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Pré-Modernismo

Alguns desses grupos místicos eram apoiados por


“coronéis” latifundiários, como o movimento liderado pelo 1
padre Cícero Romão Batista, por exemplo, aliado dos
coronéis não só por ter atraído à fértil região do Cariri ( sul
do Ceará) farta mão-de-obra para trabalhar nas fazendas
locais, mas também porque o misticismo impedia que aquela
gente se revoltasse.
Ainda no final do século, ocorreu, na Bahia, a
Guerra de Canudos (1896 a 1897), na qual milhares de
sertanejos, liderados por Antônio Conselheiro, foram
massacrados pelas armas potentes das tropas federais.
O período compreendido entre 1902 e 1922
caracteriza-se pela convivência de várias correntes e estilos, Cronologia dos fatos históricos: Brasil - 1900 a 1920
com predominância do artificialismo parnasiano.
O Pré-Modernismo não chega a constituir 1902 - Rodrigues Alves é eleito presidente da República.
propriamente uma “Escola Literária”, designa genericamente
esse período, no qual nem tudo era conservadorismo e 1903 - Nomeado para a diretoria-geral da Saúde Pública,
alienação. Embora poucos, alguns escritores procuravam Osvaldo Cruz começa a combater a febre amarela, que, em
interpretar a realidade brasileira, revelar suas tensões e 1902, matou quase mil pessoas no Rio de Janeiro. Muita
posicionar-se diante dos problemas sócio-políticos da época, gente, porém, não aceita o tipo de ação do jovem médico,
antecipando elementos do Modernismo, pelo que foram cuja equipe persegue o mosquito transmissor até dentro das
chamados de pré-modernistas. casas, e ameaça boicotar sua tarefa.
Algumas datas podem servir de balizamento para
esse período: 1904 - Em outubro é aprovada a lei que torna obrigatória a
1902 – publicação de Canaã, de Graça Aranha, e de Os vacinação contra a varíola. Mas explodem revoltas
Sertões, de Euclides da Cunha; populares contra essa medida e, no choque com policiais,
1922 – realização da Semana de Arte Moderna, no teatro várias pessoas morrem. Políticos interessados na
Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro. desestabilização do governo estão por trás dessas
manifestações. O movimento ficou conhecido como Revolta
Contexto histórico da Vacina, um protesto do povo mais contra a opressão,
Enquanto a Europa se prepara para a Primeira contra o alto custo de vida, os desempregos, os rumos da
Guerra Mundial, o Brasil começa a viver, a partir de 1894, República do que contra a vacinação obrigatória.
um novo período de sua história republicana.
Nos primeiros anos da República, o Brasil foi 1906 - Minas Gerais e São Paulo unem-se e começam a
governado por presidentes militares - era a chamada política do café-com-leite. Afonso Pena é eleito presidente
República da espada (1889 a 1894). A ela seguiu-se um da República. Explodem várias greves operárias em São
período caracterizado por presidentes ligados às oligarquias Paulo, Rio de Janeiro e Recife.
rurais, constituídas por cafeicultores de São Paulo e
pecuaristas de Minas Gerais - era a chamada República do 1907 - Uma greve geral nunca vista em São Paulo ( e que foi
café-com-leite (1894 a 1930). Além da “nobreza fundiária”, duramente reprimida pela polícia) une os operários na
que era o sustentáculo do governo civil, exerciam papel reivindicação da jornada de trabalho de oito horas.
político relevante a burguesia industrial (em formação no Rio
e em São Paulo), os profissionais liberais e os militares. 1908 - Em maio, é sancionada a lei do serviço militar
Paralelamente, aumentavam as disparidades entre obrigatório.
as regiões e entre as classes sociais. Os antigos escravos,
que pouco ou nada haviam conseguido desde a Abolição, 1909 - No dia 14 de junho, morre o presidente Afonso Pena.
eram marginalizados, e os imigrantes europeus, que Assume o vice Nilo Peçanha. Carlos Chagas descobre que
chegavam para trabalhar nas lavouras ou nas indústrias é o inseto vulgarmente chamado barbeiro o responsável pela
recém-criadas, eram submetidos a condições de trabalho transmissão de uma moléstia que atinge muita gente da
aviltantes. O Nordeste vivia a estagnação econômica e, já zona rural. Essa moléstia passou a ser conhecida como
desde as últimas décadas do Império, bandos de doença de Chagas.
cangaceiros assaltavam propriedades dos “coronéis”.
As secas, que se repetiram de 1877 a 1915, 1910 - o marechal Hermes da Fonseca é eleito presidente
levaram à morte milhares de sertanejos (só na grande seca da República. Em novembro, mais de dois mil marinheiros,
de 1877 a 1879 morreram mais de trezentos mil). Aqueles liderados por João Cândido, rebelam-se contra os maus-
que não ingressavam no cangaço eram facilmente tratos que recebiam dos oficiais, especialmente contra o uso
arregimentados na formação de seitas místicas, lideradas da chibata (Revolta da Chibata), e exigem a abolição dos
por beatos ou conselheiros, tornando-se fanáticos, pela castigos físicos. Para pressionar o governo, eles tomam
desesperança e crença numa solução divina para males alguns oficiais como reféns e mantêm o Rio de Janeiro sob a
que, na verdade, tinham origem econômica. mira dos canhões da Armada. Negociada uma solução, a
revolta termina em paz, mas vários líderes, alguns meses geralmente destacados como lugares bucólicos, onde
depois, acabam presos e desaparecem. homem e natureza viviam em comunhão, agora são tratados
como representação do atraso brasileiro. Da mesma foram,
1912 - Eclosão da Guerra do Contestado, conflito armado os personagens que figuram nessas produções estão muito
ocorrido na região situada entre os estados de Santa distantes dos modelos assumidos em estéticas anteriores: o
Catarina e Paraná. Os camponeses, liderados por José sertanejo não é mais servil e ordeiro; o suburbano não é
Maria, que se dizia profeta, iniciam um movimento mais alegre e expansivo; o caipira não é mais saudável e
messiânico de acentuado teor político e social. O movimento trabalhador. A imagem que essas personagens passam a
é sufocado pelo general Setembrino de Carvalho. A maioria representar liga-se à decadência, ao desmazelo, à
dos camponeses morre em combate e os sobreviventes são ignorância.
fuzilados. A guerra terminará em 1916. Essa literatura que tematiza habitantes e ambientes
de determinadas regiões, pode ser considerada regionalista. 2
1913 - Os operários realizam comícios com a presença de Mas, é bom que se perceba, trata-se de um regionalismo
milhares de pessoas, protestando contra a carestia, os crítico, bastante diferente, por exemplo, da idealização
baixos salários e as péssimas condições de trabalho. A romântica.
jornada de trabalho ainda é, em média, 14 horas diárias. Na visão dos representantes dessa corrente, a
literatura tinha uma missão a cumprir como instrumento de
1914 - No dia 28 de julho, começa a Primeira Guerra denúncia social, explicitando as razões do mesmo atraso,
Mundial. discutindo alternativas para ele. O progresso e o
No dia 8 de outubro, agitações operárias fazem o cosmopolitismo que caracterizavam a auto-imagem de
presidente Hermes da Fonseca decretar estado de sítio no cidades como Rio de Janeiro e São Paulo eram
Rio de Janeiro. Em novembro, toma posse o novo contrapontos ao subdesenvolvimento e à miséria estrutural
presidente Venceslau Brás. de vastas regiões nacionais – nem sempre muito distantes
dos centros populosos, como mostram as obras tematizando
1917 - Explode uma greve operária em São Paulo, o caipira e o morador dos subúrbios cariocas.
envolvendo 70 mil trabalhadores. Nos conflitos de rua, a Formalmente, os pré-modernistas caracterizar-se-
polícia mata um jovem operário. Em represália aos ataques ão por uma linguagem oscilante: expressões eruditas,
alemães a navios brasileiros, o Brasil declara guerra à francamente influenciadas pelo Parnasianismo, convivem
Alemanha. Ocorre, nesse ano, a Revolução Russa. com um vocabulário mais livre e popular, que tenta
influenciar como registro de expressões regionais. Pode-se
1918 - Em março Rodrigues Alves é eleito presidente. entender essa prática como uma ponte de ligação entre a
Doente, não chega a assumir o cargo em novembro. O vice linguagem dicionaresca e cientificista do século XIX e
Delfim Moreira assume interinamente. No dia 11 de aquela, mais despojada, que caracteriza a arte moderna do
novembro termina a Primeira Guerra Mundial. século XX. De certa forma, essa oscilação reflete ainda um
contato crescente entre as culturas popular e erudita.
1919 - A 16 de janeiro, morre Rodrigues Alves. Em abril, Essa prática não chegou a constituir em escola, estruturada
Epitácio Pessoa é eleito presidente. Explodem greves e organizada em um programa estético definido. o Pré-
operárias em todo o país. O governo fecha jornais e expulsa Modernismo é, mais que um fato artístico, um momento
trabalhadores estrangeiros acusados de agitadores. importante do desenvolvimento das letras brasileiras. É um
momento de transição.
1920 - O recenseamento desse ano revela nossa população:
30,6 milhões de habitantes. As cidades mais populosas são: Características do Pré Modernismo:
Rio de Janeiro - 1,15 milhão; São Paulo - 580 mil; Salvador -
283 mil. O número de operários é aproximadamente, de 800 Embora houvesse conservadorismos, os pré-
mil. modernistas apresentam uma ruptura com o passado,
com o academicismo; a linguagem de Augusto dos Anjos,
O Contexto e a Literatura com palavras “não poéticas”, como escarro, cuspe, vômito,
vermes, era uma afronta à poesia parnasiana ainda em
As transformações sociais da passagem do século, vigor;
experimentadas no Brasil, influenciaram a literatura, A denúncia da realidade brasileira, negando o
tornando-a social, comprometida com nossa realidade. Brasil do Romantismo e do Parnasianismo; O Brasil não-
Podemos falar mesmo em uma redescoberta do Brasil pela oficial do sertão nordestino, dos caboclos interioranos,
literatura. Um Brasil que, na verdade, sempre tinha existido, dos subúrbios, é o grande tema do Pré-Modernismo
mas que fora até então presença excessivamente reduzida (Euclides da Cunha traz à luz, pela primeira vez em nossas
na literatura. letras, as verdadeiras condições de vida do Nordeste)
Essa redescoberta pode ser notada a partir da O regionalismo, montando-se um vasto painel
renovação temática que se opera no âmbito literário. A brasileiro: o Norte e o Nordeste com Euclides da Cunha; O
preocupação com a realidade nacional ocupa não apenas as Vale do Paraíba e o interior paulista com Monteiro Lobato; e
obras de ficção, mas também os ensaios e comentários o Espírito Santo com Graça Aranha; o subúrbio carioca com
eruditos, que ganharam grande impulso na época. Lima Barreto.
Um aspecto comum a essa produção intelectual é a Os tipos humanos marginalizados: o sertanejo
crítica às instituições, tomadas como elemento de nordestino, o caipira, os funcionários públicos, os mulatos.
cristalização e acomodação de uma estrutura de poder que Uma ligação com fatos políticos, econômicos e
resulta na cegueira às reivindicações de vastas camadas da sociais contemporâneos, diminuindo a distância entre a
população brasileira. realidade e a ficção.
No terreno da ficção, ambientes antigos são Houve, portanto, uma espécie de “descoberta do Brasil”,
explorados agora de forma a evidenciar seus aspectos mais principal herança desses autores ao movimento modernista
tristes e pobres. O sertão, o interior, os subúrbios que já iniciado em 1922.
apareciam antes em romances românticos e realistas,
A descoberta do Brasil não oficial foi, dessa forma., reestabelecimento da monarquia. Em 4 de agosto desse
o grande mérito da prosa modernista. Por meio dela, o mesmo ano, partiu para Canudos como correspondente do
nacionalismo crítico e progressista conseguiu exprimir-se, jornal O Estado de São Paulo. Lá pôde presenciar os
combatendo o nacionalismo conservador oficial, que, à últimos momentos da resistência dos sertanejos e redigiu o
análise dos problemas sociais, preferia o palavreado Diário de uma expedição, base do que viria a ser sua obra
pomposo sobre a “grandiosidade da pátria”. Os tipos principal, Os Sertões. Pôde, principalmente, conhecer a
humanos marginalizados, como o sertanejo nordestino, o realidade do sertão e da vida das populações assoladas pela
habitante dos subúrbios cariocas, o “caipira” paulista, miséria e pelo desamparo oficial. Instalando-se depois em
ganharam espaço nas obras literárias – e com eles as São José do Rio Pardo, onde dirigiu as obras de restauração
realidades de que faziam parte. O Brasil encontrou-se com de uma ponte. Aí encontrou tempo e tranquilidade para
os diferentes “Brasis” nesse trabalho de investigação e escrever, a partir de estudos sobre a realidade nacional e
análise da realidade nacional das observações feitas quando da ida a Canudos, Os 3
Ao lado dessa renovação temática, o Pré- Sertões, livro básico para a revelação e interpretação da
Modernismo produziu também uma renovação na linguagem realidade nacional, publicado em 1902 e imediatamente
literária, enriquecida pela incorporação de elementos de reconhecido pelo seu valor crítico, documental e literário.
origem muito diversas: enquanto alguns autores optaram Além de Os Sertões, Euclides escreveu Contrastes
pela poetização da linguagem científica, outros preferiam a e confrontos, Relatório sobre o Alto Purus e Peru Versus
utilização de regionalismos, de formas da linguagem popular Bolívia. Postumamente foram publicados À margem da
ou de um estilo simples e despojado, capaz de aproximar a história e Canudos, diário de uma expedição. Também foram
literatura da linguagem jornalística. recolhidos e publicados postumamente alguns poemas e
crônicas e outros estudos e ensaios do autor.
Principais autores e obras Embora apresente uma visão de mundo
profundamente determinista ( no prefácio de Os Sertões cita
1) Euclides da Cunha - Os Sertões; Contrastes e Hypolite Taine, o "pai do determinismo" ), cientificista e
confrontos ,etc. naturalista, Euclides da Cunha deve ser estudado como um
pré-modernista, pela denúncia que faz da realidade
2) Augusto dos Anjos (1884-1914) Eu (poesia) brasileira, trazendo à luz, pela primeira vez em nossas
letras, as verdadeiras condições de vida do nordeste
3)Graça Aranha - Canaã brasileiro. Daí o caráter revolucionário de Os Sertões.
Passados vários anos de sua publicação, Os
4)Lima Barreto - Triste Fim de Policarpo Quaresma, Sertões, obra prima de Euclides da Cunha, continua sendo
Recordações do Escrivão Isaías Caminha; Numa e Ninfa; o melhor e mais complexo retrato do agreste inóspito, de sua
Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá; Bagatelas; Os gente sofrida, da etnia complexa, das crenças e tradições
Bruzundangas; Clara dos Anjos , etc. nordestinas.
Divide-se a obra em três partes: a Terra, O homem
5)Monteiro Lobato - Urupês, Cidades Mortas, Negrinha, e A Luta.
Ideias de Jeca Tatu, Reinações de Narizinho, etc

1. Euclides da Cunha

Vejamos alguns pontos sobre cada parte:

1. A Terra
Dados biográficos do autor
Levantamento geomorfológico, que começa por um
apanhado geral do Sul, indo em direção do Nordeste e
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em
parando, em particular, na região Monte Santo ( Canudos),
Cantagalo, Rio de janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866.
nos vales dos rios Vasa- Baris e Itapicurus, no Nordeste
Morreu num duelo no Rio de janeiro em 15 de agosto de
baiano. Com extremo rigor técnico, descreve o local da
1909. Desde cedo, foi abolicionista e republicano, como se
Guerra de Canudos, resgatando a fauna, a flora, o clima, o
pode perceber pela leitura de seus poemas adolescentes.
relevo, etc. destaca o papel do homem como “agente
Cursou Engenharia na Escola Militar de Praia Vermelha, de
geológico de destruição” que, através do uso e prática
onde foi expulso em 1888, por ter ofendido o ministro da
indevida de exploração, arrasa com a paisagem regional. O
Guerra do Império, numa comemoração cívica. Foi para São
apurado estilo do escritor consegue conferir vida à
Paulo, onde passou a escrever para o jornal A Província de
natureza, mesmo nos momentos mais árduos de descrição
São Paulo ( que se chamaria O Estado de São Paulo a partir
técnico-científica. Ela se transforma, assim em uma
de 1889). Após a Proclamação da República, foi reintegrado
personagem da história. Essa natureza, ferida pelo homem,
ao exército e cursou Artilharia e Engenharia na Escola
parece preparar o cenário da luta que ali se travaria.
Superior de Guerra. Em 1896 desligou-se da vida militar. No
ano seguinte, quando o confronto entre as tropas federais e
2. O Homem
os sertanejos de Canudos se tornou mais agudo, Euclides
Dissertação sobre o sertanejo, iniciada com o
publicou dois artigos em O Estado de São Paulo,
estabelecimento dos três componentes étnicos formadores
expressando sua adesão à crença então disseminada de
do mestiço brasileiro ( índio, branco e negro, originando o
que havia no sertão baiano um levante pelo
mameluco, o cafuzo, o mulato). A particularização do euclidiano. Até mesmo o uso das antíteses e paradoxos,
sertanejo leva o escritor a criar uma definição que ficou muito frequentes no livro, visa a essa intensificação: afinal o
famosa: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Assim contraste é uma forma de destacar, de acentuar. Usa uma
tentava dar conta de um aspecto intrigante da figura do adjetivação enfática, que é um elemento fundamental na
homem nordestino: a respeito de seu raquitismo e de seu construção do sentimento de dramaticidade que o texto
atraso, conseguiu transformar sua fraqueza em força. Dessa consegue transmitir: o livro convence-nos de que há um
forma Euclides explicava a arraigada resistência dos grande acontecimento histórico em pleno desenvolvimento,
habitantes de Canudos às investidas militares. conferindo-lhe uma dimensão épica.
A representação do nordestino é dada a partir dos
moradores de Canudos. Mas o livro particulariza a figura de 2. Augusto dos Anjos
Antônio Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, líder dos
revoltosos. Considerado um homem santo por seus 4
seguidores, é descrito por Euclides da Cunha como um
místico que conseguiu congregar os anseios daquela
população miserável, prometendo-lhes um paraíso.

3. A Luta
Esta é a parte mis importante do livro. As duas
anteriores funcionam como preparação para a narração da
batalha envolvendo os habitantes do arraial de Canudos e
as autoridades militares, temerosas daquilo que viam como Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu
um “foco monarquista”. no Engenho Pau d’Arco, município de Cruz do Espírito
O escritor, que fora até a Bahia, convencido pela Santo, Paraíba, em 20 de abril de 1884. Faleceu em
propaganda oficial de que a revolta não passava de um Leopoldina, Minas Gerais, em i2 de novembro de 1914. Foi
levante monarquista, percebeu que as causas mais inicialmente educado pelo pai bacharel. Cursou Direito em
profundas da Guerra estavam relacionadas ao descaso com Recife. Publicou várias obras em jornais da Paraíba. Com a
que os governos tinham tratado aquela população, cujas ruína financeira e posterior venda do engenho, mudou-se
necessidades básicas de sobrevivência jamais tinham sido para a capital paraibana e depois para o Rio de Janeiro,
satisfeitas. vivendo sempre como professor de Literatura. Em 1914 foi
Na narrativa, transparece o espanto do autor com a nomeado diretor de um grupo escolar em Leopoldina, onde
grandiosidade do arraial de canudos, que chegou a ter cerca veio a falecer poucos meses depois de assumir o cargo.
de 30.000 habitantes, todos eles ( inclusive velhos e Augusto dos Anjos em parceria com o irmão Odilon,
crianças) empenhados na defesa da terra e de seu santo. A custeou a primeira edição de seu livro de poemas Eu, em
resistência às sucessivas expedições militares para sufocar 1912. Posteriormente, a obra foi publicada com o acréscimo
a revolta também impressionou Euclides da Cunha. É com de outros textos.
indignação que o escritor registra o massacre final da Poeta original de grande vigor expressivo, cujo
população, finalmente submetida a um número avassalador ecletismo permite classificá-lo como um poeta de
e muito superior de combatentes militares. Ao longo da confluências, ou ainda de transição, entre o estilo
narrativa, além disso, suas críticas às falhas estratégicas do oitocentista e a modernidade.
Exército são frequentes.
O livro é, acima de tudo, uma denúncia ao Um poeta sincrético
subdesenvolvimento brasileiro. Euclides da Cunha opõe o
litoral superdesenvolvido e progressista ao sertão atrasado e O livro, Eu, vai contra todos os parâmetros artísticos
sem perspectivas. Para ele, este último representa a face aceitos na época, mesmo dentro do Pré-Modernismo, cujos
mais genuína do Brasil, já que teria escapado das autores guardam como aspecto comum de suas obras a
influências estrangeiras sofridas pelas populações tematização dos problemas nacionais, feita de forma crítica,
litorâneas. O fim de Canudos é visto como um verdadeiro denunciando o subdesenvolvimento, quase sempre
suicídio da nação brasileira. colocando em contraste com uma imagem de modernização
Seu estilo reflete sua erudição: aproxima vocábulos que tentava se imprimir ao país, e particularmente a cidades
populares com uma terminologia especializada. A linguagem do porte de São Paulo e Rio de Janeiro.
grandiloquente permite tratar a obra como uma epopeia Augusto dos Anjos destoa desse quadro. Em
brasileira. Seu estilo tortuoso e rebuscado recebeu da crítica primeiro lugar, por ser poeta, quando todos os outros
a classificação de “barroco científico”. trabalhavam basicamente com a prosa. Em segundo lugar,
por não apresentar a mesma temática nacionalista. Em sua
obra, o tema da humanidade, é focalizado em sua
O contraste entre as duas realidades era tão violento que os
decadência e podridão.
soldados, oriundos das regiões mais desenvolvidas do país,
Mas o que chama a atenção em sua poesia é a
experimentavam a sensação de estar num território
forma de tratamento desse tema. Associando a decadência
estrangeiro.
moral e espiritual à degenerescência material e física.
Augusto dos Anjos trata do corpo em putrefação. Seus
temas mórbidos passam por retratos de pessoas mortas,
Estilo do autor visões minuciosas de vermes em atividade, ações
destruidoras de doenças, a angústia, o medo, a solidão, o
• Vocabulário farto e raro e muitas vezes proveniente determinismo biológico, etc.
da linguagem científica; A linguagem, inusitada e surpreendente, mistura
• Utilização magistral das diversas possibilidades termos coloquiais a um vocabulário técnico, arrancado às
sintáticas da língua- Euclides constrói frases que oscilam da ciências naturais, criando uma expressividade que desperta
brevidade jornalística à complexidade barroca. no leitor um misto de estranheza e encantamento.
• Tendência à intensificação, ao engrandecimento do Pode-se falar em um estilo sincrético, porque ele
que se descreve ou narra – Este é o principal traço do estilo dialoga muito particularmente com diversas concepções
artísticas, adotando alguns e rejeitando outros. Do “Vou mandar levantar outra parede...
Parnasianismo, por exemplo, recusa a ideia de que alguns Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
assuntos não merecem tratamento artístico; mas segue E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
o rigor formal típico da escola (dando preferência ao soneto, Circularmente sobre minha rede!
e explorando rimas raras). Absorve a musicalidade do Pego de um pau. Esforços faço. Chego
Simbolismo, mas não aceita a espiritualidade e a temática A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
abstrata deste. Mesmo em relação aos pré-modernistas, Que ventre produziu tão feio parto?!
seus contemporâneos, apresenta diferenças: busca novos
parâmetros literários, como eles, mas não vai buscá-los na A Consciência Humana é esse morcego!
crítica social e na literatura de denúncia. Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Diante de tal sincretismo, fica difícil a classificação Imperceptivelmente em nosso quarto!
estilística de Augusto dos Anjos. Acrescente-se mais um 5
elemento complicador: suas imagens grotescas e suas Versos Íntimos
descrições deformadoras aproximam-no do Expressionismo,
concepção artística originalmente ligada à pintura, mas que Vês! Ninguém assistiu ao formidável
se manifestou ocasionalmente em literatura. Enterro de tua última quimera.
somente a ingratidão - essa pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Leitura e análise
Acostuma-te à lama que te espera!
Psicologia de um Vencido O homem, que, nesta terra miserável,
Eu, filho do carbono e do amoníaco, Mora, entre feras, sente inevitável
Monstro de escuridão e rutilância, Necessidade de também ser fera.
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
Profundissimamente hipocondríaco, A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Que escapa da boca de um cardíaco. Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”
Já o verme - este operário das ruínas- (Augusto dos Anjo)
Que o sangue podre das carnificinas
Come e a vida em geral declara guerra, 3. Monteiro lobato

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há-de deixar-me apenas cabelos
Na frialdade inorgânica da terra.

Vítima do Dualismo

Ser miserável dentre os miseráveis


Carrego em minhas células sombrias José Bento Monteiro Lobato nasceu em Taubaté,
Antagonismos irreconciliáveis Estado de São Paulo, em 18 de abril de 1882. Após os
E as mais opostas idiossincrasias! primeiros estudos em sua cidade natal, matricula-se, em
1900, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco,
Muito mais cedo do que o imagináveis tornando-se um dos integrantes do grupo literário do
Eis-vos, minha alma, enfim, dadas às bravias Minarete. Nessa época, inicia suas atividades junto à
Cóleras dos dualismos implacáveis imprensa. Formado, exerce a promotoria pública em Areias,
E à gula negra das antinomias! na região do Vale do Paraíba. Em 1911, herda de seu avô
uma fazenda, passando a dedicar-se à agricultura. Três
Psique biforme, o Céu e o Inferno absorvo... anos depois, um acontecimento definiria a carreira literária
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa, de Lobato: durante o inverno seco daquele ano, cansado de
Feita dos mais variáveis elementos, enfrentar as constantes queimadas praticadas pelos
caboclos, o fazendeiro escreve uma “indignação” intitulada
Ceva-se em minha carne, como um corvo, “Velha praga” e a envia para a seção Queixas e
A simultaneidade ultra-monstruosa Reclamações do jornal O Estado de S. Paulo. O jornal,
De todos os contrastes famulentos! percebendo o valor daquela carta, publica-a fora da seção
destinada aos leitores, no que acerta, pois a carta provoca
polêmica, estimulando Lobato a escrever outros artigos,
O Morcego como por exemplo “Urupês”, e a criar seu famoso
personagem Jeca Tatu. A partir daí, os fatos se sucedem:
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Lobato vende a fazenda, publica Urupês, seu primeiro livro,
Meu Deus! E este morcego! E, agora vede: funda a Editora Monteiro Lobato & Cia., a primeira editora
Na bruta ardência orgânica da sede, nacional, e, mais tarde, a Companhia Editora Nacional e a
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. Editora Brasiliense, esta em 1944.
De 1927 a 1931, Lobato vive em Nova York, nos
Estados Unidos, como adido comercial. Admirado com a
exploração dos recursos minerais, ao retornar ao Brasil,
fundou o Sindicato do Ferro e a Cia. Petróleos do Brasil, infantil lobatiana, além do caráter moralista e pedagógico,
passando a enfrentar a fúria das grandes empresas não abandona a luta pelos interesses nacionais
multinacionais e os “obstáculos” impostos pelo governo empreendida pelo autor, com personagens representativos
brasileiro. Dessa situação, resultou outra “indignação” de das várias facetas de nosso povo e o Sítio do Picapau
Lobato: o livro-denúncia O escândalo do petróleo, publicado Amarelo, que é a imagem do próprio Brasil. Por exemplo, O
em 1936, em que o autor afirma: “O petróleo está hoje poço do Visconde, em que a ficção e a realidade se
praticamente monopolizado por dois imensos trusts, a misturam em torno do problema do petróleo.
Standard Oil e a Royal Dutch & Shell – Rockefeller e
Deterding. Como dominaram o petróleo, dominaram também
as finanças, os bancos, o mercado do dinheiro; e como CARACTERÍSTICAS DA OBRA
dominaram o dinheiro, dominaram também os governos e as
máquinas administrativas. Essa rede de dominação constitui 1. Espaço 6
o que chamamos os Interesses Ocultos.” Os contos Urupês e Cidades mortas são, em sua
Nesse livro, expõe ao leitor como a máquina do quase totalidade, ambientados em Itaoca, uma cidadezinha
calamitoso Ministério da Agricultura “trabalhou” e “trabalha qualquer que simboliza o interior do estado de São Paulo,
bem” dentro do espírito de “não tirar petróleo, nem deixar principalmente o Vale do Paraíba, na época da decadência
que o tirem”, para concluir com a famosa frase de da lavoura cafeeira.
Shakespeare: “ Há algo de podre no reino da Dinamarca”.
Sua luta prosseguiria até 1941, quando foi condenado pela 2. Personagem
ditadura de Vargas a seis meses de detenção. Nos últimos Nesse espaço decadente, aparece o caipira
anos de sua vida, colaborou com artigos em jornais subnutrido, vivendo na miséria, na ignorância, no desânimo.
brasileiros e argentinos. Faleceu em 5 de julho de 1948, em Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome
São Paulo. de carne onde se resumem todas as características da
Monteiro Lobato é estudado como um pré- espécie.
modernista por duas características fundamentais de sua Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu
obra de ficção: o regionalismo e a denúncia da realidade primeiro movimento, após prender entre os lábios a palha de
brasileira. No entanto, no plano puramente estético, Lobato milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada
assumiu posições antimodernistas, como bem atesta seu d’esguicho, é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares.
artigo sobre a exposição de Anita Malfatti em 1917, intitulado Só então destrava a língua e a inteligência.
“Paranóia ou mistificação?”, por meio do qual critica a (Urupês)
pintura “caricatural” da artista. Esse artigo desempenhou
importante papel na história do Modernismo brasileiro, ao 3. Linguagem
reunir, na defesa de Anita, Mário de Andrade e Di Uma das lutas constantes de Monteiro Lobato foi
Cavalcanti, revoltados com o conservadorismo de Lobato, pelo emprego de uma linguagem próxima da coloquial.
avesso à verdadeira revolução artística que se iniciava em Observa-se ainda a incorporação à linguagem literária de
terras paulistas e resultaria na Semana de Arte Moderna. ternos e expressões típicas da fala regional.
Lobato confessa que, durante a Semana, isolou-se jogando
xadrez nas praias do Guarujá. “- Diabo! A mó que é o Joli do Pedro Surdo?” e
A partir de 1915, seus artigos na imprensa com uma pedra o espanta. “Sai porquera! Não ouve o
aumentam-lhe a popularidade e o prestígio, que se carro? Não tem medo de morrê masgaiado?”
solidificam entre 1918 e 1921 com a publicação dos livros de (Cidades mortas)
contos Urupês, Ideias de Jeca Tatu, Cidades Mortas e
Negrinha. A partir de 1921, dedica-se à tarefa de editor, Trecho do conto – Negrinha
preocupado em lançar novos atores; de 1930 em diante,
volta-se para possíveis soluções econômicas para o Brasil, A excelente Dona Inácia era mestra na arte de
relacionadas à exploração de nossos recursos minerais. judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de
Como regionalista, o autor nos dá a dimensão exata escravos – e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o
do vale do Paraíba, no início do século XX, sua decadência bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime –
após a passagem da economia cafeeira, seus costumes e essa indecência de negro igual a branco e qualquer
sua gente, tão bem retratados nos contos de Cidades coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha: uma mucama
mortas. E nesse aspecto - a gente do Vale do Paraíba – assada no forno porque se engraçou dela o senhor; uma
está o traço mais importante da ficção lobatiana: a descrição novena de relhos porque disse: “Como é ruim a sinhá”...
e a análise do tipo humano característico da região, o O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas
caboclo Jeca Tatu, a princípio chamado de vagabundo e não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa
indolente. Só mais tarde, o autor toma consciência da para remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
realidade daquela população subnutrida, socialmente - Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres
marginalizada, sem acesso à cultura, acometida de toda a bem fincados.
sorte de doenças endêmicas. O preconceito racial e a Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá, e de
situação dos negros, após a abolição, foi outro tema quando em quando, vinha um castigo maior para desobstruir
abordado pelo autor de Negrinha. As personagens são o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com
gordas senhoras que, num falso gesto de bondade, aquela história do ovo quente.
“adotavam” menininhas negras para escravizá-las em Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato
trabalhos caseiros. de Negrinha – coisa de rir – um pedacinho de carne que ela
Ao lado da chamada literatura adulta, Monteiro vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta
Lobato deixou extensa obra voltada para o público infantil, – e atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos
justamente um campo até então mal explorado em nossas os dias.
letras. Seu primeiro livro para crianças foi publicado em -“Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste – e
1921, com o título A menina do narizinho arrebitado, mais foi contar o caso à patroa. Dona Inácia estava azeda,
tarde rebatizado como Reinações de Narizinho. A literatura necessitada de derivativos. Sua cara iluminou-se.
-Eu curo ela! Disse – e desentalando do trono as capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser
banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a ruflar as delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de
saias. Itaoca!...
_ Traga um ovo. João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou
Veio o ovo. Dona Inácia mesma pô-lo na água a a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela
ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da madrugada botou-as num burro, montou seu cavalo magro e
tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos partiu.
contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a - Que é isso João? Para onde se atira tão cedo,
um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. assim de armas e bagagens?
Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou: - Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei
_ Venha cá! que Itaoca chegou mesmo ao fim.
Negrinha aproximou-se. - Mas, como? Agora que você está delegado? 7
_ Abra a boca! - Justamente por isso. Terra em que João Teodoro
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os chega a delegado, eu não moro. Adeus.
olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água E sumiu.
“pulando” o ovo e zás! Na boca da pequena. E antes que o
urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o 5. Graça Aranha
ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz.
Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber
aquilo. Depois:
_Diga nomes feios aos mais velhos outra vez,
ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o
trono, a fim de receber o vigário que chegava.
__ Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta
vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária –
mas que trabalheira me dá!
_ A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, José Pereira da Graça Aranha nasceu no
minha senhora, murmurou o padre. Maranhão, em 1868. É um autor que nos interessa apenas
_ Sim, mas cansa... por um livro: Canaã, romance de tese que retrata a vida em
_ Quem dá aos pobres empresta a Deus. uma colônia de imigrantes europeus no Espírito Santo. Tudo
_ A boa senhora suspirou resignadamente. gira em torno de dois personagens imigrantes alemães com
_ Inda é o que vale... diferentes visões de mundo: enquanto Milkau acredita na
Monteiro Lobato humanidade e pensa encontrar a "terra prometida" (Canaã)
no Brasil, Lentz não se adapta à realidade brasileira,
voltando que era para a superioridade germânica e para a lei
Um homem de consciência do mais forte. Ou, como afirma Alfredo Bosi:
Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e "É o contraste entre o racismo e o universalismo,
modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um entre a 'lei do amor” que polariza ideologicamente, em
defeito apenas: não dar o menor valor a si próprio. Para Canaã, as atitudes do imigrante europeu diante de sua nova
João Teodoro, a coisa de menor importância no mundo era moradia."
João Teodoro.
Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de 4. Lima Barreto
vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem
sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava com aperto de
coração o desaparecimento visível de sua Itaoca.
- Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já
teve três médicos bem bons - agora só um e bem ruinzote.
Já teve seis advogados e hoje mal há serviço para um
rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos
bate mais por aqui. a gente que presta se muda. Fica o
restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...
João Teodoro entrou a incubar a ideia de também Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de
mudar-se, mas para isso necessitava dum foto qualquer que Janeiro, a 13 de maio de l881; seu pai era português e sua
o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mãe, escrava. Lima Barreto deve ser estudado como um
mesmo conserto ou arranjo possível. pré-modernista por sua visão da realidade brasileira: é
- É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar consciente de nossos verdadeiros problemas, ao mesmo
que Itaoca não vale mais nada de nada, então arrumo a tempo que critica aquele nacionalismo ufanista, exagerado,
trouxa e boto-me fora daqui. utópico, herança romântica.
Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação Por outro lado, o estilo de Lima Barreto, tão duramente
de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a criticado pelos ainda parnasianos de sua época, é outro
notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ponto de contato com o Modernismo: é leve, fluente,
ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser propositadamente frouxo para os padrões do final do século
nada, não se julgava capaz de nada... XIX. Aproxima-se da linguagem jornalística, estilo que faria
Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa escola entre vários autores, após 1922.
seriíssima. Não há cargo mais importante. É o homem que A leitura do romance Triste fim de Policarpo
prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à Quaresma já nos situa no universo de Lima Barreto, com os
alvos a serem atingidos, numa mistura saudável de crítica,
análise e humor. O tema central do livro é o nacionalismo, o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério,
nacionalismo absurdo, porém honesto, dessa figura grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou
quixotesca que é Policarpo Quaresma; um nacionalismo administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o
perigoso, quando manipulado por mãos férreas, como as do patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do
marechal Floriano Peixoto. Lançado em 1911, o livro é uma Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para
profecia sobre os regimes autoritários nazifacistas que depois então apontar os remédios, as medidas progressivas,
ganhariam corpo a partir da década de 1930: para com pleno conhecimento de causa.
engrandecer a pátria, só um governo forte, ou mesmo a Não se sabia bem onde nascera, mas não fora
tirania. decerto em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no
Lima Barreto critica a educação recebida pelas mulheres, Pará. Errava quem quisesse encontrar nele qualquer
que eram preparadas apenas para o casamento (o regionalismo; Quaresma era antes de tudo brasileiro. (...)
romancista foi uma das primeiras vozes a defender o voto Logo aos dezoito anos quis fazer-se militar; mas a 8
feminino); critica também a República, que nos levou à junta de saúde julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu, mas
ditadura de Floriano Peixoto, bem como o exagerado não maldisse a pátria. O ministério era liberal, ele se fez
militarismo em nossa política. conservador e continuou mais do que nunca a amar a “terra
Em todos os seus romances, percebe-se um traço que o viu nascer”. Impossibilitado de evoluir-se sob os
autobiográfico: suas experiências aparecem projetadas em dourados do Exército, procurou a administração e dos seus
alguns personagens, principalmente negros e mestiços, que ramos escolheu o militar.
sofreram o preconceito racial. Além de seu valor como Era onde estava bem. No meio de soldados, de
romancista, Lima Barreto nos oferece um retrato perfeito dos canhões, de veteranos, de papelada içada de quilos de
subúrbios cariocas e de sua população, como um autêntico pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia,
cronista. aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de
vitória, de triunfo que é bem o hálito da Pátria.
Texto para leitura (Lima Barreto)

O nacionalismo de Policarpo Quaresma

(fragmento do primeiro capítulo de Triste fim de Policarpo


Quaresma)

Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais


conhecido por Major Quaresma, bateu em casa às quatro e
quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso
acontecia. Saindo do Arsenal da Guerra, onde era
subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas,
comprava um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria
francesa.
Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora,
de forma que, às três e quarenta, por aí assim, tomava o
bonde, sem erro de um minuto, ia pisar a soleira da porta de
sua casa, numa rua afastada de São Januário, bem
exatamente às quatro e quinze, como se fosse uma aparição
de um astro, um eclipse, enfim um fenômeno
matematicamente determinado, previsto e predito.
A vizinhança já lhe conhecia seus hábitos e tanto,
na casa do capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí
pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona gritava
à criada: “Alice, olha que são horas; o Major Quaresma já
passou.”
(...)
Estava num aposento vasto, com janelas para uma
rua lateral, e todo ele era forrado de estantes de ferro.
Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as
pequenas com os livros de maior tomo. Quem examinasse
vagarosamente aquela grande coleção de livros havia de
espantar-se ao perceber o espírito que presidia a sua
reunião.
Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tipos
como tais: o Bento Teixeira, da Prosopopéia; o Gregório de
Matos, o Basílio da Gama, o santa Rita Durão, o José de
Alencar (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo), além de
muitos outros. Podia-se afirmar que nem um dos autores
nacionais ou nacionalizados de oitenta pra lá faltava nas
estantes do Major.
(...)
(...) A razão tinha que ser encontrada numa disposição
particular de seu espírito, no forte sentimento que guiava sua
vida. Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte
anos, o amor pela pátria tornou-o todo inteiro. Não fora o

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