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Abstract: The land ownership situation in the quilombola territories is dramatic in Brazil.
This study intends, through the survey and synthesis of data and theoretical reflections,
to argue that non-regularization, non-protection and conflicts in quilombola territories are
inserted in the power relationship established from the constitution of contemporary
capitalism. For that, some cases are brought to the State of Bahia, such as the fishing
quilombos of Rio dos Macacos, Dom João, Graciosa and São Franscisco do Paraguaçu.
Structural racism is undoubtedly the most important explanatory element for the non-
protection of quilombola territories.
1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Bahia. Membro do
Grupo Costeiros – Estudos Socioespaciais da Universidade Federal da Bahia e da Nova Cartografia Social
– Núcleo de Estudos em Agroecologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Atualmente é
professora substituta da Universidade do Estado da Bahia. E-mail: paulareginacordeiro@gmail.com
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RACISMO Y REGULARIZACIÓN DE TIERRAS DE LOS TERRITORIOS DE
LAS COMUNIDADES DE QUILOMBOLAS DE BAHIA
Résumé: La situation foncière dans les territoires de quilombola est dramatique au Brésil.
Cette étude entend, à travers l'étude et la synthèse des données et des réflexions
théoriques, faire valoir que la non-régularisation, la non-protection et les conflits dans les
territoires de quilombola sont insérés dans la relation de pouvoir établie à partir de la
constitution du capitalisme contemporain. Pour cela, certains cas sont portés à l'État de
Bahia, comme les quilombos de pêche de Rio dos Macacos, Dom João, Graciosa et São
Franscisco do Paraguaçu. Le racisme structurel est sans aucun doute l'élément explicatif
le plus important de la non-protection des territoires de quilombola.
INTRODUÇÃO
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É fundamental apreender que o aparecimento dos povos e das comunidades
tradicionais é político (MARTINS, 1993). Como afirma Alex Ratts (2004): “Num país
em que ‘custa alto’ ser índio ou negro (...) a autoatribuição de identidade vem
acompanhada de demandas pela manutenção ou recuperação de direitos, sobretudo do
acesso à terra” (RATTS, 2004, p.79), como na reflexão proposta no texto em questão.
Certa vez um jovem quilombola e pescador do Guaí, no município de Maragogipe
(BA), afirmou que a defesa dos territórios é, na verdade, a luta pela defesa da sua vida,
bem como das suas e dos seus. Essa narrativa é constante nas bocas e nas expressões do
cotidiano de diversas pessoas nos territórios quilombolas e pesqueiros, isso se dá pela
também constante violência experimentada nesses territórios. Os projetos de
desenvolvimento, legitimados pela falsa indiscutibilidade da ideia de progresso, são os
principais antagonistas do modo de vida quilombola e pesqueiro na Bahia. Esses projetos
atuam em diversos segmentos, indo desde a implantação de estaleiros, de carciniculturas,
da extração de produtos oriundos do petróleo, da mineração até os megaprojetos do
turismo.
Por sua vez, os projetos atuam no sentido de expulsar as comunidades ou de afetar
significativamente o modo de vidas dessas para substituí-las por um modelo que se arvora
garantir o desenvolvimento e o progresso. Para que o desenvolvimento seja alcançado
lança-se mão do projeto colonial que tenta hierarquizar e subjugar os povos, cujos
territórios devem ser redirecionados aos interesses dos colonizadores, nas palavras de
Vandana Shiva: “o desaparecimento do saber local por meio de sua interação com o saber
ocidental dominante acontece em muitos planos, por meio de muitos processos. Primeiro
fazem o saber local desaparecer simplesmente não o vendo, negando sua existência.”
(SHIVA, 2003, p.23).
Boa parte das (os) quilombolas possuem o modo de vida integrado a natureza, ou
como afirma Antônio Bispo dos Santos, o nego Bispo, possuem uma “relação comunitária
e biointerativa (...) com os seus territórios” (SANTOS, 2019, p.70) no sentido de garantir
a circularidade de suas vidas nos aspectos sociais, culturais e de subsistência, com
atividades de baixo impacto a natureza, resultantes dessa biointeratividade (SANTOS,
2019). Possui baixa inserção no mercado formal ou no circuito superior da economia
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(SANTOS, 2004), vendo o mercado como não-determinante para o seu modo de vida.
Boa parte dos povos e comunidades tradicionais não possuem documentos de propriedade
para fortalecer a posse do território (CAÑETE; CAÑETE, 2011). Porém, o principal
critério para a identificação destas é a autoatribuição (ou autodefinição).
É nesse cenário no qual estão inseridos os quilombos que com a sua organização
são importantes protagonistas do mundo agrário. Entende-se que com o acionamento da
identidade quilombola, o território quilombola deve passar a ser preservado, pois segundo
a Constituição Federal de 1988 é garantida através do Art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) a dominialidade das terras tradicionalmente
ocupadas: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”. O ADCT passa a ser regulamentado pelo Decreto nº 4.887/2003, o qual
define “Os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a
delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos (...)” (BRASIL, 2003).
Duas contribuições da legislação quilombola são destacadas aqui. A primeira faz
referência a prioridade dada ao critério de autoatribuição. Na prática, a autoatribuição se
dá a partir do reconhecimento coletivo e individual: individual porque o/a sujeito se
reconhece enquanto quilombola; coletivo porque a comunidade o/a reconhece enquanto
pertencente ao grupo. Outra questão importante é que com o Decreto 4.887/2003 há uma
alteração no significado do termo quilombo, pois se outrora quilombo era considerado
como uma organização criminosa, sendo perseguida legislativamente, com o Decreto esse
termo ganha um sentido capaz de conferir legislativamente direitos e garantias sociais as
e aos sujeitos que assim se autodenominam.
Vive-se um momento no qual cada vez mais comunidades reivindicam a
identidade quilombola. Segundo os dados da Fundação Cultural Palmares (2017), existem
2.997 comunidades remanescentes de quilombos no Brasil. Destas, 2.523 possuem a
certidão de autodefinição quilombola emitida pela Fundação Cultural Palmares (Mapa 1).
No Estado da Bahia existem 763 comunidades remanescentes de quilombos; destas, 613
possuem a certidão quilombola.
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Mapa 1: Comunidades quilombolas no Brasil até o ano de 2017
Os fatores para esse crescimento são diversos, mas, sem dúvida, boa parte dos
quilombos aciona a identidade em contextos de conflitos territoriais, nos quais a
identidade se revela como garantidora de direitos. É, portanto a partir do choque com a
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tentativa de apropriação privada de seus territórios que boa parte das comunidades
(re)constrói sua identidade. Ou como nos diz Frantz Fanon: “Enquanto o negro estiver
em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinas, confirmar seu ser
diante de um outro.” (FANON, 2008, p.103).
Segundo a legislação vigente, essa (re)construção identitária deveria levar às
políticas sociais, culturais e territoriais. Porém, durante a análise da situação fundiária das
comunidades quilombolas da Bahia percebe-se que o Estado não tem atuado no sentido
de garantir os direitos territoriais. Nesse sentido, esse artigo pretende investigar se a não-
regularização dos territórios tradicionais quilombolas2, ou melhor, se a não-proteção3
possui relação com o racismo, mais precisamente com o racismo estrutural.
TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS
Ao pensar com Alex Ratts, pode-se concluir que o território quilombola é também
um espaço de disputas e conflitos. Portanto o território quilombola está localizado no
confronto entre modos de vida, entre disputas pela produção e reprodução de determinada
2 As comunidades estudadas aqui são também pesqueiras, no entanto, por não haver procedimento
legal constituído para a regularização dos territórios pesqueiros destas, darei ênfase para o processo de
regularização fundiária quilombola.
3 Os territórios das comunidades de quilombos devem ser protegidas e receber políticas públicas
sendo regularizadas ou não.
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porção do espaço. É na disputa, no confronto entre os poderes que o território quilombola
ganha contornos e novos relevos.
Fato comprobatório é que conjuntamente com a crescente autoatribuição dos
povos vivencia-se um quadro da não-titulação dos territórios quilombolas. Segundo o
decreto 4.887/2003, há procedimentos para a identificação, o reconhecimento, a
delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos.
O processo de organização das comunidades quilombolas em torno da identidade
quilombola é, sem dúvida, o primeiro momento da regularização fundiária dos territórios
quilombolas e representa, muitas vezes, o momento de intensificação dos conflitos.
Posteriormente a associação comunitária solicita a certidão de autodefinição quilombola
a Fundação Cultural Palmares. A comunidade apresenta a certidão ao Instituto de
Colonização e Reforma Agrária (Incra). Após dar entrada no Incra a primeira etapa para
a regularização do território é a elaboração do Relatório Técnico de Identificação de
Delimitação (RTID), que consiste em levantamentos e estudos fundiários, cartográficos,
antropológicos, ecológicos, geográficos, socioeconômicos, históricos obtidos em campo
e junto a instituições de caráter público ou privado. O objetivo principal do RTID é
identificar os limites dos territórios das comunidades quilombolas.
A fase seguinte é a publicação do RTID, no qual os interessados terão 90 dias para
contestarem o Relatório junto à Superintendência Regional do Incra. Do julgamento das
contestações caberá recurso único ao Conselho Diretor do Incra, no prazo de 30 dias. A
próxima fase é a portaria de reconhecimento, no qual há a publicação de portaria do
Presidente do Incra no Diário Oficial da União (DOU) e dos estados. Na publicação estará
descrita os limites do território quilombola. Após a publicação, caso existam imóveis
privados (títulos ou posses) no território tradicional, é necessária a publicação de Decreto
Presidencial de Desapropriação por Interesse Social. Esses imóveis serão vistoriados e
avaliados conforme o preço de mercado e receberão indenização em dinheiro.
A titulação do território é o coroamento desse processo. Aqui o presidente do Incra
realizará a titulação mediante a outorga de título coletivo, imprescritível e pró-indiviso à
comunidade, em nome da associação comunitária. Apesar de poder ser sintetizado em
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poucas linhas, o caminho pela titulação percorrido pelas comunidades quilombolas pode
se arrastar no tempo. Os dados mostram o número reduzido de comunidades quilombolas
que conseguem chegar a fase final, ou seja, que conquistam a titulação quilombola.
Se de 2005 até 2017 foram emitidas 2.455 certidões quilombolas, segundo os
dados do Incra, no mesmo período, foram elaborados 259 RTIDs, com a publicação de
82 decretos, 141 portarias e emissão de 116 títulos, destes 99 são títulos parciais e apenas
17 quilombos tiveram a titulação completa de seus territórios (Quadro 1).
Obs: Os dados referentes as certidões quilombolas são do período de 2004 a 2017.Fonte: Incra, 2019
Elaboração: CORDEIRO, 2019
Fonte: INCRA, 2018
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É perceptível a disparidade entre o reconhecimento da identidade quilombola e a
garantia de seus direitos territoriais. Os dados apresentados acima são alarmantes, pois
mostram a negligência com que estão sendo tratados os territórios quilombolas no Brasil.
Se no Brasil, até 2017 existiam apenas 116 titulações territoriais esse número piora
quando se percebe que destes apenas 17 possuíam a titulação integral de seus territórios.
Na Bahia, território com expressiva concentração quilombola, nenhum quilombo teve
seus direitos territoriais respeitados. A não titulação ou a titulação parcial dos territórios
quilombolas se tornou norma nos processos de regularização fundiária, contrariando o
decreto 4.887/2003, deixando esses territórios vulneráveis e atuando no sentido de
conferir legalidade às invasões externas aos territórios quilombolas.
Em pesquisa pode-se perceber que todos os 37 quilombos que estão com
processos em andamento no Incra, na Bahia, possuem conflitos territoriais, incluindo
aqueles com titulação parcial do território. As situações de conflito variam desde a
tentativa de expulsão e violência por fazendeiros, quanto por implantações de
megaempreendimentos como a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), o Porto de
Aratu, áreas de extração de gás natural, petróleo e minérios, por conflitos com as forças
armadas4, além de conflitos causados pela expansão do turismo nos territórios
tradicionais.
A não-regularização fundiária destes territórios na Bahia é fruto do entendimento
de que esses devem estar disponíveis para o mercado. Essa visão da propriedade privada
da terra é fruto da organização do sistema-mundo moderno-colonial (QUIJANO, 2005).
Para a constituição do mundo moderno-colonial vivenciado atualmente, foi necessário o
estabelecimento de normatizações que visavam assegurar o poder político, econômico,
social e cultural do europeu e posteriormente norte-americano sobre o restante do globo.
Para isso, como já demonstrou Yves Lacoste (1988), o controle territorial é
4 Como no caso do Quilombo Rio dos Macacos, em conflito desde pelo menos a década de 1970
com a Marinha do Brasil. O território tradicional de Rio dos Macacos foi reduzido de 301 hectares para 104
hectares e teve a portaria publicada no Diário Oficial da União (DOU). Um estudo fora realizado em
Dissertação de mestrado em 2018, com o título: “Essa terra é para filh@s e net@s, não vende e não pode
trocar: A disputa entre o território tradicional quilombola-pesqueiro de Rio dos Macacos e o território
militarizado da Marinha do Brasil”.
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indispensável. Assim, lançou-se mão da hierarquização e subjugação dos povos cujos
territórios deveriam ser redirecionados aos interesses dos colonizadores. A medida que o
saber local consegue se restabelecer e re-existir ocorre a tentativa de descaracterizá-lo,
subjugando-o novamente:
(…) o sistema dominante também é um sistema local, com sua base social em
determinada cultura, classe e gênero. Não é universal em sentido epistemológico.
É apenas a versão globalizada de uma tradição local extremamente provinciana.
Nascidos de uma cultura dominadora e colonizadora, os sistemas modernos de
saber são, eles próprios, colonizadores. (SHIVA, 2003, p. 22).
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No caso estudado, trata-se de que a população negra é aquela a habitar os
territórios quilombolas. A raça não é apenas um dado, mas um fator importante para a
compreensão do processo em curso. Renato Emerson dos Santos afirma que:
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As palavras de Alentejano reafirmam a compreensão de que os conflitos
fundiários, com destaque para os conflitos nos territórios quilombolas são uma
necessidade de expansão do capital. O racismo, assim como o capital evolui
constantemente (CÉSAIRE, 1971), se outrora fora a escravização, ou a Lei de Terras de
18505, a atual necessidade da exploração intensa e mecanizada da natureza coloca mais
uma vez a necessidade dos sujeitos hegemônicos em negar e exterminar o diferente.
Dessa forma, ora afirmam as comunidades quilombolas como atrasadas, como
impedimento ao desenvolvimento, necessitando serem estas superadas, ora tentam
descaracterizá-las. Isso é percebido nas palavras de Jair Bolsonaro, atual presidente da
República que em 2017 demonstra suas impressões sobre uma comunidade quilombola
em Eldorado (São Paulo): “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não
fazem nada. Eu acho que nem para procriar eles servem mais” (BRASIL DE FATO,
2019)6.
Da mesma forma que as instituições nacionais da então recém República brasileira
“(…) defendiam que o desenvolvimento e o crescimento da República – fundada em 1889
– estariam vinculados ao branqueamento da sua população” (CORRÊA, 2017, p.117). Os
capitalistas brasileiros e estrangeiros defendem que o desenvolvimento e o progresso da
atual república só existirão quando a propriedade da terra seja assegurada a quem der
lucro. Novamente reproduz-se as palavras de Jair Bolsonaro:
Seu povo, seus irmãos, têm problemas. E o grande problema chama-se governo
federal. Eles querem ser libertos, para ter liberdade para poder trabalhar dentro da
sua comunidade, acho até que se quiser vender aquela área quilombola, que venda,
opinião minha. Se quiser explorar, tirar por exemplo minério, ter maquinário, a
exemplo do seu irmão fazendeiro do lado, se quiser, poder explorar de forma
racional seus recursos naturais igual ao fazendeiro do lado. (OGLOBO, 2018)7.
5 A Lei de Terras de 1850 é conhecida por ter antecedido e preparado a propriedade privada para
não absorver os africanos escravizados que seriam libertos em 1888, com a abolição formal da escravatura.
6
Ver matéria completa em: https://www.brasildefato.com.br/2019/06/07/quilombolas-que-foram-alvo-de-
bolsonaro-criticam-arquivamento-de-processo-de-racismo/.
7
Ver matéria completa em: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-defende-que-areas-quilombolas-
possam-ser-vendidas-22859321.
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Não é de se espantar que um país que até a Constituição de 1945 possuía decretos
e artigos que afirmavam a importância da imigração para o branqueamento da nação 8
produza argumentos para a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239 – a ADI
quilombola – e para a não-regularização (e não-proteção) dos territórios quilombolas.
A ADI 3239 discute a constitucionalidade do já citado Decreto Federal nº
4887/039, ajuizada em 2004 pelo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas,
contém 11 volumes e 1600 páginas. A ADI quilombola questiona dois princípios
fundamentais do Decreto, o primeiro é o critério de autoatribuição para a identificação de
quilombos e o segundo é a existência de “critérios de territorialidade indicados pelos
remanescentes das comunidades de quilombos” para medição e demarcação destas terras
(art. 2º, § 3º). Após 14 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do
Decreto 4.887/2003, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 foi julgada
improcedente por oito ministros. O ministro e relator do caso Cezar Peluso (aposentado),
foi o único voto pela total procedência da ação. Cezar Peluso afirma que não se poderia
ignorar o crescimento de conflitos agrários e que o Decreto 4.887/2003, por representar
a usurpação de direitos de propriedade privada, pode levar o incitamento à revolta.
A decisão do relator demonstra que não há compreensão dos quilombolas
enquanto sujeitos de direitos, mas sim como usurpadores de direitos de propriedade
privada. A questão que se coloca é entender que a propriedade da terra no Brasil sempre
foi reconhecida para aqueles que detinham o poder político e econômico ao longo do
tempo. Sem dúvida, essas pessoas não são negras, nem indígenas. O racismo opera aqui
com seu caráter institucional. Nesse sentido, segundo Sílvio Almeida: “o poder é
elemento constitutivo das relações raciais, mas não somente o poder de um indivíduo de
uma raça sobre outro, mas de um grupo sobre outro, algo possível quando há o controle
direto ou indireto de determinados grupos sobre o aparato institucional” (ALMEIDA,
2018, p. 36).
8
“Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição
étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa
do trabalhador nacional.” (DECRETO N.7.967, 1945)
9
Decreto que regulamenta o procedimento de titulação dos territórios quilombolas no Brasil.
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Ao tentar romper essa ordem da organização da propriedade privada, os
quilombos no Brasil ameaçam romper também a ordem racial do poder. É necessário
remeter as palavras de Vandana Shiva, algumas linhas acima, contextualizando com a
situação vivenciada pelos quilombos na contemporaneidade. A história dos quilombos no
Brasil podem ser divididas em três momentos: (I) perseguição, punição e criminalização
até 1888, com a abolição da escravatura (MOURA, 1981); (2) apagamento no pós-
abolição até aproximadamente a década de 1970 (ANJOS, 2004); (3) emergência e
consolidação de direitos com a Constituição Federal de 1988. Se desde a introdução dos
primeiros africanos escravizados no Brasil reinou a tentativa de apagamento cultural,
através da aculturação ou do genocídio, a partir da abolição da escravatura a tentativa foi
de apagar os sujeitos que foram subalternizados “simplesmente não o[s] vendo, negando
sua[s] existência[s]” (SHIVA, 2003, p.23) e quando essas existências “aparece[m] de fato
no campo da visão globalizadora, fazem com que desapareça[m]” (SHIVA, 2003, p.23).
O questionamento em relação a autoatribuição na ADI 3239 é uma manifestação
à nível nacional do que acontece nos territórios. O questionamento da identidade
quilombola é constante nos processos de regularização fundiária, principalmente quando
esses territórios estão em conflitos. Se a ADI 3239 foi derrubada, o questionamento ocorre
nos territórios mesmo quando os quilombos apresentam a certidão emitida pela Fundação
Cultural Palmares.
Na Bahia, por exemplo, inúmeros quilombos se deparam com esse
questionamento. O Quilombo Rio dos Macacos, localizado no município de Simões
Filho, em conflito com a Marinha do Brasil teve sua identidade questionada pelo juiz
Evandro Reimão que ao julgar uma ação da Marinha afirma serem os quilombolas
ocupantes ilegais que se escondem por trás da identidade quilombola. Além do juiz, a
Revista Veja em maio de 2014 publicou a notícia com o título “O falso quilombo do
ministro”, reafirmando a tese de que a identidade quilombola na comunidade de Rio dos
Macacos seria falsa (Figura 1).
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Fonte: Veja, 2014, p.83
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Figura 2: Reportagem da TV Globo em 2007
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exigência do Ministério Público Federal, o território a ser destinado para a titulação
abarca 104 hectares desfragmentados11.
O mapa abaixo (Mapa 3), apresenta a desfragmentação do território. A linha preta
representa os 301 hectares inicialmente reconhecidos pelo Incra já as poligonais brancas
representam os 104 hectares. O território será dividido em duas glebas sem continuidade
e articulação territorial: a primeira, localizada na área norte-noroeste do território, possui
98,2755 ha; a segunda possui 5,8057 ha e está localizada a sudoeste. A princípio essa
proposta ignora e desrespeita a decisão quilombola contrária à fragmentação territorial.
Não se trata apenas da questão quantitativa do território, mas também das questões
culturais e identitárias: a existência de um território contínuo no Quilombo – “Um
Quilombo só”, é condição necessária para a sua reprodução. A fragmentação
desencadeará um processo de fratura ou quebra, o território que era um se transformará
em dois fragmentos, são duas partes quebradas, isoladas, desunidas, desconectadas.
Atualmente a comunidade possui portaria publicada no Diário Oficial da União (DOU).
11 Um estudo fora realizado em Dissertação de mestrado em 2018, com o título: “Essa terra é para filh@s
e net@s, não vende e não pode trocar: A disputa entre o território tradicional quilombola-pesqueiro de Rio
dos Macacos e o território militarizado da Marinha do Brasil”.
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Fonte: Cordeiro, 2019, p.151.
Existem também na Bahia três quilombos que possuem a titulação parcial dos seus
territórios, como fora visto anteriormente, nenhum quilombo apresenta a titulação
territorial integral. Essa situação revela não apenas o não cumprimento da Constituição
Federal de 1988, mas de que há algo mais poderoso que a carta magna, aqui esse “algo”
é o racismo. Este entendido não apenas como institucional, mas como racismo estrutural.
Segundo Silvio Almeida:
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Falar de racismo estrutural não é afirmar que o racismo é intocável ou
inquestionável. Ao contrário, a sociedade é formada por relações de poder envolvendo
não apenas raças e etnias, mas colocando em intersecção a classe, o gênero, a sexualidade,
a geração, etc. Todos vão gerar inúmeros conflitos e tensões. Essa tensão é também capaz
de incidir sobre o padrão de funcionamento de determinadas instituições que privilegiam
determinados grupos sociais. Significando “que as instituições também podem atuar de
maneira conflituosa, posicionando-se dentro do conflito” (ALMEIDA, 2018, p, 37), ou
também que há tensão dentro das instituições.
No caso dos quilombos essa tensão é notada constantemente. Ao considerar o
recorte temporal entre os anos de 1970 até os dias atuais, em 2019, percebe-se que a
potência dos movimentos quilombolas, articulados a outros movimentos de re-existências
do campo e da cidade, aos parlamentares, universidades, artistas e outros setores da
sociedade, conseguiram afirmar a importância constitucional do Art. 68 da Constituição
Federal de 1988 e do Decreto 4.887/2003. Ao mesmo tempo, pela força da presença
daqueles setores que também se articulam para manterem os privilégios existem os
ataques e a obstrução de políticas que ao combaterem o racismo, combatem também a
sociedade que o produz.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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conforme se compromete o Brasil através de diversos acordos internacionais, como a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
É necessário assumir que o racismo está presente na vida cotidiana na sociedade
brasileira, incluindo aqui as instituições. Se a ordem é racista, as instituições são também
racistas, como já foi afirmado no tópico anterior. Assim, “em uma sociedade em que o
racismo está presente na vida cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa
e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas
já tidas como ‘normais’ em toda a sociedade” (ALMEIDA, 2018, p. 37).
A partir da compreensão apresentada nesse texto é possível afirmar que a não-
regularização dos territórios quilombolas na Bahia e no Brasil é responsabilidade da
ordem que mantém e garante que a sociedade e suas instituições reproduzam o racismo
estrutural. Essa reprodução não é feita sem tensões de grupos que tentam romper esse
ciclo que se arrasta no Brasil e mais especificamente na Bahia desde 1501, quando foi
iniciada a colonização das águas e terras de Kirimurê12.
REFERÊNCIAS
ANJOS, Rafael Sanzio dos. Cartografia e Cultura: Territórios dos remanescentes de quilombos
no Brasil. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. 2004
12 Nome dado pelos Tupinambá ao que atualmente conhecemos por Baía de Todos os Santos, nome
rebatizado pelos Portugueses em 1501, após a invasão, colonização, resistência, assimilação e extermínio
dos povos indígenas, principalmente dos Tupinambás ali existentes.
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Recebido 20/02/2020
Aprovado em 30/03/2020
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