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CRISTINA SANTOS DA MATA

GESTÃO DO CONHECIMENTO NA COMUNIDADE


QUILOMBOLA KAONGE-CACHOEIRA/BAHIA: TRADIÇÃO
CULTURAL E MOVIMENTO DE RESISTÊNCIA DO POVO
NEGRO

CACHOEIRA

2021
CRISTINA SANTOS DA MATA

GESTÃO DO CONHECIMENTO NA COMUNIDADE QUILOMBOLA


KAONGE-CACHOEIRA/BAHIA: TRADIÇÃO CULTURAL E
MOVIMENTO DE RESISTÊNCIA DO POVO NEGRO

Trabalho apresentado à Universidade Federal do


Recôncavo da Bahia como requisito para obtenção
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Orientadora: Profrª. Dra. Rita de Cássia Dias

Pereira de Jesus

CACHOEIRA

2021
CRISTINA SANTOS DA MATA

GESTÃO DO CONHECIMENTO NA COMUNIDADE QUILOMBOLA KAONGE-


CACHOEIRA/BAHIA: TRADIÇÃO CULTURAL E MOVIMENTO DE RESISTÊNCIA
DO POVO NEGRO

Dissertação apresentada á Universidade Federal do Recôncavo da Bahia -UFRB,


como requisito para obtenção de título de xxxxxxx em xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

COMISSÃO JULGADORA:

_____________________________________
(nomemembro externo com titulação em fonte 12, negrito)

Instituição de origem do professor convidado em fonte 12, negrito

_____________________________________
(nomemembro interno com titulação em fonte 12, negrito)

Instituição do professor em fonte 12, negrito

_____________________________________
(professor orientador com titulação em fonte 12, negrito)

Instituição em fonte 12, negrito

Cidade, data da defesa por extenso


SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 5

A COMPLEXA DEFINIÇÃO A SEGUIR: O CÔNCAVO E O CONVEXO A 10


PROCURA DO EIXO DENTRO DE UMA CURVA

0 TRAJETÓRIAS DOS MOVIMENTOS DE CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO


QUILOMBOLA NO BRASIL

0.1 UM POUCO DA NOSSA HISTÓRIA


0.2 RESSIGNIFICANDO QUILOMBOS

0.3 EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E SEUS MARCOS

0.4 MAPEAMENTOS ESPACIAIS QUILOMBOLAS NO BRASIL

0.5 CONHECIMENTOS TRADICIONAIS E CONTEMPORÂNEOS: VOZES


DO ALÉM MAR
0.6 QUILOMBOLAS DA BACIA E VALE DO IGUAPE: PERCURSOS E
DESAFIOS
0.7 KAONGE: SINGULARIDADES E COLETIVIDADES

23

23

1 MOVIMENTOS (IN) CULTURAIS EM DEBATE


28
1.1 OS DESAFIOS DE DECOLONIALIZAR “CULTURAS”

1.2 AFIRMATIVAS CULTURAIS NOS COTIDIANOS QUILOMBOLAS


31

1.3 CONSTRUÇÃO CULTURAL QUILOMBOLA NA PERSPECTIVA DA


GESTÃO DOS CONHECIMENTOS E DOS ESPAÇOS: COLETIVO-
FAMILIAR-INDIVIDUAL

1.4 O LUGAR DA EDUCAÇÃO ESCOLAR NOS CONTEXTOS


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QUILOMBOLAS
3 PERCURSO PARA O KAONGE

3.1 SALVADOR x KAOGE

3.2 UFRB (CACHOEIRA) x KAONGE

3.2 MAPEANDO ACESSOS

3.3 IMERSÕES CULTURAIS E EDUCATIVAS NOS QUILOMBOS

3.4 PRODUÇÃO MATERIAL NO KAONGE

3.4.1 ESCOLA

3.4.2 CASA DA FARINHA

3.4.3 FEITURAS DO DENDÊ

3.4.4 FAZEDURA DO XAROPE

3.4.5 EXTRAÇÃO DA OSTRA

3.4.6 BANCO SOLIDÁRIO

3.5 RELIGIOSIDADE E ESPACIALIDADE: QUAL SEU PAPEL E SUAS VOZES

3.6 QUILOMBOLAS DO KAONGE E SUAS VOZES: O QUE QUEREM/FAZEM NA


ATUALIDADE

3.7 KAONGE E MÍDIAS: ROTEIRO GUIADO PELA/NA WEB


5

INTRODUÇÃO

A difusão do conhecimento pelas diversas mídias tem ocupado lugar de


destaque no mundo inteiro, sobretudo no que tange a veiculação de informações, as
quais atinge números expressivos de pessoas, de maneira formal e informal. Nesse
mesmo sentido, a difusão do conhecimento possibilita compreender as inúmeras
formas que os sujeitos constroem e reconstroem as histórias ouvidas, ao mesmo
tempo que as materializa, transformando-as em “verdades”, ou não, e assim
produzindo conhecimentos.

Essas histórias reproduzem realidades, revelam culturas e valores,


disseminam e multiplicam saberes. Nessa perspectiva que buscamos perceber as
formas de transmissão de informações e conhecimentos no espaço de vivências do
Quilombo do Kaonge, no Povoado do Iguape, Município de Cachoeira, com objetivo
de discorrer sobre a produção, difusão e gestão do conhecimento na/pela
comunidade, considerando o movimento de resistência das práticas e vivências
quilombolas.

Especificamente, buscamos conhecer esse lugar privilegiado e os


movimentos de resistência do seu povo; saber como, em quais espaços e contextos
essa produção, gestão e difusão se dão, no sentido de compreender a organização
dos conhecimentos a serem transmitidos e
os objetivos que se pretendem alcançar; propor novos formatos midiáticos
para transmissão/disseminação dos conhecimentos produzidos na/pela comunidade.

O despertar para a pesquisa insurgiu após visitação ao Kaonge, seguindo a


proposta do Turismo Étnico Rota da Liberdade 1, cuja trilha apresenta uma
possibilidade de difundir elementos da nossa ancestralidade africana, que tem
atraído inúmeras instituições de educação, as quais trazem centenas de estudantes
para conhecer elementos da cultura de matriz africana, ainda preservadas pelos
moradores da comunidade quilombola, com seus desdobramentos históricos e
simbólicos, incluindo ai formas de resistências do povo negro brasileiro e diaspórico.
Representações como Griots, as curandeiras, as rezadeiras, a feitura da farinha, do
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azeite, e elementos de uma cultura mais contemporânea, como as Cooperativas, o


Banco com moeda própria (Sururu), empréstimos financeiros e também Escola
dentro do Quilombo, que retratam as trilhas da resistência de um povo
contemplando seu percurso ancestral e contemporâneo.

O encantamento e a compreensão deste lugar como espaço privilegiado


para busca/aquisição de conhecimento(s), que assim como os conhecimentos
sistematizados nos espaços formais, a exemplo da escola, agregam valor à vida
cidadã, propomos a realização de atividades educacionais na Comunidade
Quilombola do kaonge objetivando proporcionar uma experiência de aula de campo,
relacionada aos ditames da Lei 10.639/03 e 11.645/08, com estudantes do Ensino
Médio de uma Escola Estadual do Bairro de Cajazeiras/Salvador/Bahia.

O desenvolvimento das atividades naquele espaço vivo e sagrado despertou


inúmeros sentimentos e sensações, as quais reverberaram em ricos momentos de
discussões nas aulas de alguns componentes curriculares mediados pelas nossas
experiências, amparadas em uma proposta de educação antirracista, objeto de
nossas práticas e militâncias na educação e nas relações cotidianas. A visitação ao
Kaonge fez parte de um Projeto de Trabalho da escola, o qual buscava mergulhar no
universo das discussões sobre algumas das estratégias de enfrentamentos ao
racismo institucional que nos massacra diariamente nas escolas e em tantos
espaços sociais da nossa cidade.

Discutir as representações do racismo e subalternidades que nós mulheres


negras e homens negros vivem constantemente é uma bandeira de luta sustentada
desde a minha adolescência e mais explicitamente durante a graduação, após
envolvimento com grupos que discutiam as questões raciais e de gênero,
decorrente, provavelmente, do eco da voz de minha mãe que durante toda minha
infância repetidamente dizia: “estude e trabalhe para ter o que é seu e não depender
de homens”. Vejo que minha mãe já era feminista desde a década de 70.

Esse caminhar e o entendimento no que tange aos movimentos identitários


descrito acima interferiram significativamente para a construção desta pesquisa, da
escolha do espaço e do objeto, à identificação e aproximação com os sujeitos e suas
7

marcas identitárias de uma trajetória de vida sempre interpelada pelas diferenças,


possibilidades e oportunidades.

Para aprofundar a escrita sobre o objeto da nossa pesquisa, que é a


construção, difusão e gestão do conhecimento na/pela comunidade quilombola do
Kaonge, cujas categorias de análise se entrelaçam a elementos de difusão e gestão
dos saberes e conhecimentos que se configuram com parte significativa das
percepções de poder, compreendendo o conhecimento como ato que dá
legitimidade a muitas formas também de opressão e manipulação, seja nas relações
cotidianas ou nas relações mais formais, a literatura nos auxilia a compreender e
organizar os capítulos que compõem o estudo.

Seguindo esta linha introdutória, que reverencia o objeto da pesquisa em


conexão com as marcas de trajetórias pessoal e profissional, salientando nossas
implicações com o conhecimento como objeto de poder, como objeto de negação de
poder e seus impactos na formação pessoal e coletiva, o primeiro capítulo introduz a
Metodologia da Pesquisa, o caminhar para busca de aproximação e compreensão
da realidade observada, a procura do eixo dentro de uma curva que nos levou a
configuração do desenho final, buscando a etnopesquisa como proposta
metodológica vinculada a valorização do local, do regional, do lócus de
pertencimento. Trazemos as marcas do nosso caminhar.

O segundo capítulo trata de Historicizar o Kaonge, percurso ancestral e


contemporâneo nas trilhas da resistência, na perspectiva de leitura e releitura desse
lugar, contemplando perspectivas formativas e informativas, a Gestão do patrimônio
material e imaterial e seus desdobramentos.

O terceiro capítulo expõe espaços e práticas de disseminação, descrevendo


e refletindo como se dá a produção, difusão e gestão do conhecimento na
comunidade do Kaonge, mais precisamente os movimentos de difusão e apreensão
dos conhecimentos da/na comunidade , com a proposição de novos formatos
midiáticos para veicular e difundir educação ancestral e antirracista e com a
elaboração do roteiro pedagógico de visitas guiada à comunidade do Kaonge.

As considerações finais, retrata a trajetória de forma a não colocar ponto final


na pesquisa, mas expor pontos de vistas que possam reacender olhares sobre
8

questões importantes que precisam ser tratadas não somente no âmbito acadêmico,
com imersões nas discussões ligadas a etnia/raça que produzam novas ciências,
novos conhecimentos dentro de outras visões antropológicas, considerando
efetivamente a participação de negros brasileiros e diaspóricos como também
construtores da nossa história.

Nesse sentido, trazemos algumas considerações reflexivas, considerando o


percurso da revisão de literatura e das imersões no Kaonge e suas
representatividades, apontando elementos que emergiram durante o percurso da
pesquisa, os quais podem se desdobrar em novas pesquisas, novas buscas e ricos
achados.
Necessário registrar aqui os grandes desafios que se apresentaram durante
a fase final dessa pesquisa, a qual optou pela metodologia da etnopesquisa,
objetivando estabelecer o máximo de contato e aproximação possível com o lócus
da pesquisa, com os sujeitos comunitários envolvidos na pesquisa, a saber os
moradores e as lideranças do Quilombo do Kaonge, porém a crise provocada pela
pandemia da COVID-19 impossibilitou o acesso a comunidade, nos conduzindo
assim a fazer outros percursos metodológicos, bem como utilizar diversos
instrumentos de coleta dos dados necessários para o alcance dos objetivos
propostos.
9

A COMPLEXA DEFINIÇÃO A SEGUIR: O CÔNCAVO E O CONVEXO

Cabe aqui, historiar minha trajetória de práticas e militância, e seus


desdobramentos na vida pessoal e profissional, como mulher negra, oriunda de uma
família chefiada por mulheres negras, que sempre delegou à Educação Escolar a
possibilidade de nos impulsionar para crescimento social e financeiro. O que
efetivamente ocorreu, tendo sido minha formação acadêmica o trampolim para a
melhoria das condições materiais de vida de parcela significativa do meu núcleo
familiar.

Nascida em 14 de setembro de 1972, de parto natural em casa, filha de


Lusia Bispo dos Santos e Florêncio Xavier da Mata e neta de Anacleta Xavier,
mulheres pretas e homem preto. A 12ª filha de uma família grande constituída por 6
homens e 6 mulheres, tendo sido a PR

imeira a concluir o Ensino Médio e a única a acessar uma Universidade.


Mesmo tendo entrado no Sistema Escolar aos quase 8 anos de idade concluiu a
Educação Básica na “idade certa”.

Essa trajetória escolar diferenciada da dos 11 irmãos, a marca de “única”


exerce um peso expressivo na minha vida e na minha caminhada, pois sei que para
ter acessado a quase todos esses espaços, minhas irmãs e meus irmãos fizeram
grandes sacrifícios, bem como minha mãe na sua labuta diária lavando “roupa de
ganho” e meu pai como pescador. Todo esse povo e outros tantos anteriores a eles
e elas fizeram sacrifícios para sustentar essa minha condição de primeira e de
“única”, mesmo sendo a última vinda de um útero que pariu 12.

A minha caminhada escolar começou aos 6 anos na casa de Dona Eurides,


vizinha da minha família, para quem minha mãe lavava roupas. Foi ela que me
ensinou a ler, pois só aos 8 anos fui para a escola. A mudança, a escola, assustava-
me. Foi difícil a adaptação. Perdi de ano 2 vezes no “primário”, não acompanhava
bem as aulas de História, tinha muitas dificuldades com “caligrafia”, letra feia...
10

Nas outras etapas da Educação Básica me destaquei. Fiz cursinho intensivo


(bolsista) e prestei vestibular para História e Pedagogia. Passei em Pedagogia, que
felicidade, formação intensa nas disciplinas de formação Social e Filosófica. Já me
sentia professora, problematizadora das questões sociais, militante das causas da
Educação, militante do MNU – Movimento Negro Unificado, participante de todos os
Encontros Nacionais e Municipais do Curso de Pedagogia dos anos de 1994 a 1997,
participante das discussões da LDB 9394/96, das discussões dos PCNs –
Parâmetros Curriculares Nacionais. Quatro anos de muita efervescência e
aprendizado. Período fértil, e ao mesmo tempo de uma abnegação de vida social
constante. Chegava em casa geralmente após 23:59, pois estudava na Lapa após
sair de uma jornada diária de 8h no Supermercado da Cesta do Povo, e morava em
São Cristóvão. Período cheio de marcas, maioria prazerosa. Me sentia desafiando a
“Lei da Gravidade”, pois tudo me servia de degrau, desde ler todos os textos dentro
dos ônibus nos trajetos trabalho-faculdade-casa, até os muitos momentos de
estômago vazio. Quando chegava em casa lá estava dona Luzia me aguardando
para fechar a porta de casa e me servir o chá de erva cidreira, o sono após o chá
por vezes aliviava a fome. Quantas lembranças, quantas marcas, quantas
conquistas...

Conclui o curso em tempo mais curto possível, 3 anos e meio. Adiantei


disciplinas, tive aulas aos sábados, trabalhei em vestibulares na Universidade (para
ajudar a pagar as mensalidades), coordenei Diretórios Acadêmicos (D.A), organizei
e participei de todas as manifestações de início de semestre brigando por acordos
financeiros que nos permitissem fazer a matrícula para estudar, pois sempre
tínhamos muitos débitos de mensalidades anteriores, mesmo com CREDUC (crédito
estudantil) de 80%.

Essas memórias são revestidas de cores e sabores que reverenciam cada


lugar/espaço por onde passava diariamente, dentro dos ônibus, em casa, no
depósito de alimentos da Cesta do Povo, nas longas filas do Caixa atendendo
pessoas de uma força inesgotável de vida e trabalho. Cenários de muitas lições
aprendidas a partir da observação, escuta e correlação com muitas aulas de
Sociologia e Antropologia, que me permitia fazer análises de discursos à luz de
Emília Ferreiro, Piaget, Vigotsky, Wallon, Gramsci, Luckesy, Paulo Freire e tantos
11

outros (poucas outras). Tudo me parecia laboratório, tudo me levava a tematizar e


auxiliava muito a responder as questões das avaliações abertas, dos Seminários e
Palestras, bem como dos Encontros de Estudantes. Quanta “fertilidade” discursiva.
O céu me parecia o limite.
O nome CRISTINA DA MATA ganhava asas, a mochilinha de couro e a
sandália de pneus ganhava acesso livre no Campus da Lapa da Universidade
Católica do Salvador. As aulas (poucas!) do professor Sérgio Guerra (pai) me faziam
suspirar, me davam uma imensa sensação de poder. As explicações sobre a Guerra
de Canudos me enchiam de “poder”; sobre a Zona Proximal de Desenvolvimento me
fazia recordar as reprovações nas aulas de história do “primário”, ao mesmo tempo
em que me impulsionava nas aulas para as senhoras da igreja que eu as ensinava a
ler, me impulsionava a ir nas escolas das colegas da faculdade palestrar...me sentia
um grande pássaro voando, voando, voando...

No Seminário do MNU (1995) na Reitoria da UFBA aconteceu uma explosão


de inquietações, acho que ali me descobri NEGRA, com todas as minhas raízes e
ancestralidades. Estava eu entre os 10% de estudantes negros dentro da
Universidade Católica do Salvador, e me assustei. Sai daquele Seminário muito mal
ao olhar para mim através do viés da exclusão. Sai dali com minha “moral” em baixa,
super baixa, refletindo sobre a dificuldade de acesso à educação superior
evidentemente negada ao povo negro deste país e a invisibilidade ou parca
representatividade nos diferentes espaços de produção. Mesmo com momentos de
êxito nessa minha trajetória, sempre percebi as dificuldades para acessar espaços
sociais e laborais, sempre identificava barreiras impostas pela ausência de
conhecimentos (acadêmicos e de pessoas) para avançar de maneira mais
expressiva.

O Seminário trazia a representação dos negros e negras nas telenovelas,


nos Meios de Comunicação e nos espaços de representação. Foi realmente um
grande susto. Foi um divisor de águas. Acho que antes daquele Seminário eu era
“Alice no País das Maravilhas”, minha negritude foi desvendada enquanto classe,
enquanto categoria, enquanto mulher negra. Momento muito importante. Ali decidi
meu tema de TCC da graduação: O que responde ao baixo número de negros nas
escolas de terceiro grau de Salvador?
12

Caminhei na escrita do TCC. Pesquisa de Campo. Resultado simplório: o


baixo poder aquisitivo. Minha escrita refletia sobre o lugar que nos foi imposto e no
qual por vezes me vi. Sou pertencente a esse grupo discriminado e desprivilegiado
historicamente, tendo na minha cor e gênero a impressão de fatores que dificultaram
e dificultam meu acesso e de tantos(as) outros(as) homens e mulheres a muitos
espaços de poder, incluindo ai os espaços dos conhecimentos legitimados nas
cadeias produtivas que dão ascensão econômica e política.
No dia 08 de agosto de 1997 colei grau. Formei-me Pedagoga. Alegria geral.
Alegria para muitas e muitos pares dos meus espaços de vivência e convivência.
Ganhei “mais moral” na rua, na família, na casa, no trabalho, na Igreja que
frequentava (Igreja Universal do Reino de Deus). O Certificado de Conclusão me
deu mais segurança e confiança, além dos muitos conhecimentos que adquiri. A
posse da comprovação me permitiu ousar ao pedir demissão da Cesta do Povo,
para me inserir na área de Educação como estagiária.

Daí em diante segui na minha militância enquanto mulher preta. Vi meu


potencial de enfrentamento as formas de racismo via canais da Educação formal
crescer a cada dia. Palestrei em vários lugares. Criei um programa de alfabetização
de adultos na Igreja para as senhoras “aprenderem a ler a bíblia”, retomando o
desejo de infância: “Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas” ...

Para isso, utilizava os Cadernos do Professor e da Professora produzidos


por educadores e educadoras negras de Salvador, como meu livro de cabeceira.
Passei a ir ao maior número possível de palestras e debates sobre questões raciais.
Comecei minha educação antirracista. Li atentamente o Livro Escola Plural:
Diversidade está na sala de aula, coordenado pela professora Maria Nazaré 2, passei
a frequentar as discussões no CEAO3 , me envolvi em tudo que parecia fortalecer
meus novos olhares sobre racismo e racismo estrutural.

Uma experiência inicialmente dolorosa, pois me descobri também racista,


me descobri participante de grupos racistas, e nesse sentido as lutas foram mais
árduas, pois tive que revisitar e reconstruir quase tudo da minha identidade de raça
e gênero. Momentos sofríveis. Avancei e re-construir novas identidades, ancorada
no que traz Hall:
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A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo


moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era
autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com" outras
pessoas importantes para ele", que mediavam para o sujeito os valores,
sentidos e símbolos - a cultura dos mundos que ele/ela habitava (HALL,
2006, pag. 11)

Essa constatação da necessidade de re-construção de novas identidades, a


partir das trocas intencionais, nos ambientes escolares, nos encontros formativos,
me acompanhou e me acompanha com muita intensidade, desfazendo e/ou
ressignificando concepções outrora forjadas por ideologias eurocêntricas, burguesas
e preconceituosas, e que, a meu ver tem redesenhado a minha caminhada
acadêmica, alterando consideravelmente a minha maneira de ver e pensar
diferentes realidades, ao mesmo tempo em que, também, auxilia na condução
intencional de influenciar novas identidades, sobretudo nas minhas relações com
homens e mulheres pretos e pretas nos espaços em que circunscrevo minha
identidade de mulher preta, educadora, professora, gestora escolar, ativista e
militante das questões de raça e gênero.

A primeira Especialização (que não conclui) em 1998 foi de Alfabetização de


Jovens e Adultos. Primeira turma da UNEB. Muitas descobertas e um convite
inesquecível: Fazer parte de um grupo de formadoras de professores do Município
de Macaúbas4. Atuei por dois maravilhosos anos como formadora de um grupo de 40
professores e professoras das turmas multisseriadas da zona rural do Município.
Experiência ímpar. Representação importante: única mulher negra em um grupo de
8 professoras formadoras. Homenageada na formatura da primeira turma da Rede
UNEB (2000)8do município, por ter conseguido aprovar 90% da turma na seleção
para o curso de Pedagogia. Muitas alegrias e muitos enfrentamentos, mesmo sem
muitas ferramentas. As discussões de raça e gênero me acompanhavam e me
faziam conquistar espaços nas escolas e cursos que ministrava. Figuras como Lélia
Gonzales, Ana Célia Silva e Maria Nazaré e me acompanhavam nos discursos e nos
exemplos.

Em março de 2003 e novembro 2004 vieram os maiores presentes que a


vida pode me dar, a chegada de Ana Luzia e Isabel Cristina, respectivamente. Duas
gestações sem planejamento, tomando remédios fortes para evitar. Carga horária
intensa de trabalho, incluindo aí atividades em ONGs, Associação de Moradores,
grupos de voluntários em programas de alfabetização de adultos. Períodos difíceis,
14

uma leve depressão pós-parto, de Isabel, tentativa de equacionar militância, trabalho


e filhas. Verdadeiro malabarismo. Peças que se juntaram e formaram a grande
mandala da minha vida. Hoje tudo bem harmonioso...

A segunda pós graduação teve sabor de deliciosos encontros com a


caminhada até ali traçada, História e Cultura Africana e Afrobrasileira. Muitas
construções teóricas e de retóricas, e muito mais desconstruções. Desconstruções
inclusive no campo da minha religiosidade. Mudança de paradigma. Mudança de
livro de cabeceira, turbilhão de descontentamentos com minhas práticas rasas e
sem muitas reflexões. Trocas de livros utilizados e de metodologias de aulas.
Naquele momento (2006) já professora da Rede Municipal de Ensino de Salvador,
agenda fechada com seminários e cursos e bate papos relacionados as pretensões
da Lei 10.639/03. Atenção constante as possibilidades de suas abordagens como
militância, como obrigação com meu povo, meus ancestrais e com os que viriam e
vem depois de mim. Viajei para mais de 100 municípios fazendo educação anti
racista. Minha voz ecoava por onde andava, meus olhos brilhavam com os
resultados dos bate papos com as camaradas docentes e não docentes. Aprendi a
ler e ensinei a muitas camaradas.

A terceira especialização foi na UFBA, oportunidade de juntar tudo até ali


aprendido para transpor didaticamente nas escolas em que trabalhava (duas
públicas e uma privada, 60h semanais de muito trabalho físico e mental): Estudos
Interdisciplinares para Educação Básica. Especialização com norte formativo focado
na inclusão nos Currículos das escolas de Salvador de uma proposta de Educação
Multirreferencial, amparada em uma Pedagogia anti racista e anti sexista. Curso com
uma formatação belíssima, com a utilização da Pedagogia da Intermitência e
proposta de conteúdos comprometida com uma educação diferenciada para escolas
periféricas. Me encontrei ali, me via grande, me via forte, me via participando
ativamente da construção de um novo modelo de escola e de educação para
meninas e meninos pretos da periferia. Voltei a me sentir “Alice no pais das
Maravilhas”. Voei.

Tentei seleção para o Mestrado em Educação da UFBA, tentei seleção para


Mestrado em Educação da UNEB. Tentativas sem êxito, as 60h semanais nas
escolas e as atribuições de mãe dificultavam maior envolvimento com leituras
15

indispensáveis para ingressar nas linhas de mestrado das universidades. 2012


resolvi estudar um pouco fora, mesmo sabendo dos embargos legais para validação
dos estudos aqui no Brasil, ainda assim fiz Mestrado e Doutorado em Ciências da
Educação pela Universidad Americana de Assunção no Paraguai. Cinco anos
interessantes, muitos aprendizados. Lá eu realmente parecia um “ser estranho”.
Mulher preta, cabelo rasta, verdadeira baiana. Minha temática despertava muitos
interesses: educação e questões raciais. Assuntos para muitas teses...

Difícil caminhada, mas não desisti. Em 2017 e 2018 já via o conhecimento


como objeto importantíssimo para “explicar e justificar” o meu estar no mundo. Nos
espaços de trabalho, sobretudo na educação, via a gestão do Conhecimento como
instrumento de muito poder, como instrumento de perpetuação de poder, como
instrumento de delegação e negação de poder, com muitos trocadilhos nas minhas
atuações como professora, coordenadora pedagógica e gestora escolar, centrei meu
olhar na Gestão e Difusão dos Conhecimentos. Com esse tema cheguei até aqui, e,
ao escolher reverenciar uma comunidade quilombola reverbera no que podemos
chamar da intencionalidade da ação educativa e da intencionalidade e não
neutralidade das pesquisas científicas.

Tantas outras linhas foram escritas no livro da minha caminhada até aqui,
incluindo maravilhosas personagens no enredo, sobretudo mulheres pretas, irmãs
de militâncias, professoras e professores que marcaram a minha trajetória de vida.
Não posso esquecer de citar as inúmeras trajetórias que também marquei, de tantas
outras mulheres e homens nos espaços escolares e não escolares por onde andei e
ando. Temos muitas marcas positivas. Nossas marcas continuam, as marcas que
deixam me fortalecem, ao mesmo tempo em que me norteia na construção desta
pesquisa, pois: “Uma vez que a escolha do objeto põe em condição de reciprocidade
e intercâmbio os lugares do objeto e é situado de uma forma bastante singular, pelo
posicionamento ético e teórico diante dele, uma voz que não é neutra e por isso
mesmo se ver autorizada” (JESUS, 2010, p.21).

Os caminhos da pesquisa

Inicialmente, a construção do objeto de pesquisa nos pareceu confuso, “não


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confiável” para validação nas universidades, o que dificultou a constituição da


questão de pesquisa e seus objetivos. Nesse sentido, a conversa com colegas
professoras que passaram pelo processo e a leitura conduziu a organização do
projeto de pesquisa. A persistência da inquietação, sobretudo por se tratar de
uma proposta de investigação em uma comunidade com ideais de uma cultura
afrobrasileira e ancestral, que nos causa um sentimento de “pertença”, impondo
mais ainda a utilização de propostas metodológicas sólidas e confiáveis,
remeteu-nos ao que afirma Minayo: “teoria, método e criatividade são três
ingredientes ótimos que, bem combinados, produzem conhecimentos e dão
continuidade à tarefa dinâmica de descobrir as entranhas do mundo e da
sociedade ( 2002, p.7).

Ultrapassando esse limiar das orientações mais ortodoxas das pesquisas


científicas e educacionais, caminhamos na direção de construir novos
conhecimentos acerca das relações na Comunidade do Kaonge, tendo o
elemento da Gestão dos Conhecimentos ali veiculados como principal objeto da
pesquisa. O percurso se mostrou complexo e mediado pelas dúvidas dos
impactos da pesquisa tão anti abissal dentro de uma comunidade com
princípios tradicionais.

Assim, o percurso metodológico, inicialmente, apresentou-se como o mais difícil de


ser decidido. A testagem das hipóteses levantadas, bem como dos achados da
pesquisa e seus contornos conduziu-nos por caminhos e processos de construções,
desconstruções, incertezas. Entretanto, o transitar pela memória retraçando
trajetórias ensejou por evidenciar que o lugar do objeto do conhecimento que
buscamos pesquisar, a comunidade quilombola do Kaonge, estabelece estreita
relação com nossas andanças e militâncias. Daí resultou a imersão nesse estudo
com uma proposta metodológica que remete a etnopesquisa e a técnicas que
melhor se adequa a busca por conhecer e dialogar com atores sociais, procurando
descrever, interpretar e compreender ações cotidianas em seus espaços de
vivência, considerando que,
toda a experiência social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo,
pressupõe uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou
idéia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento
17

válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social
se torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem práticas e
atores sociais. E como umas e outros não existem senão no interior de
relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a
diferentes epistemologias (BOAVENTURA, 2009, p. 49)

Em se tratando de uma pesquisa focada no humano, nas relações sociais e


comunitárias, enveredamos pelo desafio de utilizar a Pesquisa Etnográfica, com
abordagem qualitativa, através de instrumentos de coleta e análise sistêmica e
profunda das informações necessárias para a construção do conhecimento nesse
campo promissor para outras tantas abordagens e recortes de pesquisa, por se
tratar de elementos culturais, ancestrais, bem como saberes e práticas comunitárias
contemporâneas, tendo na gestão dos conhecimentos o principal objeto da
pesquisa.

Desta forma, a continuidade dos processos metodológicos para atingir os


objetivos propostos foram se configurando à medida em que as idas a campo, as
conversas in loco, as análises dos discursos, símbolos e simbologias, tornaram-se
imbricados nos elementos transcritos aqui. Utilizamos como técnicas a observação
dos espaços de produção e difusão dos conhecimentos e entrevistas, para
compreender a atuação dos atores sociais da/na comunidade, os quais irão também
compor a coautoria dessa pesquisa.
Após algumas idas ao espaço objeto da pesquisa, foi necessário utilizar a
técnica de entrevista dirigida acompanhada de filmagens dos sujeitos da pesquisa,
que aqui denominamos de co-autores dessa pesquisa, pois os homens e as
mulheres que produzem e gerenciam os fazeres e saberes da comunidade do
kaonge reconhecem as pesquisas acadêmicas e sua relevância nas relações sociais
e de poder, e assim requerem o direito de ser reconhecidas como sujeitos da
pesquisa, o que se justifica, segundo a antropóloga Rosy de Oliveira:
torna-se necessário repensar os mecanismos jurídicos já existentes e
outros constituídos como forma de instrumentalizar, não apenas o
campo jurídico do direito à terra, mas também o político-ideológico,
que envolve as relações sociais das terras dessas comunidades
(OLIVEIRA, 2010, pag 84)

Certamente por compreender a importância do domínio dos espaços


políticos e ideológicos para fortalecimento das comunidades quilombolas que esses
homens e mulheres vem exigindo estar nas pesquisas ali realizadas não apenas
18

como pesquisas, querem a condição de sujeito epistêmico que, ao mesmo reportam


suas histórias e vivências, e se tornam historiadores de si mesmos e das suas
práticas cotidianas ancestrais e contemporâneas. Em alguns momentos esse lugar
de autores da pesquisa foi solicitado, exigido, o que efetivamente está acontecendo
nesse trabalho, o que é substancialmente defendido pelos princípios da etno
pesquisa.
Sendo o produto final desse trabalho um site que hospede as produções
científicas e midiáticas do Koange, disporemos nos mesmo inúmeros vídeos das/os
coautores/asda pesquisa e um roteiro pedagógico de visita guiada à comunidade.

A procura do eixo dentro de uma curva

Dada as categorias de análise da pesquisa, a saber: produção, difusão e


gestão dos conhecimentos no Quilombo do Kaonge, recorremos a diversos
instrumentos de coleta de dados, a exemplo da entrevista da sondagem de opinião,
entrevista semiestruturada, focalizada e aberta em profundidade.
Utilizando-nos dessas técnicas, que se complementam, aos poucos fomos
organizando as informações de modo que os capítulos estabelecessem entre si
particularidades e similaridades, que seja possível traduzir os elementos
selecionados nos objetivos específicos da pesquisa, de acordo com Ludke e André
(1986, p.45):

[...] a tarefa de análise implica, num primeiro momento, a organização de


todo material, dividindo-o em partes, relacionando essas partes e
procurando identificar nela tendências e padrões relevantes. Num segundo
momento essas tendências e padrões são reavaliados, buscando-se
relações e inferências num nível de abstração mais elevado.

Seguimos analisando as informações por categoria, para aprofundar melhor


a pesquisa e dar conta de tratar dos processos de produção dos conhecimentos, da
difusão dos conhecimentos e da gestão de todos os processos, colocando sempre
os sujeitos dos processos em evidência, pois, em se tratando de “uma Pesquisa
Social, precisamos trabalhar por aproximação, e ao tempo em que formos
progredindo na pesquisa, elaborarmos critérios e análises mais precisas” (MINAYO,
2010, p 12).
19

Assim, dialogamos com autores como Minayo, André, Roberto Sidney que,
via categorização específica, nos sinaliza possibilidades de teorizar as práticas da
Comunidade do Kaonge, das práticas das mulheres e homens nas suas relações de
produção e consumo e transmissão e difusão e reconstruções.

A questão levantada acerca da produção, gestão e dos espaços de difusão


dos conhecimentos na Comunidade quilombola do Kaonge, considerando a
centralidade das suas ações como movimento de resistência de um povo, de uma
cultura, de uma raiz ancestral, trilhou pelo traçado dos objetivos propostos que,
juntos, possibilitaram a concretude dessa primeira investigação, ao mesmo tempo
em que nos forneceu subsídios para elaboração de um espaço virtual para servir de
divulgação das ações do Kaonge e suas pretensões políticas e identitárias.

Iniciamos a pesquisa retraçando memórias. Seguimos a linha da vida para


evidenciar as marcas da infância e juventude como ponto de partida de tudo.
Revisitando o passado para redescobrir nesse caminhar o quanto de implicações as
práticas e vivências de estudante, professora, mãe e mulher negra militante, com o
conhecimento e mais especificamente com o objeto da pesquisa, desnudando, aos
poucos, as influências e impactos na formação pessoal e profissional.

Seguimos a curva que nos levaria ao caminho metodológico da pesquisa.


Desafio vencido com a escolha do método e aplicação das técnicas; definição de
categorias para análise; leitura e seleção de obras e autores que melhor dialogam
sobre as temáticas de abordagem; os encontros com os autores sociais envolvidos
na pesquisa; culminando com a divisão temática dos capítulos para o
desenvolvimento textual, que após introdução e descrição deste percurso
metodológico,direciona para apresentação da comunidade quilombola do Kaonge,
dos diferentes espaços de práticas e de difusão de conhecimentos, fazendo uma
busca por outras leituras e pesquisas sobre a comunidade e suas histórias,
principalmente, com seus atores/autores ancestrais e contemporâneos,
problematizando a própria denominação de Quilombo/comunidade quilombola, na
sua gênese e na sua utilização mais política.
20

Realizando simples buscas na internet com a nomenclatura Kaonge


encontramos algumas citações e textos produzidos em pesquisas acadêmicas de
graduações e pós graduações, os quais nos apresentam ricas informações sobre a
comunidade Quilombola do Kaonge, algumas definições de suas atividades e atores.
Dialogamos com essas literaturas para citar outros recortes científicos já realizados,
ao tempo que a leitura nos apontou novos caminhos naquele rico universo que nos
remete a ancestralidade e contemporaneidade do nosso povo preto.

Nesse percurso, identificamos espaços e os elementos que envolvem


produção, circulação e gestão de patrimônio material e imaterial, incluindo aí a
Escola, a Cooperativa, a Casa de fazedura da farinha, o Centro religioso e outros
espaços de produção e difusão dos conhecimentos. Isso nos levou a muitas
descobertas que foram descritas numa linha reflexiva.

Para concluir e atender as orientações do nosso Mestrado profissional,


apresentamos um material didático digital, um site, de difusão, registro e memória
das práticas, considerando o conhecimento formal e repertório cultural da
comunidade, com novos formatos midiáticos de difusão de conhecimentos do
Kaonge, bem como atendendo as pretensões das Leis 10.369/03 e 11.645/08,
sobretudo no que tange a:
Organização de centros de documentação, bibliotecas, midiotecas, museus,
exposições em que se divulguem valores, pensamentos, jeitos de ser e viver
dos diferentes grupos étnico-raciais brasileiros, particularmente dos
afrodescendentes. (DCNER, 2003, pag 24)

As pretensões da Lei 10.364/03, explicitada nas Diretrizes Curriculares


Nacionais para Educação das Relações étnico raciais apontam fortemente para
inserção das identidades positivas de negras e negros brasileiros e diaspóricos nos
currículos escolares e nos veículos de formação e informação, o que nos norteia
efetivamente construir esse site como hospedeiro das histórias e contribuições da
Comunidade Quilombola do Kaonge, bem como das suas muitas manifestações
culturais e artísticas, incluindo ai sua concepção de “comunidades quilombolas”, aja
vista que o Kaonge faz parte de um conjunto de 18 comunidades quilombolas do
Vale do Iguape. (Tombo, Kalolé, Imbiara, Santiago do Iguape, Kaonge, Dendê,
Engenho da Ponte, Kalembá, Engenho da Praia, Kaimbongo, Palmeiras, São
21

Francisco do Paraguassu, Egenho Novo, Engenho da Cruz, Tombo, Terra Vermelha,


Acutinga e Mutecho).
Concluindo essa etapa complexa do percurso metodológico, incluindo aí a
delimitação do espaço tempo da pesquisa, seguimos para a historização do Kaonge
e seus desdobramentos enquanto comunidade quilombola e representação
ancestral e contemporânea de resistência, ressignificação e representação de novos
quilombos, ancorados em saberes e fazeres ancestrais e contemporâneos.
22

0 TRAJETÓRIAS DOS MOVIMENTOS DE CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO


QUILOMBOLA NO BRASIL

Brasil, Bahia, Salvador, Cachoeira, Quilombos, Kaonge...espaços e culturas e


traços culturais que se unem, se repele, se negam, se conflituam e resistem
cada um ao seu modo, com marcos históricos e marcas que atravessam
gerações, e que essas vem construindo a nossa história e nossas sociedades,
descrevendo comunidades inteiras, e nesses descrições vamos situar os
objetos dessa pesquisa.

Ao começar o percurso que nos trouxe até aqui (2022), fomos modificando os
olhares e, em determinado ponto, alguns objetivos da pesquisa, aja vista da
natureza da pesquisa, a saber a etnográfica, de natureza qualitativa, a qual, é
descrita por GALLEFF, foram alterados e ampliados, a exemplo da
necessidade de ampliar a escrita no que tange a historiografia oficial dos
povos nativos brasileiros, a saber os “indígenas” e dos povos africanos
trazidos para cá, como forma de problematizar ao máximo a nossa
constituição identitária ancestral, o que nos possibilita também reafirmar os
processos de exclusão e exploração por parte dos estrangeiros (que também
compõe a nossa formação identitária), a saber, inicialmente, os portugueses.

Neste sentido a pesquisa-ação etnográfica tem nos possibilitado adentrar de


maneira cada vez mais intensa e imbricada na pesquisa, pois:

“Vale informar ainda que em pesquisa, as compreensões conectivas,


relacionais, intersubjetivantes, intercríticas, hoje envidadas por uma
inteligência geral, por uma cognição mais envolvente e politicamente
implicada/engajada, são pautas centrais de um conhecimento que emerge
empoderando-se pelo discurso e pelas compreensões provocadas pela
entrada em cena da diferença, da intersubjetividade e da
multirreferencialidade.

Uma das características da pesquisa etnográfica, de natureza qualitativa, é a


interferência que a mesma tende a provocar no olhar do pesquisador, na sua
postura e escrevivência, e isso foi acontecendo durante esse nosso percurso,
principalmente mediado pelas aulas teóricas na universidade, as quais
evidenciaram muitas mudanças no cenário das políticas mundiais que
interferiram nas políticas brasileiras, bem como nos movimentos de requerer o
23

protagonismo da escrita das suas próprias histórias, como traz HOUNTONDJI


(2010) “conhecer-se a si mesmo para transformar”, se referindo a necessidade
dos africanos construírem os textos das suas próprias histórias, objetivando
construir a verdadeira Filosofia Africana escrita por africanos.

Ainda complementando essa linha de raciocínio e defesa, citamos uma frase


impactante do Discurso do poeta e escritor Aimé Cesaire (década de 50): “a
Europa é indefensável”, discursando sobre as formas nada civilizadas que a
Europa se relacionou com outros tantos povos nos séc. XVI, XVII e XVIII (São
Paulo, 2020)

Vamos caminhar a partir de alguns marcos históricos e seus desdobramentos.

Desta forma vamos trazer aqui algumas legislações e ações das políticas de
“reparação” e “inclusão” que vem fortalecendo as bandeiras de combate ao
Racismo Estrutural (Silvio Almeida, 2017 ) suas variadas formas de expressão e
representação.

0.1 Um pouco da nossa História

Compreender a importância de trazer os movimentos históricos e sociais que


explicam as relações sociais e de poder no Brasil é indispensável para o
caminhar dessa pesquisa, sobretudo no sentido de produzir conhecimentos e
fazeres ancestrais, os quais apresentam as comunidades quilombolas rurais
para o mundo.
24

A historiografia “oficial” apresenta as terras do Brasil datando de abril de


1.500, com a chegada dos portugueses, ainda que já apresente também a
existência de comunidades indígenas nas terras “descobertas” pelos
portugueses e em seguida por tantos outros povos europeus, o que os livros
didáticos ainda reproduzem como conhecimentos oficialmente validado:

CITAÇÃO DE LIVRO DIDÁTICO MAIS ATUAL


POSSÍVEL, COM IMAGEM DA CAPA E
PÁGINA PARA ANEXAR

Podemos também citar a carta de Pero Vaz de Caminha, descrevendo os povos


nativos, assim que os avistaram, afirmando a existência de habitantes, de
civilizações de vários tamanhos: “Dali avistamos homens que andavam pela
praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem
primeiro.” CAMINHA, 1500 (pag. 2)

Outros tantos trechos da carta mostra, o que CESAIRE chama de indefensável, a


postura de petulância e soberba que Caminha descreve os nativos, inclusive sua
interpretação de pseudo comunicação: Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma
que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham
todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E
eles os pousaram. CAMINHA, 1500 (pag. 3).

E as formas de pseudo comunicação já se apresenta como meramente


comercial: ”Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas
dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-
as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do
Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. CAMINHA, 1500 (pag. 3).”
25

Essa descrição do processo de chegada de portugueses nas terras hoje


chamadas de Brasil, percorre os livros didáticos e a memória de parte
significativa da população brasileira como conhecimento sistematizado e
transmitido de geração a geração, mesmo com inúmeros movimentos de
comunidades tradiconais indígenas, ribeirinhas, caiçaras e outras, que
requerem da historiografia oficial reparação causada por essas versões da
história, a exemplo da LEI 11.645/2008:
“§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos
da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir
desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena
brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do
Brasil. (LEI 11.645/08...)

A leitura minunciosa da carta de Pero Vaz de Caminha, séc. XVI, nos auxilia a
compreender a imagem estereotipada que a historiografia descreve dos povos
nativos das terras denominada Brasil.

Partindo dessa historiografia, as populações indígenas aparecem nos cenários


sociais, educacionais e religiosos como seres “selvagens”, desprovidos de
cultura, e necessitados de serem domesticados pelos jesuítas europeus que
por aqui desembarcaram em finais do séc. XVI.

Poderíamos aqui nos debruçar sobre vasta bibliografia brasileira e estrangeira


que trata do assunto, mas esse não é o foco dessa pesquisa.

A exposição acima busca situar a constituição da população brasileira a partir


da chegada de europeus, tencionando trazer para esse cenário os processos
iniciais de exploração, extermínio e tentativa de escravização dos indígenas
por parte dos europeus, o que antecede a “trazida” de povos africanos para cá,
como mais populações exploradas pelos europeus, como descreve alguns
historiadores considerados mais contemporâneos.
26

CITAÇÕES ABOLICIONISTAS.....

A historiografia oficial apresenta quantitativos diversos de indígenas em terras


brasileiras, bem como de africanos trazidos para cá, o que foi sendo
apresentado de maneira inquestionável e alienada nos livros didáticos e
outros tantos documentos oficiais, retratando estas pessoas como inferiores e
subalternos, imagens estas que foram compondo o imaginário e
conhecimentos à cerca da constituição da população brasileira,
principalmente da constituição das classes dominantes e dominadas no país,
o que reverbera de maneira explícita nos cenários sociais e políticos até os
dias atuais, tendo o quesito “cor” o mais explicito, no que tange a escalas
hierárquicas e de poder.
Ficaríamos aqui durante muita escrita descorrendo sobre isso, porém vamos
nos deter a parte dessa história que nos coloca em situação histórica de
desvantagens e exclusão no país.

No séc. XVI, estimava-se a existência de 3,5 milhões de nativos no Brasil, e


que ainda no séc. XVI foram trazidos mais de 5 milhões de africanos,

principalmente da África negra....(nota de rodapé sobre


África negra...)

Tratando-se dos números de pessoas, indígenas:


No Brasil do século XVI, quando da chegada dos portugueses, viviam cerca
de mil povos distintos com uma população de 2 milhões a 5 milhões de
pessoas, segundo diferentes estimativas. A Funai (Fundação Nacional do
Índio), em reunião sobre a possível realização de um levantamento
populacional dos índios em 2003. (Marta Maria Azevedo, 2003)
27

Esses dados trazidos por Marta Azevedo, tendo como fonte o órgão oficial que trata
das questões dos povos indígenas no Brasil, a FUNAI – Fundação Nacional do
Índio, mostra o decréscimo dessas populações, o que, mais uma vez atesta os
processos de extermínios de populações e todo seu legado cultural.

e africanas, que a historiografia retrata, as quais foram compondo a nossa


população afro-indigena temos:

O que nos possibilita dizer que majoritariamente a nosso população, a partir


de meados do séc. XVI, era de negros, o que veio se configurando até os dias
atuais, sobretudo a norte/nordeste do país.

Quando analisamos alguns escritos demográficos e historiográficos,


percebemos a nossa constituição “racial” como bem híbrida, bem marcada
pelas culturas indígenas e africanas, ainda que as relações sociais e de poder
criem estratégias de tentar invisibiizar a participação desses sujeitos com
seus traços culturais na parte de cima da pirâmide da população brasileira.
28

Por vezes tentamos desviar nosso foco desse elemento constitutivo da


população brasileira, porém não é possível caminharmos na escrita sem esses
recortes, sem essas informações que fortalecem nossa defesa do quão
perversa é a negação do negro e do indígena na historiografia nacional, como
se faz necessário a construção de novas (e urgentes) narrativas que nos
coloque (negro e indígenas) como protagonistas, como autores e coautores da
nossa história e formação identitária, ao mesmo tempo em quê legitimem
nossas lutas por “reparação”, por políticas internas e externas de reparação,
em todos as áreas da sociedade, principalmente nos espaços escolares e
acadêmicos, espaços esses que constroem, reconstroem, e (deveriam)
destruir essa historiografia “equivoca”

Nesta perspectiva, o africano martinicano CESAIRE, chama para as


discussões do século passado esse pensamento, na perspectiva de
reconstrução social para o mundo, tendo as atrocidades do século XVI e XVII
como ponto nodal, o qual reverbera negativamente até os dias atuais.
Falam-me de civilização, e eu falo de proletarização e de mistificação.
Quanto a mim, faço apologia a sitemática das civilizações para-
europeias.
Cada dia que passa, cada negação de justiça, cada carga policial, cada
reclamação operária afogada em sangue, cada escândalo abafado,
cada exposição punitiva, cada viatura de C.R.S., cada polícia e cada
miliciano fazem-nos sentir o preço das nossas velha sociedades.

Nesse trecho o poeta Aime afirma a impossibiidade de falarmos de civilização


ignorando as ações nada civilizadas que imperou no mundo durantes séculos,
ações essas que ainda são responsáveis pelas grandes diferenças sociais e de
poder econômicos que estratificam nossas sociedades, e de maneira
particular nos referimos a sociedade brasileira, aos povos indígenas e
afrobrasileiros, com suas condições concretas de vida e subsistência, com
suas condições materiais de acesso e uso dos bens materiais e culturais
construídos pelas civilizações que construíram a nossa sociedade brasileira.

Mais uma vez nos encontramos presas a escrita dessa parte da história, porém
sem ela não podemos situar a comunidade do centro dessa pesquisa, a saber,
uma comunidade quilombola, com tantas histórias que se cruzam as dos
povos indígenas e africanos e afro brasileiros dos séculos XVI e XVII.
29

Revisitando os teóricos, os dados históricos e demográficos citados, paramos


aqui um pouco da nossa histórica, com esse recorte de constituição racial da
sociedade brasileira, pois assim podemos fazer o percurso de tratar da
exigência de muitos grupos sociais e comunidades, de requerer seus direitos
e espaços historicamente subtraídos, negados, explorados e alijados, sejam
estes materiais e/ou imateriais.

Vejamos as informações á seguir.

CITAÇÃO, GRÁFICOS, RECORTES DE JORNAIS, FOLHETINS...SOBRE A


CONSTITUIÇÃO QUANTITATIVA DE INDIGENAS, PRETOS E BRANCOS NO
BRASIL NOS SÉC. XVI, XVII, XVIII E XIX NO BRASIL

Nesse contexto podemos analisar a constituição da população brasileira do


ponto de vista quantitativo de modo a compreender os números da população
negra, principalmente na Bahia e Salvador, bem como compreender, à luz de
outras historiografias o lugar das comunidades negras nos espaços sociais e
espaços de poder, bem como das inúmeras ações de enfrentamentos aos
processos iniciais (séc XVII) e continuados (até os dias atuais) de escravização
e exclusão da população afro brasileira.

Aqui pontuaremos alguns movimentos que faziam frente a esses movimentos


de busca do fim da escravização dos povos afro brasileiro.

Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XIX

Séc. XX
30

TRAZER MOVIMENTOS DE TENTATIVAS DE ACABAR COM A ESCRAVIDÃO E


ESCRAVIZAÇÃO... E TAMBÉM DE FIM DOS EXTERMÍNIOS DAS POPULAÇÕES
INDÍGENAS

Podemos citar alguns marcos legais e procedimentais que assumem


atualmente a vanguarda das lutas pelos direitos civis e reparatórios das
populações indígenas e negras no país, inclusive os espaços que as mesmos
vem ocupando nos cenários dos movimentos sociais e políticos.

0.2 RESSIGNIFICANDO QUILOMBOS


0.3 EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS MARCOS

A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira,


tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das
minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços
pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido,
mais do que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que
dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das
condições da existência social e com as realizações da sociedade humana.
(Parecer 36/2001 do CEB/CNE)

Atravessando séculos de alienação (tentativas inúmeras) e subalternidades,


sujeitos sociais vão criando estratégias de enfrentamentos aos inúmeros
processos de exclusão vividos, de direitos humanos básicos negados, de
condições de vida pautados nas produções material e imaterial, podemos citar
aqui acontecimentos históricos que possibilitaram a criação de legislações
específicas para esses mesmos sujeitos alijados historicamente. Aqui refiro-
me as populações do campo, populações de comunidades rurais e
campesinas.

Neste contexto da pesquisa nos interessa as ações no campo educacional, no


campo dos saberes e fazeres de sujeitos históricos, protagonistas das cenas
31

que norteiam nossa sociedade contemporânea, e faço um recorte para os


séculos XX e XXI

E no campo da Educação o melhor recorte é o “advindo da EDUCAÇÃO DO


CAMPO”.

Para melhor organização do que tencionamos aqui historiar, Educação do


Campo e em seguida a Quilombola, trarei elementos existentes nos pareceres
que aprovam as resoluções, bem como seus marcos.

O principal marco para o parecer que aprova as Diretrizes para a Educação do


Campo, são as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do
Campo, as quais trazem uma reflexão bastante significativa:
No Brasil, todas as constituições contemplaram a educação escolar,
merecendo especial destaque a abrangência do tratamento que foi dado ao
tema a partir de 1934. Até então, em que pese o Brasil ter sido considerado
um país de origem eminentemente agrária, a educação rural não foi sequer
mencionada nos textos constitucionais de 1824 e 1891, evidenciando-se, de
um lado, o descaso dos dirigentes com a educação do campo e, do outro,
os resquícios de matrizes culturais vinculadas a uma economia agrária
apoiada no latifúndio e no trabalho escravo.

Esse preâmbulo de problematização das Diretrizes é muito mais abrangente,


pois traz inclusive a inexistência (proibição) do acesso de mulheres, escravos
e agregados ao Sistema de Ensino, muito amparado no ensino do período
colonial no Brasil, nos princípios da Contra Reforma.

As DOEBEC (Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do


Campo) se configuram como marco de abertura para implementação de
olhares e procedimentos pedagógicos e administrativos específicos para o
atendimento educacional das populações rurais, as quais foram se
incorporando outras necessidades e especificidades, com a participação
efetiva de muitos atores sócias, os quais outrora (antes da Constituição
Federal de 1988 e a LDB 9394/96) não tinham participação efetiva na
sistematização das políticas eucaionais, através de seus representates e
Conselhos.
32

Outro marco legal, foi o Parecer 23/2007, reexaminado pelo Parecer 03/2008,
que deram origens as Orientações para o atendimento a Educação do Campo

O Parecer nº 3/2008, do Conselho Nacional de Educação (CNE) e Câmara de


Educação Básica (CEB), que reexaminou o Parecer 23/2007, aprovado por
unanimidade em 18/02/2008, aprovou as orientações e o Projeto de Resolução
que o acompanha sobre o atendimento da Educação do Campo. Esse marco
legal, demarcado na temporalidade 2007/2008, traz elementos discursivos da
nossa história desde séc. XVI, passando por inúmeros movimentos
envolvendo a sociedade civil, organizações sindicais e políticas, populações
de todo o território nacional, bem como suas representações, como cita a
Resolução 3/2008:
Na presença do relator responsável pelo processo, que fez exposição em
torno do Parecer e justificativa do Projeto de Resolução, desenvolveu-se a
reunião que contou com representantes do Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra – MST, Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de
Educação – CONSED, Universidade Federal de Alagoas – UFAL,
Confederação dos Trabalhadores da Agricultura – CONTAG, Movimento
dos Atingidos por Barragem – MAB, União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação – UNDIME, Coordenação-Geral de Educação
Ambiental – CGEA/SECAD/MEC, Diretoria de Diversidade e Cidadania da
SECAD/MEC, Confederação Nacional dos Municípios, Frente Nacional dos
Prefeitos, membros da Câmara de Educação Básica e outros convidados.
(RESOLUÇÃO 03/2008)

Indispensável citar essa Resolução pois a mesma é o grande marco legal para a
consolidação das Políticas Públicas para a Educação do Campo, e demarcar a
vultuosa participação popular na promulgação das mesmos: “Houve inteira
concordância dos participantes com o Parecer, os quais se manifestaram de forma
muito positiva e apresentaram algumas sugestões sobre o Projeto de Resolução,
para consolidação das políticas públicas para a Educação do Campo.” (RESOLUÇÃO
03/2008)

A citada Resolução vem á décadas se desdobrando em orientações técnicas e


políticas que, ao menos quantitativamente, vem garantindo às populações rurais
(agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados
e acampados da Reforma Agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros.),
acesso mais regular e qualificado no campo educacional, impulsionando inclusive
ações em outras áreas, a exemplo da agricultura, geração de empregos e rendas.
33

Para melhor entendimento traremos alguns pontos da resolução:

§ 1º A Educação do Campo, de responsabilidade dos Entes Federados, que


deverão estabelecer formas de colaboração em seu planejamento e
execução, terá como objetivos a universalização do acesso, da
permanência e do sucesso escolar com qualidade em todo o nível da
Educação Básica.

Esse item é de extrema importância nas tratativas dos grupos pessoas e


instituições envolvidas nos movimentos rurais de educação, sobretudo pela
necessidade de entendimento dos entes federados quanto a oferta da
escolarização das pessoas do campo, o que emergiu a necessidade de outras
particularidades no que tange ao atendimento sistemático, temporal,
conceitual e pedagógico, neste sentido me refiro a legislações posteriores,
como Educação Quilombola e Educação Indígena.

Quanto a um dos principais princípios norteadores da Educação do Campo, é


a sua característica de eixo integrador para o Desenvolvimento, concepção
essa por vezes é ignorada nas políticas e práticas do Sistema Brasileiro de
Ensino. E o princípio traz:
Art. 11 O reconhecimento de que o desenvolvimento rural deve ser
integrado, constituindo-se a Educação do Campo em seu eixo integrador,
recomenda que os Entes Federados – União, Estados, Distrito Federal e
Municípios – trabalhem no sentido de articular as ações de diferentes
setores que participam desse desenvolvimento, especialmente os
Municípios, dada a sua condição de estarem mais próximos dos locais em
que residem as populações rurais.

0.4 EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E SEUS MARCOS


0.5 MAPEAMENTOS ESPACIAIS QUILOMBOLAS NO BRASIL
0.6 CONHECIMENTOS TRADICIONAIS E CONTEMPORÂNEOS
0.7 VOZES QUILOMBOLAS DA BACIA E VALE DO IGUAPE
0.8 QUILOMBOLAS DA BACIA E VALE DO IGUAPE: PERCURSOS E DESAFIOS
0.9 KAONGE: SINGULARIDADES E COLETIVIDADES

Constituição da População Brasileira


34

1 MOVIMENTOS (IN) CULTURAIS EM DEBATE

Existem inúmeros conceitos de Cultura, bem como críticas a muitos desses


conceitos. Poderíamos aqui conceituar Cultura como “todo aquele complexo que
inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os
outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade",
porém as leituras realizadas para esse Estado da Arte, nos orienta a trazer uma
descrição da materialização de cultura com seus imbricamentos nas relações de
poder, nas relações de perpetuação ou rupturas com as denominações e validações
de culturas, com a defesa de Mogobe B. Ramose:

Tanto o comércio quanto a religião têm lugar dentro de um contexto


cultural específico. A expansão, para além de suas fronteiras culturais
originais, significa que ambos podem servir como veículos para a
transmissão de cultura. Dado que, no seu sentido mais amplo, a
cultura inclui a política, isto significa que tanto a religião quanto o
comércio simbolizaram, numa determinada altura, a materialização de
uma ideologia política particular, tendo sido os seus transmissores.
De acordo com este raciocínio, a globalização pode ser cultural,
religiosa, política e económica. Convém salientar que tal demarcação
de áreas específicas não impede de forma alguma a sua
sobreposição, a sua convergência, o seu reforço mútuo e mesmo a
unidade orgânica entre elas. A questão é a seguinte: o que é que
acontece quando culturas, religiões, sistemas políticos e sistemas
econômicos diversos se encontram ... Quando quer que isso ocorra, o
resultado tem sido, com frequência, uma relação de dominância e
subserviência entre populações. (RAMOSE, 2009. pág. 127)

Para além do conceito básico de Cultural, aqui optamos por trazer (in)
cultura na perspectiva de como mesmo exerce forças nas relações concretas, dos
sujeitos concretos, nas relações entre si. Kaonge comprova os riscos de
entendermos culturas meramente como conceito, mas encontra no texto de Ramose
elementos para inculturar-se, para ver cultura de dentro para fora,para exportar
culturas.

1.1 OS DESAFIOS DE DECOLONIALIZAR “CULTURAS”


35

Os caminhos que essa pesquisa foi percorrendo por vezes nos pareceu
emperrar em busca por literaturas atuais que corroborassem com algumas
características específicas das histórias do Kaonge, por sua singularidade enquanto
existência de um núcleo familiar “principal”, principal inclusive do ponto de vista da
quantidade dos membros de uma família, considerando nosso incansável olhar e
discurso em busca de reais representações tradicionais de comunidades
tradicionais, incluindo as quilombolas, e isso trazemos aqui por identificar a presença
expressiva de uma família em todos os espaços de produção, difusão e
gerenciamento dessas produções e difusões, o que nos levou a realizar algumas
imersões na comunidade em busca de elementos que melhor expressasse o perfil
cultural do Kaonge.
Foi um percurso longo, por vezes com “retrocessos” de entendimentos,
porém, como caminhos da pesquisa, fomos juntando elementos que nos fizeram
buscar conceitos menos colonizados de cultura, a saber que dentro de um mesmo
núcleo familiar ou comunitário co existem vários perfis culturais, incluindo os
diversos caminhos encontrados pela comunidade para construção dos seus traços
culturais, os quais se entrelaçam diretamente com as relações e como os sujeitos
históricos desses espaços se estabelecem (historicamente) com os espaços
formativos, principalmente a escola.

Para maior compreensão do exposto acima trazemos a Escola São Cosme e


São Damião, existente no Kaonge, elemento central na busca por conhecimento
escolar como instrumento de poder, como elemento que vislumbra formação
acadêmica e manutenção da cultura local para desenvolvimento social, financeiro e
cultural.

A fundação da Escola São Cosme e São Damião, em 1964 se deu por


iniciativa principal das mulheres da comunidade, lideradas por Gilvani ....e desde as
suas primeiras atividades oficiais objetivava estabelecer paralelos diretos com a
preservação de elementos culturais da comunidade, ao mesmo tempo em que
compreendia que a construção dos saberes escolares garantiriam também a
manutenção da comunidade com seus traços culturais e garantia de construção de
melhores condições de vida das famílias que ali habitavam, as quais se agregavam
36

com outras comunidades quilombolas em busca de criar estratégias de


sustentabilidade alimentar, religiosa, escolar e política.

Durante as pesquisas inloco, nos grupos focais, as falas das pessoas


demonstravam a intencionalidade de movimento diáspórico: “estudar aqui para
aprender mais nossa cultura e quando sair retornar com mais conhecimentos para
ajudar a comunidade”. “era triste e difícil quando saia da escola daqui e tinha que
estudar em Santiago do Iguape, até calçar o sapato incomodava, mas eu sabia que
precisava ir para dar continuidade aos estudos e voltar para dar aulas na escola
daqui”. “passou a ser ruim quando vinham as professoras de Salvador e Cachoeira
dar aulas pra agente e elas não conheciam nossos costumes, aquilo nos agredia”.

Temos os registros fílmicos das falas das pessoas e de lideranças da


comunidade que sinalizam um imbricamento cultural forte e sistemático, como
expressão explícita de raiz fixa e de movimentos que garantissem a manutenção
dos saberes locais e busca de novos saberes, o que nos remeteu ao conceito de
diáspora, bem como de compreensão do global, necessário para sobrevivência e
perpetuação da cultural, o que, através de vários instrumentos e estratégias, as
lideranças do Kaonge utilizou para ser umas das comunidades quilombolas mais
conhecidas na Bahia e no mundo.

Para os movimentos sociais quilombolas e educação quilombola o Kaonge é


referência, e em relatos diversos as pessoas ratificam o caminho da escolarização e
do engajamento nos espaços de poder para legitimar as culturas de diversas
comunidades quilombolas da Bahia.

O kaonge se destaca por abrir, de maneira articulada com outras


comunidades, os seus espaços para o “público”, para o outro e suas culturas, para o
“estrangeiro”, para os espaços escolares/acadêmicos, para o incremento de traços
culturais contemporâneos e atuais, incluindo aí utilização de diversas tecnologias e
mídias sociais pois:
O colonialismo, para além de todas as dominações por que é
conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação
extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de
muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados,
37

relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade.


(BOAVENTURA, pag. 8)

E neste sentido é possível verificar as facetas utilizadas para atrair pessoas


e grupos para beber dos conhecimentos e saberes locais, ao mesmo tempo em que
criam ferramentas para maior difusão de elementos típicos do quilombo, seja por
meio das suas danças, culinária, produtos do extrativismo vegetal e animal.
Podemos classificar as atividades da comunidade do Kaonge como de grande
impacto empreendedor, com repercussão no modo de sobrevivências de muitas
famílias, inclusive exportando práticas medicinais ancestrais.

Foram necessárias inúmeras idas a campo para irmos identificando os


espaços de produção, difusão e gestão dos saberes e fazeres da comunidade, por
vezes essas categorias se fundem, os sujeitos aparecem em diversos lugares
dessas categorias, incluindo aí o discurso de que “as comunidades se dividem e se
juntam” para intercambiar os elementos das diversas práticas tradicionais bem como
as mais contemporâneas.

Algo que essa pesquisa mostrou foi o encadeamento das principais práticas
culturais, com as necessidades de sobrevivência material dos seus atores. Os
entrelaçamentos do familiar com o comunitário e o individual no sentido dos
gerenciamentos dos espaços e práticas, o que nos pareceu diretamente ligado a
formação escolar e de engajamento político da comunidade.

Desde a criação da Escola São Cosme e São Damião, a formação do


Turismo Étnico da Rota dos 18 Quilombos que é possível evidenciarmos a presença
da formação escolar/acadêmica no perfil dos construtores e gerenciadores dos
serviços e produtos existentes.

Despertou-nos durante a primeira visita guiada ao Kaonge a existência de


uma moeda própria, de um Banco Solidário que, inclusive, empresta dinheiro com
critérios que possibilitam uma ampla participação dos moradores de diversas
comunidades quilombolas do Recôncavo da Bahia.
38

Podemos identificar nas falas dos sujeitos dessa pesquisa a convicção do


permanente crescimento dos seus serviços e produtos, os quais amparam seus
discursos na participação irrestrita de todas as pessoas que quiserem, desde
quando pertença à comunidade e elejam seus representantes no Conselho das
Comunidades Quilombolas do Recôncavo.

Partindo da análise das falas dos participantes e nas imersões feitas na


comunidade do Kaonge, percebemos a forte presença das instituições de pesquisa e
extensão e suas contribuições para a manutenção e difusão das práticas e saberes
locais, e neste sentido o conceito de Cultura tradicional e contemporâneo podem
assumir perfis diferentes, o que apresenta-se como objeto de debates do que
pertence a cultura de comunidade quilombola ou não, e o entendimento de práticas
culturais como elemento de enfretamentos e resistência do povo negro precisa ser
fundante nessas análises, para não reafirmarmos discursos do colonizador, do
opressor, e nesse sentido o que traz o professor Roberto Sidney é indispensável
citar aqui, principalmente estando debruçados na etnopesquisa onde:
É interessante lembrar, de forma enfática, a necessidade da presença
da voz instituinte dos atores sociais com os quais a pesquisa trabalha,
e que ele não fale pela “boca da teoria”; não seja apenas um figurante
legitimador de conceitos cristalizados, corporativos e protegidos; que
sua fala seja material de primeira mão para as interpretações
fundamentadas na realidade da qual ele faz parte, irremediavelmente.
Assim, as citações das narrativas dos interlocutores da pesquisa, nas
suas diversas representações, se constituem num procedimento
pertinente em termos de coerência teórico-epistemológica para a
pesquisa qualitativa, além de servirem como base para a avaliação da
pertinência das conclusões a que chegaram o estudo. (MACEDO,
2009. P. 121).

E as falas dos sujeitos sociais, coautores e autoras desta pesquisa foi aos
poucos nos conduzindo a olhar as múltiplas culturas que habitam no cotidiano do
Kaonge, nas formas como os quilombolas se relacionam entre si e com os outros,
podendo assim se apresentar como uma bricolagem cultural, cultura como
resultados dessas interações e intensos movimentos de cunho social, político,
econômico, educacional e religioso.

Enfatizo essa discussão por estar envolvida em discussões, sobretudo


acadêmicas, que apresentam conceitos quilombolas dentro de uma lógica abissal,
dentro de uma lógica colonizadora e colonial, incluindo aí representação dos sujeitos
39

quilombolas como tribais, destituídos de muitos direitos civis, a saber até de


desfrutar das novas tecnologias desenvolvidas pelos sujeitos em suas relações.
Essas ponderações se explicam pelo entendimento errôneo transmitidos nos
ambientes escolares, os quais retratam os quilombos como áreas eminentemente
rural, por vezes até tribal, desprovido de modo de vida mais contemporâneo e
“moderno”, de modo. Talvez pesquisar sobre as representações que estudantes da
educação básica tem de quilombos possa melhor nos elucidar o que aqui pontuo.

As questões que trago aqui também estão ligadas a algumas das


inquietações que motivou essa pesquisa, as aparentes “bricolagens”, na concepção
de Lèvi Strauss, que despertou a realização e imersão, dentro de uma etnografia ou
melhor, etnometodologia, capaz de produzir, por si só novas noções e conceitos de
cultura e identidades.

Desta forma assumimos aqui, após inúmeras imersões no cotidiano da


comunidade da pesquisa, juntamente com os/as coautores/as, o compromisso ético
e político de:

Ao se empenhar em produzir uma “descrição densa”, o pesquisador


irá se deparar com regularidades, mas também com incongruências,
paradoxos, ambivalências, ambiguidades, opacidades, impurezas,
transgressões, traições, etc. Padrões monológicos de compreensão
da realidade e da pesquisa não alcançam essa complexidade do
mundo humano. (MACEDO, 2009. pág. 119)

E ainda:
na esperança de encontrar seu objeto de pesquisa numa organização
quase perfeita, o pesquisador iniciante vive uma perplexidade
desestruturante ao se deparar, para efeito de análise, com o corpus
de informações que sua pesquisa produziu, onde ele terá a
responsabilidade e a competência de torná-los inteligíveis e fecundos
em termos heurísticos.

Na tentativa de problematizar a necessidade de “decolonizar” conceitos de


cultura e teorizar as culturas vivenciadas no interior dos saberes e fazeres
quilombolas do Kaonge, imergimos em algumas análises de defesa de possíveis
posturas de pesquisador e sujeitos da pesquisa trazidas por Roberto Sidney
Macedo, os quais tem bastante significados para muitos dos saberes e fazeres visto,
vivido e percebido nas atividades in loco.
40

1.2 AFIRMATIVAS CULTURAIS NOS COTIDIANOS QUILOMBOLAS

O campo da pesquisa etnográfica nos apresenta desafios constantes no que


tange a referendar os achados da pesquisa, pois o que fomos encontrando nas
tramas de existência e resistência do Kaonge nem sempre conseguimos colocar no
campo da teoria, nos impõe e nos impulsiona a fazer ciência a partir do visto e
vivido, pois: “Para etnopesquisa-ação, os atores sociais constroem teorias, instituem
inteligibilidades importantes para se compreender as ordens sociais e intervir de
forma partilhada.” (MACEDO, pág. 116)

Partimos dessas reflexões para, já neste primeiro capítulo, apresentar a


ousada compreensão que os atores sociais do Kaonge têm de si e dos outros, pois
os mesmos querem assumir o protagonismo científico das suas práticas, das suas
histórias enquanto remanescentes de quilombos, das suas riquezas naturais, das
riquezas da sua culinária e outras artes.

Durante as entrevistas e grupos focais, ouvimos a exigência de compartilhar


os achados das pesquisas antes de divulgar, a exigência de serem coautores das
pesquisas, a exigência de serem citados com suas singularidades e, principalmente,
seu perfil comunitário e solidário.

Temos registros fílmicos do exposto acima, temos registros das vozes dos
atores que evidenciam suas convicções de verdadeiros construtores de cultura, de
saberes, de fazeres ancestrais, de práticas solidárias e coletivas, de
empreendedores sociais sustentáveis, de inventores científicos usando a terra com
novas tecnologias.

De maneira incisiva trazem em suas falas a importância e necessidade da


formação escolar/acadêmica para potencializar a cultura local, bem como exportar
suas culturas e modo saudável de se relacionar com a natureza.

Para melhor entendimento, vamos citar e mapear espaços e formas de


produção cultural que emergem no cotidiano da comunidade do Kaonge, aliás
somos orientadas a nos referir como “as comunidades”, representadas pelo
41

Conselho Quilombola da Bacia do Iguape (CQBVI), bem como entender que as


produções e articulações que fortalecem a cultura local é justamente a união social,
ideológica e política feita através do CQBVI, inclusive obedecendo critérios
democráticos de representação e representatividade.

Os bate papos e caminhadas “investigativas pela comunidade foram


revelando aos poucos a intimidade da comunidade, ou melhor, das comunidades,
pois em muitos momentos é difícil dissociar Kaonge do Dendê, Kaonge do Kalembá,
tanto do ponto de vista geográfico, como da interdependência financeira, o que fica
evidente nas falas e atividades desenvolvidas. Exemplos nítidos são as feiras e
festas, como a festa da Ostra realizada no Quilombo do Kaonge, porém o produtor
oficial e mais expressivo das ostras é o Quilombo do Dendê, a comercialização do
dendê na Cooperativa existente no Kaonge, mas quem produz o Dendê é o
Quilombo do Engenho da Ponte, a moeda Sururu criada no Kaonge que é
intercambiada no Quilombo do Iguape e aceita em dezenas de estabelecimentos
comerciais de inúmeros Quilombos, a exemplo da fazedeira do xarope que é do
Quilombo do Dendê e vai fazer o xarope no Kaonge, o que nos exigiu muita atenção
para compreender.

Outras práticas que nos chamaram a atenção foi a autodefinição de muitas


mulheres como Marisqueiras, mesmo aquelas com formação acadêmica outra, a
exemplo de uma Professora, uma Assistente Social e uma Técnica em
Contabilidade.

Um dos principais líderes e ativista quilombola se recusava a responder


questões que limitassem entendimento do Kaonge como comunidade, ele sempre se
referia “as comunidades”. Esse posicionamento do ativista nos induziu a mergulhar
um pouco mais nas histórias das outras 17 comunidades quilombolas da Bacia do
Vale do Iguape, a compreender as relações de interdependência social, econômica
e logística existente entre elas, inclusive com a obrigatoriedade de permissão de
representante de todas as comunidades, através do CQBVI, para realização dessa
pesquisa e de todas em qualquer das comunidades.
42

Esses achados da pesquisa nos transmitem um tipo de organização social


específica, entrelaçada, estruturada em outras bases e outras lógicas de
participação e ação, e que se apresenta como processos de resistência, que se
traduz inclusive como sustentação coletiva, sustentação com perspectiva de
equidade.
Muitas falas durante as rodas de conversa aparentavam uma sincronicidade,
uma coletiva reflexão sobre como as atividades ali desenvolvidas reverberam na
sustentabilidade local e regional, nas ações políticas governamentais ou não que
chega nas comunidades.

A leitura que fazemos é da robustez das articulações e tensionamentos das


lideranças em relação a buscas por melhorias para o coletivo, seja no campo dos
empreendimentos financeiros, ambientais e educacionais. Ainda aqui nessa
pesquisa arrolaremos as falas/vídeos que atestam as exposições acima, pois:
É interessante lembrar, de forma enfática, a necessidade da presença
da voz instituinte dos atores sociais com os quais a pesquisa trabalha,
e que ele não fale pela “boca da teoria”; não seja apenas um figurante
legitimador de conceitos cristalizados, corporativos e protegidos; que
sua fala seja material de primeira mão para as interpretações
fundamentadas na realidade da qual ele faz parte, irremediavelmente.
Assim, as citações das narrativas dos interlocutores da pesquisa, nas
suas diversas representações, se constituem num procedimento
pertinente em termos de coerência teórico-epistemológica para a
pesquisa qualitativa, além de servirem como base para a avaliação da
pertinência das conclusões a que chegaram o estudo.(MACEDO,
2009, pag.121)

E com nosso conceito cada vez mais incisivo de que a escrevivências do


povo preto deve compor as retóricas científicas na contemporaneidade, sobretudo
por sua invisibilidade na historiografia oficial, arcaica e eurocêntrica, enfatizamos o
quanto de traços culturais, ou novos traços, as comunidades quilombolas na bacia
do Iguape vêm produzindo e compartilhando, e veiculando e gerenciando.

Analisando o livro Barulho da Terra: nem Kalunga nem Camponeses, da


Antropóloga Rosy de Oliveira, foi possível compreender o que dizia o ativista
quilombola, no sentido de compartilhar e juntar para os enfrentamentos, por direito
às terras e seus direitos civis, individuais e coletivos, pois: “o jogo do território em
trânsito, traduzido na forma do título coletivo, não expressa o modo de vida singular,
43

as formas próprias de ocupação e uso da terra construído pelos indivíduos do grupo


e partilhado com seus parentes” (OLIVEIRA, 2010 pág. 85).

O livro descreve o longo processo de construção, quase que obrigatório, da


cultura do coletivo, do partilhar, do fazer junto, para a permanência nas terras e
posse das terras de famílias inteiras, inclusive rivais, e nesse sentido o quilombola
ativista aqui citado, enfatiza constantemente em sua fala essa importância de
fortalecer a cultura e as práticas do coletivo com base de sustentação dos
movimentos do CQBVI. No decorrer desse trabalho traremos as falas (filmadas e
transcritas) de alguns atores sociais do CQBVI, cito o Conselho porque em muitos
momentos pessoas deste coletivo participava das rodas de conversa e circulação
nas comunidades.

Essas relações imbricadas, por vezes nos remeteu aos processos de como
se dá a definição de ocupação dos espaços de gestão, de criação e de difusão na
(nas) comunidades, por vezes não foi fácil associar e nem dissociar, para tanto foi
necessário buscar compreender essas divisões de forma mais particularizada, a
exemplo de buscar acompanhar e classificar o que é familiar-coletivo-individual.

1.3 CONSTRUÇÃO CULTURAL QUILOMBOLA NA PERSPECTIVA DA GESTÃO


DOS CONHECIMENTOS E DOS ESPAÇOS: COLETIVO-FAMILIAR-
INDIVIDUAL

É explicitado durante algumas falas a importância e necessidade do êxodo,


da saída de membros das famílias em busca de escolarização e formação técnica
para retornar e dar sustentabilidade a existência do Kaonge, e não obstante se
destaca um núcleo familiar que fez esse percurso escolar/acadêmico primeiro, fez
de maneira mais expressiva, onde praticamente todos os seus membros concluíram
a Educação Básica e alguns adentraram o Ensino Superior, galgando assim
formação acadêmica para ocupar espaços de gestão na comunidade e no CQBVI,
inclusive com o maior número de composição familiar.A compreensão de coletivo-
familiar-individual por vezes se entrelaça, por vezes se cruzam e por vezes se
desassocia.
44

A pesquisa não nos permitiu avançar muito nas informações sobre a


organização das outras comunidades, porém a história narrada pela líder Juvani
Viana (75 anos), é de que as terras do Kaonge foram adquiridas por seu pai,
comprada de uma senhora que era proprietária, e ao adquiri-la ele deu pequenas
partes a amigos próximos.

Essa informação respondeu uma inquietação em relação a maior parte


ocupada das terras do Kaonge pertencer a família Viana, pois, tendo sido comprada
as terras logo, o individual é explicado, o que se transforma no familiar, e aos
poucos, em coletivo. Essa pesquisa também não adentra nessa dinâmica da
ocupação física do espaço, ainda assim encontramos nas falas marcas dessa
identidade familiar e de afinidades, ao tempo em que a pesquisa não nos permitiu
avançar muito nas informações sobre a organização das outras comunidades,
porém a história narrada pela líder Juvani Viana (75 anos), é de que as terras do
Kaonge foi adquirida por seu pai, comprada de uma senhora que era proprietária, e
ao adquiri-la ele deu pequenas partes a amigos próximos.

Essa informação respondeu uma inquietação em relação a maior parte


ocupada das terras do Kaonge pertencer a família Viana, pois, tendo sido comprada
as terras pelo patriarca, logo, o individual é explicado, o que se transforma no
familiar, e aos poucos, em coletivo.

Essa pesquisa também não adentra nessa dinâmica da ocupação física do


espaço, ainda assim encontramos registros de formas dessas ocupações:
por isso o território que ocupam identifica-se com sua história de
constituição de uma comunidade vinculada por laços de
solidariedade, que reconhece origens comuns e que assegura o
acesso à terra e aos recursos básicos para a sobrevivência por meio
das relações sociais, de parentesco por consangüinidade e
afinidades. (OLIVEIRA, pág. 111)

As lógicas utilizadas para compreender as relações mudam


significativamente a depender de quais grupos ou situações nos referimos, pois, a
sensação que temos é de que a Comunidade do Kaonge circula entre o tradicional e
o moderno com muita fluidez, com muitas particularidades. O entendimento do
coletivo está para umas dinâmicas, o entendimento do familiar passa por outras
45

dinâmicas, que por vezes se funde com o individual, aqui me refiro aos
gerenciamentos dos espaços produtivos e de difusão dos
conhecimentos/produtos/serviços da Comunidade.

As incansáveis lutas por equidade para as comunidades negras realizadas


pelos movimentos sociais, inclusive pelo reconhecimento jurídico das terras pelos
remanescentes de quilombos, desde decretos, Leis nos âmbitos Estaduais e
Federais, Resoluções, alterações em artigos Transitórios e Constitucionais, os quais
foram decisivos para engendrar efetivamente as nossas lutas e reconhecimentos de
direitos e políticas básicas para as comunidades. Dessa forma os processos de
“aquilombamento” de idéias, de práticas, de bandeiras, de produção coletiva, de
gestão para a coletividade, de difusão de conhecimentos e práticas como militância
foi sendo condição indispensável para salvaguardar as primeiras expressivas
conquistas, bem com avançar em outras tantas, a exemplo da Lei de Cotas, o que
impacta fortemente nos processos de escolaridades, principalmente no Ensino
Superior.

Podemos aqui discorrer sobre inúmeros momentos históricos e políticos que


resultaram nessas conquistas, porém nosso foco de pesquisa não comporta, ainda
assim vamos historiar as conquistas no campo da educação na Comunidade do
Kaonge, inclusive fazendo releituras de pesquisas já realizadas, ao mesmo tempo
em que trazemos conquistas atuais, de outubro de 2021, a exemplo da conquista de
mudança de nome de Colégio Estadual, que passou a se chamar COLÉGIO
ESTADUAL QUILOMBOLA DA BACIA DO IGUAPE, conforme Diário Oficial do
Estado da Bahia, de número 23.262, de 01 de outubro de 2021.
Figura 1 Card divulgação
46

Fonte: Líder comunitário do Kaonge, Ananias Viana

Esse card foi amplamente divulgado e resultou, em novembro 2021, de uma


sequência de rodas de conversas e intervenções culturais no “novo” Colégio
Estadual Quilombola da Bacia do Iguape, impactando significativamente no
fortalecimento das identidades de centenas de estudantes e docentes e familiares,
em relação a sua identidade cultural quilombola. Associado a mudança de nome do
Colégio, foi encaminhada uma carta de recomendações à cerca de adoção
necessária de prática pedagógicas e procedimentais que corroborem com a nova
nomenclatura do Colégio, e como professora formadora e pequisadora, adepta
etnopesquisa-ação, já me comprometi em fazer parte dos atendimentos à
solicitação, em uma proposta de Formação Continuada para Educação Quilombola,
na perspectiva de Educação Anti Racista, pois,
[...] a etnopesquisa-ação proporciona aos meios científicos e
acadêmicos uma oportunidade ímpar de transformar com, de
aprender com, e de ensinar com, possibilitando que a pesquisa
implique-se no social, sem que exerça uma moral parasitária que há
muito algumas pesquisas exercem conscientes ou não. Para
etnopesquisa-ação, os atores sociais constroem teorias, instituem
inteligibilidades importantes para se compreender as ordens sociais e
intervir de forma partilhada. Aqui, numa hermenêutica intercrítica e
implicada, os autoresda pesquisa assumem a responsabilidade de
produzir conhecimento e transformação social numa espiral sem
entrada fixa, onde ação e reflexão se imbricam em movimentos
partilhados, recursivos, muitas vezes imprevisíveis, orientados por
uma ética da responsabilidade, da autonomia e da radicalidade
democrática na maneira de implicar conhecimento e responsabilidade
humana e social. (MACEDO, p. . 116-117)

Partindo do que Macedo traz, encontramos, através das falas das lideranças
da comunidade, uma forte necessidade de implementar uma educação quilombola
47

pautada nas suas práticas e saberes, bem como nas suas bandeiras de lutas para
fortalecer as identidades dos mais jovens, das crianças e de toda as Comunidades.

1.4 O LUGAR DA EDUCAÇÃO ESCOLAR NOS CONTEXTOS QUILOMBOLAS

Assim encontramos nos movimentos de lutas do CQVBI posturas de grande


valorização dos saberes escolares/acadêmicos, de como a inserção do povo
quilombola nos espaços escolares/acadêmicos podem reverberar em
desenvolvimentos local e social sustentável e com equidade.
Desde a autorização para a realização de pesquisas nas Comunidades, à
definição de propostas de implementação de políticas para as mesmas,o CQVBI
exerce papel fundamental, ao mesmo tempo em que apresenta ma forma de
organização e gestão do que é coletivo pautada em princípio ancestrais, diáspóricos,
com tecnologias da atualidade, do contemporâneo.
Como já descrito anteriormente, realizamos essa pesquisa em plena crise
sanitária do COVID-19, o que nos apresentou alguns entraves, sobretudo por se
tratar de uma metodologia etnográfica qualitativa, ainda assim foi possível termos
alguns contatos com reuniões ordinárias do Conselho, e foi possível perceber o alto
nível de engajamento, propositividade e artiulação dos seus membros, bem como da
presença significativa de intelectuais quilombolas nesse espaço.
Poderia aqui nascer uma outra pesquisa, que trouxesse a representação e
participação desses intelectuais e como isso tem reverberado para Cachoeira e
Bahia.

O primeiro núcleo de difusão escolar na comunidade, é a ESCOLA SÃO


COSME E SÃO DAMIÃO, a qual já foi objeto de pesquisas, inclusive de intelectuais
quilombolas, que deu grande visibilidade aos processos de escolarização, o que
hoje se estende para outras comunidades, a exemplo da Escola Municipal Engenho
da Ponte...
Em seu Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia, 2018, Tiago Bispo
Silva, quilombola, professor e poeta,
“Ficava me indagando como os povos dessa comunidade fizeram
para implantar no Quilombo do Kaonge uma escola na década de
1990, em uma localidade esquecida pelo poder público. Como esta
48

escola conseguiu desenvolver um trabalho tão importante dentro da


comunidade.”

A indagação do professor Tiago, nascido em comunidade quilombola, tem


pertinência até hoje, pois as narrativas feitas pela Líder quilombola, espiritualista e
ativista fundadora da Escola, Juvani Viana, ainda traduzem os entraves para o
funcionamento escolar, desde falta de materiais de consumo, à suporte para
implantação efetiva de uma educação quilombola, como preconiza, através do
Decreto Legislativo n° 143/2003, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Escolar Quilombola.

Ainda nas pesquisas de Tiago Silva, ele retrata a história do embrião e


construção da escola São Cosme e São Damião através das vozes de “coautoras”
que ele denomina, uma delas, de Griô, a qual narra detalhadamente a trajetória da
escola, inclusive com o detalhamento de como, via articulação e enfrentamentos
políticos, a escola foi efetivamente construída e reconhecida institucionalmente.

Tiago Silva registra, na sua pesquisa, as falas de Griôt1, como concreto


movimento de dar voz aos instituintes da sua pesquisa, ao mesmo tempo em
quecorporeifica raça, gênero, militância, sabedoria ancestral e visão de futuro em
uma única pessoa, a qual, historicamente vem construindo outras narrativas e
colocando o Kaonge na rota da resistência através da formação escolar e
acadêmica.

Como já mencionada nesse texto, é muito difícil falar do Kaonge sem fazer
alusão as outras comunidades quilombolas da Bacia do Iguape, principalmente
pelos movimentos atuais do CQVBI e das pessoas alfabetizadas na década de 90 e
anos 2000 à 2010 na Escola São Cosme e São Damião, as quais eram (muitas
ainda são) moradoras dos 18 quilombos do Vale, e que hoje são as professoras da
escola, as lideranças e ativistas das comunidades, as/os intelectuais do Recôncavo
e do Mundo, pessoas que se consideram quilombolas da Bacia e Vale do Iguape.

1
Griôt foi o chamamento dado a Juvani Viana Juvelino, matriarca da comunidade, Guia religiosa do
Centro de Umbanda existente no Kaonde, ativista, professora leiga, fundadora e mãe da atual
gestora da Escola
49

Acompanha essa pesquisa, citação de sites que contém as falas de


inúmeras coautoras da pesquisa, as quais narram também a trajetória da escola e
dos enfrentamentos para implantação efetiva e oficial da mesma.

O que muito nos interessa aqui é dizer do lugar que a Escola enquanto
instituição formadora e mobilizadora ocupa no Kaonge, é apresentar os impactos
que esse micro embrião provocou no cenário local e regional no que tange aos
processos de escolarização, acrescentando ai a instalação de uma Universidade
Federal atenta as pretensões da Lei 10.639/2003 e 11.645/2008, bem como
Decretos e Portarias e Resoluções diversas que vem, principalmente nessas duas
últimas décadas, aumentando expressivamente o número de homens e mulheres no
Ensino Superior e Pós Graduação na região do Recôncavo da Bahia.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicos


Raciais trazem:
A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento,
valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação,
passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei
10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996, estabelecendo a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e
africanas. (DCNE, 2003. Pág. 11)

Ainda no início da década de 90, antes da promulgação da citada Lei já preconiza o


que trouxe a Lei, bem como realizou ações concretas para implantação desse
espaço que traz para ao centro dos debates a educação quilombola, a educação do
povo preto, inclusive em espaços de identidades ancestrais, religiosas e de
pertencimentos, pois, encontramos nas falas de lideranças quilombolas a sensação
de rupturas quando saem da Escola São Cosme e São Damião e passam a ter aulas
com professores diversos, sem a observância do que traz as DCNs.

A Resolução nº 8 de novembro de 2012, que define as Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica,
no seu artigo 1º diz que “deve garantir aos estudantes o direito de se apropriar dos
conhecimentos tradicionais e das suas formas de produção de modo a contribuir
para o seu reconhecimento, valorização e continuidade”, e nesse sentido a
existência de uma escola em uma comunidade quilombola, no ano de 1997,
50

atendendo 68 crianças e adolescentes (Tiago Silva, 2018. Pág. 38) exercia o que
posteriormente definiu essa Resolução.

Para traçar o Roteiro Pedagógico e desenhar o site do Kaonge, acessamos


inúmeras páginas na internet para listar as postagens já existentes, e percemos a
presença significativa de instituições de Ensino Superior na produção e difusão de
conteúdos que retratam a cultura da comunidade, com recortes em gênero, em
cultura e religiosidade, expressões musicais e culinária. Encontramos dezenas de
publicações, inclusive com alto nível de qualidade técnica e visual, resultados de
parcerias com a Universidade Federal do Recôncavo:
Em 2017, com o apoio da Secretaria de Educação de Cachoeira,
encontramos os/as docentes e diretores/as das escolas quilombolas
do Território do Iguape com o objetivo de compreender progressos e
difculdades na implementação da Lei nº 10.639/2003. Se, de um lado,
é de conhecimento geral a existência dessa Lei, por outro, a ausência
de material didático e paradidático de apoio às atividades de ensino,
currículo e formação, adequado à realidade local, difculta sua
efetivação.
A partir dessa reflexão, foi se consolidando a parceria com docentes
do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas
(CECULT), da UFRB, que implicou a institucionalização de um projeto
de extensão-pesquisa-formação que, com base em uma abordagem
colaborativa, propiciou a construção deste material paradidático. Ao
longo do ano de 2018, foram realizadas as Rodas de Saberes e
Formação (RSF), com a participação de professoras e professores,
diretores/as das escolas e representantes das comunidades e da
Secretaria Municipal de Educação. Esses encontros foram
fundamentais para a reflexão, os debates, as trocas, a valorização
dos contextos e saberes dos/as participantes (antropólogos/as,
pedagogos/ as, historiadores/as, professores/as de ensino
fundamental e universitários/as, griots, lideranças comunitárias,
assistentes sociais, estudantes e representantes da sociedade civil
organizada). Foi um processo de valorização dos professores e das
professoras, assim como dos propósitos das escolas, dos projetos
pedagógicos, referentes à inclusão da história e da cultura africana e
afro-brasileira nos currículos, e na prática pedagógica nas salas de
aula.(Almanaque Pedagógico, 2019. Pág. 9)

Temos alguns documentos publicados vídeos na internet que evidenciam


parcerias com a UFRB e outras instituições de Ensino e Pesquisa, que se
comprometem em fazer educação nos pilares da diversidade, da
multirreferencialidade, e, mais especificamente Educação do Campo (Parecer
03/2008), Educação Quilombola ( Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003,
Parecer CNE-CEB 016/2012) e outros dispositivos legais vem fundamentando e
sustentando as proposições de uma educação para a diversidade e suas
especificidades.
51

Enquanto pesquisadora, professora e ativista analisamos as ações do


Kaonge, no campo dos enfrentamentos políticos para implantar processos
formativos como elemento fundamental na construção e reconstrução de identidades
pautadas na educação quilombola e antirracista, sobretudo valorizando os saberes
ancestrais e identitários do povo negro.

Ainda nesse contexto do lugar da escola no CQVBI, encontramos inúmeras


publicações e citações que referendam a educação escolar, aja vista a quantidade
expressiva de intelectuais e estudiosos que compõe o Conselho.

O percurso dessa pesquisa nos revelou o potencial produtivo e escolástico


das comunidades quilombolas do Recôncavo. Listaremos alguns desses intelectuais
e suas qualificações acadêmicas para melhor ilustrar o que trazemos aqui, e desta
forma ratificar o importante lugar que a escolarização ocupa nesses movimentos de
resistências coletivo.

2 KAONGE, LUGAR INVENTADO/FORJADO/ESCULPIDO/CIRCULANTE

A comunidade do Kaonge, se autodeclara Quilombola, juntamente com


outras tantas situadas na Bacia do Iguape, pertencendo ao Distrito de São Tiago do
Iguape, nas margens do rio Paraguassú, no Recôncavo Baiano Sul Município de
Cachoeira, 140km de Salvador, próxima também da cidade de Santo Amaro. O Vale
do Iguape, que compõe os distritos de São Francisco do Paraguassú e Santiago do
Iguape, além de diversas comunidades quilombolas, é uma região que, em
decorrência do período açucareiro, teve abrangência de diversos engenhos e, por
isso, diversas comunidades negras oriundas das senzalas.

2.1 HISTORICIZANDO O KAONGE: PERCURSO ANCESTRAL E


CONTEMPORÂNEO NAS TRILHAS DA RESISTÊNCIA
52

As narrativas dos Co autores dessa pesquisa (entrevistados e componentes


das rodas de conversas), descreve o Kaonge como o “lugar longe”, lugar habitado
atualmente por 23 famílias, muitas delas de um mesmo núcleo familiar, Família
Viana, lugar cercado por muito verde e muita água, os mangues, de onde se extrai
muitas espécies de peixes e mariscos, com destaque para a ostra (maior produção
vem da área do Quilombo do Dendê), e extração de azeite, mel e ervas medicinais.

O destaque que já damos ao Kaonge está exatamente nas visíveis


articulações políticas realizadas por suas lideranças, juntamente com o Conselho
Quilombola, utilizando de estratégias diversas para me mostrar e ser visto, e
conhecido, através de sua famosa festa da Ostra, a qual atrai centenas de pessoas
e grupos, bem como do Turismo étnico (ver descrições no decorrer desse trabalho).

Porém, a condição de Comunidade Quilombola é o que efetivamente atrai


visitantes e pesquisadores, com olhares ávidos em relação a expressividade
contemporânea das ações e atividades do Kaonge.

Partindo das particularidades do Kaonge, se faz necessário conceituar


Quilombos e suas possíveis representações na atualidade.
Buscar conceitos de Quilombos é indispensável para, durante a pesquisa de
campo, situar qual a definição que a comunidade mais se autodeclara, pois
encontramos definições bem distintas e, por vezes, antagônicas, as quais podem
colocar as vivências e convivências do Kaonge como movimentos de resistência ou
não.

Consideramos relevante iniciar as discussões pelos escritos da intelectual


quilombola Maria Beatriz Nascimento 8, sobretudo pelo seu lugar de origem e sua
persistência argumentativa, a qual apresenta como base de sustentação as
entrevistas com pessoas pertencentes aos núcleos negros do passado, também
denominados de quilombos. Essa definição dos estudos de Beatriz Nascimento foi
ressignificada pelo professor Wagner Vinhas 9, que também coloca a intelectual
quilombola em lugar de destaque na temática, atribuindo a ela as discussões sobre
quilombo como seu ponto nodal10
53

Desta forma Beatriz mapeou espaços e sujeitos considerados quilombos e


quilombolas identificando que esses espaços nem sempre se apresentaram como
espaços de refúgio, de esconderijos, de busca de proteção, que por vezes os
agrupamentos de negros se apresentou como melhores espaços para produção
para seus sustentos, que quilombos se configuram durante o séc. XIX aqui na Bahia
como espaço de conquista de território ocupados por brancos e mestiços, sob a luz
de Beatriz quilombos, Kilombo ou Quimbundo se caracteriza também como Sistema
Social Alternativo (Beatriz Nascimento, 1981).

Podemos trazer conceituações de Quilombo, Kilombo ou Quimbundo com


especificidades para organização social, militar, econômica, religiosa e política.
Neste sentido autores como Arruti (2008) traz o caráter polissêmico do termo, e
emprego do mesmo, para contextualizá-lo de maneira mais coerente, o que depende
da visão e posicionamento do historiador, do pesquisador,
Para Beatriz Nascimento (1982c), o quilombo no continente africano havia
recebido significados distintos antes mesmo de serem organizados na
América. Então, o termo “kilombo” seria atribuído: a) aos novos membros
incorporados pelo ritual de passagem; b) ao território de guerras (militar); c)
ao local da iniciação dos adolescentes adotados; d) ao acampamento de
escravos fugidos; e) ao comércio com os portugueses (trocas); f) às
caravanas de comércio em Angola, no século XIX. (VINHAS, 2016, p 216)

Assim buscaremos identificar em qual campo polissêmico a comunidade do


Kaonge melhor se enquadra, partindo das falas e fazeres dos homens, mulheres,
adultos e crianças da comunidade e suas articulações, ou não, com outros
agrupamentos de pessoas, utilizando as definições de Beatriz.
.
Durante as pesquisas inloco e entrevistas com lideranças e moradores do
Kaonge, foi possível identificar o sentimento de dificuldade cultural de se relacionar
com outros grupos, sobretudo no que tange aos movimentos pedagógicos escolares,
nos quais os modos de fazer e se relacionar da Escola São Cosme e São Damião8
sofria uma ruptura severa, aja vista que os sujeitos docentes ignoravam a cultura
dos estudantes oriundos da escola citada, o que se verificava desde as obrigações
de horários a cumprir até a “ter que usar sapato”, o que incomodava de maneira
significativa. Neste sentido o deslocamento, necessário para continuidade do
processo de escolarização, para outras comunidades se constituía como
54

rompimento e exclusão, ao mesmo tempo em que afirmava a invisibilidade do


quilombo do Kaonge.

Outras interpretações de Vinhas sobre o ponto nodal de Beatriz, trazem


várias conceituações do significado histórico de quilombo, alguns significados
construídos a partir das pressões exercidas pelos agrupamentos, outras
conceituações feitas a partir das ameaças que esses agrupamentos exerciam sobre
os poderes dos grupos dominantes, outras conceituações amparadas na
necessidade de reconhecer os agrupamentos como precursores de movimentos de
resistência e criação de outros modos de vida e de organização social e política.
No Brasil, a primeira referência a quilombos em documentos oficiais data de
1559, mas somente em 1740 as autoridades portuguesas os definem como
sendo “[...] toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em
parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem
pilões neles” (Nascimento, 1985. p. 43). Alfredo Wagner (2002) afirma que a
designação do Conselho Ultramarino vigorou como conceito jurídico-formal
desde Perdigão Malheiro [1788-1860] até os trabalhos mais recentes de
Clóvis Moura [1925-2003]. O autor argumenta que essa referência implica
cinco questões básicas: 1) a fuga como elemento fundamental da formação
dos quilombos por escravos fugidos; 2) a quantidade mínima e exata de
fugidos; 3) a localização definida pelo isolamento geográfico; 4) o rancho
simbolizando a moradia habitual; 5) o pilão como instrumento da autonomia
e da capacidade de reprodução. (VINHAS, 2010, p 277)

Temos ainda uma definição bastante diferenciada de Quilombo, a qual


evidencia o destaque de Palmares, ou melhor, da “República Palmarina”, que pode
ser referendada pelos conceitos atribuídos:
Funari (1996) argumenta que os quilombos foram inicialmente nomeados
pelo poder colonial com expressão latina, res publicae (Estado), traduzida
mais tarde para repúblicas, republics, républiques, portanto, República de
Palmares. Clóvis Moura (1988) defendia uma interpretação singular de
nação quando elegeu, como eixo fundamental do modo de produção
escravista, a luta de classe entre senhores e escravos. Lélia Gonzalez
(1982) argumentava ser a República Negra de Palmares a primeira tentativa
de fundar um Estado livre na América, em oposição ao sistema implantado
pelos europeus no continente. Abdias do Nascimento (1982) afirmava que
um Estado africano no Brasil havia sido instaurado pela república palmarina,
unindo quilombolas em torno da resistência e da luta. Beatriz Nascimento
(1982d), por sua vez, arguia que o quilombo teria estabelecido o primeiro
conceito de nação e a primeira experiência de sociedade brasileira.

Imergir nessas denominações nos possibilita entender melhor os fazeres


vistos no Kaonge, as facetas das atividades desenvolvidas, pois, por vezes, nossos
conceitos de Quilombo impressos pela historiografia arcaica e eurocêntrica nos
conduz a generalizar quilombo sem considerar as especificidades de suas práticas
55

cotidianas, e nesse sentido o Kaonge abre possibilidades para múltiplas leituras e


releituras.
56

REFERÊNCIAS

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Cláudio Orlando Costa do; JESUS, Rita de Cássia Pereira de. Currículo e
Formação: diversidade e educação das relações étnico-raciais. Curitiba:
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aquestão da qualidade na pesquisa qualitativa – Educação e Ciências
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Criatividade. 29. ed.Petrópolis – RJ, Vozes, 2010.
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Março/Junho 2018

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CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020. 

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CULTURA INDÍGENA /ARTIGOS DIAGNÓSTICO DA POPULAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL Marta Maria


Azevedo - file:///C:/Users/ARTE%20E%20ALEGRIA/Documents/FORMA%C3%87%C3%83O/GR
%C3%81FICO%20DA%20POPULA%C3%87%C3%83O%20IINDIGENA%20NO%20BRASIL%20DESDE
%201500.pdf – 26/01/2022

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