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FONTE:

VAZ, Lilian F.; JACQUES, Paola B. Pequeno Histórico das Favelas no Rio de Janeiro (Pequeña historia de las Favelas de Río de Janeiro). Revista
Ciudad y Territorio - Estudios Territoriales, n. 135, p. 259-272, 2003.

Pequeno Histórico das Favelas no Rio de Janeiro1


Lilian Fessler Vaz2
Paola Berenstein Jacques3
Resumo

Neste artigo tratamos do surgimento e do desenvolvimento das favelas na história da


evolução urbana do Rio de Janeiro, e, por conseguinte, da questão mais ampla do
papel das favelas na história da habitação popular nesta cidade. Tentamos traçar um
pequeno histórico das favelas cariocas, desde suas origens, passando por sua
expansão, até chegar à situação atual. Procuramos compreender sobretudo como e por
que as favelas nasceram e se proliferaram de maneira tão rápida e intensa no Rio de
Janeiro nesse último século. Pretendemos mostrar também, mesmo que de forma
sucinta, como duas atitudes oficiais contraditórias - a remoção e a urbanização das
favelas - oscilaram na história da evolução da cidade dependendo diretamente dos
períodos políticos de maior ou menor abertura democrática.

1- Sobre histórias das favelas

Durante muito tempo a história da origem da favela resumiu-se à narrativa do surgimento


da favela da Providência, sobre o morro do mesmo nome, situado entre o centro e o porto
da cidade do Rio de Janeiro. Esta história remete a 1897, quando um grupo de
seguidores do líder religioso Antonio Conselheiro, estabelecido no Arraial de Canudos, no
sertão nordestino, são considerados fanáticos, monarquistas e ameaça à segurança da
recém instituída República. Vários ataques foram realizados ao reduto de maltrapilhos até
que na quarta tentativa, um pelotão de 8 mil homens o destrói inteiramente, massacrando
todos os seguidores.

Este episódio foi relatado no clássico Os Sertões, de 1901, por Euclides da Cunha, que,
como correspondente, descreveu não apenas a guerra, mas o sertão, o vilarejo e o
reduto rebelde: o morro que contornava Canudos, conhecido como o Morro da Favela1.
Em 1897, os soldados retornam à capital do país, Rio de Janeiro, onde permaneceram
acampados em praça pública, reivindicando sua re-incorporação ao exército. As
autoridades militares permitiram a ocupação do Morro da Providência, situado atrás do
quartel geral. Vários barracos de madeira foram construídos e os novos moradores
passaram a chamar o morro de “Morro da Favella” em alusão àquele de Canudos.

A palavra favela passa do estatuto de nome próprio ao de substantivo nos jornais locais
por volta de 1920. A palavra designa a partir de então todos os “conjunto de habitações
populares toscamente construídas (por via de regra nos morros)” que se espalhavam
pelo Rio de Janeiro e depois pelo país inteiro.

Apenas recentemente, pesquisas de documentação de época (Abreu, 1993)2 mostraram


que a primeira, ou a “favela original” não foi aquela que difundiu o seu nome (Morro da

1 Texto originalmente produzido para a revista Ciudad y Territorio.


2 PROURB/FAU/UFRJ. Bolsista CNPq.
3 PPGAU/FAUFBA.

1
Favela) mas a do morro de Santo Antonio, situada também no entorno imediato do
núcleo histórico da cidade. Apesar de ser pouco conhecida, a história da favela de
Santo Antônio (já desaparecida) tem origem semelhante à da favela da Providência. Há
notícias da presença em 1897 de 41 barracos no local; de 150, em 1901, e de 1314 em
1910 (Abreu e Vaz, 1991:9).

Esta favela conheceu várias remoções (e incêndios criminosos) até sua total eliminação,
quando o morro foi arrasado, na década de 50. Esta seria uma explicação para o
contínuo interesse suscitado pelo Morro da Providência (Morro da Favella) e pela favela
de mesmo nome, que ainda existe no local e já comemorou os seus 100 anos de
existência.

2 – As favelas na história do Rio de Janeiro

Neste ponto, torna-se necessária uma pequena digressão, contextualizando este


período do surgimento das favelas na história da cidade. Para compreender a formação
das favelas, é necessário considerar que, no cenário urbano, as transformações
ocorrem lentamente; quando são percebidas, revelam processos que materializaram
tendências há muito latentes. É preciso pois, observar o momento histórico precedente.

As primeiras manifestações da crise da moradia no Rio de Janeiro remetem ao período


que compreende a segunda metade do século XIX e as três primeiras décadas do
século XX. É o período de urbanização/industrialização, de mudanças de ordem
econômica, social, política, cultural e espacial. Entre elas destacam-se a abolição da
escravidão, que culmina a substituição do trabalho escravo pelo assalariado, a
formação de mercados e a mercantilização de bens, a decadência da cafeicultura na
província fluminense, o desenvolvimento dos setores secundário e terciário da
economia, as grandes migrações, a definição de novas elites no poder, com a queda
do Império e a proclamação da República. O crescimento urbano foi intenso (235.000
habitantes em 1870, 522.000 habitantes em 1890) e foram criadas modernas infra-
estruturas e serviços públicos.

Nesta conjuntura um grande contingente de pobres buscava meios de sobrevivência na


área central, onde se concentravam moradia e trabalho e fervilhava a vida urbana.
Nesta época a estrutura urbana se resumia na aglomeração de atividades e populações
em torno do núcleo; só lentamente o espaço começaria a se especializar, definido as
futuras áreas comerciais, residenciais e industriais. Foi no centro que se multiplicaram
as moradias possíveis para esta população: os cortiços.

Estas eram moradias de aluguel diminutas e precárias, geralmente superlotadas, com


iluminação, ventilação insuficientes, que ocupavam os quintais dos antigos térreos e
sobrados. As más condições deste ambiente eram associadas à deterioração da saúde
e à decadência moral das classes trabalhadoras. Com o agravamento das condições
sanitárias da cidade, as habitações coletivas, que chegaram a abrigar entre 20% e 25%
da população (Vaz, 1985), foram consideradas uma das causas da insalubridade, e
condenadas a desaparecer, substituídas por moradias higiênicas.

Uma relação direta entre estas habitações populares e a insalubridade geral da cidade
foi rapidamente estabelecida pelas autoridades e a guerra contra este tipo de habitação
foi decretada pelo poder público. Várias medidas de ordem higiênica e legislativa
procuraram eliminar os cortiços. O próprio Poder Público Municipal chegou a ensaiar a
demolição destas casas, arrasando o famoso "Cabeça de Porco", um dos maiores

2
cortiços da cidade. Para sua destruição, foi necessário criar uma estratégia policial e
militar, que simbolizou o começo das intervenções do Estado na cidade. Porém não
existia uma real política de relocação para os moradores dos “cortiços”.

O Poder Público Imperial concedeu concessões de favores a engenheiros, construtores


e empreendedores que se propunham a substituir cortiços por vilas proletárias
higiênicas e econômicas. Algumas habitações higiênicas e modernas foram construídas
nas áreas de expansão da cidade mas seus custos eram proibitivos aos pobres que
permaneceram nos cortiços nas áreas centrais até que a Reforma Urbana de 1902/1906
os expulsou violentamente.

3 – O Rio de Janeiro ao romper o século XX

No início do século XX, o prefeito Pereira Passos (1902/1906), aliado ao governo


republicano realizou a primeira grande intervenção urbana no Rio de Janeiro, Ao
procurar embelezar e modernizar a cidade, o denominado “Haussmann Tropical”
(Benchimol, 1990), iniciou a reestruturação da cidade, redefinindo o centro e as áreas
residenciais, oficializando a segregação espacial entre ricos e pobres, e tornando-se,
paradoxalmente, um grande responsável pela consolidação inicial das favelas.

Em apenas quatro anos a maior transformação do espaço urbano já realizada no Rio de


Janeiro, apagou definitivamente a antiga imagem da cidade escravista. Além das obras
de construção do novo porto, e de saneamento, antigas ruelas coloniais foram
alargadas, novas vias de circulação foram abertas, novas linhas de bonde, agora
eletrificadas e aliadas ao novíssimo meio de transporte individual, o automóvel,
expandiram a cidade em direção à orla marítima sul. A cidade efetivamente se
modernizou, com as medidas de saneamento, a reestruturação do porto e dos sistemas
de circulação.
Uma das maiores intervenções foi a abertura da avenida Central. Após a chamada “era
das demolições” ou “bota-abaixo”, e a conseqüente febre de edificações com uma brutal
valorização do solo urbano, o centro da cidade já não podia mais abrigar os pobres:
mesmo os cortiços ou casas antigas remanescentes foram demolidas. Portanto além
das demolições de habitações populares também a elevação dos valores dos terrenos
contribuiu para a expulsão dos “desfavorecidos da fortuna” do núcleo urbano.

Mas não foram unicamente as demolições do centro da cidade que foram responsáveis
pelo agravamento da crise de moradia popular. A legislação estabelecida em 1903
dificultou ainda mais a instalação da população pobre na zona que lhe era destinada, a
zona suburbana, pois proibia a auto-construção e impunha regras de construção
onerosas além de taxas elevadas. Expulsos do centro da cidade e impedidos
economicamente de se instalar nas áreas distantes, os mais pobres foram levados a
ocupar os morros vazios próximos ao centro da cidade (Santo Antônio, Providência e
outros). Os morros, que já apresentavam vestígios de moradias rústicas desde a década
de 60 do século XIX, foram aos poucos ocupados, delineando-se as primeiras favelas.
Iniciava-se a expansão das favelas.

A modernização urbana carioca apresenta outro paradoxo: de um lado, a partir do


momento em que as classes abastadas deixaram o centro e se dirigiram para a zona sul,

3
provocaram uma demanda de serviços domésticos e de construção civil que somente a
população mais pobre poderia satisfazer. Mas esta população, não podendo pagar o
custo do transporte diário, acabou se instalando junto ao seu local de trabalho, e passou
a ocupar assim os morros próximos das fontes de trabalho.

Outra conexão importante diz respeito ainda à ação do Estado. Vimos anteriormente que a
administração municipal durante a reforma urbana inviabilizou a permanência das classes
populares nas tradicionais habitações coletivas e criou dificuldades a outras opções formais,
como o deslocamento para os subúrbios. Ironicamente, um incentivo governamental foi
dado por meio do decreto no 391, de 1903, que, se por um lado, proibia terminantemente
não só a construção como qualquer melhoramento, obra ou conserto em cortiços, por outro
lado tolerava a construção de "barracões toscos ... nos morros que ainda não tivessem
habitações...".

Assim, pode ser estabelecida uma relação causal entre a emergência da nova forma de
habitação popular e a ação do Estado. Paradoxalmente, a nova forma que surgia como
efeito e conseqüência da política higienista habitacional e urbana revelava-se tão ou
mais insalubre e promíscua do que a anterior, que se desejava higienizar e disciplinar.

Em 1907, já podia se encontrar grandes grupos de barracos nos morros de Copacabana,


na zona sul, e por volta de 1909/1910 nos morros do Salgueiro e da Mangueira, na
zona norte da cidade. O novo habitat se expande rapidamente nos terrenos
desocupados, de propriedade duvidosa e sem interesse para a construção imobiliária.
Apesar de o crescimento das favelas ter se tornado vertiginoso somente após os anos
1930, a Estatística Predial de 1933 já registrava 46.192 casebres (agrupados em favelas ou
não), correspondendo a 20,58% do total de prédios da cidade.

3 – O começo do século: primórdios da expansão

Após a reforma de Pereira Passos, mesmo não havendo mais preocupação com os
cortiços, que desapareciam rapidamente da área central, as contradições do espaço
urbano no Rio de Janeiro se agravaram mais. A renovação do centro da cidade continuou
expulsando os mais pobres, e o embelezamento da elegante zona sul continuou
atraindo os investimentos em detrimento da zona norte (classes médias) e sobretudo da
zona suburbana (proletariado). Esta última, mesmo sem ajuda do Estado, pode se
desenvolver graças à construção de novas indústrias que surgiam e que construíram
infraestruturas urbanas sem ajuda do poder público.

O novo prefeito, Prado Júnior (1926/1930) foi pressionado por diversas associações
locais que pediam um novo plano para tentar controlar o desenvolvimento da forma
urbana do Rio de Janeiro. O Rotary Club, por exemplo, cujos membros possuíam muita
influência junto à Prefeitura, avançava a idéia de uma remodelagem da cidade e
defendia a contratação de um urbanista estrangeiro, apesar do descontentamento dos
arquitetos brasileiros. Antes mesmo da chegada de Agache, os rotarianos discutiam
com fervor sobre o “problema” das favelas; o influente Mattos Pimenta chamava as
favelas de lepra da estética que infestavam as belas montanhas do Rio e sujavam e
levavam a miséria aos bairros mais recentes da zona sul3 .

4
Foi então convidado o urbanista francês Alfred Agache para proferir uma série de
conferências sobre a cidade e elaborar o plano. Em uma de suas conferências, em
1927, Agache já abordava a questão das favelas, considerando-as como “ cidades jardim
de formação espontânea ”. Alfred Agache foi pois o responsável pela elaboração deste
primeiro projeto urbanístico para a cidade, um plano de remodelação, embelezamento e
expansão da cidade.

O plano Agache é o primeiro documento oficial que evoca explicitamente essa nova
forma de habitação popular que não parava de se desenvolver na cidade: as favelas.
Estas, tratadas pela primeira vez de forma explícita, foram consideradas um “problema
social e estético” e citadas como uma das “pragas do Rio de Janeiro”. O plano propôs
como solução a sua remoção total.

O plano Agache nunca foi aplicado mas ficou como uma referência importante para os
planos e projetos futuros; como ele foi concluído depois do advento da Nova República,
instaurada com a revolução de 1930, o novo governo preferiu abandonar tudo que
pudesse representar a República Velha. As diferentes classes que realizaram a
revolução possuíam aspirações contraditórias e as coalizões logo se mostraram frágeis
e insustentáveis, provocando uma instabilidade que resultou em um regime ditatorial
populista (Estado Novo - 1937/1945, governo de Getúlio Vargas).

4 –Meados do século: expansão e remoção das favelas

Com o novo regime, a burguesia industrial se firmou no país, sobretudo durante a


Segunda Guerra Mundial, e consolidou seu poder. Com a decadência da agricultura e a
forte industrialização, intensos movimentos migratórios se formaram em direção às
cidades. Os migrantes chegavam à Capital e se instalavam nos subúrbios distantes ou
nas favelas. A distância entre o local de trabalho e o domicílio aumentou
consideravelmente e a necessidade de morar perto do local de trabalho incitou a
população migrante a se instalar nos terrenos não ocupados que escaparam da
especulação imobiliária pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de construção:
morros, terrenos inundáveis e de propriedade duvidosa. As favelas se propagaram pelas
zonas industriais.

Houve neste período algumas remoções de favelas seguidas de relocações em parques


proletários4 construídos pelo governo. Mas o poder público pouco se manifestava face
ao aumento do fluxo migratório, uma vez que o aumento da mão de obra barata era
necessária para a indústria em crescimento, que os terrenos ocupados pelas favelas
eram públicos ou pouco valorizados e que, pelo seu caráter populista (na fase
democrática, entre 1945 e 1964), as favelas passaram a ser vistas como fontes de
numerosos votos e, conseqüentemente, se tornaram praticamente intocáveis.

Os anos 40 foram o período de mais forte proliferação de favelas no Rio de Janeiro. Foi
nesta época que o primeiro Censo oficial foi realizado, após as eleições de 1947 quando
um grande apoio aos candidatos comunistas veio das favelas, preocupando o Governo.
Apesar dos números deste Censo terem sido controvertidos, ele se tornou o marco do
reconhecimento oficial do Estado da existência das favelas, que já faziam parte da
paisagem da cidade.

5
Esta foi a “descoberta” das favelas pelo Estado. Em um primeiro momento, 119 favelas
foram oficialmente declaradas, com 283.390 habitantes, o que representava 14% da
população da cidade. Posteriormente os números oficiais foram bastante reduzidos5.
Outras informações do Censo mostravam que a população favelada era pobre, jovem e
migrante, que a maioria trabalhava em indústrias (zonas norte e suburbana), na
construção civil e nos serviços domésticos (zona sul). Quanto à localização das favelas,
o censo confirmou a expansão em direção à zona norte e suburbana, onde já existia
neste momento mais favelas do que na zona sul e central.

O Censo nacional de 1950 mostrava novos números contraditórios: 59 favelas e


169.305 habitantes. Os critérios de recenseamento de favelas eram pois relativos, o
que advinha do fato de que a definição, delimitação e classificação de favela não
possuíam parâmetros comuns. Pela primeira vez, foi elaborada uma definição das
favelas como "agrupamentos urbanos”, possuindo total ou parcialmente algumas
características: aglomeração mínima de 50 unidades, tipo de habitação precário,
construção irregular, falta de infraestrutura pública adequada e falta de urbanização.6

As favelas, definidas e contabilizadas, começaram a ser estudadas, tornando-se cada vez


mais visíveis e tema de vários debates. Portanto apenas em meados do século é que
se problematiza novamente a questão da habitação popular, tendo então como eixo
principal a favela. Este padrão de habitação auto-produzido caracterizava-se pela sua
ilegalidade em termos jurídicos e sua irregularidade em termos urbanísticos, além da
precariedade e da insalubridade. Assim, quando não pôde mais ser negada, sua
existência foi considerada uma “chaga” que deveria ser extirpada e seus moradores
removidos.
A partir dos anos 50 o país conheceu um desenvolvimento industrial notável, São Paulo
passou a ser o maior pólo industrial e o Rio de Janeiro perdeu o seu estatuto de capital
do país para Brasília, cidade-símbolo construída em tempo recorde. Apesar disso, os
fluxos migratórios continuaram se dirigindo para o Rio de Janeiro e a cidade não parou
de se expandir, de se densificar e sobretudo de se verticalizar. O desenvolvimento
econômico intenso provocou um efeito inflacionário, os salários reais baixaram e a
desvalorização da moeda provocou a valorização do solo urbano: proprietários criaram
reservas fundiárias, monopolizando terrenos vagos. A crise da habitação popular se
generalizou e as favelas proliferaram ainda mais.

Em 1964, um golpe militar instalou no Brasil uma ditadura que permaneceria por mais de
20 anos. Neste contexto a política urbana no Rio de Janeiro era extremamente
repressiva: muitas favelas foram sistematicamente arrasadas e seus moradores
removidos de terrenos altamente valorizados, principalmente da rica zona sul. Em seu
lugar foram construídos prédios de luxo ou deixadas áreas livres, como parques que
valorizavam mais ainda aquelas áreas. A expulsão dos pobres do território mais rico se
realizava. Foi também neste período que a zona residencial de elite começou sua
expansão, superando os obstáculos naturais através de grandes obras de engenharia
viária custeadas pelo Estado: surgiram então na novíssima orla marítima bairros de
desenho modernista (Barra da Tijuca) onde uma segregação sócio-espacial total era
possível.
Um novo padrão de habitação popular se manifestava também, à medida que a
expansão urbana ultrapassava os limites do município, configurando-se como área
metropolitana. A medida que as favelas esgotavam os espaços disponíveis no interior
do tecido urbano, as alternativas para a população de baixa renda limitava-se às
periferias cada vez mais distantes, onde, a partir dos anos 50 se multiplicaram os
loteamentos populares: lotes pequenos, sem infra-estruturas urbanísticas, de difícil
acesso, e por isso mesmo, baratos.
6
A combinação loteamento popular / auto-construção tornou-se padrão metropolitano de
habitação popular, assim como a periferização se tornou o padrão de urbanização.

Segundo fontes oficiais7, entre 1964 e1974, 80 favelas, com 26.193 barracos foram
removidas, deslocando uma população de 139.218 pessoas. Os moradores das favelas
removidas foram relocados em conjuntos habitacionais construídos na periferia, muito
distantes do mercado de trabalho. Uma grande parcela da população não se adaptou
(Berenstein.Jacques,2001)8, por diversos motivos: era preciso pagar um aluguel ou
financiamento; o preço do transporte era muito caro e o tempo de viagem muito longo;
uma parte da família ficou longe, a solidariedade entre vizinhos desapareceu; não havia
mais equipamentos urbanos comunitários; os apartamentos eram muito rígidos,
impessoais e sem área livre. Dentre estes, muitos retornaram para as favelas que não
haviam sido afetadas pela ação do governo ou então criaram outras novas. Após 1975,
vários conjuntos habitacionais ficaram abandonados, sendo que alguns se apresentam
em situação tão precária ou até mais do que as próprias favelas.

Apesar do empenho na remoção das favelas por parte de sucessivas administrações


municipais, tanto o número de favelas como a sua população continuou crescendo. Em
1969, uma exceção na política de remoção se tornou notável: a favela de Brás de Pina,
cujos moradores haviam corajosamente resistido à intervenção policial para removê-la
em 1964, lutaram e alcançaram a sua urbanização. Este exemplo pontual de
urbanização, que em que se destacou o arquiteto e urbanista Carlos Nelson F. dos
Santos, contou com uma forte participação da população local, foi considerado um
sucesso e é até hoje um dos símbolos da resistência contra a política de remoção,
através da urbanização de favela.

TABELA 1 - Rio de Janeiro - População 1950/1990

Ano População favelada População urbana


1950 169.305 2.336.000
1960 335.063 3.307.167
1970 554.277 4.251.918
1980 718.210 5.090.700
1990 977.768 5.536.179
Fonte: IBGE e Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente.

5 – Final do século: nova expansão e urbanização das favelas

No princípio dos anos 80, com o processo de abertura política e o fim da ditadura militar,
as políticas oficiais de habitação passaram a ser menos autoritárias. Foi somente com a
redemocratização do país que as propostas de urbanização, que os favelados
reivindicavam desde muito, foram incorporadas às políticas federais. Os moradores de
favelas passaram a ser considerados trabalhadores, e não só marginais, e a favela
começou a ser percebida como o lamentável resultado de um desenvolvimento
industrial e um crescimento urbano rápido e sem planejamento. Neste contexto
surgiram as políticas de “legalização”.

7
A população da cidade começou a se estabilizar nos anos 80: os fluxos migratórios e o
crescimento demográfico diminuíram, mas, paradoxalmente, a população das favelas
continuou a crescer. A pobreza urbana se expandia não mais devido às migrações
rurais mas devido ao empobrecimento dos trabalhadores urbanos, que se agravava com
o processo inflacionário. Mesmo com a expansão das periferias não houve
estancamento do crescimento das favelas no interior do município (ver Tabela 1),
fazendo com que autores como Pasternak e Sachs dissessem, em 1990, “ decidedly,
Brazilian cities are becoming huge squatter settlements”. No entanto, no seu interior há
grande heterogeneidade: novas práticas, novas tendências e novos padrões de
habitação popular já podem ser identificados.

No novo contexto político e econômico, o desenvolvimento das favelas na cidade


passou a ter formas específicas: surgiram as ocupações coletivas de terrenos e as
favelas de rua, localizadas ao longo de avenidas e em baixo de viadutos. As favelas
cariocas são, na sua quase totalidade, resultantes de um processo gradual de
ocupação, através da somatória de ações individuais e familiares de assentamento e
construção casa à casa. Contrariando esta praxe, se realizaram repetido número de
invasões. Pressionados pelo aumento dos aluguéis, respaldados na recuperação dos
direitos civis e muitas ações rápidas, coletivas e organizadas, dezenas ou centenas de
pessoas ocupavam terrenos vazios e demarcavam seus lotes. Estas ocupações, que
ocorreram em momentos políticos estratégicos (durante a posse de governadores
populares), envolvem os invasores, s polícia, o governo local e os tribunais, aos quais
recorrem os proprietários dos terrenos. Quando não há expulsão sumária, do diálogo
compulsório entre as partes surgem novos assentamentos que os moradores preferem
denominar de ocupações. Como resultam de ações planejadas, apresentam um traçado
regular, ao contrário das tradicionais favelas.

Foi também neste período que as favelas já existentes começaram a se consolidar e a


se densificar. Os barracos se tornavam cada vez mais sólidos, à medida que a alvenaria
substituía a madeira, que os moradores se organizavam e construíam eles mesmos as
redes, embora precárias, de água e de esgotos, que as concessionárias de serviços
públicos, como a de energia elétrica, regularizava a situação do fornecimento de luz
casa por casa, que o medo da remoção se tornava remoto. As favelas passaram
também a se verticalizar: novos andares foram construídos sobre as casas de alvenaria
para a família em crescimento ou para fins de locação. As casas mais próximas das vias
de acesso à favela se tornaram pequenos prédios de 4, 5 ou até 6 pavimentos com
grande número de quartos e apartamentos9. As favelas consolidadas passaram a se
parecer cada vez mais com os bairros pobres ordinários. Observa-se ainda a formação
de aglomerados de favelas, à medida que algumas se expandem, interligando-se e
formando conjuntos maiores, e a ocupação de áreas sujeitas a enchentes e a
deslizamentos de terra no período das chuvas10.

Os terrenos para construção nas favelas se tornaram mais raros e ganharam valor, o
mercado imobiliário se desenvolveu dentro das favelas e os moradores mais miseráveis
passaram a ser substituídos por uma classe média baixa, menos miserável mas cada
vez mais empobrecida. Como aparentemente não há mais espaços que poderiam
comportar novas favelas no interior do núcleo, onde a permanência da maioria das
existentes está praticamente assegurada, duas tendências podem portanto ser
observadas: o adensamento e a verticalização das favelas antigas e consolidadas, por
um lado, e a periferização de novas favelas, por outro. Devido ao esgotamento dos
espaços no núcleo,

8
as novas favelas que se formam - 205 entre 1982 e 199011 - localizam-se nas regiões
mais afastadas.

A disputa pelos raros espaços disponíveis faz surgirem barracos em terrenos insólitos.
Assim, vem sendo ocupadas faixas estreitas de terra non aedificandi situadas ao longo
de vias públicas, rios e canais, e sob viadutos e pistas elevadas. A imagem de longas
sequências de casebres embaixo de viadutos se tornou comum na cidade: estimava-se
em 1990 em cerca de 30 destas ocupações12, que poderiam ser denominadas de favelas
lineares.

O fenômeno de aparição de favelas de rua também estava diretamente ligado à esta


valorização das favelas. Os aluguéis cada vez mais caros nas favelas já consolidadas
obrigaram famílias inteiras a se instalar em outros lugares. Barracos ainda mais
precários foram construídos em baixo de viadutos e ao longo de ruas, em lugares onde
qualquer tipo de urbanização era inviável. A principal característica dessa forma de
favela era sua precariedade. A maioria das favelas de rua se situava na zona norte da
cidade sob os maiores viadutos da cidade. É importante de se notar que esta
“população de viadutos” é de origem urbana; a partir deste momento a cidade produz
as suas próprias favelas que não possuem mais as características rurais de antes, ao
contrário, essas novas formações se serviam das estruturas urbanas já existentes como
as estruturas em concreto das pontes e viadutos e aquelas em madeira dos grandes
outdoors na beira das estradas e grandes avenidas.

Uma das faces mais gritantes da crise e da pobreza na “década perdida“ era a
população sem teto. Estimativas diferentes se referiam a dezenas de milhares de
pessoas abrigando-se sob pontes, marquises, nas calçadas, nas praças, parques e
quaisquer vãos ou coberturas disponíveis. Os pobres de rua, ao contrário do que se
supunha, não eram mendigos, alcoólatras e desocupados, mas em sua maioria
trabalhadores, aposentados, desempregados e principalmente famílias inteiras cuja
renda não era suficiente para pagar qualquer tipo de moradia. Dentre estes encontram-
se também os que tem moradia nas periferias distantes, mas não podem pagar o custo
do deslocamento, permanecendo durante a semana nas ruas das zonas mais
populosas (JB 16/3/89). Há ainda um grande número de desabrigados pela chuva de
1988 e provavelmente um razoável contingente de trabalhadores egressos da
construção civil. Atingido pela crise econômica, este setor se retraiu, deixando de
oferecer não só trabalho mas também alojamento para milhares de trabalhadores de
menor qualificação, que se soma à população de rua.

Ao final dos anos 80 estimava-se que meio milhão de pessoas habitassem nas
periferias e um milhão nas 545 favelas em toda a cidade. Nesta época e no início da
década de 90 observaram-se novas formas de habitação popular, estampando no
espaço as crescentes dificuldades de se morar na metrópole. A real dimensão da
população moradora em favelas na cidade do Rio de Janeiro não é conhecida, pelo
contrário, é muito controvertida: há autores que se referem a mais de um milhão4, outros
a dois milhões5 de favelados dentre os 5.851.914 habitantes do município (Censo IBGE
2000).

4 PCRJ/SMU. Evolução da população de favelas da cidade do Rio de Janeiro. PCRJ, 2002.


5 França, E. e Bayeux, G. A cidade como integração dos bairros e espaço de habitação. In: Favelas Upgrading. São Paulo,
Fundação Bienal de São Paulo/Biennale di Venezia de 2002.

9
Após 1983 surgiram algumas tentativas de legalizar as favelas, e vários programas foram
criados pela administração pública visando a população das favelas. Mas o verdadeiro
plano de urbanização sistemática de favelas só começou em 1994 quando a recém
criada Secretaria Municipal Extraordinária de Habitação lançou, entre outros programas,
o intitulado “Favela-Bairro” que consistia, como seu nome indica, em transformar as
favelas em bairros13. Nenhuma favela foi efetivamente transformada em bairro formal
legal mas o programa já beneficiou mais de uma centena de favelas da cidade com
obras de infraestrutura e urbanização.

Felizmente a questão que se discute já não é mais a da remoção e da relocação de


seus habitantes para áreas longínquas da cidade. Hoje, o direito à urbanização parece
um direito adquirido incontestável14, ou seja, a questão já não é mais simplesmente
social e política: passa também por uma dimensão cultural. Apesar dos inúmeros
trabalhos realizados sobre as favelas, a questão arquitetônica foi muito negligenciada
pelos pesquisadores. A situação política e social anterior – até a abertura política do
início dos anos 80 – , quando os favelados estavam constantemente ameaçados de
expulsão, era o tema principal da grande maioria das pesquisas. Hoje, com a
sistematização das urbanizações, surge um novo problema, pois nós, arquitetos e
urbanistas, não somos formados para trabalhar em favelas e, no mais das vezes,
desconhecemos a arquitetura dessas comunidades. Deparamo-nos em campo com um
universo espaço-temporal completamente diferente daquele a que estamos habituados.
Além disso, as características culturais próprias às favelas, tornam o espaço muito difícil
de ser apreendido formalmente. A questão hoje já não é mais remover ou urbanizar, mas
sim, como urbanizar. Esse é o nosso grande desafio hoje com relação ao futuro das
favelas cariocas.

Referências Bibliográficas

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ABREU, M.de A.- Reconstruire une histoire oubliée - Origine et expansion initiale des favelas de
Rio de Janeiro, in Genéses 16, Paris, juin 1994.
ABREU, M.de A. - A favela está fazendo 100 anos - Sobre os caminhos tortuosos da construção
da cidade, in Anais do V Encontro Nacional da ANPUR, Belo Horizonte, 1993 ABREU, M.de A. e
VAZ L.F. - Sobre as origens da favela, in Anais do IV Encontro Nacional da ANPUR, Salvador,
1991.
BENCHIMOL, J.L. - Pereira Passos, um Haussman tropical, Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca,
1990.
BERENSTEIN-JACQUES, P. – Les favelas de Rio, um enjeu culturel, Paris, L’ Harmattan, 2001.
FERREIRA DOS SANTOS, C.N.- Movimentos urbanos no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Zahar,
1981.
FERREIRA dos SANTOS C.N. Um tema dos mais solicitados: como e o quê pesquisar em favelas,
in: Revista de Administração Municipal, n°161, out./dez. 1981.
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Municipal, n° 184, jul./set. 1987.
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VAZ L.F. - Notas sobre o cabeça de porco, in Revista Rio de Janeiro n°2, Nitéroi, 1986 VAZ L.F.
- Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos - a modernização da moradia no Rio de
Janeiro, in Análise Social 127, Lisboa, 1994.
ZYLBERBERG S., Morro da providência: memórias da Favella , Rio de Janeiro, Prefeitura do
Rio de Janeiro, 1992.

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Outros

Cadastro des favelas, IPLAN-RIO, 1994.


Cidade do Rio de Janeiro: Remodelação, Extensão e Embellezamento, Prefeitura do
Districto Federal, 1926-1930, Paris, Foyer Brésilien, 1930.
Estatística predial de 1933.
Favela, um bairro - Propostas metodológicas para intervenção pública em favelas do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, Pro-editores (UFRJ/Prefeitura do R.J.),1996.
Habitação em questão, J. Zahar, 1979.
Morar na metrópole, ensaios sobre habitação popular no Rio de Janeiro, IPLAN-RIO,
1995.
Programa Favela-Bairro, integração de favelas no Rio de Janeiro, Prefeitura do R.J.,
1996 SAGMACS, Aspectos humanos da favela carioca in O estado de São Paulo,
Suplemento especial, 13-15 abril 1960.
Transforming cities, design in the favelas of Rio de Janeiro, Architectural Association-
London/PROURB-Rio, Londres, AA Publications, 2001.

1
A acepção original do termo vem de “faveleiro” que é o nome popular de Jatropha phyllacantha,
grande arbusto da família das euforbácias de flores claras, frutos escuros e sementes oleaginosas.
2
Ver também acervo fotográfico do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ).
3
Discurso de 12 Novembro de 1926,Para a remodelação do Rio de Janeiro.
4
Três parques proletários provisórios são construídos entre 1941 e 1944 pelo prefeito Henrique Dodsworth
(1937-1945) : o n°1 na Gávea, o n°2 no Caju e o n°3 no Leblon, em uma tímida tentativa de substituição pois
os parques eram construídos na proximidade das favelas destruídas. Apesar da propaganda política feita
com o primeiro parque o projeto não foi adiante.
5
Censo de 1948: 105 favelas, e 137.837 habitantes, ou seja 7 % da população da capital
6
VII Censo Geral do Brasil, Favelas da Guanabara.
7
COHAB-GB.
8
È preciso notar que as favelas possuem uma cultura particular e seus habitantes possuem uma maneira de
habitar que lhes é própria e incompatível com os conjuntos habitacionais modernistas.
9
Na realidade tratam-se de novos cortiços. O Globo 7/6/91.
10
Jornal do Brasil 4/4/91.
11
IPLAN RIO.
12
Jornal do Brasil 30/12/90
13
Ao mesmo tempo, um outro programa chamado “morar sem risco ”, removeu as favelas de rua e de áreas
de risco para novos conjuntos habitacionais.
14
Apesar de ainda haver algumas vozes dissonantes contra a urbanização e a favor da remoção das favelas
como se pôde ver recentemente no editorial Favelas.sempre do Jornal do Brasil de 16/11/00 (ver também
nossa réplica publicada no mesmo jornal em 25/11/00, Favelas). O novo Estatuto da cidade é também um
grande avanço em prol da urbanização e legalização das favelas de todo o país.

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