Você está na página 1de 28

108

Breve história das favelas cariocas:


das origens aos Grandes Eventos

Mario Brum1

“A Favela, como sabe o leitor, é o lugar mais perigoso do Rio de Janeiro.


Sua população é um complexo de castas de gente, predominando pelo
número as casas ruins. Moram ali operários, mas muito poucos, sendo a
parte maior composta de gente que só trabalha acidentalmente, quando
a isso é compelida pela fome.”

Introdução

O trecho com que abrimos esse artigo consta na reportagem


“Atirado ao abismo”, que trata de uma briga entre moradores do
Morro da Favela (hoje, Morro da Providência), que foi publicada no
extinto Correio da Manhã, no dia 9 de novembro de 19082. A descrição
do local, carregada de descrições negativas, simboliza a relação que
Estado, imprensa, e grande parte da sociedade teria com a favela ao
longo do século seguinte.
Não à toa, 100 anos depois, na data do primeiro turno da
eleição para prefeito (05/10/2008), o jornal O Globo estampou como
manchete uma foto do Morro Dois Irmãos em primeiro plano, visto
da Praia de Ipanema, com a favela do Vidigal em destaque, sob a
seguinte manchete: “Quem vai dar jeito nisso?”. Acrescida da cabeça:
“Favelização, transito caótico, desordem urbana e conservação de ruas
são desafios para o novo prefeito”.
Com mais de um século de existência, se muita coisa mudou
nas favelas, quase nada mudou quanto ao seu status na cidade. Seus
moradores, a despeito das diferenças que guardam dos primeiros anos
de existência da favela, em fins do século XIX, continuam a ser vistos
por muitos como “bandidos” ou “vagabundos”, e a favela como um
problema ou um desafio a ser resolvido.

1
Doutor em História (UFF), professor e PNPD-CAPES no PPGECC/UERJ.
2
Apud Matos, 2004, p. 77.

Miolo.indd 108 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 109

Da “Favela” como local para a favela como


um novo fato na cidade

A data de surgimento da favela no Rio de Janeiro é controversa.


A versão mais corrente diz que após a Campanha de Canudos, em fins
do século XIX, soldados vindos para o Rio à espera de pagamento
por seus soldos, construíram suas moradias próximas ao Ministério
do Exército, no Morro da Providência, batizando-o com o nome de
“Favela”, similar ao monte situado ao lado do Arraial de Canudos.
A referência ao Arraial de Canudos, no Estado da Bahia, inscrita
em seu nome de batismo, se para os moradores talvez significasse
uma mera associação entre dois morros marcantes em suas vidas (a
partir da versão dos habitantes como ex-combatentes da Guerra de
Canudos), para autoridades e a intelectualidade da época, o morro
da “Favela” trazia uma marca negativa para a sociedade que, como
o episódio do arraial no sertão baiano, era a antítese do país que se
queria construir sob a República. Como aponta Valladares (2005), a
dualidade sertão X litoral que Canudos inscrevia no plano nacional, a
favela trazia à capital da República. Em Canudos e na favela reinavam
o atraso, o messianismo, o exótico, a desordem e falta de moral. No
litoral e na “cidade” havia, ou deveria haver, progresso, racionalismo,
modernidade, ordem e hábitos civilizados (VALLADARES, 2005).
Dessa lógica dual estabelecida para o Morro da Favela, outros
locais que possuíssem essas características, ou ao menos a maioria
delas, foram sendo considerados como novos “morros da Favela”.
Assim, morros como a Babilônia, ocupado anteriormente por militares,
ou a Mangueira, ocupado por operários, foram sendo identificados
como novas “Favelas”, que deixa de ser um nome próprio para passar
a ser uma designação de um tipo de forma de morar na cidade para
designar o espaço urbano das classes pobres, inicialmente associado
aos morros da cidade, com vários os estigmas a eles atribuídos.

As favelas na cidade: entre o combate,


a tolerância e o incentivo

Um desses estigmas era o do morador da favela como “vagabundo”.


Esse mito não se sustenta pela simples análise dos locais de surgimento

Miolo.indd 109 8/22/2018 12:24:24 PM


110 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

e crescimento das favelas ao longo do tempo: O Morro da Favela/


Providência surgiu no que era então o núcleo urbano da cidade em fins
do século XIX; na vertente atlântica em expansão do Rio de Janeiro,
que viria a se tornar a zona sul, a Praia do Pinto surgiu no começo da
década de 1910, em função das obras do Jockey Club, e cresceu nas
décadas seguintes com as obras de urbanização e verticalização das
moradias da zona sul. Na década de 1930, o Jacarezinho se tornaria
a maior favela da cidade e moradia de muitos operários atraídos pela
implantação das fábricas na zona norte do Rio, que engloba as regiões
do Méier e da Leopoldina. Nos dias atuais, a Baixada de Jacarepaguá,
área da qual a Barra da Tijuca dos muitos shoppings e lançamentos
imobiliários, faz parte, é a área com maior crescimento de favelas (53%
de acordo com dados do Censo 2010)3.
Nesse sentido, outro mito é o da dicotomia da favela como
“problema ou solução”. Dizia-se na imprensa e entre autoridades, em
meados do século XX, que a favela era uma solução para o morador,
e um problema para a cidade. Na realidade, a favela foi uma solução
para todos. Aos seus moradores, permitia uma moradia próxima ao
mercado de trabalho e a uma mínima infraestrutura de comércio e
serviços no entorno. O que possibilitou reduzir os custos de reprodução
de grande parte da mão de obra de baixa qualificação da cidade do
Rio, impedindo que um outro modelo de cidade surgisse. Não fossem
as favelas a garantir esse enorme contingente de mão de obra próximo
ao mercado de trabalho, os custos de habitação e/ou transporte teriam
que entrar no cálculo dos salários.
Nesse sentido, Gonçalves (2012) demostra que em diversas
ocasiões donos de fábrica solicitaram às autoridades da então capital
da República, que algumas favelas fossem deixadas no local pelo fato
de seus moradores comporem grande parte da sua mão de obra. A
própria história do Morro da Favela/Providência, nas primeiras
décadas de sua existência, é marcada por essa alternância tolerância/
combate/incentivo...
Em 1907, uma famosa charge na edição 407 da revista O Malho
(08/06/1907) demonstrava Oswaldo Cruz, então diretor geral da
Saúde Pública do Distrito Federal, passando um pente fino num Morro
da Favela com feições negras, jogando ao chão seus moradores, que

3
h t t p : // p o r t a l g e o . r i o . r j . g o v . b r / e s t u d o s c a r i o c a s / d o w n l o a d % 5 C 3 1 9 0 _
FavelasnacidadedoRiodeJaneiro_Censo_2010.PDF.

Miolo.indd 110 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 111

dizia: “Ora, graças que me livro dessa praga! Dê-lhe pr’abaixo, mestre
Oswaldo”. A despeito do preconceito explícito ao tratar os moradores
como uma praga, a previsão da charge não se efetivou. Embora
houvesse despejos periódicos de moradores no Morro da Favela,
a resistência dos moradores é um fato que se vê pelas permanentes
condenações dos moradores na imprensa e tentativas de eliminar a
favela da paisagem urbana.
Assim, em 1927, a edição 1.297 do semanário O Malho, de 23 de
julho, estampava em sua capa uma charge em que o prefeito carioca
Prado Júnior perguntava a um constrangido presidente Washington
Luís: “E aquela passeata lá no morro da Favela?”, que respondia:
“Não quero saber mais dela...”, fazendo alusão a um episódio em que
moradores organizados recorreram ao presidente para permanecerem
no local. No que foram atendidos. Ao menos até o ano seguinte,
quando nova ameaça de despejo inspirou o sambista Sinhô a compor
o belo samba A favela vai abaixo. Entre o anúncio do despejo e as
medidas que os moradores do morro iriam tomar, já se configurava
uma imagem lírica e mais positiva da favela, como vemos no trecho
“Que saudades ao nos lembrarmos das promessas / que fizemos
constantemente na capela / Pra que Deus nunca deixe de olhar / por
nós da malandragem e pelo morro da Favela”.

A erradicação impossível

Fosse a favela como algo lírico, solução ou problema, em fins


da década de 1920 a favela, como modo de habitar a cidade, já se
consolidara e se expandira na capital da República. Em 1926, Matos
Pimenta, engenheiro e membro do Rotary Club, influente sociedade
da elite carioca, exibe o documentário As Favelas, em que promove uma
violenta crítica a elas, tratando-as inclusive como “lepras da estética”,
alusão à uma doença que se espalha e deforma. O termo foi retomado
pelo urbanista francês Alfred Agache em seu precursor “plano diretor”
para a cidade do Rio de Janeiro, apresentado às autoridades em 1930,
tributário em grande parte dos estudos e análises de Matos Pimenta.
Nesse estudo, ainda que eivado de estigmatizações sobre os moradores
das favelas, Agache defendia a extinção das favelas com a transferência
de seus moradores para vilas operárias.
O projeto de acabar com as favelas retorna em 1937, sob a forma

Miolo.indd 111 8/22/2018 12:24:24 PM


112 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

do Decreto 6.000, o Código de Obras do Distrito Federal4. O próprio


fato do termo “favela” constar no índice remissivo e ter três artigos
no código dedicados a ela é sinal da importância que o tema adquiriu
no debate sobre a cidade. Incluindo aqui, em seu artigo 349, uma
definição do fenômeno e a expressa proibição de sua existência: “A
formação de favelas, isto é, conglomerados de dois ou mais casebres,
regularmente dispostos ou em desordem, construídos com materiais
improvisados e em desacordo com as disposições desse decreto, não
serão absolutamente permitidas”.
Para levar a cabo a missão de “não permitir as favelas”, estabeleceu-
se a proibição de reformas nas moradias das favelas existentes, bem
como o surgimento de novas moradias ou favelas, devendo ser
demolida qualquer nova construção que surgisse. A extinção das
favelas existentes deveria ser seguida com construção de “núcleos de
habitação de tipo mínimo”, prevendo o uso de terrenos particulares
onde houvesse favelas e a transferência dos moradores desde que
“pessoas reconhecidamente pobres” para essas habitações, mediante
o pagamento de uma taxa mensal. O Código de Obras inaugurava
uma prática que seguiria por décadas, tratando a favela como um
problema e pensando-a na perspectiva dos efeitos, e não das causas.
A referência de que seriam transferidos apenas os “reconhecidamente
pobres” baseava-se na noção, cada vez mais comum na época, de que
nas favelas moravam pessoas que podiam pagar por uma habitação
formal, mas que viviam nelas “por vício”.
Como desdobramento, surgem em 1941 os Parques Proletários,
feitos pela Prefeitura do Distrito Federal na gestão de Henrique
Dodsworth. Há de se pensar nessa nomenclatura da iniciativa em
pleno Estado Novo de Vargas com a mobilização por parte do governo
da imagem dos “Trabalhadores do Brasil”, como se os moradores de
favelas estivessem um estágio abaixo dessa categoria, podendo ser
o “proletário” compreendido como a classe mais pobre (segundo
o conceito utilizado no Império Romano, a que só tinha a função
de “gerar prole” ao Estado). Após a transferência de moradores de
pequenas favelas do entorno da Lagoa, na zona sul do Rio, para o
Parque Proletário da Gávea (o maior e mais famoso; além desse, havia
o do Leblon, conurbado à favela da Praia do Pinto, e o do Caju), os
moradores seguiam uma rígida rotina em que, resumidamente, eram
4
Disponível na íntegra em http://www.rio.rj.gov.br/web/arquivogeral/codigo-de-obras-de-1937

Miolo.indd 112 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 113

“ensinados” a morar na cidade e a se enquadrarem no novo Brasil


construído pela Era Vargas, com preleções diárias sobre as conquistas
do Brasil, as medidas do governo e orientações para os cuidados com
saúde, educação e alimentação das famílias.
Antes do fim do Estado Novo, a experiência dos Parques Proletários
não foi adiante. Em 1947, Carlos Lacerda apontava em sua coluna (na
Tribuna da Imprensa) de 13/02, no jornal Correio da Manhã, o estado
do Parque Proletário da Gávea: “Se alguém se atrever a visitar, sem
preparação, essas aglomerações de homens esquecidos, há de notar
que a miséria ferve”, e chama-os de “favelas deitadas e oficializadas”.
Ainda que o tom de Lacerda seja carregado e eivado de críticas à
Vargas, o fato é que, em fins da década de 1950, o Relatório SAGMACS
(do qual falaremos mais à frente) teve o Parque da Gávea (como os
moradores então o chamavam, excluindo o “Proletário” do nome)
como uma das favelas abordadas na pesquisa. E finalmente, em 1969,
o parque chegou ao fim, sendo oficialmente considerado uma favela e
“um verdadeiro quisto na principal via de acesso ao Bairro da Gávea”5,
com seus moradores sendo removidos para conjuntos habitacionais
como Cidade de Deus e Cidade Alta, no maior programa de remoções
da história do Rio, sobre o qual falaremos mais à frente.
As permanentes tentativas de erradicação das favelas nessa
primeira metade do século XX, sem alterar de fato as estruturas que as
faziam surgir, como o custo de reprodução da mão de obra e os sistemas
de transportes e de produção de moradias na cidade, eram iniciativas
efêmeras ou logo superadas pela realidade do surgimento de novas
favelas e o crescimento das já existentes. Ou ainda, das “soluções” que
propunham a transferência dos moradores para “habitações dignas”
que logo passavam a ser consideradas novas favelas, como foi no caso
dos Parques Proletários.

Favelados: mobilização política e disputa

Vimos que desde as primeiras décadas os favelados já se


organizavam como força política, usando para isso abaixo-assinados,
manifestações, idas às autoridades ou mesmo os laços criados a partir
das escolas de samba, como nas favelas do Borel (Unidos da Tijuca)
5
CHISAM. Origem – Objetivos – Programas – Metas. Rio de Janeiro: BNH / Ministério
do Interior, 1969.

Miolo.indd 113 8/22/2018 12:24:24 PM


114 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

e Mangueira (Estação Primeira de Mangueira), sendo a última onde


o prefeito Pedro Ernesto instalou a primeira escola pública localizada
numa favela (CONNIF, 2006).
Atuando como sujeitos ativos na defesa de suas comunidades
pelo direito a existirem e se manterem no local, fosse para dotá-las de
uma mínima infraestrutura (acessos, escadarias, redes de água etc.),
os moradores criaram um sentido de pertencimento ao local e de
coletividade e conseguiram vitórias importantes. Prova maior disso é a
permanência até os dias atuais de favelas com mais de oito décadas de
existência (Borel, São Carlos, Santa Marta, Rocinha, entre outras) ou
mesmo centenárias como Providência, Mangueira e Babilônia atestam.
No entanto, sob o chamado Período Democrático as favelas e seus
moradores passaram a receber mais atenção dos projetos políticos em
disputa no país, como os comunistas; o Trabalhismo de Vargas; bem
como sua antípoda, a União Democrática Nacional de Carlos Lacerda.
O crescimento do Partido Comunista do Brasil (PCB) e sua
legalização em 1945, com mais de 100 mil filiados, fez o partido eleger
a maior bancada na Câmara Municipal do Distrito Federal e organiza
os Comitês Populares-Democráticos em diversos bairros do Rio de
Janeiro, incluindo algumas favelas (LIMA, 1989). Na virada das décadas
de 1940 para 1950, já na ilegalidade, mas não na clandestinidade, o PCB
continua a atuar nas favelas: dos membros do partido que moravam em
favela e atuavam nos Comitês Populares e Democráticos surgiu a União
dos Trabalhadores Favelados (UTF), em 1954, no Morro do Borel, numa
luta contra uma ação de despejo, que era a maior ameaça às favelas no
período, e acabou por levar à criação de núcleos da UTF em diversos
locais. Cinco anos após a criação da primeira UTF no Borel, em maio
de 1959 foi realizado, na sede do Ministério do Trabalho, o Congresso
dos Trabalhadores Favelados, criando a Coligação dos Trabalhadores
Favelados (CTF) (NUNES, 1980).
A criação da CTF é tanto prova do grau de organização que o
movimento comunitário de favelas adquiria quanto das relações
estabelecidas entre o movimento e os órgãos do Estado, no caso o
Ministério do Trabalho, sob os auspícios dos partidos Trabalhista
Brasileiro e Comunista (gozando de uma semilegalidade no período).
A permanência da favela era a principal bandeira de luta da CTF, para
assegurar o direito à terra pelos moradores de favela contra possíveis
ações de despejo. Para isso, a CTF reivindicava a regulamentação do

Miolo.indd 114 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 115

usucapião urbano ou da aquisição das terras pelo Estado (e consequente


transferência aos moradores) em casos de terrenos particulares e o
aforamento para famílias moradoras em caso de terras públicas. Além
disso, a CTF defendia que o Estado investisse em melhorias nas favelas
e nas moradias. Essa reivindicação representava um avanço na luta
das favelas, considerando que ia além de uma mera luta de reação ao
despejo, que fora a tônica das mobilizações até então. No entanto, ela
não é algo utópica para a ocasião, considerando que o Estado fazia
exatamente isso ao repassar verbas para que a Igreja Católica atuasse
em favelas, inclusive em obras de urbanização (LIMA, 1989).
Nesse sentido, outro ator importante na disputa pelas favelas foi
a Igreja Católica, que participou nesse período com mais de uma face.
A primeira foi uma face mais conservadora: A Fundação Leão XIII,
criada em janeiro de 1947, com verbas e apoio do governo federal, e
que trabalhava com a ideia de que eram uma série de características
pessoais que levavam as pessoas a morarem em favelas, e portanto,
a parte moral e espiritual deveria preceder às melhorias nas favelas,
incentivando a mobilização comunitária em sociedades de moradores.
Assim, a fundação montou Centros de Ação Social que incluíam serviços
de saúde e educação em grandes e importantes favelas da cidade, como
Jacarezinho, Praia do Pinto, Barreira do Vasco, entre outras. Chegando
até mesmo a realizar pequenas obras de urbanização (calçamento,
escadarias, bicas d’água). No entanto, a mobilização comunitária devia
ser dentro de certos limites, rigidamente controlados pela Igreja, no
que a fundação acabou sendo, principalmente, uma forma de tutela
sobre a organização dos moradores.
De modo que, na década seguinte, em 1955, outra autoridade da
Igreja Católica, Dom Helder Câmara, cria a Cruzada São Sebastião.
Afastando-se das lideranças mais conservadoras religiosas ou leigas
que apoiavam a Fundação Leão XIII, Dom Helder tecia críticas à
atuação da fundação e o intenso controle que ela passara a exercer
sobre os favelados. O combate ao comunismo também era um dos
propósitos da Cruzada, expresso no item número 9 (“Comunismo
não resolve”) do Decálogo dos Cavaleiros de São Sebastião, guia de
recomendações para os moradores e partícipes da Cruzada. Se o
combate ao comunismo era um ponto em comum com a Fundação
Leão XIII, a ação da Cruzada efetivamente se diferenciou num aspecto
fundamental: para Dom Helder, as favelas deviam ser integradas aos

Miolo.indd 115 8/22/2018 12:24:24 PM


116 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

bairros onde estavam, dentro do espírito de solidariedade cristã. Nesse


sentido, a Cruzada se posicionou ativamente contra algumas tentativas
de remoções. Ainda de acordo com esse propósito, bem como com boa
relação com as autoridades, Dom Helder angariou fundos do governo
federal, sob a presidência de Juscelino Kubitschek, para construir
o conjunto de prédios no Leblon que leva o nome da Cruzada,
transferindo para lá moradores das favelas próximas, principalmente a
Praia do Pinto. Ação similar em menor escala foi feita no Morro Azul,
no Flamengo, com a construção de um único prédio.
Assim como os comunistas e a Igreja, os políticos alinhados
à direita também disputaram e incentivaram o associativismo
comunitário nas favelas cariocas. Foi justamente sob o governo de
Carlos Lacerda que foi fundado o maior número de Associações de
Moradores até o período da Redemocratização6. Eleito governador do
Estado da Guanabara em 1960, novo status da cidade do Rio de Janeiro
após a transferência da capital federal para Brasília, Lacerda, principal
opositor de Vargas (e do trabalhismo após a sua morte), quis fazer
de seu governo uma vitrine para sua candidatura à presidência. Isso
implicava em dar uma solução ao que julgava ser um dos principais
problema da cidade: as favelas. Anos antes, quando Lacerda, quando
escrevia sobre favelas na sua já citada coluna em jornais, dizia ser essa
a principal “Batalha do Rio”.
Ao tomar posse como governador, Lacerda nomeou José Artur
Rios para a Coordenação de Serviços Sociais, sendo responsável
pelo Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas
(SERPHA), órgão do Estado para a questão da Habitação. Rios era
sociólogo e havia acabado de realizar uma profunda pesquisa sobre
as favelas do Rio, que foi publicada em dois suplementos pelo jornal
O Estado de São Paulo em abril de 1960 com o nome de “Aspectos
Humanos da Favela Carioca” (logo depois foi publicada no Rio pela
Tribuna da Imprensa, jornal de Lacerda).
Rios responsabilizava o próprio favelado pela sua condição,
de modo que ele deveria se empenhar para superá-la. Assim, a
urbanização deveria ocorrer com a participação comunitária por meio
das Associações de Moradores (criando-as onde ainda não existissem),
através da “Operação Mutirão”, realizada em cerca de 80 favelas

6
Segundo levantamento de Diniz (1982b), no período que vai de 1946 a 1963, foram criadas
105 associações em favelas, a maior pare delas durante a Operação Mutirão.

Miolo.indd 116 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 117

(NUNES, 1980). Além de submeter as Associações de Moradores ao


controle do Estado, os moradores entrariam com a mão de obra e
parte dos recursos financeiros para as obras, cabendo ao Estado a
direção técnica e a outra parte dos recursos.
Durante a Operação Mutirão, as associações se encontravam na
sede da Coordenação de Serviços Sociais, e ganhou força entre elas
a ideia de fazer uma federação das associações. Embora houvesse
diferentes orientações políticas entre os favelados (comunistas,
católicos, lacerdistas, inclusive moradores ligados ao Movimento de
Rearmamento Moral, movimento anticomunista incentivado pelos
EUA contra o governo João Goulart), em julho de 1963 foi criada a
Federação das Associações dos Moradores de Favelas do Estado da
Guanabara (FAFEG) em assembleia realizada na sede da Confederação
Brasileira de Trabalhadores Cristãos (LIMA, 1989; NUNES, 1980).
Em 1962, Rios é exonerado do governo, com Lacerda mudando
radicalmente o rumo de sua política para as favelas, tomando a
remoção dessas como o principal caminho para dar uma solução ao
“problema da favela”.

A era das remoções

A partir do Estado Novo, as políticas voltadas para as favelas


passaram a constar na agenda de todos os governos, inclusive pelo peso
que o “problema favela” ganhou pela intensa e crescente urbanização
do Brasil nessa época, fruto da industrialização acelerada a partir das
décadas de 1930 e 1940. Num curto intervalo de tempo, de 1946 até
1960, diversas medidas e vários órgãos voltados a essa questão foram
criados pelo Estado ou com apoio deste: a Fundação da Casa Popular;
Fundação Leão XIII; comissões da Prefeitura do Distrito Federal e do
governo federal voltadas para o tema; o Serviço de Recuperação de
Favelas; a Cruzada São Sebastião; e o SERFHA. Em comum, a tentativa
de controlar e dar uma “solução” ao “problema” favela.
Para alguns, a favela era vista como uma patologia urbana,
cujas razões da existência são atribuídas aos favelados em si, afeitos
a costumes exóticos e que não partilhavam os valores da civilização,
entendida aqui como a cidade. Em outra vertente, considerava-se que
a favela era um fruto indesejado, mas inevitável, do intenso e rápido
processo de urbanização vivido pelo Brasil, similar ao que ocorreu

Miolo.indd 117 8/22/2018 12:24:24 PM


118 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

nos países capitalistas centrais, como Estados Unidos e Europa, e aqui,


assim como lá, seria necessário recorrer a fortes intervenções urbanas
a fim de “reordenar” a cidade.
A questão da habitação e das formas de moradia se tornaram
um ponto central no projeto modernizador no plano continental,
sob a égide dos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria. Fruto
direto dessa articulação foi o lançamento da Aliança para o Progresso,
programa de cooperação internacional entre os Estados Unidos e a
América Latina, criado pelo presidente John F. Kennedy, em 1961,
como forma de combater a influência da Revolução Cubana e também
melhorar a imagem dos Estados Unidos no continente, seriamente
desgastada nessa época.
Desse modo, as verbas da Aliança para o Progresso para o
governo da Guanabara foram destinadas à construção de três
conjuntos habitacionais: Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança,
os três conjuntos, localizados nas periferias norte e oeste do Rio,
foram batizados em homenagem ao então presidente estadunidense,
ao programa, e aos efeitos desejados. Extinguindo totalmente algumas
favelas, como Pasmado e Esqueleto, e removendo parcialmente outras.
Rios saiu do governo para a entrada de Sandra Cavalcanti que, à frente
da Secretaria de Serviços Sociais e em conjunto com a recém-criada
Companhia Estadual de Habitação (COHAB) dão início a uma política
sistemática de remoção de favelas que influenciaria o Estado nos níveis
estadual e federal pelos anos seguintes.
As autoridades defendiam que a remoção de moradores de
favelas das áreas centrais da cidade para a periferia se justificava para
incentivar o surgimento de uma área industrial delimitada nas áreas
limítrofes da cidade, próximo às vias de escoamento da produção, com
terrenos mais baratos e de maior facilidade de captação de matéria-
prima e infraestrutura. Nesse sentido, a mão de obra deveria morar
próximo às fábricas, no que o favelado, visto como alguém de trabalho
irregular, se tornaria o operário incorporado ao sistema, dono de um
imóvel... resolvia assim os efeitos da urbanização desenfreada. Numa
ponta, a mão de obra agora disciplinada disponível à indústria, do
outro resolviam-se os problemas da favela e do favelado como um
marginal revoltado, passando a ser alguém incorporado ao sistema.
Passado pouco tempo da remoção, os impactos na vida dos
removidos foram consideravelmente ruins. O mercado de trabalho

Miolo.indd 118 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 119

que deveria surgir na área dos conjuntos não ocorreu. O emprego


continuava nas áreas centrais da cidade, agora distante dos removidos.
Com menos receitas e com mais custos (a aquisição da casa devia ser
paga em prestações à COHAB). O fracasso da Vila Kennedy como
“solução” para as favelas fora tratado em reportagem de página inteira
no Jornal do Brasil, poucos anos depois. Má qualidade dos serviços;
o aspecto de pobreza dos moradores do conjunto e a queda na sua
renda; o aumento da criminalidade; o fato de que 20% dos moradores
removidos já haviam voltado para as favelas; além de que as 1.200
crianças nascidas no conjunto “são tão raquíticas e subnutridas quanto
às da favela, e suas perspectivas não são melhores”7.
Sem os resultados esperados e com forte resistência dos moradores
de favela – apesar do Golpe Militar de 1964, ainda havia alguma
margem de manobra para os moradores de favela organizarem diversos
movimentos de resistência à remoção, como na Praia do Pinto e em
Brás de Pìna – as remoções são interrompidas. E em 1965, nas eleições
para governador da Guanabara, os favelados votaram em massa em
Negrão de Lima, candidato oposicionista que se comprometeu com o
movimento comunitário a não dar continuidade às remoções.
Negrão de Lima, eleito governador, tenta colocar, através de
vários decretos, as associações sob controle. O Estado passou a ter
poder inclusive de nomear uma nova diretoria caso a antiga não
prestasse contas ou infringisse alguma norma imposta pelo governo.
A resistência a esses decretos do governo estadual e no contexto de
acirramento da ditadura, a FAFEG vai se dirigindo cada vez mais à
esquerda, com lideranças ligadas ao PCB e à Ação Popular (grupo
originário na esquerda católica). No II Congresso da Fafeg, em
novembro de 1968, prevaleceu uma linha marcadamente oposicionista
à ditadura.
As remoções voltaram com força total em 1969, inspiradas na
experiência do período Lacerda, mas sistematizadas de modo nunca
visto antes (e nem posteriormente). Algumas condições permitiram
isso: a primeira delas é a centralização política e administrativa da
ditadura, que criou um órgão específico, a Coordenadoria de Habitação
de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM) para coordenar
a questão e agir em conjunto com o governo da Guanabara, que apesar

7
“Vila Kennedy fracassa como experiência para acabar com as favelas” Jornal do Brasil,
07/07/1968.

Miolo.indd 119 8/22/2018 12:24:24 PM


120 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

das promessas anteriores, teve em Negrão de Lima um entusiasta das


remoções (BRUM, 2012), chegando a criar, antes mesmo da criação da
CHISAM e com o mesmo sentido dessa, o Programa 7 de setembro. A
CHISAM, centralizando diretrizes e a execução do programa, obtém
recursos através do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), fundo
dirigido pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), que a partir de
1967 passou a contar com uma vultuosa soma de recursos do recém-
criado Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
A centralização política também pode ser entendida como a
restrição ao debate democrático. Por um lado, quando o programa foi
anunciado, em 1968, ele recebeu várias críticas. Meias verdades e até
informações falsas foram largamente utilizadas pelas autoridades para
justificar as remoções. Num documento da própria CHISAM, se revela
de modo claro a postura autoritária de um órgão público – afinal, o
país vivia uma ditadura – de ignorar o debate sobre o tema:

À medida que a programação, diretrizes e filosofia das atividades


a serem desenvolvidas pela CHISAM foram se concretizando
através de documentos escritos, entrevistas oficiais e divulgação
pela imprensa, desabou nas favelas uma avalanche de comentários
e boatos sobre o que se pretendia realizar (…) Uma infinidade de
técnicos e pseudo-técnicos emitiam opiniões, defendiam teses,
propunham soluções, porém os interessados diretos ficavam
mudos [refere-se aos favelados, com fortes razões para ficarem
mudos, como veremos]. Utilizando o processo de trabalhar com
dedicação e convicção de que estávamos certos, virtualmente
nenhuma crítica foi oficialmente rebatida 8 .

Por fim, ao começarem as remoções a ser executadas, em março


de 1969, o país já vivia sob o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em que
qualquer divergência ou resistência à ditadura poderia ser punida com
prisão e possível desaparecimento, como ocorreu com lideranças da
FAFEG e da Ilha das Dragas, favela localizada na Lagoa, nos planos de
remoção9. Na Praia do Pinto, favela localizada no coração do Leblon, a
remoção da favela significou duas mensagens inequívocas aos favelados

8
CHISAM. Metas alcançadas e novos objetivos do programa. BNH / Ministério do Interior.
Rio de Janeiro, 1971.
9
“Favelados querem seus chefes livres e apelam a Negrão”. Correio da Manhã, 12/02/1969.

Miolo.indd 120 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 121

e à sociedade em geral: a primeira delas é que a remoção de uma das


maiores, mais antigas e famosas favelas do Rio era um sinal do ímpeto
das autoridades em de fato remover todas as favelas da cidade; a outra
sinalização é o quanto as autoridades estavam dispostas a isso. Como
houvesse resistência dos moradores da Praia do Pinto em se mudarem
para os novos conjuntos habitacionais na zona norte e oeste (Cidade
Alta, Cidade de Deus, Paciência...), quase dois meses após o início da
remoção, um incêndio de causas desconhecidas, mas provavelmente
criminoso, eliminou definitivamente a favela.
Mais uma vez, as remoções se justificavam pelo projeto das
autoridades em criar uma zona industrial nas áreas limítrofes da cidade,
onde a mão de obra moraria próximo ao emprego com a instalação
das fábricas. Os estigmas sobre os favelados foram mobilizados pelas
autoridades e defensores da remoção de modo que essa fosse vista não
como uma irrupção na vida das famílias, mas como uma necessidade
da cidade e uma ação de socorro ao favelado, principalmente às
crianças, uma vez que a moradia na favela era considerada, segundo
as autoridades, “irregular, ilegal e anormal”, de acordo com os
documentos da CHISAM, sendo a transferência do favelado para o
conjunto habitacional uma forma de promoção social. E ainda, as
zonas centrais da cidade, principalmente a zona sul, ficariam sendo
áreas de moradia para pessoas de maior poder aquisitivo.
No entanto, a proposta inicial das autoridades, ao menos
declarada, de acabar com todas as favelas da Cidade do Rio de Janeiro
e a “promoção social do favelado”, acabaram não ocorrendo. Nos
planos originais da autarquia, seriam removidas todas as favelas do
Rio de Janeiro até 1976. Em 1971, já sob o governo Chagas Freitas,
reportagem do Jornal do Brasil expunha a decepção com as cada
vez mais remotas perspectivas do plano de erradicação total das
favelas se concretizar: “Estimativas oficiais previam que em 1976 não
haveriam mais favelas no Rio. O cálculo é otimista e dificilmente será
transformado em realidade”10. Assim, antes desse objetivo ser atingido,
a CHISAM foi extinta, em setembro de 1973.
Mais ambicioso que as remoções de favelas feitas por Lacerda, os
programas CHISAM e “7 de setembro” removeram aproximadamente
175 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial), transferindo-

10
“Erradicação das favelas no Rio não deve se completar em 1976”: Jornal do Brasil, 9 e
10/05/1971.

Miolo.indd 121 8/22/2018 12:24:24 PM


122 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

os para novas 35.517 unidades habitacionais em conjuntos, estando a


maioria deles nas zonas norte e oeste (VALLADARES, 1978). Se de
um lado a orla da Lagoa se viu sem favelas (Praia do Pinto, Macedo
Sobrinho, Catacumba, entre outras...), do outro, a periferia da cidade
viu surgir conjuntos habitacionais como os já citados Cidade Alta e
Cidade de Deus (quando os prédios foram construídos); Dom Jaime
Câmara, Antares, Quitungo-Guaporé, entre outros...
Mais uma vez os planos das autoridades de criarem um mercado
de trabalho nas áreas para onde os favelados foram removidos não se
tornaram realidade. Uma vez no conjunto, a remoção, compulsória,
impactou dramaticamente a vida das famílias. Na maior parte dos casos,
o emprego continuava na agora distante zona sul. Implicando em gastos
com transporte, somado aos novos custos da habitação, como água,
luz e a aquisição da moradia, uma vez que a aquisição da casa própria
implicava no pagamento de 240 prestações ao BNH. Por outro lado, as
famílias se viam sem fontes de receita vindas dos “bicos” possíveis nas
áreas mais abastadas da cidade, como passar roupa, carreto em feira,
lavagem de carros etc... o que gerou em vários conjuntos – com famílias
que, sem condição de pagar as prestações, viviam um processo de “volta
à favela” – a expulsão do imóvel, a “passagem da casa”, isso é, venda
do imóvel para outro interessado (VALLADARES, 1978), ou ainda,
por vezes, a volta ocorria no próprio conjunto ou no entorno, com a
construção de novas favelas (BRUM, 2012).
Removidas em cima dos caminhões do Departamento de Limpeza
Urbana da Guanabara, uma vez instaladas nos conjuntos, as famílias
perceberam que os estigmas que recaíam sobre os favelados viajaram
com eles. Houve sérios problemas de integração entre removidos e as
vizinhanças no entorno dos conjuntos, antigos bairros de subúrbio,
como matrículas negadas em escolas, por exemplo, uma vez que os
conjuntos foram criados sem esses equipamentos.
Mais uma vez, a não resolução dos problemas estruturais que
causam a busca da moradia nas favelas fez com que, em pouco
tempo esses conjuntos fossem considerados novas “favelas”, pela
descaracterização das plantas originais (com a expansão dos
apartamentos através de “puxadinhos”), pela ideia de abandono do
Estado (a infraestrutura, já precária em muitos casos – cedo alguns
conjuntos apresentaram problemas como rachaduras nos prédios –
não acompanhou o aumento populacional) e pela espiral de violência

Miolo.indd 122 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 123

urbana que o Rio passou a viver nas décadas posteriores. Há de se


pensar o porquê da primeira grande guerra entre quadrilhas de
traficantes ter sido na Cidade de Deus, na virada das décadas de 1970
para 1980.
As remoções foram interrompidas por quatro razões principais:
os conjuntos passaram a ser considerados novas favelas; houve alta
inadimplência entre os removidos (que fez com que o BNH se voltasse
à classe média); o não entusiasmo de Chagas Freitas, eleito governador
em 1971 e que construiu uma máquina política que negociava votos por
obras, principalmente nas favelas e subúrbios do Rio (DINIZ, 1978); e a
abertura da Barra da Tijuca para a expansão imobiliária voltada à classe
média, que reduziu a demanda por terrenos na valorizada zona sul.

A Redemocratização.

O período da Redemocratização traz profundas mudanças nas


favelas cariocas, principalmente por dois fatores: a urbanização se
consolida como uma política de Estado e os moradores de favela
passam a ter mais voz e presença na cena política, principalmente
através do movimento comunitário.
Com a remoção afastada como solução, tanto pelas razões
descritas pouco acima, quanto pela maior mobilização política
dos moradores de favela (que era ao mesmo tempo causa e efeito
da luta pela Redemocratização), o Estado em seus três níveis (em
1975 ocorre a fusão da Guanabara com o antigo Estado do Rio de
Janeiro) adota a urbanização como principal política para as favelas,
independentemente de que partido estivesse à frente do governo.
Prova disso é o caso do Vidigal, favela localiza numa valorizada
encosta à beira-mar, quando, em dezembro de 1976, moradores
receberam funcionários da Fundação Leão XIII (agora uma autarquia
estadual11) que avisaram dos planos de remoção dos moradores para
Santa Cruz. Moradores articularam a resistência, contando com
apoio do padre Ítalo Coelho e de advogados como Sobral Pinto,
figura histórica de lutas democráticas, e Bento Rubião, conseguindo
ser vitoriosos. A vitória no Vidigal é considerada o marco inicial da
Pastoral de Favelas, importante organização ligada à Igreja Católica que
11
Tendo como governador Faria Lima (1975-1979), nomeado pelo governo federal como
responsável para administrar a fusão.

Miolo.indd 123 8/22/2018 12:24:24 PM


124 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

desempenhou importante papel no movimento comunitário nos anos


seguintes, estimulando a organização dos moradores, rearticulando
associações e servindo de “guarda-chuva” para muitos militantes
comunitários que permaneceriam atuando nas décadas seguintes.
No caso do governo federal, o mesmo que anos antes havia
executado a remoção de favelas, a mudança de postura é impactante.
No primeiro semestre de 1979 é anunciado o Projeto Rio, um programa
de “saneamento da orla da Baía da Guanabara entre o Caju e Duque
de Caxias” que, segundo notícias na imprensa, consistiria na remoção
das favelas da Maré12. Rapidamente, os moradores se organizaram a
criaram o Comitê de Defesa das Favelas da Maré (Codefam), reunindo
as diversas Associações de Moradores, que acabaram por se articular
com o ministro Andreazza, então candidato virtual à presidência na
sucessão de Figueiredo, e por isso fez de sua atuação como ministro do
Interior um palanque para sua candidatura. O que garantiu às favelas
da Maré que o Projeto Rio acabasse se tornando de fato num projeto
de urbanização das favelas, erradicando as palafitas e transferindo
os moradores para novos conjuntos, como a Vila do João (batizada
em homenagem ao presidente). Numa cerimônia com lideranças,
Andreazza assinou a ficha de filiação à Codefam13. Sinal de que a
disputa política sobre o voto e coração dos favelados ganhava cada vez
mais importância. No mesmo sentido foi o Programa de Eletrificação
de Áreas Informais da Light, então uma empresa estatal federal de
energia elétrica que resolvia uma deficiência histórica das favelas, que
era o fato de ter uma rede de energia informal, precária e mais cara.
No plano municipal, em 1979, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou
a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), seguindo
recomendações internacionais para o Ano Internacional da Criança.
No seu documento de criação – “Diretrizes para o estabelecimento de
uma política de ação para as favelas do município do Rio de Janeiro”
temos o primeiro reconhecimento oficial da favela como parte
integrante da cidade e afastando a hipótese de remoção: “A política da
Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro para as favelas existentes em

12
“Governo vai urbanizar favelas” ( Jornal do Brasil – 23/05/1979). Embora a matéria fale
sobre “urbanizar favelas”, logo no início percebe-se o tom oposto: “Todas as favelas do Rio
e de outras capitais que não apresentarem condições de urbanização serão erradicadas
com a execução do plano habitacional para populações de baixa-renda, afirmou ontem o
Ministro do Interior, Mario Andreazza”.
13
“Moradores do Timbau recebem seus títulos de propriedade” (O Dia, 11/06/1981).

Miolo.indd 124 8/22/2018 12:24:24 PM


Mario Brum ▪ 125

sua jurisdição tem como meta, sempre que possível, a manutenção do


homem no local onde habita”14. Um segundo documento deixa isso de
forma ainda mais explícita:

A tomada de posição política do Governo municipal, nunca antes


explicitada de forma tão inequívoca, é no sentido de reconhecer
oficialmente o fenômeno, incluindo as favelas entre as áreas que
deverão receber sua atenção prioritária. A remoção somente se
processará nos casos em que a própria segurança do morador
assim a exija. Para dar substância à decisão é criada a Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social15.

Ao longo da década seguinte, a SMDS cumpriu um importantíssimo


papel de funcionar como uma “secretaria” para as favelas, agindo em
três eixos: engenharia, educação e assistência social propriamente
dita. Tratava-se, segundo funcionários do órgão, de dar viabilidade
para a atuação nas favelas por parte de um Estado que pouco ou nada
havia visto essa parte da cidade como merecedora de atenção, obras
e recursos.
No plano estadual, Chagas Freitas (1979-1983), eleito governador
indiretamente, deu prosseguimento à construção de sua máquina
política que envolvia as obras em favelas em troca de apoio aos
seus candidatos e a ele mesmo. O que foi favorecido durante a
Redemocratização, com a participação de várias lideranças de
favelas ligadas à organização clandestina de esquerda Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) que participavam do Movimento
Democrático Brasileiro como um frente ampla de oposição, na
FAFERJ (ex-FAFEG). Essas lideranças acabaram por manter estreitas
relações com o governo estadual, contando com os vários decretos da
época de Negrão de Lima na Guanabara e tendo a Fundação Leão
XIII como órgão estadual responsável pelas favelas para controlar as
Associações de Moradores, principalmente as dissidências. Contando
ainda com órgãos de imprensa sob sua propriedade (os populares
O Dia e A Notícia), Chagas Freitas manteve parte do movimento de
favelas atrelado ao governo, o que não significava ganhos concretos

14
“Diretrizes para o estabelecimento de uma política de ação para as favelas do município
do Rio de Janeiro. SMDS. Rio de Janeiro, 1979.
15
Proposta para ação nas favelas cariocas. SMDS. Rio de Janeiro, 1980.

Miolo.indd 125 8/22/2018 12:24:24 PM


126 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

para os favelados naquela conjuntura, como a ação de autoridades


contra alguma tentativa de despejo da favela (por algum suposto ou
verdadeiro proprietário do terreno) e algumas obras de urbanização.
No entanto, a eleição de Brizola ao governo estadual, em 1982,
é lembrada por várias lideranças (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2003;
OLIVEIRA, 1993) como uma virada na história das favelas. Tão
marcante que muitas tratam do período de Brizola como a “chegada do
Estado nas favelas”, mais uma memória do que uma realidade, como
vemos tanto pelo período que é acompanhado de várias ações nos três
âmbitos da administração pública quanto em períodos anteriores o
Estado se fizera presente (ainda que essa presença se desse meramente
através do controle e da repressão).
De qualquer forma, o volume de programas e ações do governo
estadual, em conjunto com a Prefeitura do Rio (a nomeação do prefeito,
até 1985, era atribuição do governador) de fato mudou a qualidade da
intervenção, consagrando um novo momento na relação entre Estado
e favelas, tais como: Programa Mutirão (urbanização em favelas
contando com apoio técnico e material da SMDS e a mão de obra dos
moradores); Programa de Favelas da Cedae (companhia estadual de
água e esgotos, que também implicava em obras de urbanização na
favela); Cada Família um Lote (transferência de títulos de propriedade
aos moradores), entre outras.
Mas três ações foram mais impactantes: uma foi a mudança na
política de segurança, com as Polícias Militar e Civil acostumadas
a verem os moradores de favela como cúmplices de bandidos e os
barracos não como domicílios, portanto, passíveis de serem violados
sem mandado. Desmontar o aparato repressivo implicava em alterar a
forma das polícias agirem, construindo uma política de segurança que
tivesse os direitos humanos dos moradores respeitados, no contexto
de fim da ditadura16. Isso foi lido, por parte da sociedade, como um
“afrouxamento” no combate ao crime, justamente no período em que
o tráfico de drogas se estruturava em facções e aumentava o poder
de fogo, o que acabou por gerar um debate que se estende aos dias
atuais em uma política de segurança que contemple minimamente os
direitos humanos e vista como “conivente” com bandidos.
A segunda ação foi que, o Estado, de um modo geral, ao acenar

16
Carlos Magno Nazareth Cerqueira. “As políticas de segurança pública do governo
Leonel Brizola.” Revista Arché. Rio de Janeiro, ano 7, n.º 19, 1998.

Miolo.indd 126 8/22/2018 12:24:25 PM


Mario Brum ▪ 127

com a urbanização e refutar a remoção – e nesse ponto o governo


Brizola foi mais enfático –, acabou por gerar um efeito nas favelas que
foi o da melhoria nas casas a partir do momento em que os moradores
de favela passaram a sentir confiança em investir num bem que
permaneceria para o resto da vida e que deixariam para seus filhos e
netos. A troca do barraco pela casa de alvenaria e a expansão vertical
das favelas, surgindo prédios de vários andares nas favelas. Isso fez
ainda com que os antigos laços comunitários fossem ressignificados,
com o aumento populacional nas favelas somado ao cotidiano de
violência que se verificou nos anos seguintes, que a “porta aberta”
foi dando lugar à privacidade do lar. Com o aumento da renda dos
moradores ao longo das últimas décadas, é normal o discurso de
moradores sobre os contrastes entre o exterior das casas, algumas com
tijolo ainda aparente, e com o interior, em geral com bom acabamento.
A terceira ação foi a entrada de diversas lideranças na esfera do
Estado. Dito de outro modo, as favelas “entraram” no Estado, através de
secretarias e do poder Legislativo. Fossem como secretários de Estado,
vereadores ou como agentes comunitários, um grande número de
militantes passou a ocupar cargos no Estado. Por um lado, isso significou
maior capilaridade na atuação do Estado. Por outro, isso refletiu num maior
atrelamento das lideranças e, principalmente, uma perda de autonomia
do movimento comunitário num período em que esse estava com grande
poder de mobilização. As associações passaram a administrar recursos
e programas vindos do Estado, como obras e creches, por exemplo,
tornando-se uma espécie de miniprefeitura nas favelas. Restando uma
questão que persiste nos movimentos sociais em geral: essas lideranças
representavam as favelas no Estado ou o Estado nas favelas?
De forma que o movimento comunitário viveu uma forte mudança
ao longo das décadas de 1980 e 1990. No começo da década de 1980
várias lideranças ligadas à esquerda condenavam o atrelamento da
FAFERJ ao governo e defendiam o papel do movimento comunitário
em conscientizar os moradores para lutarem por profundas mudanças
na sociedade brasileira que, no caso, implicava no fim da ditadura e
na instauração do Estado de Direito, o que significaria, dentro dessa
visão, a possibilidade de permanecerem no local onde viviam e serem
respeitados como cidadãos. Conforme o Estado foi se abrindo para
o atendimento das demandas das favelas e para a participação delas
nos órgãos de Estado, a luta para uma transformação profunda da

Miolo.indd 127 8/22/2018 12:24:25 PM


128 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

sociedade foi sendo posta de lado em detrimento da criação de canais


de atendimento no governo. Ao invés da manifestação de moradores na
porta da secretaria ou do palácio de governo, bastava a mediação entre
uma liderança e uma autoridade para que uma demanda fosse atendida.
A luta pela terra, principal eixo de mobilização do movimento
comunitário nas década anteriores, cede lugar à luta pela
urbanização. Demanda mais imediata, de atendimento relativamente
mais simples e que implica em laços políticos construídos entre
moradores, lideranças comunitárias e autoridades. Desse modo, o
líder mobilizador vai dando lugar ao articulador. As assembleias de
moradores dão lugar ao voto em troca de atendimentos por demandas
particulares de moradores, como uma vaga na creche ou um emprego
numa obra, administrados pela Associação de Moradores. Isso gerou
um esquema político local que sobrevive há décadas, que Chagas
Freitas aprimorou, que Brizola se utilizou e que César Maia, eleito
prefeito em 1992, soube utilizar com maestria.
Contando com as mudanças institucionais da Redemocratização
– como um maior número de atribuições, recursos e poder por parte
das prefeituras –, Cesar Maia institucionalizou as conquistas dos
movimentos sociais dos anos anteriores. Se o apoio da prefeitura
às creches nas favelas era uma forma de atender uma demanda
dos moradores e fortalecer uma iniciativa comunitária, passou-se a
questionar a razão pela qual um equipamento público educacional
seria gerido e financiado pela SMDS ao invés da Secretaria Municipal
de Educação, como era no conjunto da cidade. Afinal, a SMDS seria
uma “prefeitura dos pobres”? Nesse sentido, a SMDS foi reformulada,
ficando a questão das políticas de urbanização para as favelas a
cargo da Secretaria Municipal de Habitação, criada em 1994. Junto
a isso, um enorme aporte de recursos do Banco Interamericano de
Desenvolvimento propiciou a criação do Programa Favela-Bairro, que
consolidou todo avanço institucional e político (principalmente por
parte do movimento comunitário) conquistado no período anterior.

O dilema persiste: o que fazer com a favela?

Consolidada a urbanização como política de Estado, o acesso


do movimento comunitário aos canais de poder e atendidas algumas

Miolo.indd 128 8/22/2018 12:24:25 PM


Mario Brum ▪ 129

demandas básicas em muitas favelas na cidade (água, luz, infraestrutura


urbana mínima) o Favela-Bairro é um programa com características
distintas dos similares anteriores. Em primeiro lugar, porque a
prefeitura insistia, de modo cínico, no caráter técnico na escolha das
favelas a serem contempladas, contrastando com a fase anterior em
que a mobilização comunitária era declaradamente assumida como
um critério. Outra diferença fundamental é que, no contexto de longa
crise das décadas de 1980 e 1990, o maior benefício do programa eram
os empregos que ele gerava localmente, já que grande parte da mão
de obra, remunerada (também ao contrário de similares anteriores),
devia ser contratada entre os moradores.
De forma que se tornou uma tarefa difícil para um militante
comunitário agir nas Associações de Moradores sem seguir essa lógica.
Somado ao poder que o tráfico passou a exercer sobre os territórios
das favelas, tornando-se um centro de poder que regulava o cotidiano
dos moradores e as formas de mobilização comunitária, um fenômeno
forte na década de 1990 é o surgimento de várias Organizações Não
Governamentais (ONGs) criadas por militantes comunitários. Se
anteriormente essas ONGs quase sempre eram iniciativas “externas”
às favelas, diversas lideranças acabaram criando ONGs locais que
serviram como uma forma de retomar uma militância mais autônoma
e com um viés “transformador” da realidade em que viviam.
Outra novidade no Favela Bairro é que esse ocorreu numa
conjuntura em que a favela é vista por parte da sociedade como um
polo irradiador de violência e que, afastada a hipótese de um programa
maciço de remoções, as políticas públicas para as favelas deviam se
orientar em reduzir as tensões entre os dois lados da “cidade partida”,
na expressão consagrada (ainda que não necessariamente verdadeira)
pelo escritor Zuenir Ventura.
Assim, várias ações, do Estado, de ONGs ou de empresas,
investiram (ao menos no discurso) no sentido de promoção da
“cidadania” dos moradores de favela, principalmente os mais jovens,
de modo que tivessem seus direitos reconhecidos e fossem dadas
oportunidade a eles. Isso incluía uma miríade de projetos, ações e
programas que podiam se pautar desde o oferecimento de cursos
profissionalizantes, atividades esportivas e culturais até políticas de
segurança e urbanização que tivessem como fim a redução da violência
e, consequentemente, das tensões entre asfalto e favela.

Miolo.indd 129 8/22/2018 12:24:25 PM


130 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

É nesse sentido que se orientam os diversos programas e ações


nos anos seguintes. De um lado, as favelas continuam a crescer em
números proporcionais e absolutos de acordo com os dados do Censo
IBGE: em 2000, eram 1.092.283 moradores, representando 18,65
% dos habitantes da cidade; passando para 1.393.314, 22,03% da
população em 201017. Permanecendo a questão que Carlos Drummond
de Andrade consagrou numa crônica no Jornal do Brasil, ainda nos
primeiros anos da Redemocratização: “Favela: urbaniza-se? Remove-
se?...”18. Pois, se de um lado a urbanização se consolidara como política
de Estado, por outro, a remoção permanecia como um espectro a
assombrar as favelas cariocas, volta e meia mobilizado por algum setor
da sociedade, principalmente os órgãos de imprensa, em ocasiões de
chuvas fortes e desmoronamentos (1988, 1996, 2010). Nessas ocasiões,
as obras de urbanização e contenção de encostas não poucas vezes
foram descritas pela imprensa e por setores da sociedade como
“políticas populistas” que só incentivavam a expansão das favelas, e
não como direitos de cidadãos de terem bens e vidas protegidos19.
Outro fator que revive o discurso da remoção foram os marcantes
episódios de violência, de repercussão internacional, quando a cidade
viveu dias de terror baseado em ações (reais ou supostas) do tráfico de
drogas, com ônibus e carros incendiados, tiros em prédios públicos e
comércio fechado em vários bairros20.
Ou ainda, quando a expansão urbana para empreendimentos
residenciais ou comerciais destinados às classes de maior poder
aquisitivo fez com que as remoções permanecessem ocorrendo,
sem muito alarde, na Barra da Tijuca, durante a década de 1990,
que extinguiu as favelas Via Parque e Vila Marapendi, em terrenos
localizados à beira das lagoas e ao lado de shoppings-centers.

17
“Rio é a cidade com maior população em favelas do Brasil”: O Globo, 22/12/2011.
18
“Crônica das Favelas Nacionais”: Jornal do Brasil, 06/10/1979.
19
Um exemplo disso, entre os vários possíveis, é a matéria de capa da revista Veja, de
12/04/2010, após as fortes chuvas que o Rio sofreu: “Rio... Do descaso, da demagogia, do
populismo e das vítimas de suas águas” (...). “A maior tempestade da história do Estado
causa centenas de mortes nas favelas e expõe o lado sombrio da política de incentivos à
ocupação ilegal de áreas de risco nos morros”.
20
Alguns exemplos: “Rio refém do medo”, O Globo, 01/10/2002; “Segunda-feira sem
lei”, O Globo, 25/02/2003; “23 dead since Sunday in Brazil slum violence”, ver http://
edition.cnn.com/2010/WORLD/americas/11/25/brazil.rio.violence/index.html (de
25/11/2009, consultado em 08/07/2018).

Miolo.indd 130 8/22/2018 12:24:25 PM


Mario Brum ▪ 131

Conclusão: a democracia incompleta nas favelas cariocas

Ao lado da remoção, o discurso da “guerra ao tráfico” demonstra


que a ditadura assentou fortes raízes nas favelas cariocas e fez com
que seus moradores vivessem o “retorno à democracia” e as décadas
seguintes, literalmente, sob fogo cruzado. De um lado, o tráfico exerce um
violento controle sobre o território, inibindo a organização comunitária,
estabelecendo fronteiras e rivalidades entre favelas de acordo com a
facção dominante e executando moradores e lideranças comunitárias
que divirjam de seu comando; do outro, há uma espécie de carta branca
de setores da sociedade para que a polícia, em nome do combate à
criminalidade, possa desrespeitar os direitos mínimos dos moradores,
inclusive o direito à vida. Nas últimas décadas, os casos de desrespeito
aos direitos humanos de moradores tem ganho maior repercussão,
inclusive o número de mortos, muitos dos quais inocentes, por conta de
ação policial, atinge número recorde de 1.330 em 20/0721. Foi nesse ano
que ocorreu a chamada Chacina do Pan, quando num único dia (27/06)
19 pessoas foram mortas pela polícia durante uma ocupação prolongada
(de maio a julho daquele ano) nos complexos da Penha e do Alemão,
período que coincidiu com os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro.
Considerando ainda que a polícia que mais mata no país é também a que
mais morre, com 134 policiais mortos em 201722.
Começava ali a era dos Grandes Eventos, projeto heterogêneo
em que vários atores (empresários, intelectuais, governos do PT e
PMDB) buscavam configurar o Rio como uma “cidade de eventos”,
“global”, “ambiente seguro de negócios”, dentre outras denominações
que fizeram sucesso ao promoverem a ideia de que, ao sediar eventos
internacionais, o Rio retomaria o caminho de prosperidade e seriam
criadas “oportunidades” e um “legado” para a cidade (as duas palavras
aparecem, respectivamente, 27 e 87 vezes no Dossiê de Candidatura
do Rio à sede olímpica).
Nesse sentido, sacrifícios seriam inevitáveis para que a cidade
pudesse ser organizada e ordenada para atrair e sediar eventos
internacionais, como os Jogos Mundiais Militares de 2011, a II Jornada
21
Ver dado em http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeVio-
lenta.pdf.
22
“No Rio, a polícia que mais mata é também a que mais morre” ver https://brasil.
elpais.com/brasil/2017/04/04/politica/1491332481_132999.html (consultado em
07/07/2018).

Miolo.indd 131 8/22/2018 12:24:25 PM


132 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

Mundial da Juventude em 2013, a final da Copa do Mundo de 2014,


os Jogos Olímpicos de 2016... No caso das favelas, isso significou, em
grande parte, maior controle do território e a volta, com bastante
força, da defesa das remoções. Consolida-se o tripé para justificar
o retorno das remoções na década de 2010: questão ambiental,
violência urbana, ordenamento territorial para adequação da cidade
aos Grandes Eventos, como se vê de forma clara num relatório de
avaliação da política de habitação da prefeitura feito pelo Tribunal de
Contas do Município do Rio, em 2009:

A discussão em torno das favelas vem tomando enormes


proporções e demandando soluções urgentes, seja pela necessidade
de se restaurar áreas legalmente preservadas e degradadas por
um excessivo desmatamento, seja pela crescente violência a que
essas localidades estão sujeitas em razão do difícil acesso do Poder
Público ou pela adequação às exigências do Plano Olímpico para
as Olimpíadas de 2016 23 .

Diferente do período da ditadura, na precária democracia


brasileira os moradores tiveram garantidas algumas alternativas
(como a indenização ou a compra assistida) à remoção compulsória;
bem como maior margem para resistirem às remoções, fosse através
de ações na justiça, manifestações na favela ou na rua, articulações
com a Defensoria Pública, jornalistas, parlamentares, universidades,
técnicos, entre outros. Se no caso da Vila Autódromo, ao lado do polo
central dos Jogos Olímpicos, isso significou uma vitória precária para
as 20 famílias (entre mais de 500) que resistiram no local, em outras
favelas ameaçadas, como a Indiana e a Providência, a permanência de
quase todos os moradores contrastou com a imposição violenta das
remoções na época da ditadura.
Num contexto único desde a Redemocratização, com Lula
na presidência (2003 a 2010), Sergio Cabral (2007 a 2014) como
governador e Eduardo Paes como prefeito (2009 a 2016), o Rio tem
os três níveis de governo em sintonia. Isso garantiu um aporte de
recursos, programas e obras à cidade, principalmente de mobilidade
urbana e urbanização. Junto com as reformas e/ou implantação

23
TRIBUNAL DE CONTAS DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Monitoramento
Programas de Urbanização em Áreas de Baixa Renda. Rio de Janeiro, 2009.

Miolo.indd 132 8/22/2018 12:24:25 PM


Mario Brum ▪ 133

dos equipamentos olímpicos, as obras de mobilidade foram a


justificativa para diversas remoções, principalmente na Baixada
de Jacarepaguá. Já as obras de urbanização se caracterizaram por
grandes intervenções em complexos ou grandes favelas, como
Alemão, Manguinhos, Rocinha... que tinham por eixo a mobilidade
e a integração da favela à cidade, com obras como o Teleférico do
Alemão, marcada por críticas de moradores sobre a sua necessidade,
além de, assim como outras obras ligadas ao PAC Favelas (Programa
de Aceleração do Crescimento, com verbas do governo federal e
apoio do estado), estarem repletas de denúncias de corrupção e
favorecimento às empreiteiras.
Assim como o Programa Minha Casa Minha Vida, programa de
habitação do governo federal, que no Rio de Janeiro se configurou,
sob direção da prefeitura, principalmente num programa de
reordenamento urbano, aos moldes da CHISAM, em que moradores
foram removidos para conjuntos habitacionais na zona oeste, distante
das favelas anteriores e com pouca ou nenhuma infraestrutura, todos
dominados por traficantes ou milicianos24. Ainda no âmbito da
prefeitura, a urbanização se deu em escala mais modesta, através do
Programa Morar Carioca, inicialmente anunciado como um programa
que iria urbanizar todas as favelas em 2020, mas que acabou sendo
esvaziado ainda na gestão de Eduardo Paes.
Nesse contexto, no campo da Segurança Pública, o Estado – em
conjunto com setores da sociedade como grande imprensa e empresários
– cria as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), mais uma tentativa
de equacionar o combate à criminalidade instalada nas favelas cariocas
através do policiamento comunitário, que remonta ao primeiro governo
Brizola com os Postos de Policiamento Comunitário, os Grupamentos
de Patrulhamento de Áreas Especiais de Garotinho (1999-2002), ou o
Mutirão da Paz, de Benedita (2002). Com a primeira UPP criada em
dezembro de 2008 no Santa Marta, as UPPs foram recebidas por grande
apoio midiático e certo entusiasmo da classe média, mas por parte dos
moradores com um misto de esperança e descrença.
Se no começo do programa a promessa de “uma nova polícia”
mais o grande número de investimentos públicos e privados que
acompanhavam, além do alívio pela interrupção dos conflitos e

24
“Na Zona Oeste, milícia domina 38 conjuntos do ‘Minha casa, minha vida’ e até pinta
seu símbolo nos condomínios”. Extra, 26/03/2016.

Miolo.indd 133 8/22/2018 12:24:25 PM


134 ▪ Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos

do domínio do tráfico, foram bem recebidos pelos moradores,


conforme o programa foi se expandindo, não tardou para as UPPs
demonstrarem ser apenas uma nova face da velha polícia, repressora
e violenta, com casos de abusos que iam desde a agressão aos
moradores e as proibições aos bailes funks (que na década de 1990
se consolidara como a principal forma de lazer da juventude das
favelas, e importante motor da economia local), passando aos casos
de morte de moradores por policiais da UPP, como o do pedreiro
Amarildo na Rocinha, em julho de 2013, de repercussão mundial.
Quando a 38ª UPP se instala na Vila Kennedy, em março de 2014,
o programa já está desacreditado por moradores e encontra poucos
defensores na imprensa, com os índices de violência que estiveram
em queda até 2012, aumentando ano a ano, até ser interrompido na
prática no início de 2018.
Um dos efeitos da UPP, junto a arranjos políticos que passam
pelos poderes Executivo e Legislativo, foi a expansão das milícias,
grupos armados surgidos em Jacarepaguá em fins da década de 1980,
compostos, entre outros, por policiais e ex-policiais que têm exercido
o domínio territorial sobre diversas favelas e em diversos serviços
e comércios nelas, como gás, TV a cabo, taxa de segurança etc.,
ameaçando de morte qualquer pessoa que considerem uma ameaça ao
seu domínio, como suspeita-se que foi a razão da morte da vereadora
Marielle Franco, em março de 2018
Ao longo da história das favelas, vemos que a organização
dos moradores e suas diversas formas de resistência foram se
modificando com o tempo. Se as Associações de Moradores e os
mutirões foram essenciais para que as favelas permanecessem no
local e conseguissem, por esforço próprio ou atendidos pelo Estado,
uma infraestrutura mínima, nos tempos atuais, páginas em redes
sociais, apps, cursos de pré-vestibular, entre muitas outras ações, são
as novas formas de os moradores de favela reivindicarem seu direito
à cidade, e como saldo da nossa democracia incompleta, muitas vezes
pelo direito à própria vida.

Miolo.indd 134 8/22/2018 12:24:25 PM


Mario Brum ▪ 135

Referências

BRUM, Mario. Cidade Alta. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.


______. “O povo acredita na gente”: rupturas e continuidades no movimen-
to comunitário das favelas cariocas nas décadas de 1980 e 1990. Dissertação
de mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 2006.
CONNIFF, Michael L. Política urbana no Brasil: a ascensão do populismo
1925-1945. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
DINIZ, Eli. Voto e máquina política – patronagem e clientelismo no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982a.
______. “Favela: associativismo e participação social”. In: BOSCHI, Rena-
to Raul (Org.). Movimentos coletivos urbanos no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar,
1982b.
GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. Rio
de Janeiro: Pallas/Ed. PUC-Rio, 2013.
LIMA, Nísia Trindade. “O movimento de favelados do Rio de Janeiro: políti-
cas de Estado e lutas sociais (1954-73)”. Dissertação de mestrado em Ciência
Política. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1989.
MOURA, Vitor Tavares. Favelas do Distrito Federal. Aspectos do Distrito Fede-
ral. Rio de Janeiro: Sauer, 1943.
NUNES, Guida. Favela: resistência pelo direito de viver. Petrópolis: Vozes,
1980.
PANDOLFI, Dulce; GRYNSZPAN, Mario. A favela fala. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2003.
OLIVEIRA, Anazir Maria de et alli. Favelas e organizações comunitárias. Petró-
polis: Vozes, 1993.
VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela. Do mito de origem à
favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
______. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Miolo.indd 135 8/22/2018 12:24:25 PM

Você também pode gostar