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INTERCOM 2019 - 42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação

Belém (PA), Brasil — 2-7 setembro 2019

Fluxos comunicacionais e crise da democracia


Conferência de abertura do 42º Ciclo de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação.
Belém , 4 setembro 2019

Ramón Salaverría
Universidade de Navarra (Espanha)

Diante de um mundo cada vez mais complexo, paradoxalmente, aqueles que propõem
soluções mais simplistas são os melhor sucedidos. Por exemplo, diante do drama dos
fluxos migratórios, há quem defende a construção de muros. Diante dos tiroteios nas
escolas, propõem que os professores carregam armas. Dadas as evidências da crise
climática global, eles até negam que esse fenômeno exista.

Vivemos, enfim, em um mundo complicado, cheio de problemas difíceis que algums


pretenden resolver com formulas simples e populistas. E a questão é se as formas de
comunicação promovidas nas últimas décadas pela tecnologia e pela evolução da
profissão jornalística ajudaram a resolver ou, pelo contrário, agravaram esses
problemas. Minha impressão, digo-lhes, é que a tecnologia resolveu alguns problemas
do jornalismo e a comunicação pública, mas causou muitos outros. Isso não é novo: na
história da comunicção aconteceu sempre que novas tecnologias chegaram ao cenário
da profissão informativa. Mas, como explicarei ao final da minha análise, medidas
podem ser tomadas para aproveitar o muito bom trazido pelas novas tecnologias e pas
reverter as dinfunções creada. E nós —ou seja, vocês e eu— temos espaço e
responsabilidade para agir pessoalmente contra esses problemas.

Mas primeiro, deixem-me começar com uma análise da situação. Eu gostaria de definir
os problemas que relacionam a transformação nos últimos anos dos fluxos
comunicacionais com a crise da democracia, o assunto dessa palestra.

As novas formas de comunicação, como Castells explicou, transformaram as


sociedades em redes, nas quais as interações entre indivíduos são executadas não
apenas pessoal e diretamente, como no passado, mas praticadas de maneira virtual e
indireta. No entanto, essa natureza virtual e indireta das interações não as prejudica.
Muito pelo contrário: as redes digitais em geral, e as chamadas redes sociais em
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particular, demonstraram ter um impacto real nas decisões e ações de pessoas,


organizações e poderes.

É simplista dizer que as redes sociais governam as grandes decisões de nossas


sociedades. Embora o próprio presidente dos Estados Unidos comunique suas
decisões políticas mais importantes através do Twitter a milhões de seguidores, isso
não significa que esta rede esteja governando o mundo. As redes sociais não são o
governo, nem mesmo a sociedade. No máximo, eles são um fator que influencia o
governo e um espelho distorcido da sociedade. Nas redes sociais muitos cidadãos não
estão presentes porque não sabem, não podem ou não querem estar. No entanto,
muitos outros atores presentes nas redes produzem efeitos que afetam todos os
cidadãos, mesmo aqueles que vivem de costas para a rede. Não somos governados
por redes, mas as redes têm um impacto inquestionável em como todos somos
governados.

Imagem e comunicação sempre foram importantes no governo. Isso já era conhecido


no século XVI pelo próprio Machiavelli, quando afirma que "um príncipe precisa contar
a amizade do povo, porque, caso contrário, ele não tem remédio na adversidade".
Essa "amizade" recomendada pelo cruel conselheiro florentino é o que hoje os
consultores de imagem de todo gerente ou governante procuram com esforço. Em
instituições de todos os tipos, mas especialmente nos governos dos países, hoje cada
vez mais decisões são tomadas, não por serem convenientes em si mesmas, mas por
causa do efeito positivo que produzirão à imagem dos líderes. Os governos e, por
extensão, qualquer organização com presença na sociedade, não usam a
comunicação como uma forma de expor suas ações ao escrutínio público, mas como
uma maneira de melhorar sua imagem, influenciando os cidadãospara seu propio o
benefício.

Nesse cenário de constante preocupação com a imagem pública projetada, as redes


sociais se tornaram uma terra de irresistível magnetismo para os governantes. No
passado, quando essas redes não existiam, chamar a atenção da mídia era
considerado um triunfo. Aparecer em uma página de jornal ou nas imagens de um
telejornal considerava-se um sucesso em uma estratégia de comunicação. Isso
continua sendo importante, mas agora os governantes estão cada vez mais
preocupados de seu impacto nas redes sociais. Eles apresentam esse eco como uma
interlocução direta com os cidadãos, livre da distorção supostamente voluntária e

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interessada da mídia. Mas isso é absolutamente falso. Muito mais falso do que
pensamos: as redes sociais são espaços de manipulação constante.

Segundo dados divulgados pela Comissão Europeia (2019), apenas no primeiro


trimestre deste ano de 2019, o Facebook eliminou 2,2 bilhões de contas falsas em todo
o mundo. Esse número colossal de contas retiradas corresponde apenas aos três
primeiros meses deste ano de 2019. No trimestre anterior, entre outubro e dezembro
de 2018, o Facebook já retirou mais 1,2 bilhão de páginas. Se essa taxa de eliminação
de contas falsas for mantida, somente em 2019 o Facebook eliminará uma quantia
equivalente a toda a população mundial, atualmente estimada em cerca de 7,5 bilhões
de pessoas. Em apenas um ano, no Facebook teriam sido detectadas tantas contas
falsas quando pessoas reais habitam a Terra.

A propósito, o problema do Facebook com contas falsas, e especificamente aquelas


dedicadas à propaganda ideológica, inclui, claro, o Brasil; de acordo com um relatório
apresentado pelo Facebook à Comissão Europeia em janeiro deste ano, a empresa
Californiana reconhece ter excluído no Brasil 68 páginas e 43 contas pessoais
dedicadas específicamente à disseminação deliberada de conteúdo político
sensacionalista que cobria todo o arco ideológico, da extrema esquerda à extrema
direita (Facebook, 2019). Vale a pena insistir todos esses dados foram fornecidos pelo
próprio Facebook, que sofre um sério problema de reputação, pois, no início de 2018,
duas mídias jornalísticas, The Observer e The New York Times, revelaram
simultaneamente o escândalo da Cambridge Analytica (The Guardian, 2018 ).

O problema da manipulação deliberada da informação circulante não afeta apenas o


Facebook. Nos primeiros três meses deste ano de 2019, o Twitter também reconhece
ter removido 53 milhões de contas falsas ou dedicadas a espalhar spam (Twitter,
2019).

São dados eloquentes: muitas das informações que circulam nas redes sociais, e na
rede em geral, são falsas e, mesmo quando são reais, respondem a interesses
ocultos. O que foi chamado de ágora global, onde todos têm a palavra e podem ser
ouvidos, é, na realidade, um fórum com regras desiguais e sujeito a manipulações
inadvertidas.

Ao contrário do que alguns afirmam, as redes não são um espaço para deliberação
livre, capaz de substituir sistemas de representação democrática. De fato, esse é um

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truque que está sendo usado por todos os tipos de populistas para desacreditar
instituições democráticas e sociais consolidadas: o parlamento, a universidade, a
mídia. Os poderosos pretenden desacreditar e, finalmente, substuir esas instituições
por novas fontes de autoridade supostamente emanadas diretamente da cidadania. e
uma rede. grátis e sem condicionamento de qualquer tipo. De acordo com essa visão
propagada pelos poderosos, as instituições clássicas do contrapeso social seriam um
obstáculo à opinião real do povo, que supostamente estaria se expressando nas redes
sociais sem condicionamento de nenhum tipo. Para os populistas, as redes socias são
a comunicação sem filtros. O problema é que ela tem muita nicotina.

É claro que o parlamentarismo está em crise na maioria das democracias ocidentais.


Mesmo em países com a maior tradição parlamentar —veja o que acontece hoje em dia
no Reino Unido—, os cidadãos mostram crescente desapego e desconfiança de seus
representantes públicos. Casos sucessivos de corrupção, injustiça e manipulação
colocaram um véu de suspeita sobre a atividade política em geral e sobre os governos
em particular. Essas falhas do sistema democrático em uma situação de crise e
problemas sociais complexos, como as mencionadas no início de minha intervenção,
significam que muitas pessoas se voltaram para fórmulas populistas de todos os
signos, que prometem supostas soluções simples para problemas tão sérios.

Nesse conjunto de fatores sociais, políticos e econômicos inter-relacionados, peço


licença para concentrar-me na questão que, como pesquisadores, nos toca mais de
perto: a transformação da comunicação pública e a crise da mídia.

A Internet trouxe um fenômeno de rápida desintermediação da mídia durante o último


quarto do século. Antes do advento das redes digitais, a mídia estava acostumada a
ser a principal engrenagem na formação da opinião pública. Como mostraram várias
teorias de comunicação propostas na segunda metade do século XX, a mídia
determinou a agenda social e constituiu inquestionavelmente o "quarto poder" definido
por Thomas Carlyle.

No entanto, desde a popularização da internet em meados dos anos 1990, a influência


da mídia na sociedade mudou. Talvez seja impreciso ou simplesmente prematuro
afirmar que o jornalismo não é mais o quarto poder descrito pelo filósofo escocês. Mas
não há dúvida de que, em pouco mais de duas décadas, a imprensa perdeu grande
parte da influência que exercia no passado.

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Essa perda de influência está ocorrendo rapidamente. No início deste século,


começamos a falar sobre um fenômeno nascente que autores como Dan Gillmor
(2004) batizaram como "jornalismo cidadão". De acordo com a visão dos defensores
dessa idéia, a mídia profissional estava destinada a desaparecer diante do impulso dos
próprios internautas, chamados a apropriar-se da produção e disseminação de
informações públicas. Por meio de uma suposta nova estrutura de autogestão
informativa, na qual os cidadãos se tornariam ao mesmo tempo produtores e
receptores das notícias, a intervenção de organizações jornalísticas profissionais não
sería mais necessária. Em poucos anos, essa visão dos apóstolos do "jornalismo
cidadão" se mostrou utópica. Não surgiu esse anunciado novo jornalismo asambleário
de cidadãos livres, capaz de comunicar os eventos atuais de modo constante,
completo e sem pressões. Mas, embora isso não tenha acontecido, houve pelo menos
uma multiplicação de vozes, onde a mídia profissional foi forçada a competir com
novos atores comunicativos.

Hoje, a mídia compartilha sua capacidade de influenciar a opinião pública com novos
atores que surgiram das redes, que alguns denominaram "influencers". De afiados
formadores de opinião política no Twitter a marcadores de tendências de moda no
Instagram, passando por todos os tipos de palhaços e coringas no YouTube, todas as
principais redes sociais têm novos usuários capazes de atrair massas de seguidores.
Embora esses novos influenciadores da Internet às vezes faturem quantias milionárias
por recomendar este ou aquele produto, vários estudos empíricos recentes questionam
sua capacidade real de condicionar a opinião pública. Eles podem ajudar a vender um
produto, mas não é tão claro que eles possam mudar a opinião pública de um país.

Embora a influência real desses novos atores seja relativa, a verdade é que eles
ocuparam parte da terra anteriormente reservada à mídia. Os novos "influencers"
competem com a mídia não apenas do ponto de vista do público, mas principalmente
pelo estreito relacionamento que alcançaram com o público. O novo mantra do
jornalismo é construir comunidade, precisamente aquilo que os novos atores da
Internet, com seu conhecimento nativo das regras da rede, conseguiram alcançar com
incrível naturalidade.

A rede, em suma, levou a um efeito de diversificação de fontes no consumo de


informações que, em alguns casos, já está se tornando um efeito de substituição. Hoje,
a mídia profissional continua a oferecer informações relevantes para tomar decisões
na sociedade, mas a grande mudança é que existem outras fontes, senão alternativas,

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pelo menos complementares. Qualquer usuário da rede sabe hoje como localizar
todos os dados instantaneamente. Basta apenas uma simples consulta ao celular. E
onde as pessoas procuram essas informações? Cada vez menos na mídia. Para as
pessoas já é pouco relevante a qualidade de uma fonte; só precissam procurar uma
resposta imediata, sem tomar conta del nível de credibilidade da fonte que estão
utilizando. Um fato: neste ano 2019, a maioria das pesquisas no Google não produz
cliques (Fishkin, 2019). As pessoas estão satisfeitas com os primeiros dados que
encontram em sua pesquisa.

O fenômeno da desintermediação não ocorre apenas pelo surgimento de novos


concorrentes na rede. Também é algo desejado e promovido por certos poderes, que
vem na mídia e nos jornalistas profissionais um inimigo mais temível do que os
usuários de mídia social, mais facilmente manipuláveis. Dos Estados Unidos à Rússia,
da China ao Irã, da Venezuela ao Brasil, quando certos líderes políticos desqualificam
a mídia e voltam as massas contra as empresas jornalísticas, o fazem desde uma
estratégia perfeitamente calculada. É claro que a mídia tradicional tem problemas com
sua falta de independência, mas a erosão da mídia tem sido uma excelente notícia
para os manipuladores. Agora eles podem agir com maior impunidade, pois sabem
que aqueles que deveriam monitorá-los desde a mídia perderam o vigor profissional e
a influência que tinham no passado.

Nesse contexto, não deveria nos surpreender que um dos fenômenos comunicativos
mais importantes dos últimos anos seja o surgimento de notícias falsas, as chamadas
fake news. Era previsível que o conteúdo enganoso fosse multiplicado, porque muitos
dos diques profissionais que impediam a propagação de embustes entraram em
colapso.

As redações foram dizimadas pela crise. As equipes de jornalistas, muitas vezes


desmotivadas e sempre mal remuneradas, foram cortadas, minimizando as
reportagems de investigação e o trabalho de campo. Em vez disso, se espalhou um
jornalismo com base na publicação de comunicados de imprensa e conteúdo remitido,
praticamente sem revisão nem contexto. As notícias de fonte única se multiplicaram,
esquecendo um princípio essencial do jornalismo de qualidade: o contraste da
informação. O próximo passo nessa erosão profissional já começou a ocorrer: há
redações nas quais jornalistas começaram a ser substituídos por robôs.

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A robotização é, com efeito, outro dos fatores propiciatórios da desintermediação


jornalística. Não quero dizer apenas o fato de alguns jornalistas profissionais serem
substituídos por máquinas. Este é um processo que não afeta apenas o jornalismo,
mas também muitas outras profissões. No caso da mídia, a robotização está
propiciando ás máquinas assumirem determinadas tarefas mecânicas, como a escrita
de informações básicas ou a edição automatizada de alguns vídeos, onde a
contribuição profissional dos jornalistas é muito pequena. Quando afirmo que a
robotização está levando à desintermediação, quero dizer, de fato, outro efeito
colateral: a mídia jornalística corre sério risco de ser substituída por outras
organizações capazes de produzir conteúdo automaticamente. Nada impede, de fato,
que, assim como a mídia esteja incorporando sistemas de produção de conteúdo
robótico usando tecnologias de inteligência artificial, outras empresas e organizações
não jornalísticas implementem esses mesmos sistemas automatizados de produção de
conteúdo. A verdade é que hoje existem mais robôs já produzindo conteúdo fora da
mídia do que dentro dela. Pense nos milhões de contas falsas nas redes sociais das
quais falei há pouco. Para combater aqueles que espalham as falsidades, é claro que
a mídia precisa de robôs, mas, acima de tudo, de jornalistas profissionais capazes de
orientar o trabalho das máquinas, além de fornecer informações, interpretações e
contextos originais. Isso é um lembrete de algo que os gerentes de mídia devem
sempre ter em mente: o que distingue a mídia de qualquer outra organização produtora
de conteúdo não é a tecnologia, mas seus profissionais. O verdadeiro valor agregado
do jornalismo está nos jornalistas.

Assim, vimos que existem várias razões que levam ao descrédito e à perda de
influência da mídia. Mencionamos fatores sociológicos e tecnológicos. Mas seríamos
muito vaidosos se pensássemos que todas as causas dos males que afligem o
jornalismo são alheias á profissão jornalística. A própria mídia é amplamente
responsável por seu declínio. Na deterioração do jornalismo, há muitas causas fora da
profissão, mas muitas outras estão dentro.

Inúmeros estudos no campo da empresa informativa destacaram nos últimos anos que
são as próprias empresas jornalísticas e, principalmente, seus gerentes, os primeiros
responsáveis por sua terrível espiral. Muitos gerentes de mídia devem ser
questionados por sua falta de estratégia e visão para enfrentar a transformação digital
da mídia. Sua gestão errática e de curto prazo resultou em uma degradação
incessante de suas organizações jornalísticas.

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E, felizmente, temos exemplos de que isso não é um mal que afeta igualmente todas
as mídias jornalísticas. Nos últimos anos, alguns meios de comunicação estão obtendo
resultados muito melhores que outros. Um jornal fundado em 1851 e, portanto, muito
longe do que entendemos como nativo digital, ultrapassou este ano o número de 3
milhões de assinantes na Internet. Refiro-me, é claro, ao The New York Times, um
meio que, sem renunciar à sua identidade jornalística, reforçando seu compromisso
inabalável com a qualidade, conseguiu se reinventar nos últimos anos. Hoje, a Old
Grey Lady é uma das mídias jornalísticas mais inovadoras e melhor adaptada às
regras da Internet.

Não é o único exemplo bem-sucedido. Outras grandes marcas clássicas de jornalismo


—The Washington Post, The Guardian, BBC ... — conseguiram encontrar um caminho
na internet que combina qualidade jornalística com consolidação de negócios. Ao
mesmo tempo, uma nova onda de mídia digital está surgindo, nascida na própria rede,
que em muitos casos está marcando o caminho da regeneração do jornalismo.

Acho notáveis as seguintes informações: em um estudo recente que minha equipe de


pesquisa concluiu na Espanha, um país com 47 milhões de habitantes, recontamos
3.000 mídias digitais ativas em 2018. Isso é equivalente a um meio jornalístico digital
por cada 15.000 habitantes. Bem, dessas 3.000 mídias digitais, mais de um terço
corresponde à mídia nativa digital. A mídia nascida na própria rede ainda tem um longo
caminho até alcançar a consolidação e o reconhecimento público das marcas
clássicas do jornalismo. No entanto, como já mostram algumas mídias nativas digitais
de sucesso na América Latina, boa parte do futuro do jornalismo de qualidade reside,
com certeza, nesse movimento regenerador, conduzido por jornalistas independentes.

Comecei minha intervenção explicando que há muitos motivos de preocupação no


jornalismo atual. E também lhe disse que a fraqueza da mídia coloca as sociedades
democráticas em sério risco. No entanto, sou corajoso e estou convencido de que,
diante de todas as adversidades, podemos e devemos lutar.

A mídia está cheia de demagogos e pessimistas. O jornalismo precisa de pessoas com


espírito empreendedor, com idéias inovadoras e com força para enfrentar as
dificuldades. E quero aproveitar este fórum, a principal reunião anual dos professores e
pesquisadores de Comunicação no Brasil, para apelar a todos vocês, meus queridos
colegas.

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Todos nós, vocês e eu, temos uma responsabilidade. É uma responsabilidad que
afecta a todos os professores de comunicação e jornalismo do mundo. Nós, como
observadores atentos da mídia e formadores de futuros comunicadores, temos a
obrigação moral de buscar alternativas e propor soluções para os problemas que
afligem o jornalismo. Não podemos permanecer na posição de meros observadores.
Muitos pesquisadores apontam os problemas, sem propor soluções. Muitos
professores instilam em seus alunos um discurso simplesmente crítico sobre a mídia,
sem se preocupar em procurar fórmulas para resolver a situação que censuram. Como
Kapuscinsky disse, os cínicos não servem à profissão de jornalismo. Estou convencido
de que eles servem ainda menos para a universidade.

O jornalismo é uma atividade essencial para a democracia e, como pesquisadores e


treinadores, temos duas opções: observar desde a tribuna como o jornalismoé
liquidado entre muitos ou ajudar a defendê-lo. Não conseguiremos nada com críticas
destrutivas. Nada é contribuem os pesquisadores que simplesmente nos lembram que
a mídia está quebrada. Nós já sabemos disso. Precisamos de pesquisadores capazes
de fazer críticas construtivas, que, além de senhalar falhas, contribuam com idéias
para a inovação.

Não quero me comportar como um crítico dos críticos. Significaria pecar duplamente
da atitude que censurei. Então, nesta parte final da minha palestra, eu gostaria de ser
mais proativo: vou indicar algumas idéias que espero que sejam úteis para reverter, a
partir dos estudos sobre comunicação, alguns dos problemas que eu apontei. Assim
como precisamos de um jornalismo renovado que atualize os valores clássicos da
profissão por meio de um uso inovador de tecnologias, também precisamos renovar a
pesquisa acadêmica. Temos que propor modelos para responder a novos desafios
tecnológicos e profissionais.

Deixe-me listar sete áreas de pesquisa nas quais, na minha opinião, a Universidade
pode e deve contribuir para o fortalecimento do jornalismo. São áreas em que a mídia
hoje exige novas idéias e propostas. São estes sete:

1. Novos modelos de produtos. Precisamos repensar a forma, a estrutura e as


tecnologias da mídia. Até agora, a grande maioria da mídia se limitou a reproduzir as
mesmas características da mídia tradicional em um novo contexto digital. Devemos dar
um salto qualitativo e criar mídias que possuam um código genético digital.

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2. Novos modelos de negócios. Os pesquisadores devem contribuir para a ideia de


novas formas de negócios capazes de sustentar o jornalismo independente de
qualidade a longo prazo. Foi demonstrado que os modelos tradicionais, baseados na
maximização do tráfego, não podem esperar grandes retornos financeiros da
publicidade online. Em vez disso, vários exemplos estão demonstrando que o
jornalismo de qualidade é mais viável com modelos baseados no pagamento por
conteúdo e na criação de comunidades. Os pesquisadores devem contribuir com
propostas para criar uma nova estrutura econômica para o jornalismo do século XXI.

3. Novos modelos de organização profissional nas redações. A primeira etapa da


convergência jornalística, a fase em que as operações analógicas e digitais tiveram
que ser articuladas, já foi encerrada. Agora, o jornalismo precisa entrar em uma
convergência de segunda geração: precisa de idéias para organizar um jornalismo de
fechamento contínuo, com estruturas mais horizontais e com uma crescente relevância
de profissionais com perfil tecnológico. O novo jornalismo não será possível sem
redações renovadas.

4. Novos modelos para integrar a robotização. O jornalismo nunca avançará de costas


para a tecnologia. Precisamos pensar de maneiras apropriadas que permitam integrar
o trabalho de jornalistas profissionais com a produção automatizada de textos e
vídeos. Os pesquisadores de comunicação devem explorar a inteligência artificial,
especialmente a área focada no processamento de linguagem natural. Precisamos
entender as maneiras de complementar efetivamente o trabalho dos jornalistas com a
contribuição das máquinas.

5. Novos modelos de jornalismo de dados e informações imersivas. A informação


multimídia que apareceu nos anos 1990 está dando lugar a um novo tipo de
informação multissensorial, que atinge aos cinco sentidos corporais. Além disso, esses
formatos estão cada vez mais orientados para experiências imersivas. Ao mesmo
tempo, o uso de grandes volumes de dados na elaboração de informações exige uma
reflexão sobre novos formatos informativos adaptados a essa nova matéria-prima
informativa. Precisamos explorar esses formatos e propor novos caminhos narrativos e
de visualização para a mídia.

6. Novos modelos de gerenciamento multiplataforma para a Internet das Coisas. O


conceito de jornalismo multiplataforma como uma combinação de imprensa, rádio,
televisão e internet foi superado. A nova Internet das Coisas faz de praticamente

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qualquer dispositivo eletrônico um suporte ao jornalismo. Os pesquisadores precisam


pensar em maneiras de adaptar as informações jornalísticas a esse cenário de
hiperfragmentação de plataformas.

7. Novos modelos de análise de audiência. A mídia exige novos sistemas de análise


dos usuários, que superam as limitações e os problemas colocados pelos atuais
sistemas de medição puramente quantitativos. É necessário ir além da simples
contagem de cliques e visitas. Da universidade, podemos contribuir propondo novos
sistemas qualitativos de medição, que reforçam o jornalismo de qualidade.

Listei sete áreas, mas certamente há mais. São áreas nas quais o jornalismo exige
novas idéias para recuperar o vigor perdido.

O jornalismo está em crise e, talvez por esse motivo, o mesmo acontece com a
democracia. Mas resisto-me a pensar que os problemas não têm solução. Pode me
chamar de ilusório, se quiser, mas acho que no século XXI há espaço para o
jornalismo independente, que não é ditado pelos interesses ideológicos de esquerda
ou direita. Um jornalismo capaz de suportar pressões econômicas. Um jornalismo que
aborda questões importantes para á cidadania e não apenas aquelas que geram
tráfego. Um jornalismo, enfim, de altura ética, a serviço da sociedade e assegurando
os interesses dos cidadãos. Estou convencido de que nós, como pesquisadores e
professores, temos muito a contribuir para essa transformação. É nossa
responsabilidade.

Muito obrigado.

Referencias

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Practice against disinformation. 23 abril 2019. https://ec.europa.eu/digital-single-
market/en/news/third-monthly-intermediate-results-eu-code-practice-against-
disinformation

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Practice on Disinformation. Enero 2019.

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http://ec.europa.eu/information_society/newsroom/image/document/2019-
5/facebook_baseline_report_on_implementation_of_the_code_of_practice_on_di
sinformation_CF161D11-9A54-3E27-65D58168CAC40050_56991.pdf

Fishkin, R. (2019). Less than Half of Google Searches Now Result in a Click.
SparkToro, 13 agosto 2019. https://sparktoro.com/blog/less-than-half-of-google-
searches-now-result-in-a-click/

Gillmor, D. (2004). We the Media: Grassroots Journalism by the People, for the People,
Sebastopol. CA: O'Reilly Media.

The Guardian (2018). Revealed: 50 million Facebook profiles harvested for Cambridge
Analytica in major data breach. 17 marzo 2018.
https://www.theguardian.com/news/2018/mar/17/cambridge-analytica-facebook-
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Twitter (2019). Twitter March update: Code of Practice on Disinformation. 23 abril 2019.
https://ec.europa.eu/newsroom/dae/document.cfm?doc_id=58805

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