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05/11/2022 09:09 O processo de favelização e a 'gourmetização' das favelas: caso Ilha das Caieiras :: Arquitetura-por-escrito

Arquitetura por Escrito


Blog da disciplina Arquitetura no Brasil | UFES | 2018.1

O processo de favelização e a 'gourmetização' das favelas: caso Ilha das Caieiras

03/07/2018

Daniele Ramos Martins dos Santos e Juliana Calado do Sacramento Santos 

RESUMO

Este artigo busca levantar dados acerca dos processos de "favelização" e de "gourmetização" das
favelas e discutir sobre questões de níveis histórico, culturais e sociais que levam à tais comportamentos.
Em um primeiro momento, fazendo um panorama geral quanto à favelização no âmbito nacional,
apontando os primeiros e principais casos e, em um segundo momento, abordando um caso no contexto
capixaba (Ilha das Caieiras) e aprofundado na problemática do processo de "gourmetização", tentando
explicar como este afeta às pessoas.

INTRODUÇÃO

Pensando em territórios informais dentro das metrópoles, a favela é um espaço no contexto urbano que
agrega diversos condicionantes e geram reflexos nas estruturas físicas, sociais e culturais que farão
parte da edificação histórica dos seus desdobramentos internos e externos.

O cerne deste braço da "questão social" (CRUZ, 2015) está historicamente pontuado no descaso do
Estado e na falta de planejamentos, sejam estes no campo social, urbano-arquitetônico, estendendo-se
até o econômico. Dentro desses fatores, a relação do favelado com sua moradia, com seu lugar é a
reprodução desenfreada do déficit estrutural tão reproduzido e pensado ao se questionar "o que é
favela?". Barracos de madeirite com chão de terra batido e tábuas corridas ou casebres em tijolo
aparente compõe o visual da autoconstrução das favelas juntamente com becos, vielas e terreiros,
montando o "urbanismo subalterno" (ROY, 2017) proposto aos habitantes das comunidades nas

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metrópoles do Brasil: pobres, de maioria negra e trabalhadora da base da cadeia hierárquica do


mercado.

Buscando sobrevivência dentro da óptica do capital e das benesses que o acesso aos bens de consumo
proporcionados com o passar dos tempos, a população favelada avista uma nova possibilidade de lucrar
com sua cultura e com novas realidades que as remetes. Esta, também, corrobora para o processo de
espetacularização ("gourmetização") da cultura favelada e das particularidades que seus habitantes
reproduzem dentro deste território.

O caso em estudo com foco no bairro Ilha das Caieiras, em Vitória - ES, encara este processo de
apropriação cultural para no âmbito das expressões culturais relacionadas à culinária e no protagonismo
da administração de empreendimentos voltados ao turismo instalados na área.

É correto dizer que o aluguel de pontos comerciais no cais construído pela municipalidade e de
propriedade de algumas famílias tradicionais da região ajuda a melhorar a realidade econômica destas
famílias, mas também é possível apontar tal fato como um dos fatos que acarretam na ineficácia do
poder público em criar incentivos que melhorem a realidade das famílias da Ilha das Caieiras como um
todo. Uma vez que, quando a comunidade não é protagonista no seu próprio local de habitação, ela
perde o controle da área: não gera emprego e, consequentemente, não gera renda e afeta a
autenticidade da identidade local.

O PROCESSO HISTÓRICO DA FAVELIZAÇÃO

Ao longo de séculos de planejamento e conformação do solo brasileiro, as cidades foram tomando


corpo e a fluidez de suas vias é fruto de um processo. Cada parte das cidades, por sua vez, possui uma
característica ímpar que, dentro dos estudos de suas culturas e populações, se define e, também,
propõe uma delimitação invisível - ou limites culturais ao setorizar as cidades - entre as partes vizinhas.
Para se entender o processo de favelização, contudo, precisa-se entender que, além do aspecto visual,
este limite invisível se transforma em barreira física com as fachadas faveladas e toda a tradução
histórico-estrutural que a favela carrega com o decorrer das décadas.

Datada de 1897, segundo o historiador Milton Teixeira (O Globo, 2017), a primeira estrutura de morro
acontece no centro da atual capital do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro. Um ano antes, em 1896, no
interior da Bahia, acontecia a Guerra de Canudos (1896 -1897), conflito armado entre o Exército - braço
do Estado aliado aos latifundiários - e trabalhadores rurais que pleiteavam por subsistência e pelo direito
à terra com o objetivo de repartir as terras improdutivas do sertão baiano e eram orientados por Antônio
Conselheiro. Como em todas as esferas hierárquicas da história do Brasil, quiçá da humanidade, o
conflito de Canudos tinha em linha de frente soldados pobres e, no caso brasileiro, majoritariamente
negros que receberam a promessa do Comando Geral da Guanabara que, ao voltar da guerra, teriam
residências em forma de pagamento. Terminada e vencida a guerra, os soldados voltaram ao Rio de
Janeiro e não foram pagos ou indenizados. Muitos desses soldados não possuíam famílias ou terras que
pudessem, na época como se habituava, sobreviver do uso do solo. Sem amparo econômico do Exército,
os soldados começam a ocupar o morro mais próximo do Comando Geral da Guanabara, localizado
entre a atual Central do Brasil e a Gamboa, onde possuía terras sem donos. Estes homens constituíram
famílias e assim iniciaram o processo de ocupação de morros.

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O termo "favela" é originário da vegetação rasteira do Arraial de Belo Monte, antigo Arraial de Canudos
rebatizado por Antônio Conselheiro durante o conflito, e os moradores do morro o chamavam de Morro
da Favela por ter uma vegetação de cobertura semelhante no local. Somente cerca de trinta anos
depois, na década de 1920, que o termo foi utilizado para englobar a categoria de "comunidade carente".

Além dos soldados, a primeira favela brasileira, atual Morro da Providência, e outras tantas disseminadas
nas grandes cidades foram ocupadas por populações marginalizadas no final do século XIX como o ex
escravos alforriados em 1888, a partir da assinatura da Lei Áurea, que apenas "libertavam" os escravos
negros, sem preverem políticas de inclusão ou de compartilhamento das terras para que pudessem fazer
verdadeiramente parte da população livre e trabalhadora, proporcionando formas de subsistência. Sem
moradia ou emprego, a população alforriada negra buscou essas terras em morro próximas ao centro
urbano do Rio de Janeiro, iniciando pequenos assentamentos e edificando os chamados "bairros
africanos". Outra população que participou da edificação das primeiras favelas foram os trabalhadores
que buscaram novas perspectivas de vida no processo de Êxodo Rural nas duas primeiras décadas do
século XX. Este deslocamento de inúmeros trabalhadores do interior, do campo para grandes
metrópoles é resultado da Primeira Revolução Industrial no Brasil a qual mecanizava o trabalho no
campo, reduzindo significativamente a oferta de empregos e de mão de obra humana no mercado
latifundiário. Ao chegar nestas metrópoles, a população em êxodo possuiu dificuldades ao se deparar
com a vida urbana. Sabe-se que tais dificuldades estão interligadas à própria desigualdade social,
alargando ainda mais esta tarja de diferença, e fez com que os povos migrantes buscassem às favelas
como local de moradia e ocupação.

Outro ponto que constitui a realidade brasileira no processo de favelização também ligado à expressão
da "questão social" (CRUZ, 2015), traduzindo-a como desigualdade social, é a crescimento desordenado
da população conhecido como o fenômeno de macrocefalia urbana. A incapacidade que as cidades têm
de absorver de forma igual e equilibrada seus habitantes é visível na conformação do traçado das
favelas, das subjetividades que ela reproduz e transpassa com o passar das décadas. O crescimento não
planejado e previsto das cidades não acontece apenas nas favelas em morros ou subúrbios - uma vez
que, historicamente buscando referências, a população pobre se aloja distante dos grandes centros por,
também, não conseguir se manter financeiramente nestes -, mas acontece em cidades planejadas como
é o caso de Brasília e suas cidades satélites ao redor, onde não foram previstas habitações para os
trabalhadores que a edificaram, muito menos pensaram que assim como os líderes governamentais e
outros tanto moradores da nova cidades, os trabalhadores (conhecidos como candangos) também
possuíam famílias e direito a habitação de qualidade.

Depois da construção de Brasília, no período da Ditadura Militar no Brasil, a favela e o subúrbio (ou
periferia) tornam-se locais esquecidos, sem investimentos até mesmo em infraestrutura viária que era a
bandeira levantada pelo regime, mas devido ao crescimento econômico das metrópoles, inicia-se outra
demanda de êxodo rural em busca de novas realidades. Contudo, essa disparidade social era uma forma
de segregar ainda mais as partes - ricos e pobres - e promover largamente a marginalização dos povos
favelados.

O desenvolvimento das primeiras favelas no Brasil é o retrato do contínuo descaso estatal presente
desde os anos do "descobrimento" - em aspas para enfatizar que fora um processo de ocupação do solo

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forçada e invasiva - que reflete a disparidade de quem pensa as cidades e de quem as usa atrelada até
mesmo às expressões socioeconômicas-políticas. Pensar na esfera causal do processo de favelização no
Brasil é pôr em debate questões nitidamente corriqueiras, mas que são sub priorizadas. E é nesse
contexto de cidade que se fixa o papel do arquiteto urbanista dentro das políticas públicas no combate
ao direito à cidade de modo homogêneo e acessível a todos os cidadãos.

ESFERA CAUSAL: ASPECTOS SOCIOECONÔMICO-CULTURAIS E O REFLEXO URBANO-


ARQUITETÔNICO

Cuidadosamente pontuando e puxando assuntos tratados anteriormente, as causas do processo de


favelização estão ligadas diretamente a desigualdade social e seus desdobramentos socioeconômicos
como o racismo, estagnação econômica, preconceito de classe, direito à moradia, macrocefalia urbana,
má gestão das cidades, etc. A partir desses desdobramentos, pode-se constatar a relação habitante e
cidade é mais estreita do que se espera.

Dentro dessa tal esfera, a favelização vai desde os barracos de madeira com chão de terra batido do
século XIX no Centro do Rio de Janeiro até as construções informais de sete (07) pavimentos com
pilares de 15x10 cm no bairro Jesus de Nazareth, em Vitória, nos dias atuais.

A necessidade de habitar proporcionou grandes surpresas e desafios urbano-arquitetônicos. A escassez


de recursos materiais e de técnicas de construção fizeram da tipologia de edificações das favelas única,
mas, concomitantemente, plural na qual se encaixam diversos tipos de residências abrigando habitantes
conforme a necessidade de espaço, recorrendo-se demasiadamente à autoconstrução irregular. Essa
última margeia ao caos que é organizar sistemas de instalações técnicas um espaço irregular,
dificultando o abastecimento de famílias inteiras e facilitando o desvio desses bens ligados às
instalações como água, luz, telefone, entre outros.

Esta ocupação irregular e desajustada dos desenhos, juntamente com o adensamento populacional
característico desses espaços, faz com que a malha viária das favelas seja caracterizada por becos,
vielas e, para melhor união das vias, mirantes que possibilitam surpresas irresistíveis de dentro para fora
das favelas e tornam-se marcos ou visadas. Estes marcos, com o passar do tempo sendo utilizado pelos
transeuntes, tornam-se pontos turísticos como os mirantes do Salgueiro e o encontro de becos no
Complexo do Cantagalo Pavão Pavãozinho, no Rio de Janeiro, por exemplo.

E nesse contexto de turismo e belas paisagens, a favela começa a entrar em destaque e atrativo cultural;
não apenas pelo contraste entre natureza e edificação, mas pela cultura da mesma como o modo de se
vestir dos habitantes, a música que produzem como o funk e o rap, os hábitos cotidianos, entre outros.
Exemplo disso são as telenovelas brasileiras que reproduzem uma favela romantizada, passando ao
telespectador apenas um espectro simples e estético da vida em uma "comunidade carente". Esta
reprodução também corrobora a outras tantas reproduções de favelas que são percebidas como bailes
funk elitizados e que satirizam e/ou segregam os habitantes dessa realidade. Com a popularização das
favelas como a do Vidigal, produtores investem em bailes no alto do morro com um esquema de
segurança altamente preparado para represália dos moradores da favela, camarotes com ingressos
caros e inacessíveis aos favelados, bebidas caras e atrações de alto cachê.

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Este processo de espetacularização da favela é decorrente não apenas do processo de globalização das
culturas, mas também da sociedade da modernidade líquida e pós-moderna (Bauman, 2001) que se torna
permissiva e não filtra os costumes dos povos opostos apenas como algo diferente, mas necessitam
integrarem às suas culturas, apropriando-se de forma vazia e enganosa.

GOURMETIZAÇÃO E SEUS CONDICIONANTES

O processo de espetacularização, ou melhor dizendo, gourmetização (Lourenço, 2016) da cultura de


favela agrava-se nos anos 2000 com o boom do funk carioca e mais tarde, em 2010, com o estilo funk
ostentação com raiz paulista que supervaloriza a vida do crime de forma oculta, mostrando apenas os
bens resultantes dessa vida. Por Lourenço, o processo de gourmetização inicia-se com os programas de
culinária em TV, estendendo-se à gastronomia e sua propaganda. Hoje, o termo se banalizou para
caracterizar determinado objeto que é supervalorizado e adquire valores altos de consumo. Obviamente,
a inserção de pessoas não-faveladas nas atividades das favelas é algo que sempre ocorrera de forma
natural, contudo controlada como nos acessos barracões de escolas de samba, no consumo de
entorpecentes corroborando para o narcotráfico de algumas dessas favelas entre outras situações. Mas
o que acontece desses anos até os dias de hoje é a inserção e apropriação cultural que os não-
favelados exercem, vendendo, comercializando e banalizando essa cultura que demorou décadas para
serem minimamente reconhecidas como uma cultura decente e valorizável.

Com o processo de supervalorização rápida de uma determinada área, ocorre o aumento de preços, a
especificação de comércios e serviços e, com isso, por vezes a comunidade ali inserida não consegue
acompanhar o ritmo e acaba tendo que deixar a área por não conseguir se manter nela. Processos de
revitalização, incentivos a atividades de turismo e a apropriação de atividades culturais locais por parte
de terceiros que ali não habitam ou utilizam, acabam por deslegitimar as expressões humanas
tradicionais e encarecer o produto final.

Além disso, as favelas, constituindo um marco na paisagem urbana geralmente atreladas à cenários
naturais e um estilo de autoconstrução espontâneo, começam a ter suas tipologias confrontadas com
construções descontextualizadas; arquiteturas que se inserem sem a preocupação com o meio, a
comunidade em que se implanta.

ESTUDO DE CASO: ILHA DAS CAIEIRAS

Se o crescimento espontâneo das comunidades terminou por consolidar marcos na paisagem urbana,
com o surgimento de favelas, a princípio no Rio de Janeiro, não tardou muito para esse fenômeno
alcançar ouras localidades, inclusive o Espírito Santo. A organização espacial que é espelho da condição
econômica e de experiências de autoconstrução dos moradores, se impõe e carece de investimentos
públicos a fim de garantir a habitabilidade. E se de um lado os investimentos públicos geram
oportunidades para os locais, estes também atraem os olhares atenciosos dos "gringos" (termo aqui
utilizado para definir quaisquer pessoas que não habitam ou participam, de alguma forma, da
comunidade) e acaba por gerar um processo que, muitas vezes, resulta na migração dos locais para
outras localidades.

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A Ilha das Caieiras é tão antiga quanto o município onde se encontra e possui registros em documentos
desde o Espírito Santo provincial. Ali, a noroeste da ilha de Vitória, viviam famílias que tiravam seu
sustento de atividades ligadas ao manguezal: catação de moluscos e mariscos, pesca e a produção de
cal a partir das conchas. Foi em 1977 que 40 famílias se assentaram na região e deram surgimento ao
que hoje é conhecido como bairro de São Pedro, eles levantaram suas lonas e barracos improvisados na
área próxima ao manguezal, primeira área a ser ocupada, e começaram processo de ocupação que
caracteriza o bairro até os dias de hoje, sendo mais adensado na parte baixa, com suas casas de
palafitas e passarelas que se suspendiam sobre o mangue e, na parte alta, ocupação mais esparsa.
Nesse primeiro momento, a região era servida pela Avenida Serafim Derenzi, na época chamada
"Estrada do Contorno", ainda sem pavimentação, e não possuía benfeitorias de água, energia elétrica,
telefone ou quaisquer outras.

Um fato importante a ser mencionado na história de São Pedro e, consequentemente, também da Ilha
das Caieiras, é que nesta mesma década, o governo municipal instituiu a área como destino final do lixo
urbano residencial, comercial, hospitalar e industrial que tiveram como consequência o aterro e
loteamento da área e na poluição significativa da baía, que acarretou em deterioração dos aspectos
naturais do local, influenciando negativamente nas atividades econômicas tão características da região.
A desativação do canteiro de obras da Companhia Siderúrgica Tubarão (CST), localizado próximo da
região estudada, acarretou em desemprego e coincidiu justamente com a época em que se começara a
traçar loteamentos formais na área que hoje é conhecida como Grande São Pedro; ela, então, se tornou
uma opção atrativa para famílias de baixa renda, o que levou à rápida expansão da área.

O aterro da área foi a primeira mudança significativa que ajudou a moldar o traçado da região: não muito
tempo depois, começaram a ser determinadas ruas (elas, com nomes que rememorassem a luta dos
moradores pelo direito à habitação) e as benfeitorias: uma torneira pública substituía os poços artesanais
de água salgada (muito embora até hoje, segundo o Coordenador do Museu dos Pescadores, os
moradores ainda contem com seus poços para auxiliar nas atividades domésticas que necessitem de
água, pois a falta de abastecimento é recorrente na Ilha das Caieiras). Alguns anos depois, a
pavimentação pública, iluminação e sistema de abastecimento de água chega às moradias, que aos
poucos deixam de ser casebres de madeira e se erguem como espontâneos resultados de
autoconstrução em alvenaria.

Com os bairros consolidados, a partir da década de 1990 novos problemas surgiram no cotidiano da
região: a carência de equipamentos de lazer, de espaços trabalhados com paisagismo e uma rede de
serviços que supram necessidades que até então levassem os moradores a se deslocarem até o centro
da cidade.

"A região deixou de ser apenas fornecedora de mão-de-obra sem qualificação para o restante da
capital. Está abandonando a característica de bairro-dormitório e incorporando em seu perfil, a
produção." (PREFEITURA DE VITÓRIA, 2015, p. 115).

Pensando assim, a municipalidade encube-se na tarefa de fomentar produções (culturais e de lazer,


principalmente) que permitissem à região uma certa autonomia no âmbito de gerar renda e possibilitar
melhor qualidade de vida. Nos anos 2000, então, o Bairro recebe investimentos da municipalidade a fim
de fomentar atividades econômicas relacionadas ao turismo na região e preservar a paisagem natural.
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Em 2009, o governo municipal anunciou um projeto que incentiva o ecoturismo, aproximando


moradores, visitantes e o contexto, tal medida, buscando amenizar impactos ambientais na área,
incentivando o cuidado com o meio ambiente e, também, gerando uma fonte de renda alternativa para
moradores do local com passeios ecológicos no percurso da baía.

Em 2013, ocorre a construção de duas praças (uma, com museu e posto de informações e, outra, com
quadra de esportes, academia popular e outros mobiliários atrativos) e a reforma do cais: este recebe um
deck de madeira e aproxima a relação entre o usuário do bairro e a visual do manguezal.

Atualmente, segundo dados da Prefeitura de Vitória, a Ilha das Caieiras é inexpressiva quanto às
atividades de pesca e se destaca no setor de serviços, apresentando potencial como polo gastronômico
de Vitória. Tal atividade movimenta o turismo na ilha de Vitória como um todo e, por isso, é de grande
interesse a nível de município. Mesmo com a ascensão para o statusde ponto turístico popular em todo o
estado, pouca coisa mudou na realidade da comunidade da Ilha das Caieiras, em termos gerais. Se antes
seus moradores eram compostos por pescadores e trabalhadores de uma indústria de cal e, então,
recém-desempregados do canteiro de obras da CST, hoje, a população do bairro possui média salarial
mensal entre 1 e 2 salários mínimos (segundo dados da Prefeitura de Vitória). Tal informação revela a
ineficiência dos incentivos públicos para mudar efetivamente a realidade das famílias que habitam o
local.

Além disso, falta de planejamento urbano dos bairros da Grande São Pedro dificulta o acesso à Ilha das
Caieiras. Sendo, como dito anteriormente, um ponto de interesse a nível estadual, é muito procurado por
pessoas que não conhecem bem a região, mas é preciso adentrar um emaranhado de ruas com
características "bairristas" (densas, delgadas e, por vezes, não servidas de calçadas). É fácil se perder na
"Ilha", principalmente para os que dependem de transporte público. Além disso, como a "Ilha" já se
apresenta bem-dotada de comércios e serviços, principalmente ao longo da Serafim Derenzi,
relativamente próxima à área de estudo em questão, os problemas enfrentados são outros: a crescente
falta de segurança e a situação de "abandono".

É possível apontar alguns incentivos públicos como catalisadores de um processo de substituição da


autenticidade dos serviços prestados na ilha, uma vez que a área se torna de potencial interesse não só
de usuários, como de investidores e, assim, os restaurantes tão populares deixam de pertencer a famílias
da Ilha das Caieiras e passam a ser pontos alugados para terceiros vindos de outras regiões,
encarecendo os serviços, e, como fora anteriormente mencionado, afastando os moradores da produção
gastronômica da região; inicia-se um processo de gentrificação, onde a população não consegue
acompanhar o ritmo acelerado de valorização da área causada pelos incentivos e, aos poucos, vai sendo
expulsa. A população entende esse comportamento:

"Mas quem conquistou seu pedaço de chão a qualquer custo para instalar-se, por menor que seja o
chão e mais simples a moradia, vê com resistência a proposta de reordenamento, mesmo que seja para
alterar suas precárias condições de vida." (PREFEITURA DE VITÓRIA, 2015, p. 118).

Em conversa com Aguinaldo, morador do bairro Ilha das Caieiras e proprietário de restaurante na orla,
ele expressa a dificuldade em manter seu serviço após a chegadas dos "gringos", como ele opta por

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chamar. É fato de que seu restaurante ficou para trás, não só em relação ao cais e à Avenida Beira Mar,
que ladeia o manguezal, mas em questão da preferência da maioria dos consumidores. Ele, ainda, diz
que a postura adotada na abordagem dos clientes por parte dos "gringos" assusta e afasta os
consumidores da região.

É correto afirmar que o deck de madeira é um atrativo aos olhos dos usuários do bairro: ele aproxima a
relação entre turista e manguezal. É possível, a partir dali, assistir às atividades relacionadas a pesca
acontecendo na costa.

Quanto às outras obras públicas mencionadas, a praça ao fim da Avenida Beira Mar é mais amplamente
utilizada pelos moradores da região, pois está localizada em proximidade com a área
predominantemente residencial, sem comércios e serviços voltados diretamente ao turismo. E uma vez
questionado sobre a frequentação dos restaurantes por locais, Aguinaldo responde que "não há a
necessidade de ir a um restaurante porque a culinária é ensinamento passado de pai para filho e, uma
vez que se pode comprar o peixe muito barato aqui no atracadouro, é muito mais barato comer em
casa". Ele ainda revela que, em linhas gerais, o indivíduo local não está afastado somente da
administração do ponto comercial, quanto da produção da gastronomia, que acaba não sendo a
"tradicional", como é amplamente anunciada. É notável a gourmetização que está sendo instaurada nos
restaurantes: quem vai à Ilha das Caieiras, geralmente, não consome dos produtos da "Ilha", mas de uma
imagem esteticamente aprazível e encarecida que imita os produtos dela.

LEGITIMAR O ESPAÇO FAVELADO

A partir da análise histórico-dialética do processo de favelização e as condições de apropriação cultural


decorrentes da espetacularização ou gourmetização, pôde-se notar que a favela se tornou alvo de uma
máscara que estampa uma realidade lúdica do habitar na favela, uma cultura extraída para ser
puramente com o objetivo de ser comercializada e banalizada. Nas mesmas condições da culinária do
mar da Ilha das Caieiras a qual transpassa por esse processo, o acarajé e as baianas também
sobrevivem nessa esfera de espetacularização nas ruas de Salvador, na Bahia, e em tantas outras
cidades espalhadas pelo Brasil, por exemplo. Por essa comparação, pode-se prever que com o decorrer
das décadas o que acontece nas Caieiras possa se perder e se banalizar.

Cultura, no sentido de hábito de um povo, é a essência da história da construção das cidades, das suas
edificações, das suas ruas e de outras culturas que se desdobram, por conseguinte. Extrair uma
determinada cultura do seu lugar é matar, aos poucos, histórias, costumes, riquezas e, sobretudo,
pessoas. Logo, a síntese presente é definir que o processo de gourmetização da cultura dentro do
recorte das favelas é perigosa, colocando em risco todo um passado, um presente e um possível futuro
de uma gente, no caso, dos habitantes e reprodutores da culinária e da atividade pesqueira na Ilha das
Caieiras.

...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2014. Disponível em: <https://misturaurbana.com/2014/09/as-paisagens-mais-lindas-vistas-dos-morros-
https://arquitetura-por-escrito.webnode.page/l/o-processo-de-favelizacao-e-a-gourmetizacao-das-favelas-caso-ilha-das-caieiras/ 8/11
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O GLOBO. "Vídeo de baile funk gourmetizado causa polêmica nas redes". Rio de Janeiro, mar. 2016.
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Vitória, 2009. Disponível em: <https://m.vitoria.es.gov.br/noticias/noticia-1401>. Acesso em: 18 jun. 2018.

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