Editores, Edusp, 2003.
LIMA, Venício de. Mídia: teoria e política. São Paulo: Fundação Per-
seu Abramo, 2001.
SOMMA NETO, João. Ações e relações de poder: a construção da repor-
tagem política no telejornalismo paranaense. Curitiba: EDUFPR, 2007.
SZPACENKOPF, Maria Izabel de Oliveira. O olhar do poder: a montagem
branca e a violência no espetáculo telejornal. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
THOMPSON, John. O escândalo político: poder e visibilidade na era da
mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.

30
Brasileiros: na ética e na estética
Claiton César Czizewski1

INTRODUÇÃO
A história humana sempre foi marcada por oposições bi-
nárias. A tensão entre público e privado, realidade e ficção, te-
oria e prática, forma e conteúdo, dentre outras, ajuda a confor-
mar uma época de relações complexas, chamada modernidade.
Atualmente, preconiza-se que são outros os tempos. A mo-
dernidade foi superada por uma fase imediatamente posterior
à qual, naturalmente, denomina-se pós-modernidade. Pode-se
colocar em dúvida essa concepção, mas não é possível ficar
indiferente ao fato de que a maneira de se relacionar com o
mundo mudou radicalmente.
A dissolução permanente e progressiva das dicotomias é
realizada, em grande parte das vezes, com o auxílio fundamental

1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade


Federal do Paraná pela linha de Comunicação, educação e formações socioculturais.

31
Mídia e política: caminhos cruzados

dos meios de comunicação de massa. Estes, ao mesmo tempo


em que refletem uma atmosfera social, complexa, pluralista e
multirrelacional, participam fornecendo elementos a essa confi-
guração. Em resumo, tem-se na mídia uma mistura confusa – às
vezes clara; outras, dissimulada – da ficção com a realidade e
do público com o privado. Mas, sobretudo, tem-se a sedução
inquestionável da forma a serviço da legitimação do conteúdo.
Um fenômeno a ser analisado a seguir.

A ESSÊNCIA POLÍTICA DA COMUNICAÇÃO


Sempre que se fala em comunicação e política, é natural que
se pense na cobertura – normalmente pessimista e escandalosa –
da atividade governamental pela imprensa escrita e eletrônica; na
propaganda política obrigatória durante o período de eleições; ou
nas estratégias de marketing político. Tais noções são razoáveis.
Afinal, tanto as discussões em torno da relação entre público e
privado, por meio das quais se estruturou a esfera pública2, quanto os
periódicos panfletários nascidos no rastro da invenção da impren-
sa, por Gutemberg, no século XV3, são elementos preponderantes
para o nascimento e a consolidação da atividade jornalística.
Da mesma forma, a publicização via comunicação de massa
é uma condição fundamental para os atores políticos. Isso porque,
na chamada sociedade da informação – ou do espetáculo, como preferia
Debord4 –, além de ser é preciso parecer. E, para tanto, deve-se
aparecer. Conforme Cobb e Elder (1981, p. 393), nesse contexto, “a
comunicação é a essência da política, enquanto processo e produto,
sendo as políticas públicas o resultado da tomada de decisões gover-
namentais ocorridas em disputas no cruzamento entre a política e a
comunicação”. Já para Habermas (2006), os políticos e os comuni-
cadores são os principais personagens da vida política.

2. Sobre esse conceito ver Habermas (1991).


3. Mais detalhes em Thompson (2002).
4. Ver Debord (1967).

32
Brasileiros: na ética e na estética

Não cabe contestar a validade de tais argumentos. Entre-


tanto, pode-se tomar a discussão sob outra perspectiva. Trata-
se de substituir a conjunção e, que liga os termos comunicação
e política por é, flexão do verbo ser, na terceira pessoa do sin-
gular. Mais que uma questão sintática, a operação diz respeito
à ênfase. Em lugar de entender comunicação e política como
dois campos distintos, mas interdependentes, passa-se a reco-
nhecer a natureza política do ato comunicativo.
Já dizia Blumenberg que “o homem é a única criatura inca-
paz de fazer alguma coisa sem propósito” (1987, p. 429). Logo, a
comunicação é uma ação intencional. Quem comunica o faz para
transmitir, por meio de uma linguagem, algo a alguém. Em outras
palavras, a interação comunicacional visa a “alterar o estado das
coisas ou da mente dos interlocutores”, constituindo-se em um
processo no qual a “escolha é sempre uma questão ética; os refe-
rentes, políticos” (OLIVEIRA, 2009). Pode-se inferir, portanto,
que é na intencionalidade e nos meios usados para representá-la
que reside a essência política da comunicação.

O FUNDAMENTO ÉTICO DA ESTÉTICA


Perceber as diferentes intencionalidades latentes no uso de
dispositivos materiais no processo de interação comunicacional não
é tão simples como pode parecer. Contudo, a tarefa pode mostrar-se
menos complexa quando se transpõe a problemática para o contex-
to mais amplo dos meios de comunicação de massa. Nessa esfera,
a mídia televisiva se sobressai como espaço no qual o fundamento
ético das escolhas estéticas mostra-se, literalmente, mais visível.
Faz-se, aqui, uma ressalva. Ao longo desta seção, em es-
pecial, e do texto como um todo, os termos ética e estética são
usados não no sentido literal e consagrado5. No que interessa

5. Conforme o Dicionário Aurélio (Hollanda, 2009), maior referência em semântica da língua portu-
guesa no Brasil, ética corresponde ao “conjunto de normas e princípios que norteiam a boa conduta
do ser humano”. Já estética refere-se ao “estudo das condições e dos efeitos da criação artística”.

33
Mídia e política: caminhos cruzados

a este estudo, ética representa as forças e valores que movem as


intenções e ações humanas, independentemente de serem con-
sideradas boas ou más do ponto de vista da correção moral. Já
por estética deve-se entender o conjunto de sons, imagens, ges-
tos, palavras, vozes e temáticas por meio dos quais a intenção
converte-se em ação. “Essas representações são ‘as formas’ do
sentido, ‘os olhares políticos’ do indivíduo sobre/no mundo”.
(...) Consistem em “formas de intervenção, pois permitem que
as pessoas encarem o mundo de uma forma ou de outra” (OLI-
VEIRA, 2009, p.81).
Esses “olhares políticos” permeiam todo o processo de
criação de um produto televisivo, a começar pela definição te-
mática. Agenda-setting é o conceito que dá nome à elevação de
atos, fatos e pessoas à condição de causa pública. A Teoria do
Agendamento, que se centra em tal conceito, postula que “o
conjunto de dispositivos da mídia determina a pauta (agen-
da) para a opinião pública estabelecer relações de relevância
sobre determinados conjuntos de temas, bem como preterir,
desimportar, ignorar e ofuscar outros assuntos” (REVISTA
INTERCOM, 2008).
A história encarrega-se de provar a validade da Teoria do
Agendamento. No entanto, algumas ponderações fazem-se ne-
cessárias. A primeira delas é a de que os meios de comunicação
não são soberanos na decisão do quê vai ou não ser tornado pú-
blico. Fatores como o alinhamento editorial do veículo, seu grau
de autonomia quanto à cartela de anunciantes e às esferas de go-
verno e seu posicionamento no mercado, por exemplo, servem
como diretrizes para a determinação do que repercutir.
Outros dois fatores pesam na avaliação dos critérios de
noticiabilidade. Um está ligado às empresas concorrentes, e o
outro ao público consumidor. Os meios de comunicação têm os
concorrentes como chancelas do valor-notícia. Procuram manter-
se alinhados a eles no que concerne ao quê dar atenção e em que
grau. Obviamente, nessa avaliação comparativa, os mais diver-
sos veículos não representam o mesmo peso. Quanto maior a
34
Brasileiros: na ética e na estética

legitimidade – simbólica e material – de um concorrente, mais


valorizada é a sua chancela.
No que diz respeito aos consumidores de mensagens tele-
visivas, o sucesso de determinado conteúdo depende, em consi-
derável grau, da relevância que a sociedade atribui a ele. Afinal,
embora a necessidade de orientação seja uma manifestação na-
tural do psiquismo humano, cada pessoa tem focos de atenção
e repertórios de conhecimentos particulares. Assim, mais que
dados, participam do processo de ressignificação tanto fatores
cognitivos, quanto emotivos e circunstanciais.
Uma vez definido o tema a ser abordado, deve-se determi-
nar quem vai discorrer sobre ele. Trata-se de definir quais serão
as fontes de informação. Esse é um dos pontos nevrálgicos do
trabalho de produção de conteúdo. Guiados pela conveniência
dos acordos informais entre os grupos de mídia e determinados
setores e atores sociais ou do trabalho pouco dispendioso, os
profissionais de comunicação acabam por ouvir sempre as mes-
mas fontes oficiais.
Raras vezes a diversidade de fontes permite uma apuração mais
pluralista das informações, ou mesmo a variação das imagens,
fazendo com que o enfoque seja direcionado para o aspecto mais
importante de um suposto ponto de vista do interesse público.
O que se vê, normalmente, são informações provenientes de um
fluxo único e unidirecional, privilegiando-se origens autorizadas,
especializadas, consagradas (SOMMA NETO, 2009, p.25).

Talvez, fosse menos prejudicial se essa prática evidencias-


se apenas um modus operandi cristalizado pela recorrência. Longe
disso, o que parece mera comodidade oculta, na verdade, uma
tendência, apresentada pelos mass media, à manutenção da ordem
social e das estruturas de poder. “Nessa rede de poderes, a atua-
lidade é agendada, construída e mantida em função de interesses
múltiplos, que vão desde os detentores do poder, passando pelos
intermediários, que funcionam como instrumentos daqueles”
(SZPACENKOPF, 2003, p. 174).

35
Mídia e política: caminhos cruzados

Por mais controverso que possa parecer, é fato que, uma


vez escolhidos, os falantes só ganham voz na imagem. É por
meio dela que a informação ganha visibilidade, e o fato e a fonte,
existência (GOMES, 2003). A imagem, aliás, tomada na perspec-
tiva de seu poder, é um tema controverso. Enquanto uns a ela
atribuem grande importância, baseando-se no argumento segun-
do o qual a visão é o mais privilegiado dos sentidos humanos;
outros defendem que os telejornais são produzidos mais para
serem ouvidos que vistos (SZPACENKOPF, 2003)6.
Independentemente de convicções e corporativismos, pode-
se afirmar que a imagem é dotada de um efeito de realidade que,
comumente, é confundido com a realidade tal qual ela é. Todavia,
deve-se considerar que a imagem captada e exibida pelas lentes de
uma câmera de televisão é um recorte de uma realidade dada. Uma
seleção do que merece visibilidade. Nesse processo, a intervenção
humana do profissional é inevitável e determinante. É com base
em critérios pessoais e subjetivos de valor-notícia, implicações éti-
cas, beleza plástica e força expressiva, dentre outros, que o repórter
cinematográfico decide para qual direção incidirá a câmera.
Outra forma de intervenção inevitável e condicionante
é a da técnica. Por meio de diferentes movimentos de câmera,
enquadramentos e angulações, a tecnologia acaba revestida de
um teor ideológico, uma vez que destaca ou descura, oprime ou
dignifica determinados fatos, atos e atores em detrimento de ou-
tros. Não bastasse essa expressiva força significante, o aparato
tecnológico – a partir de suas possibilidades e limitações –, ainda
pode servir de argumento sobre os porquês dos significados pro-
duzidos (SOMMA NETO, 2009).

6. Há, ainda casos extremos, tais como as declarações ouvidas pela autora durante pesquisa de
campo no departamento de jornalismo da Rede Globo de Televisão. Na ocasião, alguns cinegra-
fistas declararam que “fazer imagem é brincar de Deus”; “telejornalismo não precisa de repórter,
basta um bom cinegrafista e um jornalista para redigir a notícia na emissora”; ou, ainda, que “o
que fica de um telejornal é só imagem” (Idem. Ibidem. p. 191).

36
Brasileiros: na ética e na estética

O debate em torno da força e da suficiência da imagem


deve ser debitado ao fato de que, embora considerada o mais real
e objetivo dos elementos informativos, na quase totalidade das
vezes, ela está associada ao texto escrito ou falado. A este caberia
reforçar a existência e a credibilidade da imagem.
Mas, conforme Bakhtin “a palavra está sempre carregada
de um conteúdo ideológico ou vivencial. É assim que compre-
endemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam
em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida” (1988,
p.95). Assim, a escolha das palavras não pode ser encarada como
um esforço apolítico. Ela tem uma intencionalidade – que pode
ou não ser captada e em diferentes graus –, pois as palavras têm
um efeito maior que o da referencialidade informativa. O signifi-
cado do que é dito ultrapassa as regras da construção linguística
e está intimamente ligado à autoridade de quem fala e a compe-
tência de quem ouve (GOMES, 2003).
A acoplagem da imagem ao texto é feita durante a edição.
Isso, por si só, já deveria indicar a importância do processo. Mas
ele vai além disso. O editor lida com um das principais matérias-
primas da produção televisiva: o tempo. Editar é cortar imagens
e falas a fim de que o máximo de conteúdo possa ser conden-
sado em um mínimo de tempo, este sim soberano e imaculado
– até segunda ordem. Nesse sentido, editar também é fazer po-
lítica, pois é decidir sobre a distribuição do tempo e, assim, abrir
precedentes para o excesso, a supressão, a desproporção, o jogo
de forças e de poderes (SZPACENKOPF, 2003).
A partir desse breve resumo das etapas de produção de
conteúdos televisivos, cumpre-se uma dupla função: primei-
ro, evidencia-se que a realidade mostrada na tela do televi-
sor resulta de uma construção, não de algo espontâneo, mas
de uma arbitrariedade. Da mesma forma, deixa claro que as
operações aqui denominadas como estéticas não são suportes
auxiliares, mas continentes de intenções políticas e estruturas
de poder. São meios empregados para a obtenção de fins pre-
determinados.
37
Mídia e política: caminhos cruzados

Em outras palavras, o que a televisão faz é uma ficcio-


nalização ancorada em “uma reinterpretação do real, a partir
de um recorte deste mesmo real, segundo um modo de ver
e, também, segundo uma perspectiva tecnológica” (SOMMA
NETO, 2009, p.28).

A DIMENSÃO INCONSCIENTE
DA LÓGICA TELEVISIVA
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE) em setembro de 2006 mostrava que
a televisão estava presente em mais de 90% dos lares brasileiros.
Atualizada, essa porcentagem deve ser ainda maior. O que não
muda é o fato de que a eloquência dos números pode ter expli-
cação nas características principais desse meio de comunicação,
como o caráter doméstico, a portabilidade e a onipresença.
Entretanto chama a atenção a dimensão inconsciente des-
sa mídia eletrônica. O fluxo de significantes televisivos é seme-
lhante ao fluxo de significantes do inconsciente. Dessa forma, a
televisão pode ser caracterizada como um lugar em si, onde as
noções de tempo e espaço são relativizadas e impera a lógica da
inconsciência, embora a operação seja racionalizada.
Regida pela lógica do inconsciente, a mídia televisiva
efetua uma ligação entre a individualidade do espectador e o es-
paço público que ela própria representa. Em síntese, a TV é uma
espécie de esfera pública expandida, cuja principal função é cons-
tituir e conformar o espaço público. Ela tem como uma forte mar-
ca, na contemporaneidade, a constante aproximação e, às vezes, a
inversão entre o que é ficção e o que diz respeito à realidade.
A relação entre os agentes de cá e de lá da tela tem raízes
no processo de formação da chamada sociedade de massas, ou
sociedade do espetáculo. Para se sentir pertencente à massa e ser
identificado com ela, os indivíduos tiveram de abrir mão de parte
de suas produções subjetivas. Em troca, receberam uma espécie de
subjetividade industrializada, uma forma de inconsciente coletivo.
38
Brasileiros: na ética e na estética

Como consequência, teve início um processo que culmi-


nou em um espaço no qual um contingente homogêneo de pes-
soas persegue fins particulares. Com isso, os indivíduos buscam
representações de si mesmo, provas para a própria existência.
Como esse mecanismo de reconhecimento exige certa visibilida-
de espetacular, os agentes da massa vão buscá-lo nas imagens e
mensagens da televisão.
No entanto, aquilo que se configura na tela representa, na
verdade, a imagem e os desejos do Outro. Então, quanto mais
o espectador consome as produções televisivas na tentativa do
auto-reconhecimento, mais distante fica das suas singularida-
des subjetivas, consumindo traços do que acreditar ser a subje-
tividade alheia e se desacostumando da própria subjetividade.
De acordo com Kehl (2004, p. 67):

(...) a exaltação do indivíduo como representante dos mais


elevados valores humanos que esta sociedade produziu, com-
binada ao achatamento subjetivo sofrido pelos sujeitos sob
os apelos monolíticos da sociedade de consumo, produz esse
estranho fenômeno em que as pessoas, despojadas ou empo-
brecidas em sua individualidade, dedicam-se a cultuar a ima-
gem das outras, destacadas pelos meios de comunicação como
representantes de dimensões de humanidade que o homem
comum já não reconhece em si mesmo. Consome-se a ima-
gem espetacularizada de atores, cantores, esportistas e alguns
(raros) políticos, em busca do que se perdeu exatamente como
efeito da espetacularização da imagem: a dimensão, humana e
singular, do que pode vir a ser uma pessoa, a partir do singelo
ponto de vista de sua história de vida.

Esse culto só é possível graças a uma ocultação, que é outra


das lógicas em que a televisão opera. As imagens e mensagens
televisivas guardam em si propriedades de fetiche. Por este, deve-
se entender o objeto ou a representação de algo que sabe, mas
que não se quer saber. Justamente por proporcionar esse masca-
ramento, esse objeto ou representação é imbuído de um atrativo
particular que o transforma em fetiche.

39
Mídia e política: caminhos cruzados

No caso dos produtos televisivos, esse objeto ou represen-


tação pode ser deslocado para a figura daqueles que a própria
televisão rotula de celebridades. Já a verdade ocultada pode ser
debitada ao contexto subjetivo do espectador, que já sabe que o
perdeu, mas prefere ignorar isso e procurar um pouco de si em
cada polegada da tela.
Essa inclinação ao Outro, por sua vez, ajuda a compreen-
der o êxito que as histórias narradas – das quais, no Brasil e em
toda a América Latina, a telenovela constitui o melhor exemplo
– sempre tiveram na televisão. Afinal, ela confere status de espe-
táculo a uma condição antropológico-social indissociável do ser
humano, desde a era do homem de Neanderthal: a compensação
lúdica que troca o conflito pelo prazer e é experimentada sempre
que se começa a contar ou ouvir histórias (FORSTER, 1969).

AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
DA EPOPEIA GREGA
Sempre que se faz menção ao gênero épico da literatura,
é quase automático que se remeta à civilização grega. A cone-
xão, de fato, é pertinente. Afinal, quando ainda eram um povo
sem nome, sem língua e sem história, os gregos recorreram à
narrativa para que pudessem forjar uma identidade e um passa-
do. E foi por meio da mitologia que eles chegaram a um quadro
coerente de nacionalidade, o qual refletia uma raça descendente
dos deuses e dos semideuses.
Nessa atmosfera de lendas e mitos, um nome se sobres-
sai: Homero. Mais que um contador de histórias, o autor da
Odisseia e da Ilíada entrou para a história como o ícone maior da
literatura grega e, consequentemente, da epopeia, a ponto de se
afirmar que “se é verdade que a história da Europa começou os
gregos, é também verdade que a história grega começou com
o mundo de Ulisses” (FINLEY, 1982, p. 23). Assim, não causa
estranheza o fato de a esse tipo de escritos dar-se o nome de
narrativas homéricas.
40
Brasileiros: na ética e na estética

No contar grego prevalece a poesia oral marcada pela re-


petição de versos. Dela, destaca-se o poema heróico que, em di-
ferentes graus de realidade e fantasia, declama a trajetória sempre
rumo à vitória de deuses mortais. O núcleo central desse tipo de
obra encontra-se nas virtudes das personagens.
O herói grego é sempre um afortunado. Inevitavelmente,
precisa ser forte, bravo, valente e honrado. Apesar da indispen-
sável força física, o órgão mais hipertrofiado dessa categoria de
homens é o coração, com toda a gama de bons sentimentos que
ele possa guardar. Mas não se pode esquecer que se trata de se-
res mortais; logo, falíveis. Por isso, todo o herói grego tem seus
defeitos7 e os deixa transparecer. Isso porque a poesia grega tem
uma dimensão fortemente moral.
A narrativa mítica tem função etiológica, explica fenôme-
nos relacionados ao homem e à sua existência. Também tem
uma dupla função ideológica e de exemplaridade, a fim de trans-
mitir e preservar certos valores da sociedade onde se originava o
difundia o mito. Além disso, as narrativas míticas preenchem o
vazio deixado pelas catástrofes, investindo-se de verdade e de va-
lor sagrado. Nesse contexto cabe ao herói a função primordial de
recompor a harmonia por meio de uma luta na qual vêm à tona
as noções de bem e mal e o senso de justiça (FORSTER, 1969).
Assim, mesmo que pese mais o lado ético, no poema he-
roico grego é possível perceber um lugar do estético, um mode-
lo formal do fazer narrativo. Dentre as principais características
desse, aparecem: a glorificação de acontecimentos insignifican-
tes; o realismo e a objetividade – que o distinguem do poema
lírico, embora um possa estar contido no outro; o distanciamen-
to entre narrador e narrado; e exaltação da natureza como lu-
gar edênico. Para fins desse último, são recorrentes a descrição
pormenorizada e elogiosa e a antropoformização de elementos
naturais (FINLEY, 1982).

7. Aquiles lamenta ter morrido jovem e Heitor tem medo da morte, por exemplo. (FINLEY, 1982).

41
Mídia e política: caminhos cruzados

A IDEIA CENTRAL DE BRASILEIROS


Brasileiros é um programa jornalístico produzido e exibido
pela Rede Globo desde 17 de junho de 2010. De periodicidade
semanal, é veiculado às quintas-feiras, na faixa das 23h30. Pou-
cos são os elementos fixos nessa produção: o horário de início
e o tempo de duração de cada edição variam; a apresentação
é revezada8; e o formato oscila entre a grande reportagem e o
documentário. O cenário também muda. Para cada episódio, a
equipe desloca-se a uma diferente localidade do Brasil.
O lugar da constância, em Brasileiros, é a temática. O pro-
grama propõe-se a contar a história de brasileiros, tidos como
cidadãos civis comuns, que usam a profissão ou conhecimentos
particulares para a promoção de ações sociais que visem a in-
tervir positivamente na realidade. Sempre de forma voluntária e
proativa, ainda que os resultados sejam sutis e de pequena reper-
cussão pública.
Uma observação do jornalista Marcelo Canellas, escrita no
site do programa, sintetiza de forma bastante adequada a pro-
posta de Brasileiros:
O jornalismo que eu, Neide Duarte, Edney Silvestre e a equipe de
Brasileiros ambicionamos fazer é o que fala das dores do Brasil
sob a ótica de quem faz o bem. A cada quinta-feira, pretendemos
traçar o perfil de brasileiros muito especiais, gente com tal carisma
e magnetismo pessoal que consegue transformar a realidade em
volta. De repente, o país injusto e desigual com que nos deparamos
é tocado pelo humanismo radical de pessoas anônimas, desinteres-
sadas e de tal forma generosas que dedicam tempo e energia para

8. A cada semana, o programa é conduzido por um dentre três diferentes jornalistas. São eles: Ed-
ney Silvestre, idealizador do programa, que ganhou notoriedade por ser o primeiro correspondente
internacional a chegar ao World Trade Center, na ocasião da colisão de aviões com o edifício, em
11 de setembro de 2001. No ano seguinte, ele voltou ao Departamento de Jornalismo da TV Globo
no Brasil e passou a se dedicar ao tema da cidadania. Neide Duarte, repórter de televisão há 30
anos, uma das pioneiras na cobertura de temas sociais no Brasil. E Marcelo Canellas, um dos mais
premiados repórteres da televisão brasileira, que há mais de 20 anos dedica-se ao que chama de
“Jornalismo Social” (BRASILEIROS, 2010).

42
Brasileiros: na ética e na estética

ajudar os outros. Não se trata de caridade. O caso aqui é de apos-


ta no ser humano, na ideia de que pessoas agora fragilizadas pelo
abandono, pela miséria, pela injustiça ou pela falta de oportunida-
des podem, sim, ser crianças felizes, homens ou mulheres criativos,
inventivos, produtivos (BRASILEIROS, 2010).

Do ponto de vista formal, o programa assume, de fato, a


lógica da contação de histórias. O telespectador é guiado pelo
texto narrado pelo jornalista. E a narrativa se completa com ima-
gens, depoimentos dos entrevistados e entrevistas que lembram
a conversação interpessoal. A preocupação com a beleza plástica
do que é visto, o tom poético9 do que é dito pelo repórter – que
se aproxima da literatura – e o acompanhamento de trilha sonora
também estão presentes em todas as reportagens analisadas10.

AS MARCAS DA EPOPEIA
GREGA EM BRASILEIROS
Ao iniciar esta seção que, conforme indica o título, pre-
tende apontar elementos do estilo literário épico na construção
das reportagens do programa de televisão Brasileiros, considera-
se válido dar primazia à constatação da analogia que se percebe
nas duas formas narrativas analisadas. Assim, frisa-se que, tanto
no texto épico quanto no jornalístico, objetividade e realismo
são valores essenciais. Da mesma forma, em ambos, tolera-se
– e, na maioria das vezes, observa-se – uma coexistência do ob-
jetivo com diferentes graus de subjetividade do enunciador. E o
realismo é reforçado na crueza dos relatos dos entrevistados.
No caso específico do programa jornalístico, constata-se
que seu eixo central é contar a história de pessoas comuns cujas
características específicas e determinados feitos louváveis os per-

9. Que tem enfoque na mensagem. Mais especificamente, nos aspectos estéticos desta.
10. A série é formado por nove episódios. Para fins deste estudo, no entanto, são analisadas as três
primeiras edições do programa. Cada uma delas apresentada por um dos três jornalistas já citados.

43
Mídia e política: caminhos cruzados

mitem serem tidos como heróis. Essencialmente oral, esse dis-


curso é repleto de traços poéticos – como nos poemas heróicos
gregos, tal qual pode ser observado no seguinte trecho: “ainda
está claro. A lua é apenas uma luz pálida, ainda incompleta no
céu. Assim, como a noite. A partir de agora, tudo caminha para o
crescimento: a noite, pra ser mais escura; a lua, pra ser uma esfera
perfeita; a barriga de Camila, pra estar completa”.
Outra característica épica constante nas três edições anali-
sadas é a presença e a exaltação da natureza. Entretanto, perce-
be-se que esse recurso não é explorado verbalmente; são as ima-
gens que dão a dimensão da beleza e da eloquência do ambiente
externo. Além dela, encontra-se a musicalidade. Não podendo
fazer uso de rimas – o que configuraria uma grave transgressão à
redação jornalística e um incômodo ao ouvido do receptor –, os
produtores do programa usam a música para permear a narrati-
va, encerrar as histórias e indicar a passagem de blocos. Tal fato
pode ser interpretado como o emprego estratégico da proprieda-
de sugestiva, característica da linguagem sonora.
Examinando cada uma das três veiculações em separado,
nota-se a predominância de um estilo formal e da exploração
de uma virtude em específico a cada semana. Na edição de
estreia (17/07/2010)11, o programa contou a história de um
professor de balé que mantém uma escola de dança para ado-
lescentes materialmente carentes, numa pequena cidade do in-
terior do Ceará. Aproveitando-se da geografia local, a equipe
do jornalístico fez uso abundante de imagens da natureza, da
qual se destacaram o sol e o mar. Ainda no plano formal, essa
reportagem mostrou-se a mais próxima do telejornalismo tra-
dicional – estruturada a partir do trinômio – off, sonora, pas-
sagem e revelando, em termos comparativos, uma recorrência
maior ao primeiro elemento.

11. Disponível em http://brasileiros.globo.com/programa/2010/06/18/ex-dancarino-do-municipal-


abre-escola-de-danca-em-paracuru-no-ceara/

44
Brasileiros: na ética e na estética

É curioso que, logo de início, o repórter Edney Silvestre


cita uma característica pouco louvável do personagem: a teimo-
sia. No entanto, tal palavra pode ser entendida como persistên-
cia, uma qualidade. Mas a grande virtude de Flávio, o “herói” da
edição inaugural é a coragem com que enfrenta os sacrifícios que
a vida impõe. Nascido pobre e em uma cidade de poucos recur-
sos, ele ainda teve de enfrentar o preconceito da comunidade, da
família e, em especial do pai – que chegou a lhe dar uma surra de
chicote, na tentativa de coagi-lo a parar de dançar.
A mensagem passada pela história é a de que todo herói
não pode trilhar um caminho vitorioso sem aceitar, enfrentar
e superar sacrifícios. Aqui, cabem como exemplo, construções
textuais do jornalista, para quem Flávio – que, no passado, che-
gava a dormir com as roupas cotidianas, calçados e mochila nas
costas, pois estudo, trabalho e ensaios lhe consumiam muito
tempo – precisou “abandonar tudo o que tinha construído para
viver, novamente, no lugar onde tinha passado tanta dor e hu-
milhação”. Ou declarações de alguns entrevistados, como: “na
vida da gente, a gente só tem as coisas com sacrifício” e “estou
correndo atrás de um sonho”.
A segunda edição (24/07/2010)12 apresentou o caso de
Claudia Vidigal13, uma psicóloga que realiza trabalho voluntário
em abrigos para adolescentes, na cidade de São Paulo. Seguin-
do preceitos da psicanálise, ela ajuda os abrigados a construírem
álbuns biográficos, que contemplam suas vidas integralmente,
incluindo episódios negativos.
Formalmente, essa é a edição que mais foge aos padrões
do telejornalismo convencional: a personagem principal apre-
senta-se ao público em primeira pessoa; e os entrevistados ga-

12. É possível acessá-la no endereço http://brasileiros.globo.com/programa/2010/06/25/projeto-


ajuda-criancas-de-abrigos-de-sao-paulo-a-escrever-a-propria-historia.
13. Em momento algum, a entrevistada mostra supostos defeitos e afirma, reiteradas vezes, ser
uma pessoa extremamente feliz.

45
Mídia e política: caminhos cruzados

nham voz por meio de entrevistas que mais parecem conversas


corriqueiras com o repórter Marcelo Canellas. Este, aliás, é, dos
três repórteres do programa, o que mais denota subjetividade e
envolvimento pessoal com o que narra.
Outra peculiaridade é encontrada na ambientação. Ao con-
trário do ocorrido na edição anterior, na história de Cláudia, pre-
valecem os cenários internos. Apenas no começo da reportagem
cenas da capital paulista são mostradas, em ritmo acelerado e
com câmera baixa, dando ideia de opulência. Uma escolha que
não é gratuita. No decorrer da narrativa, é possível perceber a
intenção de mostrar a discrepância de valor entre uma biogra-
fia individual e uma grande cidade. Logo de início, o jornalista
questiona: “que importância tem a vida de uma única pessoa na
rotina de uma cidade como São Paulo?”. A natureza, nesse caso,
se limita ao nome do abrigo: Raio de Sol.
É nesse ponto que a poesia épica grega emerge da repor-
tagem, lembrando de um atributo fundamental: a consagração
daquilo que é considerado insignificante. Essa sim é a tônica da
edição. Mas, junto dela, outra característica aparece com força o
realismo: Marcelo Canellas apresenta ao público os cinegrafistas
e incentiva as crianças abrigadas a brincarem com os equipamen-
tos, como a câmera e o microfone. É o lado real de uma história
contada – pretensamente – tal como ela é.
Uma ressalva: ao falar sobre quando foi buscar o filho –
deixado no abrigo por oito anos – para que ele voltasse a viver
ao lado dela, uma mãe conta que, ao sair da instituição, o menino
chorou muito, mas “não na frente de todo mundo”. Percebe-se,
assim, a ideia de que, mesmo mortal, um herói não chora.
A terceira e última edição analisada (01/07/2010)14
mostrou o trabalho social desenvolvido por Raquel Barros,
uma psicóloga que fundou uma comunidade para ajudar jo-

14. O material pode ser assistido em http://brasileiros.globo.com/programa/2010/07/02/psicologa-


ajuda-jovens-gravidas-em-situacao-de-risco-ou-abandonadas-no-interior-de-sp/

46
Brasileiros: na ética e na estética

vens mães em situação de vulnerabilidade. Formalmente, a


reportagem parece um misto das edições anteriores: mistura
técnicas telejornalísticas e documentais e oscila entre o am-
biente interno e externo.
A natureza marca forte presença. Várias vezes a repórter
Neide Duarte faz referência à lua, que tanto dá nome ao lugar
– Comunidade Lua Nova – como se presta a metáforas com o
ventre das gestantes. Entrevistadora e entrevistada caminham
pelo local, entrando nas casas das mães em questão, num cons-
tante câmbio entre interior e exterior. Além disso, duas belas
imagens merecem menção: uma obtida na fusão entre a lua e
a barriga de uma adolescente grávida; outra, flagrante de um
arco-íris que se formou no céu durante as gravações.
Apesar disso, pode-se dizer que, nessa história, a nature-
za é secundária, pois as protagonistas são as casas construídas
pelas próprias mulheres. Tais construções simbolizam a virtude
mais evidenciada na edição: a força; seja para construir, para re-
construir ou para recolher os cacos. A exaltação desse atributo
pode ser verificada em frases como: “uma casa em construção
é como uma esperança inacabada. Tudo ainda a poderá vir a
ser”, que abre o programa, e “e, ao reconhecer o poder em
quem aparenta fragilidade, Raquel mostra que a transformação
é possível”, ditas por Neide Duarte. Ou, ainda, na fala das en-
trevistadas, das quais uma declara: “eu me levantei totalmente.
Hoje, eu sou uma pessoa erguida; no bom, com dificuldades,
mas eu sou uma pessoa erguida”.
Novamente, assim como nos dois casos anteriores, o re-
alismo é bastante explorado por meio dos relatos dos entrevis-
tados. Impressiona a fala de uma jovem de 18 anos que sofreu
abuso sexual pelo padrasto, engravidou e foi expulsa da casa pela
mãe. Ao saber que esta adoecera, voltou para ajudá-la, mas mes-
mo assim era agredida pela mulher, que dizia odiá-la. Ao narrar
esses fatos sem qualquer indício de constrangimento, a moça de-
clarou: “eu peguei e falei assim: é minha mãe, né. Foi ela que me
pôs no mundo, e, por ela, eu mato e morro”.
47
Mídia e política: caminhos cruzados

No entanto, diferentemente dos outros “heróis”, Raquel


Barros aparenta defeitos, mostrados de forma implícita. A psicó-
loga, que é definida pela jornalista como “uma diplomata numa
zona de conflitos” é, de longe, a mais autoritária de todas as
personagens. Além disso, em algumas vezes, aparenta cansaço,
revela estar confusa e põe em dúvida a efetividade do próprio
trabalho de voluntariado.
Para finalizar, destaca-se uma característica comum aos
três empreendedores sociais e bastante reiterada no programa:
a renúncia. Flávio abriu mão do emprego de professor na Euro-
pa – dava aulas de balé na Suíça e na Polônia – para se dedicar
à escola gratuita do interior nordestino. Cláudia, pertencente a
uma família rica e de renome no mercado financeiro, declinou
de todo luxo e conforto que o dinheiro poderia lhe proporcionar
para trabalhar em prol dos menos favorecidos. Raquel trocou
a estabilidade do trabalho em uma ONG italiana pelo projeto
solitário e incerto, no interior paulista.
Propagando o desprendimento dessas pessoas, Brasileiros
parece dizer ao telespectador que todo herói deve ser abnegado.
Não pode refutar-se a fazer o bem pelo próprio bem, sempre e a
qualquer um, recebendo em troca apenas a satisfação proporcio-
nada pela solidariedade e a certeza de, assim, ser um brasileiro.
A partir do trabalho de comparação e análise que com-
põe este texto foi possível confirmar a natureza intencional e,
por isso, política da comunicação, em especial a massiva. No
que se refere estritamente ao objeto analisado, constatou-se o
quanto esse recorre à ficcionalização e à espetacularização de
histórias reais para difundir um discurso essencialmente moral
e normativo.
O programa propõe-se a contar a trajetória de pessoas co-
muns, mas extremamente virtuosas, que realizam trabalhos lou-
váveis de ajuda ao próximo. Assim, é possível estabelecer uma
relação de analogia entre o discurso jornalístico e a narrativa
épica grega – especialmente o poema heróico. Ambos estão ali-
cerçados na construção de mitos, na trajetória heroica realista e
48
Brasileiros: na ética e na estética

objetiva e na afirmação de valores como força e coragem. Além


disso, estão em consonância com a natureza íntima da mensa-
gem televisiva na sua inclinação à contemplação do Outro.
Obviamente, não se pode deixar de considerar que essa
espécie de transposição da poesia oral grega para a televisão im-
pele modificações que a fazem viável. Contudo, as características
comuns ao meio televisivo realçam ainda mais a dimensão ética
das escolhas estéticas. Afinal, cada imagem, som ou fala – seja
por sua beleza plástica ou por sua força expressiva – reforça o
intento de fazer com que o telespectador identifique-se com os
personagens aos quais assiste, admire sua história e transforme
essa admiração em ação transformadora.
Por fim, destaca-se que, em todas as três edições analisa-
das do programa, os imperativos éticos que mais se sobressaem
são a solidariedade e a ação voluntária desinteressada. Ambas,
em essência, remetem à ideologia cristã e ao modelo político e
econômico liberal, pautado nas realizações individuais e na dimi-
nuição da interferência estatal. Coincidentemente ou não, essas
duas formas de agir e pensar são características da emissora ide-
alizadora do produto estudado.

49
Mídia e política: caminhos cruzados

REFERÊNCIAS

BLUMENBERG, Hans. Antropological approach to the contemporany


significance of rhetoric. Phylosofy: end or transformation, p. 428-458,
1967.
BRASILEIROS <www.brasileiros.globo.com>. Acesso em 19. jul. 2010.
COBB, Roger W. & ELDER, Charles D. Communication and public
policy. In: NIMMO, D. D. & SANDERS, K. R. (Orgs). Handbook at
political communication. Bervely Hills: Sage Publications, 1981.
FORSTER, E. M. Aspectos do Romance. Porto Alegre: Ed. Globo, 1969.
GOMES, Mayra. Poder no Jornalismo: discorrer, disciplinar, controlar.
São Paulo: Hacker Editores, Edusp, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Comunicação política na sociedade mediática: o
impacto da teoria normativa na pesquisa empírica. Revista Líbero, São
Paulo, n. 21, p. 9-20, jun. 2008.
OLIVEIRA, Jair Antonio de. Comunicação e Educação: uma visão
pragmática. Curitiba: Protexto, 2002.
OLIVEIRA, Jair Antonio de. Os sentidos da linguagem. Revista Brasileira
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MAXWELL, Mc Combs. Um panorama da Teoria do Agendamento, 35
anos depois de sua formação. São Paulo: 2008. Revista Intercom, São
Paulo, v. 31, n. 2, p. 205-221, jul/dez, 2008. Entrevista concedida a José
Afonso da Silva Junior, Pedro Paulo Procópio e Mônica dos Santos Melo.
SOMMA NETO, João. O poder da imagem ou a imagem do poder? A
política no telejornalismo. In: COMUNICAÇÃO: reflexões, experiências,
ensino. Curitiba: Universidade Positivo, v. 2, n.1, 2009. Semestral.
SZPACENKOPF, Maria Izabel Oliveira. O olhar do poder: a montagem
branca e a violência no espetáculo telejornal. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

50
Entre o silêncio e o ataque
os interesses privados e a
cobertura midiática da Confecom
Jocelaine Josmeri Dos Santos1

INTRODUÇÃO
A mobilização em torno da realização de uma conferência
nacional para se debater a comunicação no Brasil não é recente.
Um dos principais defensores da realização do debate é o Fórum
Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que
desde a década de 1990, já defendia a ampliação do debate sobre
a comunicação no país. O FNDC intensificou os trabalhos pela
conferência em 2006, durante a XIII Plenária do FNDC, onde
ficou decidido que o Fórum elaboraria uma proposta de modelo
de conferência para a comunicação.
Do debate nacional participaram cerca de 1,8 mil delegados,
indicados nas etapas estaduais preparatórias, representando orga-
nizações da sociedade civil empresarial (40% do total), da socieda-

1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade


Federal do Paraná pela linha de Comunicação, política e atores coletivos.

51
Mídia e política: caminhos cruzados

de civil não empresarial (40%) e das três esferas de governo (20%).


Foram aprovadas 633 propostas, sendo 569 nos 15 grupos temáti-
cos de trabalho e 64 na Plenária final. Outras 15 foram rejeitadas e
29 não apreciadas porque não houve tempo hábil para serem lidas
no plenário em razão do encerramento da 1ª Confecom.
Ainda durante a fase preparatória da Confecom, as
principais entidades representativas do setor empresarial da
comunicação decidiram abandoná-la. Em agosto de 2009,
a Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão
(Abert), Associação Brasileira de Internet (Abranet), Asso-
ciação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação
dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI Brasil),
Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) e As-
sociação Nacional de Jornais (ANJ) divulgaram por meio de
nota a decisão de desligamento da Comissão Organizadora
Nacional da Confecom.
Na época, as entidades afirmaram que tinham “como pre-
missa a defesa dos preceitos constitucionais da livre iniciativa,
da liberdade de expressão, do direito à informação e da legalida-
de” e que justamente esse posicionamento estaria sendo enten-
dido “como um obstáculo à confecção do regimento interno e
do documento-base de convocação das conferências estaduais,
que precederam a nacional”2. Apenas a Associação Brasileira de
Telecomunicações (Telebrasil), que representa o setor oficial e
privado das telecomunicações, e a Associação Brasileira de Ra-
diodifusão (Abra), formada apenas pelas emissoras de TV Band
e Rede TV, continuaram na Confecom.
Até mesmo a participação da Abra na Confecom esteve
a ponto de ruir, uma vez que a entidade ameaçou abandonar as
discussões caso não fossem aprovadas mudanças no regimento
interno para as votações.

2. A versão integral da nota está disponível no endereço http://www.telesintese.com.br/index.


php/plantao/12828.

52
Entre o silência e o ataque

COBERTURA MIDIÁTICA
Os conflitos de interesse na organização da Confecom
também se refletiram na cobertura midiática do evento, que sal-
vo raras exceções foi bastante insipiente nos veículos da grande
mídia. A TV Globo, por exemplo, divulgou nota no Jornal Na-
cional (JN) durante as edições dos dias 14 e 17 de dezembro de
2009 deixando bem claro seu posicionamento. Na nota, é reite-
rado o apoio do veículo às entidades patronais, que decidiram
não participar da Confecom. No texto, a emissora alega que
A representatividade da Conferência ficou comprometida sem a
participação dos principais veículos de comunicação do Brasil.
Há quatro meses, a Associação Brasileira de Emissoras de Rá-
dio e Televisão, a Associação Brasileira de Internet, a Associação
Brasileira de TV por Assinatura, a Associação dos Jornais e Re-
vistas do Interior do Brasil, a Associação Nacional dos Editores
de Revistas e a Associação Nacional de Jornais divulgaram uma
nota conjunta em que expõem os motivos de terem decidido não
participar da Conferência. Todos consideraram que as propostas
que estavam esboçadas na ocasião, e que acabaram mesmo sendo
aprovadas, estabelecem uma forma de censurar os órgãos de im-
prensa, cerceando a liberdade de expressão, o direito à informa-
ção e a livre iniciativa, todos previstos na Constituição3.

Toda a cobertura do JN sobre a Confecom (entre 14/12 e


18/12/2009) se resumiu apenas à leitura dessa nota. Nada mais
foi divulgado. A opção por essa espécie de silenciamento demons-
tra um dos “poderes” da mídia, como lembra Gomes (2003), que
pode atuar como disciplinadora do que será mostrado:

Enquanto mostram, as mídias disciplinam pela maneira de mos-


trar, enquanto mostra ela controla pelo próprio mostrar. É em
relação à disciplina que se diz que se não passou pelas mídias não
há poder de reivindicação; é em relação a controle que se diz que
se não passou pelas mídias não existe (GOMES, 2003, p. 77).

3. A nota pode ser lida no endereço http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,10406-


p-17122009,00.html.

53
Mídia e política: caminhos cruzados

Já a Rede Bandeirantes produziu bem mais material sobre


o evento. Por meio da ferramenta de busca do site e-BAND, site
oficial do Grupo Bandeirantes de Comunicação, é possível en-
contrar 44 resultados sobre a Confecom, todos inseridos entre
os dias 14/12 e 19/12/2009. Nesse material estão inclusos tre-
chos de programas radiofônicos, matérias impressas, entrevistas
e, por fim, cinco reportagens jornalísticas televisivas.
Como o foco da análise é o material telejornalístico produ-
zido pela emissora foram selecionados para a análise 11 entrevis-
tas, dois trechos de discursos e cinco reportagens. A análise foi
feita basicamente levando-se em conta os conteúdos e as formas
de apresentação adotadas pela emissora, bem como as caracterís-
ticas das fontes utilizadas nas entrevistas e sonoras.
No caso das entrevistas, todas tiveram duração média de
50 segundos e versaram principalmente sobre os possíveis bene-
fícios da Confecom para sociedade brasileira. Das 11 entrevistas,
cinco foram com representantes de entidades (Fenaj, CUT, As-
sociação Vermelho, Sindicato dos Trabalhadores em Telecomu-
nicações e Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária),
uma com o presidente da própria Confecom e outras três com
representantes do setor empresarial (Telebrasil e Abra) e duas
com diretores da própria Rede Bandeirantes. Houve pouco es-
paço para a exposição do posicionamento das entidades partici-
pantes, com exceção para a entrevista feita com o presidente da
Fenaj, que defende abertamente a regulamentação da profissão
de jornalista. Nas demais entrevistas prevaleceram considerações
gerais sobre a validade do evento para a sociedade brasileira.
Se nas entrevistas buscou-se certo equilíbrio na distribui-
ção das falas e valorização da pertinência do evento, nos trechos
de discursos da abertura do evento pelo presidente Lula e pelo
presidente da Abra, editados e disponibilizados pela emissora
no site, evidencia-se a preocupação em criticar o atual sistema
de regulamentação da comunicação, em especial das TVs por
assinatura. No primeiro trecho de entrevista, com duração de
50 segundos, Lula fala sobre a necessidade de mudanças da le-
54
Entre o silência e o ataque

gislação brasileira no setor. No segundo trecho, de 56 segundos,


João Carlos Saad, presidente da Abra e da Rede Bandeirantes,
faz críticas ao atual modelo de TV paga e defende que grupos
que produzem para canais de TV por assinatura não deveriam
ser responsáveis por sua distribuição. Em ambos os trechos são
evidentes os sinais de cortes e edições no material.
Nas cinco matérias analisadas três pontos chamam a aten-
ção. O primeiro deles se refere à crítica direta às entidades patro-
nais que não participaram da Confecom. Em todas as matérias
há em algum momento a informação de que as oito entidades
patronais foram convidadas a participar da Conferência, mas seis
resolveram não participar. Em nenhum momento o nome das
entidades é mencionado. Em contrapartida, também é ressaltado
em todas as matérias que a Abra e a Telebrasil foram as únicas
entidades que participaram do debate. Outro ponto relevante é a
insistência da apresentação das propostas defendidas pela Abra.
As cinco principais propostas defendidas pela Abra (cum-
primento das leis do setor, liberdade de expressão editorial e
comercial, conteúdo nacional, flexibilização dos horários de
transmissão do programa Voz do Brasil e multiprogramação nas
TVs abertas e digitais) são apresentadas em três das matérias
analisadas de forma quase didática, com a utilização de quadros
para visualização e sonoras explicativas para cada proposta. Na
penúltima reportagem produzida sobre a Confecom, são apre-
sentadas algumas das propostas aprovadas durante a Conferên-
cia, sendo que quatro delas correspondem aos posicionamentos
defendidos pela Abra (flexibilização da Voz do Brasil, garantia de
distribuição de conteúdos nacionais, liberdade de expressão co-
mercial e multiprogramação nas TVs abertas). Essas propostas
são mostradas como verdadeiras “conquistas” de toda sociedade
e não mais apenas como posicionamentos da própria Abra.
Também é relevante ressaltar a crítica feita às propostas que
de alguma maneira contrariavam o posicionamento da Abra. Na
penúltima matéria (16/12/2009), é mencionada a suposta “preo-
cupação” dos participantes da Confecom com a criação do Con-
55
Mídia e política: caminhos cruzados

selho Nacional de Comunicação, que poderia ferir o direito à liber-


dade de expressão e que contrariaria até a Constituição Brasileira.
Logo após o off explicativo do repórter, o material traz uma sonora
com o presidente do Fórum Nacional pela Democratização da Co-
municação defendendo a liberdade de expressão. Outra proposta
considerada “nociva”, a criação do Fundo Nacional e Estadual de
Comunicação Pública, aparece na matéria seguinte (17/12/2009),
apenas como “mais um imposto” proposto pelos “movimentos
sociais” presentes na Confecom. Uma sonora com um represen-
tante da Telebrasil enfatiza o caráter “absurdo” da proposta.
É interessante notar que o interesse privado norteou tanto
a cobertura da Band quanto o silenciamento do Jornal Nacional.
Ambos atuaram de acordo com objetivos bem definidos. Para
Szpacenkopf (2003), o uso de técnicas e estratégias na constru-
ção de uma matéria ou discursos jornalístico constitui-se no que
a autora chama de montagem branca. Embora ela aplique esse con-
ceito para explicar o caráter de mercadoria da matéria jornalísti-
ca, seus dispositivos podem ser usados para a compreensão de
qualquer discurso midiático construído com vistas a obtenção de
objetivo específico. Nas palavras da autora:
Mesmo as transmissões “ao vivo” não escapam de apresentar
uma realidade em que interferem os ângulos das tomadas, a
iluminação, os destaques e o foco. As leis próprias que regem
as atividades telejornalísticas permitem que sejam decididas
realidades, fatos, pessoas que serão destacadas, dando um
poder maior às decisões tomadas. Essas decisões interferem
não só na construção da notícia, mas também na possibilidade
de profissionais exercerem o poder de agendar uma realidade
(SZPACENKOPF, 2003, p. 208).

Um aspecto interessante é que quando os veículos de co-


municação estão trabalhando em prol de seus próprios interesses
há o afastamento do que pode chamar de “comportamento pa-
drão” da mídia, como a prática do que Bourdieu (1997) chamou
de circulação circular da notícia, em que os jornais acham que têm o
dever de veicular as mesmas informações que seus concorrentes.
56
Entre o silência e o ataque

Assim, seus conteúdos, basicamente iguais (até por utilizarem-


se das mesmas agências de notícias) os tornariam praticamente
imunes a outras fontes e/ou informações. Ora, não foi isso o
que aconteceu com os veículos analisados, uma vez que pratica-
mente não houve cobertura da Confecom pelo JN.
Bastante crítico em relação aos processos e práticas que
permeiam a produção televisiva, para Bourdieu (1997) empresas
investem dinheiro em informações superficiais e espetaculari-
zadas com a finalidade de angariar um vasto público. Além da
origem das informações ser a mesma, a prática prioriza dois ex-
tremos. A primeira é o princípio que consiste em atrair a atenção
do público para fatos cuja natureza possa interessar a todo mun-
do. A esses fatos, que se caracterizam pela frivolidade, chama de
fatos-ônibus. Eles não devem chocar, não devem envolver disputa,
não devem dividir opiniões, mas, ao contrário, formar consenso.
No caso da cobertura (ou ausência de cobertura) da Con-
fecom, fica difícil encaixá-la como um fato-ônibus, embora as dis-
cussões apresentadas fossem de incontestável importância, uma
vez que concentraram discussões e decisões que afetam direta ou
indiretamente toda população.
Outro ponto destacado pelo autor é o caráter dramático
da televisão, uma vez que mediante a imagem ela pode colocar
em cena um acontecimento e exagerar-lhe a importância, a gra-
vidade, o caráter dramático, trágico. No material analisado essa
dramaticidade aparece em momentos distintos, tanto na Band
quanto na Globo.
Na Bandeirantes é usada a dramaticidade ao se apresentar
os possíveis “perigos” da Confecom ao aprovar a criação do
Conselho Nacional de Comunicação, que supostamente repre-
sentaria um risco ao direito à liberdade de expressão e que con-
trariaria até a Constituição Brasileira. Também é com um tom
dramático que a mesma emissora anuncia a “nociva” do Fundo
Nacional e Estadual de Comunicação Pública, colocado como
“mais um imposto” proposto pelos “movimentos sociais” pre-
sentes na Confecom.
57
Mídia e política: caminhos cruzados

Já a dramaticidade do JN se revela na solenidade em que


a nota sobre a Confecom é lida pelos apresentadores Willian
Bonner e Fátima Bernardes, cuja entonação lembra o anúncio
de grandes tragédias.

MÍDIA IMPRESSA
Os veículos impressos analisados também deixaram bem
claro seus posicionamentos. No caso do jornal O Estado de S.
Paulo, a cobertura do evento contou com 12 matérias e mais
dois editoriais no período de 14/12 a 18/12/2009. Para esta
análise serão trabalhados apenas os editoriais, uma vez que eles
definem o posicionamento do jornal frente ao evento. Mes-
mo assim é interessante destacar que nas matérias, bastante
sucintas na maioria dos casos, prevalece uma exposição mais
superficial das discussões, com vários momentos de crítica às
propostas de movimentos sociais e segmentos “radicais”, que
supostamente teriam eliminado a possibilidade de um deba-
te democrático com os empresários ao defenderem propostas
como o controle social da mídia.
O Estado de S. Paulo publicou dois editoriais sobre a
Confecom durante o período analisado. O primeiro (14/12),
intitulado Os perigos da Confecom4, no qual são ressaltados, mais
uma vez, a ameça à liberdade de imprensa representada pela
Conferência. Nota-se também que há a tentativa de se justifi-
car a ausência das entidades patronais na Confecom, de modo
similar ao que o JN fez em sua nota. Outro ponto que chama
a atenção é o tratamento dado a ONGs e sindicatos, que são
generalizados de forma pejorativa, como se suas atuações e in-
teresses fossem nocivos:

4. A versão online deste editorial está disponível em http://www.estadao.com.br/estadaodeho-


je/20091216/not_imp482665,0.php.

58
Entre o silência e o ataque

Mas a sua profissão de fé na liberdade de imprensa não impedirá


que os inimigos dela desistam de usar a Conferência para impor
uma deturpação autoritária do termo “construção de direitos e de
cidadania” que consta do tema oficial da reunião. Precisamente
por isso, seis das oito entidades que representam empresas de co-
municação, como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio
e Televisão (Abert) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ),
decidiram ainda em agosto abandonar a Confecom. A partir do
que se passou durante a confecção do estatuto da Conferência,
previram que sindicatos e ONGs, com o entusiástico endosso
do PT e a aprovação tácita de setores do governo, tratariam de
aproveitá-la para submeter as empresas de mídia a um verdadeiro
auto de fé, de modo a justificar os seus intentos intervencionistas.

No segundo editorial sobre o tema (18/12), com o suges-


tivo título A exumação de uma ameaça5, o jornal traz uma avaliação
geral da Confecom. No texto, fala-se da atuação dos “movimen-
tos sociais” (assim mesmo, entre aspas no editorial), que teriam
participado do evento “com a ideia fixa de se utilizar dele para le-
var adiante suas recorrentes tentativas de arrear a imprensa livre”.
Mais uma vez o argumento da ameaça à liberdade de imprensa.
Em seguida, o texto procura demonstrar que uma das pro-
postas aprovadas durante a Confecom, a criação do Conselho
Nacional de Jornalismo (CNJ), é extremamente “nefasta” para
a sociedade, uma vez que também funcionaria como um me-
canismo de controle da mídia e, consequentemente (segundo a
lógica do jornal e da maioria dos grandes veículos da mídia), uma
ameaça à liberdade de imprensa.
Escaldados pelo fracasso anterior, os autores da proposta – aprovada
por consenso na Confecom – cuidaram desta vez de expurgar do seu
texto os aspectos mais claramente nefastos da versão original. Fica-
ram esmaecidas, por exemplo, as passagens que conferiam ao CNJ a
prerrogativa de “orientar” a produção jornalística no âmbito das em-
presas de comunicação. Segundo o vice-presidente da Fenaj, Celso

5. A versão online deste editorial está disponível em http://www.estadao.com.br/estadaodeho-


je/20091218/not_imp484036,0.php.

59
Mídia e política: caminhos cruzados

Schröder, o Conselho fiscalizará o trabalho do jornalista – uma for-


mulação suficientemente vaga para comportar intromissões as mais
variadas nos procedimentos que regem esse trabalho no dia a dia das
redações, dando indiretamente à Fenaj, que decerto tratará de con-
trolar a composição do colegiado, uma soma de poderes espúrios.

Também há menção no texto às supostas similaridades


existentes entre as propostas aprovadas na Confecom e as polí-
ticas restritivas à mídia e curso em alguns países latino-america-
nos. Segundo o texto,
sob uma ou outra roupagem, as restrições à liberdade de imprensa se
intensificaram assustadoramente nos países vizinhos - da Argentina
à Venezuela, passando pela Bolívia e o Equador. Mais uma razão
para levar a sério a nova sortida da Fenaj, em que autoritarismo e cor-
porativismo se combinam de forma ominosa para manietar a mídia.

Estranhamente, ou nem tanto, no editorial do jornal O Glo-


bo (18/12) notam-se basicamente os mesmos argumentos utili-
zados nos editoriais do Estado de S. Paulo. O texto, cujo título é
Cartas marcadas, começa com a justificativa para a não participação
das entidades patronais na Confecom, alegando que os empresá-
rios teriam condicionado sua participação no evento à retirada da
pauta de discussões de propostas inconstitucionais, ou, nas pala-
vras do próprio jornal, que “vão contra a liberdade de imprensa
e expressão, procuram intervir nas redações e criar obstáculos à
ação da iniciativa privada nos meios de comunicação”.
Em seguida, o texto define a Confecom como um “wishful
thinking em que grupos de esquerda, corporações sindicais, ONGs,
movimentos ditos sociais e similares desenharam o seu país ideal,
na tentativa de influenciar a sociedade”, demonstrando um claro
descaso com o evento. E também no editorial de O Globo, há a
crítica à criação do Conselho Federal de Jornalismo, chamado de
(...) uma entidade paraestatal sugerida no primeiro mandato de
Lula, com poderes para cassar registro de profissionais, a serem
julgados por algum “conselho de ética”, certamente composto por
comissários, algo inspirado no livro “1984”, de George Orwell.

60
Entre o silência e o ataque

Outro ponto em comum com o editorial do Estado de S.


Paulo é a referência aos projetos de controle da mídia em outros
países latino-americanos. O texto cita a Lei de Meios, aprovada pelo
Congresso argentino e que teria por objetivo “desmontar empre-
sarialmente os grupos de comunicação mais fortes do país”, e o
Equador, que também teria um projeto de lei similar em tramitação.
É interessante notar a finalização do texto, quando o jornal
coloca-se como paladino dos interesses da sociedade. Nas pala-
vras de O Globo:
No Brasil, as instituições são fortes e sólidas o suficiente para
defender a liberdade de imprensa e expressão, bases da democra-
cia. (...) Mesmo que as investidas sejam feitas sob o disfarce de
“controles sociais” ou outros eufemismos.

Essa “defesa” da sociedade serve como uma forma de masca-


rar os reais interesses do veículo. Devemos lembrar que os veículos
de comunicação são também empresas, cujos interesses econômi-
cos podem ser prejudicados efetivamente caso ocorram mudanças
profundas nas políticas de comunicação brasileiras. Embora possa
se questionar eticamente o comprometimento do veículo com inte-
resses privados, não se pode esquecer que numa sociedade demo-
crática qualquer cidadão ou entidade tem o direto de atuar como
ator político e defender seus próprios interesses.
No caso dos veículos analisados, apenas no caso da cobertura
da Rede Bandeirantes os interesses particulares foram explicitados
pelo próprio veículo, ao divulgar e defender abertamente as propos-
tas da Abra. Os demais preferiram usar a bandeira genérica da de-
fesa à liberdade de imprensa e questionar a validade da Confecom.

ARENA E ATOR
Ainda há muitos vazios teóricos sobre a relação entre mí-
dia e política. Basta lembrar que os estudos na área são recentes-
no Brasil. Para autores como Miguel (2000) e Rubim; Azevedo
(1998), tais estudos surgem a partir da década de 1970, mas só
61
Mídia e política: caminhos cruzados

após a abertura política e a redemocratização do país do início


do anos 1980 é que as pesquisas na área ganham força. A eleição
presidencial de 1989 teria dado um impulso ao tema, ajudando
“a conformar um campo de estudos sobre comunicação e polí-
tica no país, perpassado por olhares sintonizados com esta nova
circunstância de sociabilidade midiatizada”.
Mas mesmo com o aumento no número de pesquisas,
segundo Miguel (2000), os meios de comunicação não são
colocados no cerne das discussões, aparecendo apenas como
elementos de menor importância. Para o autor, em primeiro
lugar, isso seria reflexo direto da visão reducionista que per-
cebe a comunicação como mera informação, como “provi-
mento de dados acurados sobre a realidade”, que poderiam
ter algum papel nas decisões eleitorais, mas que não preci-
sariam ser analisadas detidamente, pois seriam apenas mais
um canal de informação (dados) disponível. Tal visão esquece
totalmente a importância dos meios de comunicação na for-
mação de representações da realidade, que por sua vez inter-
ferem nas práticas individuais.
Também seria problemática a redução da política demo-
crática a um mero processo de escolha, em que se eliminam to-
talmente a construção de vontades e interesses coletivos, uma
vez que o processo de formação das preferências que se mani-
festam na hora do voto são consideradas apenas na esfera priva-
da. Miguel (2000, p. 57) alerta que “o aspecto comunicativo da
atividade política é esvaziado. (...) Toda a atividade política que é
esvaziada por uma visão de mundo que a coloca como absoluta-
mente secundária em relação à esfera privada”.
Por esses fatores, Miguel (2000, p. 66) considera funda-
mental que a mídia colocada “numa posição central na arena
política”, uma vez que “os meios de comunicação são os prin-
cipais canais de acesso dos cidadãos às informações de que
precisam para agir na esfera pública” e também porque são o
“principal instrumento dos líderes políticos para a divulgação
de suas mensagens”.
62
Entre o silência e o ataque

Ainda é preciso notar que os meios de comunicação não de-


vem ser vistos apenas como canais ou arenas para o debate políti-
co, mas também atores políticos e econômicos no sentido em que
defendem seus próprios posicionamentos e interesses. Na história
da mídia brasileira há diversos exemplos dessa atuação política.
No caso da TV Bandeirantes, a insistência em defen-
der os posicionamentos da Abra, entidade formada por ela e
apenas mais um veículo de comunicação e presidida por João
Carlos Saad, também presidente do Grupo Bandeirantes, e o
quase aparente descaso em tratar das propostas das outras en-
tidades envolvidas na Confecom evidencia que a existência de
interesses bem claros. Já a influência dos interesses privados
na produção dos outros veículos analisados é mais difícil de
se identificar, mas pode ser exemplificada na tentativa de des-
qualificação dos debates da Confecom (que contaram com re-
presentantes de todos os segmentos da sociedade) e no ataque
a todas as propostas que supostamente poderiam colocar em
jogo a “liberdade de imprensa”, ou seja, à não-regulamentação
social dos veículos.
Como já foi dito, é incontestável que os veículos de co-
municação podem defender seus posicionamentos econômicos
e políticos. O que se pode questionar é o mascaramento desses
interesses particulares em interesse de todos.
Quando o veículo assume seu posicionamento claramente,
o leitor/espectador já tem ao menos uma pista de como ler/
assistir o material veiculado. Mas dificilmente isso ocorre e o que
se vê são discussões fragmentárias, parciais ou mesmo inexis-
tentes sobre um tema que afetará diretamente sua relação futura
com os meios de comunicação.
Interessante notar ainda que ao assumir a defesa dos seus
interesses os veículos dão-se o direito de quebrar ou modificar
princípios, que sabemos serem utópicos, mas que ainda sim são
usados pelos próprios veículos de comunicação para caracterizar
o “bom jornalismo”, como imparcialidade e objetividade. Vale
quebrar as regras, desde que seja em interesse próprio.
63
Mídia e política: caminhos cruzados

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.


ESTADO DE S.PAULO. A exumação de uma ameaça. Jornal O Estado
de São Paulo: São Paulo, 18 de dezembro de 2009. Disponível em <http://
www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091218/not_imp484036,0.php>.
Acesso em 10 jun 2010.
ESTADO DE S.PAULO. Os perigos da Confecom. Jornal O Estado de
São Paulo, São Paulo, 16 de dezembro de 2009. Disponível em <http://
www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091216/not_imp482665,0.php>.
Acesso em 10 jun 2010.
GOMES, Mayra. Poder no Jornalismo: discorrer, disciplinar, controlar.
São Paulo: Hacker Editores, Edusp, 2003.
JORNAL NACIONAL. Conferência de Comunicação debate controle
social da mídia e nova lei de imprensa. Disponível em <http://jornalna-
cional.globo.com/Telejornais/JN/0,,10406-p-14122009,00.html>. Aces-
so em 10 jun 2010.
LIMA, Venício de. Mídia: teoria e política. São Paulo: Fundação Per-
seu Abramo, 2001.
MIGUEL, Luis Felipe. Um ponto cego nas teorias da democracia: os
meios de comunicação, in: Revista Brasileira de Informação Biblio-
gráfica, nº49, 1º semestre de 2000.
O GLOBO. Cartas Marcadas. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, RJ, 18 de
dezembro de 2009. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/
mat/2009/12/18/cartas-marcadas-915272564.asp>. Acesso em 10 jun 2010.
RUBIM, Antonio Albino Canelas (org.) Mídia e política no Brasil. João
Pessoa: Editora Universitária, 1998.
RUBIM, Antonio Albino Canelas; AZEVEDO, Fernando Antônio. Mídia
e política no Brasil: textos e agendas de pesquisa. Revista Lua Nova, São
Paulo, n. 43, p.189-216, 1998.
SZPACENKOPF, Maria Izabel Oliveira. O olhar do poder: a montagem
branca e a violência no espetáculo telejornal. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

64
Mídia, poder e discurso
escândalos de poder e os embates entre Record e
Folha durante o caso da “ditabranda”1
André Bonsanto Dias2

INTRODUÇÃO
Em 05/04/2009, durante o programa Domingo Espetacular,
a Rede Record de Televisão publicou uma reportagem especial
intitulada O escândalo da “ditabranda”. Com aproximadamente 14
minutos de duração, a matéria teve o intuito de “desvendar” o
suposto caso do envolvimento do jornal Folha de S. Paulo com
o regime militar brasileiro.
O caso da “ditabranda”, que surgiu após a Folha publicar
em editorial3 o termo que qualificou o regime militar vigente no

1. Versão revista do trabalho originalmente apresentado no VIII Encontro Paranaense de Pesquisa


em Jornalismo, realizado na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) entre 20 e 22/10/2010.
2. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Bolsista Capes. Especialista em Mercados Emergentes em Co-
municação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Possui graduação em
Comunicação Social (2007) e em História (2008) pela mesma instituição.
3. O editorial foi publicado no jornal em 17/02/2009.

65
Mídia e política: caminhos cruzados

Brasil entre os anos de 1964 a 1985 como “brando”, se comparado


a outros da América Latina, foi o responsável por criar, segundo
seus críticos, “a maior crise de credibilidade da história do jornal”
(CAROS AMIGOS, 2009). O caso repercutiu durante meses na
imprensa alternativa e na internet, gerando diversas manifestações
e debates sobre o papel dos meios de comunicação no período do
regime militar no país4. A Rede Record foi o único grande veículo
de comunicação que deu destaque ao caso. No entanto, mais do
que utilizar o espaço para discutir questões de memória, questões
históricas referentes ao período, a matéria foi enfática em relacio-
nar o suposto envolvimento do jornal com a ditadura militar. Um
editorial, publicado junto ao material, afirmou que o jornal tentava
se esquivar do que “todos gostariam de saber”: “como explicar
para milhares de vítimas da ditadura militar sua atuação sombria
durante este período tão sofrido para os brasileiros?”5.
Estas breves considerações nos dão espaço para algumas re-
flexões. Qual o “interesse” da emissora em veicular, em horário no-
bre, uma reportagem tão longa para “atacar” outro veículo? O caso
da “ditabranda” seria aqui peça fundamental ou foi utilizado como
gancho para a Record aferir críticas ao jornal? De onde partem as
críticas da Record? Qual o envolvimento da Folha nestas questões?
O presente estudo tem como objetivo central refletir so-
bre esses questionamentos. Para tanto, parte-se do pressuposto
de que os meios de comunicação de massa, ao produzirem no-
tícias e discursos, atuam como dispositivos fundamentais para

4. O caso da “ditabranda” está sendo estudado pelo autor, mais profundamente, em sua pes-
quisa de mestrado. O trabalho, em fase de elaboração, parte do pressuposto de que o caso
deve ser visto como uma questão de memória, já que os meios de comunicação foram locais
importantes para a “reatualização” de algumas memórias em conflito sobre o período militar
no Brasil. Atuando como um “lugar de memória”, a mídia foi crucial para colocar novamente
em pauta algumas questões referentes à imprensa e ao regime militar em nosso país. Para mais,
consultar Dias (2010).
5. A reportagem O escândalo da Ditabranda, exibida pelo Domingo Espetacular (05/04/2009),
está disponível em http://www.youtube.com/watch?v=1fsPfr6TvUQ.

66
Mídia, poder e discurso

que se perpassem relações de poder em nossa sociedade. Rela-


ções que, muitas vezes veladas, “invisíveis”, são poderes simbóli-
cos que tomam dimensões centrais e particulares ao se analisar
discursos propagados na e pela mídia.

MÍDIA, PODER E DISCURSO


Ao evidenciar os meios de comunicação como importan-
tes “dispositivos de poder” em determinada sociedade, parte-se
do pressuposto de que a mídia não “retrata” a realidade, pelo
contrário, influi incisivamente a partir de interesses próprios, que
envolvem os veículos enquanto grandes conglomerados empre-
sariais. O jornalismo acaba atuando, sob essa perspectiva, junto
a grandes forças econômicas e sociais. Como afirma Ciro Mar-
condes Filho (1986), uma grande empresa jornalística raramen-
te fala sozinha, pois acaba atuando como porta-voz de grupos
econômicos e/ou políticos que, sob o foro da pretensa objeti-
vidade articulam suas concepções subjetivas do que entendem
por aquilo que deve ser noticiado à cena pública. Para o autor, o
jornalista atua a partir de questões ideológicas. Ao definir o que
deve ser noticiado, ou não, o profissional de jornalismo acaba
presumindo uma ação que envolve seleção e exclusão. Portanto,
este processo “é realizado segundo diversos critérios, que tor-
nam o jornal um veículo de reprodução parcial da realidade”
(MARCONDES FILHO, 1986, p. 12).
Marcondes Filho analisa a notícia enquanto mercadoria, sob
um viés da economia política da comunicação. Mercadoria para
ele que possui um sentido ideológico e atua também como agen-
te político. Segundo ele, é o “extraordinário” que vale como no-
tícia, mas não todo “extraordinário”.
Para mim, torna-se notícia aquilo que é “anormal”, mas cuja
anormalidade interessa aos jornais como porta-vozes de corren-
tes políticas. Uma embriaguês qualquer não é notícia; ela o será se
mexer com personagens que desagradam essas correntes ou que
representam poderes que o jornal pretende combater. O jornal,

67
Mídia e política: caminhos cruzados

assim, arranja, acomoda o extraordinário na sua argumentação diá-


ria contra setores ou grupos sociais. O extraordinário, na imprensa
“séria”, só vira notícia quando pode ser utilizado como arma no
combate ideológico (MARCONDES FILHO, 1986, p. 13).

Portanto, de acordo com ele, a notícia parte de certos “inte-


resses”, enfocando o “extraordinário” segundo questões de poder
particulares, que acabam por evidenciar determinados embates. A
partir desta questão pode-se pensar que o caso da “ditabranda”
só foi retratado pela Record, ganhando o devido destaque em sua
programação, a partir do momento em que pôde ser utilizado para
“interesses” particulares. É a ideia de uma notícia funcionando
como “agitação orientada” que, para o autor, atua diretamente ao
influenciar no confronto de posições políticas. O jornalista então,
“extrai da realidade o que lhe interessa (ou aos seus leitores) e isso
se transforma em notícia: da realidade é extraída somente uma
parte útil, sendo que essa utilidade é avaliada segundo objetivos
puramente particularistas” (MARCONDES FILHO, 1986, p. 50).
Em seu estudo sobre o poder no jornalismo, Mayra Gomes
parte do pressuposto de que as palavras/discursos propagados
pela mídia não são meras construções da realidade e sim “palavras
de ordem” com o intuito de atuar como “dispositivos disciplina-
res”. Para a autora, o que aparece de forma incontestável hoje no
discurso midiático “é a reincidência com que certas palavras com-
parecem. Não podemos apontar essa reincidência como simples
efeito da “realidade vivida” (GOMES, 2003, p. 65). Portanto, a
mídia, com suas “palavras de ordem” propagadas à exaustão, ope-
ram como “dispositivos disciplinares”, uma realidade a ser vista.
Gomes (2003) parte quase que exclusivamente dos concei-
tos de Michel Foucault (dispositivo disciplinar) e Gilles Deleuze (pa-
lavras de ordem) para aferir estas relações de poder na mídia. Para
Foucault (2002) o poder deve ser entendido a partir de sua ge-
nealogia. Não existe para o autor necessariamente “um” poder,
pois o poder é uma relação, uma prática social e heterogênea. Há
para ele “formas de exercício de poder” que funcionam como
uma rede de dispositivos. Portanto, o poder em si não existe,
68
Mídia, poder e discurso

há sim práticas e relações de poder que perpassam os diversos


campos da sociedade.
A partir dessas asserções, pode-se entender a mídia como
um importante “dispositivo de poder” no qual, a partir do dis-
curso, relações e estratégias se espalham. O jornalismo e seus
discursos (dispositivos de saber) contribuem para a manutenção
do sistema de poder, pois não existe relação de poder sem o cam-
po do saber. Ao deter parcelas de poder, os jornalistas acabam,
desta forma, por transmitir saber. Mas se informação também
significa poder, sua relação com a mídia implica necessariamente
uma questão de dominação e de relações de força entre um cam-
po extremamente conflituoso.
O discurso, se pensarmos na concepção de Foucault está,
portanto, diretamente relacionado às práticas de poder. Para ele,
“o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o po-
der do qual nos podemos apoderar” (FOUCAULT, 2004, p. 10).
Pode-se pensar então que, para Foucault, os meios de comunica-
ção são como uma espécie de “agentes autorizados” que possuem
“acesso” ao discurso: “ninguém entrará na ordem do discurso se
não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualifica-
do para fazê-lo” (FOUCAULT, 2004, p. 37).
Discurso e poder se entrelaçam em um campo complexo e
instável. Foucault acredita inclusive que os discursos, ao atuarem
como “blocos táticos” em um campo de correlações de força,
acabam por se confluir de forma bastante conflitante: “podem
existir discursos diferentes e ao mesmo tempo contraditórios
dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário, circular
sem mudar de forma entre estratégias postas (FOUCAULT apud
GOMES, 2003, p. 73).
Estes discursos, elementos de relação de força no campo
midiático, tornam-se fundamentais ao se propor uma análise das
relações de poder na mídia. Os embates travados entre a Rede
Record e o jornal Folha de S. Paulo que serão aqui estudados
devem levar em conta as “táticas” discursivas que partem mui-
69
Mídia e política: caminhos cruzados

tas vezes de interesses particulares. Pretende-se, portanto, buscar


entender os supostos “interesses” que moldam e perpassam as
relações de poder e o discurso midiático em questão.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
E O PODER SIMBÓLICO NA MÍDIA
É fundamental então, em uma análise sobre as relações de
poder, saber “quem nos fala”. Para Guareschi (2000), é preciso
compreender como decifrar “por que as pessoas fazem o que
fazem?” e “por que desempenham determinada ação?”
A partir dos estudos da psicologia social, Guareschi realiza
análises acerca das “representações sociais” aplicadas à comuni-
cação. Essa teoria se fundamenta na ideia de que, articulando as
intenções pelas quais as pessoas “fazem o que fazem”, “está uma
representação de mundo, que não é apenas algo racional, cogni-
tivo, mas que é muito mais do que isso: é um conjunto amplo de
significados criados e partilhados socialmente” (GUARESCHI,
2000, p. 70). O autor parte do pressuposto de que as informações
sofrem certo “tratamento” especial, são “modeladas” intencio-
nalmente ao serem repassadas. Para ele, as representações sociais
procuram “ocupar um espaço específico, e podem ser compre-
endidas como um conhecimento do senso comum, socialmente
construído e socialmente partilhado, que se vê nas mentes das
pessoas e na mídia” (GUARESCHI, 2000, p. 78).
Este conceito de representação social ganha destaque para o
autor a partir do momento em que há hoje um inesgotável fluxo de
conteúdos simbólicos propagados em exaustão pela mídia. Isso tor-
na indispensável que as pessoas saibam dar significados, interpretar
as informações. Saber “quem nos fala” e “por que nos fala” a partir
de determinada ação é, portanto, evidenciar poderes simbólicos pre-
sentes no discurso midiático que são fundamentais para entender as
“representações sociais” que perpassam estas relações.
O poder simbólico, proposto por Pierre Bourdieu (1989), é um
dos dispositivos que entrelaçam as relações de poder na mídia.
70
Mídia, poder e discurso

Poder “invisível”, o poder simbólico “só pode ser exercido com a


cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujei-
tos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 07-08). De
acordo com a premissa do autor, as relações de comunicação são
sempre relações de poder, “que dependem, na forma e no con-
teúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes
(ou pelas instituições) envolvidos nessas relações” (BOURDIEU,
1989, p. 11). Poder que atua, segundo o autor,

como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e


fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e,
deste modo, a ação sobre o mundo, portanto, o mundo; poder
quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obti-
do pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de
mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário (BOURDIEU, 1989, p. 14).

É mediante o discurso que este poder simbólico se legitima.


No jogo de representações simbólicas perpassadas pela mídia, ele
acaba atuando a partir da escolha daquilo que deve (ou não), ser
visto, esquecido e/ou lembrado. A mídia exerce poder simbóli-
co na medida em que detém o poder da “palavra autorizada”. É
da ideia do “fazer ver” e do “fazer crer” que partem os critérios
de noticiabilidade: edição, terminologias, tempo de duração, enfo-
ques. Portanto, o poder simbólico se legitima não pelo que há nas
palavras em si, “mas sobretudo, pela legitimidade que elas confe-
rem aos que falam frente aos que escutam e reconhecem a voz au-
torizada, legitimada como porta-voz nos canais de transmissão de
informação e de mensagem da mídia” (OLIVEIRA, 2009, p. 02).
A noção de poder simbólico deve seguir a premissa de
que atua a partir de um campo de disputa, de relações e repre-
sentações que acabam por influenciar direta ou indiretamente
as “faculdades cognitivas” do discurso e dos atores, individuais
ou coletivos, envolvidos no processo de comunicação (OLIVEI-
RA, 2009). Analisar estas relações a partir do campo do poder
é questão fundamental para compreender a construção dos dis-
71
Mídia e política: caminhos cruzados

cursos midiáticos que, como enfatizado, são sempre “modela-


dos” a partir de campos particulares e específicos de interesse e
que, portanto, fogem da noção de que retratam simplesmente a
realidade daquilo que “aconteceu”.

RECORD X FOLHA E OS ESCÂNDALOS


DE PODER DURANTE O CASO DA “DITABRANDA”
Ao considerar a mídia como um campo fundamental em
que perpassam relações de poder, parte-se da premissa de que
os discursos midiáticos não atuam como mera representação da
“realidade”, mas como instrumento ativo nas relações de cons-
trução de um campo simbólico dotado de sentido. Relações que
são, em grande parte, conflituosas. Nesse sentido, é fundamental
dialogar com a questão dos escândalos de poder proposta pelo pes-
quisador JohnThompson.
Thompson sustenta a hipótese de que “os fenômenos
sociais podem ser vistos como ações intencionais levadas a
cabo em contextos sociais estruturados” (THOMPSON,
1998, p 21). Para ele, a comunicação é uma atividade social
que abrange a produção, transmissão e recepção de formas
simbólicas. A partir de tal premissa, o estudioso analisa o que
ele caracteriza como os “escândalos de poder”, uma forma
mais particular dos escândalos políticos midiáticos. Para o au-
tor, os escândalos políticos são, na verdade, “lutas sobre as
fontes do poder simbólico” que atuam e são travadas na arena
midiática (THOMPSON, 2002, p. 139). Já os escândalos de
poder, uma vertente destes escândalos políticos, envolvem a
revelação de formas ocultas de poder que desenvolvem, com
a ajuda da mídia, novas formas de “poder invisível”. “Esses
são escândalos em que formas ocultas de poder são repenti-
namente divulgadas no espaço público, dando origem ao tipo
de desaprovação que constitui o escândalo” (THOMPSON,
2002, p. 241). As chamadas “formas ocultas de poder” se de-
senvolvem em uma variedade de contextos, podendo atuar
72
Mídia, poder e discurso

em redes elaboradas de poder ou envolvendo pequenos gru-


pos, “cujas atividades estão ocultas e orientadas na direção de
objetivos particulares” (THOMPSON, 2002, p. 241). Ainda
segundo o autor, a questão fundamental dos escândalos em
nossa sociedade é que eles “vendem”, a partir do momento
em que as empresas comerciais de mídia, preocupadas em
gerar receita por meio da comercialização de formas simbóli-
cas, utilizam-se destes escândalos, fornecendo histórias vivas
e “picantes” que auxiliam no fluxo de produção de notícias.
Parte-se, portanto, do pressuposto de que os embates tra-
vados entre Record e Folha evidenciaram certos “poderes ocul-
tos”, escândalos de poder que nada mais são do que os “interes-
ses” e “modelagens” que determinadas notícias tomam e que são
muitas vezes veladas pelo cunho da objetividade jornalística. Ao
analisar primeiramente (e de forma isolada) a matéria da Record
veiculada pelo programa Domingo Espetacular, puderam-se perce-
ber indícios presentes em seu discurso jornalístico de que esta,
ao tratar o caso da “ditabranda”, tentava revelar supostas “for-
mas ocultas de poder”. Ficou claro então que a matéria, ao invés
de se utilizar de um simples “retrato da realidade”, enfatizava
relações de poder que, portanto, deveriam ser melhor analisadas
para compreender as relações e supostos interesses nos embates
travados com a Folha de S. Paulo6.
É pertinente afirmar que o possível “escândalo” parte da
Folha, a partir do momento em que começa a citar a Record em
uma série de matérias. Os discursos surgem, mais especificamen-
te, com a coluna Outro Canal, assinada pelo jornalista Daniel Cas-
tro. A coluna, hoje extinta, era veiculada no caderno “Ilustrada”

6. Ao buscar uma análise mais aprofundada referente ao embate, percebeu-se que a Folha, a
partir da coluna Outro Canal já estava há algumas edições utilizando-se de críticas sutis à pro-
gramação da Record, atacando os índices de audiência e a qualidade da programação. Por outro
lado, a Record utilizou um grande espaço em horário nobre para rebater as críticas. Portanto,
a matéria do Domingo Espetacular seria apenas mais um episódio deste embate que já estava
sendo travado há alguns meses e que em um primeiro momento acabou passando despercebido.

73
Mídia e política: caminhos cruzados

da Folha, sendo que foi editada entre os anos de 2000 e 2009.


Segundo o próprio Daniel Castro, a coluna “elevou a cobertura
de televisão, tratando o veículo como uma indústria”7.
Não fica evidente, em um primeiro momento, quais
são as reais intenções do jornal em atacar a Record, até por-
que a coluna, ao abordar a TV como uma “indústria” parte
de críticas gerais que não são direcionadas exclusivamente à
emissora8. No entanto, a lógica da “indústria” deixa claro que
as notícias se pautarão em princípios voltados aos interesses
de mercado, onde o discurso do poder simbólico predomina.
Ao afirmar este discurso, o jornalista corrobora com nossas
afirmativas de evidência às questões do poder, o que deixa
claro, a priori, que ele não pretende retratar uma realidade, e
sim relatar sobre disputas que condizem à lógica dos jogos e
interesses de poder.
A questão dos índices de audiência, um dos assuntos mais
discutidos pela coluna, demonstra a preocupação do jornalista em
retratar a TV como “indústria”. Em Outro Canal de 16/02/2009,
na matéria intitulada TV brasileira se acomodou e piorou, diz Boni,
o jornalista utiliza a fala de José Bonifácio de Oliveira, o Boni,
criador do chamado “padrão Globo de qualidade”. Segundo ele,

7. Aqui vale uma observação. Esta citação foi retirada do atual blog do jornalista, hospedado
no Portal R7, do grupo pertencente à Rede Record. Daniel Castro, que durante 18 anos atuou
no grupo Folha, é hoje jornalista contratado da emissora. Fica evidente então como estão esta-
belecidas estas relações de poder que envolvem, muitas vezes, interesses econômicos e, prin-
cipalmente, estabelecem relações que perpassam os diversos campos de forma maleável. O
maior responsável pelas críticas que partiram da Folha hoje atua de forma completamente “na-
tural” do outro lado. Para mais sobre o blog, acessar http://noticias.r7.com/blogs/daniel-castro/
8. Apenas a título de exemplo, em coluna de 01/02/2009, intitulada Íris Abravanel brinca de
fazer novela, Daniel Castro comenta sobre a “árdua missão de eleger a pior novela do momento”.
Elencando novelas de várias emissoras (Três Irmãs, Globo; Os Mutantes, Record; Revelação,
SBT), o jornalista “elege” Revelação a “pior de todas”. Segundo ele, Íris Abravanel, mulher de
Sílvio Santos, “de tanto ver o marido brincar com a programação do SBT, resolveu ela mesma
escrever uma novela” (CASTRO, Daniel. Íris Abravanel brinca de fazer novel. Outro Canal.
Folha de S. Paulo, nº 29.158, p. E6, 01/02/2009).

74
Mídia, poder e discurso

a TV aberta brasileira estaria perdendo audiência, pois piorou


e “estagnou” nos últimos dez anos. Boni afirma, e o jornalista
deixa claro, que estas críticas são para todas as emissoras. No
entanto, Castro conclui com a fala de Boni, afirmando que as
redes se acomodaram com suas posições no Ibope: “a Record
já bateu a cabeça no teto. Chegou onde tinha que chegar e não
procurou mais”9.
É com uma critica mais direta da coluna, envolvendo ín-
dices de audiência da emissora, que, pode-se dizer, começam
os ataques diretos à Record10. Em 06/03/2009, na matéria Re-
cord anuncia pegadinha sobre a crise, o jornalista cita uma chamada
veiculada pela emissora que, segundo ele, estaria evidenciando
uma suposta crise da Record e afirma: “O telespectador poderá
pensar que a Record irá rodar a sacolinha para pagar os seus
programas”. No entanto esta seria, segundo o jornalista, uma
“pegadinha” para mostrar os supostos investimentos recentes da
emissora. Segundo Daniel Filho, a “tática” da Record foi recebi-
da com ironia pela concorrência, visto que
Os investimentos são atribuídos a algum “milagre”, pois dados
do Ibope Monitor revelam que os intervalos comerciais da Re-
cord estão mais curtos. Em janeiro, o volume de publicidade na
Record caiu 12% em relação ao mesmo mês de 2008, enquanto
na Globo e no SBT houve alta, respectivamente, 8% e 57%11.

9. CASTRO, Daniel. TV brasileira se acomodou e piorou, diz Boni. Outro Canal. Folha de S.
Paulo, nº 29.174, p. E4, 16/02/2009.
10. Anteriormente a esta coluna, ainda podemos citar outros casos. Em 19/03/2009, a coluna
cita o caso do reality show da Record Troca de Família que, segundo o jornalista, seria um
grande fiasco comercial, faturando valores em publicidade que mal pagariam os custos do
programa. Já na coluna datada de 04/03/2009, o jornalista cita casos dos “bastidores” de gra-
vação dos capítulos finais da telenovela Mutantes que seriam rodados nas Cataratas do Iguaçu.
Segundo ele, “a mobilização, que incluirá perseguições com helicóptero e barcos, só ocorrerá
porque o governo do Paraná pagará todas as despesas”.
11. CASTRO, Daniel. Record anuncia “pegadinha” sobre a crise. Outro Canal. Folha de S.
Paulo, nº 29.191, p. E8, 06/03/2009).

75
Mídia e política: caminhos cruzados

O jornalista ainda afirma que a Record News, que surgiu com


a intenção de ameaçar quebrar o monopólio da Globo, ainda não te-
ria saído do traço no Ibope. Para ele: “o mau desempenho do canal
de notícias, que estaria dando prejuízo a Edir Macedo, frustrou as
expectativas”12. O mesmo texto também utiliza dados que tentam
comprovar que o desempenho em audiência da emissora seria nu-
mericamente inferior aos da concorrente Globo News.
É importante pensar a questão da audiência a partir do
que propõe Bourdieu (1997) em sua análise sobre a televisão e
que pode, sem maiores problemas, ser aplicado a outros grandes
veículos que seguem uma lógica “empresarial”. Para ele, o “índice
de audiência” atuaria como uma espécie de “juízo final” no jorna-
lismo, onde o mercado seria “reconhecido como instância legítima
de legitimação” (BOURDIEU, 1997, p. 37). A partir desta premis-
sa, Bourdieu vê a concorrência definida em sua forma, de maneira
“invisível”, “por relações de força não percebidas que podem ser
apreendidas através de indicadores tais como as fatias de mercado,
o peso nos olhos dos anunciantes, o capital coletivo de jornalistas
prestigiosos, etc.” (BOURDIEU, 1997, p. 56).
Portanto, ao enfatizar os índices de audiência, tratando a TV
a partir de uma lógica de “indústria”, o jornalista estaria na verdade
evidenciando jogos de poder simbólico, relações não percebidas,
mas que estão presentes nas disputas pela fatia de poder de merca-
do, cruciais para o funcionamento da lógica empresarial dos meios
de comunicação. É a partir destes materiais que a Rede Record
começa a se manifestar dos supostos ataques da Folha. Quando
“poderes ocultos” são revelados, a emissora sente-se então no “di-
reito” de “noticiar” partindo também de seus interesses. Como
nos colocou Marcondes Filho, em determinadas situações especí-
ficas o jornalista extrai da dita “realidade” apenas aquela parte útil
que poderá ser melhor explorada para atingir seus objetivos.

12. CASTRO, Daniel. Traço no Ibope, Record News empaca vendas. Outro Canal. Folha de S.
Paulo, nº 29.198, p. E10, 13 de março de 2009)

76
Mídia, poder e discurso

A primeira manifestação da Record sobre estes embates


surge com o Jornal da Record de 17/03/2009, quando a emisso-
ra utiliza grande espaço do programa para se defender das acu-
sações que vinha recebendo. O Jornal da Record, veiculado em
horário nobre, é o principal telejornal da emissora13. Ao utilizar
aproximadamente sete minutos de seu espaço para veicular ape-
nas uma matéria específica, fica evidente que o assunto é, par-
ticularmente, de grande interesse para a emissora. Este detalhe
já é um importante indício de como estão estabelecidas supos-
tas relações de poder. A notícia ganha destaque pois interessa a
objetivos particulares. Uma suposta “realidade” que precisa ser
noticiada, vista e acreditada, portanto, “palavras de ordem” que
acabam atuando como “dispositivo disciplinar”.
Deve-se aqui levar em conta algumas observações referentes
à utilização do espaço televisivo como forma de atuação do poder
simbólico. Como afirma Somma Neto (2009, p. 20), as reflexões
sobre o telejornalismo devem estar pautadas nos diversos modos
de produção estabelecidos como, por exemplo, os enfoques e o tra-
tamento da informação, analisando os processos em que ocorrem
possíveis relações de poder. Assim, para o autor, é importante dirigir
a análise aos “mecanismos de produção intencional” no telejorna-
lismo. “Imagens, textos, falas dos agentes (repórter e entrevistado),
efeitos, luzes, movimentos de câmera, ângulos escolhidos, entre ou-
tros, determinam a estrutura do material produzido, bem como as
significações pretendidas” (SOMMA NETO, 2009, p. 26).
Na matéria em questão, os dois âncoras do jornal, em tom
sério e intimidante, afirmam que a Rede Record está sendo alvo
de ataques constantes do jornal Folha de S. Paulo nos últimos me-

13. O telejornal é caracterizado, a partir de sua redação, como“confiável, ágil e moderno”. O texto
escrito pela redação e colocado em destaque no site do programa enfatiza: “Com toda força e cre-
dibilidade do jornalismo verdade da emissora, o Jornal da Record traz a notícia cada vez mais perto
do telespectador. Nossos repórteres, cinegrafistas, editores e toda a equipe técnica estão empenhados
para fazer um telejornal que o público possa confiar. Sem máscaras e imparcial”. Para mais, acessar o
site do telejornal: http://www.rederecord.com.br/programas/jornaldarecord/home.asp

77
Mídia e política: caminhos cruzados

ses. Notícias “caluniosas” e “mentirosas” que, segundo a reporta-


gem, a emissora tem o dever de esclarecer a seus telespectadores.
Para a versão televisiva, as informações “mentirosas”, partem de
uma campanha difamatória e agressiva do jornal, que aponta le-
vantamentos equivocados com relação aos índices de audiência da
emissora. A matéria então evidencia os dados mostrados pela Fo-
lha e tenta, a partir de inúmeras informações e imagens, refutá-los.
A matéria do Jornal da Record mostra ainda outros casos em que a
Folha estaria “mentindo”, notícias que seriam, segundo a Record,
além de falsas, “preconceituosas”. Estes preconceitos partem, se-
gundo a reportagem, das relações da Rede Record com a Igreja
Universal do Reino de Deus.
Ainda na mesma edição do telejornal há espaço para o con-
tra-ataque: a empresa afirma que a Folha de S. Paulo, publicada
pelo grupo Folha, é sócia das organizações Globo em um de seus
jornais, principal concorrente da emissora no ramo televisivo. Ain-
da alega que nos últimos anos o Grupo Folha tem enfrentado um
sério problema: a queda na venda de jornais e, por fim, enfatiza:
Será que a diminuição do faturamento do grupo Folha está refle-
tindo em sua qualidade editorial? Os números indicam mais do
que uma queda nas vendas. A Folha de S. Paulo enfrenta uma gra-
ve crise de credibilidade, o que pode se tornar um triste capítulo
na história da imprensa brasileira14.

A reportagem se encerra com o pronunciamento dos apre-


sentadores, afirmando que a Rede Record decidiu responder em sua
programação qualquer novo ataque da Folha e a recorrer à justiça
quando a honra da empresa for atingida. São vários minutos que
a emissora utiliza, em seu principal jornal, para uma matéria com-
pletamente particular, voltada a seu interesse. Foi extraído então da
“realidade”, somente aquela “parte útil” que interessa a objetivos
específicos. A questão dos índices de audiência e das vendas é pri-

14. A edição do Jornal da Record veiculado em 17/03/2009 está disponível no endereço


http://www.youtube.com/watch?v=wWafDs18OWo.

78
Mídia, poder e discurso

mordial no tom do discurso e revelam a intencionalidade e a preo-


cupação de um jornalismo pautado pelos interesses econômicos e
pelos jogos de representação simbólica, crucial para se conquistar
as fatias de mercado. A maior preocupação do material é mostrar
aos telespectadores que a Folha “distorceu” os índices de audiência
da emissora; no entanto, aproveita o momento para também aferir
críticas às vendagens do jornal. A questão empresarial fica clara tam-
bém quando se tenta relacionar o suposto envolvimento do jornal
com a Rede Globo, maior “adversária” da Rede Record.
Em 19/03/2009, dois dias após a matéria do Jornal da Re-
cord, a Folha de S. Paulo publicou apenas uma nota referente aos
ataques da emissora. Segundo a Record, esta atitude fez com que
a Folha acabasse saindo como “vítima” da situação. A emissora
veiculou ainda no mesmo dia outra reportagem em seu jornal
noturno, voltando a citar os ataques da Folha em relação aos
seus índices de audiência. A Record aproveita o espaço para mais
uma vez mostrar dados que sugerem a suposta crise de vendas
do jornal. Em todo momento, a lógica do mercado e da audiên-
cia é levada em consideração.
No dia seguinte, a Folha se pronuncia sobre o caso, agora
em editorial. O texto, sob o título de Os ataques da Record afirma
que a emissora

vem desfechando ataques contra esta Folha em seus noticiários.


Pretende mover algo como uma campanha, pois a mesma mixór-
dia de reportagem canhestra e investida comercial tem sido repeti-
da à exaustão. O motivo de tanta ira, agora, é o desagrado diante da
independência jornalística da coluna de TV publicada pelo jornal.
[que] [...] tem procurado agir com máxima isenção, sobretudo em
face do duelo feroz entre a Record e a emissora líder no país, a
Rede Globo. Entre ambas, a Folha toma o partido de seu leitor, que
deseja ser informado. O que é prática de jornalismo verdadeiro se
torna – na percepção tosca dos atuais dirigentes da Record, acos-
tumados a reduzir qualquer questão a seu aspecto comercial – uma
suposta campanha contra a emissora15.

15. Os ataques da Record. Folha de S. Paulo, nº 29.206, p. A2, 20/03/2009.

79
Mídia e política: caminhos cruzados

O jornal tenta deixar claro que pratica um jornalismo


“verdadeiro” e que toma o partido de seu leitor. Evita, por-
tanto, citar aspectos “comerciais” que, segundo ele, são pre-
missas apenas da adversária. O editorial utiliza ainda o espaço
para aferir críticas semelhantes às que a Record usou outrora,
ao tentar mais uma vez evidenciar as supostas relações da
emissora com a Igreja Universal. Para o jornal, negócios e
religião não devem caminhar juntos, por isso, “a sociedade
tem todo o direito de conhecer os vasos comunicantes que
ligam a Igreja Universal aos tentáculos de seus vários ramos
de negócio. A reação destemperada da Record é um mero
incentivo para que a Folha insista em esclarecer o que parece
tão imprescindível manter oculto”16.
Para ambos os casos, fica claro que é fundamental evi-
denciar aos seus leitores/telespectadores quem está por trás
destes discursos, saber então por que fazem o que fazem, re-
velando assim formas ocultas de poder. Os discursos na mí-
dia, como já colocamos, aparecem num campo de relações
de forças, o que acaba por envolver diretamente a questão
das relações de poder. A premissa em ambos os discursos é
“revelar” que estas empresas não atuam sozinhas, mas que
estão envolvidas diretamente em jogos de poder e interes-
se. Ao tomar esta posição, acabam, elas mesmas, revelando
suas próprias “formas ocultas de poder”. Porém, ambas são
enfáticas em se firmarem como objetivas, retratando apenas
determinada “realidade” ao espectador.
A partir do momento em que as críticas da Folha men-
cionam diretamente as “formas ocultas de poder” da emissora,
revelando assim estas relações, a Record utiliza-se das mesmas
táticas para atacar o jornal, deixando claro, mais uma vez, como
se estabelecem as relações de poder no campo midiático. Na sua
edição de 20/03/2009, o Jornal da Record utiliza um espaço

16. Os Ataques da Record. op. cit. p. A2.

80
Mídia, poder e discurso

considerável para revelar “poderes ocultos” da Folha de S. Pau-


lo. A matéria, na verdade uma espécie de “editorial” de mais de 3
minutos de duração, contém apenas um texto narrado pelo apre-
sentador do telejornal. Isto ratifica a ideia de que há a intenção
de ser dar destaque ao discurso, mostrando como estão inculca-
dos os “interesses” particulares que a emissora pretende revelar
aos seus espectadores, parcelas de audiência que movimentam e
dão legitimidade ao poder simbólico.
O editorial, intitulado Folha de mentiras, afirma que a Folha
está tentando atingir diretamente a honra da empresa e seus
funcionários. Para a Record, a Folha chamou de “ataque” o
direito de resposta da emissora que, segundo eles, poucas vezes
foi respeitado pelo jornal. O editorial segue enfatizando que
o texto publicado neste dia pela Folha se superou, a partir do
momento em que
A Família Frias, dona do grupo Folha, usou seu espaço mais im-
portante para sustentar a série de mentiras. Página de opinião de
que os Frias sempre se orgulharam de utilizar em nome do bom
jornalismo. E a Record não foi a única vítima. Os brasileiros que
sofreram durante a ditadura foram agredidos pela família Frias
neste mesmo espaço. Há 31 dias, a Folha de S. Paulo chamou de
“ditabranda” os anos de chumbo no Brasil. Estaria a Folha de
S. Paulo revivendo sua atuação suspeita nos tempos do regime
militar? Por isso, não é de surpreender o tom raivoso do edito-
rial desta sexta, que chega ao absurdo de ameaçar a Record. (...)
O jornal reconhece estar no meio de um “duelo feroz” entre a
Globo e a Record, só não revela que é sócia das organizações
Globo em uma de suas publicações. Por que a Folha de S. Paulo
esconde isso de seus leitores? Isso é “independência jornalísti-
ca” como cita o editorial? Isso é “agir com máxima isenção”?
Isso é “prática de jornalismo verdadeiro”? É possível acreditar
que uma empresa seria imparcial numa disputa que envolve o
seu próprio sócio? A brutal queda de leitores, que aumenta a
cada ano de maneira impressionante, é uma resposta do Brasil
à Folha de S. Paulo17.

17. Material disponível em http://www.youtube.com/watch?v=dYHJ9vD2SlQ.

81
Mídia e política: caminhos cruzados

Neste trecho do editorial pode-se perceber que a Record


utilizou o espaço de seu telejornal para citar a família Frias, assim
como a Folha fez com o bispo Edir Macedo. Portanto, o discurso
toma mais uma vez a intenção de mostrar o papel das empresas,
“quem” e “por que” falam, a partir das supostas intenções que
perpassam as relações de poder no campo midiático. Relações
estas que não se dão de forma isolada. O texto é enfático em evi-
denciar novamente as supostas relações do grupo Folha com as
organizações Globo e, ao duvidar de que uma empresa possa ser
“imparcial” em uma disputa que envolve seus sócios, portanto,
seus interesses, deixa claro de que estas relações se dão sempre
em constante embate por uma lógica de legitimação simbólica.
Mas o que mais se evidencia neste discurso é a intenção
clara em se revelar um lado “oculto” que até então não teria
nenhuma ligação com os embates. Qual seria a relação do caso
da “ditabranda” com os ataques travados entre as empresas? O
episódio, que até então nem tinha sido citado pela Rede Record,
surge apenas a partir de um momento em que este “interessa”
à emissora18. Portanto, torna-se evidente que, ao revelar este
lado, há intenções de se instaurar um “escândalo” na concepção
daquilo que formulou Thompson, ou seja, evidenciar poderes
ocultos que afetam e influenciam diretamente nas relações de
legitimação do poder simbólico.
No dia seguinte a este editorial, a Folha publica na seção
Painel do Leitor, uma carta de Alexandre Raposo, presidente da
Record, que indaga o jornal a respeito dos índices de audiência
propagados, segundo ele, erroneamente pela Folha. Na mesma
página e edição, na seção Erramos, a Folha ratifica o erro dos
números incessantemente combatidos pela emissora. A partir de
então o jornal não se pronuncia mais diretamente sobre o caso.
No entanto, a coluna Outro Canal ainda continua publicando tex-

18. Assim como os ataques da Folha, citando as relações da Igreja Universal com a Rede Record,
também só ganharam destaque a partir de um momento em que “interessou” ao jornal.

82
Mídia, poder e discurso

tos com críticas “sutis” à programação da Record.


É neste contexto que vai ao ar, em 05/04/2009, a repor-
tagem especial do Domingo Espetacular sobre o caso da “di-
tabranda”. Não é a intenção deste estudo analisar qual o tom e
enfoque dado pelo objeto em questão. Nosso objetivo foi perce-
ber quais as supostas relações do caso com a emissora e em que
contexto foi revelado este “escândalo de poder” que, a primeiro
momento, acabou passando despercebido em uma análise sobre
o caso. Vale ressaltar apenas a importância da mesma para cor-
roborar para os embates analisados. Veiculada em horário nobre
de domingo e com aproximadamente 14 minutos de duração, a
matéria segue uma lógica espetacular. Fica claro que o discurso
adotado, referente aos fatos relacionados à ditadura, possuem
o objetivo de causar comoção e direcionar o foco à premissa
principal: evidenciar as relações ocultas de poder que envolvem
o suposto caso da Folha com o regime militar.
São estas ditas relações “ocultas” de poder, postas em jogo
de acordo com interesses próprios – o “extraordinário” que in-
teressa a objetivos específicos – que se procurou aqui analisar.
É aquela “embriaguês” que coloca Ciro Marcondes Filho, uma
“embriaguês” que só ganha interesse a partir do momento em
que diz respeito e que evidenciam os poderes das empresas en-
volvidas. Supõe-se que é partindo destas premissas que muitas
vezes poderes são revelados, que notícias são pautadas e molda-
das e que determinados assuntos ganham o foco de discussão
em nossa mídia, interpelada pelas relações de poder simbólico.

83
Mídia e política: caminhos cruzados

REFERÊNCIAS

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BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela Ltda, v. 145, abr. 2009.
Mensal.
DIAS, André Bonsanto. Comunicação Alternativa como Espaço de Novos
Lugares da Memória: um estudo do caso Ditabranda. In: Revista Alterjor.
USP. Ano 01, vol. 02. jul-dez. 2010.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10.ed. Sao Paulo: Loyola,
2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
GOMES, Mayra Rodrigues. Poder no jornalismo: discorrer, disciplinar,
controlar. São Paulo: Hacker Editores, Edusp, 2003.
GUARESCHI, Pedrinho et al. Os construtores da informação: meios
de comunicação, ideologia e ética. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da noticia: jornalismo com pro-
dução social da segunda natureza. São Paulo: Ática, 1986.
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do poder simbólico. In: Anais do V ENECULT - Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura. Faculdade de Comunicação/UFBa, Salva-
dor-Bahia, 2009.
SOMMA NETO, João. O poder da imagem ou a imagem do poder? A
política no telejornalismo. In: Comunicação: reflexões, experiências, en-
sino. Revista dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda. Uni-
versidade Positivo. v.2 – n 1. 1º semestre 2009. Curitiba: Universidade
Positivo, 2009.
THOMPSON, John. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mí-
dia. Tradução: Wagner de Oliveira Brandão. 5.ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1998.
THOMPSON, John. O escândalo político: poder e visibilidade na era
da mídia. Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

84
A cruzada pós-moderna
o escândalo religioso
e a guerra Globo X Record
Lucas Gandin1

INTRODUÇÃO
Empunhada em estandartes ou bordada em roupas, entre
os séculos XI e XII, a cruz atravessou a Europa e voltou ao
local onde virou símbolo de uma religião. As Cruzadas, como
ficaram conhecidas as movimentações reliogiosa-militares, ti-
nham como objetivo principal retomar a soberania sobre a Ter-
ra Santa (região da atual Palestina) e a cidade de Jerusalém, de
posse dos mulçumanos desde 1078. Nesta grande batalha, ide-
ologizada e exortada pelos papas e executada pelos reis cristãos
da Europa, por meio de seus exércitos, pregava-se a necessida-
de de libertar a terra onde nascera Jesus Cristo das mãos dos
infiéis e devolvê-la à religião revelada por Deus. Além disso,

1. Jornalista e relações públicas. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e


Sociedade da Universidade Federal do Paraná pela linha Comunicação, política e atores coletivos.

85
Mídia e política: caminhos cruzados

era parte da estratégia do continente de retomar as rotas co-


merciais com o oriente, de onde a Europa dependia comercial-
mente, garantir o poder econômico-político sobre o Oriente
Médio. Nessa disputa militar, o confronto ideológico também
era travado na depreciação do adversário.
Quase sete séculos depois das Cruzadas, a batalha religiosa
não terminou. No final segundo milênio e no início do terceiro,
o bispo Edir Macedo e o “papa” (hoje santo) Roberto Marinho
lutam entre si para libertar a assembleia da programação infiel.
Cada um, a sua maneira, leva à audiência sua mensagem de paz,
amor e salvação, promete-lhe o Reino dos Céus e, em troca da fide-
lidade, assegura protegê-la da astúcia dos infiéis.
Tanto Marinho como Macedo usam suas “igrejas”, res-
pectivamente a Rede Globo de Televisão e a Rede Record de
Televisão, suas missas (Jornal Nacional e Jornal da Record) e
suas novenas (as telenovelas) para subjulgar a audiência a um
conflito ideológico. Personifica-se em cada uma, aos olhos da
outra, a imagem do Diabo. Se aos fiéis seguidores a promessa é
libertá-los das garras de Satanás, é justamente essa fidelidade que
garante o lucro de ambas as igrejas: conquistada a audiência, as-
seguram-se as receitas publicitárias. Nessa guerra vale tudo: usar
o séquito clerical, composto por uma horda de artistas e jorna-
listas, usar liturgia e ritos consagrados – formato de programas
e grade de programação – e os santos evangelhos traduzidos em
mensagem ideológica.
Metáforas à parte, este artigo pretende verificar como o
escândalo religioso atua na relação de poder entre as duas emis-
soras. Presume-se que ambas as emissoras trocam ataques e acu-
sações: a Globo veiculando reportagens sobre fraude, corrupção
e mau uso do dinheiro dos fiéis por parte dos líderes da Igreja
Universal do Reino de Deus; a Record utilizando as reportagens
sobre pedofilia na Igreja Católica para suscitar um conflito reli-
gioso entre católicos e evangélicos com a Globo.
As reportagens seriam apenas uma estratégia para des-
viar a atenção da audiência para um conflito de ordem ide-
86
A cruzada pós-moderna

ológica entre as duas emissoras, que culminaria na hegemo-


nia da audiência por uma delas. Além disso, sem muito rigor
científico, percebe-se que o discurso da Record se dirige para
o acusamento do tratamento e espaço depreciativos dado às
representações dos evangélicos nas novelas e minisséries da
Globo. Essa representação do evangélico na Globo e do ca-
tólico na Record seria a base do conflito ideológico entre as
duas emissoras.

O CONFLITO GLOBO X RECORD


Desde que entrou no ar, em 1965, a Rede Globo de Co-
municação conferiu um novo conceito de qualidade de imagem e
produção na televisão brasileira. Nos anos 1970, com a consolida-
ção do Jornal Nacional (surgido em 1969) como o grande carro-
chefe da emissora, ao lado da telenovela, a emissora implantou o
“padrão globo de qualidade”, que no aspecto estrutural, impôs
uma grade de programação rígida e cumprida sem adiantamento
ou atrasos nos horários dos programas. No campo da produção,
atualmente, a Globo atingiu a marca de mais de 4 mil horas de
produção própria todo o ano, alcançando a posição de maior pro-
dutora de programas próprios no mundo (SILVA, s/d).
Considerando o pioneirismo da Globo nas transmis-
sões coloridas e internacionais e o padrão de qualidade de
seus programas, sobretudo os jornalísticos e dramatúrgicos,
a emissora garantiu em pouco tempo a liderança nacional de
audiência. Mas em 1991, Edir Macedo, líder máximo da Igre-
ja Universal, assume o controle da Rede Record e muda a
proposta de programação da emissora. O objetivo de Mace-
do pode ser sintetizado numa frase de sua própria autoria,
quando a Record estreou seu canal exclusivo de notícias: “nós
fomos injustiçados por muitos anos por um grupo de comu-
nicação que tinha e mantém o monopólio da notícia no Brasil.
Daí nosso desejo de dar um fim a esse monopólio” (FOLHA
ONLINE, 2007).
87
Mídia e política: caminhos cruzados

No entanto, o conflito entre as duas emissoras é um pouco


mais antigo. Segundo Birman e Lehman (1999), os ataques co-
meçam quando a Globo começa a perder audiência para Record,
nos anos 1990. É quando o Jornal do Brasil e os jornais im-
pressos das organizações Globo publicam editoriais pondo em
xeque o caráter de Edir Macedo e as formas como a Universal
obtém doações e contribuições dos fiéis. Nesses editoriais, Ma-
cedo é considerado um charlatão, fraudador, e de enriquecer ma-
nipulando a ignorância e a fé dos humildes com falsas promessas
de riqueza, bem-estar e felicidade.
Em 12/10/1995, a Rede Record provoca a grande in-
tifada que acirra o conflito: o episódio do “chute na santa”.
Enquanto o país, de maioria católica, comemorava o dia da
sua padroeira, Nossa Senhora Aparecida, o pastor Sérgio Von
Helder, líder da Universal em São Paulo e um dos colaborado-
res mais próximos de Macedo, soqueou e chutou uma imagem
da santa, dizendo que aquilo se tratava de um boneco feio de gesso
(BIRMAN; LEHMAN, 1999).
Ao chutar a santa, Von Helder não só atacou a questão da
idolatria – as igrejas evangélicas, principalmente as Pentecostais se
apegam à proibição divina de adorações de imagens para conde-
nar essa prática católica – como feriu a cultura religiosa do povo
brasileiro. O fato repercutiu na mídia em condenação à atitude
do pastor. A TV Globo considerou a atitude grave e demonizou
Macedo e a Universal como inimigos públicos, tornou-se advogada
da Igreja Católica (BIRMAN; LEHMAN, 1999).
Um mês antes do episódio do “chute na santa”, foi a Glo-
bo quem atacou a comunidade evangélica. Em setembro de
1995, a emissora exibiu a minissérie Decadência, na qual mostra-
va um pastor enriquecendo com o dinheiro doado pelos fiéis e
construindo sua própria igreja. Algumas falas do personagem do
pastor reproduziam trechos das pregações religiosas na Univer-
sal proferidas por Edir Macedo. A minissérie deixava claro que o
pastor enriquecera explorando a fé dos seguidores de sua igreja
(BIRMAN; LEHMAN, 1999).
88
A cruzada pós-moderna

Nos últimos anos, a Rede Record vem assumindo uma


postura mais agressiva e também um tanto dissimulada. Na
tentativa de roubar a audiência da Globo, a emissora passou
a adotar os modelos de programas desta e copiando parte da
grade de programação dela. Além disso, a Record tem inves-
tindo na qualidade dos seus programas jornalísticos e teledra-
matúrgicos, assemelhando-se muito à Globo. Hoje, os apre-
sentadores dos telejornais da Record são em sua grande parte
jornalistas que trabalhavam na Globo (por exemplo, Paulo
Henrique Amorin, Celso Freitas e Ana Paula Padrão, estes
dois últimos apresentadores do Jornal da Record); autores de
novelas que escreviam os enredos das novelas da Globo tam-
bém foram incorporados ao time da Record bem como os
atores excedentes da Globo.
Ou seja, na tentativa de derrubar o monopólio da Glo-
bo, a Record traveste-se de Globo, assumindo uma progra-
mação quase idêntica à dela e colocando em sua tela a cara de
ex-globais, com quem o público já está acostumado. Assim,
não há diferença à primeira vista em assistir ao Fantástico ou
ao Domingo Espetacular, ao Globo Repórter ou ao Repórter
Record. Contudo, esta estratégia é reforçada pelos ataques da
Record à Globo.
Embora a Globo não tenha relações diretas ou vínculos
com a Igreja Católica, nota-se uma tendência favorável à repre-
sentação dela em sua programação ou à veiculação de reporta-
gens nos telejornais da emissora. Nas telenovelas, os casamentos
são, em sua maioria, realizados em igrejas católicas. O programa
mais antigo da emissora é a Santa Missa, que foi exibido pela
primeira vez em 04/02/1968. Atualmente, é transmitida aos do-
mingos, às 6h (REDE GLOBO, 2010). À meia-noite do dia 24
para o dia 25 de dezembro, a Globo transmite a tradicional Missa
do Galo, rezada pelo papa, no Vaticano.
Antes de analisar como as duas emissoras veiculam repor-
tagens sobre escândalos religiosos, é preciso compreender de que
forma estes escândalos atuam nesse conflito político-ideológico.
89
Mídia e política: caminhos cruzados

ESCÂNDALO RELIGIOSO E RELAÇÕES DE PODER


Segundo Thompson (2002), os meios de comunicação con-
feriram uma nova faceta aos escândalos de poder: a publicização.
Se outrora os escândalos eram acontecimentos locais e apenas
noticiados pela mídia, nas últimas décadas uma nova forma de
escândalo emergiu: os constituídos e promovidos pelos meios de
comunicação. Como afirma o autor,
(...) o escândalo vende. Como empresas comerciais preocupa-
das em gerar receita através da comercialização de formas sim-
bólicas, as casas publicadoras, os editores, os jornais e outras
organizações a mídia têm interesse financeiro em manter ou
aumentar a venda de seus produtos, e os escândalos fornecem
histórias vivas, picantes, que podem ajudar esplendidamente a
conseguir este objetivo (THOMPSON, 2002, p. 59).

Ademais, ao revelar os segredos mais escusos do poder, a


mídia assume e exerce a missão de guardiã do interesse público.
Os escândalos religiosos estão dentro de uma lógica maior,
os escândalos de poder, que envolvem revelações das formas
ocultas de (abuso de) poder. No âmbito religioso, o poder revela-
se sob a forma de uma hierarquia social, arraigada à cultura so-
cial. Na ótica católica, o papa é o representante de Deus na terra;
o padre, durante a consagração da hóstia, perfaz o dogma “in
persona Christi” (MANSINI, s/d).
No âmbito social, as relações culturais da sociedade brasi-
leira conferiram à Igreja Católica e seu clero um status de elevada
importância. Principalmente nas cidades pequenas, o padre se
torna líder comunitário e atua junto à população de sua paróquia.
Bispos e arcebispos possuem uma área de jurisdição e influência
maior, mas ainda aquém da influência dos cardeais, que, em caso
de eleição papal, são quem compõe o quórum votante. O padre,
portanto, é o clérigo que está mais próximo aos fiéis e quem teria
mais facilidade de exercer seu poder.
O mesmo pode ser aplicado aos pastores e líderes das igre-
jas evangélicas ou protestantes, pois de fato qualquer líder religioso

90
A cruzada pós-moderna

concentra em suas mãos um pouco de poder, já que dele emanam


os principais ensinamentos e conselhos seguidos pelos fiéis.
Adaptando o conceito de Thompson (2002), escândalos
religiosos seriam aqueles que ocorrem dentro de uma instituição
religiosa e com representantes dela ou pessoas que atuam em seu
nome. Obviamente, enquadram-se dentro da lógica de escânda-
los de poder teorizada pelo autor.
Assim como os escândalos políticos e econômicos, os reli-
giosos expõem um conflito de interesses deflagrado entre as par-
tes envolvidas. E são escândalos midiáticos posto que os ataques
são deflagrados nos programas da Record e da Globo, que por
sua vez travam um embate político-ideológico à parte. Quando as
denúncias envolvem questões sobre fraude, mau uso das contri-
buições e doações dos fiéis e outros supostos crimes como lava-
gem de dinheiro, peculato e etc., verifica-se um ataque expresso da
Globo contra a Igreja Universal e, por extensão, a Record.
Como não há estudos específicos sobre os escândalos
religiosos, pressupõe-se que as denúncias sobre pedofilia ou
mal uso do dinheiro doado pelos fiéis adquirem tal dimensão
porque contradizem não só as leis seculares como também as
regras religiosas, de que o clero é portador.

METODOLOGIA DE ANÁLISE DAS REPORTAGENS


Ao realizar as pesquisas nos sites das duas emissoras, foi
constatado que as reportagens sobre pedofilia, apesar de efetuar
ataques à Igreja Católica, não fazem referência à Globo, portan-
to, elas foram excluídas da análise. Na tentativa de verificar as
hipóteses levantadas na introdução deste artigo, as reportagens
escolhidas foram analisadas sob os seguintes eixos:
1) Tempo de reportagens;
2) Assunto e temas abordados durante a reportagem;
3) Referências às Igrejas Católica/Universal e qualificação conferida a elas;
4) Referências às Redes Globo/Record e qualificação conferida a elas;
5) Material simbólico das reportagens.

91
Mídia e política: caminhos cruzados

Para análise, foram escolhidas as seguintes reportagens:


1) MP quer ajuda internacional na investigação contra Edir Macedo,
veiculada no Jornal Nacional, em 12/08/2009; 2) EUA vão
investigar integrantes da Universal, veiculada no Jornal Nacional,
em 12/11/2009; 3) uma reportagem do Jornal da Record em
13/08/2009 que rebate as acusações da Globo, mas que já
não estava mais disponível no site da Record; e 4) Record rebate
acusações feitas pela Globo, veiculada no Domingo Espetacular em
15/11/2009. Com a exceção da terceira, que foi obtida no
site YouTube, todas estão disponíveis nos sites das respectivas
emissoras.

RESULTADOS

01) MP quer ajuda internacional


na investigação contra Edir Macedo
A reportagem 01 teve 9 minutos e 31 segundos de dura-
ção. Na verdade, se trata de quatro reportagens que se ligam
por meio de uma passagem dos apresentadores. A primeira
aborda a denúncia promovida pelo Ministério Público e o pe-
dido de ajuda internacional nas investigações, a segunda, as
práticas realizadas pela Igreja Universal para obter doações
dos fiéis, a terceira, um pronunciamento do deputado fede-
ral Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, em repúdio à
ação do Ministério Público e a quarta, a repercussão do fato
na mídia internacional.
As palavras “Igreja Universal” são citadas oito vezes, uma
delas sob texto em imagem; “Edir Macedo”,16 vezes, duas sob a
forma de texto em imagem e em cinco ocasiões ligando o nome
do bispo à Universal, enquanto líder ou fundador; e “Rede Re-
cord”, duas vezes, uma sobre forma de texto em imagem.
A Igreja Universal é qualificada duas vezes como “ins-
trumento de arrecadação de dinheiro”, uma vez como insti-
tuição que “se afastou dos propósitos da religião”. As ima-
92
A cruzada pós-moderna

gens, cobertas pelo off do repórter mostram cultos da Igreja


Universal e em dois momentos: são imagens capturadas com
câmera escondida pela RBS, emissora afiliada da Globo que
atua na região do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Nes-
sas imagens, um pastor da Universal incentiva os fiéis a se
desfazer dos bens para doá-los à Igreja. O pastor clama por
doações que vão de R$ 1 mil a R$ 100 mil.
A Record é qualificada na reportagem como beneficiária de
transferências eletrônicas ou depósitos feitos pela Igreja Universal.
Edir Macedo e os outros nove denunciados pelo Minis-
tério Público são qualificados como “réus” ou “acusados” em
crimes de “lavagem de dinheiro”, “formação de quadrilha”, “en-
riquecimento ilícito”.
As palavras “denúncia/denunciados” aparecem seis vezes
na reportagem; “desvio/desviado”, quatro vezes; “enganou”,
“lesou”, “tirando dinheiro”, “compra de empresas de comuni-
cação”, uma vez cada.
A reportagem mostra ainda elementos usados pela Univer-
sal para obter doações dos fiéis: falso óleo santo e o diploma de
dizimista assinado por Jesus Cristo. Na leitura do material sim-
bólico, esses elementos associados às palavras e imagens usadas
criam no receptor a noção de que a Igreja obtém dinheiro de
forma ilícita e engana os fiéis.

02) Estados Unidos vão investigar integrantes da Universal


A reportagem 02 teve 4 minutos e 34 segundos de duração.
O assunto abordado foi o início da investigação criminal contra
Edir Macedo e outros nove integrantes da Universal pela justiça
dos Estados Unidos.
As palavras “Igreja Universal” são citadas 14 vezes; “Edir
Macedo”, seis vezes, uma vez sob a forma de texto em imagem
e em quatro ocasiões ligando o nome do bispo à Universal, en-
quanto líder ou fundador; e a Rede Record, duas vezes, uma so-
bre forma de texto em imagem. A Igreja Universal é qualificada
93
Mídia e política: caminhos cruzados

duas vezes como “instrumento de arrecadação de dinheiro”, e


originária do dinheiro que é lavado nos Estados Unidos. A Rede
Record é qualificada na reportagem como beneficiária de trans-
ferências eletrônicas ou depósitos feitos pela Igreja Universal.
Edir Macedo e os outros nove denunciados pelo Ministério
Público são qualificados como “réus” ou “acusados” em crimes
de “lavagem de dinheiro”, “formação de quadrilha”, “enriqueci-
mento ilícito”, “desvios de recursos”, “fraude” e “estelionato”.
A reportagem salienta que o dinheiro da Igreja Univer-
sal foi usado por Edir Macedo para a compra de bens pessoais,
propriedades e empresas de comunicação. As palavras “desvio/
desviado” aparecem duas vezes na reportagem; “enganou”, “le-
sou”, “tirando dinheiro”, “compra de empresas de comunica-
ção”, uma vez cada.
Na leitura da material simbólico, percebe-se que a reporta-
gem se legitima na fala do promotor Adam Kauffmann, que afir-
ma que muitas igrejas utilizam o dinheiro doado pelos fiéis para
comprar de empresas de comunicação. Além disso, o promotor
assegura que só investiga casos em que há provas consistentes, o
que cria no espectador a noção de certeza dos crimes cometidos
por Edir Macedo e pela Universal.

03) Jornal da Record (13/08/2009)


A reportagem 03 teve 22 minutos e 58 segundos de duração,
divididos em três eixos temáticos. A primeira parte rebate as acu-
sações feitas pela Globo, a segunda procura legitimação para argu-
mentação em declarações de políticos do alto escalão brasileiro e a
terceira mostra pessoas que mudaram de vida (geralmente enrique-
cendo) graças à prosperidade que a Igreja Universal lhes trouxe.
A Globo é citada 23 vezes, sete sob a forma de imagem;
a família Marinho é citada duas vezes; e o Jornal Nacional, três
vezes. A Record e a Universal são citadas sete vezes; e a Igreja
Católica, duas vezes.
A Globo é qualificada como detentora do “monopólio” da
94
A cruzada pós-moderna

comunicação; a palavra “monopólio” é falada 12 vezes, dez em de-


clarações de deputados e senadores. A emissora também recebeu
a qualificação de “centralizadora” e “preconceituosa” e suas ações
foram consideradas “ridicularização da fé evangélica”, “promotora
de ataques, agressões e ironias”, “transformação de verdades em
mentiras”. Além disso, a Globo foi acusada de “usar dinheiro pú-
blico”, “desviar dinheiro público”, realizar “compra de nota fiscal
falsa”, “falsificar concorrência”, “obter dinheiro público de forma
ilegal”, “desviar dinheiro pago pelo contribuinte”, “causar prejuízos
no BNDES” e “realizar, por meio de seus altos funcionários, fes-
tas regadas a drogas”. O Jornal Nacional foi acusado de promover
mentiras e falsas acusações contra a Record e a Universal.
Tanto a emissora quanto a Igreja de Edir Macedo foram qua-
lificadas como vítimas. A emissora é considerada na reportagem um
veículo com “coragem de revelar o monopólio da comunicação”.
A Igreja Universal é qualificada em suas ações como “promotora
da prosperidade desejada por Deus”, “obreira da causa divina”. A
Igreja Católica é citada de forma neutra, em todas as ocasiões para
demonstrar que o uso de símbolos e ritos da Universal encontra
similaridade no catolicismo.
Na segunda parte da reportagem, declarações de deputados
federais, senadores e juízes expõem que é necessário democratizar
a informação no país e todos se mostram contrários ao monopólio
da Globo. Alguns congratulam e Record pela qualidade de seus pro-
gramas e por atuar na quebra deste monopólio.
Finalmente, na terceira parte da reportagem são mos-
tradas pessoas que conseguiram superar problemas de ordem
financeira e reestabelecer a prosperidade em suas vidas. Esta
parte enfatiza os ganhos econômicos e a melhoria no padrão
de vida que tais fiéis tiveram. As declarações deles explicam
que a doação do dízimo é espontânea e uma forma tanto de
retribuir a Deus o que eles ganharam como de contribuir para
as obras de caridade da Universal.
Em nota de rodapé, os apresentadores informam dados de
uma pesquisa realizada pelo portal Terra, na qual perguntavam
95
Mídia e política: caminhos cruzados

quem tinha na razão na guerra entre Globo X Record e cujo


resultado apontava “vitória” da Record. Por fim, os apresenta-
dores asseguram que a Record não está em guerra, está apenas
fazendo uso do seu direito de defesa.
Na leitura do material simbólico, percebe-se que a Record,
para se defender, promove denúncias nas quais revelaria que a
Globo conquistou o monopólio, obteve empréstimos e recursos
financeiros e articulou-se politicamente de forma obscura. Além
disso, ela mostra a Igreja Universal como uma religião que utiliza
os mesmos ritos e práticas que a Igreja Católica. Porém, ao uti-
lizar declarações de políticos, juízes e pessoas da sociedade civil,
fica claro que a Record incita um conflito ideológico da Globo
contra a sociedade brasileira.

04) Record rebate acusações feitas pela Globo


A reportagem 04 teve 13 minutos e 54 segundos e abordou
incoerências na reportagem EUA vão investigar integrantes da Universal,
da Globo. O nome da emissora é falado 26 vezes, em 12 vezes o
nome aparece na forma de logomarca da empresa (o globo ou a
palavra Rede Globo). Inclusive uma das passagens é feita tendo ao
fundo a sede da emissora. A família Marinho tem seu nome falado
sete vezes.
A Rede Globo é qualificada como “manipuladora” (três ve-
zes), “deturpadora” (duas vezes), que age com “segunda intenções”,
demonstra como “não fazer jornalismo” e promove “ofensas”,
“ataques” e “deboches” contra a comunidade evangélica. Além dis-
so, a reportagem veicula uma declaração da ex-governadora do Rio
de Janeiro, Rosinha Garotinho, na qual ela acusa a emissora de en-
viar ilegalmente dinheiro para contas em paraísos fiscais.
A reportagem traz também trechos da entrevista realizada
pela Globo com o promotor Adam Kauffmann e mostra como o
repórter Cesar Tralli teria insistido em conseguir declarações do pro-
motor que comprovassem ou insinuassem os crimes de Edir Mace-
do e da Universal e, além disso, como o jornalista teria deturpado
96
A cruzada pós-moderna

as declarações de Kauffmann. Nos trechos exibidos na matéria em


análise, o promotor não confirma acusações contra a Record e man-
tém-se neutro em relação ao assunto. Em vários momentos, trechos
da reportagem da Globo são reexibidos pela Record, principalmen-
te quando a Record desconstrói a argumentação da Globo e insinua
a deturpação e manipulação da mensagem.
Quase no final da reportagem, o enfoque muda para o trata-
mento dado à representação dos evangélicos nas novelas e minis-
séries da Globo. Em todos os exemplos citados, os evangélicos são
mostrados como corruptos, interessados em sexo e em dinheiro, ou
como fanáticos religiosos.
A reportagem termina insinuando e especulando que a Glo-
bo ataca a Record por medo de perder audiência diante do cresci-
mento da emissora de Macedo. Em formas de perguntas, o repórter
deixa claro que as acusações ocorrem dias após a inauguração dos
novos estúdios da Record, do lançamento do portal de notícias R7
e do anúncio da compra dos direitos de transmissão dos jogos Pan-
Americanos de 2011 e 2015 e dos jogos Olímpicos de 2012.
Com a leitura do material simbólico, nota-se que a Record,
que é qualificada no material como “vítima”, utiliza como forma de
defesa o ataque. A mensagem ao receptor é que a emissora está sen-
do atacada de forma infundada, mediante mentiras promovidas pela
concorrente, que as faria por medo que o crescimento da Record
pudesse acarretar em perda de parte da audiência da Globo.

ANÁLISE GERAL DOS RESULTADOS


Em suas reportagens, a Rede Globo demonstra maior neu-
tralidade em relação à Rede Record. O direcionamento, desfa-
vorável a esta, ocorre mais devido ao enfoque dado nas maté-
rias que na utilização de estruturas argumentativas opinativas. A
qualificação feita pela Globo é quase sempre em relação a Edir
Macedo e a Igreja Universal. A Record é citada meramente como
uma empresa comprada de forma ilegal pelo religioso. No entan-
to, as reportagens analisadas demonstram que as acusações parte
97
Mídia e política: caminhos cruzados

primeiro da Globo e a Record contra ataca em forma de defesa.


A estratégia de defesa utilizada pela Record pode ser conside-
ra como ataques contundentes. Nas suas reportagens da emissora,
os apresentadores chamam as matérias enfatizando a vitimização da
Record e as acusações da Globo. Em vários momentos, o repórter
questiona os motivos de a Globo atacar a Record, direcionando o
espectador para questão da perda de audiência por parte daquela.
Ou seja, não se oferece ao público a possibilidade de desvendar tais
motivos, pois eles são direcionados pelo repórter da Record.
Em ambas as reportagens, a Record destaca o tempo des-
pendido nas reportagens da Globo, afirmando que eles são mui-
to superiores ao comumente usado em reportagens televisivas.
No entanto, as contrapartidas da Record têm mais duração.
Outro ponto curioso, mas que não será aprofundado neste ar-
tigo, é o fato de as imagens da Globo serem todas produzidas pelas
própria emissora, inclusive aquelas que mostram cultos da Universal
ou atos de seus pastores. Já parte das imagens da Record são repro-
duções das reportagens, minisséries e telenovelas da Globo.
Na leitura simbólica, a guerra entre as duas emissoras se
torna evidente. De um lado, a Globo afirma que a Record e a
Universal são instrumentos de enriquecimento utilizados por
Edir Macedo; do outro a Record expõe relações escusas de po-
der praticadas pela Globo, dentre elas manipulação e obtenção
ilegal de dinheiro público. Embora não faça um ataque expresso
à Igreja Católica, simbolicamente a Record vincula a Globo alia-
da aos interesses do clero católico.

CONFLITO IDEOLÓGICO
O conflito entre as duas emissoras deixa claro que as ar-
ticulações em busca da concentração de poder estão sempre li-
gadas a questões políticas e econômicas. Aqui é a busca pelo
aumento da audiência e, por conseguinte, a obtenção e retenção
de publicidade que atuam no conflito deflagrado. Nessa disputa,
não é exagero afirmar que guerreiam Davi e Golias.
98
A cruzada pós-moderna

As quatro reportagens analisadas demonstram um postula-


do levantado por Szpacenkopf (2003, p. 58): dentre as estratégias
de obtenção de poder, “encontra-se o do ritual que impõe regras
aos falantes, qualificando-os ou não para falar”. Nas reportagens
cada emissora legitima sua argumentação utilizando apenas entre-
vistados que confirmem os fatos apresentados (muito embora a
Globo, em nota de rodapé, afirme ter procurado o advogado de
Edir Macedo). Os telejornais acabam, portanto, servindo de por-
ta-vozes para o discurso de autoridade (SZPACENKOPF, 2003).
Conforme Thompson (2002), nota-se que os escândalos
promovidos pelas duas emissoras são escândalos midiáticos, que
revelam muito mais do que as relações de poder existentes den-
tro das instituições religiosas. Tais denúncias e acusações desve-
lam uma intrincada rede de poder exercida pelas emissoras.
Se por um lado o crescimento da Record oferece ao espec-
tador uma descentralização da informação e a produção de pro-
gramas com qualidade similar à da Globo, não se deve esquecer
de que a emissora de Edir Macedo também atua e se articula na
defesa de interesses próprios, muitos deles de ordem econômica.
De fato, serviço ao público nenhuma das emissoras faz, mesmo
ambas sendo detentoras de concessões públicas.
Estaríamos, pois, vivenciando a décima edição das cruza-
das? A resposta é óbvia. Exércitos são mobilizados, tropas são
movimentadas, estandartes são empunhados, o nome de Jesus
Cristo é propagado e os fiéis são libertados do julgo do ímpio.
Porém, hoje não se utilizam mais cavalos, canhões, esquadras.
Utilizam-se televisões, jornais, telenovelas. O general deu lugar
ao jornalista, o soldado disfarça-se na pele de artista, as bombas
transformaram-se em mensagens (não menos bombásticas). Só
não mudou a atuação das “igrejas”.
Entretanto, hoje quem exorta seu séquito e exército a libertar
a “audiência santa” do domínio dos ímpios é o bispo e não mais
o papa. É ele quem articula peões, cavalos e torres para o grande
xeque-mate. Nem que para isso seja necessário trajar-se como o ini-
migo, disfarçar-se sob suas vestes e assumir seu rito e fazer o povo
99
Mídia e política: caminhos cruzados

de Deus acreditar que se luta na defesa de um ideal santo.


Enfim, nesta moderna guerra santa há interesses de todos os
tipos, menos o do lado mais fraco. Não há quem ore pelos peca-
dores, agora ou na hora de suas mortes. A eles restou professar
um só credo, porque hoje Globo e Record professam uma só fé e
rezam um só rito – mudam os santos, mas não muda a doutrina.
A cruzada insinua não ter fim, a luta pelo controle hegemônico
da assembleia e do mercado será eterna posto que estes passarão
de uma mão para outra, cíclica e constantemente.

REFERÊNCIAS

BIRMAN, P; LEHMANN, D. Religion and the media in a battle for ideo-


logical hegemony: the Universal Church of the Kingdom of God and TV
Globo in Brazil. Bulletin of Latin American Research, v. 18, n. 2, p. 145-
164, 1999. Disponível em: <http://www.davidlehmann.org/david-docs-pdf/
Pubpap/lehmann%20and%20birman.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2010.
EDIR MACEDO ATACA “MONOPÓLIO” DA GLOBO NA ESTREIA
DO RECORD NEWS. Folha Online. São Paulo, 27 set. 2007. Folha Ilus-
trada. Disponível em:< http://www1. folha.uol.com.br/folha/ilustrada/
ult90u332077.shtml>. Acesso em: 22 jun. 2010.
MANSINI, G. In persona Christi and the Legacy of the Second Vatican
Council. Indiana, s/d. Disponível em: <http://www.mtsm.org/news/Mansi-
ni%20-%20In%20persona%20Christi .pdf>. Acesso em 22 Jun. 2010.
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com/TVG/0,,TG2541-3914,00.html>. Acesso em: 22 jun. 2010.
SILVA, M. R. Globo X Record: algo novo ou mais do mesmo. s/d. Dis-
ponível em: <http://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:5zOT6AHis
WwJ:www.muticom.org/internet/40.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2010.
SZPACENKOPF, Maria Izabel de Oliveira. O olhar do poder: a montagem
branca e a violência no espetáculo telejornal. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
THOMPSON, J. B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da
mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.

100
Um escândalo anunciado
o agendamento do caso de estelionato da
VC Consultoria em cinco telejornais locais
Hendryo André1

INTRODUÇÃO
Em âmbito regional, escândalo foi um dos termos mais uti-
lizados nos noticiários entre os dias 12/03 e 20/03/2011. Os
principais veículos de comunicação de Curitiba repercutiram o
caso da VC Consultoria, rede financeira que conferia empréstimos
a aposentados e pensionistas do Instituto Nacional de Segurança
Social (INSS) e que após investigações teve suas lojas lacradas –
seis unidades em Curitiba, oito no interior do Paraná e três em
Santa Catarina – por decisão do Ministério Público, sob acusa-
ção de estelionato. A organização fazia descontos em folhas de

1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade


Federal do Paraná (UFPR) pela linha Comunicação, política e atores coletivos. Possui graduação
em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo (2009) pela Universidade Positivo (UP).
Integrante dos grupos de pesquisa Estudos da Imagem (UFPR) e Múltiplas Linguagens em
Comunicação (UP), ambos registrados junto ao CNPq.

101
Mídia e política: caminhos cruzados

pagamentos até mesmo de pessoas que não haviam realizado


qualquer movimentação financeira junto ao grupo. Segundo as
notícias veiculadas na época, o rombo provocado ultrapassou a
casa de R$ 10 milhões. Na ocasião, o proprietário da empresa,
Neviton Pretti Caetano, e mais cinco pessoas foram detidas.
Esse foi o assunto com a maior repercussão nas temáti-
cas segurança/violência no período de monitoramento (12 a
20/05/2011) em nove telejornais paranaenses (cinco deles sele-
cionados para este artigo2), elaborado como uma das atividades
avaliativas do curso “Comunicação e Política: as relações de poder no
telejornalismo3”, disciplina optativa ministrada para as três habilita-
ções (Jornalismo, Publicidade e Propaganda e Relações Públicas)
do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Pa-
raná (UFPR) durante o primeiro semestre letivo de 2011.
O interessante é que a VC Consultoria era anunciante
assídua4 da maior parte dos veículos de comunicação da região.
A título de curiosidade, entre as cinco emissoras selecionadas
para compor esta análise apenas uma não recebia receitas da
financeira. Se, por um lado, o veículo foi o que fez ataques mais
contundentes à organização, por outro há indícios de que essa
rigidez na cobertura não é fruto exclusivo de um “boicote” da
VC Consultoria à emissora.

2. Os telejornais são: Paraná TV (do grupo GRPCOM, afiliado da Rede Globo no Paraná),
Boa Tarde Paraná (Band), Programa 190 (CNT), RIC Notícias (Rede Independência de Co-
municação, afiliada da Rede Record no Paraná e em Santa Catarina) e SBT Paraná (Rede
Massa, afiliada ao SBT).
3. Disciplina optativa com 30 horas/aula, ministrada no segundo semestre de 2010 e no primeiro
semestre de 2011. Os resultados deste trabalho contemplam apenas o monitoramento realizado
em conjunto com a última turma, experiência que serviu como estágio de docência do autor.
4. Apesar de não ter sido nomeada na ocasião, a empresa já havia chamado a atenção por conta
dos modos como construía suas inserções publicitárias no programa Tribuna da Massa, fato que
resultou no artigo Quando os crimes vendem: usos de discursos sobre violência no telejornalis-
mo opinativo regional, apresentado no XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região
Sul (Intercom). Para saber mais ver André (2011).

102
Um escândalo anunciado

Aliás, esse aspecto analisado isoladamente poderia levantar


dúvidas sobre a repercussão do assunto nos demais canais de in-
formação, visto que quando se inicia um diálogo qualquer sobre o
comportamento dos veículos midiáticos frente a temas que envol-
vam seus respectivos anunciantes, é lugar comum a noção de que os
primeiros perdem parte de sua autonomia em função de laços eco-
nômicos – ou até mesmo políticos – com os últimos. No entanto,
apesar de o evento midiático envolver um anunciante incomum, a
cobertura jornalística em relação ao caso não foi subestimada – ex-
ceção feita ao telejornal SBT Paraná –, o que denotou que os valores-
notícia – ou seja, as características intrínsecas que um acontecimento
“carrega” para virar notícia5 – podem influenciar nas relações entre
campos diferentes de poder a ponto de agendar assuntos conflituo-
sos a esses produtores e/ou empresas jornalísticas.

JORNALISTAS: COMUNIDADE INTERPRETATIVA

O jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e


humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade.
Quem não sofreu essa servidão que se alimenta de imprevistos
da vida não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação so-
brenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do
fracasso não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não
tenha nascido para isso poderia persistir numa profissão tão in-
compreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia,
como fora para sempre, mas que não concede um instante de paz
enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no
minuto seguinte (CAROS AMIGOS, 1997, p. 46).

5. Não há consensos sobre essas definições, de modo que alguns autores não se preocuparam em
destacar diferenças entre os termos. Dentro da teoria interacionista, Traquina analisa as notícias
ao considerá-las como pertencentes a um processo de produção, entre cujas características estão:
“a percepção, seleção e transformação de uma matéria-prima (os acontecimentos) num produto
(as notícias). Os acontecimentos constituem um imenso universo de matéria-prima; a estratifica-
ção deste recurso consiste na seleção do que irá ser tratado, ou seja, na escolha do que se julga ser
matéria-prima digna de adquirir a existência pública de notícia” (TRAQUINA, 2005a, p. 180).
Essa definição é adotada neste artigo.

103
Mídia e política: caminhos cruzados

O trecho anterior, de autoria do escritor e jornalista colom-


biano Gabriel García Marquez, extraído da primeira edição da re-
vista Caros Amigos, em abril de 1997, lança mão de uma definição
do ato de ser jornalista, ou seja, dos desafios inerentes aos quais a
carreira traz àqueles que se entregam a ela. Nela, Marquez desta-
ca características que integram uma cultura jornalística, isto é, com-
petências profissionais como o fôlego para buscar no inusitado
o retrato do cotidiano, a capacidade para encarar imprevistos, o
desafio para lidar com a falta de tempo na busca e checagem da
informação, a frustração pelo erro e, entre outras, a formação de
uma identidade profissional cuja essência emoldura no imaginário so-
cial o jornalista como um justiceiro nato, como um verdadeiro
cão de guarda (watchdog) das sociedades democráticas.
Ao estabelecer conexões entre as coberturas jornalísticas
referentes à problemática da AIDS em quatro países – Brasil,
Estados Unidos, Espanha e Portugal, país onde desenvolveu
maior parte de sua vida acadêmica –, Nelson Traquina (2005b)
chega à conclusão de que tais competências não são inatas aos
indivíduos que optam pelo jornalismo, embora sejam arranjos
que integram uma cultura profissional que rompe distâncias
geográficas, econômicas, políticas e culturais, possibilitando
que esses atores constituam uma “comunidade interpretativa”. Para
o autor, essa tendência de priorizar alguns aspectos das notícias
em detrimento a outros faz com que os produtos jornalísticos
sejam mais pasteurizados do que a primeira vista possam parecer.
Isso ocorre em função dos cuidados com a concorrência6, das

6. Há vários conceitos que remetem à noção de “concorrência” entre os veículos de comunicação


e que fomentam a noção de cultura jornalística. Dois deles merecem devido destaque: o primeiro
deles é o que Bourdieu (1997, p. 32) chama de “circulação circular da informação”, cujo teor
consiste no fato de que há uma rotina dos jornalistas em lerem uns aos outros, o que padroniza
a notícia: “para saber o que se vai dizer é preciso saber o que os outros disseram. Esse é um dos
mecanismos pelos quais se gera a homogeneidade dos produtos propostos”. Já o segundo conceito
é invocado por Kucinski: a “mesmice jornalística”, provocada por diversos paradoxos cometidos
pelas empresas jornalísticas nos tempos do neoliberalismo.

104
Um escândalo anunciado

relações existentes entre jornalistas e fontes, além de uma roti-


na de trabalho que se torna ritualizada por fetiches como, por
exemplo, a eterna sensação de escassez de tempo, a industria-
lização e comercialização das notícias e, por fim, um processo
de profissionalização da carreira.
Certamente, dentro dessa teia de competências profis-
sionais mencionadas pelo escritor colombiano e apontadas
como fruto de uma cultura jornalística pelo pesquisador nor-
te-americano radicado em Portugal deve ser incluída também
a acurácia para lidar com a cobertura midiática de escândalos
nos mais variados campos de poder, já que, de acordo com
John Thompson (2002), a partir da visibilidade midiática esses
eventos passam a ser dotados por predicados próprios, quase
sempre ligados ao caráter público que cerceia o jornalismo. No
entanto, os escândalos midiáticos – esses episódios que são
“de diferentes maneiras e até certo ponto, constituídos por
formas midiáticas de comunicação” (THOMPSON, 2002, p.
59) – trazem também um aspecto em âmbito privado, cujos
interesses só podem ser observáveis a partir de uma análise
crítica de cada evento:

O que é público, no sentido tomado aqui, é o que é visível ou


observável, o que é desempenhado diante de espectadores, o
que é aberto para que todos, ou muitos, possam ver, ouvir, ou
ouvir falar a respeito. O que é privado, em contraste, é o que é
escondido da vista, o que é dito ou feito em segredo ou entre
um círculo restrito de pessoas. Nesse sentido, a dicotomia pú-
blico-privado tem a ver com publicidade versus privacidade, com
abertura versus sigilo, com visibilidade versus invisibilidade. Um
ato público é um ato visível, desempenhado abertamente, de tal
modo que todos possam ver; um ato privado é um ato invisível,
um ato desempenhado secretamente e atrás de portas fechadas
(THOMPSON, 2002, p. 64-65).

Embora não nomeie o termo escândalo, Bernardo Ku-


cinski (2005, p. 19) aponta que em um cenário ideal a apura-
ção jornalística deveria ser influenciada por uma ética kantia-
105
Mídia e política: caminhos cruzados

na7, “na qual o valor da verdade transcende todos os demais e


se coloca de modo absoluto”. Se os jornalistas, por um lado,
adotassem esse princípio por vocação, por preocupação com
o que se denomina interesse público, seria alegável enquadrar a
carreira no seguinte princípio:

Nessa concepção idealista, eu pregava que o jornalismo é uma ativi-


dade que se define por uma ética e não por uma técnica. E que essa
ética é formada por um imperativo categórico, ou seja, um preceito
universal de conduta aplicável em todas as circunstâncias e que não
admite adaptação ou compromisso: o imperativo categórico da verdade.
Por esse imperativo, o jornalismo existe para socializar as verdades
de interesse público, para tornar público o que grupos de interesse
ou poderosos tentam manter como coisa privada. O absolutismo
dessa ética pode ser sentido por uma de suas implicações, a de que
o jornalista não é responsável pelas conseqüências da divulgação
de uma verdade de interesse público, seja ela qual for. Mas é res-
ponsável e até cúmplice das conseqüências de não ter socializado
essa verdade de interesse público (KUCINSKI, 2005, p. 18-19).
(grifos do autor).

No entanto, é impossível afirmar que no caso da VC Con-


sultoria houve uma sobreposição da ética jornalística de caráter

7. É bem verdade que o autor anuncia que nos tempos de triunfo do neoliberalismo uma visão kan-
tiana da ética jornalística acabaria por provocar uma interpretação fundamentalista dessa atividade
profissional. Ao citar exemplos de autocensura e de desvios éticos da profissão ainda durante o pro-
cesso de formação universitária, Kucinski defende um princípio – baseado no texto “A política como
vocação”, de Max Weber – de que os jornalistas devam exercer a atividade por vocação. No entanto, o
ensaio do sociólogo alemão aponta diversas vezes para um olhar elitista da carreira política, já que, se-
gundo Weber (1968), “o homem político deve, em condições normais, ser economicamente indepen-
dente das vantagens que a atividade política lhe proporcionar. Quer isso dizer que lhe é indispensável
possuir fortuna pessoal ou ter, no âmbito da vida privada, situação suscetível de lhe assegurar ganhos
suficientes” (WEBER, 1968, p. 65). Em síntese, o neoliberalismo por um lado inflacionou o mercado
de trabalho dos jornalistas, formando profissionais “sem vocação” ao mesmo tempo em que possibili-
tou o ingresso desses atores no mercado de trabalho. Kucinski (2005, p. 26) foge desse caráter elitista
da carreira ao mencionar diversas formas de o jornalista ter capacidade de aprender mesmo dentro da
doutrina neoliberal: “O saber é alérgico ao mau jornalismo, à manipulação desonesta da informação.
(...) Certamente o saber pode ser um valor central numa nova ética, porque tem essa característica de
tornar seu portador naturalmente resistente à desonestidade intelectual e à manipulação”.

106
Um escândalo anunciado

kantiano – como se houvera uma convulsão ética por parte das


emissoras em detrimento a quaisquer relações econômicas e po-
líticas –, muito embora seja crucial levar em consideração que
discursos que fazem apologia à noção de interesse público são
propícios para a construção de escândalos midiáticos.
O mais relevante, todavia, é compreender a possibilidade
de se avaliar cientificamente como se dão as relações de poder
entre os produtores no espaço privado, ou seja, a negociação para
que determinado assunto se torne público. Por isso, este trabalho
se propõe, ainda que de maneira sucinta, a ingressar no campo
jornalístico para entender os meandros dos escândalos midiáticos
a partir de uma composição das formações discursivas que ordenam
discursos cuja repercussão atinja, no mínimo, dois grupos de co-
municação diferentes. Assim, apropria-se de aspectos da teoria do
agendamento para inferir como um acontecimento ganha notorieda-
de suficiente para se transformar em um escândalo midiático e da
análise de discursos para examinar como estão ordenadas as relações
de poder nos atos privados, deixando a porta a qual há pouco des-
creveu Thompson (2002) entreaberta.
Para que isso ocorra de fato, houve a opção em escolher um
escândalo agendado nos telejornais curitibanos. Como os discursos
são dispersos por natureza, porque são enunciados de forma frag-
mentada, foi preciso buscar subsídios metodológicos para criar uma
regularidade entre os diferentes produtos televisivos, transformando-
os numa esfera discursiva comum (BRANDÃO, 2004, p. 32-33).
Com a intenção de atingir esse objetivo optou-se pelo monitora-
mento de telejornais8, que para Fernando Arteche Hamilton é “um

8. Acredita-se que trabalhar com a análise de discursos dentro do campo do jornalismo a partir da
noção de monitoramento de mídia é uma escolha metodológica interessante, à medida que quaisquer
estudos nessa concepção passam por critérios que estão inscritos a um espaço de tempo e a condições
próprias de produção. Em síntese, a visão geral possibilitada pelo monitoramento faz com que a ava-
liação tenha que ser construída a partir de narrativas que dialogam com todo o conjunto do telejornal,
ao contrário de quando o pesquisador pinça um assunto ou um caso específico (o que pode levar o
cientista social a cair mais facilmente em armadilhas ideológicas). Além disso, pesquisas constantes
de monitoramento possibilitam descobrir mudanças e tendências desses produtos.

107
Mídia e política: caminhos cruzados

conhecimento mais preciso das condições de produção dos telejor-


nais” (HAMILTON, 2008, p. 96) já que estabelece “comparações
entre os programas informativos” (ibid.).
Ao se atentar ao pilar estabelecido por Traquina (2005a,
2005b) de que existe uma comunidade interpretativa de jornalis-
tas que, segundo o autor, é de caráter transnacional e, ao mesmo
tempo, distinguir aspectos próprios das condições de produção
dos telejornais, visa-se compreender os motivos pelos quais a
cobertura jornalística do caso divergiu do paradigma de que os
veículos de comunicação são reféns dos anunciantes.

ARRANJOS PARA O AGENDAMENTO MIDIÁTICO


No tópico anterior foi levantada a hipótese de que as no-
tícias, apesar dos “óculos” dos jornalistas – “a partir dos quais
[esses profissionais] vêem certas coisas e outras não; e vêem de
certa maneira as coisas que vêem” (BOURDIEU, 1997, p. 25) –,
são mais similares do que a primeira vista possam parecer. Isso
se deve, de acordo com Traquina (2005a), às transformações que
o jornalismo sofreu a partir do século XIX. Com a hegemonia
do pensamento positivista nessa época, o campo passou a viver
uma fase de “culto aos fatos” em detrimento à comunicação de
cunho político-ideológica até então vigente:
No jornalismo [deste período] apareceu também, de uma forma
crescente, uma nova figura que iria ocupar um lugar mítico e mes-
mo romântico na profissão emergente: o repórter. E era para esse
mundo dos fatos que esta nova figura do campo jornalístico – o
repórter – fazia um esforço supremo: a respiga e a montagem
dos fatos. E este esforço tentava transformar o jornalismo numa máquina
fotográfica da realidade, ou seja, na sua ideologia profissional, o espelho da
realidade. A caça hábil dos fatos dava ao repórter a categoria com-
parável à do cientista, do explorador e do historiador (TRAQUI-
NA, 2005a, p. 52). (grifos adicionados).

Para retratar de forma “fiel” cotidianamente a realidade o


papel da concorrência entre os meios de comunicação tornou-se
108
Um escândalo anunciado

fundamental. Ao buscar critérios objetivos para descrever determi-


nada notícia, um jornalista encontra a isenção enxergando por olhos
alheios, como se tivesse a necessidade de “conferir” se o que viu não
representa uma realidade míope. Essa atribuição herdada do século
XIX e aguçada pela ideologia neoliberal confere não só a formação
de uma comunidade interpretativa como também explica alguns dos
fundamentos da teoria do agendamento, bem como a própria perda
de “vocação” dos produtores do campo citada por Kucinski (2005).
Tendo em mente todos esses elementos que influenciam na
atuação profissional, o foco da análise a partir deste item está no
uso das técnicas de produção para a proliferação de escândalos mi-
diáticos. Visa-se com isso compartilhar do ponto de vista de que o
telejornalismo não pode ser encarado como algo alheio ao meio TV
(MARCONDES FILHO, 2002), fator que faz com que as deman-
das por audiência influenciem diretamente nos modos de produção
da mesma forma que em outros tipos de programas televisivos. Essa
relação entre público e produtores faz com que o teor escandaloso
torne-se um valor-notícia relevante para os jornalistas.
Para Paulo Vaz (2006, p. 13-16), posta como uma das “ma-
térias-primas” no processo contínuo de formação moral e política
dos indivíduos, a notícia televisiva é pautada por duas peculiarida-
des: a rotineira atribuição de responsabilidade imputada pelos produto-
res a si próprios – que gera aos profissionais de mídia a tarefa de
representar o público frente às autoridades e, por consequência,
auxiliá-lo a combater ou reduzir o sofrimento – e a demarcação entre
as vítimas e os causadores. Esses dois aspectos não deixam de influen-
ciar os modos de endereçamento das notícias, ou seja, as maneiras como
os produtores pensam que determinado assunto vai atingir o pú-
blico e que auxiliam de forma direta na construção da identidade
profissional desses atores.
Será dada ênfase à atribuição de responsabilidade. As narrativas
jornalísticas, apesar do cunho factual, são embasadas por princípios
que fogem ao tempo presente. Vaz (2006, p. 15-16) afirma que os
discursos são fundamentalmente circunscritos por três eixos narra-
tivos: “o que aconteceu poderia ter acontecido com qualquer um; o que aconteceu
109
Mídia e política: caminhos cruzados

pode acontecer novamente; o que aconteceu poderia não ter acontecido”. É presu-
mível ressaltar que esses três eixos discursivos colocam o jornalismo
em uma encruzilhada: nos dois primeiros é possível perceber o en-
calço do medo na produção midiática, enaltecido quando o assunto
trabalhado é a segurança/violência. No último, no entanto, põe-se
em evidência um grande paradoxo da profissão: a transformação
de um acontecimento em notícia deveria à medida do possível ser
prevista pelos indivíduos, o que evitaria assim formas de danos/
sofrimento. É neste ponto que a cobertura do caso da VC Consul-
toria ganha contornos nítidos, especialmente no telejornal Paraná
TV, quando o veículo praticamente inicia uma guerra contra o
INSS (este assunto será retomado no tópico Paraná TV e a “cultura
do risco”: a aparição das vítimas).
Segundo Traquina, os jornalistas têm uma maneira de cons-
truir as notícias, chamada por ele de “vocabulário de precedentes”, cuja
aprendizagem é dada por “um processo sutil, de acumulação, ba-
seado na experiência e nas transações diárias com colegas, fon-
tes, superiores hierárquicos e textos jornalísticos” (TRAQUINA,
2005b, p. 41). Dividido em três saberes – reconhecimento, que é a
acurácia para identificar nos acontecimentos o potencial para tor-
ná-los notícia; procedimento, que são os critérios utilizados para a
construção das notícias, desde o gancho até a escolha das fontes; e,
por fim, narração, que “consiste na capacidade de compilar todas
essas informações e ‘empacotá-las’ numa narrativa noticiosa, em
tempo útil e de forma interessante” (TRAQUINA, 2005b, p. 42) –
o vocabulário de precedentes auxilia o jornalista a se desvencilhar
da imprevisibilidade, tornando a atividade mais segura9.

Mas a narrativa noticiosa tem um padrão de continuidade tal que


permite o reconhecimento por parte das audiências. (...) cada notí-
cia sobre crime é escrita sobre um pano de fundo de outras notícias
sobre crime. As notícias do tipo “escândalo” mobilizam igualmen-

9. No sentido de que o profissional se apega a essas técnicas para construir a notícia dentro do período
de deadline.

110
Um escândalo anunciado

te uma estrutura narrativa já conhecida pelo público (...). Assim, o


‘saber de narração’ implica o conhecimento de todo um ‘inventário
de discurso’ (HALL, 1984), isto é, a mobilização de todo um ca-
tálogo de ‘estórias’ que permite aos jornalistas complementarem
o seu trabalho ‘dando-lhes um esqueleto sobre o qual colocam a
carne da nova “estória” (TRAQUINA, 2005b, p. 43-44).

Assim, embora a noção de campo de poder trabalhada por


Pierre Bourdieu (2004) demonstre o quanto há conflitos internos
nesses espaços é pertinente observar que a concorrência particular-
mente no campo do jornalismo instiga similaridades, o que conso-
lida ainda mais a noção de comunidade interpretativa transnacional
apresentada por Traquina (2005b). Antes de demonstrar como se
formam as teias de poder entre os telejornais curitibanos – com a
análise do caso da VC Consultoria –, inicia-se uma discussão so-
bre gêneros no telejornalismo. Ao final, espera-se demonstrar que
os discursos/abordagens, por conta dos critérios de concorrência,
são mais similares do que se imagina, embora haja algumas discre-
pâncias em função de os veículos possuírem formatos e linguagens
distintas. Essa discussão sobre gêneros deve ainda ser acompanhada
por arguições acerca do campo do telejornalismo.

GÊNEROS E CAMPOS DE PODER


Para Hamilton (2008, p. 101) há duas tendências que resu-
mem a concorrência no telejornalismo brasileiro: a padronização,
quase sempre ligada ao gênero polifônico10, em função de alguns

10. Para Hamilton (2008, p. 99), tal gênero é pautado pela polifonia de vozes, cujo paradigma
aponta que a polifonia “deve ser sempre diversa e democrática, isto é, quanto mais atores sociais
derem suas versões sobre os fatos, mais amplo será seu entendimento por parte do telespecta-
dor”. Traquina (2005a, p. 59-60) aponta que a multiplicidade de fontes no campo do telejorna-
lismo se torna relevante no século XIX, a partir da cobertura da Guerra Civil americana: “Os
repórteres recorrem cada vez mais à técnica de entrevistar as pessoas na obtenção dos fatos. (...)
Não só peças noticiosas incluíam cada vez mais fontes múltiplas, apresentando uma diversidade
de pontos de vista no mesmo artigo, como também os jornalistas demonstraram ainda mais
agressividade na obtenção de elementos informativos”.

111
Mídia e política: caminhos cruzados

grupos locais serem afiliados de redes de comunicação de alcan-


ce nacional; e a personalização, percebida em programas mais re-
centes, cujo preceito está no confronto “contra a predominância
de concorrentes mais antigos e com maior audiência. É a busca
pelo diferencial a partir do estilo da apresentação, fortemente
ligada ao apresentador”.
A restrição à regionalização de telejornais ligados a redes que
priorizam determinados padrões de qualidade faz com que aspectos
culturais marcantes de cada região sejam sonegados (HAMILTON,
2008). Por isso, a padronização, entre outras características, elimina
quase que por completo as particularidades culturais de cada locali-
dade: em nome do padrão de qualidade e de credibilidade, o modelo
de cenário é reconhecido em qualquer região do país, assim como
as vinhetas; as expressões locais são evitadas, bem como há cuida-
dos prévios com o uso dos sotaques; os vestuários de repórteres e
apresentadores são essencialmente similares, independente do lugar
de veiculação, o que reforça na própria rotina de produção o com-
partilhamento de valores entre os jornalistas.
Às margens dessa sobreposição das técnicas de produção
padronizadas frente às culturas locais, a personalização, embasada
pelo gênero opinativo, cria um contexto mais próximo ao cotidia-
no dos telespectadores, embora sejam cada vez mais perceptíveis
casos de padronização no gênero opinativo11.
Dessa forma, não há como compreender didaticamente o
campo do telejornalismo sem subdividi-lo nesses dois grandes gê-
neros que, segundo Arlindo Machado (1999, p. 143), têm a função
“de organizar idéias, meios e recursos expressivos, suficientemente
estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade

11. Transmitidas por emissoras afiliadas da Rede Record, as versões regionais do Balanço Geral
têm o mesmo formato em todo o país, embora os apresentadores expressem opiniões e tentem
se apresentar como personalidades autênticas. Em escala de alcance menor, o Tribuna da Massa
também traz indícios de padronização nas praças televisivas em território paranaense. Estima-se
que algo semelhante ocorra com o Programa 190, já que nos últimos anos, o programa passou
a ser veiculado em Salvador, São Paulo, Brasília, Porto Alegre e, por último, no Rio de Janeiro.

112
Um escândalo anunciado

dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades


futuras”. Entre os destaques dados pelo autor, aquele que alerta para
as constantes mudanças pelas quais invariavelmente passam os gê-
neros, fator que possibilita a heterogeneidade e pluralidade, merece
ênfase: “Não compreender essa vertiginosa variedade pode implicar
numa concepção de gênero esclerosada, esta sim desprovida de sen-
tido, anacrônica e irrelevante” (MACHADO, 1999, p. 145).
Embora já se tenha inferido sobre a padronização, o mesmo
não pode ser dito a respeito da personalização, segunda via dentro
do campo do telejornalismo e que ganhou relevância mediante a
ascensão das classes populares como consumidoras de conteúdos.
Isso se dá, sobretudo, a partir do Plano Real 12. Nesse contexto, o
papel ocupado por produtores voltados às classes populares no
interior do campo ganhou importância, conforme Bourdieu:

A maior parte dos discursos que foram ou são pronunciados em


favor do “povo” são obra de produtores que ocupam posições
dominadas no campo de produção. (...) o povo, mais ou menos
idealizado, costuma ser um refúgio contra o fracasso e a exclusão.
Observa-se inclusive que a relação que os produtores provenientes
do “povo” mantêm com este mesmo “povo” tende a variar, no
próprio curso de suas vidas, de acordo com as flutuações de seu ca-
pital simbólico no interior do campo (BOURDIEU, 2004, p. 183).

12. A discussão levantada por João Freire Filho revela que os críticos de televisão quase sempre
iniciam o debate sobre o “nível” da TV no Brasil com a alegação de que ele é fruto exclusivo
do acesso das classes trabalhadoras. Historicamente, houve dois períodos em que isso ocorreu:
com a abertura de linhas de créditos para a aquisição de aparelhos receptores no final de década
de 1960 e com o Plano Real, em 1993. No primeiro caso, a briga por uma garantia de qualidade
esteve atrelada “à adequação do uso político do meio, no sentido do fortalecimento dos laços
culturais e sociais do país e da fomentação da identidade nacional” (FREIRE FILHO, 2005,
p. 169). Prova disso são os pactos de autocensura em relação a programas apelativos, firmado
entre a Rede Globo e a TV Tupi e, mais tarde, em 1981, a “domesticação” da TVS (atual SBT),
cuja programação foi atacada pelo próprio mercado publicitário, que fez “valer o seu critério
como prestígio e respeitabilidade, concebidos dentro do quadro de referências dos chamados
‘formadores de opinião’. De olho nos grandes anunciantes que, no fim das contas, sustentam as
redes privadas de TV, a emissora de Silvio Santos foi mudando paulatinamente sua imagem, num
processo que redundou na saída do ar de mais de 20 atrações” (FREIRE FILHO, 2005, p. 173).

113
Mídia e política: caminhos cruzados

Ao estar circunscrito, portanto, pelos juízos de valores dos


apresentadores, programas com essa característica incorporam a
eficácia simbólica do obreirismo:
Essa estratégia permite que aqueles que podem reivindicar
uma forma de proximidade com os dominados apresentem-
se como detentores de uma espécie de direito de preempção
sobre o “povo” e, desse modo, de uma missão exclusiva (...)
mas ele é também o que lhes permite simultaneamente assu-
mir e reivindicar tudo o que os separa de seus concorrentes e
mascarar – em primeiro lugar para si mesmos – o corte com
o “povo” que está inscrito no acesso ao papel de porta-voz
(BOURDIEU, 2004, p. 184).

Ao se estabelecerem como um novo grupo de capital


simbólico, os telejornais opinativos se apropriam do poder
simbólico a partir de discursos, pois “o poder simbólico é
um poder de fazer coisas com palavras” (BOURDIEU, 2004,
p. 166). A partir disso, o autor traça uma segunda condição
essencial para a consolidação do poder simbólico ao alertar
que um grupo “só começa a existir enquanto tal, para os que
fazem parte dele e para os outros, quando é distinguido (...)
dos outros grupos, isto é, através do conhecimento e do re-
conhecimento” (BOURDIEU, 2004, p. 167). Assim, o capital
simbólico no campo do telejornalismo passa a ser mensurado
pelos índices de audiência, provenientes da concorrência en-
tre as emissoras e produtores.
Com base nas considerações sobre gênero apresentadas,
classificam-se os telejornais estudados da seguinte maneira:

TABELA 1 – Classificação dos telejornais em gêneros

114
Um escândalo anunciado

Se as relações de poder dentro de um campo se constituem


mediante os índices de audiência, compreender como as técnicas de
produção influenciam nessa ciranda torna-se fundamental. Confor-
me já mencionado, para atingir tal objetivo optou-se pelo monitora-
mento de telejornais, o qual se descreve a partir de agora.

MONITORAMENTO DE TELEJORNAIS
Para catalogar as observações levantadas durante o período
de análise dos telejornais foi construída uma planilha de moni-
toramento no Microsoft Excel, com os seguintes campos: (1) dia,
(2) mês, (3) telejornal, (4) temática, (5) tempo, (6) tipo, (7) bloco,
(8) retranca, (9) cidade, (10) número de fontes (subdivididos em
quatro campos) e, finalmente, (11) observações. Como em todos
os campos da tabela, exceção feita ao último, há a opção de filtros
é possível comparar tendências quaisquer entre um ou mais tele-
jornais. Entre a pluralidade de enfoques de trabalho disponíveis
a partir deste mapa está a facilidade em visualizar aspectos sobre
agendamento (1, 2, 3 e 8), sobre o uso de fontes em determinadas abor-
dagens em um (4 e 10) ou em mais telejornais (3, 4 e 10), ou ainda,
sobre preferências de abordagem entre telejornais (3, 4 e 8).
O campo intitulado “temática” foi subdividido em seis
itens: segurança (a), violência (b), segurança/violência (c), trân-
sito (d), trânsito/violência (e) e outros (f). Todas as peças jorna-
lísticas sobre a VC Consultoria foram classificadas como perten-
centes à segurança (a), compreendida desde operações policiais
de apreensão de drogas e prisões resultantes de investigações po-
liciais até por políticas de não-violência. Para este trabalho ficou
restrita a preocupação em observar a prática de agendamento.
A tabela a seguir traz o número de peças jornalísticas re-
lacionadas à “segurança” nos cinco telejornais, responsáveis por
quase 1/3 entre os assuntos pertencentes a essa temática. Além
do caso da VC Consultoria houve grande incidência ainda sobre
a Marcha da Maconha, que seria realizada em Curitiba (22/03)
e, por fim, o caso de desvio de verba na Prefeitura de Londrina,
115
Mídia e política: caminhos cruzados

cujas acusações atingiram Ana Laura Lino, esposa do prefeito


do município na região norte paranaense, Barbosa Neto (PDT).

TABELA 2 – Total de incidências da temática “Segurança” e os três as-


suntos mais comentados nessa categoria no período de monitoramento

Os números citados, no entanto, não denotam por si as


discrepâncias entre o agendamento destes assuntos. Observa-se
que o caso da VC Consultoria foi o único pautado nos cinco te-
lejornais, ainda que o SBT Paraná, veículo que é uma exceção na
cobertura, tenha produzido uma reportagem com menos de um
minuto de duração cinco dias após a detenção do proprietário
da empresa (16/05). A polarização da Marcha da Maconha no
Programa 190, por outro lado, deveu-se à luta parlamentar do
deputado estadual e âncora, Roberto Aciolli (PV), em impedir a
manifestação em Curitiba – ou seja, o assunto foi veiculado mais
por conta de interesses políticos do apresentador em suspendê-
la do que em função do valor-notícia que possuía.

O ESCÂNDALO NOS TELEJORNAIS LOCAIS


Apesar do número de peças jornalísticas sobre a VC Consul-
toria não parecer tão alto (15), as inserções sobre esse escândalo mi-
diático mostram-se influentes a partir do tempo que ocupam nos es-
pelhos dos telejornais, exceção feita ao SBT Paraná. A tabela a seguir
mostra a divisão do tempo de exibição de cada peça nos telejornais:

116
Um escândalo anunciado

TABELA 3 – Tempo destinado à VC Consultoria por telejornal

O SBT Paraná e a administração de cunho familiar


Apresentado de segunda a sexta-feira por Denian Couto
e Joice Hasselmann, o jornal, que estreou em 21/03/2011,
tem duração média de 25 minutos. A equipe é composta por
cerca de 20 profissionais. Uma característica curiosa é a tenta-
tiva de mesclar o gênero polifônico com o opinativo (embora
haja nítida sobreposição do primeiro), o que, por vezes, gera
“controvérsias” entre os dois apresentadores em pleno anda-
mento da edição.
Conforme já citado, o SBT Paraná foi o telejornal que
menor repercussão deu ao caso da VC Consultoria, apontan-
do indícios de que a lógica da administração familiar de Paulo
Pimentel – ex-governador e ex-proprietário da emissora, ven-
dida a Carlos Alberto Massa, o Ratinho, em 2008 – continuou
hegemônica na política editorial da empresa, o que de forma
alguma significa que haja emparelhamento ideológico entre
os grupos de Carlos Alberto Massa e Paulo Pimentel no caso
analisado. Segundo Elza Aparecida de Oliveira Filha, o Gru-
po Paulo Pimentel (GPP) foi constituído a partir do jornal O
Estado do Paraná, fundado em 1951, graças ao governador da
época, Bento Munhoz da Rocha Neto. O mandatário político
“sofria oposição de todos os periódicos que circulavam em
Curitiba” (OLIVEIRA FILHA, 2007, p. 46). Assim, o veículo

117
Mídia e política: caminhos cruzados

“se aproveitou do apoio oficial para rapidamente ampliar sua


tiragem e circulação” (OLIVEIRA FILHA, 2007, p. 47), fator
que o tornou desde então em espaço de defesa a correligioná-
rios de Paulo Pimentel. Tendo em mente esse legado do gru-
po e a consequente administração de caráter familiar, aliados
a série de propagandas da VC Consultoria na grade de pro-
gramação da emissora, percebem-se os motivos pelos quais
o telejornal evitou transformar em notícia o acontecimento.
A única reportagem veiculada (16/03) teve enfoque no
Banco BMG, de quem a VC Consultoria era corresponden-
te autorizada no Paraná. Ao retratar aspectos de prestação
de serviços do BMG (como a oferta de uma linha telefônica
exclusiva aos clientes lesados pela empresa, a checagem de
todos os contratos assinados e a devolução integral do valor
dos empréstimos irregulares às vítimas), a peça é encerrada
com um alerta do repórter a outras empresas que prestam
atividades econômicas similares. Uma observação curiosa é
que termos como “golpe”, “fraude” e sinônimos – que são
corriqueiros na produção televisiva pelo teor de denúncia e
que apareceram em todas as outras coberturas – não são uti-
lizadas no material. Há apenas uma menção às “vítimas dos
empréstimos”. Outro aspecto que deve ser mencionado é a
opção por não utilizar imagens do dono da empresa, apesar
de a chegada de Neviton Pretti Caetano ter sido acompanha-
da por toda a imprensa local, conforme se percebe nos mate-
riais veiculados pelos telejornais concorrentes, inclusive com
a aparição ao fundo do repórter da Rede Massa.

RIC Notícias: “isenção” em favor da prestação de serviços


Retransmissora da Rede Record no Paraná e em Santa Ca-
tarina, a RICTV conta com mais de 350 profissionais apenas
no primeiro estado. O RIC Notícias, veiculado na época entre
segunda-feira e sábado, das 19h55 às 20h25, é apresentado pelos
jornalistas Alessandra Consoli e Dari Junior.
118
Um escândalo anunciado

A lógica de serviços também imperou nesse telejornal: nas


duas aparições13 do assunto – uma entrevista em estúdio com o
gerente executivo do INSS (13/05) e uma reportagem sobre o
ressarcimento às vítimas (16/03) – foi focalizada a regularização
da situação. Ainda que a cobertura tenha sido similar a do SBT,
houve a utilização de imagens de arquivo que deram visibilidade
à prisão do proprietário.
Na entrevista foram abordados os seguintes assuntos:
medidas às quais as vítimas deveriam tomar para suspender os
descontos nas aposentadorias e pensões, a necessidade de o
INNS realizar uma auditoria para ter certeza se essas pessoas
não cancelariam empréstimos de má fé (embora isso não se
mostre como uma tentativa de inverter o papel entre vítima e
acusado), além do funcionamento do acordo entre o INSS e
essas redes financeiras.
Por fim, em nova menção ao caso (16/03), o assunto da
VC Consultoria foi a principal chamada do telejornal. A repor-
tagem, exibida na mesma data que a única peça jornalística do
SBT, teve foco na prestação de serviços e trouxe as mesmas in-
formações do concorrente, inclusive utilizando as mesmas fon-
tes (o SBT Paraná utilizou dois promotores, a saber, Maximiliano
Deliberador e Clayton Maranhão, enquanto o RIC Notícias en-
trevistou apenas o primeiro).
No geral, não há omissão de termos como “fraude”,
“rombo”, “vítimas da VC Consultoria”, “irregularidades” (uma
aparição cada) e “golpe” e “consumidores lesados” (duas vezes
cada), termos valorizados pelos princípios de noticiabilidade no
campo da comunicação.

13. A edição de 14/03/2011 (sábado) não foi monitorada por conta de os telejornais geral-
mente sofrerem mudanças abruptas no formato (tempo de veiculação, inserção de quadros
específicos, entre outros), na mediação (outro apresentador) e também na própria audiência
(já que é plausível a hipótese de os públicos não serem tão fieis aos telejornais regionais por
conta de uma programação diferente nesses dias).

119
Mídia e política: caminhos cruzados

Paraná TV e a “cultura do risco”: a aparição de vítimas


O Paraná TV, veiculado entre meio-dia e 12h50, é o jor-
nal mais assistido pelos curitibanos no horário do almoço. Des-
de 28/02/2011 o formato foi alterado, com os apresentadores
lendo as notícias em pé e, teoricamente, com mais liberdade de
movimentação dentro do estúdio. Mais importante que isso foi
o reforço de uma tendência imposta pelo “padrão global” de pro-
dução que reflete na temática da violência/segurança. Como os
programas opinativos – cujas linhas editoriais tendem a priorizar
notícias do setor policial e prestação de serviços – passaram a ter
maior relevância no campo, o telejornal nitidamente transfor-
mou os “vestígios” que ainda existiam de cobertura policial para
o campo de direitos do consumidor, o que faz com que, entre
os telejornais selecionados, o Paraná TV seja o que mais tenha
herdado os princípios do que se denomina como cultura do risco.
Fruto das sociedades modernas democráticas, a cultura do
risco é resultado da tensão entre dois tipos de proteção emol-
durados nessas nações: a proteção civil – aquela que garante na
própria lei as liberdades individuais, inclusive com previsões de
punição na legislação a possíveis arbitrariedades cometidas até
mesmo pelos próprios mandatários políticos – e a proteção social
– que é a seguridade contra situações de “riscos” sociais que
os indivíduos podem passar. Enquanto a primeira é fundada
no estado de direito (princípio universal da liberdade), a última
está ligada à proteção do indivíduo por meio da propriedade
(princípio universal da igualdade), não entendida apenas como
um bem material, e sim como todas as condições (sociais e psí-
quicas) que envolvem o sujeito (CASTEL, 2005). No entanto, o
que se percebe com a exposição é que na doutrina neoliberal há
a falta do segundo tipo de proteção a diversos grupos sociais, o
que gera um clima permanente de tensão, eminentemente pro-
vocado pelas diferenças. Colocados desta forma, os telejornais
funcionam como redes de disseminação de estigmatização que
geram invisibilidade a determinados grupos ao fomentarem a
noção de que existem “classes perigosas”. Isso acontece em
120
Um escândalo anunciado

razão da impossibilidade de haver uma sociedade segura dentro


de um estado de direito. O papel da televisão nisso tudo está
exatamente na supervalorização dos riscos:

A “cultura do risco” extrapola a noção de risco14, mas a esva-


zia de sua substância, impedindo-a de ser operatória. Evocar
legitimamente o risco não consiste em colocar a incerteza e
o medo no centro do futuro, mas, ao contrário, tentar fazer
do risco um redutor de incerteza, a fim de controlar o futuro
desenvolvendo meios apropriados para torná-lo mais seguro
(CASTEL, 2005, p. 63).

Ainda que não trabalhe diretamente com a instituição tele-


visão, com o princípio de que “hoje ser protegido é também ser
ameaçado” (CASTEL, 2005, p. 09), o autor traz grandes refle-
xões para a exploração da temática da segurança/violência por
parte dos telejornais. Conforme já mencionado, Vaz (2006) des-
taca três eixos narrativos centrais no jornalismo que dialogam
com a cultura do risco: dois que remetem ao risco/medo (o que acon-
teceu poderia ter acontecido com qualquer um; o que aconteceu pode acontecer
novamente) e o último que aponta para a segurança/proteção (o
que aconteceu poderia não ter acontecido).
Contextualizado o conceito de cultura do risco e tendo
sido feita a coesão dele com a narrativa jornalística, aborda-se
novamente a modificação do gênero do Paraná TV a partir da
prestação de serviços, ao invés da direta exploração da violência/
segurança, um dos principais valores-notícias compartilhados
pela comunidade interpretativa dos jornalistas pelo menos des-
de o início do século XVII, conforme Traquina (2005a, 2005b).
O monitoramento traz provas qualitativas disso ao mostrar que

14. O autor que melhor auxilia nessa relação entre risco e modernidade é Antony Giddens.
Segundo ele, os riscos não são ações individuais e, além disso, podem ser mensurados.
“Uma pessoa que arrisca algo corteja o perigo, onde o perigo é compreendido como uma
ameaça aos resultados desejados” (GIDDENS, 1991, p. 42).

121
Mídia e política: caminhos cruzados

praticamente inexistem peças jornalísticas com foco na violência


(em um total de 42 inserções houve apenas uma reportagem so-
bre um assalto a um ônibus de sacoleiros na região; um homem
que matou outro ao reagir a uma tentativa de roubo à casa do
primeiro e, por fim, uma escola da região metropolitana de Curi-
tiba que teve as aulas interrompidas por conta de uma ameaça
semelhante ao caso Realengo15, cujo próprio critério de classifi-
cação ainda pode ser questionado).
O restante das peças jornalísticas, no qual se inclui a reper-
cussão da VC Consultoria, está enquadrado na temática da segu-
rança. No total, sete peças jornalísticas remeteram ao escândalo
da empresa no período (quatro delas em 12/03, data posterior à
prisão dos acusados de estelionato): três reportagens, uma entre-
vista externa, uma entrevista em estúdio e dois quadros/colunas.
Na cobertura percebe-se uma nítida tendência em subli-
mar a responsabilidade ao INSS, destacando o princípio narra-
tivo de que tal episódio não poderia ter acontecido – e que só
ocorreu por conta do irrestrito acesso por parte da consultoria
ao sistema do órgão público.
Em 12/03, um dia após a prisão do proprietário, o as-
sunto da VC Consultoria é a principal chamada do telejornal,
quando ocupa todo o primeiro bloco da edição (com duração
de 15 minutos). A edição é aberta com uma reportagem já
com imagens da sede do INSS em Curitiba. O uso de fon-
tes não-identificadas, que criam uma sensação de insegurança
(funcionário da empresa que colaborou com as investigações),
do jornalista como justiceiro (equipe acompanha aposentada

15. Na semana anterior ao monitoramento (em 07/12), Wellington Menezes de Oliveira, de 23


anos, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, zona oeste do Rio
de Janeiro, entrou na escola efetuando disparos contra os alunos. No final, 12 crianças foram
mortas, além de Wellington (que se suicidou). O caso teve ampla repercussão da mídia nacional
e, na semana seguinte, dois episódios “semelhantes” ocorreram no Paraná, em Cambé, próxima
a Londrina, e em Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba: ambos eram falsas
ameaças, mas serviram para fomentar a sensação de insegurança dentro das escolas.

122
Um escândalo anunciado

até a sede do INSS e consegue cancelar o desconto em folha)


e de câmeras escondidas (na sequência outra aposentada vai
até o INSS para cancelar o empréstimo e não consegue) são
peculiares a essa cobertura.
Após a exibição da reportagem há uma entrevista ao vivo
com o gerente executivo do INSS (o mesmo que seria entrevis-
tado no RIC Notícias), que também servira de fonte na repor-
tagem. Como havia garantido na reportagem que o aposentado
ou pensionista só necessitava ir até o INSS para cancelar os
empréstimos irregulares, a entrevista ao vivo tem tom cons-
trangedor para a fonte. As questões levam todas para o prin-
cípio de que as informações pessoais das potenciais vítimas
estão disponíveis (cria-se um clima de risco contínuo de que
essas pessoas sofram golpes mesmo que não tenham realizado
qualquer movimentação financeira junto à consultoria).
Após comentários dos apresentadores que apontam no-
vamente para a falta de segurança do sistema do INSS há uma
entrevista em estúdio com o promotor de defesa do consumidor
Maximiliano Deliberador. O promotor traz a informação de que
o Banco BMG, do qual a VC Consultoria era correspondente, é
responsável solidário. A entrevista é interrompida para a entrada
de um quadro de Belo Horizonte (MG), onde está localizada a
sede do BMG. Nela, o repórter parafraseia uma mensagem ofi-
cial emitida pelo Banco, fator que por si só poderia ter sido reali-
zado por uma nota coberta, mas que, em função do conglomera-
do de comunicação e da consequente padronização, “diferencia”
a cobertura da empresa e garante credibilidade ao telejornal.
No dia seguinte (13/05), uma reportagem sobre a VC
Consultoria abre o segundo bloco do telejornal. Há a retomada
de alguns trechos da entrevista do dia anterior com o gerente
executivo do INSS e a demonstração de que apesar da denúncia
e do pacto firmado entre a fonte e o telejornal as vítimas não
conseguiam cancelar os falsos empréstimos. Mais uma vez o te-
lejornal recorre à utilização de personagens/consumidores para
ilustrar que a situação não foi resolvida.
123
Mídia e política: caminhos cruzados

No restante da cobertura não há elementos novos que ne-


cessitem ser elencados, já que o telejornal se propõe e acom-
panhar às vítimas a sede do Banco BMG, que foi aberta para
atender exclusivamente os consumidores lesados. O mais inte-
ressante da análise é que a noção de risco nos telejornais é agu-
çada com a presença de personagens.

Boa Tarde Paraná: princípio das relações


entre empresa e meios de comunicação
O programa Boa Tarde Paraná é veiculado na grande Curi-
tiba, no litoral paranaense e na região de Ponta Grossa (campos
gerais). Uma das principais marcas é a utilização de entreteni-
mento (de teor questionável) como elemento de aproximação
com a audiência. Val Santos, ex-apresentador do Tribuna da
Massa (Rede Massa/SBT), costuma desferir insultos a grupos
marginalizados, como homossexuais, alcoólatras, obesos, entre
outros. Os resultados do monitoramento apontaram que por se
colocar com frequência como justiceiro, o âncora promove apo-
logia à violência ao comemorar prisões ou execuções de crimi-
nosos em trocas de tiros com a polícia, o que só reforça a con-
cepção de proteção à propriedade, princípio do estado de direito,
destacado no item anterior.
No caso da VC Consultoria não foi diferente. Em 12/03,
apenas no comentário do apresentador coberto por imagens
da operação policial (três minutos) há ênfase a termos como
“empresa de meia tigela”, “caiu a casa”, “caiu do cavalo”, “vi-
garistas”, “picaretas”, “doidos” e “descarado” (uma vez cada),
“safado” (duas menções) e “golpe(s)” (sete vezes). Além disso,
há ironias durante a exibição das informações do caso, como
quando o âncora “comemora” o fato de Nevinton Caetano ter
finalmente anunciado a empresa no programa de forma gratuita.
Uma nítida distinção entre a cobertura dos telejornais po-
lifônicos, especialmente do Paraná TV, e os opinativos está no
enfoque do local onde a vítima da empresa deve procurar auxílio.
124
Um escândalo anunciado

Enquanto os primeiros aconselham a pessoa lesada a procurar


o INSS e, mais tarde, o escritório do Banco BMG, o Boa Tarde
Paraná sugere que a solução mais eficaz é a polícia. Prova disso é
a entrevista gravada com o delegado da Delegacia de Estelionato
e Desvios de Cargas (12/05), exibida após os comentários de
Val Santos. O material traz “dicas da polícia” para evitar situa-
ções similares a da VC Consultoria. Outro indício da relevância
que o teor policial tem na cobertura do programa é o fato de o
Boa Tarde Paraná simplesmente se omitir do assunto quando a
prioridade passa a ser o ressarcimento das vítimas (algo similar
ocorre com o Programa 190, como se verá a seguir).
Além das dicas da polícia, o repórter também levanta o
assunto da credibilidade que essas empresas ganham por anun-
ciarem em jornais.

Programa 190: “a novela da vida real”


para Neviton Caetano
O último telejornal analisado neste trabalho é veiculado
na Rede CNT, entre 11h30 e 12h30. O Programa 190, cujo slogan
é “a novela da vida real”, é apresentado pelo deputado estadual
Roberto Aciolli (PV) e tem foco em notícias do setor policial e
trânsito. Além disso, representa uma arena de conflitos políticos,
o que confunde de maneira proposital os papéis entre comu-
nicador e parlamentar. A substituição de Accioli pelo jornalista
Cristiano Santos em algumas edições por conta de o deputado
precisar exercer funções parlamentares é corriqueira. Em 17/05,
por exemplo, o âncora sai no início do último bloco para “resol-
ver” o problema da Marcha da Maconha, que seria realizada em
Curitiba em cinco dias e que foi cancelada por conta de ações de
Accioli e correligionários.
Aliás, é comum a cessão de espaço a aliados políticos, como
foi possível perceber durante o último dia do período de moni-
toramento com a entrevista em estúdio com o deputado federal
Fernando Francischini (PSDB), cujas atenções discursivas estão
125
Mídia e política: caminhos cruzados

voltadas para políticas de segurança, marcadas por apologia à re-


clusão, à criminalização de movimentos sociais (como foi percep-
tível pela frente entre Franscischini e Accioli para a paralisação da
Marcha da Maconha), ao aumento do poder de vigilância e ação
policial em defesa da propriedade e, por fim, a uma forte moral
de cunho religioso. Antes dele, o programa já havia entrevistado
(12/05) o prefeito de Curitiba, Luciano Ducci (PDT), oportuni-
dade em que as obras de melhorias de infraestrutura realizadas
pela gestão de Ducci na cidade foram exaltadas, a ponto de o ali-
nhamento político-partidário fazer o apresentador se desvencilhar
de todas as tragédias e atrocidades que são veiculadas diariamente
no próprio Programa 190 e alegar que a capital é uma cidade “de
primeiro mundo”.
Se os discursos são proferidos de maneira positiva para os
aliados políticos, a ponto de as contradições serem omitidas ou
negadas, a mesma intensidade discursiva é ofertada aos inimigos
– e o caso da VC Consultoria se encaixa perfeitamente nessa
concepção. A análise da repercussão do assunto no Programa
190 se torna fundamental para se compreender as relações de
poder no campo do telejornalismo. Em princípio, o telejornal é
o que mais faz ataques à financeira, com especial atenção ao pro-
prietário. No entanto, apesar de em um primeiro momento isso
ser interpretado pela falta de anúncios da empresa na Rede CNT,
ao avaliar o conjunto de telejornais é perceptível que há algo nos
bastidores que foge ao escândalo midiático.
A noção de espetáculo é utilizada de maneira singular nessa
cobertura em 12/03, curiosamente a única data em que a VC Con-
sultoria aparece no telejornal (conforme já citado, se for levada
em conta a cobertura do Boa Tarde Paraná em conjunto com o
Programa 190, observa-se que os telejornais opinativos encerra-
ram o tema antes dos polifônicos, o que é explicado pelo teor
policialesco dos dois produtos). Além da exibição de imagens do
helicóptero da emissora que sobrevoara no dia anterior ao vivo
o local onde os funcionários da VC Consultoria foram presos, o
apresentador também revela que sofreu diversas ameaças de mor-
126
Um escândalo anunciado

te por conta dos desdobramentos do caso. Accioli desfere ofensas


à empresa – “arapuca da VC Consultoria” (uma vez) e “golpe”
(três citações) – e principalmente ao proprietário e funcionários
envolvidos no esquema – “velho conhecido da polícia”, “pilantra”
e “corja” (uma vez cada); “megaestelionatário” (duas vezes), “me-
gavigarista” (três vezes) e bandido (quatro vezes).
Mais relevante que isso tudo, entretanto, é o sentimento de
pesar do apresentador em relação aos veículos de comunicação
concorrentes que, segundo ele, foram tão enganados pela VC
Consultoria quanto os pensionistas e aposentados. Nesse mo-
mento da narrativa é possível perceber como se dão as relações
de poder dentro de todo o campo do telejornalismo, já que o
discurso fomenta aspectos comuns a uma comunidade interpre-
tativa: o âncora se apega à credibilidade dos concorrentes – em
especial a da RPCTV, incorporada pelo “padrão global de qua-
lidade” –, ao afirmar que esses grupos jamais aceitariam anún-
cios se tivessem ciência de quem era o proprietário (a formação
discursiva denota que todos os produtores do campo estão in-
seridos por princípios da ética kantiana, acima de questões de
disputas por audiência).
Por outro lado, o apresentador diz que a CNT conhecia as
procedências da VC Consultoria e que não aceitou receber anúncios
por opção própria. Esse fator põe em xeque a própria credibilida-
de dos concorrentes defendida anteriormente, já que é presumível
que, pelos princípios da ética kantiana propagados pelo discurso de
Accioli, as emissoras necessariamente cancelariam os contratos em
solidariedade aos produtores da CNT – afinal, o valor pela verda-
de seria incomum à comunidade interpretativa, o que acarretaria na
divisão da informação escandalosa de que a empresa vivia de este-
lionato. Como essa explicação é caracterizada por diversas lacunas,
é presumível levantar a hipótese da impossibilidade de as emissoras
não conhecerem a fonte de suas próprias receitas.
Outro ponto interessante apresentando pelo Programa
190 é o resgate histórico do caso da VC Consultoria. Com a
alegação de que o uso por parte da empresa de nomes com cre-
127
Mídia e política: caminhos cruzados

dibilidade – entre eles, o de jornalistas – visava a promoção dos


golpes, Accioli traz à tona o episódio que culminou na primei-
ra prisão de Neviton Caetano, em 2004, quando o proprietário
foi cunhado pelos jornais do período como “megavigarista”. Na
época, quando era proprietário da Vera Cruz Empreendimentos
(é perceptível a proximidade entre as duas empresas a partir da
abreviação VC), a acusação era pelos mesmos crimes e o caso
teve, segundo o próprio Aciolli, ampla repercussão midiática.
Em 12/05, uma reportagem do jornal Tribuna do Paraná re-
vela que o jornalista José Diniz (profissional integrante da Rede
CNT, com vínculos na produção do Programa 190) fazia parte
da quadrilha comandada por Nevinton Caetano, em 2004. Se-
gundo o material, Diniz, que ficou detido por 10 meses, era res-
ponsável por dar “teor jornalístico” a notícias construídas para
extorquir empresários (CORNELSEN, 2011). Assim, fica clara a
limitação de o Programa 190 em atacar os concorrentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM PACTO DE AUTO-


CENSURA NA COMUNIDADE INTERPRETATIVA
Independente do veículo de comunicação, as propagandas
da VC Consultoria carregavam sempre um tom de que o dife-
rencial do serviço era o atendimento na residência do pensionis-
ta ou aposentado, já que “não é seguro” andar pelas ruas com
quantias de dinheiro em espécie. Na descrição abaixo se obser-
va uma peça publicitária veiculada nos veículos de comunicação
pela empresa em meados de 2010:
No que se relaciona à ligação explícita entre discurso jornalístico
sobre a violência e o publicitário, a apresentação de uma empresa
de consultoria [a VC Consultoria] para aposentados e pensionistas
do INSS merece destaque. Em geral anterior ou posterior a notí-
cias de violência (não se pode comprovar se de forma intencional,
já que a exploração da editoria “Polícia” [no programa Tribuna da
Massa] é extenuante), o comercial ressalta como diferencial da em-
presa a possibilidade de entrega do dinheiro emprestado na resi-
dência do cliente. Se, por um lado, isso pode ser relacionado ao fato
128
Um escândalo anunciado

do público-alvo ser de aposentados e pensionistas do INSS, por


outro, as inserções de “clientes satisfeitos” com o serviço remetem
à outra interpretação: a clientela atendida ressalta que a maior qua-
lidade do serviço é o fato do recebimento do empréstimo em casa,
o que, para eles, é mais seguro (ANDRÉ, 2011, p. 15).

O intrigante é que em nenhum momento da cobertura


nos cinco telejornais houve qualquer menção ao fato de as
peças publicitárias “abrirem as portas” das casas das vítimas
que, por medo de saírem às ruas, tornavam-se vítimas em suas
próprias residências. A explicação para o silêncio ante a coope-
ração entre as instituições se dá pelo pacto de autocensura rea-
lizado no interior do campo, já que os quatro telejornais – co-
nhecedores da política de ataque do Programa 190 a inimigos
– que recebiam anúncios tinham a intenção de evitar quaisquer
vínculos com a empresa, enquanto o Programa 190, por conta
das relações passadas, não podia entrar em guerra com a con-
corrência. Assim, o agendamento do caso da VC Consultoria
demonstra que o escândalo midiático foi construído para evitar
um escândalo dentro da própria comunidade interpretativa. Ao
enviesarem a cobertura contra o anunciante, os telejornais es-
camotearam os conflitos pela audiência dentro do campo e, ao
mesmo tempo, transmitiram ao público princípios norteadores
da ética kantiana.

REFERÊNCIAS
ANDRÉ, Hendryo. Quando os crimes vendem: usos de discursos sobre
violência no telejornalismo opinativo regional. In: XII CONGRESSO DE
COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUL, 12, 2011, Londrina. Quem tem
medo da pesquisa empírica? São Paulo: Intercom, 2011. P. 01-16.
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BRANDÃO, Helena. Introdução à análise do discurso. ed.2. Campinas:
Ed. Unicamp, 2004.

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Mídia e política: caminhos cruzados

CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela Ltda, v. 01, abr. 1997. Mensal.
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WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.

130
Formato: 14x21 cm
Mancha: 105x 170 cm
Tipologia: Garamond 12,4 (14,88)
Papel: Pólen soft 80g/m2 (miolo)
Couché fosco 250g/m2 (capa)
1a edição: 2011

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade


http://www.humanas.ufpr.br/portal/comunicacaomestrado/

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