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Rio Grande Século XX:

Olhares Históricos
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

R585 Rio Grande Século XX: olhares históricos / Leandro Braz da Costa,
Lidiane Friderichs, organizadores; [autores] Cíntia Lima
Crescêncio ... [et al.] - Pelotas: Editora e Gráfica Universitária,
2012.

205p., il.

1.História - RS. 2. Cidade do Rio Grande. 3. Século XX. I.


Costa, Leandro Braz da. II. Friderichs, Lidiane. III Crescêncio,
Cíntia Lima. IV. Título.

CDD : 981.65

Catalogação na Fonte: Elionara Giovana Rech - CRB 10/1693


Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Nota dos Organizadores

Quando começamos a pensar em reunir num único espaço, os


„fragmentos‟ dos trabalhos de alguns colegas pesquisadores que se
debruçam sobre o estudo da História do Município do Rio Grande,
tínhamos em vista, contemplar o passado através da pluralidade de
temas inerentes ao processo histórico denominado por Eric Hobsbawn
em seu clássico Era dos Extremos, de “O breve século XX.”
A imagem de capa deste livro – gentilmente cedida pela
professora Maria Amélia Goretti Estima Marasciulo e repassada a nós
pelo fotógrafo Regys Macedo – que retrata o Trevo de acesso à Rio
Grande, o qual oferece aos moradores e visitantes a mobilidade
necessária para alcançar os diversos locais da cidade, faz alusão às
diferentes visões, décadas e abordagens historiográficas apresentadas
ao longo deste trabalho. Assim como o trevo é um ponto comum à
caminhos distintos, este livro se propõe a expor e entender as „muitas
Rio Grandes‟; em outras palavras, a multiplicidade de perspectivas
que temos para pensá-la.
Reconhecendo, respeitando e valorizando o esforço de
pesquisa desenvolvido pelos historiadores que tornaram possível esta
publicação, sobretudo porque, assim como nós, são pesquisadores que
se posicionam diante do passado e vislumbram o „fazer histórico‟
enquanto problematização, temos a enorme satisfação de convidar os
leitores a refletirem acerca de cada um dos textos aqui apresentados.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Sumário

Prefácio para uma cidade distante.


Gerson Wassen Fraga ..................................................................... 57

“O mal alastra-se impunemente...”: A epidemia de varíola nas


páginas do Echo do Sul (Rio Grande 1904-1905).
Cintia Lima Crescêncio e Gizele Zanotto......................................... 15

O espaço do indesejável: As origens do bairro Cidade.


Ticiano Duarte Pedroso ................................................................... 55

Rio Grande na Era do Titãs, 1880 – 1920: O movimento operário em


sua “fase heróica”.
Edgar Avila Gandra e Marcos César Borges da Silveira. ............... 81

O Litoral (in)visível Villa Sequeira, Rio Grande (XIX-XX).


Felipe Nóbrega Ferreira.................................................................... 97

A cidade do Rio Grande na primeira metade da década de 1970.


Desenvolvimento econômico, vigilância, repressão e legitimação da
Ditadura Civil-Militar.
Leandro Braz da Costa..... ..............................................................125

Expurgo de docentes na FURG (1969-1977)


Leonardo Prado Kantorski ..............................................................165

Trabalho e Resistência: Os ferroviários riograndinos durante a


ditadura civil-militar de 1964.
Lidiane Friderichs........................................................................... 183

“Golbery e a Cidade Surreal”: Reflexões de uma luta sem fim.


Francisco Cougo Júnior ..................................................................
1...3207
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Prefácio para uma cidade distante

Gerson Wasen Fraga.1

Pode parecer estranho ao leitor que se adentra por estas linhas,


que o prefaciador desta obra não seja natural da cidade que é objeto de
análise nos artigos que seguem ou que não exerça nela suas atividades
profissionais. De fato, moro no outro extremo do Rio Grande do Sul,
dividindo meu tempo de trabalho entre o norte gaúcho e o oeste de
Santa Catarina. Mas isto possui uma justificativa e é por ela que
desejo começar este texto de apresentação. Por cerca de dois anos,
entre 2006 e 2008, tive a oportunidade de trabalhar como professor
substituto nos cursos de História e Economia da Universidade Federal
do Rio Grande (FURG). Neste período, vivi na “Noiva do Mar”,
conhecendo suas casas, suas praças, sua cultura e, principalmente, sua
gente. Foram tempos de caminhar pelas ruas da Cidade Nova onde
morei, de “atravessar o Canalete” para comprar o peixe na banca dos
pescadores à beira da Lagoa dos Patos, de esperar a safra do camarão
ou comprar a Jurupiga feita na Ilha dos Marinheiros na feira perto de
casa. Tempos de caminhar pelo Cassino, de torcer no Aldo Dapuzzo e
no Arthur Lawson, de conhecer o Teatro Municipal.
Foi também um tempo de muitas amizades, e os textos abaixo
expressam um pouco esta realidade. A aula se estendia pelo café, que
logo virava um encontro da turma, que dava margem para o futebol de
fim de semana, e assim a coisa ia aumentando. Na verdade, olhando
de forma retrospectiva, talvez tenha sido aí que tenha entendido o que
é uma cidade. Pela primeira vez morando longe de minha Porto
Alegre natal, percebia aquele cenário novo para mim como uma teia
de relações, de experiências e de projetos. Experiências e projetos que
se cruzavam, provocando o tal choque dialético que gera novas

1
Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus
Erechim. Doutor em História pela UFRGS.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

realidades. Percebia os espaços e as construções, feitos ou


transformados pela mão do homem, se adequando a estas relações,
expressando a diversidade de condições sociais, de interesses e de
trajetórias, bem como o choque entre todos estes elementos, ainda que
pela exclusão. Talvez Marx, focado na História e na Economia
Política, tenha em verdade explicado muito bem a dinâmica da vida.
Falando no “velho alemão”, Rio Grande, como qualquer
cidade, é também um local de produção e reprodução. Lembro que
isto me ficou claro quando, certa feita, o Leandro, co-organizador
deste volume, me disse, palavras mais palavras menos, que Rio
Grande, dada sua condição simultânea de cidade portuária e próxima à
fronteira, era um local “de passagem”, atraindo ou expulsando
trabalhadores conforme as oscilações da maré política e econômica.
Percebi então que eu era apenas mais um trabalhador na longa história
de uma cidade pródiga em atrair trabalhadores: marinheiros;
pescadores; comerciantes; escravos; libertos e operários em busca de
sobrevivência; industriais; ferroviários; professores... A lista
possivelmente teria a diversidade das ocupações humanas. Da
exportação do charque à construção de plataformas, Rio Grande atrai
pessoas, sotaques, culturas, adicionando novos fios à teia de sua
história. Fios que trazem necessidades, ideais e projetos. Que se
somam e que se chocam, produzindo assim a própria História.
Este livro não possui o objetivo de ser uma “história total” de
Rio Grande, tal qual os grandes manuais escolares. Antes, seus artigos
estabelecem algumas “janelas” para dois períodos específicos. O
primeiro é a passagem do século XIX para o XX, momento em que o
município passa por uma fase de acentuada modernização, onde o
desejo dos hábitos elegantes da “belle époque” coexiste com a massa
de trabalhadores atraídos pela implantação de grandes indústrias.
Vivendo sua “revolução industrial”, a cidade ampliava sua malha
urbana sobre os cômoros, vendo a ampliação de cortiços e epidemias
ao mesmo tempo em que os novos trabalhadores assalariados,
desembarcados dos trens e dos navios, traziam consigo o desejo de
uma nova sociedade. São quatro os olhares que este volume propõe
para este período.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Em “O mal alastra-se impunemente... A epidemia de varíola


nas páginas do Echo do Sul (Rio Grande, 1904-1905)”, Cintia Lima
Crescêncio e Gizele Zanotto partem do relato da imprensa local acerca
de um problema de saúde pública para analisar o outro lado da cidade
que se queria moderna. Alinhando-se ao discurso vigente na Europa e
nas principais capitais do centro do Brasil, Rio Grande propagava os
benefícios da modernidade e dos novos hábitos de saúde. Tal discurso,
porém, encobria uma realidade diversa, onde as precárias condições
de vida a que era submetida uma população em constante crescimento
significavam a proliferação das doenças e da morte. A solução
proposta nada teve de moderna: tal qual os leprosos dos tempos
bíblicos, os doentes oriundos dos cortiços deveriam ser isolados em
um ponto distante do centro da cidade, ficando assim evidente o
caráter socialmente segregacionista da medida. Talvez, algumas das
anônimas cruzes de ferro ainda hoje existentes do cemitério municipal
sirvam como locais de memória desta história.
Este texto dialoga diretamente com “O espaço do indesejável:
as origens do bairro Cidade Nova”, de Ticiano Duarte Pedroso. Ao
longo de seu artigo, Ticiano apresenta o crescimento da malha urbana
do município ao longo da transição para o século XX como uma
demanda do crescimento econômico e industrial de Rio Grande à
época. O novo arrabalde, local estratégico por ser passagem
obrigatória para a expansão do município em direção ao interior da
península, adquire maior importância pela instalação da Estação
Ferroviária e do complexo fabril da Companhia Rheingantz. Pensado
como um espaço socialmente privilegiado, o bairro construído não
obtém o sucesso planejado dado sua carência estrutural. Torna-se,
então, cenário de um crescimento habitacional desordenado, onde
muitos dos trabalhadores atraídos pelos novos postos de trabalho
viriam a se instalar na busca pela sua sobrevivência. Como bem
demonstra o autor, a Cidade Nova torna-se o local do indesejável,
daqueles que mostravam em sua própria existência o outro lado da tão
propalada modernidade.
Tais indesejáveis são o objeto do artigo de autoria dos
professores Edgar Gandra e Marcos César da Silveira: “Rio Grande na

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

era do Titãs, 1880-1920: o movimento operário em sua fase heroica”.


Adicionando novas tintas ao quadro esboçado nos artigos anteriores,
este trabalho nos apresenta a formação do proletariado urbano da
cidade como classe organizada, protagonista da luta por seus direitos.
Longe de ser um todo homogêneo, este grupo era marcado pela
diversidade: de origem, de gênero, de idade. Marcava-o também a
dicotomia ideológica entre socialistas e anarquistas que entre si
disputavam o controle da Sociedade União Operária de Rio Grande.
Refletindo no plano local a realidade regional e nacional, Rio Grande
passava a ser palco de greves, da ação de uma ativa imprensa operária
e de organizações de classe destinadas à educação e à cultura. Os
“portadores da utopia social”, ainda que alocados em regiões carentes
de estrutura material e sujeitos aos males que tal carência produzia,
marcavam assim sua presença ativa na cidade, buscando em suas
ações e organizações os direitos que lhes eram negados pela
modernidade burguesa.
Encerrando este primeiro bloco, Felipe Nóbrega Ferreira
desloca nosso olhar para a região balneária da cidade em “O litoral
invisível: Villa Sequeira, Rio Grande (XIX-XX)”. Cassineiro da
gema, Felipe nos aponta para a carência de trabalhos acadêmicos com
foco na região litorânea em um estado onde a figura do gaúcho
pampeano é tomada como o modelo de representação ideal. Ao
mesmo tempo, a partir do Prospecto da Linha de Carris de Ferro Rio
Grande-Costa do Mar balnear, o autor nos mostra como a
constituição de um balneário, para além de práticas associadas aos
novos hábitos apregoados pelo higienismo e pela modernidade,
inseria-se também dentro de interesses econômicos ligados à
exploração do transporte público, da construção de hotéis e de
melhorias diversas, que atrairiam para o litoral sul do estado não
somente banhistas, mas também investimentos. Assim, nas palavras
do autor, a praia seria também “um grande negócio”.
O segundo período abordado por este livro nos remete aos
dias nada saudosos da ditadura civil-militar, fruto do golpe levado à
cabo em 1964. Ainda que este encontre uma vasta gama de trabalhos
na historiografia brasileira, há ainda diversas lacunas que dizem

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

respeito à atuação das forças repressivas fora dos principais centros


urbanos. Com efeito, o aparato repressivo estruturado a partir da
derrubada de João Goulart instituiu o medo por todo o país, além de
articular-se com regimes de natureza semelhante no continente através
da Operação Condor e da ação de instrutores na prática da tortura.
Assim como em outros locais, Rio Grande foi palco da implantação da
disciplina social através do medo, com o agravante de integrar o seleto
grupo das áreas consideradas “de segurança nacional” devido à sua
condição portuária no sul do Brasil e de ser uma rota privilegiada para
aqueles que buscavam refúgio nos países do Prata.
O cenário riograndino durante o período é abordado em “A
cidade do Rio Grande na primeira metade da década de 1970:
desenvolvimento econômico, vigilância, repressão e legitimação da
ditadura civil-militar”, de Leandro Braz da Costa. Trabalhando com
uma amplitude de documentos que vai da imprensa as fontes orais, o
autor propõe uma interessante vinculação entre o crescimento
econômico do município e a legitimação da prática repressiva em um
momento onde o modelo agrícola agroexportador proposto pelos
governos militares garantia o crescimento de uma cidade portuária. O
artigo estabelece um mergulho à fundo nas estruturas da cidade
durante o contexto ditatorial, evidenciando não somente as práticas
políticas autoritárias em seu cotidiano, mas também o papel que a
imprensa desempenhou naquele momento, seja legitimando o regime
ou proporcionando espaços para que a oposição se fizesse ouvir.
Nas universidades, sabidamente, a ação repressiva foi muito
além do patrulhamento ideológico em salas e corredores. Muitos
foram os docentes exonerados por serem considerados perigosos ao
regime militar. Rio Grande não ficou imune a este processo. Leonardo
Kantorski nos mostra em “Expurgos de docentes na FURG (1969-
1977)” como tais perseguições ocorreram na Universidade Federal de
Rio Grande, valendo-se para tal de depoimentos dados por docentes
que experienciaram aqueles dias sombrios. Valendo-se da riqueza da
fonte testemunhal, o autor nos demonstra como a ação dos agentes da
ditadura se coadunavam com o anseio de poder pessoal, atingindo

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

pessoas e projetos que pudessem ser identificados à época com uma


postura política “mais progressista”.
Lidiane Friderichs, em “Embate nos trilhos: os ferroviários
riograndinos durante a ditadura civil-militar”, nos mostra os efeitos do
hiato nas liberdades democráticas iniciado em 1964 sobre a classe
trabalhadora em geral e sobre os ferroviários da cidade em particular.
A repressão, com efeito, foi seguida pelo arrocho salarial e pela
retirada abusiva de direitos conquistados, o que redundou na
precarização das condições de sobrevivência dos menos favorecidos.
No caso do grupo profissional em questão, a organização sindical que
passou a ser severamente vigiada teve de buscar uma adequação aos
novos tempos, ocupando um espaço possível dentro de um cenário
político extremamente adverso. Lidiane nos mostra ainda como tal
situação permanece na memória destes ferroviários após tanto tempo,
transformando seus relatos em fonte privilegiada para uma história
cuja escrita ainda está, em grande medida, por ser realizada.
Fechando o volume, Francisco Cougo Junior em “Golbery e a
cidade surreal: reflexões de uma luta sem fim” nos mostra a vitalidade
dos liames entre passado e presente na luta pela construção da
memória. O texto ágil de Francisco desnuda, passo a passo, o histórico
da controversa proposição de homenagem ao General Golbery do
Couto e Silva, luminar da ditadura repressiva, através de um busto na
principal praça de Rio Grande. Encabeçado por conhecidas figuras
papareias (políticos, empresários, jornalistas, miltares...), o projeto,
quando confrontado com a oposição da sociedade, acabou por
evidenciar a continuidade do entulho autoritário, agora travestido de
democrático, que requenta o discurso da Guerra Fria para legitimar a
falsificação da História e que, quando acuado, não hesita em proferir
ameaças ou em esmurrar mesas, buscando sempre a desqualificação
do interlocutor enquanto expõe, de forma abjeta, sua própria
truculência. Ou que ainda, de forma triste, esquiva-se atrás de sua
suposta ignorância.
Um alerta final: fruto de nosso tempo, a História busca no
passado as raízes das questões que hoje se apresentam ao profissional
da área. Não é, neste sentido, uma ciência do passado (ou apenas

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

deste), mas sim de um presente que está indissoluvelmente ligado as


coisas que já aconteceram. Lembramos isto, pois os artigos que
acabamos de apresentar dialogam necessariamente com a atualidade,
seja com os esgotos que correm nas periferias; com o incremento
constante de imigrantes em busca de trabalho ou com a especulação
imobiliária daí decorrente, seja com a persistência de uma
mentalidade arcaica, capaz de propor a homenagem a um prócer da
ditadura em praça pública. São artigos cuja leitura nos exige a atenção
no ontem e no hoje, feitos com profissionalismo, com paixão e com a
coragem sempre renovada de quem se posiciona diante do mundo. E,
também, com a convicção de que navegar é, inevitavelmente, preciso.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

“O mal alastra-se impunemente...”: A epidemia de varíola nas


páginas do Echo do Sul (Rio Grande 1904-1905)

Cintia Lima Crescêncio.1


Gizele Zanotto.2

“Só o auxílio divino poderá


vir em nosso socorro,
salvando-nos do
total aniquilamento”.
Echo do Sul, 29 de outubro de 1904

Eram os tempos da belle époque, quando as transformações


sociais, culturais, tecnológicas e urbanísticas mobilizavam governos,
partidos e cidadãos pelo mundo. As propaladas promessas de
progresso, modernização e desenvolvimento instigavam reformas e
dinamicidade em praticamente todos os setores. No Brasil, os reflexos
da bela época foram mais sentidos nas últimas décadas do século XIX
e nas primeiras décadas do século XX. Nesse contexto, o entusiasmo
com os progressos da sociedade capitalista eram sentidos, louvados e
sempre mais desejados. Cidades cresciam ou surgiam impulsionadas
pelas imigrações, pelas migrações e pela industrialização. Recursos
tecnológicos eram difundidos, assim como conhecimentos científicos
que, quando aplicados, minoravam paulatinamente os problemas
cotidianos de milhares de trabalhadores (conquistas materiais,
seguridade social, noções de saúde, sanitarismo, educação pública
ampliada, etc.).

1
Mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Atualmente cursa o doutorado na mesma instituição. Bolsista CNPq.
Email: cintialima23@gmail.com
2
Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Docente nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da
Universidade de Passo Fundo (UPF). Email: gizele@upf.br

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

O acelerado ritmo de industrialização e urbanização – mais ou


menos rápido em sua constituição pelo país - gerou uma crença
entusiasta de que o progresso3, o propalado e quisto progresso,
atenuava e mesmo equacionava também os problemas sociais.
Todavia, o aproveitamento das conquistas materiais, tecnológicas,
sanitárias, culturais e sociais se dava quase que exclusivamente nas
cidades, o que diminuía significativamente o espectro de abrangência
das “maravilhas do desenvolvimento”. Como ressalta Follis,

as cidades assumiram redobrado valor como lócus da atividade


civilizatória, espaço privilegiado para usufruir o conforto
material e contemplar as inovações introduzidas pela
modernidade. Para isso, as cidades precisavam renovar suas
feições de modo a se mostrarem modernas, progressistas e
civilizadas4.

A modernização, em geral, seguiu os parâmetros da ampla


reforma realizada em Paris (1853-1969) pelo barão Georges Eugène
Haussmann (1809-1891). No país, a cidade do Rio de Janeiro passou
por processo semelhante – tornando-se modelo nacional sobre a
questão – no início do século XX (entre 1902-1906), por impulso do
então prefeito Pereira Passos (1836-1913). Na sequência outras
capitais estaduais - São Paulo, Belém, Curitiba, Porto Alegre
inicialmente - foram modificadas seguindo os preceitos que
defendiam a modernização urbanística, a higienização, o
embelezamento/aformoseamento e a racionalização dos espaços da
cidade.
Rio Grande, importante porto de escoamento da produção
econômica rio-grandense, também foi marcada por essa ideologia do
progresso. Desde o início do século XIX a região vivenciava os

3
Sobre a ideação legada a questão da ideologia do progresso ver LE GOFF,
Jacques. Progresso/Reação. In: História e Memória. 5ª. ed. Campinas: Ed.
UNICAMP, 2003. p. 235-281.
4
FOLLIS, Fransérgio. Modernização urbana na Belle Époque paulistana. São
Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 15.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

efeitos do crescimento econômico e demográfico impulsionado pela


movimentação portuária. Entre as consequências dessa dinamicidade
estava a expansão da área urbana e, como decorrência, a necessidade
da melhora em sua organização e a ampliação do atendimento a
população que ali se instalava. A perspectiva da modernização já era
defendida pelo político Gonçalves Chaves (1781-1837)5 no início do
século XIX, como destacam Alves e Torres6, todavia sua efetivação se
deu muito mais tarde, entre fins do século XIX e início do XX.
Urbanização, saneamento, aformoseamento foram motes de
transformações expressivas na vida dos riograndinos que, para além
de observar as melhorias nas construções, nas ruas, nos meios de
transporte, na distribuição de água, na limpeza de vias públicas, etc.,
também se viu envolta em um processo maior de mudanças que
implicava na modificação de hábitos, de costumes e de
procedimentos, já não mais adequados à “onda de progresso” por que
a cidade estava passando. É justamente esse o contexto que
pretendemos abordar, a partir de uma questão norteadora, mas que se
insere no processo maior de vivência de uma belle époque nas plagas
brasileiras. Analisaremos o contexto de transformações urbanas,
sociais e culturais vetorizada no início do século XX a partir da
problematização da epidemia de varíola7 que assolou Rio Grande

5
Antônio José Gonçalves Chaves destacou-se como político, jornalista e
empresário de Pelotas. Naquela cidade foi proprietário da Charqueada São
João, construída entre 1807 e 1810 às margens do Arroio Pelotas. Suas
considerações sobre a necessidade de modernização urbana de Rio Grande
foram publicadas na obra Memórias ecônomo-políticas sobre a
administração pública no Brasil (Editora ERUS, 1978).
6
ALVES, Francisco das Neves. TORRES, Luiz Henrique. A cidade de Rio
Grande: uma abordagem histórico-historiográfica. Rio Grande: Ed. URG,
1997. p. 45.
7
Segundo o Dicionário de Termos Médicos, a varíola é uma “doença
infecciosa aguda, muito contagiosa e com carácter epidémico e com
características de endemia em certas regiões do Mundo. Nos países mais
evoluídos (...) a doença foi erradicada graças às muito eficazes medidas
profiláticas adoptadas, como a vacinação obrigatória. É uma doença

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

entre 1904 e 19058 e que expôs a ainda incipiente remodelação e


sanitarismo urbanos. Para tanto mobilizaremos como fonte um dos
vários periódicos publicados na cidade naquele contexto, o diário
Echo do Sul (1856-1934), que se notabilizou pela divulgação e crítica
da precariedade sanitária do município creditada ao indiferentismo e
impunidade dos poderes públicos locais e estaduais pelos editores da
publicação.
Visando compreender as repercussões da epidemia da varíola
através dos artigos publicados no Echo do Sul, iniciaremos situando o
contexto riograndino da virada do século, articulando-o às questões
sociais, políticas e econômicas que conformaram a situação da saúde
pública entre 1904 e 1905. Na sequência, analisaremos os textos do
Echo do Sul como um dos porta-vozes das críticas sobre “a invasão da
varíola, que dia a dia vai exigindo o tributo fatal a que se julga com

provocada por um vírus da família dos Poxviridae. Após um período de


incubação de 9 a 12 dias a doença inicia-se com calafrios, febre elevada,
cefaleias, náuseas e vómitos, sintomas estes a que se segue o aparecimento de
uma erupção vesiculo-pustulosa generalizada. As pústulas, ao secarem,
deixam cicatrizes permanentes. A varíola pode classificar-se segundo a OMS
e consoante a mortalidade em: varíola major (mortalidade entre 20 e 50%;
varíola minor ou alastrim (mortalidade inferior a 5%); e varíola atenuada,
em que os sintomas são discretos e que pode surgir em indivíduos já
vacinados”. DICIONÁRIO DE TERMOS MÉDICOS. Disponível em:
<http://www.infopedia.pt/termos-medicos/var%C3%ADola> Acesso em 16
de março de 2012.
8
Esse recorte justifica-se em função desses serem os anos com maior
incidência de notas e matérias referentes a doença que, embora tenha sido
uma realidade frequente nas duas primeiras décadas do século XX, teve nos
anos de 1904 e 1905 – sobretudo na virada de ano - seu auge no que se
refere a enfermos e mortos. Não por acaso foi em 1904 que se discutiu a
questão da vacinação obrigatória, o que resultou em uma revolta na capital
federal.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

direito”9, no que fora então considerado o “problema higiênico mais


difícil e importante”10 vivenciado pela população riograndina.

“No meio das areias estéreis...” cresce e se moderniza Rio Grande.

A cidade de Rio Grande representa uma conquista em função


da problemática situação de sua constituição. Essencialmente
construída sobre um areal, mobilizou amplo e persistente investimento
humano (sobretudo de escravos) para ser erguida e mantida emersa
dos incessantes movimentos das areias. A ocupação oficial tem como
marco primeiro a construção do presídio/forte Jesus-Maria-José nos
idos de 1737, como parte do esforço da Coroa Portuguesa de expansão
rumo ao sul, em direção à baia do Prata. Anos antes fora constituída a
Colônia Sacramento (1680), às margens do Rio da Prata e, para
mantê-la, tornou-se necessária mais uma base de apoio material e
militar. Nesse sentido, foi erguido o forte e iniciada uma povoação
pautada essencialmente no caráter militar e que, pela sua importância
geoestratégica, foi elevada a vila ainda em 174711.
A povoação de Rio Grande foi assolada pelos problemas
ambientais, políticos e militares durante o século XVIII. A invasão
espanhola no sul do continente levou à sua ocupação e retrocesso
entre 1763 e 1776, época em que também perdeu o status de posição
central na povoação do sul quando da transferência da administração
extremo-sulina para Porto Alegre. Com o fim do conflito com os
espanhóis a vila recebeu novo impulso demográfico e econômico e,

9
ECHO DO SUL. As Quintas. Rio Grande, número 201, 01de setembro de
1904. - Por motivos de melhor compreensão por parte do público leitor os
excertos extraídos do jornal tiverem o português atualizado.
10
Idem.
11
Sobre a história da colonização em Rio Grande ver: ALVES, Francisco das
Neves. TORRES, Luiz Henrique. A cidade de Rio Grande: uma abordagem
histórico-historiográfica. Rio Grande: Ed. URG, 1997. / ALVES, Francisco
das Neves. Cronologia básica da História da cidade do Rio Grande (1737-
1947). Biblos, Rio Grande, 22 (2), p. 09-18, 2008.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

durante o século XIX, destacou-se como polo de investimentos e de


desenvolvimento da região ainda no início daquele decênio. A
estabilização política no sul da colônia, depois império, e o
investimento regional na produção pecuária e na charqueadora
legaram a Rio Grande a condição de principal entreposto comercial do
período. Tal situação gerou também aumento demográfico12 e a
necessidade de ampliação das obras de infraestrutura e do espaço
urbano, o que foi realizado – mesmo que não de forma totalmente
satisfatória – pela gestão da Câmara Municipal13.
Em fins do século XIX o perfil militar que caracterizou os
investimentos iniciais na região sul e que impulsionaram a fundação
de Rio Grande já havia sido definitivamente suplantado pela marcada
atuação comercial e industrial que a cidade (status conquistado em
1835) conquistara. Entre as modificações pelas quais passaram o
município – muito coerentes com os “ecos da belle époque” e com a
consolidação do capitalismo industrial - podemos mencionar:
instituição da administração pelos Intendentes Municipais; instauração
de política de repressão ao contrabando; ampliação ou construção de
prédios públicos; ampliação e/ou consolidação da imprensa periódica;
incremento da industrialização e constituição progressiva do
operariado; implantação do serviço de limpeza pública; construção de
mictórios públicos; melhorias e ampliação no sistema de transportes;
inauguração do balneário da Vila Sequeira (atual Balneário Cassino);
incremento no calçamento de ruas; implantação do sistema de águas e
esgotos; implantação do sistema de iluminação pública a gás – depois

12
Há pequenas divergências entre os números apresentados por vários
autores para ilustrar a progressão demográfica de Rio Grande, todavia, eles
explicitam seu crescimento intermitente. Segundo dados apresentados por
Alves e Torres a partir de observações de viajantes e locais sobre o número
de citadinos, pode-se indicar que a população, em 1809 era de mais de 2.000
habitantes; em 1834 havia cerca de 4.000; em 1851 o número ficaria entre 12
e 14.000 almas; em 1865 14.000 e em 1900 haveria por volta de 30.000
habitantes na localidade. ALVES, Francisco das Neves. TORRES, Luiz
Henrique, 1997. p. 49.
13
Idem, p. 37ss.

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

substituída pela eletricidade; implantação do cais do porto e


construção do Porto Novo e dos Molhes da Barra; implantação de
chafarizes nas praças; ampliação das instituições de educação e saúde
(hospitais e lazareto, quando das epidemias); inauguração do serviço
de bondes; inauguração da ligação telefônica com Pelotas14. O
aprofundamento da integração capitalista do município, articulada às
propostas de urbanização então em voga acabaram por alterar a
própria fisionomia de Rio Grande, como podemos observar nos mapas
apresentados na sequência.

Figura 1- Mapas de Rio Grande em 1829 (aponta somente


edificações existentes) e 1904, evidenciando a ampliação territorial e
urbana local.

14
Ver: ALVES, Francisco das Neves (Org.). Imprensa & História no Rio
Grande do Sul. Rio Grande: Ed. FURG, 2001. / ALVES, Francisco das
Neves. Cronologia básica da História da cidade do Rio Grande (1737-1947).
Biblos, Rio Grande, 22 (2), p. 09-18, 2008. / MARTINS, Solismar Fraga. . O
papel da cidade do Rio Grande (RS) na economia rio-grandense durante a
industrialização dispersa (1873/1930). In: Segundas Jornadas de História
Regional Comparada e Primeiras Jornadas de Economia Regional
Comparada. Porto Alegre: FEE, 2005. p. 01-17. / PAULITSCH, Vivian da
Silva. Rheingantz: uma vila operária em Rio Grande-RS. Dissertação
(Mestrado em História da Arte e da Cultura) – Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. /
PEDROSO, Ticiano Duarte. Saneamento e Progresso: o projeto de
Saneamento da cidade de Rio Grande do plano a implantação (1909-1923).
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em História) – Comissão do
Curso de História, Rio Grande, 2008.

21
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Fonte: Biblioteca Rio-Grandense

Destarte tamanho avanço, a cidade de Rio Grande – assim


como a maioria dos municípios do país – ainda carecia de
ordenamentos urbanístico, sanitário, logístico e administrativo mais
aprimorado e/ou ampliado, que realmente atendessem as necessidades
da sua crescente e diversificada população que, na virada do século,
contava com trabalhadores urbanos e rurais, profissionais liberais,
comerciantes, industriais, políticos e militares. As melhorias urbanas

22
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

foram implementadas paulatinamente e em ritmo menor do que o do


incremento demográfico. Tal descompasso, aliado a pouca autonomia
da Intendência Municipal, constituíram os principais entraves para
que a cidade alcançasse o “almejado” progresso. Como agravante
dessa situação, uma série de epidemias foi vivenciada entre fins do
século XIX e início do XX, tornando o cotidiano dos riograndinos
pouco satisfatório em termos de qualidade de vida e de saúde.
Em relação à área da saúde pública, a administração
republicana legava aos estados da federação o dever de sua
organização e gestão. Tal medida desonerava o incipiente governo
republicano de investimentos regionalizados nesse setor tão
importante, complexo e oneroso aos cofres públicos (a questão da
saúde pública incluía, por exemplo, definições quanto ao atendimento
médico, regulamentação das profissões vinculadas à saúde,
infraestrutura para atendimento dos doentes, investimentos em
farmácia e logística de distribuição de medicamentos, políticas
públicas de saneamento).
O governo rio-grandense da virada do século era liderado por
Antônio Augusto Borges de Medeiros, afiliado ao Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR)15, agremiação baseada no
castilhismo16 - releitura do positivismo -, que fora fundada em 23 de

15
O governo do Rio Grande do Sul foi regido pelo PRR ininterruptamente
entre 1882 - com a nomeação de Fernando Abbot - e 1923, tendo eleitos
como presidentes do estado os partidários Júlio de Castilhos (1893-1898),
Borges de Medeiros (1898-1908), Carlos Barbosa Gonçalves (1908-1913),
novamente Borges de Medeiros (1913-1928), Getúlio Vargas (1928-1930),
Osvaldo Aranha e Sinval Saldanha (nomeados, 1930). Em dezembro de
1937, com o Decreto no. 37, o PRR foi extinto pelas determinações do
governo Vargas de abolir todos os partidos políticos do país.
16
Ver: RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. O castilhismo e as outras ideologias.
In: BOEIRA, Nelson. GOLIN, Tau (Dir.). RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti.
AXT, Gunter (Coord.). História Geral do Rio Grande do Sul. República
Velha (1889-1930). Vol. 3. Passo Fundo: Méritos, 2007. p. 57-88.
Ver também: PEZAT, Paulo. Leituras e interpretações de Auguste Comte. In:
BOEIRA, Nelson. GOLIN, Tau (Dir.). RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti.

23
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

fevereiro de 1882, ainda no período imperial brasileiro. O PRR


declarava-se defensor do republicanismo, do sistema federativo,
presidencial e democrático, da liberdade de pensamento e de
expressão, de reunião e de associação, e do ensino primário leigo e
gratuito, conforme expresso em seu programa, publicado no jornal
oficial A Federação (1884)17. Conforme destaca Rodríguez, o
castilhismo tinha como mote a interpretação da falência da sociedade
liberal (individualista) e a convicção de que uma regeneração social
deveria ser pautada na instauração de um regime moralizador, não
baseado nas riquezas materiais, mas sim no “reinado da virtude”, na
noção de bem público, que subordina os interesses de indivíduos em
prol de algo impessoal e de benefício amplo18.
Na área da saúde pública, o governo estadual prezou por
“instaurar o primado da ciência como investigação da realidade, [...]
pela liberdade profissional e espiritual”19, o que acabou legitimando as
práticas de cura médicas e extramédicas (medicina dita alternativa,
curas espirituais, etc.). Para exercer a Medicina, a Farmácia, a
drogaria, a obstetrícia e a arte dentária, segundo o Regulamento dos
Serviços de Higiene do Rio Grande do Sul (1895), a exigência era da
inscrição em registro na Diretoria de Higiene. Em casos de ausência
do registro ou equívocos na realização das atividades os praticantes de

AXT, Gunter (Coord.). História Geral do Rio Grande do Sul. República


Velha (1889-1930). Vol. 3 – Tomo II. Passo Fundo: Méritos, 2007. p. 29-78.
17
ABREU, Alzira Alves de. Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). In:
ABREU, Alzira Alves de, ... [et al]. Dicionário Histórico-Biográfico
brasileiro pós-1930. Vol. IV. Rio de Janeiro: Ed FGV; CPDOC, 2001. p.
4375.
18
RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez, 2007. p. 67.
19
SANTOS, Nádia Maria Weber. Práticas de saúde, práticas da vida :
medicina, instituições, curas e exclusão social. In: BOEIRA, Nelson.
GOLIN, Tau (Dir.). RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. AXT, Gunter (Coord.).
História Geral do Rio Grande do Sul. República Velha (1889-1930). Vol. 3 –
Tomo II. Passo Fundo: Méritos, 2007. p. 104.

24
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

curas eram simplesmente multados20. Tal flexibilidade legou ao estado


um problema de amplo espectro, pois propiciou a atuação no ramo da
saúde por parte de diplomados e, inclusive, de charlatães – ampliando
ainda mais as já precárias condições existentes nos municípios rio-
grandenses. Ainda outro empecilho às questões de saúde pública foi
resultado da preocupação excessiva do governo estatal com o
saneamento das contas públicas. De modo direto tal proposta levou à
inviabilização da realização de medidas mais drásticas e estruturais
por todo o estado – além da falta de verbas, a ausência de autonomia
dos intendentes municipais teria constituído mais uma “amarra” para
que investimentos em saneamento, higiene e nos locais de tratamento
de doentes (hospitais e lazaretos permanentes) fossem realizados a
contento21. Nesse sentido, a precariedade sanitária de Rio Grande seria
também uma marca comum nas demais municipalidades do estado
extremo-sulino.
A cidade de Rio Grande, como mencionamos, passou por um
“surto” de desenvolvimento e crescimento durante o século XIX. Em
fins daquele decênio várias indústrias instalaram-se na localidade
absorvendo e atraindo ainda mais trabalhadores. A “onda” migratória
não esteve desconexa da instalação dos operários em condições nem
sempre favoráveis. Cortiços foram disseminados pela cidade. Além
disso, o movimento portuário fez circular no espaço riograndino uma
ampla população itinerante que, por muitas vezes, foi o vetor inicial
de epidemias que assolaram os munícipes. Importante ressaltar que a
situação de precariedade sanitária e urbanística deriva dos tempos
imperiais. Com a instalação da República a situação não se alterou de

20
WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, religião, magia e
positivismo na república rio-grandense 1889-1928. Santa Maria: Ed. UFSM;
Bauru: EDUSC, 1999. p. 49.
21
SILVA, Raquel Padilha da. A Cidade de Papel: a epidemia da peste
bubônica e as críticas em torno da saúde pública na cidade de Rio Grande
(1903-1904). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação
em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2009. p. 20.

25
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

modo imediato. No estado rio-grandense o contexto de calamidades


sanitárias e de saúde se agravou pela falta de investimentos e, muitas
vezes, de uma prestação de serviços capacitada e atualizada, que
pudesse instigar ou mesmo solucionar casos em que a medicina já
estivesse apta a dar conta com remédios, com vacinas, ou mesmo com
a difusão de instruções sanitárias básicas para a população carente de
atendimentos.
A conjugação do aumento populacional com a pobreza, a
desnutrição, as moradias insalubres, o vestuário precário, os salários
baixos, a pouca ou nenhuma educação formal, o pouco asseio
individual, a falta de sanitarismo em vias públicas, as doenças
sazonais frequentes e as epidemias esporádicas foi desastrosa para os
riograndinos nos inícios do século XX. Febre amarela, varíola, cólera,
tifo, tuberculose, febre tifoide, lepra, sífilis, gripe espanhola e cólera
acabaram fazendo inúmeras vítimas em razão da rapidez de sua
propagação e da falta de higiene, de arejamento, de saneamento, de
espaço e de tratamentos adequados.
O estado de organização urbanística, de ordem sanitária e de
saúde de Rio Grande fora muito afetado pelas disposições dos
dirigentes provinciais e depois estatais. O investimento possível de ser
efetivado era considerado modesto ante a necessidade citadina. Essa
análise era feita recorrentemente pelos próprios políticos locais em
seus relatórios municipais anuais, como podemos constatar no texto
dos Relatórios da Intendência. Ainda no Relatório da Câmara
Municipal de 1889, se sublinhava: “Como vos disse esta Câmara em
seu último relatório, e como o tem dito outras, são fracos, bem fracos,
os recursos de que podem dispor os municípios, em relação aos
melhoramentos que reclamam incessantemente a saúde e a
comodidade pública...”22 Era corrente a ideia de que a redução de
doenças passava por investimentos em obras urbanas (drenagem de
solo, estabelecimento de rede de água potável e abundante, e
construção de uma rede de esgotos).

22
RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DE RIO GRANDE (1889). p.
01. Apud: SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 46.

26
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Com a ascensão do PRR ao poder rio-grandense as questões


prementes de soluções foram ainda mais prejudicadas, visto a
proposta doutrinária que gestava as decisões dos políticos, que
apregoava uma separação entre os poderes temporal e espiritual e que
acarretava – na prática da área da saúde – na liberdade de escolha dos
indivíduos ante a multiplicidade de formas de cura médicas e
extramédicas disponíveis. Junto a isso o governo estatal incentiva a
organização de serviços de assistência pública, de responsabilidade de
cada município, para atender sua população, mas eximia-se de auxiliar
financeiramente a sua realização.
O Regulamento para o Serviço de Higiene (1895) apontava
para a organização de um serviço sanitário no Estado, “para atender
questões relativas à higiene, moléstias endêmicas, epidêmicas e
transmissíveis, condições sanitárias da população e das habitações
coletivas”23, também a organização de socorros de assistência pública,
fiscalização de trabalhos de utilidade pública e organização estatística
demográfico-sanitária. Todavia, como ressalta Weber, “O
regulamento expressava a preocupação com a salubridade das áreas
urbanas, com ações sanitárias que visavam a vigiar e controlar o meio
externo para garantir a sua higiene, por meio de instrumentos
coercitivos, como polícia e campanhas”24. Tais ênfases acabavam por
priorizar a higiene pública (espaços coletivos) e, em caso de
epidemias, afastar os doentes do contato com os demais citadinos.
Como decorrência consolidaram-se ações que implicavam em
medidas paliativas, segregação e ausência de tratamentos terapêuticos
adequados. Mesmo no caso de moléstias para as quais haviam
soluções eficazes – como a vacinação -, o que se viu foi apenas um
estímulo estatal a sua adoção e não um esforço mais efetivo de evitar
epidemias maiores instituindo a obrigatoriedade de sua prática pelos
munícipes. Assim, também em Rio Grande, doenças com cura
comprovada tornaram-se “flagelos” pelas frequentes e variadas
epidemias que assolaram sua população.

23
WEBER, Beatriz Teixeira, 1999. p. 50.
24
Idem, p. 51.

27
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Como destaca Silva, em Rio Grande também foi adotada a


postura que priorizava o isolamento de doentes ao invés de seu
tratamento. Em casos de epidemias um lazareto era instalado para dar
conta dessa função de apartamento de infectados do centro da cidade e
dos chamados cortiços (maiores focos de moléstias)25. Tais medidas,
paliativas, ressaltamos, aliadas as demandas estruturais implicadas à
questão, colaboraram para que o cotidiano dos riograndinos fosse
marcado por pelos menos duas décadas, notadamente as duas
primeiras do século XX, com notícias de mortes e de doenças.
O Echo do Sul não se afastou dos problemas cotidianos e
dedicou boa parte de seu espaço para discutir essas questões que
demoraram a ser solucionadas. Ainda em 1918 o periódico dedicava-
se a divulgar o que considerou o abandono da população pela omissão
das autoridades quando do “caos” instaurado pelo vírus da gripe
espanhola26. Diante dos crescentes casos de varíola registrados em Rio
Grande nos inícios do século e os ecos do caos social registrado na
capital federal27 em consequência dos debates da vacinação
obrigatória, o diário foi pertinaz. Os redatores da publicação viram-se
cotidianamente dedicados à divulgação de registros e críticas sobre a
situação estrutural, sanitária e mesmo cultural de Rio Grande,
apresentando-se como porta vozes da população.
O diário Echo do Sul – diário político, noticioso e comercial
de estilo crítico-opinativo e informativo, segundo Alves28 - foi
fundado na cidade de Jaguarão em 1856 por Pedro Bernardino de
Moura (1828-1888), militar que tornou-se fundador e redator de várias
publicações e também prestador de serviços jurídicos. Segundo
indicam analistas do periódico, a transferência da publicação para Rio
Grande em 1858 teria sido motivada por desentendimentos políticos.
25
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 20.
26
Ver: TORRES, Luiz Henrique. O vírus da gripe espanhola desembarca na
cidade: a visão do Echo do Sul. Biblos, Rio Grande, 23 (1), p. 91-99, 2009.
27
Ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte
Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
28
ALVES, Francisco das Neves. A imprensa na cidade de Rio Grande: um
catálogo histórico. Rio Grande: Ed. FURG, 2005. p. 72.

28
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Em sua trajetória o periódico passou por algumas fases mais


características que teriam iniciado com um perfil próximo da
pasquinagem, mais tarde constituindo-se como órgão do Partido
Conservador29. Com a instauração da República o periódico manteve
uma postura partidária, mas desvinculada de agremiações, tendo sido
um contumaz defensor dos novos governantes, postura que não foi
longeva. Ainda em fins do século XIX o Echo do Sul constituiu-se
como folha crítica e mesmo contrária ao sistema castilhista-borgista e
a muitas definições do governo do PRR, pelo menos até fins da
década de 1910, quando nova reformulação foi realizada e o diário
assumiu uma posição dita independente. Tais modificações também
estavam articuladas a alteração da propriedade do diário que, após ser
de responsabilidade de Pedro Bernardino de Moura, foi gerido por
uma associação (a partir de 1880), Guimarães, Oliveira & Cia. (1889)
e por Alfredo Rodrigues de Oliveira e família (1890-1934) 30.
No período que toca diretamente a este artigo, no que tange à
saúde coletiva, o Echo do Sul defendeu de maneira contundente a
necessidade de maior atuação dos governantes para que
empreendessem uma série de ações de melhorias. Dentre as principais
reivindicações do jornal destacamos: serviço de abastecimento de
águas mais eficiente, necessidade de construção de um sistema de
esgotos, aprimoramento da coleta de lixo e de águas servidas,
vigilância e melhoria das habitações, construção de espaços coletivos
de circulação e tratamento aos doentes, como veremos na sequência.

Pelas ruas da cidade: “marcha da varíola”.


Em 26 de agosto de 1904 o Echo do Sul construía-se como
sujeito coletivo e afirmava: “Ouvimos dizer que a intendência
municipal está prestando e continuará a prestar todo o auxílio à
delegacia de higiene para a extinção da epidemia da varíola nesta
cidade”31. A nota que veio acompanhada da notícia de que a doença já

29
Idem, p. 73.
30
Ibidem, p. 72.
31
ECHO DO SUL. Nota. Rio Grande, número 196, 26 de agosto de 1904.

29
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

se espalhara na cidade vizinha, Pelotas, e de alguns esclarecimentos


sobre a questão da vacinação obrigatória, de certo modo, sinaliza de
forma contraditória o alarde que o jornal promoveu nos meses
seguintes. Se por um lado a postura inicial era de reivindicação de
cuidados no que se referia ao saneamento da cidade e ao cuidado de
doentes, por outro a posição do jornal logo assumiu um caráter mais
trágico, com a notificação de dezenas de doentes e mortes.
Pedroso ressalta que a condição portuária de Rio Grande a
colocava como bastante vulnerável a entrada de doenças. A
Intendência Municipal - chamada a auxiliar a delegacia de higiene
pelo Echo do Sul -, era a responsável pelo cuidado da iluminação
calçamento, água, esgotos, aterramentos, coletas de lixo, inspeção de
alimentos, transporte e uma série de outros serviços que envolviam o
atendimento à sociedade32. Também nas páginas do jornal, a cidade,
situada pela historiografia em uma zona de grandes riscos epidêmicos,
assumia suas feições mais frágeis, opondo-se à imponência que a
urbanidade citadina previa. A essas feições entregava-se o jornal que
investia em um discurso fúnebre e arrebatador:

É cada vez mais desoladora a marcha da varíola nesta cidade.


O terrível mal já não está como a princípio, localizado em uma
certa e determinada zona. Disseminou-se por diversos pontos,
sendo raro o local do Rio Grande que não está infeccionado.
Há casas que, como noticiamos, abrigam 5 e 6 variolosos, as
mais das vezes em deploráveis condições higiênicas,
transformando-se em verdadeiros focos de contágio 33.

O Gráfico 1, de certo modo, ilustra muito bem a “marcha da


varíola nesta cidade”, visto que a doença, efetivamente, caminhou

32
PEDROSO, Ticiano Duarte. Saneamento e Progresso: o projeto de
Saneamento da cidade de Rio Grande do plano a implantação (1909-1923).
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em História) – Comissão do
Curso de História, Rio Grande, 2008. p. 48.
33
ECHO DO SUL. A varíola – triste situação. Rio Grande, número 248, 29
de outubro de 1904.

30
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

pelas ruas precariamente calçadas e pouco ou nada saneadas, nelas se


instalando. Até fins de outubro a notificação de doentes,
costumeiramente acompanhada do local de residência do “varioloso”,
era ainda esparsa: “Nos quartos situados à rua General Osório n. 24
tem se manifestado diversos casos de varíola”34. Contudo, destacamos
que até a edição de 14 de novembro de 1904 grande parte das notas
produzidas pelo jornal citavam as vistorias que estavam sendo
promovidas em diversas casas, cortiços, prédios e casebres que tinham
seu estado de asseio colocado em suspenso. É o caso da nota de 31 de
outubro de 1904 em que se apontou: “O prédio n. 51 da rua General
Vitorino, achando-se em péssimo estado de asseio, foi intimado o seu
proprietário para mandar limpar”35. Dessa maneira, mapeavam-se os
locais de pouca salubridade em função da emergência da varíola e
também os lugares de higiene precária (Ver rol de ruas vistoriadas,
com registros de doentes e/ou mortos na Tabela 1, em Anexo).
Gráfico 1 - Notícias de vistorias, doentes e mortes publicadas no
Echo do Sul (ago/1904-jan/1905)

Fonte: Echo do Sul, Rio Grande, agosto de 1904 a janeiro de 1905 – não
houveram registros em set/1904 (gráfico produzido pelas autoras)

34
ECHO DO SUL. Nota. Rio Grande, número 246, 27 de outubro de 1904.
35
ECHO DO SUL. Nota. Rio Grande, número 249, 31 de outubro de 1904.

31
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Já os relatos de morte pela doença eram reduzidos em relação


ao número que se verificava com a chegada do verão nos demais
quesitos indicados na tabela – em nosso levantamento nos jornais, as
notas de morte somam 52, enquanto que as de vistorias e localização
de doentes ultrapassam as 60 menções no período pesquisado. De
acordo com Silva a diminuição das chuvas e os problemas de
fornecimento de água durante a estiagem de verão prejudicavam o
estado sanitário da cidade36. Pelo levantamento dos anos 1904 e 1905,
é exatamente na transição dos meses de novembro, dezembro e janeiro
que o número de doentes e mortes aumentava significativamente,
acompanhado de uma diminuição intensa do número de vistorias. Em
nota de 1 de novembro de 1904 é possível perceber o tom que
acompanhava boa parte das notícias da estação: “A varíola já fez a
primeira vítima na casa à rua Francisco Marques n. 80, que se acha
atualmente com 8 enfermos, atacados daquele terrível mal”37. O uso
da expressão “já fez a primeira vítima” é bastante marcante, na
medida em que esse anúncio sugere que a marcha da doença estava
apenas começando. E é essa enunciação que aponta o aumento do
número de doentes no mês de novembro e de mortes nos meses
subsequentes. O verão, portanto, para a cidade que desejava construir-
se moderna, não era a estação lembrada como o momento de
aproveitar o calor, a natureza e a brisa, mas sim um período de
preocupação e luto.
Em notícia de 5 de novembro de 1904 o tom calamitoso foi
expressado em forma de questionamentos:

Como não é imunda uma casa onde se encontra num só leito,


em deplorável promiscuidade, três atacados de varíola? Como
não é imunda uma casa onde o médico licenciado que vai ver o
enfermo encontra uma senhora trazendo uma criança nos
braços coberta de chagas, produzidas pela varíola e com o
braço sujo de pus que escorria da infortunada enferma, cujo

36
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 111.
37
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 250, 01 de novembro de
1904.

32
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

aspecto era horripilante?! Como não é imunda uma casa que dá


serventia para um cortiço, onde existem mais de 10 quartos
ocupados por gente de toda classe? Como não é imunda,
finalmente, uma casa pequena, de pobres, amontoada de
bexiguentos 38.

O uso das interrogações foi um recurso dramático para a


constatação de que muitas casas da cidade serviam de abrigo a pessoas
doentes. Nesse caso especificamente, a doença não era considerada
apenas física, mas também social, na medida em que no período os
cortiços eram tidos como lugares de vício e promiscuidade. Conforme
D‟Incao “a cidade burguesa teria sistematicamente de lutar contra
comportamentos, atitudes e expressões tradicionais que eram
consideradas inadequadas para a nova situação”39. A belle époque,
nesse sentido, inspirando não só cidades como Rio de Janeiro que
derrubou cortiços e promoveu a expulsão dos pobres do centro da
cidade, motivou também o Echo do Sul que identificava a “gente de
toda a classe” como uma ameaça ao progresso e a modernização. Tal
constatação é asseverada e contextualizada por Marins, ao comentar a
situação e as origens de inchaço populacional das cidades em fins do
século XIX:

O quadro difuso e instável das cidades brasileiras, já


naturalmente hipertensionado pela escravidão e seus processos
de exclusão social, tendeu a se agravar com a Abolição e com a
instauração de princípios democráticos. Surgia então a figura
aterradora da massa de “cidadãos” pobres e perigosa, viciosa, a
qual emergia da multidão de casas térreas, de estalagens e
cortiços, de casas de cômodos, de palafitas e mocambos que
eram a vastidão da paisagem das cidades herdadas do Império.
Acusadas de atrasadas, inferiores e pestilentas, essas

38
ECHO DO SUL. Defesa... Encomendada. Rio Grande, número 253, 5 de
novembro de 1904.
39
D‟INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary
Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. P.
226.

33
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

populações seriam perseguidas na ocupação que faziam das


ruas, mas sobretudo seriam fustigadas em suas habitações.40

Segundo Silva, nos primeiros anos do século XX, “os cortiços


eram exemplos de má condição de moradia e higiene. Como seus
moradores em via de regra, eram despossuídos economicamente,
estavam também sujeitos as doenças”41. Nesse sentido, a cidade - que
era vista como moderna, industrial e urbana -, estava reivindicando
não só o saneamento higiênico, mas também o social.
O mês de novembro de 1904 não foi marcado apenas por
notícias de vistorias, doentes e mortes, ele também foi dedicado pela
redação do jornal a divulgar a comoção que vinha se instaurando na
cidade do Rio de Janeiro em função do projeto que instituía a
vacinação obrigatória, proposta votada no mês anterior que resultou
no que se convencionou chamar de Revolta da Vacina42. O governo
estadual do PRR participou das discussões sobre a obrigatoriedade da
vacinação nas assembleias da capital e posicionou-se claramente
contra a medida. Suas considerações – pautadas no castilhismo –
defendiam a liberdade de escolha individual dos cidadãos também
nessa questão. A vacinação, para os políticos rio-grandenses, deveria
ser estimulada, mas não imposta. Conforme destaca Weber, a
argumentação que sustentou a contrariedade à obrigatoriedade da
vacinação esteve pautada na consideração da mesma como “medidas
vexatórias e incômodas, uma ameaça à liberdade individual e à
santidade do lar”43; os políticos afirmavam também que sua eficácia
não estaria comprovada. Continua a autora, “A vacina era considerada

40
MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da
privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras. In: SEVCENKO,
Nicolau (Org). História da Vida Privada no Brasil - 3 República: da Belle
Époque à Era do Rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 134.
41
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. P. 142.
42
Ver: CHALHOUB, Sidney, 1996. / CRESCÊNCIO, Cintia. Revolta da
Vacina: Higiene e Saúde como Instrumentos Políticos. Biblos. Rio Grande,
Vol. 22 (2), p. 57-73, 2008.
43
WEBER, Beatriz Teixeira, 1999. p. 48.

34
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

um produto mórbido, extraído de uma vaca afetada pela moléstia, e os


doutores não sabiam esclarecer sobre o caráter do vírus da vacina nem
sobre o mecanismo de imunização”44.
Também em Rio Grande o tema da vacinação obrigatória foi
debatido e uma série de questões morais e sanitárias levantadas na
discussão sobre a vacina, distribuída por muitas empresas a seus
funcionários. O contexto riograndino, marcado pela postura estatal
quanto à questão da vacinação, teve suas peculiaridades em relação ao
processo ocorrido no Rio de Janeiro no ano de 1904. Conforme relata
Silva,

nesse início de século o Município de Rio Grande e a Capital


Federal viveram processos históricos antagônicos. Enquanto no
Rio de Janeiro o governo foi o responsável por ir às ruas
promover as reformas urbanas e forçar um processo de
vacinação em massa (mesmo que o motor dessas mudanças
fosse econômico), gerando entre a população uma
“vacinofobia”, ou seja, um medo generalizado da vacina. Na
cidade gaúcha foi a sociedade quem clamou por melhorias
sanitárias da municipalidade45.

As impressões da autora reforçam a postura do jornal nos anos


analisados, na medida em que ele estimulava a população a pensar
sobre as questões sanitárias municipais, ao mesmo tempo em que
promovia fortes críticas as autoridades responsáveis pela manutenção
da saúde pública, notadamente a Delegacia de Higiene.
Dividindo espaço com os debates do Rio de Janeiro, o Echo
do Sul mantinha a postura de noticiar a repercussão da varíola em solo
rio-grandense. Em 23 de novembro de 1904 ele noticiou: “Continua a
ramificar-se pela cidade a epidemia da varíola. Existe agora, na rua
General Bacelar, entre Francisco Marques e Imperatriz, uma pessoa
acometida do terrível morbus. Pela Cidade Nova tem-se multiplicado

44
Idem.
45
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 44.

35
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

os enfermos”46. O uso da expressão “ramificar-se” não era acidental,


já que os meios de contágio da doença estavam de fato localizados e
expandindo-se como rizomas pelas ruas da cidade. O bairro Cidade
Nova é um bom exemplo da característica da varíola de produzir
centros de contágio. Uma das grandes justificativas para o isolamento
dos doentes era exatamente essa, a ruptura do elo de contágio47, o que
embasava a internação de doentes no lazareto, Hospital de Isolamento
situado na rua Boulevard 14 de julho, hoje Avenida Portugal48. A
internação, no entanto, não era obrigatória, embora fosse defendida
pela editoria do jornal com alguma frequência:

a saúde pública está a mercê da vontade dos variolosos, não


havendo para quem apelar diante das instruções que os poderes
competentes julgam de bom aviso transmitir aos seus
representantes nessa cidade49.

Num dos quartos existentes a rua Conde de Porto Alegre há


também uma mulher atacada de varíola. O carro da polícia
esteve ali ontem afim de conduzi-la para o Lazareto, mas
houve recusa e por isso ali ficou. Imagina se num local
daqueles onde há gente amontoada e falta absoluta de higiene,
que perigo não é a existência daquela enferma 50.

No relato em que um carro da polícia e uma enferma são


citados como sujeitos principais, o lazareto figurou como um lugar
renegado. A doente permaneceu onde estava e foi apontada pelo jornal
como irradiadora do perigo. A relação da população com o hospital
que recebia “variolosos” não é surpreendente, na medida em que o

46
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 267, 23 de novembro de
1904.
47
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 74.
48
PEDROSO, Ticiano Duarte, 2008. p. 52.
49
ECHO DO SUL. A´s quintas. Rio Grande, número 201, 01 de setembro de
1904.
50
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 267, 23 de novembro de
1904.

36
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

local era acionado em casos graves, além de cenário de muitas mortes.


Na edição de 24 de novembro de 1904 afirmava-se: “Vitimado pela
varíola faleceu ontem no lazareto, Pedro Ângelo, casado, empregado
do Moinho Rio Grande”51. Em 2 de dezembro: “Vitimado pela varíola
faleceu esta manhã no lazareto Estadual o menor Juvenal de 2 anos de
idade, filho de Maria Alzira da Silva”52. Também em 7 de dezembro,
juntamente a informação de que 25 pessoas morreram de varíola em
janeiro, o jornal anunciou: “No Lazareto Estadual faleceu hoje uma
criança vitimada pela varíola53”.
Destacamos esse pequeno bloco de relatos das mortes no
hospital de isolamento, também listadas na tabela em anexo, para
refletir sobre o significado que o hospital conservava junto à
população. Longe de ser um lugar de cura, o lazareto era um lugar de
mortes54. Nesse sentido, não surpreende que muitos doentes
recusavam-se em ser removidos para o prédio situado há uma grande
distância dos locais habitados da cidade. Foucault ressalta que o
hospital como instituição de exclusão e separação social era uma
característica da Idade Média, em que a medicina não era
propriamente hospitalar55. Embora essa constatação aponte a
existência do lazareto como um anacronismo, visto que data também

51
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 268, 24 de novembro de
1904.
52
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 275, 2 de dezembro de
1904.
53
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 279, 7 de dezembro de
1904.
54
Ressaltamos que o jornal Echo do Sul noticiava apenas as mortes, no
entanto, em matéria do dia 14 de janeiro de 1905, o jornal respondeu a uma
crítica do Diário do Rio Grande, que o acusou de nunca noticiar os curados
que recebiam alta no referido hospital. Em resposta o impresso acusou o
Diário do Rio Grande de não noticiar as mortes que aconteciam no Lazareto
(ECHO DO SUL. Como se explica? Rio Grande, número 12, 14 de janeiro de
1905).
55
FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In: FOUCAULT,
Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 101.

37
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

do início do século XX, é interessante pensarmos o hospital de


isolamento dentro de uma lógica bastante paradoxal. Enquanto o
jornal o apontava como um lugar de cura da sociedade, na medida em
que protegia a população das doenças contagiosas, era visto também
como um lugar de exclusão, visto que retirava do âmbito coletivo os
indivíduos considerados perigosos para a saúde pública.
Também a salubridade urbana era destacada como relevante
para o período de doenças que caracterizava o verão. Em notícia de 10
de dezembro de 1904 o jornal publicava:

É insuportável o fétido que exala do lago existente na praça


Tamandaré, devido a água nele contida achar-se
deploravelmente suja e podre. A municipalidade deve mandar
proceder a necessária limpeza naquele lago, pois as águas
imundas não só prejudicam o olfato como a saúde pública 56.

As críticas sobre o saneamento de ruas, de praças e de prédios


eram uma constante no jornal que, conforme Silva, defendia os
melhoramentos urbanos e, consequentemente, promoviam uma crítica
ao governo57. Como já apontamos, a consideração das deficiências
urbanísticas e sanitárias não passou despercebida nos Relatórios da
Câmara Municipal de Rio Grande. Todavia, a falta de autonomia de
decisões sobre o destino dos fundos recebidos do governo do estado,
assim como a parca disponibilidade dos mesmos para o município,
segundo os registros, teria sido um grande empecilho para o
empreendimento apropriado e de curto prazo. Assim, a população
riograndina via-se propensa a vivenciar a acentuação de epidemias em
razão das inúmeras deficiências que só auxiliavam na difusão rápida e
intensa de moléstias infectocontagiosas.
O mês de dezembro de 1904 foi marcado por um número
mínimo de vistorias – segundo as informações do Echo do Sul.
Apenas uma visita in loco foi registrada. Entretanto houve uma
expressiva intensificação no número de notas sobre doentes e mortos,

56
ECHO DO SUL. Nota. Rio Grande, número 282, 10 de dezembro de 1904.
57
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 83.

38
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

o que levou o jornal a publicar, em 2 de janeiro de 1905, que “Esta


epidemia que parece ter se aclimatado em Rio Grande continua a fazer
vítimas”58. No dia seguinte o jornal reforçava esta análise com um
texto refletindo sobre a postura das autoridades no que se refere aos
cuidados com a saúde pública. Tal posição, para os redatores, não
combinava com o status de país e mesmo de um estado moderno,
urbano e industrial apregoado incessantemente.

Em todos os países civilizados as delegacias de higiene


existem para velar pela salubridade pública [...] Aqui dá-se
absolutamente o contrário. Quando o infortúnio lhe apraz
trazer-nos um flagelo, como o que temos a registrar
presentemente, as autoridades sanitárias cruzam os braços,
numa desídia inqualificável [...] E nós, como defensores dos
interesses da coletividade rio-grandense, cumprimos neste
momento a obrigação de censurar abertamente a negligência
das autoridades sanitárias em face do flagelo que vem
amargurando esta população59.

Na sequência do texto foi elaborada uma comparação entre


Rio Grande e Pelotas. A matéria trouxe como conclusão a tese de que
as autoridades locais, ao contrário das da cidade vizinha - que teria
extinguido a doença com sucesso -, ignoravam as necessidades
públicas mais básicas, permitindo que a varíola criminosamente
matasse dezenas de pessoas todos os meses. É interessante pensarmos,
pautadas em Silva, como a postura do jornal de certo modo agendava
a opinião pública ao colocar temas em destaque, nesse caso, o assunto
era o descaso das autoridades em relação à epidemia de varíola que
havia se instalado na cidade60.
Uma das queixas do jornal foi a não desinfecção de prédios
que abrigavam doentes. Como afirmado anteriormente, antes da
chegada do verão o Echo do Sul noticiou uma série de vistorias que

58
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 1, 2 de janeiro de 1905.
59
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 5, 6 de janeiro de 1905.
60
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 15.

39
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

vinham sendo efetuadas em prédios da cidade, algumas resultavam em


multas e outras em ordens de limpeza e de asseio. Contudo, como
verificamos ao longo da pesquisa nas fontes, com a chegada do verão
e o aumento do número de ocorrências da doença, a quantidade de
vistorias noticiadas decaiu drasticamente. Já em janeiro o jornal não
registrou nenhuma vistoria, momento em que o número de mortes e
doentes era crescente.
Em 7 de janeiro de 1905 o alastramento da doença no bairro
Cidade Nova foi, então, explicado: “O motivo da ramificação da
varíola na Cidade Nova é a constante transferência de variolosos de
um para outro prédio sem que seja desinfectado aquele onde se
manifestou a moléstia”61. Em vista da ausência de registros de
vistorias nos meses cruciais de emergência da doença, a crítica à
Delegacia de Higiene mostrava-se justificada (reforçamos que
estamos nos atendo ao discurso do Echo do Sul e que uma pesquisa
em outros registros pode evidenciar algum investimento que, no
diário, fora silenciado). Enquanto nota de 9 de janeiro constatava em
apenas um dia “5 casos fatais”62, vistorias e providências não eram
divulgadas pelo Echo do Sul. A Delegacia teria funções de
fiscalização, mas segundo as avaliações do periódico, não estaria
realizando a contento as suas atribuições. Ainda em 1903 vemos uma
crítica severa do diário a essa instituição por ocasião da epidemia de
peste bubônica – o que evidencia a recorrência da avaliação sobre a
inação da Delegacia. Conforme o artigo do Echo do Sul:

Nada, absolutamente nada se tem feito em prol da saúde


pública e, no entanto, a peste vai recrudescendo dia a dia! Na
semana que hoje finda NOVE FORAM OS CASOS FATAIS
de peste bubônica que está ramificada por toda a cidade...
Como se vê, a luz dos fatos lutuosos, tristíssimos o flagelo vai
tomando proporções assustadoras e alarmantes! A delegacia de
higiene, porém, continua inerte, em criminosa apatia deixando

61
ECHO DO SUL. A variola. Rio Grande, número 6, 7 de janeiro de 1905.
62
ECHO DO SUL. Ainda a variola. Rio Grande, número 7, 9 de janeiro de
1905.

40
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

em completo abandono a saúde pública, justamente em uma


época que se vai tornando calamitosa. Providencie, pois, o
chefe do governo local, uma vez que a delegacia de higiene
nesta terra infeliz não passa de uma múmia 63.

O Delegado de Higiene do período, Marciano Espíndola


(1875-?)64, foi alvo de uma série de críticas que remontavam a
displicência do município em relação ao controle da epidemia da
varíola. Em matéria de 10 de janeiro de 1905, o jornal apontava:

a delegacia de higiene, esquecida dos seus deveres, assiste


impassível a passagem do espectro da morte que vai
devastando lares, dizimando famílias e espalhando a dor por
todos os recantos da cidade. [...] Quando aqui apareceu a
varíola, importada do Rio de Janeiro, a delegacia de higiene
deveria tratar logo de localizar o mal, só abatendo os seus
esforços quando o visse completamente extinto. Isso seria fácil
se não houvesse condescendência e falta de atividade65.

Na matéria o então responsável pelos rumos sanitários da


cidade era acusado de ocupar o cargo indevidamente, em função de
conchavos políticos e, ainda, de assistir às mortes passivamente. De
acordo com a citação, a doença, que teria sido importada do Rio de
Janeiro, só proliferou-se pela cidade porque nela encontrou um local
propício a sua expansão. Como cidade portuária, também o Rio de
Janeiro era percebido como lugar de proliferação de doenças. Silva
ressalta que a peste bubônica, por exemplo, teria se espalhado pelo

63
ECHO DO SUL. Rio Grande, número 83, 11 de abril de 1903.
64
Segundo Franco e Ramos, Mariano Cardozo Espíndola teria iniciado seus
estudos na Faculdade de Farmácia na Escola de Ouro Preto. Posteriormente,
transferiu-se para a Bahia onde concluiu o curso de farmácia. Após, cursou
medicina no Rio de Janeiro. Atuou como delegado na Diretoria de Higiene
durante as epidemias de varíola e peste bubônica na cidade de Rio Grande.
Apud: SILVA, Raquel Padilha da, 2009. p. 32 (nota 13).
65
ECHO DO SUL. Ainda a variola. Rio Grande, número 8, 10 de janeiro de
1905.

41
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

país através do porto de Santos66. Nesse sentido, as cidades portuárias,


como locais de entrada e saída, eram vistas com olhos atentos, em
função de estarem sujeitas a uma série de doenças “estrangeiras”.
Já em 23 de janeiro de 1905 o jornal noticiou providências
sendo tomadas pelo governo do estado no combate a varíola na
cidade. A chegada do Dr, Falk, ajudante da Diretoria de Higiene do
Estado, e sua reunião com o Delegado de Higiene local animaram o
discurso do Echo do Sul que afirmou: “O Dr. Frederico Falk, segundo
nos consta, requisitará uma força da brigada militar do Estado, a fim
de vir prestar seus serviços no combate à varíola. Outras providências
serão solicitadas aos poderes competentes”67. No entanto, apenas
algumas edições depois o jornal logo lamentou: “Aumenta de
intensidade este terrível mal que dia a dia faz mais vítimas,
estendendo seu manto de horrores por esta terra, digna de melhor
sorte. Hoje foram recolhidos ao Lazareto 13 doentes”68. No horizonte
a possibilidade de mudanças, mas na atualidade dos citadinos a
manutenção de uma situação que se conservou por muitos verões das
primeiras duas décadas do século XX.

“Oceano de indiferença”: doença do verão, preocupação de


décadas.

Em 27 de janeiro de 1905 o Echo do Sul vociferava “não


procuraremos encobrir o que vai de tétrico entre as paredes do
lazareto, para que alguém surja, deste oceano de indiferença que nos
cerca, atirando a tábua de salvação aos pobres náufragos ameaçados
de morte”69. E na sequência, em nota, afirmava “Devia ter sido
recolhido ao lazareto, hoje, um varioloso retirado da rua General
Osório, beco do Magalhães”70. O paradoxo que emerge da

66
SILVA, Raquel Padilha da, 2009. P. 54.
67
ECHO DO SUL. Dr. Falk. Rio Grande, número 19, 23 de janeiro de 1905.
68
ECHO DO SUL. Dr. Falk. Rio Grande, número 22, 26 de janeiro de 1905.
69
ECHO DO SUL. É HORRÍVEL! . Rio Grande, número 23, 27 de janeiro
de 1905.
70
ECHO DO SUL. A varíola. Rio Grande, número 23, 27 de janeiro de 1905.

42
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

comparação dos excertos, de certo modo, resume o período e o papel


desempenhado pelo jornal no recorte temporal de 1904 e 1905.
A complacência verificada em fins de janeiro em relação aos
doentes internados no hospital de isolamento, no entanto, não
corrobora a posição da publicação que nesse verão chamava o olhar
das autoridades para os problemas urbano-sanitários, mas também
para os meios de contágio ambulantes, notadamente as pessoas que
sem recursos para contratação de serviços médicos mantinham-se em
casa ou eram transferidas para o lazareto. Nesse sentido, o discurso do
Echo do Sul estabelecia-se de maneira dupla, na medida em que
chamava a atenção para a destruição dos lares, é importante lembrar, a
maioria pobres, em vista da morte de muitas pessoas, mas também
demonstrava grande preocupação com a configuração da cidade como
centro urbano e, portanto, enfrentador dos problemas de ordem de
saúde pública.
Pelas ruas da cidade, Marechal Deodoro, Villeta, Tiradentes,
Zalony e muitas outras, a varíola marchou impunemente, desafiando
os preceitos da belle époque, que previa mudanças sociais, culturais,
tecnológicas, urbanísticas e almejava o progresso, a modernização e o
desenvolvimento. Rio Grande, marcada pela emersão das areias
litorâneas e pelas promessas do porto, vivia tempos em que os
avanços pareciam óbvios. Contudo, os trechos do Echo do Sul trazidos
em destaque nessa análise apontam que, para além do horizonte de
expectativas, a urbanidade e tudo que ela representava era ainda uma
meta distante, tendo sido pensada como projeto político praticável
apenas em 1923, quando a proposta de saneamento passou do plano a
efetiva implantação, o que durou 14 anos, como atesta Pedroso71.
A epidemia da varíola nos anos de 1904 e 1905, apontada
pelo jornal como um mal que se alastrava em função do descaso das
autoridades municipais, que por sua vez apontavam a falta de recursos

71
Ver: Ticiano Duarte. Saneamento e Progresso: o projeto de Saneamento da
cidade de Rio Grande do plano a implantação (1909-1923). Trabalho de
Conclusão de Curso (Bacharelado em História) – Comissão do Curso de
História, Rio Grande, 2008.

43
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

provenientes do Estado para justificar sua inércia, foi apenas um dos


capítulos da história de Rio Grande que, no começo do século XX,
viu-se “contagiada” por episódios repetitivos de mortes por cólera,
tifo, tuberculose, varíola, peste bubônica e uma série de outras
doenças que se alastravam em função da falta de estrutura nos mais
variados serviços de atendimento à sociedade. As noções de
modernização, portanto, mostravam-se mais como um anseio de
engajamento nos novos tempos, do que como uma preocupação
genuína com a saúde e o bem estar dos habitantes da cidade.
A marcha da varíola, cuja trajetória foi acompanhada dia a dia
pelos jornalistas que compunham o editorial do jornal Echo do Sul,
nesse cenário de progresso e falta de estrutura, de mortos e de
saudáveis, de sociabilidades e de exclusão, de euforia e de receios,
continuou fazendo vítimas nos anos seguintes, atestando que o projeto
político ideológico progressista que pretendia colocar Rio Grande no
mapa do Brasil como um pólo industrial e econômico atingiu sua meta
de forma enviesada. Se a cidade precisou aguardar algumas décadas
para construir-se como um centro de referência do ponto de vista do
desenvolvimento, pouco tempo foi necessário para demarcar Rio
Grande como um “Oceano de indiferença”72 em questões de saúde
pública.

ANEXO

Tabela 1 – Registros de vistorias, doentes e mortos publicados no


Echo do Sul no contexto da epidemia da varíola (ago/1904-jan/1905).
Vistoria Doentes Mortes
Rua /
Edições do
Datas
(N° de (N° de (Nº de Echo do Sul
Localidade
registros) registros) registros)

2 1 31/08/1904; 200; 255; 16


20 de
08/11/1904;

72
ECHO DO SUL. É HORRÍVEL! . Rio Grande, número 23, 27 de janeiro
de 1905.

44
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

fevereiro 19/01/1905

27/10/1904;
14/11/1904;
246; 260;
24 de maio 3 2 24/01/1905;
20; 22; 255
26/01/1905;
08/11/1904

Andradas 1 01/11/1904 250

Andrade
1 26/11/1904 270
Neves

Aquidaban 1 26/01/1905 22

Barão de 08/11/1904;
1 1 255; 24
Cotegipe 28/01/1905

24/10/1904;
Barra 2 244; 275
02/12/1904

28/10/1904;
Benjamin 247; 252;
3 04/11/1904;
Constant 257
10/11/1904

08/11/1904;
Bento
1 1 1 16/01/1905; 255; 13; 19
Gonçalves
23/01/1905

Boulevard 08/11/1904;
1 1 255; 24
Carlos Pinto 28/01/1905

05/11/1904;
22/11/1904;
253; 266;
24/11/1904;
Caramuru 1 2 5 268; 10; 11;
12/01/1905;
21; 24; 25
13/01/1905;
25/01/1905;
28/01/1905;

45
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

30/01/1905

Carlos
1 07/11/1904 254
Gomes

Carlos Pinto 1 26/01/1905 22

Cidade Nova 1 07/01/1905 6

28/10/1904;
29/10/1904;
31/10/1904;
01/11/1904;
247; 248;
08/11/1904;
249; 250;
09/11/1904;
Conde de 255; 258;
5 6 2 23/11/1904;
Porto Alegre 267; 269;
25/11/1904;
270; 281;
26/11/1904;
12; 16; 22
09/12/1904;
14/01/1905;
19/01/1905;
26/01/1905

Conselheiro 12/11/1904;
1 1 259; 26
Pinto Lima 31/01/1905

Coronel 10/11/1904;
2 257; 266
Sampaio 22/11/1904

26/08/1904;
28/10/1904;
29/10/1904; 196; 247;
Francisco 01/11/1904; 248; 250;
5 3 2
Marques 05/11/1904; 253;257;
09/11/1904; 258; 260
10/11/1904;
14/11/1904

3 3 31/08/1904; 200; 257;


General
09/11/1904; 258; 267;

46
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Bacellar 10/11/1904; 268; 269


23/11/1904;
24/11/1904;
25/11/1904

29/10/1904;
08/11/1904;
11/11/1904;
248; 255;
14/11/1904;
258; 260;
General 21/11/1904;
4 6 1 265; 266;
Câmara 22/11/1904;
281; 294;
09/12/1904;
16; 19
24/12/1904;
19/01/1905;
23/01/1905

General
1 19/01/1905 16
Canabarro

01/11/1904;
14/11/1904; 250; 260;
General Neto 2 2
25/01/1905; 21; 22
26/01/1905

25/10/1904;
27/10/1904;
General 245; 246;
2 3 29/10/1904;
Osorio 248; 15; 23
18/01/1905;
27/01/1905

General
1 23/01/1905 19
Portinho

26/08/1904;
29/10/1904; 196; 248;
General 31/10/1904; 249; 257;
6 4 1
Vitorino 09/11/1904; 258; 259;
10/11/1904; 09; 11; 22
12/11/1904;
10/01/1905;

47
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

13/01/1905;
26/01/1905

02/12/1904;
07/12/1904;
22/12/1904;
24/12/1904;
275; 279;
31/12/1904;
291; 294;
02/01/1905;
300; 01; 06;
Lazareto 2 13 07/01/1905;
07; 11; 17;
09/01/1905;
19; 22; 24;
13/01/1905;
25
20/01/1905;
23/01/1905;
28/01/1905;
30/01/1905

Linha do
1 09/12/1904; 281
Parque

14/11/1904;
28/12/1904;
04/01/1905;
260; 297;
Marechal 06/01/1905;
1 1 6 03; 05; 12;
Deodoro 14/01/1905;
20; 22; 26
24/01/1905;
26/01/1905;
31/01/1905

Marechal 31/08/1904;
1 1 200; 19
Floriano 23/01/1905

Marquês de
1 11/11/1904 258
Caxias

Osório 1 05/12/1904 277

01/11/1904;
Paysandu 2 250; 259
12/11/1904

48
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

04/11/1904;
Rheingantz 2 1 08/11/1904; 252; 255; 22
26/01/1905

Senador
1 01/11/1904 250
Correia

04/11/1904;
02/01/1905;
07/01/1905; 252; 01; 06;
Tiradentes 1 2 6
09/01/1905; 07; 09; 12
11/01/1905;
14/01/1905

Trincheiras 1 08/11/1904 255

24/10/1904;
Uruguayana 1 1 244; 18
21/01/1905

Vice
27/10/1904;
Almirante 1 1 246; 22
26/01/1905
Abreu

04/11/1904;
07/11/1904;
09/11/1904;
252; 254;
25/11/1904;
258; 269;
Villeta 1 5 3 09/12/1904;
281; 283;
12/12/1904;
286; 01; 06
15/12/1904;
02/01/1905;
07/01/1905

Visconde de
1 10/12/1904 282
Paranaguá

Vitorino 1 30/01/1905 25

Yatahay 3 1 29/10/1904;
248; 252;
04/11/1904;

49
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

25/10/1904; 245; 266


22/11/1904

01/12/1904;
24/12/1904;
274, 294;
19/01/1905;
Ypiranga 4 2 16; 21; 22;
25/01/1905;
25
26/01/1905;
30/10/1905

27/10/1904;
04/11/1904;
08/11/1904; 246; 252;
05/12/1904; 255; 277;
Zalony 4 1 4
28/12/1904; 297; 01; 11;
02/01/1905; 12
13/01/1905;
14/01/1905

TOTAIS 62 63 52 - -

Fonte: Echo do Sul, Rio Grande, agosto de 1904 a janeiro de 1905


(tabela produzida pelas autoras)

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

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54
O espaço do indesejável: As origens do bairro Cidade.

Ticiano Duarte Pedroso.1

O século XIX foi marcante no cenário urbano da Cidade de Rio


Grande. A partir dos anos 1850 a cidade reorganiza sua estrutura
política, burocrática e urbana. O comércio atacadista de exportação e
importação havia formado uma burguesia local, citadina cujo estilo de
vida remetia aos costumes e hábitos europeus. Muito em breve,
passaram a representar politicamente seus interesses dentro da Câmara
Municipal. A afirmação de Rio Grande como cidade comercial
passava diretamente por uma estrutura urbana adequada e propícia ao
crescimento.
O desenvolvimento urbano de Rio Grande já se mostrava um
assunto recorrente desde os meados do século XIX. Nos relatórios da
Intendência Municipal, questões referentes a este tema, assim como,
as formas mais viáveis de serem colocadas em plano prático, eram
assuntos muito frequentes.
A cidade de Rio Grande até então era protegida por uma
muralha, que ocupava o espaço da atual Rua Moron e da Avenida
Major Carlos Pinto. Essa barreira, conhecida como trincheiras, foi
erguida a época da Revolução Farroupilha e desempenhava a função
de proteger, assim como, delimitar os limites urbanos da cidade. Nela
encontravam-se dois portões que se abriam para caminhos diferentes,
um conduzindo ao litoral (Estrada da Mangueira) e outro, ao interior
do município e cidades vizinhas (Estrada dos Moinhos). (CARDOSO,
2011, p. 8).
O fim das trincheiras, e a incorporação definitiva dos antigos
terrenos devolutos2 aconteceram em um período muito significativo,
momento este, em que a cidade começava a arquitetar as estruturas

1
Bacharel em História – FURG. Mestre em Ciências Sociais – UFPEL. E-
mail: ticiano.pedroso@hotmail.com
2
Os terrenos localizados além da linha de trincheiras passaram a pertencer à
municipalidade a partir de 1878.

55
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

urbanas para o crescimento econômico industrial das décadas


seguintes.
O primeiro sinal de ocupação, além das trincheiras, havia sido
dado em 1855, quando por questões sanitárias o cemitério da cidade
foi retirado do centro e transferido para uma área não muito distante.
Em 1878 a Companhia Hidráulica Rio-Grandense, empresa criada
para fornecer o abastecimento de água à cidade, erguia a sua
imponente caixa d‟água, com capacidade para 1.500.000 litros d‟água,
numa área que estava a três quilômetros de distância do centro da
cidade (PEDROSO, 2008, p. 27).

Planta da cidade de Rio Grande, 1871. Fonte: Bibliotheca Rio-Grandense.

Na planta da cidade acima, apresenta-se quatro marcações. Em


vermelho estão as antigas trincheiras. Em verde, o centro urbano de
Rio Grande, em azul a área projetada para o desenvolvimento da nova
cidade. Por último, os dois círculos em preto assinalam as duas portas
de entrada e saída da cidade.
O relatório da Intendência Municipal de Rio Grande, do ano de
1880, nos dá um panorama de como os antigos terrenos localizados
fora dos limites da cidade vieram a ser incorporados.

56
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Depois de ter esta Câmara mandado levantar uma planta dos


terrenos devolutos situados além das trincheiras, entre as suas
margens oriental e ocidental que bordam a península em que
está situada esta cidade até uma légua de extensão, e já
concedidas á ela em 28 de Agosto de 1834, pelo Conselho
Administrativo da Província, resolveu em Fevereiro de 1878
pedir ao Governo Imperial lhe fossem cedidos para seu
patrimônio, aqueles terrenos, dos quais fez acompanhar da
referida planta, já determinando nela as quadras e as ruas em
continuação desta cidade, além da estrada que vai ao interior
do município, boulevards no centro até a Hydraulica, e na
direção de uma praia á outra. (INTENDÊNCIA MUNICIPAL,
1880, p. 16).

O anseio de incorporar os terrenos devolutos, situados além das


trincheiras, já havia sido indeferido por três vezes. No entanto, um
ofício emitido em 4 julho de 1878 concedia a liberação e o direito de
posse da municipalidade sobre estes terrenos. O avanço da cidade para
as áreas até então devolutas constituía-se em um projeto o qual
demandava um grande planejamento e articulação das autoridades
locais. (RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DO RIO
GRANDE 1880, p. 16).
Dentro desse projeto era necessário não só criar um novo
espaço, mas dedicar a ele cuidados específicos para que este não
viesse a incorrer nos mesmos desacertos do traçado de centro urbano
de Rio Grande. Dessa forma, a Cidade Nova em projeto nascia com
quadras grandes, ruas largas em continuidade com o centro e um
ambiente destinado a construção de uma praça. Para que isso fosse
possível as quadras de número 43, 44,52 e 53 foram suprimidas, em
troca deste grande espaço destinado ao lazer dos habitantes do local.
(RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DO RIO GRANDE
1880, p. 16).
A maneira como estes terrenos seriam postos a
comercialização, assim como as suas dimensões também era algo
discutido entre as autoridades. A Câmara decidiu pelo aforamento ou

57
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

venda dos terrenos, porém encontrou dificuldades em manter o padrão


das dimensões estabelecidas pelo Ministério da Agricultura.
A determinação instituía para cada terreno 10 braças de frente.
Porém, não pode ser cumprida em virtude de que as quadras tinham
menos fundo do que deveriam ter e a sua frente era de 45 braças.
Dessa forma, não foi possível estabelecer terrenos com 10 braças de
frente, ficando então cada um com a medida equivalente a 5 braças.
Quanto ao foro dos terrenos o Governo Provincial estabeleceu o valor
de 40$ reis por cada 4. mt quadrados, concedendo que estes fossem
divididos e cedidos conforme os padrões estabelecidos pela Câmara.
(RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DO RIO GRANDE
1880, p. 17).
A nova cidade que se erguia além das antigas trincheiras, era
um espaço marcadamente destinado ao trabalho. O seu surgimento se
deu em cima de algumas certezas. O crescimento da cidade rumava
para a direção oeste da península, a ligação férrea entre Rio Grande e
Bagé era uma questão de tempo, além disso, algumas das grandes
indústrias da cidade - o qual viriam se instalar no final do século XIX
- buscaram justamente estas áreas, mais próximas, ou até mesmo
dentro deste novo espaço que surgia. O relatório da Câmara Municipal
de 1880 já demonstra certa mobilização das autoridades locais em
estabelecer um espaço para a estação central de trens.

Releva porém lembrar, que não havendo hoje duvida alguma


sobre a construção da Estrada de Ferro do Rio Grande à Bagé,
certamente, precisarão os construtores dela, algumas quadras
próximas ás trincheiras, para estabelecimento da estação, como
particularmente me declararam os engenheiros Max Lyon e L.
Stuller, quando por motivo de estudarem o traçado desta
estrada, estiveram por alguns dias nesta cidade.
Para um melhoramento de tanta magnitude como uma estrada
de ferro, além do direito que assiste, deve-se desde já guardar a
preferência, não aforar ou vender estes terrenos á outros, sem
que seja primeiro resolvido sobre os que forem necessários á
referida estrada. (INTENDÊNCIA MUNICIPAL, 1880, p. 17).

58
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A obtenção destes terrenos por parte da Municipalidade foi


considerado um dos melhores serviços prestados, a sua encampação
não representava somente um projeto de crescimento urbano
horizontal, mas aos olhos dos administradores municipais se
apresentava como “imemenso rendimento annual que d‟ahi virá, além
de laudêmio cobrado sobre as transferências que se fizerem”.
(RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DO RIO GRANDE
1880, p. 17).
Os limites bem definidos por quatro boulevards - 14 de Julho,
Major Carlos Pinto, Buarque de Macedo e 15 de Novembro - o
enquadramento e alinhamento das ruas, um espaço destinado ao lazer
e o não aforamento de uma área reservada à criação da Estação
Central Ferroviária evidenciam uma proposta real de crescimento
urbano ordenado, numa região caracteristicamente dominada por
cômoros de areia.

Cidade Nova na década de 1850. Fonte: LEPAN – FURG.

Um ano antes da criação da Estação Ferroviária e da nova


Fábrica da Rheingantz, já era possível visualizar em meio a este
cenário dominado pelos cômoros de areia a nova cidade sendo

59
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

delineada no plano material. De acordo com o relatório da Câmara


Municipal:

Dos terrenos que fazem parte do domínio municipal – pela


concessão de 4 de Junho de 1878 – já a Câmara transacta tinha
aforado, quando esta tomou posse, - mais de cinqüenta
quadras, e já algumas destas casas se acham cercadas e em
começo de ser beneficiadas. Esta Câmara está persuadida – que
logo que comece a funcionar regularmente a estrada de ferro, e
seja melhorada a barra da província, sobrarão elementos para
fazer crescer e prosperar a nova cidade.
Oxalá sejam os estudos autorizados, pelo Governo Imperial, - o
prenúncio de uma nova era de desenvolvimento comercial para
a província em geral e para esta cidade em particular.
(ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL, 1883, p. 6-
7).

A distribuição dos terrenos na Cidade Nova é algo que se


destaca dentro de um cenário político dominado pela burguesia e o
alto empresariado da cidade. O aforamento destes terrenos renderia
uma quantia aproximadamente de 3:000$000, além do imposto
municipal. Porém, o foro somente era concedido “a quem oferece
vantagens em benefício dos melhoramentos materiais do município”.
(CÂMARA MUNICIPAL 1883, p. 4, 5). A forma como estes terrenos
foram repassados variava de acordo com o valor oferecido pelo
requerente. Os lotes localizados nas proximidades da Estação
Ferroviária - Boulevard Buarque de Macedo - podiam elevar-se a
quantia dos 250$000.
O surgimento desta nova área demandou a destruição das
antigas trincheiras. O espaço ocupado por estas, cerca de quarenta
metros ficou de posse da Administração Municipal, que já havia
determinado a construção de um grande boulevard que corria “de mar
a mar” 3, do Saco da Mangueira à Lagoa dos Patos. Os terrenos
3
No relatório da Câmara Municipal do ano de 1883, o autor utiliza-se do
termo de “mar a mar” para se referir ao boulevard Major Carlos Pinto que
ligaria o Saco da Mangueira a Lagoa dos Patos.

60
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

restantes entre o Boulevard e a Rua Moron foram vendidos em leilão


público pela Intendência do Município.
Nos primeiros anos, a forma como se desenvolveria a ocupação
da Cidade Nova esteve envolta a muitas especulações referentes ao
desenho e enquadramento definitivo de suas ruas, ao aforamento e
rendimento destes terrenos, e ao possível desenvolvimento da região.
Entretanto, o efetivo êxito deste projeto de expansão urbana, estava
diretamente ligado e dependente da instalação de duas grandes
estruturas: Estação Ferroviária e a nova Fábrica da Rheingantz. De
acordo com Raphael Copstein:

Foi a oeste que situou a área de maior expansão [...] Agora a


exigência decorrente da entrada da cidade no campo da
indústria não artesanal impeliu a abertura do loteamento até
hoje conhecido como “Cidade Nova”. Com isso duplicou-se a
superfície urbana. Por mais de meio século, esta foi a principal
área de crescimento citadino. (COPSTEIN, 1982, p. 65).

A Cidade Nova é a primeira experiência de crescimento urbano


ordenado. Estava localizada numa região considerada estratégica para
o desenvolvimento, visto que, toda a área suburbana da cidade se
encontrava na direção oeste da península seguindo o caminho da linha
férrea, fosse em direção a Vila Siqueira (Balneário Cassino) ou fosse
para Bagé. A partir dele, a cidade ganharia novas formas, novos
espaços e dinâmicas sociais, pois, ele insere um novo modelo de
ocupação, o loteamento suburbano.
Dentro dessa dinâmica o bairro se constitui como elemento
chave para se pensar a cidade da época. O crescimento e o sucesso do
mesmo foram exatamente arquitetados em cima da consolidação do
setor industrial e da Estação Férrea do Rio Grande, - porta terrestre de
entrada e saída da cidade, lugar de convergência de muitas de pessoas
- localizada no boulevard de maior movimentação dentro do bairro.
Como pode ser percebido neste primeiro momento, a Cidade
Nova começa a ganhar um sentido real, parte de um anseio da
administração municipal, para um projeto em planta e por fim se
materializa com o loteamento dos terrenos e a abertura de algumas

61
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

ruas. Dentro desta temporalidade marcada pelo surgimento de grandes


estruturas fabris na área, cabe também o registro de uma composição
fundamental para o desenvolvimento desta região, a Companhia
Carris Urbanos do Rio Grande.

Da cidade de areia ao bairro operário

A instalação dessas estruturas modificou a paisagem de areia,


em meio aos cômoros surgem construções industriais, trilhos, ruas e
habitações. O relatório da Câmara Municipal do ano de 1885
apresenta a seguinte situação:

Com a inauguração do trafego da estrada de ferro a 2 de


Dezembro de 1884, e a com a do serviço da linha de Carris
Urbanos a 30 de Outubro, do mesmo ano, tomou a Cidade
Nova grande impulso.
Também concorreu poderosamente para o aumento das
edificações que ali se encontram, e para o movimento da
população para aquele lado, o importante estabelecimento dos
dignos industrialistas Srs. Rheingantz e C., que se tem
desenvolvido sob a hábil administração do Sr. Comendador
Carlos Guilherme Rheingantz, de maneira a ser brevemente, se
não é já, o primeiro estabelecimento industrial do país
(RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL, 1885, p.13).

A grandiosidade da indústria Rheingantz suscitou a demanda de


mão-de-obra especializada, e também criou a necessidade de ter
pequenas fábricas, oficinas, especializadas, em atender as exigências
desta indústria. Beatriz Loner (2001) destaca o fato de haver sempre
próximo as grandes indústrias uma quantidade de outros
estabelecimentos, costumeiramente chamados de oficinas.
Normalmente estes estabelecimentos prestavam serviços de consertos
até mesmo fabricação artesanal, fato este, que autora diz ser uma
dificuldade do enquadramento característico entre oficinas e pequenas
indústrias (LONER, 2001, p. 53).

62
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

De fato a Fábrica Rheingantz, gerou uma grande demanda de


mão-de-obra, seja ela estrangeira ou nacional, direta ou indiretamente
ela foi responsável por concentrar em seus arredores uma grande
população de trabalhadores. Entende-se que não pode ser atribuído
por completo o desenvolvimento do bairro a esta indústria, como pode
ser visto aqui, são vários os elementos que contribuíram para a
consolidação deste como bairro, entretanto, a história da Cidade Nova
está completamente permeada pela presença desta moderna indústria.
A seguinte passagem do relatório da Câmara Municipal nos
fornece mais subsídios para a visualização deste cenário ainda em
construção.

Já ali se vêem outras fábricas que embora menos importantes


concorrem para o notável movimento que se observa, já dos
operários, já dos veículos de condução de gêneros etc.
Como um incentivo de grande alcance para a prosperidade e
desenvolvimento da cidade nova, a Câmara pede á patriótica
representação da província, que se digne conceder isenção do
imposto da décima urbana, para todas as habitações existentes
e que possam ser construídas ali durante dez anos.
A compensação não se demorará, pois é fora de dúvida que
enquanto durar a isenção pedida, muitos prédios serão feitos, já
para armazéns e depósitos, já para outros misteres, e daí
resultará o aumento da renda correspondente a um maior
número de contribuintes (RELATÓRIO DA CÂMARA
MUNICIPAL, 1885, p. 13-14).

Colocar em prática o projeto de fazer surgir uma “nova cidade”


em uma área até então inóspita, era um grande desafio que se colocava
a frente das autoridades locais. O projeto inicial do bairro Cidade
Nova visava ser um local destinado a classe mais abastada da urbe.
Entretanto, para que isso realmente acontecesse, foi preciso despertar
o interesse deste público para o novo espaço que surgia.
Como já foi dito, a forma de distribuição inicial dos terrenos era
por venda, ou por aforamento, consistindo a segunda, na prática mais
utilizada pelas autoridades para promoverem o desenvolvimento

63
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

populacional no bairro. O foro garantia o direito de posse dos imóveis


além de render lucros significativos aos cofres municipais.
De princípio, o projeto de ocupação da nova área não se
consolidou como haviam projetado, pois, o mesmo não chamou a
atenção do público destinado. O fraco interesse da elite riograndina
pela área, atrelado a necessidade de gerar moradia para uma grande
massa operária que começava a se formar na região, fez com que as
autoridades municipais tomassem novas medidas. No ano de 1885
começou a tramitar na Câmara Municipal o plano que mais tarde
resultaria na forma mais eficaz de desenvolvimento do bairro, a
isenção das décimas urbanas.
O período que vai de 1884 até as duas primeiras décadas do
século XX é emblemático dentro da história da cidade de Rio Grande.
Encontra-se nessa temporalidade a formação de uma nova dinâmica
urbana, assim como, a cidade industrial começa a se consolidar. De
acordo com Beatriz Loner em 1888 a cidade apresentava uma
população de 20.277 habitantes, sendo que 900 estavam concentrados
na Cidade Nova (LONER, 2001, 59,60). A seguinte passagem do
relatório da Câmara possibilita uma melhor visualização deste cenário.

Há ruas, nesta cidade, que não têm um unico lampeão; outras


que só contam dous ou tres e esses mal localizados. A cidade
nova que occupa já uma área extensa, não conta um só
combustor de gaz!Entretanto, a população ali já é superior a
mil almas, e é nesta parte da cidade que se encontram as
fábricas de tecidos de lã de algodão, a estação da estrada de
ferro, e diversos estabelecimentos de certa importancia, como
cortumes, etc.Só as fábricas de tecidos contam mais de 400
operários, que habitam nas vizinhanças das mesmas.O
movimento da população para o lado desses estabelecimentos,
é já muito consideravel, prolonga-se até á noite, que é quando
chegam os trens do interior. (RELATÓRIO DA CÂMARA
MUNICIPAL DA CIDADE DO RIO GRANDE, 1889, p. 6).

Conforme já foi dito aqui, o crescimento da Cidade Nova


sempre esteve atrelado às estruturas fabris do bairro e adjacências,

64
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

assim como, a Estação Ferroviária. Entretanto, fica perceptível a


necessidade de destinar melhorias nas condições do local. O espaço se
consolida, crescendo dentro de uma necessidade, gerar moradia a
custos baixos para o público proletariado. Mas este crescimento não
resultou em melhorias nas condições de vida, principalmente nas
primeiras décadas.
A necessidade de produção especializada fez com que as
grandes empresas locais importassem trabalhadores de outras
nacionalidades. No início, chegou a existir uma política de importação
de mão-de-obra, com o passar do tempo houve uma tendência de
recuo dessa prática, ficando restrita apenas a mestres e contramestres,
porém, no caso da Rheingantz, chegaram a existir seções compostas
de maioria estrangeira (LONER, 2001, p.79). Este fato foi mais um
contribuinte direto no crescimento da Cidade Nova, tornando a
questão da diversidade étnica dentro deste espaço um dado importante
para ser estudado.
O geógrafo Raphael Copstein (1975) apresenta os dados de um
recenseamento realizado no ano de 1888. De acordo com ele existiam
323 estrangeiros na Cidade Nova, sendo a maioria portugueses. Com a
instalação de mais uma grande estrutura a Fábrica de Charutos Poock,
que também importaria mão-de-obra, estes números tenderiam a
crescer. O autor também menciona a presença dos imigrantes
poloneses na área. Segundo ele, os primeiros grupos de polacos teriam
chegado ao Rio Grande do Sul em 1890, não aparecendo então nos
dados do autor. Este importante grupo étnico, que marcou presença
dentro do bairro, elevaria ainda mais o número de estrangeiros na
Cidade Nova (COPSTEIN, 1975, p. 33).
Mestres e contramestres vinham para a cidade sob condições
mais adequadas de vida. O mesmo não pode ser dito para o restante
dos operários das fábricas que encontravam inúmeras dificuldades no
local. De acordo com Loner, a cidade de Rio Grande apresentava
péssimas condições sanitárias, chegando a haver inúmeras descrições
de miséria, especialmente na Cidade Nova (LONER, 2001, p. 89). De
acordo com o relatório da Câmara Municipal:

65
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

O progresso industrial e fabril desta cidade é notoriamente


grandioso, e cada dia mais se eleva pelo estabelecimento de
novas e importantes fábricas. É pois dever da administração
municipal providenciar no sentido de facilitar aos proletários
meios cômodos de habitação por baixo aluguel, e em condições
higiênicas de domicílios. Parece-me que uma lei de isenção de
décimas por 10 ou mais anos e de todos os impostos
municipais que diretamente recaíssem sobre as construções e
sobre os materiais nelas empregados, animaria os capitalistas a
tais edificações. Submeto ao vosso esclarecimento critério tão
importante assunto. (RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO
DOS NEGÓCIOS DO MUNCIPÍO, 1896, p. 13-14).

Após ser sugerido pela Câmara Municipal no ano de 1885, o


programa o qual previa a isenção das décima urbanas, diminuição dos
impostos relativos a construção e fornecimento de moradia digna ao
operário ainda se encontrava em trâmite na Administração Municipal
da cidade. Chama atenção na passagem acima o fato do incentivo a
construção. O programa de isenção se aplicaria aos capitalistas e não
aos operários, deixando clara a idéia das dificuldades do proletário em
adquirir terreno e construir casa, naquele primeiro momento do bairro.
O operariado se valeria dessa decisão por meio da determinação nos
preços dos alugueis e das condições higiênicas, entretanto, as
condições sanitárias do bairro era algo preocupante.
A concentração operária na área da Cidade Nova gerou também
uma série de outros problemas decorrentes da precária estrutura do
local. Como assim se percebe:

Está se tornando cada vez mais necessária, a vista do


desenvolvimento da população desse bairro, a construção de
um mercado para a comodidade de seus habitantes, em sua
maior parte operários das fábricas ali estabelecidas, os quais
vêm-se diariamente obrigados a vencer grande distância para
chegar ao mercado da praça General João Telles o único
existente na cidade. (RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO
DOS NEGÓCIOS DO MUNCIPÍO, 1896, p. 8).

66
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Como mostra o trecho do relatório, os moradores deste novo


espaço careciam de um mercado para realizarem suas compras. Dessa
forma, precisavam atravessar a cidade deslocando-se até o Mercado
Municipal da Praça General Telles, atual Praça Xavier Ferreira. Neste
primeiro momento, que compreende as duas últimas décadas do
século XIX, observa-se a consolidação da Cidade Nova atrelado ao
público operariado das indústrias locais. No entanto, o dito espaço
projetado ficou restrito ao alinhamento das ruas e quadras, pois como
fica evidenciado o lugar carecia de toda e qualquer tipo de infra-
estrutura urbana.
O serviço de coleta dos materiais fecais e águas servidas até
então não era obrigatório, fato o qual fazia com que uma parcela
muito pequena da população utilizasse este serviço, vindo a despejar
estes dejetos nos próprios pátios de suas casas.
A partir deste mesmo ano, 1896, o Intendente Municipal
decretou obrigatório este tipo de serviço. A Companhia de Asseio
Rio-Grandense, empresa responsável por este serviço, teve o seu
contrato renovado por mais 12 anos. Dentro disso, um novo espaço foi
destinado para o despejo destes materiais o qual passou a ser feito na
altura do Boulevard 14 de Julho, atual Avenida Portugal, entre as
Ruas Cristovão Colombo e Caramuru, bairro Cidade Nova.
A cidade que emergia em meio aos cômoros de areia começava
a ser delineada na medida em que lotes, quadras e terrenos eram
cercados com arame, ou erguidas pequenas casas de madeira nestes
espaços. Muitos destes lotes eram ofertados em editais publicados na
imprensa local. Os interessados deveriam apresentar suas propostas
junto a Intendência do Município, a de maior valor consequentemente
ganhava o direito de propriedade sobre a terra.
Neste período inicial da Cidade Nova também se verifica o
descaso em relação à propriedade. Os relatórios da Câmara Municipal
e Intendência demonstram isso. Muitos foreiros não manifestavam
interesse pela propriedade, não promovendo os cuidados necessários
para o desenvolvimento do local e não pagando os devidos impostos.
Dessa forma, a Intendência Municipal tentava buscar acordo junto ao
responsável pela posse. Em caso de não empenho do proprietário em

67
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

buscar o acordo, o terreno voltava a posse da Administração


Municipal.
O relatório do Conselho Municipal do ano de 1903 mostra que
essa nova cidade recém surgida, avançava sobre o terreno arenoso,
gerando uma série de percalços e necessidades as quais se colocavam
a serem resolvidas, pela Administração do município, entre elas o
alinhamento das ruas.

Atendendo-se ao que requereu a 30 de Janeiro último D. Elisa


Leontina Berand, por seu procurador, Sr. João Rodrigues,
proprietária de uma quadra de terreno sem benfeitorias, com
100m,00 de frente por 85m,00 de fundo na Cidade Nova, que
achava-se encravada em partes nas quadras 31 e 40 e no
Boulevard 14 de Julho, interceptando assim não só o
prolongamento da rua Cristovão Colombo como o alinhamento
do dito Boulevard, e sendo conveniente fazer desaparecer tais
irregularidades, foi por ato n.299 de 16 de Maio, cedido a
mesma D.Eliza Leontina Berand, em permuta da quadra
descrita, um terreno do domínio municipal, isento do foro e o
qual ficou sendo sua exclusiva propriedade, medindo este
terreno 82m,50 a leste pela rua Caramuru, 87m,50 a oeste pela
Cristovão Colombo, 100m,00 ao norte pelo citado Boulevard
14 de Julho, e limitando ao sul com terrenos ainda devolutos.
Assinado o respectivo termo de permuta a 21 de Maio, foi
expedido na mesma data o título de propriedade.
(RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DO RIO
GRANDE 1903, p. 23).

Neste caso, observa-se a existência de uma necessidade de


desocupação do terreno, para tornar possível o alinhamento das ruas
Cristovão Colombo, Boulevard 14 de Julho e Rua Caramuru.
Entretanto, através deste trecho, também é possível perceber a não
existência da Rua das Trincheiras, atual, Rua Visconde de Mauá, pois
o novo lote concedido limita-se ao sul por terrenos ainda devolutos e
não pela presença de uma referida rua, como mostra o mapa da
imagem seguinte.

68
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A nova cidade da precariedade

Aos poucos a Cidade Nova ia ganhando formas, ruas iam sendo


abertas em meio aos cômoros de areia, timidamente as precárias casas
de madeira eram erguidas em grandes terrenos. Este momento que
assinala o surgimento deste espaço é marcado pela completa falta de
infra-estrutura no local.

A Cidade Nova carece de muitos melhoramentos ainda não


encetados e que no entanto alguns trariam augmento de renda
para a Intendencia. Um dos mais importantes é o
abastecimento d‟água que esta Intendencia poderá fazer com as
despesas de cem contos [...] Outro melhoramento, que é
urgente, é a illuminação pela luz electrica, que poderá ser
intentada por meio de concorrência publica, e subvencionada
para animar a quem se proponha fazer tal serviço. Essa
illuminação será publica e particular, fornecendo ao mesmo
tempo a usina energia electrica, como força motora. A actual
illuminação, que é feita a kerozene, é insuficiente e mal
distribuída, pois que há ruas com poucos lampeões e outras
sem nenhum. Outra dificuldade com que luctam os moradores
d‟essa parte da cidade é o escoamento das aguas pluviaes que
ficam sem sahida para a mangueira (Sacco) e para o littoral, em
grande parte impedidas pela Estrada de Ferro Southern
Brazilian, que n‟uma zona de muitos metros não tem boeiros
[...] (RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DO RIO
GRANDE, PARTE VI 1902, p. 4-5).

O problema do abastecimento de água e serviço de esgotos não


estava restrito somente a Cidade Nova, era uma questão muito maior
que afetava em diferentes níveis toda a população riograndina da
época, e por isso, foi elevado a proporções maiores tomando ares de
uma cruzada sanitária. A Companhia Hydráulica Rio-Grandense cada
vez mais se mostrava incapaz de fornecer um serviço de qualidade a
uma cidade em elevado nível de crescimento populacional.
(PEDROSO, 2008).

69
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A iluminação na Cidade Nova era um problema constante dos


moradores do local e se arrastaria ainda por alguns anos até ser
resolvido. A Intendência Municipal fornecia, através de contratos com
firmas particulares, a iluminação das ruas. A nova concessão fechada
com Serafim de Paula Freire, não alterou em praticamente nada a
qualidade do serviço, que era distribuído em 56 lampiões de
querosene (RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DO RIO
GRANDE, 1902).
A diferença de benefícios oferecidos aos moradores do centro e
da Cidade Nova pode ser muito bem evidenciada, até mesmo por esta
questão da iluminação. Enquanto a cidade recebia iluminação via
combustores de gás carbônico totalizando 385 unidades para iluminar
358 ruas, e o restante distribuído entre praças e jardins públicos, a
Cidade Nova era atendida por poucos e precários lampiões de
querosene (RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DA
CIDADE DO RIO GRANDE, 1902).
A falta de investimentos em infra estrutura no bairro também
pode ser percebido pelos valores investidos neste espaço. No ano de
1902 foram gastos em melhoramentos na Cidade Nova, 4:428$360.
Este valor aparentemente pode representar uma cifra alta, porém,
quando comparado aos demais serviços prestados pela administração
municipal, por exemplo: a conservação de praças e jardins, onde
foram gastos 35:064$341, este valor gasto no bairro se torna ínfimo.
(RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DO RIO GRANDE,
1903).
Evidentemente que 56 lampiões não seriam o suficiente para
fornecer iluminação a todas as ruas da Cidade Nova. Muitas casas
foram erguidas em locais onde não existia, nenhum tipo de serviço tal
como água - problema que só seria resolvido na segunda metade do
século XX - e Iluminação. Abrandando este problema, a Intendência
Municipal passou a isentar dos impostos das décimas urbanas, todas
as casas construídas na Cidade Nova nos locais ainda não atingidos
pela iluminação (RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DO
RIO GRANDE, 1903, p. 25).

70
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Os problemas na Cidade Nova, entretanto, não ficaram restritos


somente aos melhoramentos urbanos. Como se pode verificar no
trecho seguinte extraído do relatório da Intendência. De acordo com o
documento:

Diversos moradores e proprietários da Cidade Nova, em


memorial, solicitaram a esta Intendencia a sua intervenção
junto do poder competente no sentido de ser creada ali uma
escola publica mixta para attender-se convenientemente á
educação intelectual de grande numero de creanças que não
podem freqüentar as escolas existentes em outros pontos
daquella localidade. (RELATÓRIO DO CONSELHO
MUNICIPAL DO RIO GRANDE, 1902, terceira parte, p. 2).

O aumento populacional nos arredores da Rheingantz, Cidade


Nova, trouxe também a necessidade de criar uma escola mista, voltada
para atender alunos de ambos os sexos. Em 1904 por iniciativa dos
governos Estadual e Municipal, foi criada uma série de escolas
voltadas para o atendimento dos distritos rurais. Entre essas, destaca-
se a fundação de uma escola, no primeiro distrito, localizada “entre as
fábricas de tecidos da Companhia União Fabril e o Parque Rio-
Grandense”. Este estabelecimento de ensino de início contava apenas
com uma professora, responsável pelo ensino de aproximadamente 66
alunos. Ainda no mesmo ano, outra professora seria nomeada como
adjunta, vindo essas duas a serem as responsáveis pelo ensino de
muitas crianças do bairro. (RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA
MUNICIPAL, 1904, p. 4-34).
Uma das maiores arrecadações para os cofres municipais
provinha do Matadouro Municipal, localizado até então na Avenida
Rheingantz próximo ao Parque. No entanto, há alguns anos esta
estrutura demonstrava necessidades de reformas e ampliação. Este
empreendimento foi muito discutido entre as autoridades municipais
que optaram pela construção de um novo Matadouro em um novo
local. A obra teve início em 1903 e estava localizado numa área
conhecida como “Vendinha” na Volta da Praia. (Atual Rua Henrique

71
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Pancada). (RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNICIPAL, 1904,


p. 36).
A construção do novo Matadouro municipal, em uma área
distante do centro, demandou também o prolongamento das linhas do
bonde até este estabelecimento, visto que, o atendimento do
Matadouro com este serviço estava assegurado no próprio contrato da
empresa. A Companhia Viação Rio-Grandense projetava então ligar o
final da linha, no Parque, com o novo Matadouro, assim como
estender pelo Boulevard 14 de Julho e Volta da Praia até o novo
Matadouro.
No dia 1º de Janeiro de 1905 foi inaugurado o Matadouro
Municipal. A nova instalação atendia os padrões internacionais, e era
tido pelas autoridades do município como um dos mais modernos do
Estado. A grande estrutura estava também atendida por uma linha de
bondes o qual já se encontrava em transito provisório desde o ano
anterior (RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNICIPAL, 1905, p.
10).
A instalação do novo matadouro também ocasionou a abertura
de novos loteamentos, na região. Muito embora não estejam dentro
dos limites geográficos da Cidade Nova, estão inseridos dentro da
dinâmica de crescimento urbano planejado na direção oeste da
península.
Nos relatórios da Intendência Municipal estas novas ruas,
Viação, Coronel Pedrozo e Coronel Pedro Alves aparecem a partir do
ano de 1907, e são classificadas como terceiro distrito urbano
pertencente à Cidade Nova. Porém, estas e outras ruas, já poderiam
ser verificadas na planta da cidade do ano de 1904, sendo
apresentadas como cidade em projeto.
O problema relativo à iluminação da Cidade Nova foi resolvido
em 1908, quando este serviço passou a se dar por meio de energia
elétrica. Os antigos e escassos lampiões de querosene foram
substituídos por 159 lâmpadas incandescentes. Já na região central da
cidade, a iluminação de gás carbônico também sofreu modificações

72
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

positivas, tendo o um acréscimo significativo no nível dos


combustores e velas4.
Tentando dar continuidade ao projeto de melhoramentos
urbanos que incluía, não só a iluminação, assim como uma série de
medidas a serem tomadas na busca por uma melhor qualidade de vida
dos habitantes da cidade de Rio Grande, o então Intendente Municipal
Capitão Dr. Juvenal Octaviano Miller contrata em 1908 a maior
autoridade em engenharia sanitária do país, Francisco Saturnino de
Brito.
O contato estabelecido entre e o Intendente e o engenheiro
Francisco Saturnino de Brito foi o maior esforço já destinado aos
melhoramentos urbanos. Chegando na cidade em 1909 Brito andou
por diversos lugares da região, do centro da cidade até o interior rural,
fez breves estudos acerca das condições geográficas e climáticas,
chegando a diversas conclusões sobre como se daria o projeto de
abastecimento de água e rede de esgotos.
Destaca-se a observação feita por Saturnino de Brito sobre a
Cidade Nova. De acordo com o engenheiro:

A cidade Nova precisa merecer desde já a atenção, porquanto


aí se desenvolvem as habitações, sem ordem, e o que pode
facilmente se tornar um distrito salubre está sendo preparado,
pelo não cuidar, para construir também um campo de luta
contra a morte. Chamo a atenção para a convivência de serem
imediatamente estabelecidas por lei as áreas centrais dos
quarteirões e as vielas sanitárias, não podendo ninguém
edificar nos lotes interessados, sem que ceda o terreno para o
pátio central, para o pulmão do quarteirão. (BRITO, 1917, p.
88)

A impressão registrada de Saturnino de Brito sobre a Cidade


Nova, publicada no seu relatório de saneamento do Rio Grande,

4
Os 406 combustores de 9 velas foram substituídos por 750, sendo 300 de 67
velas e 450 de 33. (RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNCIPAL, 1907-
1908, p. 4).

73
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

chama atenção pelo convívio próximo dos moradores com uma


infinidade de doenças cujas causas estavam diretamente ligadas às
precárias condições sanitárias.
O destaque dado para uma possível “obrigatoriedade” de
existir áreas centrais nos quarteirões e a construção de vielas sanitárias
revela uma aglomeração desordenada de casas. A criação de um pátio
central em meio aos quarteirões auxiliava na circulação de ar, no lazer
e também servia como um meio de controle do espaço, padronizando
a divisão espacial do quarteirão. Já a obrigatoriedade de construção de
vielas sanitárias revela o fato da não existência de qualquer outro meio
de descarte das águas, conforme já foi dito aqui, a grande maioria das
águas servidas eram despejadas nos próprios quintais de casa.
Outra questão se sobressai dentro deste contexto, o lixo. Já foi
mencionado aqui o destino dado aos materiais fecais e águas servidas,
os quais eram despejados nas dependências da empresa responsável
pela coleta, localizada no Boulevard 14 de Julho entre a Rua Colombo
e Rua Visconde do Rio Grande, Cidade Nova. No entanto, a partir da
segunda metade da década de 1910, os relatórios da Intendência
Municipal mencionam o aterramento de algumas ruas da Cidade
Nova, fazendo exatamente uso do lixo urbano para esta atividade. O
local onde este tipo de lixo era descartado também ficava na Cidade
Nova, de acordo com o relatório:

A descarga e a incineração do lixo continuam a serem feitas ao


ar livre, à beira-mar, no prolongamento da Rua Marechal
Deodoro, sendo os resíduos destinados ao aterro de uma vasta
área pantanosa que ali existe. Após a passagem das carretas á
hora regular, percorrem as ruas principaes dous carrinhos
aperfeiçoados, que recolhem as pequenas varreduras. A cargo
da administração da Limpeza está o batimento das águas que se
acumulam nas sargetas, o que desaparecerá após o
estabelecimento da rêde de exgôttos, prestes a ser iniciada.
(RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNICIPAL, 1910-
1911, p. 24).

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Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A Cidade Nova se consolidou como o espaço do indesejável.


Nele estavam concentrados operários de baixa renda, desprovidos de
meios sanitários básicos, essenciais na qualidade de vida. Essas
pessoas, em grande maioria viviam de aluguel, em casas de madeira,
divididos em vários e apertados cômodos, convivendo diariamente
com o risco de contaminação por doenças. A cidade que emergiu em
meio aos cômoros de areia, era marcada pela precariedade em todos
os aspectos, desde a água, - que só existia por meio de poços e
cacimbas - despejo dos materiais fecais, e até mesmo da utilização do
lixo urbano como aterramento de ruas.

Considerações Finais

A história que começa no Rio Grande dos anos 1850, se


encaminha até a década de 1880 de maneira não muito detalhada. Mas
a consolidação econômica da cidade no setor de importação e
exportação, e logo a seguir o erguimento da primeira fábrica têxtil do
país mudaram o cenário urbano. No transcorrer do tempo, algumas
ideias começam a tomar forma e ganham coro na voz de políticos
locais. Estes homens, mais preocupados com seus interesses pessoais,
do que com o bem estar da população, foram protagonistas de uma
trama, que envolvia todas as esferas de poder da época.
O direito de explorar os terrenos situados além dos limites
territoriais criava uma nova dinâmica na cidade. A partir deste
momento, era criado o subúrbio em Rio Grande. Este espaço marcaria
um novo rumo. Nele foram fixados tudo o que a cidade não poderia
comportar, grandes indústrias, curtumes, matadouros, despejo do lixo
e a população operária.
Rio Grande da época era uma cidade consolidada por uma
burguesia mercantil, de hábitos europeizados. Dessa forma, os
padrões do velho mundo acabavam por serem reproduzidos por aqui.
A criação de bairros operários em locais fora do centro urbano era um
conceito dominante na época, e parece ter inspirado os governantes
locais.

75
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Os loteamentos ofertados por meio de foro restringiram-se


apenas aos que poderiam contribuir com o desenvolvimento da
cidade, deixando de lado a possibilidade de se criar moradia própria
para os operários e abrindo um enorme campo fértil para a exploração
da terra e imobiliária.
A instalação de grandes estruturas fabris, ou até mesmo das
destinadas a atender essas indústrias foram os fatores de maior
sucesso na consolidação deste novo espaço em fazer-se bairro. A
cidade caminhou na direção oeste, e para este avanço sob o terreno
arenoso da península, os bondes deixaram a sua contribuição. Foram
determinantes na formação de uma nova paisagem urbana que a partir
deles passou a fazer parte do imaginário da população riograndina, o
centro urbano, já não estava mais tão distante do subúrbio operário,
havia uma ligação e uma lógica nisso tudo. A lógica de valorização do
novo lugar, de benefícios oportunos de um grupo de acionistas
composto de políticos e capitalistas locais.
A Cidade Nova não despertou grandes interesses em seu início,
muitos tiveram o seu direito de foro cassado, por não pagarem o
imposto e não investirem no local. Dessa forma, os terrenos voltavam
para a Intendência que novamente tratava de repassá-los. Por tratar-se
de lotes grandes, um quarteirão, favoreceu a exploração imobiliária,
pois essas quadras eram divididas em vários terrenos e neles eram
erguidas casas de madeira que eram alugadas por inteiro ou em
cômodos.
A nova cidade que emergiu da areia seguiu o desenho da planta,
em nome do alinhamento das ruas, terrenos foram cortados, pequenas
lagoas e banhados foram aterrados e cômoros retirados. Com isso o
bairro seguiu a tendência inicial de ser o primeiro espaço projetado,
porém, esta concepção só pôde ser percebida no enquadramento de
suas ruas.
A precariedade material se fez presente na Cidade Nova. De
início, faltava luz, água, esgoto, calçamento, mercado e qualquer outra
forma de amparo ao morador do bairro. O crescimento da cidade
caminhou na direção oeste havendo uma consequente valorização do
local. Algumas questões foram resolvidas, outras amenizadas e outras

76
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

permanecem ainda em aberto como é o caso da rede de esgotos. As


propostas idealizadas por Saturnino de Brito ao bairro não se
concretizaram, os pátios centrais localizados no meio de cada
quarteirão, sucumbiu perante a especulação da terra e do espaço.
A cidade Nova chega ao século XX dentro deste panorama
brevemente apresentado. Esquecida dentro da história local passou
despercebida por anos, sempre vista como apêndice urbano. As obras
da barra e construção do Porto Novo trariam muitos trabalhadores da
área para dentro do bairro, assim como o progresso da Viação Férrea
também marcou a história desta espacialidade. Gilberto Cardoso diz
que a importância política da Cidade Nova nasceu em 1924 com o
Grêmio Republicano Borges de Medeiros. Essa entidade política viu
no subúrbio, composto por inúmeros imigrantes e brasileiros,
operários, o grande ingrediente político para conquistar novos
eleitores (CARDOSO, 2011, p. 8).
A consolidação do local atrelada a necessidade de crescimento
urbano, levaram a busca por novas áreas destinadas a expansão. Como
pode ser visto, no início do século XX, a instalação do novo
Matadouro Municipal ocasionou a abertura de loteamentos,
aparecendo estes dentro das estatísticas da Cidade Nova. Mesmo
tendo os seus limites definidos por quatro Boulevards, entende-se a
Cidade Nova como uma dinâmica que expressa a forma de moradia
simples, o padrão operário de vida em uma região totalmente carente
de infra-estrutura urbana. Seguindo os trilhos dos bondes, a cidade
avança na direção oeste e os antigos limites do bairro se dissolvem na
memória das novas gerações que passam a enxergar a Cidade Nova
muito além do que realmente ela é.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Gilberto Marcos Cento 2011, p.8. Artigo publicado no
Jornal Agora, Rio Grande 12 de abril de 2011.
COPSTEIN, Raphael. Evolução Urbana de Rio Grande. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
N. 122, p. 43-68, 1982.

77
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

__________________. O trabalho estrangeiro no município de Rio


Grande. Boletim gaúcho de geografia, série geografia n.4, 1975.
LONER, Beatriz Ana. Construção de Classe: Operários de Pelotas e
Rio Grande (1888-1930). Universidade Federal de Pelotas. Ed.
Universitária: Unitrabalho, 2001.
PEDROSO, Ticiano Duarte. Saneamento e Progresso. O projeto de
saneamento na cidade de Rio Grande do plano a implantação (1909-
1923). Monografia apresentada ao curso de História, 2008.

Fontes:
BRITO, Saturnino de. Projetos e Relatórios. Saneamento do Rio
Grande. Ministério da Educação e Saúde Instituto Nacional do Livro.
Obras completas de Saturnino de Brito. Volume X. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1943.
RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DO RIO GRANDE.
Apresentado pelo seu presidente Tenente Coronel Antônio Chaves
Campello, 1880.
RELATÓRIO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL,
1883
RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DA CIDADE RIO
GRANDE. Apresentado a Assembléia Legislativa Provincial, 1883.
RELATÓRIO DA CÂMARA MUNCIPAL DA CIDADE DO RIO
GRANDE. Apresentado a Assembléia Legislativa Provincial, 1885.
RELATÓRIO DA CÂMARA MUNCIPAL DA CIDADE DO RIO
GRANDE. Apresentado a Assembléia Legislativa Provincial, 1889.
RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DOS NEGÓCIOS DO
MUNICÍPIO DE RIO GRANDE, 1896.
RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DO RIO GRANDE.
Apresentado ao Conselho Municipal do Rio Grande pelo Intendente
Dr. Conrrado Miller de Campos, 1902.
RELATÓRIO DO CONSELHO MUNICIPAL DO RIO GRANDE.
Apresentado ao Conselho Municipal do Rio Grande pelo Capitão
Carlos A. Ferreira de Assumpção, 1903.

78
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNICIPAL. Apresentado ao


Conselho Municipal do Rio Grande pelo Intendente Capitão Carlos
Augusto Ferreira de Assumpção em 1904.
RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNICIPAL. Apresentado ao
Conselho Municipal pelo Intendente do Município Capitão Dr.
Juvenal Octaviano Miller em 1905.
RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNCIPAL DO RIO GRANDE.
Apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente do Município
Capitão Dr. Juvenal Octaviano Miller, 1908.
RELATÓRIO DA INTENDÊNCIA MUNCIPAL DO RIO GRANDE.
Apresentado ao Conselho Municipal pelo Intendente do Município
Dr. Trajano Augusto Lopes em 1911.

79
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Rio Grande na Era do Titãs, 1880 – 1920: O movimento operário


em sua “fase heróica”

Edgar Avila Gandra.1


Marcos César Borges da Silveira.2

O velho burgo portuário de Rio Grande, localizado na


desembocadura da Laguna dos Patos, sul do estado gaúcho,
experimentou durante a chamada bela época, um notável processo de
industrialização. Até a década de 1920, Rio Grande aparecia como
uma verdadeira ponta de lança da modernidade capitalista no Brasil
meridional, o movimento do porto e a pujança de sua indústria
impressionavam viajantes que percorriam o sul do país. Escritos de
militantes operários descrevem uma paisagem de chaminés, galpões
industriais, maquinismos e toda a sorte de inovações técnicas cujo
aparecimento era celebrado como sinais de um devir utópico, no qual
a sujeição da natureza prometia rotura com o império da necessidade.
Os operários, dado que transmutavam em sua própria carne as
contradições da modernidade, seriam os portadores da utopia social. O
operariado fabril, uma raça de ferro nascida com a Primeira
Revolução Industrial e cujos rebentos se espalhavam pelo mundo,
acompanhando o avanço da modernidade capitalista. Aos
expropriados pela lógica do capital e brutalizados pelo sistema de
máquinas, caberia encontrar, de acordo com as expectativas das
lideranças, a chave para o reino da liberdade: liberdade da
necessidade, liberdade dos patrões, liberdade do passado. Religião
secularizada, o socialismo prometia redimir a humanidade, salvar os
homens colocando-os nos trilhos do progresso material e moral rumo
a uma sociedade sem ricos e pobres, explorados e exploradores,
embora com dirigentes e dirigidos. É grande a distância que separa o

1
Professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da
UFPEL.
2
Professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da
UFAM.

81
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

nosso presente deste pretérito, contudo, quando se olha para este


passado, descobre-se, talvez com espanto, a existência de uma grande
familiaridade, é que, em vez do Outro, encontramos o Nós. Pode-se
dizer que foi no período em tela que as cosmologias do
desenvolvimento, em suas várias modalidades, passaram a compor a
cultura e identidades modernas. Como afirma Sevcenko:

Embora estejamos convivendo hoje com um momento ainda


mais intensamente marcado pela saturação tecnológica,
podemos perceber que é dentro dessa configuração histórica
„moderna‟, definida a partir da passagem do século, que
encontramos nossa identidade (SEVCENKO, 1998, p. 11).

Frente a este contexto, busca-se descrever e analisar aspectos


importantes da modernidade capitalista na cidade do Rio Grande, RS,
com destaque para a formação do proletariado urbano e sua
construção enquanto coletivo organizado e protagonista na luta por
direitos.
Desde meados do século XIX, o Brasil, embora ainda sob o
domínio das forças oligárquicas, experimentou significativas
mudanças em sua arquitetura social. O final do trabalho escravo, a
Proclamação da República, a diversificação da economia e as
inversões de capital estrangeiro contribuíam para mudar a fisionomia
do país. A indústria ganhou maior importância alterando o perfil
econômico e social de vários centros urbanos. Operários, setores
médios e um incipiente patronato industrial - cada qual com suas
demandas - acrescentam maior dinamismo a sociedade e a vida
política no período.
O estado sulino foi partícipe deste processo, experimentando,
desde cedo, um relativo desenvolvimento de suas forças produtivas. A
fábrica, expressão mais acabada do modo de produção capitalista,
tornou-se uma realidade em várias cidades do estado, notadamente,
Rio Grande, Porto Alegre e Pelotas. Rio Grande, devido a sua posição
geográfica estratégica, único porto marítimo do estado do Rio Grande
do Sul, atraiu desde cedo somas expressivas de capitais que foram
aplicadas no parque industrial e no setor de transporte.

82
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Na cidade, além das oficinas de “fundo de quintal” que


caracterizavam a industrialização no período, também havia unidades
produtivas que apresentavam grande concentração de capitais e de
força de trabalho. Muitas destas empresas surgiram a partir das
atividades comerciais e beneficiavam produtos agropecuários e
pescado. Após a I Grande Guerra se instalou na cidade a Companhia
Swift, indústria frigorífica de capitais norte-americanos. No entanto, a
presença de capitais estrangeiros em Rio Grande remonta desde, no
mínimo, o ano de 1908. Neste caso, com destaque para os
investimentos em infra-estrutura como o Porto e a Barra do Rio
Grande; ambas as obras foram realizadas por uma empresa de capitais
franceses, a Cie Française du Port du Rio Grande do Sul. A fábrica
União Fabril, fundada em 1874 por Carlos Guilherme Rheingantz,
constitui um exemplo do vigor das indústrias alocadas em Rio
Grande. Em 1890 a fábrica empregava 150 operários. No mesmo ano,
a empresa passou a constituir uma sociedade anônima, a Cia. União
Fabril. Em 1896, quando o nome foi alterado para Cia. Rheingantz, a
empresa já contava com três unidades produtivas produzindo lãs e
tecidos de algodão que eram exportados para todo o Brasil. Em 1910 a
empresa empregava mais de 1200 operários, entre homens, mulheres e
crianças. A industrialização da cidade de Rio Grande seguiu a
tendência geral da economia brasileira com o setor têxtil aparecendo
como o carro-chefe do processo de industrialização.3
Regimes extensivos de produção, caracterizados por longas
jornadas, baixos salários e péssimas condições de trabalho,

3
Como observam Leonardi e Hardman: O mercado de tecidos (no Brasil em
1866) já estava feito, ao passo que o mercado de grande número de outras
manufaturas existia apenas de forma embrionária. Isso explica, em parte, o
desenvolvimento do setor têxtil como a primeira verdadeira indústria
moderna surgida no Brasil. Assim como na Europa, o setor têxtil teve uma
presença pioneira e ocupou posição de destaque nos primeiros momentos do
processo de crescimento industrial. Isso de deve, também, ao fato de os
tecidos constituírem uma mercadoria básica de consumo para os proletários,
necessárias para a reprodução da força de trabalho (LEONARDI e
HARDMAN, 1991, p. 35).

83
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

estruturavam o mundo do trabalho circunscrevendo tanto as formas de


dominação como de resistência. As formas de controle do trabalho
envolviam desde o simples arbitrário patronal até estratégias de
dominação assentadas no avanço do poder dos patrões sobre o espaço
doméstico dos trabalhadores. A Cia. Rheingantz, por exemplo,
mantinha uma Vila Operária com cerca de 120 casas, montepio
associativo (mantido com a renda dos próprios trabalhadores), escola
para os filhos dos empregados, biblioteca, salão de jogos, além de
outras concessões patronais. Apesar da legitimidade obtida junto aos
operários, o paternalismo de Guilherme Rheingantz não impediu que,
em determinados momentos, eclodissem movimentos reivindicatórios
por parte dos operários. É sintomático que uma das primeiras greves
fabris no estado, em 1890, tenha ocorrido na Rheingantz, deflagrada
em virtude de maus tratos.
As obras no Porto Novo, sob comando da Cia. Française du
Port du Rio Grande do Sul, chegaram a empregar cerca de 4000
trabalhadores. Outrossim, a instalação do frigorífico Swift também
atraiu um considerável contingente de operários originários do próprio
estado, mas também da Europa. O frigorífico, construído num terreno
comprado da Cia francesa nas imediações do porto, chegou a contratar
mais de 1500 trabalhadores. Favorecidos pela ampla demanda deste
tipo de força de trabalho, num momento em que, além das obras no
porto, havia também a construção do frigorífico e da rede de esgotos,
os operários da construção civil passaram a constituir um segmento,
numérico e politicamente, importante da classe trabalhadora. Os
operários da construção protagonizaram várias mobilizações, com
destaque para a conquista da jornada de trabalho de 8 horas, isto já em
1911. Também realizaram várias greves devido a atraso nos
pagamentos, modificações nos contratos de trabalho e em defesa da
conquista da jornada de 8 horas. Constituíram uma categoria que
serve de referencial para a apreensão da capacidade de organização e
de luta do movimento operário no período.
Enquanto a Cia. Française du Port du Rio Grande do Sul
empregava alguns trabalhadores especializados trazidos da França,
várias fábricas do município, como a industria têxtil Ítalo-Brasileira,

84
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

por exemplo, tinham a sua força de trabalho composta


predominantemente por estrangeiros, no caso italianos, a ponto de que
seções inteiras eram ocupadas por trabalhadores imigrados. A fábrica
Poock de fumos utilizava mão-de-obra alemã e importava
especialistas cubanos; já a Rheingantz possuía várias seções ocupadas
majoritariamente por trabalhadores estrangeiros, sendo os mestres e
contramestres de procedência alemã.
Trabalhadores imigrantes - Italianos, alemães, poloneses,
franceses e portugueses - eram comuns nas fábricas da localidade,
todavia isto não implicou num operariado imigrante transplantado da
Europa para o Rio Grande. Na verdade os trabalhadores nacionais,
com importante participação de negros e mestiços, estavam presentes
na indústria e demais setores econômicos, com destaque para as
atividades ligadas ao labor portuário. O operariado local estava longe
daquela imagem, aliás, só válida para São Paulo, de um proletariado
branco e europeu. No caso de Rio Grande, é pertinente pensar em
termos de um operariado misturado. Se não seria correto pensar num
proletariado industrial branco e estrangeiro, menos ainda seria
imaginar uma classe trabalhadora composta por homens. Já se sabe,
há algum tempo, que era comum o emprego de mulheres e crianças
nas oficinas e fábricas locais. Nisso, aliás, Rio Grande também
acompanhava a industrialização brasileira. Existem documentos que
atestam a participação de operárias em várias greves e mobilizações
de classe o que, nos coloca de sobreaviso em relação a uma possível
fragilidade feminina frente aos patrões e seus prepostos. Por outro
lado, boa parte da literatura produzida pelos militantes socialistas no
período em tela sublinha exatamente a fragilidade feminina e a sua
dependência frente aos seus pais, maridos e, quando o assunto diz
respeito ao mundo do trabalho, em relação aos lideres. Parece que
entre as liberdades defendidas pelo movimento operário no inicio do
século, a liberdade de gênero estava ausente ou era defendida por
segmentos minoritários entre, as já minoritárias, lideranças operárias.
Os operários estrangeiros, embora mantendo suas identidades
étnicas, como indica a criação e ou participação de trabalhadores
imigrantes em associações desta natureza, também costumavam

85
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

participar de modo ativo nas entidades operárias como, por exemplo, a


Sociedade União Operária, criada em 1893. Os trabalhadores
imigrantes, em muitos casos, “praticamente transplantados para o
território nacional, mostravam capacidade de luta e vontade de
integração com o movimento nacional” (LONER, 1999, p. 292). Esta
foi, por exemplo, a atitude tomada pelos trabalhadores da fábrica
Ítalo-Brasileira em 1901. Revoltados contra o não cumprimento do
contrato de trabalho, tal como havia sido acertado na Itália,
resolveram paralisar suas atividades assim que chegaram no Brasil.
Não se pode negar a importância dos estrangeiros na
composição da classe trabalhadora e no movimento operário durante o
período em tela. Muitos destes trabalhadores imigrantes possuíam
experiência com as formas de organização e luta que, neste momento,
desenvolvia-se no Velho Mundo.4 Estrangeiros de diferentes
procedências e nacionais, portanto uma militância multirracial - nisso
acompanhando a composição étnica do proletariado brasileiro -
constituíam aquilo que Thompson chamou de “minorias de discurso
articulado” de classe. (THOMPSON, 1987). Estes agentes criavam
organizações e elaboravam teorias e representações visando a
construção da classe enquanto protagonista social e político. Neste
sentido, a constituição de um, jornal, escola e/ou um grupo dramático
operário e de uma associação, geralmente, enfeixando todas estas
iniciativas, denotava um esforço coletivo, no sentido de construir uma
identidade de classe.5

4
Aliás, os militantes operários necessitavam migrar internamente de forma
constante para poderem escapar a repressão; para tanto contavam com o
acolhimento de entidades obreiras espalhadas pelo país, geralmente ao chegar
a uma nova cidade, o militante passava a integrar a vida política e sindical
daquela comunidade através de sua atuação nas sociedades de classe.
5
Segundo Cláudio H. M. Batalha: “... a associação operária é a
materialização da experiência comum no decorrer da qual se constrói a
identidade coletiva; mas é, ela própria, um fator de reprodução dessa
identidade. Isso não significa que o surgimento de uma identidade de classe e
da consciência em determinada categoria ou grupo de trabalhadores só
possam ser constatado a partir de sua organização: elas já se fazem presentes

86
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

No final do século passado, já existiam jornais vinculados ao


movimento operário, como o 28 de Julho, editado a partir de 1885,
por João Evangelista de Lima Frazão, ou, no mesmo período, o Echo
Operário de Antonio Guedes Coutinho. A imprensa operária atuava
na organização dos trabalhadores, debatia sobre suas condições de
vida e trabalho, discutia, geralmente procurando “elevar” aspectos de
seu universo cultural e, com mais afinco, expunha os valores e
projetos dos militantes para a “classe” e para a sociedade. Como
assinala Xerri, os jornais operários orbitavam em torno de um
determinado padrão, constituindo-se por: “poucas páginas,
veiculação de notícias internacionais, de textos doutrinários,
circulação periódica, publicidade praticamente nula, perseguição,
empastelamento” (XERRI, 1996, p. 95).6

em toda e qualquer manifestação coletiva. Ocorre, porém, que no ato da


criação se evidencia a vontade de estabelecer uma identidade cultural”
(BATALHA, 1992, p. 123).
6
No período examinado surgiu uma variada gama de atividades culturais,
lazer e sociabilidade, conferindo a cidade lugar de destaque também no que
toca o desenvolvimento do jornalismo, da literatura, da poesia, do teatro e da
música. A necessidade de estabelecer comunicação num contexto marcado
pela redução das distancias contribuiu para o desenvolvimento e
diversificação da imprensa. Havia, neste período, uma grande variedade de
jornais, editados por diferentes grupos, com interesses específicos, fossem
eles políticos, sindicais, literários ou de outra natureza. Os altos índices de
analfabetismo, principalmente entre as camadas populares, não inviabilizava
a circulação da imprensa, uma vez que existiam salas de leitura onde eram
lidos os jornais em voz alta para grupos. A grande presença de estrangeiros
na cidade, e principalmente entre os operários, também não constituía um
entrave para a circulação de ideias através deste veículo, pois vários jornais
eram editados em línguas estrangeiras.

87
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

O prédio da União Operária possuía um único piso, ainda não inserido


no alinhamento dos prédios da rua, também contava com boa
localização, “logar de muito futuro” uma vez que margeava a área
central da cidade (REVISTA ILUSTRADA RGS, junho de 1911). Sua
fachada em estilo eclético apresentava duas grandes janelas de cada
lado da porta, o prédio contava com várias dependências, todas bem
iluminadas pelas amplas janelas e portas da construção. No seu
frontispício destacava-se a composição formada por duas figuras
humanas, uma masculina e outra feminina, dispostas uma em cada
lado de um globo terrestre de consideráveis proporções sobre um
pilarete.

A fundação da União Operária foi descrita pela imprensa


enquanto a primeira manifestação socialista do Rio Grande
(REVISTA ILUSTRADA RGS, junho de 1911). Sua forma pluri-
profissional de organização, bem como a manutenção de várias
atividades relacionadas ao mutualismo e à beneficência7 sugere a

7
Os anarquistas, apesar de reconhecerem os atrativos que o mutualismo, a
beneficência e o cooperativismo exerciam sobre os trabalhadores, não

88
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

influência socialista no meio operário local. A União Operária de Rio


Grande participou de várias greves e mobilizações durante o final do
século XIX e nos primeiros anos deste século. Neste sentido, tanto os
trabalhadores da Ítalo-Brasileira como os da Poock puderam contar
com o apoio da SUO, Sociedade União Operária de Rio Grande - que
inclusive expulsou um operário da Poock de seus quadros, em virtude
de ter sido apontado como traidor do movimento - durante os anos
heróicos do movimento operário gaúcho (ATAS DIRETORIA SUO,
nº 666,16/12/1908). Mesmo com a retração de sua atividade sindical,
nas primeiras duas décadas da centúria esta associação continuou
prestando relevantes serviços aos trabalhadores. Esta entidade
manteve em funcionamento um amplo quadro institucional em que,
conjuntamente ás atividades assistenciais, educacionais, culturais e de
lazer, efetivou em várias ocasiões a representação política entre as
categorias de trabalhadores e o poder público. A entidade também
esteve presente nas campanhas pela efetivação da jornada de trabalho
de 8 horas, e na luta contra a elevação dos preços dos produtos
necessários à manutenção da vida das camadas populares. Além disso,
proporcionou apoio logístico a inúmeras categorias de trabalhadores
por ocasião de sua organização, ou durante a efetivação de
movimentos reivindicatórios.8

concordavam com estas práticas, para os anarquistas as entidades operárias


deveriam nortear-se pela resistência ou ação econômica direta.
8
Evitando a sua assimilação na política estadual, a S.U.O manifestou uma
postura “neutra” em relação às disputas políticas locais, regionais e
nacionais. Tal comportamento, característico das minorias organizadas do
operariado na Primeira República, visava impedir a absorção das associações
da classe operária na “bipolaridade” política regional. Este artifício, embora
mais formal do que prático, constituía-se num mecanismo de distanciamento
entre as associações operárias e a “grande política estadual” organizada em
torno da clivagem entre federalistas e republicanos. A definição de orientação
político-ideológica das entidades operárias não eram explicitadas pelos
sindicatos, mas deveriam ser creditadas aos grupos que controlavam as
associações. Assim, por detrás de uma fachada institucional manifestamente
imparcial as lideranças operárias procuravam implementar políticas segundo

89
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

No período compreendido desde o final do século XIX até a


conjuntura 1906-1912, a Social-Democracia foi a tendência político-
ideológica dominante. Durante a mencionada conjuntura, os
anarquistas principiaram a sobrepujar os socialistas, processo que
culmina em 1912, momento em que os anarquistas conquistaram a
direção da FORGS, Federação Operária do Rio Grande do Sul, e a
hegemonia no meio operário regional.
O Movimento Operário da cidade do Rio Grande recebeu
grande influência da tendência socialista ou social-democrata e, já no
final do século XIX, uma representação do Partido Socialista foi
fundada nesta cidade: “A fundação do Partido Socialista do Rio
Grande do Sul em 1897 teve efeito no interior do Estado, pelo menos
em Rio Grande, onde em 1-5-1898 foi instalada uma seção do
mesmo” (PETERSEN e LUCAS, 1992, p. 95).
Além do Partido Socialista, a militância social-democrata
articulava-se ao redor do jornal Echo Operário e do Clube Socialista,
fundado em 1903. Os socialistas chegaram a eleger um vereador no
mesmo ano da fundação de seu partido e, inclusive, venceram as
eleições para a intendência desta cidade, em 1900. Em ambos os casos
o Estado interveio e impediu o acesso das oposições ao poder local,
como enfatizam Petersen e Lucas, “na melhor tradição do PRR”
(idem, p. 95).
Apesar da participação de outras tendências na vida
associativa da União Operária - notadamente anarquistas, existiu
nesta entidade, até o inicio do século XX, uma proeminência da
tendência socialista. A hegemonia social-democrata foi reforçada a
partir do momento em que os socialistas foram impedidos de
participar da “grande política regional” voltando-se, deste modo, para
a “pequena política operária” e para a União Operária.
Entre os socialistas, acompanhando a defesa de direitos
sociais básicos, havia amplo destaque para a promoção da educação
nos meios operários. A educação dos trabalhadores era percebida

suas orientações organizacionais e ideológicas, fossem estas anarquistas,


socialistas ou mesmo colaboracionistas (LOURENÇO, 1996, p. 13).

90
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

pelos militantes como um requisito indispensável para a organização


dos trabalhadores:

A natureza não dá saltos, a verdadeira luta é a instrução do


povo... o proletariado deve empregar todo o seu tempo em
educar-se e abandonar todas as pequenas guerrilhas onde se
perde energias e guarda-se para decisiva batalha (JORNAL
ECHO OPERÁRIO, Rio Grande, 01/15/1901).

O projeto educacional levado a cabo pelos socialistas


contemplava os saberes básicos, profissionalizantes e também o
ensino de concepções do socialismo utópico e do positivismo. A
assimilação de elementos provenientes da pequena burguesia na
S.U.O acabou repercutindo na atuação política da entidade. Os
reflexos desta mudança podem ser apreciados através da imprensa
local:

Após dez anos de luta em prol dos seus ideais, soffreu grande
modificação em suas tendências, de modo que é hoje uma
associação simplesmente instrutiva beneficente, recreativa e
mutualista, abandonando os princípios reivindicativos, o que
lhe valeu extraordinária quebra de importância social, posto
que argumentasse economicamente. Em 1899, contava
aproximadamente 1000 associados, hoje não alcança 500
(REVISTA ILUSTRADA, Junho de 1911).

Práticas culturais voltadas para a critica dos grupos


dominantes e à construção da consciência de classe - atividades estas
realizadas por militantes operários que faziam oposição ou que não
pertenciam aos quadros conservadores que passaram a controlar a
entidade a partir do inicio do século XX – compensaram a retirada a
associação da luta político e sindical. 9 As “boas relações” da

9
A ativista libertária e dramaturga Agostina Guizzardi, por exemplo, foi uma
produtora cultural contrária à política efetivada pela União Operária e que,
não obstante, esteve presente na vida associativa desta entidade tanto como

91
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

entidade com o poder público local sugerem um alinhamento da


União Operária com a “grande política regional. Além da isenção de
alguns impostos, como os dízimos das casas construídas nos terrenos
da Associação União Operária, havia também um subsídio público no
valor de cem mil réis, que a intendência pagava mensalmente à
referida entidade, a título de auxilio às aulas do sexo feminino.
Durante a gestão do militante socialista Antonio Guedes
Coutinho, 1909 e 1910, existiu um projeto de reformulação da
entidade, através da qual a associação deveria assumir “um caráter
sindicalista, progressista e livre pensadora” (ATAS DIRETORIA
SUO, nº 699, 31/12/1909). No entanto, Coutinho não arregimentou
apoio suficiente entre as minorias que controlavam a entidade. A sua
plataforma acabou não sendo implementada e depois de alguns
arrostamentos, acabou demitindo-se do cargo de presidente.
Na década de 1910, a presença anarquista na entidade,
liderando o grupo opositor às lideranças burocratizadas, criou um
clima de polêmica. Enquanto as lideranças conservadoras acusavam
os anarquistas de atraírem a repressão para a União Operária, os
libertários os acusavam de traidores do operariado, que, além de
renegaram a luta sindical, haviam transformado a S.U.O num clube
bailante, beneficente, ou mesmo em uma sociedade proprietária10. A
acusação de proprietária, baseava-se no fato da associação cobrar
aluguel de trabalhadores que moravam em imóveis da SUO. Segundo
o jornal A Luta de Pelotas, esta entidade passou a pautar suas ações

oradora em determinados momentos, como através das apresentações de


peças de teatro de sua autoria.
10
A crítica anarquista faz referência à existência de algumas casas e quartos
no terreno da sede da União Operária, além de algumas casas, num terreno
desta entidade, situado na área conhecida como “Cidade Nova”. As
habitações significavam moradia barata para os trabalhadores, mas também
apareciam como uma fonte de receitas para a entidade. Durante o ano de
1916, a direção tentou aumentar suas receitas através do aumento dos
aluguéis. Esta atitude causou muitas reclamações por parte dos trabalhadores,
inclusive muitos inquilinos mudavam-se à noite para não terem de pagar o
aluguel.

92
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

pela lei do dinheiro, não hesitando em pôr na rua pobres viúvas que
atrasavam o aluguel (Jornal A Luta apud LONER, 1999). Os
libertários também criticavam as lideranças conservadoras por criarem
entraves aos trabalhadores mais combativos que pleiteavam sua
associação à União Operária. Esta acusação era referente ao
engavetamento, ou atraso, de proposta de filiação de trabalhadores de
inclinação anarquista na entidade. Diante deste tipo de situação, a
diretoria alegava que se tratava de elementos perigosos e, realmente,
fazia o máximo possível para evitar ou atrasar a entrada destes
trabalhadores na Associação (LONER, idem).
Se, por um lado, efetivou-se um processo de burocratização
nos quadros dirigentes desta importante entidade operária, deixando
uma lacuna no movimento, por outro, abria-se, neste momento, o
caminho para a hegemonia anarquista no Movimento Operário local.
A década de 1910 foi caracterizada pela atuação de anarquistas nas
cidades de Rio Grande e Pelotas. De acordo com Ana Loner, os
libertários:

[...] influenciaram decisivamente o movimento através das


organizações que criaram ou tomaram e das atividades que
implementaram. Foi uma década de intensa mobilização,
culminando com as greves de 1917, 1918 e 1919, década que
demonstrou, ao mesmo tempo, seu potencial organizativo, sua
criatividade no terreno cultural e sua flexibilidade em relação a
questões de lazer. (LONER, 1999, p. 182).

Neste período surgiram várias entidades operárias, como a


Sociedade Beneficente Católica União Rio-grandina e o Centro
Operário, fundado em 1912 e ligado a FORGS. Em 1916 os
libertários constituem a Confederação Operária Rio Grandense, que
contava com o apoio da ativa categoria dos condutores de veículos de
carga.
Em 1918, no contexto da greve geral que abalou a cidade do
Rio Grande, inclusive com conflitos envolvendo operários e forças

93
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

policiais, exército e, inclusive, um destroyer11 da Marinha de Guerra,


os operários do Frigorífico Swift mobilizaram-se fundando a União
Geral dos Trabalhadores, UGT, norteada pela forma sindicalista. Daí
por diante, tendo como porta voz o jornal O Nosso Verbo, editado
pelo militante anarquista Zenon de Almeida, esta entidade12
constituiu-se num baluarte de resistência operária na cidade, sendo
notória sua rivalidade com a União Operária.
Os enfrentamentos entre diferentes facções na S.U.O
mantiveram-se durante os primeiros anos da década de 20. Esta
mudança nos rumos político-ideológicos da União Operária
acompanhava a trajetória do movimento operário no estado. As
pugnas entre correntes oposicionistas e lideranças conservadoras
acabaram sem a constituição de uma nova hegemonia na entidade.
Devido às lutas internas, a Associação não pode cumprir um papel
mais combativo na década de 1920, e acabou sendo transformada em
entidade educacional em 1925, passando a representação da classe
para a União Geral dos Trabalhadores. A União Operária de Rio
Grande, mesmo com o reconhecido reformismo, e em vários
momentos colaboracionismo, continuou usufruindo de prestígio junto
a importante parcela do meio operário e da sociedade local. Para
Loner, a continuidade da sua importância no movimento operário rio-
grandino deve-se ao fato de que:

[...] era uma entidade arraigada na vida da cidade e do próprio


operariado, tinha uma trajetória de lutas, reunia boa parte da
militância dos mais variados matizes políticos e possuía ampla
e bem localizada sede. Assim, este valor estratégico era

11
Parte dos marinheiros da belonave, ao saírem licenciados, demonstraram
apoio à mobilização operária e deram vivas a greve e morras à burguesia,
devido a tal fato, acabaram sendo recolhidos pela polícia militar e conduzidos
ao navio, onde possivelmente foram remetidos à prisão ou outro tipo de
castigo disciplinar (Jornal Rebate apud Loner)
12
A partir de 1920, esta entidade muda seu nome para Federação Operária do
Rio Grande.

94
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

fundamental para qualquer grupo que pretendesse intervir no


movimento (LONER, 1999, p. 189).

Finalizando este ensaio, convém sublinhar a relação dos


operários, em seu fazer-se, com a constituição de uma cidade
moderno-industrial no extremo sul brasileiro. Tais vínculos
englobavam desde o desenvolvimento das forças produtivas, a
constituição de um espaço público, através de um significativo
protagonismo dos trabalhadores, bem como a tessitura de uma e
cultura operária enquanto um dos aspectos definidores da
modernidade de Rio Grande.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATALHA, Cláudio & Outros. Culturas de Classe. Tradução de


Melissa Santos Fortes e Andre Caleffi. 1ª Ed., Campinas: Editora da
UNICAMP, 2004.
. Identidade da classe operária no Brasil
(1880-1920): atipicidade ou legitimidade? Revista Brasileira de
História. São Paulo: ANPUH, v.12, n.23/24, set/1991, ago/1992.
p.111-123.
LEONARDI, Victor; HARDMAN, Francisco Foot. História da
indústria e do trabalho no Brasil: das origens aos anos 20. São Paulo;
Ática, 1991.
LONER, Beatriz Ana. Classe operária: mobilização e organização em
Pelotas. 1888-1937. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Porto
Alegre: UFRGS, 1999.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz e LUCAS, Maria Elizabeth.
Antologia do movimento operário gaúcho (1870-1937). Porto Alegre:
Ed. Universidade/UFRGS/Tchê, 1992.
SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. São Paulo:
Cia da Letras, 1998.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1987.

95
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

XERRI, Eliane G. Uma incursão sobre o movimento operário de Rio


Grande no início do século XX. Dissertação de Mestrado em História.
Porto Alegre, PUCRS, 1996.

96
O Litoral (in) visível Villa Sequeira, Rio Grande (XIX-XX).

Felipe Nóbrega Ferreira.1

Considerações iniciais

Ao colocar dois quadros, lado a lado, em uma galeria de arte


qualquer, e suas composições pictóricas fossem: 1) cena de praia, o
mar, banhistas caminhando ou praticando esportes na orla em vestes
de banho. Alguns trajados com gorro ou chapéu de palha, maiôs,
calções de banho e, ao fundo, cabines de trocas de roupas e uma longa
varanda preenchida por camarotes à beira-mar. 2) cena campestre,
uma linha de horizonte que compreende o verde, um cavalo ao lado de
um sujeito de roupas pesadas, poncho. Um chimarrão que deixa ver a
fumaça da quentura da água e um pequeno cão no canto da cena.
Qual dessas duas composições, um observador ordinário diria
tratar-se do Rio Grande do Sul? A resposta mais provável seria a
segunda opção. É nela que está inserido um universo simbólico do Rio
Grande do Sul: local, vestimentas, apetrechos e tudo mais que remete
em uma construção imagética impregnada ao imaginário sul-rio-
grandense.
É preciso retomar o primeiro quadro, isso porque se trata ele
também de uma descrição do Rio Grande do Sul, só que dessa vez a
partir do seu litoral e do cotidiano de um verão oitocentista no
balneário Villa Sequeira em 1890, cidade de Rio Grande. Esse litoral
foi relegado a uma condição de invisibilidade no que tange o “retrato
ideal” do Rio Grande do Sul.
No presente trabalho, então, apresentamos dois
questionamentos: a condição de invisibilidade dada ao litoral sulino,
mapeando hipóteses como possíveis fatores de obliteração da faixa
litorânea na constituição de um universo simbólico do Rio Grande do
Sul; e a criação do primeiro balneário de banhos de mar na

1
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS. Email: ffnobrega@yahoo.com.br

97
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Província/Estado a partir do documento instituinte de uma apropriação


litorânea que estava em curso quando dos últimos lustros dos
oitocentos.
O documento em questão trata-se do Prospecto da Linha de
Carris de Ferro Rio Grande-Costa do Mar Balnear criado pela
empresa concessionária das linhas de trem até o litoral, bem como
empresa responsável pela administração do local. O Prospecto data de
1886 e, como nos diz Jacques Le Goff, se impõe como uma fonte a ser
“desmontada”:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do


passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as
relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do
documento enquanto monumento permite à memória coletiva
recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com
pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 2003, p. 536).

O prospecto é um desses produtos da sociedade, emaranhado


em tramas que o tecem e fornecem sentido junto ao período em que
foi redigido. Dessa forma, o historiador age naquele ato que Le Goff
chama de “desmontagem”, na qual deve ser desmistificado seu
significado aparente, desatando os nós apertados dessa trama que só
possui a aparência, ou vontade, de verdade. Por isso, remetendo à
ácida frase do francês, não devemos “fazer o papel de ingênuos”: “É
preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar
esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-
monumento” (LE GOFF, 2003, p. 538).

98
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Construindo uma região, instituindo um imaginário.

Nos últimos trinta anos apenas dois trabalhos efetuados em


programas de pós-graduação em História2 versaram sobre a
apropriação litorânea para as práticas de banho no Rio Grande do Sul.
A dissertação Balneário Villa Sequeira – a invenção de um novo lazer
(1890-1905), de Rebecca Enke e defendido em 2005, no qual dá
ênfase na criação de sociabilidades. Por sua vez, Joana Carolina
Schossler apresentou em 2010 uma pesquisa acerca do Litoral Norte
do Estado e as questões ligadas a vilegiatura3 marítima, As nossas
praias: os primórdios da vilegiatura marítima no Rio Grande do Sul
(1900-1950).
A primeira questão a se observar é: o porquê de, ao longo de
mais de trinta anos, apenas dois trabalhos oriundos do campo da
História dialogaram com a faixa litorânea do Rio Grande do Sul e suas
práticas de banho? Importante salientar que ambos datam de datas
recentes, não mais que oito anos.
É no bojo dessa percepção que desdobramos algumas
hipóteses para a invisibilidade que foi dada a uma região e a um
conjunto de práticas que faz parte do cotidiano sul-rio-grandense
desde 1890 – ano de fundação da Villa Sequeira/Cassino4.
Sendo assim, encontramos no texto de Pierre Bourdieu, A
identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica

2
Cabe salientar o trabalho de Celia Maria Pereira acerca do Balneário
Cassino, “Memórias de um balneário: patrimônio edificado do Balneário
Cassino” escrito em 1997 , fruto da especialização em Patrimônio Cultural
pela Universidade Federal de Pelotas, e a dissertação de Maria Terezinha
Gama Pinheiro, defendida junto ao Programa de Pós Graduação em
Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina em 1999 sob o título: A
fundação do Balneário Cassino ao final do século XIX e sua expansão e
transformação no decorrer do século XX.
3
Tal termo ganha sentido em Marc Boyer (2008) quando apresenta que
vilegiar trata-se do ato de possuir segundas residências para aproveitamento
de temporadas de descanso, seja no campo ou na praia.
4
Ao longo do trabalho optamos por usar a nominação de “Villa Sequeira”.

99
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

sobre a idéia de região (2007), um primoroso painel acerca do


conceito fundamental para iniciar esse debate: região. Em sua leitura,
a consolidação em torno de um conceito de região tem início mesmo
em diversos campos da ciência, que se apropriaram de distintas
maneiras interpretativas de tal conceito.
No roteiro que traça apresenta tanto recortes de outros campos
– geografia e economia - como elabora, a partir de sua condição
intelectual de sociólogo, um entendimento frente ao tema na qual o
pós-1968 possuiu importância ao propor uma análise a qual classifica
como “transregional” e “transnacional” (BOURDIEU, 2007). Está
nessa postura à forma como dialogamos no campo da História
Cultural com o texto de Bourdieu, e o quanto ele pode colaborar para
que se perceba a invisibilidade que foi dada às práticas litorâneas
do/no Rio Grande do Sul do século XIX.
Partindo da premissa que o estabelecimento de uma região
obedece, antes de tudo, a uma ordem objetiva vigente na sociedade,
possuindo uma função prática com finalidades de produzir efeitos
sociais, Pierre Boudieu é preciso ao propor:

Mas, mais profundamente, a procura dos critérios „objetivos‟


de identidade „regional‟ ou „étnica‟ não deve fazer esquecer
que, na prática social, estes critérios (por exemplo, a língua, o
dialeto ou o sotaque) são objeto de representações mentais,
quer dizer, de atos de percepção e de apreciação, de
conhecimento e de reconhecimento em que os agentes
investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de
representações objetais, em coisas (emblemas, bandeiras,
insígnias, etc) ou em atos estratégias interessadas em
manipulação simbólica que tem em vista determinar a
representação mental que os outros podem ter destas
propriedades e dos seus portadores. (BOURDIEU, 2007, p.
112)

O autor está atentando para o fato de que esses recortes,


estabelecidos enquanto regiões específicas são frutos de escolhas
direcionadas e com propósitos previamente definidos por aqueles que

100
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

propõem tal divisão. Da mesma forma, ao criar essa divisão territorial,


ao especificar uma região, é preciso dotar ela de um conjunto de
elementos que forneçam algum tipo de alteridade em relação às outras
regiões – aquilo que a caracterizará ao mesmo tempo em que a tornará
distinta, inserindo um “eu” e um “outro” nesse recorte regional.
A luta de representações que se opera a partir da idéia de
região se dá, em Bourdieu, na manipulação de imagens mentais, nas
delegações encarregadas de organizar essas representações e provocar
modificações na maneira de perceber o mundo, de dar sentido a
paisagens e hierarquizar essas mesmas paisagens. São estabelecidas,
então, definições legitimadoras de determinadas visões do mundo
social, e por este meio, de fazer e desfazer os grupos (BOURDIEU,
2007).
Assim, nessas divisões orientadas do mundo social:

O que nelas está em jogo é o poder de impor uma visão do


mundo social através de princípios de di-visão que, quando se
impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso
sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade
do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do
grupo (BOURDIEU, 2007, p. 113).

Se pensar em Rio Grande do Sul é pensar na figura


emblemática do “gaúcho”, logo incorremos na imagem-síntese de um
recorte regional ligado à campanha, o qual faz valer a própria
nominação “gaúcho”. Nessa perspectiva, a identidade sulina é
remetida a elementos como: chimarrão, cavalo, pampa, bravura,
honra, tipo físico, poncho, bombacha.
A antropóloga Maria Eunice Maciel em um de seus trabalhos
sobre a figura do sul-rio-grandense aponta:

A maneira como uma região se reconhece e se vê a reconhecer


implica numa procura por denominadores comuns e envolve
também a formação de figuras, construções esquemáticas que
servem como modelo e que se expressam em „personagens‟

101
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

que pretendem representar a região e seus habitantes evocando


uma relação homem-território (MACIEL, 1994, p. 31).

Dentro dessa lógica específica do mundo social, que está em


constante luta dentro da realidade, para definir, justamente, o que é
realidade, grupos são capazes de impor e difundirem visões de mundo
através de arsenal simbólico próprio. Tratando-se do Rio Grande do
Sul, estamos diante de um discurso performativo que fez reconhecer a
região da campanha, do pampa, como aquela que irradia a dita magia
social que traz à existência a coisa nomeada. Ou seja, faz mesmo
daqueles lugares que não compartilham em nada qualquer traço desse
discurso fundador, também ser inserido em um projeto maior de
homogeneização identitária.
No decorrer dos anos 1980, notadamente através dos textos de
enquadramento marxistas da Editora Mercado Aberto, a História
estava voltada em discussões que levavam em consideração os modos
de produção sul-rio-grandenses5. Com a chegada dos anos 1990, e
notadamente com o texto A Invenção da Sociedade Gaúcha (1993) de
Sandra Pesavento, podemos averiguar as premissas de uma História
Cultural que não só introduzia autores, re-elaborava conceitos,
propunha deslocamentos de temas e objetos, como também
colaborava para pintar com novas tintas a história do Rio Grande do
Sul.
Pesavento, em muito influenciada por uma sensibilidade
antropológica6, partiu do princípio que, o fato de ter existido um
projeto intencional, ou o que chama de “perfil da sociedade gaúcha”,
se dá como uma constituinte recorrente para a criação de uma
identidade. Em suas palavras:

5
Vide Nedel (2005, p. 5) para uma compreensão aprofundada das
imbricações entre a Editora Mercado Aberto e a configuração de uma
historiografia sul-rio-grandense nos anos 1980.
6
Notadamente o livro A parte e o Todo: a diversidade cultural no Brasil
Nação (1992) de Ruben George Oliven.

102
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Esse é um processo constituído historicamente: o da elaboração


em cada sociedade, de um sistema de idéias-imagens de
representação coletiva. A isso dá-se o nome de imaginário
social, através da qual as sociedades definem a sua identidade e
atribuem um significado às práticas sociais (PESAVENTO,
1993, p. 383).

Sabe-se, então, que um recorte regional não é fruto do acaso,


mas de forças que operam no seio da sociedade, instituindo dentro
dela símbolos, alteridades, e representações que forneçam uma
legitimidade inquestionável. Para a historiadora, um difusor de
imagens específicas do Rio Grande do Sul está na institucionalização
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul – IHGRS,
sendo as produções que dali se origina o núcleo primário de uma
“articulação personagem-paisagem”, em suas palavras:

O Rio Grande do Sul identifica-se com a sua dimensão rural, e


o gaúcho, personagem-símbolo da região, é, por excelência,
um homem do campo. Numa evocação telúrica, fundem-se a
imensidão do campo com o caráter indômito do personagem
típico. Monarca das coxilhas, centauro dos pampas, ele é algo
que mistura o componente selvagem, de exacerbação
permanente, com a altivez inata de quem habita imensidões
sem fim. As coxilhas estendem- -se na paisagem sem limites
do pampa, da mesma forma que o seu habitante é um ser criado
sem restrições (PESAVENTO, 1993, p. 388).

Assim, o que estava em jogo no instrumental da literatura


oriunda do IHGRS era uma perenização do instante, onde condições
históricas eram dadas como imutáveis, com um tipo-ideal inserido em
uma sociedade sem mudanças. Isso se constitui em um falseamento do
real, e um deslocamento do sentido não só porque a sociedade jamais
pode ser estática, mas também porque o modelo nunca existiu em sua
integridade.
O que existiu, então, foi a configuração de um imaginário
social que exerceu uma de suas premissas básicas segundo Bronislaw
Baczko, a sua potência unificadora, que lhe é assegurada pela fusão de

103
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

verdade e normatividade, informações e valores, vinculados a ideia de


elaborar respostas à conflitos, ou mesmo projetá-los para a esfera do
mundo objetivo. Nesse sentido, o autor propõe: “O imaginário social
é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva”
(BACZKO, 1985, p. 309).
O imaginário social, assim, fornece um sistema de
orientações, que não são autônomas, mas orientadas, e esse controle –
de reprodução, difusão e manejo – assegura a influência sobre os
comportamentos e as atividades individuais e coletivas, canalizando a
percepção de que algumas escolhas são sempre as únicas possíveis.
Tal noção, segundo o autor: “depende em larga medida da difusão
destes (imaginários), e por conseguinte, dos meios que asseguram tal
difusão” (BACZKO, 1985, p. 313).
Até o presente momento, o que tentamos mapear foram as
circunstâncias que causaram um possível silêncio historiográfico
acerca dos balneários do Rio Grande do Sul. Em terras marcadas por
representações ligadas ao inverno, à interiorização, a possibilidade de
perceber o cotidiano através das estações quentes foi anulada em prol
de um imaginário social específico. Assim, no segundo momento de
nosso texto buscamos trazer a tona rastros da constituição de um
imaginário social que circulava no Rio Grande do Sul e possuía nos
meses de janeiro e fevereiro o seu auge. Embaralhamos os quadros.

Prospecto: Encontrando o litoral, encontrando a Villa Sequeira.

No dia 08/12/1885 encontramos no jornal O Diário do Rio


Grande uma manchete “Bonds para a Mangueira” e a seguinte
informação:

Fizeram-nos agradável impressão e cremos que o devem ter


feito também no espírito da população, as consideradas
justificativas do projeto apresentado pela comissão do
comércio e industria da Assembléia Provincial, autorisando o
governo da província a contractar com a companhia Carris
Urbanos do Rio Grande, o prolongamento de seus trilhos até a
costa do oceano (O DIÁRIO DE RIO GRANDE, 08/12/1885)

104
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Essa é a primeira publicação a respeito da construção não só


de uma linha de trem que alcance a costa da cidade de Rio Grande,
mas também a primeira nota contendo informações concretas sobre a
primeira estação de banhos do Rio Grande do Sul. O local a que se
refere - Mangueira - é o nome do distrito litorâneo da cidade. Até
então estava essa localidade entregue a poceiros que em nada faziam
tais terras lucrar e contribuíam ainda mais para suas feições agrestes
(FERREIRA, 2011).
Nessa passagem registrada na imprensa local, já encontramos
a citação informando a responsável pelo empreendimento: Companhia
Carris Urbanos do Rio Grande. Essa empresa, responsável pelo
transporte no perímetro urbano, irá avançar seus trilhos até o litoral e
realizar um processo que Alain Corbin classifica como “invenção da
praia”, que se dá quando o mar deixa de ser um dado geográfico par
ser apropriado pelos homens como forma de exteriorização da
modernidade (CORBIN, 1989, p. 266).
Com a iniciativa de fundar um balneário, a Carris, na figura de
seu gerente Antonio Candido de Sequeira7, elabora o Prospecto no
qual nos baseamos. Nele está descrito uma série de movimentações –
o reconhecimento de outros balneários que servirão como modelo para
o futuro empreendimento a ser vivenciado. Seja em afastamentos ou
aproximações, o Prospecto dá as feições da futura praia que se
consolidará nos fins dos oitocentos e ganha ainda mais relevo com a
chegada dos novecentos.
Integrado ao estatuto da Carris Urbanos, e publicado pelos
periódicos locais, o Prospecto foi aprovado em assembléia geral de
acionistas. Esse mesmo documento foi repassado ao poder público
provincial, obtendo igual aprovação para extensão das linhas.
O Prospecto foi redigido através de algumas divisões:
Histórico, Interessados, Perspectivas, Razões Financeiras, Razões

7
Logo em 1890 já encontramos registros informando que a localidade passou
a se chamar “Villa Sequeira” em função da proeminência, e como
homenagem, ao gerente da Carris pela implantação da empresa balnear.

105
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Especiais e Conclusão. Procuramos respeitar essa organização


proposta pela fonte, visto que a própria forma original de
ordenamento expressa sentidos, possui suas razões específicas de ser
(CHARTIER, 1990).
Logo em suas primeiras linhas, no item Histórico,
encontramos a informação de que a empresa Carris Urbanos do Rio
Grande adquiriu, em assembléia provincial, autorização para estender
suas linhas até o litoral. E nessa mesma ocasião:

votou a assembléia provincial em subsídio ou garantia de


5.000$000 annuaes por dez annos; e a camara municipal desta
cidade, por sua vez, votou a verba annual de 12:500$00,
também por dez annos, para a garantia da linha que for
construída (PROSPECTO, 26/03/1886)

Na seqüência do prospecto, Interessados, encontramos a


redação:

São os enfermos residentes de toda a província, e mesmo nos


districtos dos estados vizinhos que se ligam a fronteira que por
falta de commodidades nas costas marítimas da província – ou
desistem desse meio therapeutico, que nenhum outro pode
substituir – ou procuram Montivideo ou ainda os portos das
outras províncias ao Norte desta, quando em todos esses
lugares, pelo clima, quer pelos gastos, o sacrifício é enorme e
os inconvenientes insuperáveis (PROSPECTO, 26/03/1886)

Ao iniciar o texto com alusão à terapia balnear, o prospecto


está de acordo com as premissas daquele período que ficou conhecido
como o do “higienismo” no Brasil. Sidney Chalhoub, que trabalha
com o processo de destruição dos cortiços na corte imperial, chama
esse momento específico de “Ideologia da Higiene”:

ou seja, como um conjunto de princípios que, estando


destinados a conduzir o país ao „verdadeiro‟, à „civilização‟,
implicam a despolitização da realidade histórica, a legitimação

106
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

apriorística das decisões quanto às políticas públicas a serem


aplicadas no meio urbano (CHALHOUB, 1996, p. 35).

Chalhoub, especificamente, trabalha com a cidade do Rio de


Janeiro e a apropriação do discurso científica pelos estratos políticos,
no intuito de “limpar” a cidade. Em seu estudo, fornece um
importante quadro dessa ideologia da higiene, que se alastrou pelo
território brasileiro imbuída de um propósito claro: colocar o Brasil no
“caminho da civilização” (CHALHOUB, 1996, p. 35).
A procura pela água, notadamente as águas termais, pode ser
percebida, de forma contundente, na obra do mineiro Stelio Marras.
Esse autor apresenta a leitura de que o “tempo da higiene ambicionava
a totalização da vidam isto é, que seu conjunto de princípios e
pressupostos penetrasse o cotidiano das pessoas, fosse o paradigma a
orientar a vida social civilizada que se queria...” (MARRAS, 2004,
p.98).
Nessa perspectiva, apresenta um rico estudo sobre o uso de
águas medicinais no interior de Minas Gerais, especialmente Poços de
Caldas, refletindo em seu texto o quanto o uso dos banhos
terapêuticos serviam como catalisadores dos novos paradigmas em
circulação na sociedade, que coadunavam ciência, civilização e
progresso no bojo dessa modernidade tropical, que agora conhecia o
“termalismo” (MARRAS, 2004).
Ao traçar um paralelo entre a hidrologia portuguesa e a
brasileira, Maria Manuel Quintela diz sobre o Brasil:

Foi durante o século XIX que nasceram e se desenvolveram as


práticas termais em espaços institucionalizados pela medicina
brasileira. Tudo começou com a descoberta das análises
químicas, ainda na primeira metade do século, e com a
edificação de alguns estabelecimentos termais (Caldas de
Cubatão, Caxambu e Poços de Caldas) (QUINTELA, 2004, p.
252)

Com isso em mente, não podemos desconsiderar que o uso do


argumento ligado às questões terapêuticas dialogava com a medicina

107
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

do período. Ao fazer uso do tema da salubridade, Antonio Candido de


Sequeira não deixava margem para que houvesse questionamentos em
relação à relevância tal proposta. Com uma lógica higienizadora
circulando pela sociedade brasileira, quem iria desconsiderar um
argumento como esse, o qual tornaria um pântano desabitado, como
era o distrito da Mangueira, em um empreendimento balnear
destinado à revitalização do organismo humano?
O argumento do banho terapêutico, assim, funciona como
uma primeira estratégia de convencimento. A segunda forma de
legitimar a construção do balneário se faz, justamente, apresentando
um painel em que as outras localidades apareçam como inadequadas
para o empreendimento dos banhos de mar, após citar Santa Catarina
e as praias do Uruguai, bem como o litoral Norte do Rio Grande do
Sul e outras localidades do centro do país diz:

São oppostas absolutamente as circunstancias do Rio Grande a


taes inconvenientes: o clima é, no verão, de maior pureza; a
sua eterna ventilação, o seu nível que facilita essa ventilação e
a locomoção; a porosidade de seu terreno arenoso que absorve
as humidades e impede a estagnação das águas; a proverbial
barateza e abundancia dos peixes do mar, dos legumes, fructas
e laticínios; a freqüência de communicações de toda classe
com o interior e exterior; o espetáculo do movimento marítimo,
e finalmente a inegável docilidade do povo e seu cavalheirismo
publico e notório. (PROSPECTO, 26/03/1886)

Nesse trecho somos apresentados ao verdadeiro retrato do


paraíso. São considerações naturais imbricadas em formas de
comportamento dos riograndinos, tudo confabulando para um quadro
ideal que não possui precedentes em relação a outras localidades que
fazem uso dos banhos. Além disso, estamos diante de um perfeito
retrato da civilização e do progresso, na qual a força do homem foi
capaz de lutar contra as intempéries da natureza e vencer essa disputa.
Porém, outros interesses estão em jogo. A própria idéia de
“comodidades” sugere esse entendimento, afinal, ao pensar em um
local planejado, entra em curso uma série de outros elementos que

108
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

poderão render dividendos aos cofres da empresa e também aos cofres


públicos.

Interessados são ainda os proprietários de prédios e terrenos


desta cidade, os quaes, pela demanda que haverá de residências
para banhistas, terão melhor rendimento e maior garantia os
seus capitaes. Esses interessados dissemos, devem coadjuvar
com seus recursos pecuniários a execução da linha projectada –
a qual, com o melhoramento público – apresenta vantagens e
resultados colossaes em relação ao pequeno capital que será
realizada. (PROSPECTO, 26/03/1886)

A certeza de uma demanda de banhistas, segundo o prospecto,


criará necessidades que deverão ser supridas pelos “interessados”; que
podemos ler como os donos de hotéis na cidade, ou donos de terrenos
que poderão ser vendidos para construção de casas de praia.
No tópico Perspectivas o painel de influências se desenha em
relação à costa litorânea européia, como também acentua o que chama
de “pequenas indústrias anexas”, que vão desde a construção do Hotel
Cassino até “camarins carruagens e carroças para banhistas, rouparia,
barraca, buffets, tambos e utensis de sigressão marítima, pesca e
natação” (PROSPECTO, 26/03/1886). Ou seja, ao criar e atender as
comodidades necessárias, o balneário também gera e movimenta o
comércio local, fomentando a dita “pequena indústria” e rendendo
dividendos para além da praia em si.
O prospecto cita um conjunto de localidades litorâneas do
período que serviriam aos banhos, são elas: “Montivideo possui entre
outras praias Pocitos e Ramirez; Santa Catharina a Praia de Fóra;
Santos a de São Vicente e Barra; Nitheroy e Rio de Janeiro as de
Icarahy e as de Santa Luzia e a enseada de Botafogo” (PROSPECTO,
26/03/1886).
Logo percebemos uma característica fundamental entre todas
essas localidades: todos fazem parte da costa oceânica. Ou seja, o
grupo de referenciais que representam as “praias de banhos”, os
“balneários”, possuem ligação direta com as águas salgadas do
Oceano Atlântico.

109
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Os balneários termais, as “águas virtuosas” de fontes alocadas


no interior do Estado, notadamente o Litoral Norte, ou mesmo em
Santa Catarina, em momento algum ganham referência no texto. Para
nós é sintomático que o Prospecto elabore um quadro composto
somente por localidades litorâneas, excluindo os exemplos termais,
pois isso credencia a um tipo de discurso terapêutico, bem como
conjunto de representações, específicas para a construção da praia de
banhos no distrito da Mangueira.
Seria pouco provável que aquele que fabricou o Prospecto não
tivesse conhecimento dessas localidades destinadas aos banhos
curativos. Tendo em vista a abrangência das referências situadas em
pontos tão díspares do mapa da América do Sul, percebe-se que algum
tipo de pesquisa foi realizado antes da apresentação desse documento
em assembléia provincial, logo, a omissão a essa modalidade não
pode ser entendida senão como um direcionamento de interesses, que
cotejava às águas salgadas o protagonismo dessa criação balnear.
A água do mar possuía seus componentes próprios, e nessa
perspectiva Alain Corbin apresenta uma das características
primordiais, ou mesmo a primordial, do uso dos banhos de mar:

O mar indomável, infinitamente fecundo, sobretudo nas


regiões do setentrião, é capaz de proporcionar a energia vital,
com a condição de que o homem saiba dominar o terror que o
inspira. Em suas praias encontrará o apetite, o sono, o
esquecimento de suas preocupações. O frio, o sal, o choque
provocado sobre o diafragma pela imersão brutal, o espetáculo
de uma gente saudável, vigorosa, fértil até a idade avançada, a
variedade da paisagem, tudo isso ajudará a curar o doente
crônico (CORBIN, 1989, p. 74).

O que se inscreve é o movimento, a ação do corpo junto à


água do mar e a busca de uma salubridade específica. A energia vital
se origina desse contato com um ambiente hostil não somente por sua
natureza, mas também pelo conjunto de representações diluvianas e
monstruosas que ele proporcionava até meados do século XVI. O
contato com o mar era como um combate, uma luta travada entre os

110
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

homens e a natureza – homens que sairiam sempre fortalecidos desse


encontro que gozava o simulacro de ser engolido, recebiam o
solavanco das ondas para depois retornar a terra firma com os
músculos revigorados.
Podemos perceber uma confirmação dessa noção no trecho
seguinte do Prospecto, quando apresenta as características negativas
das praias do Uruguai:

E entretanto – se a injeção das águas do Prata, por um lado tira


as águas do mar os seus princípios salutres – são as praias de
Montivideo regularmente mansas, pela sua situação abrigada.
E, - notemos aqui – nenhuma das praias que acima nos
referimos está como a costa do oceano na Mangueira, em
constante marulho e frequentemente exposta ao vergalhão
(PROSPECTO, 26/03/1886)

O fator que desqualifica as praias de Pocitos e Ramirez é


associado, justamente, a sua morosidade. Trata-se de duas praias na
embocadura do Rio da Prata que, mesmo com o contato com o
Atlântico, ainda assim, são entendidas como “mansas” e por isso não
são localidades aptas para os fins dessa luta imaginária contra as
ondas que revigoram. No bojo desse argumento podemos perceber,
novamente, a alteridade em relação aos banhos termais, ou em águas
doces, pois ao sugerir o encontro do mar com o Rio da Prata, é
atribuído ao segundo o papel de agente que prejudica a finalidade que
deve ser alcançada pelos banhos: o marulho e o vergalhão8.
Ainda, o Prospecto reconhece que estão em curso
“installações colossaes” nessas localidades uruguaias. Tal informação
permite confirmar aquela idéia de que uma pesquisa foi realizada

8
Marulho, segundo o dicionário eletrônico Houaiss pode ser entendido como
“agitação permanente das águas do mar, constituída pelo movimento
incessante de vagas curtas e pouco altas” ou “o ruído característico que
acompanha essa agitação” (HOUAISS, 2010). Por sua vez, “vergalhão” diz
respeito ao fato de receber um golpe com demasiada força, o que ganha
sentido quando pensamos no choque que as ondas podem proporcionar.

111
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

previamente à confecção do documento, haja visto que ao citar as


instalações que estão sendo construídas seria necessário algum tipo de
contato com essas praias da região do Prata.
É interessante, nesse momento, lançar uma ponte entre a
formação balnear no Uruguai e a proposta elaborada na cidade de Rio
Grande. No texto de Gustavo Valleja, que trata do empreendedorismo
e das atividades ligadas à formação balnear do uruguaio Francisco
Píria, somos informados que desde a década de 1870 os banhos estão
sendo praticados na costa. Sendo que o grande salto qualitativo do
litoral, conforme o autor apresenta, estaria na ação de loteamento de
terrenos e investimento litorâneo por parte de Píria (VALLEJA, 2002,
p. 106).
Para Valleja, a criação de balneário às margens do Rio da
Prata, notadamente Ramirez em 1871 e Pocitos 1875, atendem sim a
uma demanda da população que buscava “otros aires”. Porém, logo na
década seguinte, estaria: “cada vez más difícil em ambas as orillas
discernir hasta donde llegaba el placer y donde comenzaba uma
necesidad, que era ahora la de participar de „concenso ostentatório‟”
(VALLEJA, 2002, p. 106).
Efetivamente, o autor se refere não só ao Uruguai, mas
também aos argentinos que atravessam o rio para se alocar em Pocitos
e Ramirez desde muito cedo. No caso dos argentinos, esses fugiriam
da cidade, buscavam o afastamento da urbanizada Buenos Aires e
procuravam ares mais saudáveis à costa, por sua vez os uruguaios
sempre estiveram mais direcionados a usufruto das praias enquanto
um luxo pertencente à elite oriunda do campo. E o que notamos aqui é
que, na década de 1880, as motivações terapêuticas já estão
conjugadas ao fator “empreendimento”.
Essa característica será acentuada pela presença de Francisco
Píria, apresentado como um grande empreendedor, capaz de tornar
locais ermos e com precárias condições de acesso, em regiões
valorizadas, transformadas em loteamentos destinados as camadas
mais ricas da população uruguaia. No caso balnear é seu nome que
desponta como grande articulador do “negócio” que viria a se
transformar Pocitos e Ramirez, desamarrando-se das premissas

112
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

terapêuticas antes mesmo do começo do século XX e, como afirma


Valleja: “em el imaginário de las elites argentinas e uruguyas la idea
de que el verano mas que um período para „tomar aire‟, como lo habia
sido, representaba la „temporada de banõs‟” (VALLEJA, 2002, p.
107).
Cabe ressaltar que essa conexão entre as praias uruguaias já
havia sido pensada, mesmo que de forma breve, por Maria Terezinha
Gama Pinheiro (1999). Segundo excerto de sua dissertação de
mestrado:

Os relatórios das companhias ferroviárias que administraram o


balneário nos esclarecem que as influências mais próximas
para o despertar do interesse deste novo tipo de núcleo urbano
foram os balneários do Uruguaio (sic) aos quais os gaúchos
estão intimamente ligados, não apenas pela fronteira terrestre
sem descontinuidade física, como também pela identidade
cultural (PINHEIRO, 1999, p. 44).

Para a geógrafa, Pocitos e Ramirez alimentava a imaginação


da elite riograndina naquilo que concernia às possibilidades de
sucesso de uma praia, e complementa:

Acreditamos que a referência às famosas localidades balneárias


européias foi evocada pela divulgação dos benefícios
terapêuticos dos banhos de mar, que tiveram sua origem na
Europa, além do prestígio que traria ao novo balneário,
facilitando a adesão a essa nova prática de forma mais rápida
(PINHEIRO, 1999, p. 44)

Ao seguir aquela lista de praias apresentadas pelo Prospecto,


ele realiza a seguinte classificação da Praia de Fora, em Santa
Catarina:

A praia de Fora em Santa Catharina é situada dentro da Bahia


formada entre a Ilha e pelo continente; é acanhada, e de um
extremo ao outro dominada por casas de moradia que, se por
um lado facilitam as accomodações ao banhista, são por outro

113
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

lado inconvenientes pela falta de liberdade das que família que


alli concorrem, e pelos esgotos que dessas casas provém
(PROSPECTO, 16/03/1886).

A Praia de Fora possui um acesso facilitado, mas carece da


falta de estrutura. Existe mesmo população no entorno dessa praia,
mas as condições de estabelecimento de banhistas se veem
prejudicadas, justamente, por um público não só abrangente,
proporcionando a falta de “liberdade”, mas também um público
bastante dispare daquele que procura os banhos. Nesse período os
habitantes da praia catarinense são, em grande relevo, pescadores.
Sergio Luiz Ferreira, em seu livro O banho de mar na Ilha de
Santa Catarina apresenta essa informação:

[...] o mar já era bastante utilizado pela população. As relações


que se davam na então nascente Nossa Senhora do Desterro
podem ainda ser observadas nas localidades do interior da ilha.
Homens e iam e vinham da pescaria, mulheres extraiam os
moluscos e crustáceos necessários a alimentação da família. O
mar era, portanto, lugar de trabalho. Ia-se a praia em busca da
alimentação necessária a sobrevivência, não para fins de banho
de mar (FERREIRA, 1998, p. 20).

A relação estabelecida entre os habitantes e o litoral de Santa


Catarina, como podemos perceber, estava muito mais conectado à
idéia do trabalho, de lugar de onde provém o sustento, do que
iniciativas ligadas aos planejamentos de lazer e sociabilidade balnear.
Somado a isso, a questão dos esgotos, citado no prospecto, também é
apresentada por Sergio Luiz Ferreira, quando esse diz que até os
últimos anos do século XIX as casas na Praia de Fora estavam de
costas para o mar, usando-o como despejo de detritos (FERREIRA,
1998, p. 48-49). Será a partir de 1911 que, efetivamente, a Praia de
Fora irá se consolidar enquanto lócus da elite comercial e industrial
florianopolitana (FERREIRA, 1998, p. 51).
Sobre as praias localizadas no centro do Brasil Império o
prospecto informa:

114
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

As praias de Santos vão rapidamente desenvolvendo elementos


consideráveis de transporte e conforto. Duas extensas linhas de
carris – uma dellas a vapor – communicam a cidade com estas
praias.

Em Nitheroy a praia de Icarahy monopolisou todos os


progressos da edificação da cidade, e verdadeiros palácios
existem, recentemente construídos em sua vizinhança.
Finalmente, no Rio de Janeiro, as praia de Santa Luzia e
Botafogo mostram uma sucessão de estabelecimentos
balneares de primeira ordem, produzindo largos benefícios aos
seus fundadores (PROSPECTO, 16/03/1888)

Quanto às praias de Santos, o Prospecto cita o nome da Santos


City Improvements (Melhoramentos da Cidade de Santos), e a o
localidade de São Vicente como uma “vila florescente”. Foi essa
empresa que prolongou seus trilhos urbanos até o litoral de Santos em
08 de outubro de 1871, em seu estudo sobre as ferrovias brasileiras
Alen Morrison informa:

The Companhia Melhoramentos da Cidade de Santos opened


an 800 mm gauge tramway from the railroad station to the
beach on 8 October 1871; this was a year before the first
streetcar ran in São Paulo. The town of São Vicente, on the
western side of the island, inaugurated a 1350 mm gauge
interurban tramway to Santos (via Matadouro) on 24 October
1875. The Carris de Ferro da Villa de São Vicente converted
this 9 km line to steam traction in 1885 (MORRISON, 1985) 9

9
Em uma tradução livre: A Companhia Melhoramentos da Cidade de Santos
abriu um calibre de 800 milímetros de bitola elétrica da estação ferroviária
para a praia em 08 de outubro de 1871, este foi um ano antes do primeiro
bonde que funcionou em São Paulo. A cidade de São Vicente, no lado
ocidental da ilha, inaugurou 1350 milímetros de tramway interurbano para
santos (via Matadouro) em 24 de outubro de 1875. A Carris de ferro da Villa
de São Vicente converteu a linha para o sistema a vapor em 1885.

115
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A extensão das linhas até o litoral, por iniciativa da empresa


Melhoramentos da Cidade de Santos teria dado o impulso necessário
aos banhos de mar. A parceria entre a empresa e a municipalidade é
fundamental para o sucesso da empreitada, argumento que em muito
colaborava para o discurso encontrado junto ao Prospecto – que
dialogava tanto com a Intendência Municipal, como também buscava
respaldo no empresariado local.
Curiosa é a relação dos cariocas com o mar. Em similar com
os catarinenses estava o fato de usarem o mar como local de despejo
de dejetos pessoais, e Victor Melo confirma que, ainda no Império,
grande parte do lixo da cidade era jogado no mar (MELO, 1999, p.
43). Porém, ao contrário dos habitantes do litoral de Santa Catarina, a
relação com a alimentação derivada do mar era de distância, segundo
Melo, “até seus produtos alimentares não gozavam de prestígio entre a
população. Constantes eram os avisos em jornais condenando o uso
alimentar do peixe, supostamente um mal para saúde” (MELO, 1999,
p. 44).
A mudança em relação ao mar, segundo esse mesmo autor, se
dá primeiro com o uso dos banhos de mar pela família real. Após o
uso dos banhos de mar para curar mordidas de carrapato de Dom João
VI, a cidade do Rio de Janeiro passa a ter preocupações com o seu
saneamento, mobilizando esforços de médicos, sanitaristas e
engenheiros, com isso: “Mesmo que lentamente, começaram a se
buscar medidas que tornassem a cidade „mais habitável‟, os „poderes‟
da água começaram a ser ressaltados, e os banhos de mar passaram a
ser sugeridos como prática terapêutica” (MELO, 1999, p. 44)
Será em Botafogo um desses redutos destinados a valorização
dos banhos de mar no Rio de Janeiro, local que Victor Melo classifica
com “ainda distante, mas aprazível e perto de um mar mais limpo”
(MELO, 1999, p. 44).
Ainda sobre o Rio de Janeiro, tanto Melo (1999) como Rosa
Maria Araújo (1993) apontam para um argumento no qual o
desenvolvimento de reformas urbanas gerava novos estilos de vida,
ligados a uma “cultura burguesa”, que tornavam a ida as praias como
mais um de seus prazeres emergentes. Araújo diz que devido à

116
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

urbanização das localidades litorâneas e uma “maciça propaganda dos


interessados financeiramente em tal expansão” desenvolveu-se uma
forma lúdica de contato com a praia, resultando em sua utilização para
o lazer (ARAÚJO, 1993, p. 321-322).
Ou seja, no momento em que o Prospecto da Carris Urbanos é
confeccionado e apresentado junto aos acionistas e à assembléia
provincial, estava em curso uma mudança na forma de apropriação
dos banhos nos últimos suspiros da corte imperial. Ao retomar a
citação que o documento faz às praias cariocas, transparece,
justamente, aquela dupla característica: a presença aristocrática e o
sucesso empresarial, em nenhum momento aludindo a banhos
terapêuticos.
O conjunto de comodidades que o balneário poderá oferecer
se faz sentir no trecho a seguir; aparelhos tecnológicos como o
telefone, ou mesmo itens básicos da civilização moderna, como
iluminação e encanamento, passarão a fazer parte de uma localidade
que, até pouco tempo atrás, não era mais do que um grande banhado.
Tudo providenciado, como em outras praias, por “grandes emprezas”,
que farão da praia um grande negócio.

melhoramentos de caráter público a que os districtos populosos


fazem jus: os telegraphos e telephones, os carris urbanos, a
illuminação a gaz corrente, os encanamentos de agoa potável.
É também certo que a província conta uma população bastante
numerosa para obter, para uma praia de banhos junto a Rio
Grande, a mesma seiva que a província de São Paulo fornece
as duas praias de Santos, cujas praias, como acima se disse,
sustentam grandes emprezas (PROSPECTO, 16/03/1886)

O item seguinte, não por acaso, intitula-se Resultados


Financeiros.

Parece de sobra evidenciado que a existência de uma cidade


como Rio Grande próximo a costa do mar, offerece vantagens
especiaes. É intuitivo que não podendo chamar a outro ponto
da província a massa de banhistas que a mesma província

117
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

possa fornecer – o Rio Grande está destinado a ser o único


centro a que convirjam os habitantes da província e até mesmo
os de além das fronteiras (PROSPECTO, 16/03/1886)

A confiança no negócio é pungente, da característica


geográfica da cidade, passando pelo clima até as comodidades
oferecidas. Os custos de tráfego, por seu turno, se dão da seguinte
forma:

Não haverá nessa linha necessidade de amiudar as viagens de


bonds como sucede na linha urbana; e portanto o tráfego será
correspondente as exigências da quantidade de passageiros ou
cargas. Em taes condições é claro que o mais diminuto
movimento poderá dar o juro necessário ao capital. Esse ponto
de vista, tão excessivamente modesto, é porém inaceitável em
vista dos grandes resultados que em todo o mundo as estações
balneares ou os seus meios de transporte tem produzido
(PROSPECTO, 16/03/188)

Mais uma vez a empresa não se furta do „lucro certo”, entende


que não tendo razão para se “amiudar” o tráfego será de acordo com a
demanda. Na seqüência diz:

Se esta linha provier a aceitação e sucesso de todas as que, nos


portos visinhos, tem sido estabelecidos – o resultado será
acima de toda a espectativa. Para este resultado contribuirão: o
pequeno capital e a economia do tráfego. E nada de similar aos
banhistas que visitam Montivideo e Santos necessitamos para
obtenção de juro conveniente. Duas centenas nos seriam de
sobra (PROSPECTO, 16/03/1886)

De forma pormenorizada a Companhia Carris Urbanos do Rio


Grande evidencia o número de banhistas que procuram as praias do
Uruguai, em torno de 50 mil nesse ano de 1886, bem como publica o
capital investido pela empresa santista que faz o tráfego até o litoral,
800.000$000. O Prospecto acredita que com um investimento de
250:000$00 será possível atender uma população numerosa como a de

118
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

São Paulo e duplicar aquele número das praias uruguaias em relação


aos visitantes.
Encerra o tópico com a sentença:

Concluindo este capitulo, diremos: se depois de tão palpável


demonstração de resultados, os capitaes se retrahirem e os
interessados se tornarem indiferentes – a província terá
retardado o seu progresso; os que enfermarem succumbirão por
falta do elemento reparador dos banhos gozados com todas as
commodidades; os proprietário do Rio Grande terão deixado
brecha para a competência de outras localidades menos
edificadas; e os capitaes se empenharão em outros
commetimentos, perdendo o ensejo dos lucros consideráveis
que lhe offerece (PROSPECTO, 16/03/1886).

Ainda nessa posição de convencimento, de mostrar o quando


é viável tal empreendimento de banhos, a Carris apresenta o tópico
Razões Especiais, no qual evidencia os gastos que existirão,
comparando esses com os gastos de outras empresas carris da
província.

Para trazer confiança nossa empreza em seus detalhes de


economia da construcção e exploração são necessários alguns
esclarecimentos. Os custos das linhas e material rodante das
emprezas de carris de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande
(linha urbana) são muito superiores ao da estimativa para a
linha da Mangueira:

- Porto Alegre = 35:000$000 (por km)


- Pelotas = 30;000$000
- Rio Grande (urbana) = 14:000$000

Esta é a demonstração relativa a construcção e installação, isto


é, ao emprego do capital. Igualmente especial é, ou antes será a
organisação da empreza, pelo lado das despezas de costeio, nas
verbas da administração e conservação. (PROSPECTO,
16/03/1886)

119
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Se aproximando de suas últimas linhas, já no que chama de


Conclusão, o documento diz:

Estas são as considerações com que entendemos dever explicar


as circunstamcias que se prendem a execução desse
melhoramento. A Companhia Carris Urbanos concessionária
do prolongamento de uma linha de natureza rendosa, e que a
mais da vantagem da ligação da costa do mar com a cidade,
offerece constante e crescente renda que a linha da Mangueira
auferirá do povoamento deste districto e roteamento de suas
férteis terras – vem offerecer, de graça – a uma corporação
diversa, os benefficios daquella concessão. A Companhia de
Carris Urbanos se contenta para compensação do seu acto
generoso com a seiva indirecta que a sua linha trará a
projectada, e lembra-se ainda que concorre effizcamente para o
desenvolvimento de uma nova industria de alto valor para a
cidade do Rio Grande, que necessita de elementos de vida
própria; cuja cidade é afinal a sua sede e o seu campo de acção
(PROSPECTO, 16/03/1886)

O balneário, como podemos perceber, trata-se de um daqueles


“melhoramentos” que circundam o fim do século XIX no Brasil. E
nessa tarefa de lidar com o tempo já escoado, a operação que
desmonta esse documento imbricando sua confecção em um tecido
social que vai além do próprio texto, nos permite perceber um
primeiro conjunto de representações, as quais apontam para um
desenho litorâneo ao Sul do Sul.
E após a apresentação desse documento acreditamos ser
possível destacar algumas considerações e peculiaridades sobre a
inscrição do litoral para banhos no Rio Grande do Sul. Primeiro, a
relação entre o discurso terapêutico e a criação do balneário merece
cuidados, pois a livre associação entre ambos, por si só, não explica o
empreendimento levado a cabo pela empresa Carris. Ao contrário do
que propuseram outros trabalhos, o local em planejamento não dialoga
com os banhos termais em voga no Brasil, mas busca traços
comparativos com praias litorâneas, aliás, não existe nenhum tipo de
citação às termas ou mesmo suas propriedades medicinais.

120
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Não descartamos que o Litoral Norte possua uma


especificidade própria e contemple questões terapêuticas dentro de sua
historicidade, o que pode ser confirmado no próprio texto de
Schossler (2010) ou no artigo de Silvio Marcus Correa, Germanidade
e banhos medicinais nos primórdios dos balneários do Rio Grande do
Sul (2010). Porém, achamos que merece revisão algumas
homogeneizações que foram elaboradas, nas quais o Litoral Sul era
englobado nessa predominância das práticas curativas como tônica de
fundação do seu balneário – Villa Sequeira.
O Litoral Sul, como podemos observar, gestou sua praia de
banhos em uma relação direta com as praias uruguaias, que atuavam
enquanto modelos a serem seguidos para o planejamento em curso na
cidade de Rio Grande. Da mesma forma, acreditamos que desde a
década de 1880 a incursão balnear não se dava apenas por fatores
curativos. A mudança de perspectiva frente ao que a praia poderia
oferecer, como bem mostra Valleja (2002), atinge a própria maneira
de se referir aos banhos, quando deixam de usar a expressão “tomar
aire” para usar a corrente forma “temporada de banhos”, a qual se
presta mais ao uso do lazer e do empreendimento turístico planejado
do que aos fins de cura.

Considerações finais

Ao chegar ao fim desse artigo almejamos ter contemplado as


problemáticas sugeridas no início do artigo: propor um painel no qual
fosse possível compreender o fato de existirem apenas dois trabalhos
sobre o litoral do Rio Grande do Sul, percebendo aí os entraves
criados pela constituição de um imaginário social que tornava
obliterava uma região, bem como as práticas oriundas dela – que
remontam ao calor em detrimento do frio, que remontam à água em
detrimento do pampa, que postula, assim, um novo horizonte dentro
do arranjo do olhar.
Na península que é a cidade de Rio Grande, a água a circunda
– Lagoa dos Patos, Saco da Mangueira e Oceano Atlântico. Cidade
litorânea que inscreveu desde muito cedo a prática dos banhos de mar

121
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

não só no seu cotidiano, mas também no cotidiano do Rio Grande do


Sul, através do deslocamento dos sujeitos das mais variadas cidades
da Província/Estado.
Uma praia começava estava em formação em Rio Grande, a
Villa Sequeira atravessaria o século XIX e chegaria ao século XX com
muitas das características apontadas em seu Prospecto sendo
confirmadas por práticas que, sem exageros, também romperem a
barreira dos novecentos e participam da vida contemporânea desse
que é um dos primeiros balneários do país.
O litoral está no mapa. O calor também chega ao Rio Grande
do Sul.

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123
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

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124
A cidade do Rio Grande na primeira metade da década de 1970.
Desenvolvimento econômico, vigilância, repressão e legitimação
da Ditadura Civil-Militar.

Leandro Braz da Costa.1

O principal objetivo deste texto é apresentar o contexto


histórico da cidade do Rio Grande, entendida como um caso
pragmático, que exemplifica de modo evidente a política do governo
autoritário no decorrer da primeira metade da década de 1970,
sobretudo por que o município esteve afinado aos preceitos da
Doutrina de Segurança Nacional (DSN) os quais consistiam na
afirmativa de que “não há segurança nacional sem desenvolvimento
econômico”. O binômio segurança e desenvolvimento foi uma
preocupação constante do regime autoritário em todo o Brasil, e Rio
Grande enquanto Área de Segurança Nacional (ASN), cidade
portuária com localização geográfica estratégica para a defesa militar
do litoral brasileiro, acabou se inserindo de modo efetivo nos planos
desenvolvimentistas estipulados para o país.
Ao recobrar tal contexto, busquei traçar um panorama de
como os investimentos econômicos em setores estratégicos da
economia local e algumas ínfimas melhorias efetuadas na
infraestrutura urbana, aliados a propaganda política favorável por
parte do único periódico que circulou diariamente na cidade até o ano
de 1975, fizeram com o que o regime militar rapidamente conseguisse
se legitimar, alcançando o apoio de largas parcelas da sociedade
riograndina, ao mesmo tempo em que as questões referentes à
segurança, principalmente as que visavam combater tudo aquilo que
se entendia por “ameaça comunista”, através da intensificação da
vigilância, da repressão e das torturas físicas e psicológicas,
transformaram a cidade do Rio Grande, em um território hostil a

1
Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS. Email: lbcosta.furg@gmail.com

125
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

qualquer movimento que por ventura pudesse contestar a intervenção


do regime autoritário na cidade.
Após o golpe militar de 1964, uma nova concepção acerca da
Doutrina de Segurança Nacional (DSN) surgiu no Brasil, embora
gestada desde 1949 através da fundação da Escola Superior de Guerra,
recebendo influência da National War College e do Industrial College
of the Armed Forces, ambos localizados em Washington,2 bem como,
da doutrina francesa da guerre révoluttionnaire introduzida na ESG
em 19593. A disseminação da DSN foi iniciativa dos Estados Unidos,
que a partir da década de 1940, estabeleceram acordos de segurança
interamericanos, a fim de aumentarem suas áreas de influência,
vinculando os militares latino-americanos e solidificando a defesa
contra o comunismo mundial4.
Durante a década de 1960, o então Secretário de Defesa dos
Estados Unidos, Robert McNamara, acrescentou o tema do
desenvolvimento econômico à DSN, o qual repercutiu imediatamente
nos países da América Latina5, tanto que a Escola Superior de Guerra
brasileira acabou incorporando em seus manuais a ideia de que “não
há Segurança Nacional sem desenvolvimento econômico”6.

2
Cf. BICUDO, Hélio. Segurança Nacional ou submissão. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984, p. 36.
3
Cf. FILHO, João Roberto Martins. Tortura e ideologia: os militares
brasileiros e a doutrina da guerre révolutionnaire (1959-1974). In: SANTOS,
Cecília Macdowell; TELLES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Orgs.).
Desarquivando a Ditadura: Memória e Justiça no Brasil. Volume I – São
Paulo: Hucitec, 2009, p. 179.
4
MCSHERRY, J. Patrice. Los Estados depredadores: la Operación Condor y
la guerra encubierta em América Latina. Montivideo: Banda Oriental, 2009,
p. 85.
5
Cf. COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder
Militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p.
65.
6
Cf. STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e
militarização das artes. Porto Alegre: Ed. da PUCRS, (Coleção História, vol.
44), 2001, p. 83.

126
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Como reflexo da influência dos teóricos norte-americanos e


da Escola Superior de Guerra (ESG) na política nacional, o Decreto-
Lei N° 1. 135 de 3 de dezembro de 1970, determinava que era da
competência do Conselho de Segurança Nacional (CSN), indicar as
áreas indispensáveis à segurança nacional e os municípios
considerados de seu interesse, o que acabou estimulando os
investimentos financeiros nestas regiões consideradas estratégicas
para os interesses políticos e econômicos do regime.7
Neste sentido, a cidade do Rio Grande pode ser percebida,
como parte dos planos políticos acerca da Segurança Nacional e
desenvolvimento econômico levado a cabo pelo regime em âmbito
nacional. Efetivamente, o golpe de 31 de março 1964 acentuou as
atividades repressivas8 ao mesmo tempo em que forneceu à cidade a

7
Cf. Decreto-Lei N° 1. 135 de 3 de dezembro de 1970. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-
1988/Del1135.htm>. Acesso em: 27/04/2011.
8
Cf. Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS, 07/04/1964, logo após o golpe a
Secretaria de Ordem Política e Social (SOPS/RG) juntamente com o
Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS),
realizaram as operações repressivas denominadas de “Limpeza” e “Gaiola”,
com o objetivo de prender qualquer opositor do regime que se instalava no
poder. Durante estes episódios, um acontecimento é digno de nota. Ao que
tudo indica o Navio Hidrográfico Canopus da Marinha brasileira que estava
realizando o mapeamento do Litoral Sul do Brasil, acabou interrompendo
suas atividades para servir aos propósitos dos golpistas. Conforme o relato do
Capitão da Brigada Militar, o senhor Athaídes de Rodrigues, que consta em
seu livro de memórias denominado Agora eu – A revolução de 1964, em Rio
Grande, este navio teria sido utilizado como navio-prisão pelas Forças
Armadas brasileiras. Athaídes relata em seu livro que foi preso juntamente
com outros colegas que não concordavam com a forma antidemocrática da
revolução de 1964. Na época o Capitão do Navio Canopus era Maximiano
Eduardo da Silva Fonseca. Em Rio Grande existe uma grande avenida que
corta o complexo industrial-portuário que recebeu o nome deste capitão
como forma de homenageá-lo.

127
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

alcunha de Área de Segurança Nacional.9 Em 1968, 21 municípios do


Rio Grande do Sul foram considerados Áreas de Segurança Nacional
– Alecrim, Bagé, Crissiumal, Dom Pedrito, Erval, Nova Horizontina,
Itaqui, Jaguarão, Porto Lucena, Porto Xavier, Quaraí, Rio Grande,
Santa Vitória do Palmar, Santana do Livramento, São Borja, São
Nicolau, Tenente Portela, Três Passos, Tucunduva, Tuparendi e
Uruguaiana. A cidade de Rio Grande mais uma vez aparece na lista,
devido sua condição portuária e proximidade com os caminhos que
levam às fronteiras do Uruguai e Argentina, fazendo com que o
Governo reforçasse o contingente de tropas em seus quartéis.10 Com
forte presença militar na cidade, a sensação de segurança contribuiu
para que fosse forjada uma estrutura de legitimação que contou com o
consenso das elites locais e de grande parte da sua população.
Os elementos indispensáveis a esta proposição, constituem-se
através da evidência de que a cidade, em virtude da sua condição
portuária, recebeu inúmeros investimentos financeiros que acabaram
desempenhando um importante papel para a consecução dos planos de
modernização do regime, de acordo com o que era uma pretensão a
ser construída enquanto planejamento nacional que contribuiu
também para impulsionar a economia do Rio Grande do Sul.
Com a criação da Secretaria de Coordenação e Planejamento –
SCP/RS, órgão centralizador das decisões do planejamento global da
economia gaúcha que propôs juntamente com a PLANISUL S/A –
escritório privado de planejamento – a política de industrialização
alinhada aos projetos nacionais, surgiu o projeto denominado “Grande
Rio Grande (1971-1974)” que tinha como slogan ufanista a frase É
tempo de Rio Grande. A estratégia que consistia em articular a

9
A cidade foi considerada Área de Segurança Nacional, muito antes do golpe
de 1964, condição que perdurou até 1951, porém, alguns meses após o março
de 1964, acabou retomando tal condição geopolítica. Cf. ALVES, Francisco
das Neves. Governo do Prefeito Farydo Salomão. Rio Grande: Revista
Biblos, n. 3, 1990, p. 31.
10
Cf. FERNANDES, Ananda Simões. Quando o inimigo ultrapassa a
fronteira: As conexões repressivas entre a Ditadura Civil-Militar brasileira e
o Uruguai (1964-1973). Dissertação de Mestrado, UFRGS/RS, p. 86-87.

128
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

economia do Estado, predominantemente agrícola e que estivera


retraída desde 1965, ao programa de crescimento do país também
conhecido como “milagre brasileiro”11, surtiu efeitos rapidamente,
principalmente devido à implementação do complexo industrial e
portuário de Rio Grande, que possibilitou ampliar a participação da
economia gaúcha no cenário econômico nacional.12
Isso se deu através da substituição do tipo de industrialização
que era preponderante na cidade, ou seja, das indústrias de bens
duráveis para as indústrias de bens intermediários (fertilizantes, grãos
e óleos vegetais) voltados para a importação e exportação, uma vez
que, a política econômica do governo Médici, em sua orientação
estratégica levada a cabo por Delfin Neto e materializada pelo projeto
Brasil Grande Potência, tinha como sua base de apoio o modelo
agrícola-exportador.13 Portanto,

[...] criava-se uma grande estrutura com financiamento público


e privado para a implantação de uma grande plataforma
portuária de importação e exportação, ao mesmo tempo,
criavam-se condições para a inauguração de empresas
industriais na cidade que acompanhariam tal envergadura
portuária [...]14.

Depois de décadas de crises fabris que prejudicaram o


desenvolvimento de Rio Grande, o complexo industrial-portuário se

11
Cf. TEIXEIRA, Maria Lúcia; VIANNA, Werneck. A administração do
milagre: o Conselho Monetário Nacional, 1964-1974. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 1987, p. 134-135. No limiar da década de 1970, vivia-se a fase áurea
do “milagre brasileiro”, fonte de legitimação de um sistema político fechado
que assim ampliava sua capacidade de cooptar dissidentes potenciais e
satisfazer as necessidades econômicas e sociais de grupos da elite.
12
Cf. DALMAZO, Renato. Planejamento Estadual no Rio Grande do Sul –
1959-1974. Ensaios FEE, Porto Alegre, 11 (2), 1991, p. 387.
13
Cf. MACARINI, José Pedro. A política econômica do governo Médici:
1970-1973. Belo Horizonte: Nova Economia, 15 (3), 2005, p. 54.
14
MARTINS, Solismar Fraga. Cidade do Rio Grande: industrialização e
urbanidade (1873-1990). Rio Grande: Editora da FURG, 2006, p. 192-193.

129
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

apresentava como o grande responsável pela recuperação econômica


do município. O pesquisador Marcelo Domingues afirmou que “o
porto de Rio Grande foi um dos que mais investimentos recebeu do
governo federal tanto nos anos setenta como nos anos oitenta”.15

Complexo industrial-portuário, 1973.

Obviamente, grande parte do Rio Grande do Sul que não


passava por um bom momento, se beneficiou das operações realizadas
nesse complexo, pois os investimentos estatais e privados também
fomentaram a ampliação e melhoria das rodovias, com o objetivo de
facilitar as exportações – os denominados Corredores de
Exportação16 – a tal ponto que, no senso comum da época, originou-se
a seguinte frase: “todos os caminhos levam à Rio Grande”.

15
DOMINGUES, Marcelo de La Rocha. Superporto de Rio Grande: plano e
realidade. Elementos para uma discussão. Dissertação de Mestrado, UFRJ,
1995, p. 8-9.
16
Cf. ALTMAYER, Flávia de Lima & CARNEIRO, Oscar Décio. Cidade do
Rio Grande, 270 anos: a mais antiga do Estado. In: Caderno de História N°
33, Rio Grande: Memorial do Rio Grande do Sul, 2007, p. 24. O programa
do Governo Federal denominado Corredores de Exportação surgiu da

130
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Diante do projeto desenvolvimentista dos governos militares,


“com a política de incentivos fiscais, permitindo que as grandes
companhias pudessem dispor de recursos públicos para investimentos
privados, e de estímulos às exportações”17, a política portuária é
fundamental, basicamente por dois motivos: os portos brasileiros
desempenhavam um significativo papel no aspecto geopolítico, bem
como, serviram plenamente ao interesse econômico de ampliar o
mercado externo. Neste sentido, o porto de Rio Grande e os
corredores de exportação que o ligavam ao restante do Estado,
constituíam um mecanismo de infraestrutura que confluía com
elementos centrais da DSN e defesa da política integracionista do
território brasileiro, favorecendo a retórica ufanista que
supervalorizava as potencialidades nacionais.18 Desta feita, “uma
inabalável fé no progresso do país contagiou segmentos expressivos
da sociedade. Estes acreditavam – tal como dizia o slogan ufanista da
agência de propaganda do governo – que o Brasil era, de fato, “o país
do futuro”.”19
O único periódico que circulou diariamente na “Noiva do
Mar”20 até meados da década de 1970 – o Jornal Rio Grande foi o
porta voz dos setores conservadores municipais, apesar de afirmar-se

necessidade de estimular as exportações de determinados produtos agrícolas,


buscando manter bons índices de crescimento econômico. O Porto de Rio
Grande, na condição de único porto marítimo do Estado, foi definido como
pólo principal do corredor de exportação do extremo sul.
17
BANDEIRA, Moniz. Cartéis e Desnacionalização. (A experiência
brasileira: 1964-1974). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 66.
18
Cf. ALVES, Francisco das Neves. Porto e Barra do Rio Grande: História,
memória e cultura portuária. Porto Alegre: CORAG, vol. II, 2008, p. 600-
601.
19
CORDEIRO, Janaina Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A
memória social sobre o governo Médici. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 22, n° 43, 2009, p. 86.
20
Pseudônimo utilizado para caracterizar a cidade do Rio Grande devido a
sua condição geográfica de cidade circundada pelas águas do Oceano
Atlântico e Estuário da Lagoa dos Patos.

131
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

como apolítico, desenvolveu violenta campanha publicitária contra o


governo de João Goulart e a administração municipal de Farydo
Salomão21 – noticiava com euforia a “arrancada rumo ao progresso”,
em virtude dos investimentos realizados na cidade.

[...] É o Porto reaparelhando-se para enfrentar a extraordinária


movimentação; é o esplendido aprimoramento de nosso setor
cultural; é a pecuária que se organiza; é a pesca que se
desenvolve num ritmo admirável; é, enfim a economia
municipal que se agiganta... Rio Grande, agora tem o que
mostrar; e tem o que oferecer... Cada pessoa, cada coisa, tem a
sua hora: a nossa chegou... Não podemos perdê-la.22

Em outro trecho retirado do mesmo periódico, novamente


reaparece tal afirmação, porém, a linha editorial do jornal faz questão
de mencionar também a importância do governo militar e suas ações
na região como responsáveis pelo momento de crescimento
econômico que transcorria no município. Fica mais fácil entender por
que esse foi o único periódico que circulava diariamente, apesar do
silenciamento imposto pela censura a grande parte da imprensa
brasileira durante a década de 1970,

[...] ressaltamos em várias oportunidades o fato de o nosso


Porto ter reassumido a sua importância no complexo portuário
nacional... Tais melhoramentos são conseqüência da
reformulação política portuária, levada a efeito logo após o
movimento regenerador de 31 de Março [...]23.

21
Cf. GANDRA, Edgar Ávila. O cais da resistência: a trajetória do
sindicato dos trabalhadores nos serviços portuários de Rio Grande no
período de 1959 a 1969. Cruz Alta: UNICRUZ, 1999, p. 85.
22
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 10/01/1970, p. 1.
23
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 16/01/1970, p. 1.

132
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A propaganda política favorável ao Golpe de 1964 em âmbito


local, comum a muitos jornais de diversas partes do país24, bem como,
as posteriores intervenções financeiras no reaparelhamento do Porto25,
aliadas ainda ao amplo uso da propaganda política que também
enfatizava o crescimento econômico promovido pelo governo Médici
em âmbito nacional26, fez com que grande parte dos riograndinos
olhasse com estimado apreço para as diversas ações da política
desenvolvimentista colocada em prática no município.
Se em âmbito nacional, a perspectiva otimista acerca da
grandeza do país devido ao “milagre brasileiro” e a conquista da Copa
do Mundo, influenciavam a propaganda política do período27, em Rio

24
Cf. LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos.
In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto,
2010, p. 129.
25
Cf. ALTMAYER, Flávia de Lima & CARNEIRO, Oscar Décio. Op. Cit., p.
24. Com o reaparelhamento do Porto, foram construídos dois armazéns
graneleiros, a dragagem da Barra e do canal de acesso (permitindo a entrada
de navios de até 40 pés), a implantação de um novo frigorífico, e a instalação
de transbordadores para a descarga das embarcações do tráfego fluvial e
marítimo. De 1970 a 1976 o complexo industrial e portuário do Rio Grande
contava com a presença de empresas privadas como o terminal graneleiro da
COTRIJUI, o de fertilizantes da LUCHSINGER-MANDORIN, as
instalações da FERTISUL, da WIGG S/A (pescados), e da SAMRIG (farelo).
No Anuário de Portos e Navios de 1976, consta para o Porto do Rio Grande
um total de 23 armazéns internos, um externo, dois frigoríficos e um silo.
Dentre os terminais aparecem a COTRIJUI (trigo e cereais, que um ano
depois inaugura uma fábrica de óleos vegetais – ver imagens no anexo de
número 5), Carvão (Parque de Carvão), Contentores (Um píer em construção
para terminal de contêineres), Píer Petroleiro (explosivos, inflamáveis, etc),
bem como, terminais projetados ou em construção destinados a produtos
como fertilizantes e carnes.
26
Cf. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-
1984). Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1985, p. 150.
27
Para um melhor aprofundamento sobre o assunto ver especialmente o
capítulo 5, intitulado A propaganda da ditadura na obra de FICO, Carlos.

133
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Grande era comum o periódico local estampar, em sua capa, uma


grande imagem do General Médici, exaltando sua figura e seu modo
de governo, normalmente imbricadas com as melhorias realizadas no
porto, de modo a persuadir os leitores de que com Médici e o governo
civil-militar, o país e particularmente o município estavam no
caminho certo. Desse modo, este periódico acabou contribuindo para
que os riograndinos entendessem que a exploração das
potencialidades da cidade auxiliava no crescimento do país, o que
acentuava o bairrismo e, ao mesmo tempo, o sentimento de fazer
parte, de pertencer ao projeto nacional de um país que estava dando
certo.

Pode-se considerar a manifestação do Presidente como um


“clímax” desta revolução experimentada por Rio Grande,
desde a segunda metade do ano passado, em que despontou a
aurora do desenvolvimento, ansiosamente esperado por
gerações de batalhadores, que tiveram a coragem de
permanecer aqui, no campo da luta, confiantes num futuro que
tardou a chegar, mas já se vislumbram dos mais brilhantes. 28

A relação desse periódico com as forças armadas foi tão


amistosa, que em 1993, poucos anos de seu falecimento, seu ex-
gerente foi agraciado com a Medalha “Mérito Tamandaré”. Honraria
concedida aqueles que tenham prestado relevantes serviços na
divulgação ou no fortalecimento das tradições da Marinha, honrando
seus feitos ou realçando seus vultos históricos.29
A Universidade Federal do Rio Grande (URG) ilustra muito
bem a relação de interesses entre os riograndinos, a iniciativa privada

Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no


Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 121 a 147.
28
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 02/03/1970, p. 2.
29
Disponível em:
<https://www.mar.mil.br/menu_v/condecoracoes_insignias/mmt2.htm>
Consulta realizada em 02/01/2010 as 00h34min.

134
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

local e o governo civil-militar.30 Antes mesmo de ser fundada em


agosto de 1969, – desde 1953 através do esforço da indústria,
comércio e Prefeitura Municipal atuava de modo privado como Escola
de Engenharia Industrial31 – em janeiro de 1969, Arthur da Costa e
Silva esteve em Rio Grande32, no Teatro Sete de Setembro, onde foi
paraninfo de duas turmas. A comitiva presidencial presente no evento
era composta pelo Governador do Estado, Peracchi Barcelos, o chefe
da Casa Militar da Presidência, Jaime Portela, o Ministro dos
Transportes Mário Andreazza e o interventor federal, Armando
Cattani. Este último relatou a um repórter do jornal Diário Popular da
cidade de Pelotas, que a vinda de Costa e Silva a Rio Grande não
tinha como objetivo somente paraninfar a turma de 1968, mas sim, de
anunciar a criação da URG33, o que acabou acontecendo alguns meses
depois, através do decreto-lei 774, que oficializou sua fundação,
facilitada pelo AI-5 que dava plenos poderes a Costa e Silva.34 Em
outras palavras, a Instituição acabou sendo fundada sob a tutela do

30
Em 1966, a Ipiranga através da Refinaria do Rio Grande, efetuou uma
doação no valor de 100 milhões de cruzeiros, garantindo assim a construção
da Faculdade de Medicina da URG. Cf. MARTINS, Denise. Ipiranga: A
trajetória de uma refinaria em Rio Grande (RS). Rumo à consolidação de um
grupo empresarial. Dissertação de Mestrado em História, PUC/RS, 2008, p.
107.
31
Cf. ALMEIDA, Ivety Ribes de Almeida. Engenharias e Ciências Exatas.
In: ALVES, Francisco das Neves (org.). Fundação Universidade Federal do
Rio Grande: 35 anos a serviço da comunidade. Rio Grande: Ed. da FURG,
2004, p. 14 a 16.
32
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 02/01/1970, p. 2.
33
Cf. MAGALHÃES, Mário Osorio. Engenharia, Rio Grande: História &
algumas histórias. Pelotas: Ed. Armazém Literário, 1997, p. 38.
34
Decreto-Lei 774 – 20 de agosto de 1969. In: Universidade Federal do Rio
Grande. FURG 40 Anos: revelando seus espaços. Rio Grande: Editora da
FURG, p. 20.

135
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

regime e está diretamente ligada ao Ato Institucional mais nocivo


levado a cabo pela Ditadura Civil-Militar brasileira.35
O aumento dos investimentos, do número de vagas e da
contratação de professores para educação superior, com Médici a
frente do governo36, fez com que a URG – hoje FURG – ampliasse
sua participação junto aos setores da indústria local, através da
capacitação de mão-de-obra especializada e do aporte técnico, devido
à abertura de novos cursos de graduação. Desta forma, muitos jovens
recém-formados não precisariam mais deixar a cidade, como de
costume, em busca de trabalho, pois existiam oportunidades de
emprego em suas áreas de atuação. Essa era uma reivindicação antiga
da população riograndina, de que os estudantes permanecessem na
cidade e investissem sua formação in loco.
Ainda merece ser destacada nessa conjuntura de legitimação,
a atuação de uma das figuras mais ilustres da cidade, porta-voz dos
anseios de grande parte da população riograndina, e que gozava de
enorme influência na cúpula do poder político e militar. Conforme
entrevista cedida por um oficial da reserva, Golbery do Couto e Silva
participava ativamente do planejamento e execução dos projetos
municipais. O oficial também afirmou que Golbery enviava com
frequência grandes remessas de dinheiro para Prefeitura Municipal;
“era só pedir que o dinheiro chegava, às vezes demorava um
pouquinho, mas sempre chegava”.37

35
Cf. KANTORSKI, Leonardo Prado. Expurgos de Docentes na Lógica da
Doutrina de Segurança Nacional: O caso da FURG (1969-1977).
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, UFPEL/RS, 2011, p. 65-66.
36
Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 282.
37
Entrevista cedida em 11/08/2010. Uma das exigências do depoente foi que
seu testemunho permanecesse no anonimato. Segundo o entrevistado, a
atuação de Golbery do Couto e Silva se deu quando ele ocupava o posto de
sargento do exército na administração dos interventores Ten. Cel. Cid
Scarone Vieira e Rubens Emil Correia, ou seja, ao longo de toda a década de
1970.

136
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A generosidade de Golbery do Couto e Silva com a cidade e


seus conterrâneos, fica ainda mais evidente, no depoimento prestado
pelo então presidente da União Regional dos Estudantes do Estado e
atualmente professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Rio Grande, o senhor Péricles Antônio Fernandes Gonçalves.
Segundo ele, os estudantes secundaristas realizaram inúmeras
passeatas nas ruas da cidade em prol da criação de uma universidade
em Rio Grande, inclusive, chegaram a levar comitivas até Brasília, no
sentido de contatar Golbery para que agilizasse o processo de criação
da instituição de ensino.
Péricles também testemunhou que “havia certa reação
contrária, porque segundo o pensamento da época, era muito
complicado criar uma nova Universidade Federal a cinquenta
quilômetros de uma outra,” – fazendo referência a Universidade
Federal de Pelotas (UFPEL) – “porque na verdade havia, com
algumas exceções uma Universidade Federal por Estado, e o Rio
Grande do Sul já tinha três.” O entrevistado conclui que o fato de Rio
Grande receber uma instituição de ensino superior, diante do contexto
brasileiro da época foi “algo meio inédito”38.
Além de ter contribuído decisivamente para que Rio Grande e
os riograndinos obtivessem a tão almejada instituição de ensino
superior, Golbery continuou auxiliando no crescimento da
Universidade ao longo dos anos. Como afirma o professor Péricles
Antônio:

A participação foi bem efetiva! Isso se estendeu até bem


depois, os favorecimentos para a Universidade. Eu fui
Superintendente de Extensão e Chefe de Gabinete da gestão
Pedone [Reitor Fernando Lopes Pedone], e nesta gestão a
ligação entre o Reitor daqui era quase que diária, no sentido de
conseguir verba, de conseguir apoio... Muitas coisas foram
conseguidas por conta deste relacionamento. 39

38
Entrevista cedida em 11/01/2011.
39
Idem ao n° 37.

137
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

O trecho mostrado a seguir, extraído de um telegrama oficial


da Prefeitura Municipal, endereçado a Golbery, que foi enviado pelo
Reitor da URG em 1979 corrobora o testemunho anteriormente
exposto: “Voltamos presença a Vossa Excelência após ter sido
discutido o orçamento da URG, a fim de solicitar seu vivo empenho,
no sentido de que seja aprovada a solicitação Cr$ 22.000.000,00
(vinte e dois milhões de cruzeiros) via orçamentária”.40
O testemunho do professor e o texto do telegrama
demonstram que buscar apoio através da influência que Golbery
possuía, talvez tenha se caracterizado como uma prática comum da
administração municipal, da iniciativa privada local e da URG, tendo
em vista, a finalidade de preservar e investir ainda mais em tudo o que
já tinha sido feito, e assim, estreitar a relação de ambas com a
população riograndina, e consequentemente com o regime autoritário.
Uma das ações mais mirabolantes de Golbery em Rio Grande,
diz respeito ao seu envolvimento no projeto de construção do canal
adutor da Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN), que
deveria levar água até o complexo industrial-portuário, colocado em
atividade logo após receber a anteriormente mencionada série de
investimentos do governo federal.
O projeto de construção do canal adutor, que captaria água do
Canal São Gonçalo41, curiosamente não passou pela votação na
Câmara dos Vereadores que o rejeitou. Péricles Antônio relata o modo
como o interventor Cid Scarone Vieira e Golbery do Couto e Silva
resolveram esse inconveniente que retardou o início das obras:

40
Telegrama Oficial Municipal de 19/06/1979. Era comum na época a
utilização de abreviaturas nas palavras que compunham o conteúdo dos
telegramas. Optei em não citar a forma abreviada na qual as palavras se
encontram, mesmo assim, respeitei todas as palavras, a construção e a coesão
textual originais do telegrama.
41
O São Gonçalo é uma divisa natural entre as cidades do Rio Grande e
Pelotas. Uma via fluvial que liga a Lagoa Mirim e a Lagoa dos Patos, e tem
como seu principal afluente o Rio Piratini.

138
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

[...] o Coronel Cid telefonou pro Golbery... O Golbery num


„canetaço‟ fechou a Câmara... O Prefeito por decreto passou
pra Corsan... Imediatamente um dia depois foi reaberta a
Câmara, mas já tinha passado [o projeto], e por conta disso foi
construído o canal adutor. Foi por conta da criação do Super
Porto e do Distrito Industrial que havia necessidade de água
para as indústrias que vinham se instalar e nós não teríamos
condições de fazer. Eu não sei se o meio foi certo, a forma foi
certa, o método foi certo, só que senão tivesse acontecido isso,
nós teríamos tido um problema sério com água em Rio
Grande.42

O “canetaço” de Golbery do Couto e Silva, metáfora utilizada


pelo entrevistado para aludir à imposição de uma portaria ministerial
que fechou a Câmara e consequentemente vetou a decisão dos
vereadores da cidade, fornecendo plenos poderes ao executivo
municipal e total autonomia decisória sobre o projeto de captação de
água que deveria suprir as necessidades do complexo industrial-
portuário, indica que não houve limites para alcançar os níveis de
desenvolvimento propostos pelo Governo Federal em Rio Grande.
Em realidade, conforme a cobertura jornalística realizada pelo
O Peixeiro43 havia muita dificuldade de captação dos recursos
necessários à construção do canal adutor, orçado em 15 milhões de
cruzeiros. Reconhecendo a importância da obra para as futuras
instalações do complexo industrial-portuário, o interventor Cid
Scarone Vieira, determinou como prioridade a busca de recursos
internos ou externos, destinados à execução do planejamento do

42
Entrevista cedida em 11/01/2011.
43
Este semanário, assim como o Jornal Rio Grande, apoiava toda e qualquer
iniciativa do Governo Federal, bem como, realizava homenagens aos
presidentes ditadores brasileiros e até mesmo de países vizinhos. Por
ocasião da inauguração da pavimentação da BR 471, em maio de 1970, O
Peixeiro prensou uma edição especial denominada “Nossa Homenagem”
em comemoração ao encontro dos ditadores Emílio Garrastazu Médici e
Jorge Pacheco Areco.

139
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Executivo44, que em outros termos também visava à implantação da


infraestrutura da Zona Industrial, financiada pelo Banco Mundial na
ordem de 50 milhões de dólares45.
O problema de captação de água para o pleno funcionamento
do porto marítimo e das indústrias, – melhorias na qualidade de vida
da população riograndina, através da captação, tratamento e
distribuição de água, não foi destaque nas páginas deste semanário –
começou a ser solucionado logo após uma reunião entre o interventor
Cid Scarone e o ainda não nomeado Governador do Estado, o senhor
Euclides Triches. Nesta reunião, que contou com a presença do
engenheiro Francisco Martins Bastos (superintendente técnico e
presidente da Refinaria de Petróleo Ipiranga em Rio Grande), ficou
estabelecida a garantia de apoio financeiro por parte do Governo do
Estado, com relação à verba que faltava para a execução da primeira
fase do projeto São Gonçalo.46 Após conseguir o apoio financeiro do
Governo do Estado, o Executivo Municipal tratou de ultimar as
negociações com a CORSAN. A seguir, exponho como O Peixeiro47
noticiou as últimas tratativas:

44
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 24/01/1971, p. 11.
45
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 28/06/1970, p. 7.
46
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 21/02/1971, p. 11.
47
Apesar de apoiar abertamente os planos desenvolvimentistas do Governo
Federal, nesta época, O Peixeiro foi um órgão de imprensa que
esporadicamente buscou denunciar as contradições sócio-econômicas
existentes em Rio Grande. Uma matéria de capa do dia 24/09/1972 com
imagens que mostravam a miserabilidade na qual viviam alguns
riograndinos, na margem da Lagoa dos Patos residindo em palafitas,
denominada “Rio Grande – Superporto. De quem é a culpa: É minha? É
sua? Será nossa? Será deles?” denunciava: “Os clichês mostram “in natura”
e sem quaisquer distorções, a negra verdade em que soçobram punhados de
famílias marginalizadas, ignoradas pela ufania do progresso.” A linha
editorial deste semanário parecia defender a ideia de que o progresso era
necessário, mas não a qualquer preço, pois as melhorias deveriam vir
acompanhadas da responsabilidade social.

140
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Após cerca de 9 horas de debates, foram finalmente superadas


as divergências entre as pretensões de Rio Grande e as
cláusulas de convênio-padrão que aquele órgão estadual
pretendia impor ao Executivo rio-grandino. As partes irão
agora proceder à redação final da minuta que será submetida à
Câmara Municipal, ao Governo do Estado e à Direção do
BNH, organismo que financiará as obras de abastecimento à
Cidade, ao Distrito Industrial e ao Superporto.48

O canal adutor começou a ser construído com ajuda do


Governo do Estado e financiamento do Banco Nacional da Habitação
(BNH), pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento
(DNOS), no mesmo ano em que Emílio Garrastazu Médici49 visitou as
obras do terminal de carga e descarga de grãos da empresa Cotrijuí.50
Tudo leva a crer que entre as divergências existentes nas cláusulas de
convênio-padrão, esteja a principal motivação de Golbery do Couto e
Silva para o fechamento da Câmara Municipal, pois em outro trecho
do artigo citado anteriormente consta que: A administração e a
exploração industrial do sistema de abastecimento de água da
cidade-marítima, como já foi dito, continuarão sob a
responsabilidade do Serviço Riograndino de Água e Esgoto –
SRGAE.51
Ao confrontar as informações fornecidas por Péricles Antônio
com o conteúdo dos artigos de O Peixeiro, foi possível especular que

48
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 14/11/1971, p. 10.
49
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 10/03/1974, p. 1. Emílio Garrastazu
Médici esteve novamente em Rio Grande, antes de ser sucedido por Ernesto
Geisel, inaugurando o terminal de cereais do Porto. Segundo este semanário
o “Presidente da Nação... recebeu do povo riograndino a recepção calorosa
de quem agradece, pelo muito de transformação e progresso recebidos pelo
município em sua gestão.” Explicitamente, as frequentes visitas de Médici,
inspecionado ou inaugurando obras consideradas de extrema relevância para
o desenvolvimento do país, contribuíam para aumentar os laços de afinidade
da população riograndina com o regime autoritário.
50
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 22/10/1972, p. 3.
51
Idem ao n° 49.

141
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

o projeto de construção do canal adutor não passava pela aprovação da


Câmara de Vereadores, provavelmente porque os edis pretendiam que
a exploração dos serviços de distribuição de água na cidade, ficassem
a cargo do Serviço Riograndino de Água e Esgoto. O projeto não
passava pela Câmara porque a maioria que compunha o Legislativo
não aceitava que, após o término das obras, a CORSAN explorasse os
serviços de água e esgoto do município.
Esta especulação ganha contornos verossímeis, devido
iniciativa do interventor municipal, que extinguiu a SRGAE, e, em
seguida cedeu os direitos de exploração dos serviços, bem como, todo
o patrimônio da SRGAE para a CORSAN.52 Anos mais tarde, além
das reclamações em relação ao aumento de 100% da tarifa e do
péssimo serviço prestado53, o vereador Athaydes Rodrigues do MDB,
ainda solicitava cópias dos convênios firmados entre a CORSAN e a
Prefeitura que nunca foram apresentados ao Legislativo.54
A administração municipal da cidade entre os anos de 1970 a
1975, que por ser Área de Segurança Nacional, esteve a cargo do
então interventor nomeado pelo governador do Estado com prévia
autorização do Presidente da República55, foi de responsabilidade do
Ten. Cel. do Exército Cid Scarone Vieira, que possuía ampla simpatia
dos riograndinos, sobretudo porque, nos quase cinco anos que esteve à
frente do executivo, investiu na pavimentação de ruas e avenidas,
limpeza de praças, jardins e melhorou a iluminação pública, além de
ter colocado em dia os salários do funcionalismo público municipal,
tudo isso através da intervenção direta do governo federal.56 Scarone
ainda foi presidente da Associação dos Municípios da Zona Sul e
devido a sua atuação, tanto no município quanto fora dele, recebeu da

52
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 21/01/1973, p. 1.
53
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 17/03/1976, p. 3.
54
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 23/03/1976, p. 2.
55
Cf. ASSIS, José Carlos de. Os Mandarins da República: anatomia dos
escândalos na administração pública, 1968-84. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984, p. 14.
56
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 02/01/1970, p. 1.

142
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Rádio Tupancí de Pelotas, o prêmio Personalidade do Ano da Zona


Sul do Estado.57
A continuação das obras de melhoria da infraestrutura
urbana58 e a prática recorrente da propaganda de seu governo e da
cidade, tornavam o interventor Cid Scarone uma espécie de
celebridade, tanto em Rio Grande quanto em outros municípios da
Região. Nem mesmo as denúncias de corrupção contra seus
assessores, pareciam conseguir abalar a credibilidade do interventor
municipal.59
Em sua administração foi confeccionado milhares de folhetos
coloridos de divulgação do município, com o objetivo de atrair
turistas e novos investidores.60 Após a confecção dos mesmos, que
foram financiados pela iniciativa privada, um funcionário público
municipal foi designado para efetuar a distribuição por diversas partes
do País. Em sua viagem de trabalho, o funcionário concedeu
entrevistas em emissoras de rádio e televisão como a Record e a TV

57
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 04/01/1970, p. 1.
58
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 03/02/1974, p. 3. O Secretário Municipal
de Coordenação e Planejamento viajou até Brasília, a fim de entregar a
documentação que faltava, para que o Banco do Brasil liberasse um
empréstimo no valor de Cr$ 9.528.000,00. Este montante foi dividido em
quatro partes, respectivamente, para cada uma das quatro etapas das obras
que abrangeram a drenagem de ruas, construção de galerias pluviais,
pavimentação de ruas, construção de abrigos para usuários de transporte
coletivo e ampliação da rede de iluminação pública.
59
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 18/03/1973, p. 1 e 5. Foi enviada ao
Secretário do Interior e Justiça, uma carta denúncia contendo várias
acusações a administração de Cid Scarone. O conteúdo da matéria publicada
por este semanário, afirma que o próprio interventor solicitou que fosse
realizada ampla investigação na Prefeitura Municipal, o que acabou sendo
feito através de uma comissão de confiança do Governador do Estado, que
depois de apurar detalhadamente os fatos, nada encontrou de irregular.
Infelizmente, não consta nenhum registro deste acontecimento em toda a
documentação pesquisada que pertencia a Secretaria de Ordem Política e
Social do Rio Grande – SOPS/RG.
60
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 01/02/1970, p. 7.

143
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Cultura. Nem o famoso animador Abelardo Barbosa, vulgo


Chacrinha, escapou de receber um folheto promocional da “Noiva do
Mar”.61 Também com o objetivo de atrair turistas para conhecerem o
“único porto marítimo do Estado, a maior praia do Atlântico Sul e o
maior parque industrial-pesqueiro do Brasil” foi financiada pela
Ipiranga e Arrieche-Pinturas a colocação de um painel de divulgação
dos atrativos da cidade na BR 271, fixado no entroncamento da
estrada que leva a cidade de Santa Vitória do Palmar, fronteira com o
Uruguai. Com o mesmo objetivo dos panfletos e do painel, foi levada
a frente à proposta cinematográfica de divulgação da cidade. O filme
sobre as potencialidades da “Noiva do Mar”, que deveria ser exibido
em cadeia nacional de cinemas e TVs, custaria aos cofres da
Prefeitura Municipal a quantia de Cr$ 30.000,00. Valor que, apesar de
considerado baixo, até mesmo pelo editorial de O Peixeiro, a
Prefeitura não possuía para pagar.62 Depois de pronto, o documentário
de 13 minutos, seria exibido nas salas de cinema da cidade e enviado
aos circuitos cinematográficos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro.63
Ainda que Cid Scarone possuísse amplo reconhecimento e
influência política dentro e fora do município, nem sempre suas ações
gozavam de unanimidade. Não concordando com o destino da
distribuição das rendas públicas, que em boa parte seriam aplicadas
em obras de caráter puramente político, a bancada de oposição do
Legislativo, promoveu uma intensa manifestação contrária, referente
ao Plano de Desenvolvimento de Rio Grande (PLADERG), que
estabelecia a execução de tarefas dentro do triênio 1970-1972.64
Apesar de toda a manifestação o Plano acabou sendo executado como
fora proposto pelo Executivo. O Jornal Rio Grande noticiou assim a
manifestação:

61
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 14/03/1971, p. 6.
62
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 31/01/1971, p. 12.
63
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 19/12/1971, p. 5.
64
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 16/01/1970, p. 8.

144
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Embora haja harmonia entre o Legislativo e o Executivo,


também nota-se que, nem sempre tem sido muito pacifica a
solução dos problemas municipais... A distribuição das rendas
públicas, entretanto, tem gerado algumas batalhas
parlamentares, o que de resto, é bem característico de uma
democracia, onde os problemas de uma comunidade são
debatidos em clima de liberdade... Como dissemos no início, o
episódio é uma conseqüência, mesma, do regime democrático e
vem ressaltar a existência da Oposição que, em última análise,
é governo, funcionando para evitar a possíveis erros ou
injustiças. Há a compreensão e o respeito devidos a ambos:
situação e oposição.65

Interessante ver o tom de apaziguamento que o Jornal Rio


Grande dá a notícia, como se pretendesse acalmar a população e
mascarar a atuação da oposição, até mesmo em momentos nos quais, a
reação da oposição derivasse de motivações para o bem comum.
Como argumento, esse periódico afirmava que esses acontecimentos
eram corriqueiros em regimes democráticos e que a oposição, “em
última análise”, também era governo. Aparentemente, a cidade
passava por um período de prosperidade e de normalidade política e
social.
Em outro acontecimento que envolveu o edil da ARENA,
Washington Ballester de Sá Freitas, e sua denuncia na Câmara dos
Vereadores, sobre um indivíduo que compunha o grupo de auxiliares
do interventor municipal, como sendo um “elemento pernicioso” a sua
administração, uma vez que, em função do cargo que ocupava acabou
idealizando um “grupo econômico” que “estava se assenhorando de
muitas coisas”, foi noticiado pelo Jornal Rio Grande através de uma
solicitação ao Executivo Municipal, a fim de que tivesse a máxima
atenção, no sentido de averiguar a denúncia66.
Uma Comissão Permanente de Sindicância foi criada pelo
interventor Cid Scarone, que convidou o vereador Washington

65
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 06/01/1970, p. 2.
66
Cf. Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 25/05/1971, p. 1.

145
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Ballester a prestar maiores esclarecimentos sobre suas declarações. A


criação da Comissão de Sindicância foi vista de maneira positiva pelo
Jornal Rio Grande, como uma prova evidente de que Cid Scarone
pretendia “fazer um governo de portas abertas, doa a quem doer.”67 O
vereador após aceitar o convite, afirmou que agiu desta maneira, para
evitar que fatos como este pudessem denegrir a administração do Ten.
Cel. Cid Scarone. O Jornal Rio Grande tratou de defender o vereador
e a administração municipal com as seguintes palavras:

[...] O Dr. Washington Ballester Freitas, que foi dos pregadores


da Revolução tal como este jornal, tendo combatido o
comunismo numa época em que a tarefa não era fácil como
hoje, e muita gente boa se metia em baixo da cama ou
entregava com a mão trêmula, as contribuições em dinheiro
que a subversão angariava, considera-se em posição muito
cômoda para defender os princípios da decência administrativa
[...]68

O que a linha editorial do Jornal Rio Grande não sabia ou


preferiu omitir, foi que o vereador Washington Ballester vinha sendo
investigado pela Secretaria de Ordem Política e Social do Rio Grande
– SOPS/RG, por sua participação naquilo que esse órgão entendia
como sendo uma “indústria de acidentes em Rio Grande”. Um trecho
do resultado da investigação que contém dez páginas expõe assim as
atividades de Ballester com os estivadores que trabalhavam no Porto
da cidade:

[...] o Dr. Ballester, tem participado da Indústria de Acidentes,


como patrono dos segurados do INPS, que trabalham na estiva
local. Sabe-se também que certos empregados da estiva quando
faziam uma boa tarefa e recebiam um salário regular, estes
procuravam se acidentar, para poderem receber o seguro

67
Cf. Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 29/05/1971, p. 1.
68
Idem ao n° 66.

146
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

acidente que era calculado na base do último dia de trabalho


[...]69

Conforme as fontes da SOPS, o vereador e advogado


Washington Ballester foi o organizador desta indústria de acidentes.
Ele cobrava valores diversos para encaminhar ao INPS o pedido de
seguro para os trabalhadores da estiva, mesmo sabendo que os
acidentes que os impossibilitavam de exercer suas atividades
laboriosas eram provocados de modo proposital, causando “vultosos
prejuízos ao INPS”70.
Além disso, constam nas fontes da SOPS, o fato do vereador
ter se “destacado por criar inúmeros problemas para o Executivo
Riograndino”, sendo que em novembro de 1971, portanto, seis meses
depois de proferir suas denúncias, Washington Ballester foi
considerado comunista pelos agentes da SOPS, pois estava em “litígio
com o Sr. Prefeito”71, provavelmente por não ter conseguido provar as
acusações proferidas contra os membros que auxiliavam o interventor
municipal.
Como é possível observar, as denúncias realizadas por esse
órgão de imprensa nunca foram contrárias à administração municipal,
pois a manutenção do poder político local foi uma preocupação
sempre constante do Jornal Rio Grande. Outra característica editorial
marcante deste periódico foi o objetivo sempre explícito de em
situações problemáticas, tentar minimizá-las através do perigo que os
comunistas poderiam representar para a sociedade riograndina, caso

69
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Rio Grande. SOPS/RG – 1.2.505.5.2. Rio Grande,
10/10/1969.
70
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Rio Grande. SOPS/RG – 1.2.505.5.2. Rio Grande,
19/09/1971, folha 1.
71
Idem ao n° 47, fls. 1 e 2.

147
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

tivessem alcançado o poder político, o que acabou sendo evitado


graças à “revolução” de 31 de março de 1964.
Quando Cid Scarone deixou o cargo para seu sucessor, o
senhor Rubens Emil Corrêa, já nos primeiros meses de administração
do novo interventor a população manifestava seu descontentamento,
como demonstra esse trecho retirado das páginas do Jornal Agora: “O
riograndino está preocupado com a aparência da cidade, quer melhor
pavimentação e um serviço de limpeza pública mais eficiente”72.
O descontentamento da população quanto às melhorias na
pavimentação acabaram influenciando o líder da bancada do MDB,
vereador Antônio Barros a proferir na Câmara dos Vereadores a
seguinte manifestação, que apontava falhas da administração do
interventor que tinha recentemente sido substituído: “no final do
mandato de Cid Scarone, a pavimentação recebeu um impulso, mas
seu caráter foi mais político do que objetivo”73.
Diante das afirmações do vereador Antônio Barros, o vereador
líder da ARENA, senhor Antônio Maçada, afirmou que havia aspectos
muito mais importantes para serem discutidos na Câmara Municipal,
entre eles, questões problemáticas referentes a habitação e o
desemprego, bem como, os recorrentes problemas com o saneamento
básico que possuía uma rede limitadíssima.74
Ao longo de seu mandato como interventor, Cid Scarone
soube conduzir e contornar muito bem os problemas da cidade,
sobretudo com ações que visaram transformações paisagísticas,
conseguindo assim manter um alto índice de aprovação popular.
Scarone além de promover pequenas melhorias visuais, também soube
como instigar a autoestima dos riograndinos, talvez por esses motivos
ele tenha sido tão festejado enquanto esteve à frente do executivo
municipal.
O professor Péricles Antônio Fernandes Gonçalves, que
trabalhou como Assessor de Relações Públicas da Prefeitura do Rio

72
Jornal Agora: Rio Grande – RS; 15/08/1975, p. 7.
73
Jornal Agora: Rio Grande – RS; 17/08/1975, p. 6.
74
Jornal Agora: Rio Grande – RS; 19/08/1975, p. 3.

148
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Grande enquanto Cid Scarone ainda estava à frente do executivo,


relatou um acontecimento envolvendo o interventor e um programa
organizado pela TV Gaúcha, que ocorreu no Ginásio da Brigada
Militar localizado em Porto Alegre.
O programa era um concurso no qual, cidades do Estado
deveriam apresentar suas potencialidades artístico-culturais diante de
um júri que escolheria qual seria a vencedora. Devido à parcialidade
dos jurados em favor da cidade adversária, o Ten. Cel. Cid Scarone se
levantou da mesa onde estavam as autoridades que prestigiavam as
gravações do evento e interrompeu o programa, afirmando que os
representantes da cidade do Rio Grande não continuariam as
apresentações naquelas condições.
Tal atitude de Scarone acabou fazendo com que a direção da
TV Gaúcha ficasse preocupada, principalmente pelo fato de ele ser na
época, o interventor de uma Área de Segurança Nacional. Tentando se
redimir dos acontecimentos a TV Gaúcha:

[...] resolveu trazer para Rio Grande o programa, no ginásio do


Atlético Clube Ipiranga, e fizeram a apresentação só de Rio
Grande, filmado pela TV Gaúcha... e nesse dia o Cid recebeu
uma placa de prefeito eleito... mesmo sendo interventor... pelo
o que ele tinha representado... foi uma época de auge assim
dele [...]75.

Atitudes bairristas como esta, possivelmente fizeram com que


os militares ganhassem ainda mais adeptos. Ao defender a cidade em
um concurso de potencialidades artísticas e culturais, o interventor
Cid Scarone deixou bem claro que estava disposto a levar adiante
qualquer tipo de ação, que visasse o interesse do município e da sua
população. Em troca, o reconhecimento dos riograndinos ao
interventor foi demonstrado de modo simbólico, através de uma
homenagem pública que foi transmitida para todo o Estado, de entrega
de uma placa de “prefeito eleito”.

75
Entrevista cedida em 11/01/2011.

149
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Portanto, o contexto político e econômico militarizado das


instituições públicas e organizações privadas em virtude dos avanços
estruturais em setores importantes da economia local, bem como, da
propaganda sempre favorável aos militares, verificável através das
páginas do Jornal Rio Grande, demonstram que no decorrer da década
de 1970, em Rio Grande, existiu uma eficiente estrutura de
legitimação do regime autoritário que acabou aliciando diversas
parcelas da sua população, fazendo com que grande parte da
sociedade da época sentisse uma sensação de amparo, proteção, ou até
mesmo de apadrinhamento por parte dos militares.
Em sua outra face, os focos de oposição ao regime também
mantinham algumas atividades na cidade, mesmo com a intensa
vigilância e atuação repressiva da Secretaria de Ordem Política e
Social do Rio Grande, que trabalhou em conjunto com a 7ª Delegacia
Regional de Polícia Civil, Delegacia de Polícia Federal e 6° Batalhão
de Polícia Motorizada, bem como, com a 2ª Seção do 6° Grupamento
de Artilharia e Campanha do Exército (6° GAC).
Como centro de informação do aparato repressivo em Rio
Grande, a SOPS esteve instalada no prédio da Polícia Federal,
localizado estrategicamente na entrada da cidade, e sua principal
atribuição foi executar a coleta e distribuição de informações visando
todos os setores da sociedade riograndina.
A SOPS/RG foi responsável por uma abrangente área de
atuação, que englobava inúmeras cidades como Pelotas, Jaguarão,
Chuí, Santa Vitória do Palmar e São José do Norte, e esteve
subordinada ao Departamento de Ordem Política e Social do Rio
Grande do Sul (DOPS/RS). Ambos compunham e interagiam com a
“comunidade de informações”76, que tinha como instância máxima o
Serviço Nacional de Informação (SNI)77, que em suas atribuições

76
Cf. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 94. A
comunidade de informações era um conceito designador de um modo de
atuação que supunha a colaboração e lealdade entre os pares, através de forte
sentimento corporativo, do qual faziam parte, civis e militares.
77
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação
política, poder e golpe de classe. 7. ed, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,

150
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

deveria assessorar o presidente da República na orientação e


coordenação das atividades de informação e contrainformação com os
governos dos Estados, entidades privadas e administrações
municipais, através da coleta, avaliação e integração das informações
em proveito das decisões do general-presidente e das recomendações e
estudos do Conselho de Segurança Nacional (CSN).78
As alterações sócio-econômicas e culturais, advindas do fluxo
migratório em direção ao município, em virtude dos constantes
investimentos recebidos in loco, que provocavam a geração de
empregos, naturalmente deixaram ainda mais complexo o trabalho de
vigilância das Agências de Inteligência. Um bom exemplo é a
construção da torre de microondas instalada no centro comercial da
cidade, empreendimento que tinha como finalidade, resolver parte dos
problemas de comunicação enfrentados pelo setor industrial e
comercial do município. Inserida no projeto Rota Sul de
Comunicações, além da referida torre de microondas, foi construída
uma central telefônica com capacidade operacional de 3.000 linhas
telefônicas,79 que interligavam todos os municípios que se
encontravam na faixa entre Rio Grande e Porto Alegre.80 Certamente,
a torre de microondas foi uma importante ferramenta, tanto para o
empresariado local, quanto para a “comunidade de informações”, que
desde então, conseguiu interagir com outras Agências de Inteligência,
reforçando e agilizando ainda mais a vigilância ao que consideravam
como possíveis focos de subversão.
É irônico constatar que a pesquisa realizada através da
documentação da SOPS, ou melhor, daquilo que restou da sua
documentação, evidencia de modo explícito as intenções e atuações da

2008, p. 445. O SNI teve uma ligação muito próxima com o Ministério do
Planejamento e Coordenação Econômica, isso corrobora com o fato de que,
diante da Doutrina de Segurança Nacional, a coleta de informações se
apresenta como um importante aporte para o desenvolvimento econômico.
78
Cf. BAFFA, Ayrton. Nos porões do SNI. O retrato do monstro de cabeça
oca. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1989, p. 13.
79
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 21/06/1970, p. 7.
80
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 27/09/1970, p. 12.

151
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

oposição, sobretudo dos políticos ligados ao MDB, atividades que o


Jornal Rio Grande ocultou ou manipulou conforme o alinhamento das
diretrizes políticas do seu corpo editorial, uma vez que, a oposição
poderia comprometer a segurança municipal e interferir em seu
desenvolvimento.
Com a inauguração do Jornal Agora em agosto de 1975, a
atuação da oposição em Rio Grande, passou a ocupar com maior
frequência os noticiários. Sob a direção de Germano Torrales Leite, o
mesmo editor responsável pelo semanário O Peixeiro, o periódico
Agora passou a defender o paradigma da democracia como
aglutinador de uma cultura política renovada81. Desde então com
orientação política liberal, tratou de noticiar abertamente às
manifestações contrárias a base do governo municipal, bem como,
todas as demais atividades relacionadas à Câmara de Vereadores,
como demonstra o trecho da documentação da SOPS, de cunho
“reservado”, intitulada: Recorte do Jornal Agora de 17.09.1976: “...
temos acusações dos vereadores do MDB, contra o vereador Érico
Martins, atual secretário da agricultura, dizendo que a candidatura
deste, estaria sendo patrocinada pela prefeitura municipal”82. Nas
articulações políticas do legislativo municipal, não faltaram
acusações, troca de ofensas e provocações entre os vereadores da
ARENA e do MDB, como demonstra essa circular da SOPS/RG,
destinada ao DOPS de Porto Alegre, transcrita do Jornal Agora:

81
Cf. NAPOLITANO, Marcos. A imprensa e a “questão democrática” nos
anos 70 e 80. In: NAPOLITANO, Marcos. Cultura e poder no Brasil
contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2002, p. 149. Através das afirmações desse
autor, é possível constatar que o Jornal Agora esteve ligado aos segmentos
liberais da sociedade brasileira, uma vez que, implicitamente apareciam em
suas publicações questões referentes ao “estado de direito”, ou seja, da
“normalidade” jurídico-política institucional e dos direitos individuais.
82
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Rio Grande. SOPS/RG – 1.5.1147.12.4. Rio Grande,
22/09/1976.

152
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Na sessão da Câmara Municipal do dia 31 de março os


vereadores do MDB, retiraram-se maciçamente do plenário,
após o pronunciamento de seu líder, o vereador Antonio
Sostenes Peres Barros, que após sua palavra, convidou os
vereadores de seu partido a se retirarem da sessão, no que foi
prontamente atendido. O fato ocorreu devido ao
pronunciamento do vereador Antonio de Pinho Maçada, que
enalteceu a revolução de 64, o que foi aceito pelo líder da
bancada do MDB, como provocações.83

Na eminência de possíveis eleições para os cargos de prefeito


das cidades brasileiras no ano de 1976, os vereadores do MDB
começavam a se organizar a fim de pressionar para que os
riograndinos pudessem escolher através do voto direto seus
representantes ao executivo municipal. O trecho abaixo retirado do
Editorial do Jornal Agora dá uma ideia mais aproximada de como o
periódico se posicionava diante dos embates políticos no município:

O líder do MDB na Câmara, Antônio Barros, não quer dúvidas


a respeito de quem luta para privar o rio-grandino do direito do
voto. Ele se pronunciou a respeito, em nome da bancada
emedebista. Deseja que fique bem claro que o MDB não votou
a favor da proposição de Antônio Maçada [líder da ARENA]
no sentido de que toda correspondência saída de Rio Grande
leve as inscrições bem claras: ÁREA DE SEGURANÇA E
INTERESSE NACIONAL [grifo do Editorial]. Ainda sobre a
proposição de Maçada, Barros disse que “só podia ser coisa de
militar”.84

Divulgando o posicionamento partidário dos vereadores do


MDB, favoráveis às eleições e particularmente interessados que os

83
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Rio Grande. SOPS/RG – 1.5.1141.12.4. Rio Grande,
01/04/1976.
84
Jornal Agora: Rio Grande – RS; 03/10/1975, p. 1.

153
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

riograndinos deixassem de ter um prefeito-interventor indicado pelo


Governador do Estado com pleno respaldo do General-Presidente,
pelo fato de ser Área de Segurança Nacional, o Agora continuou a
divulgar de modo enfático as ações dos emedebistas no sentido de
garantir as eleições municipais.

O vereador Luiz Alberto Modernell (MDB) usou a tribuna da


Câmara... para acusar a bancada da ARENA de fugir de todo e
qualquer debate a respeito da inexistência de eleições para
prefeito nos municípios considerados como Áreas de
Segurança Nacional... Modernell leu uma notícia publicada
pelo jornal Estado de São Paulo, dando conta de que fora
aprovado por unanimidade na Câmara de Vereadores de Santos
[que na época era Área de Segurança Nacional], São Paulo, um
projeto criando uma Comissão encarregada de tentar conseguir
a volta da autonomia política aquela cidade... Em Santos, disse
Modernell, os parlamentares estão unidos para devolver ao
povo “a autonomia que foi mutilada após o movimento de 64”,
ou seja, o direito de escolher, pelo voto, o chefe do município.
Já em Rio Grande, as coisas são diferentes, segundo o
vereador, que diz que, cada vez que ouve falar em eleições
municipais, “a bancada da ARENA fica petrificada, como se
estivesse em frente a um lobisomem”. 85

Além dos embates políticos entre os vereadores da ARENA e


do MDB, o que demonstra que as articulações políticas não foram tão
harmoniosas e amistosas como alguns procuravam mostrar, o Agora
passou a chamar a atenção também para os problemas referentes à
segurança pública na cidade. O objetivo da linha editorial deste
periódico foi denunciar os índices alarmantes de criminalidade no
município, destinando uma página inteira de conteúdo às ocorrências
policias que aconteciam diariamente (assaltos a pedestres, furtos a
patrimônio público e privado, roubo de carros, tiroteios, atos de
vandalismo, estupros, homicídios, sequestros, abigeatos, tráfico de
drogas, entre outros).

85
Jornal Agora: Rio Grande – RS; 07/10/1975, p. 2.

154
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Segundo o Agora, a situação da segurança pública em Rio


Grande, devido a uma “onda de assaltos”, fez com que o Lions Club
Cidade do Rio Grande emitisse um ofício ao Ministro da Justiça
Armando Falcão, no sentido de que ele pudesse intervir na situação e
resolver o problema.86 Decorridos onze dias, o delegado Gonzaga
Mafaldi anunciou a redução de 80% na criminalidade e nos delitos
que vinham ocorrendo, graças às operações “Tranquilidade” e “Preto-
e-Branco”, ambas deflagradas pela Polícia Civil.87 Não tardou para
que os índices de criminalidade voltassem a aumentar.88
Outro tema que começa a ganhar espaço nas páginas do
Agora, diz respeito às contradições socioeconômicas encontradas em
Rio Grande nesta época. Em uma matéria de capa fartamente ilustrada
com imagens que mostram a degradante situação em que viviam os
moradores da Rua Enrique Pancada, em meio à miséria e vulneráveis
a inúmeras doenças,89 logo a baixo das imagens há um convite a
reflexão por parte dos leitores: “Até quando o homem continuará a
progredir inescrupulosamente?”. Imbricados a este problema, foram
publicadas notícias referentes a pescadores que foram covardemente
espancados por policias militares enquanto trabalhavam90, aumentos
abusivos na ordem de 60% para os usuários do transporte coletivo91,
repressão e prisões arbitrárias a indivíduos que tivessem cabelos
compridos e portassem mochilas (o caso dos mochileiros)92, o alto
índice de analfabetismo na cidade (cerca de 15 mil pessoas)93,
cobrança de taxas de mensalidade em escolas públicas da rede

86
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 15/08/1975, p. 3.
87
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 26/09/1975, p. 10.
88
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 25/11/1975, p. 10.
89
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 17/12/1975, p. 1 e 2.
90
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 23/01/1976, p. 3.
91
Cf. O Peixeiro: Rio Grande – RS; 26/01/1975, p. 1.
92
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 26/03/1976, p. 2.
93
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 16/02/1976, p. 2.

155
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Estadual94 e óbitos decorrentes do deficitário e precário sistema de


saúde95.

Situação das moradias na Rua Enrique Pancada

Desde que entrou em funcionamento, esse periódico passou a


ser vigiado pelos agentes da SOPS, que o entendiam como um órgão
de imprensa ligado a setores da esquerda. Porém, a linha editorial do
Agora, manteve a postura de divulgar os acontecimentos políticos do
município e do país, com a preocupação de não emitir opiniões
contrárias ao regime de maneira explícita ou depreciativa, zelando
assim pela sua manutenção e escapando da censura e interrupção de
suas atividades. O fato de divulgar informações que pudessem
interferir na „harmoniosa‟ convivência entre a administração
municipal e a oposição – ao menos era no que grande parte da
população preferia acreditar – era suficiente para causar desconfiança
nos agentes da SOPS.
O serviço de inteligência desenvolvido pelos agentes da SOPS
também forneceu subsídios para que a polícia política atuasse a fim de
eliminar focos de oposição ao regime e a administração municipal.

94
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 10/12/1975, p. 3.
95
Cf. Jornal Agora: Rio Grande – RS; 06/02/1976, p. 10.

156
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Em entrevista realizada com um policial civil que atuou ativamente na


repressão, este afirmou que a tortura física e psicológica foi uma
prática comum, utilizada como meio de obter confissões ou
informações que julgassem importantes. “... recebíamos a informação
do SOPS de que fulano de tal era subversivo ou comunista...
ficávamos de campana, seguindo o elemento aonde ele fosse... se as
informações procedessem prendíamos o cidadão e o levávamos pra
delegacia...”.96
A 7ª Delegacia Regional de Polícia Civil possuía celas
especiais para esses presos. Elas estavam equipadas com diversos
aparatos para a prática da tortura física, entre estas a campainha de
choques elétricos e o pau-de-arara. Surras com pedaços de pau ou
toalhas molhadas eram muito utilizadas, porém, quando havia
urgência nas exigências da SOPS os métodos se intensificavam.

[...] quando o delegado exigia que obtivéssemos rapidamente


uma confissão ou uma informação, tínhamos que apertar o cara
ainda mais... levávamos o indivíduo vendado e sem roupa lá
pra praia do Cassino na madrugada. Daí amarrávamos as mãos
e os pés dele com uma corda e entravamos com ele no mar.
Afogávamos o cara... contávamos a passagem de seis ou sete
ondas e depois retirávamos ele da água. Repetíamos isso várias
vezes, até quase ele não aguentar mais. Se mesmo depois disso
ele não falasse nada, nós eletrocutávamos ele com os fios
ligados no dínamo do Opalão97, isso sempre funcionava [...]98

96
Entrevista cedida em 02/04/2009. Quando participou destes
acontecimentos, o entrevistado tinha recentemente ingressado como inspetor
da Polícia Civil. Em realidade ele permitiu que seu nome fosse citado neste
trabalho, porém, optei em preservar minha fonte, não o expondo, pois
acredito que isso poderia gerar diversos transtornos, inclusive pelo fato de o
policial ainda estar na ativa.
97
“Opalão” era o apelido dado ao Chevrolet Opala, carro muito usado pela
polícia nesta época, por ter bastante espaço interno, um grande porta-malas e
ser bastante veloz e estável quanto à dirigibilidade.
98
Idem ao n° 87.

157
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

O mesmo policial também afirmou que, pelo fato de Rio


Grande ser Área de Segurança Nacional esse tipo de procedimento era
necessário, a polícia tinha que agir com firmeza contra os comunistas
ou qualquer foco de oposição. Graças à documentação produzida
pelos agentes da SOPS/RG, que entendiam que havia subversão e
comunismo em todas as camadas da sociedade, a utilização da tortura
se ampliou até mesmo sobre os crimes comuns como furtos em
residências ou no comércio. O policial concluiu com a seguinte frase
seus comentários: “Todo o ladrão era comunista ou subversivo”.99
É evidente que, em âmbito nacional, a coleta de informações
através da vigilância, incrementou a repressão e a tortura como meio
de promover a segurança interna e a defesa contra as ameaças
externas, e, desta forma, garantir os objetivos da segurança nacional,
que teoricamente eram ameaçados pelo contexto da Guerra Fria e o
fantasma do comunismo. Logo, para o historiador, tratar da repressão
política é abordar de maneira objetiva a construção do Estado de
Segurança Nacional, tentativa política dos governos militares para
combater fundamentalmente o que percebiam como perigo interno
representado pela ameaça comunista.100 O perigo interno, também
conhecido como inimigo interno conferiu eficiência à DSN, e a
indefinição do conceito fez com que toda a população fosse
considerada suspeita, controlada, perseguida e eliminada conforme a
necessidade. Desta forma, a ditadura brasileira, responsável por
disseminar o medo e conferir ao Estado poderes quase ilimitados101,
soube articular muito bem a DSN ao desenvolvimento econômico,

99
Idem ao n° 87.
100
D‟ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon e CASTRO,
Celso. Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 7.
101
PADRÓS, Enrique e FERNADES, Ananda Simões. Faz escuro, mas eu
canto: os mecanismos repressivos e as lutas de resistência durante os “anos
de chumbo” no Rio Grande do Sul. In: PADRÓS, Enrique Serra;
BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa Albertinence; FERNANDES,
Ananda Simões, (Orgs). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do
Sul (1964-1985): história e memória. Porto Alegre: Corag, 2009, p. 34-41.

158
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

fazendo com que largas parcelas da sociedade brasileira legitimassem


o autoritarismo do regime.
Particularmente em Rio Grande, em prol da proteção para o
desenvolvimento e a consequente melhoria de suas condições
socioeconômicas, muitos riograndinos passaram a entender e admitir
que as ações criminosas do Estado através dos atos de vigilância,
repressão e tortura, eram justificáveis, pois, desta forma, a cidade
continuaria crescendo e atraindo ainda mais investimentos.
A justificativa assenta-se fundamentalmente no fato de Rio
Grande ser considerada Área de Segurança Nacional, cidade portuária
e estratégica na defesa do litoral brasileiro, e, portanto, um território
sem obstáculos para o desenvolvimento econômico e a segurança
nacional. Sendo assim, a dicotomia entre segurança e
desenvolvimento econômico acabou marcando profundamente as
relações entre a Ditadura Civil-Militar e largas parcelas da sociedade
riograndina. Seus reflexos podem ser sentidos até os dias de hoje,
como no recente e polêmico caso da homenagem em praça pública ao
principal artífice do Golpe de 1964 e da reabertura política102,
considerado por muitos riograndinos como um “filho ilustre”103 e
“bem feitor”104, Golbery do Couto e Silva.

102
Ver ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira de. O Satânico Dr. Go: A
Ideologia Bonapartista de Golbery do Couto e Silva. Dissertação de
Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica –
PUC, 1999.
103
Conforme as palavras do vereador Renato Albuquerque em sua
participação no programa FM Café da Rádio da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG FM, em 06/09/2011. Nesta oportunidade, a convite da
emissora, debati sobre a intenção de homenagear Golbery do Couto e Silva,
juntamente com os vereadores Júlio Martins (PC do B), Renato Albuquerque
(PMDB) e Augusto Cesar Martins de Oliveira (PDT), bem como, com o
radialista e apresentador do programa Fabiano Mello da Costa. Fonte em
formato digital (Acervo particular).
104
Idem ao n° 93.

159
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

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Jornal Agora: Rio Grande – RS.
Semanário O Peixeiro – RS.

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162
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

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1988/Del1135.htm>.
Marinha do Brasil:
<https://www.mar.mil.br/menu_v/condecoracoes_insignias/mmt2.htm
>

Outras fontes

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Rio Grande. FURG 40 Anos: revelando seus espaços. Rio Grande:
Editora da FURG.

Telegrama Oficial Municipal de 19/06/1979: Arquivo morto da


Universidade Federal do Rio Grande – FURG.

Documentação da Secretaria de Ordem Política e Social do Rio


Grande – SOPS/RG. Acervo da Luta Contra a Ditadura.

Gravação do Programa FM Café da Rádio da Universidade Federal do


Rio Grande – FURG FM, em 06/09/2011

163
Expurgo de docentes na FURG (1969-1977)1.

Leonardo Prado Kantorski.2

A partir do golpe de 1964 que instaurou a ditadura civil-


militar3, o Brasil começou a vivenciar um tempo de restrição das
liberdades democráticas, pois o novo regime, seguindo as palavras de
João Quartim de Moraes (2008, p.25), consolidou-se como forma de
poder de Estado, reproduzindo continuamente o ato de força com que
se instaurara. Por meio de sua política autoritária, o período ditatorial
provocou inúmeros impactos na estrutura social do país. Os efeitos
desse processo vêm sendo apresentados em diversos estudos sobre o
regime pós-1964, em suas mais variadas vertentes interpretativas, a
qual se soma o presente trabalho.4
É neste período de patrulhamento ideológico, de censura e de
perseguição que se insere o objeto de estudo desta pesquisa. Ela

1
Artigo baseado na Dissertação de Mestrado “Expurgos de docentes na
lógica da Doutrina de Segurança Nacional: o caso da FURG (1969-1977)”
apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de Pelotas, sob orientação prof. Dr. Alvaro Augusto de
Borba Barreto.
2
Licenciado em História – FURG. Mestre em Ciências Sociais – UFPEL. E-
mail: leokantorski@gmail.com
3
Optou-se pela expressão civil-militar por entender que ela remete à
importante participação da sociedade civil nas conspirações que antecederam
a ditadura, no golpe propriamente dito e no processo decorrente dele.
4
Na literatura a este respeito destacam-se, entre outros referenciais, os
estudos de: Gorender (1987), Moraes (1987), Toledo (2004), Alves (1984),
Dreifuss (1981), Reis Filho (1990), Ridenti (1993) e Fico (2001, 2004). No
que tange ao Rio Grande do Sul, os impactos do regime ditatorial, foram bem
debatidos no projeto “A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do
Sul (1964-1985)”, coletânea de textos organizada por Padrós et al. (2009),
que deu origem a quatro volumes: “Da campanha da Legalidade ao Golpe
de 1964”; “Repressão e resistência nos „Anos de Chumbo”; “A Conexão
repressiva e a Operação Condor”; e “O Fim da ditadura e o processo de
redemocratização”.

165
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

investiga o processo de expurgo5 de docentes, ocorrido na


Universidade Federal do Rio Grande (FURG), tendo como recorte
temporal o período compreendido entre a fundação da instituição, em
1969, e o último ano de ocorrência dos expurgos estudados, em 1977.
Mais especificamente, a investigação está centrada no caso de 14
docentes afastados, os quais faziam parte de dois departamentos:
Oceanologia (3) e Medicina Interna (11), e que foram oficialmente
reconhecidos como demitidos indevidamente, razão pela qual
compuseram a listagem dos primeiros anistiados da instituição, em
1987.6 Documento presente no Acervo Geral da FURG, como o
Ofício no 262/86 (FURG, 08 set. 1986), sugere que o contingente de
expurgados pode ter sido bem maior atingindo cerca de 30 docentes.
É primordial destacar que a intervenção estudada neste
trabalho não ocorreu exclusivamente da FURG. Como não poderia
deixar de ser, o ensino superior público como um todo não ficou
imune às ações do Estado de violência legal ao longo do período
ditatorial. Raul Carrion (2009, p.57) destaca que, a partir de “abril de
1964, o ministro da Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda,
instituiu as comissões especiais de investigação sumária, com o
objetivo de expurgar das universidades os professores „subversivos‟”.
Portanto, esse tipo de prática repressiva ocorreu em diversas
instituições, entre elas: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Universidade Federal de Minais Gerais (UFMG),
Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Brasília (UnB).7

5
Entende-se expurgo como uma modalidade traumática tratando-se de uma
ação seletiva utilizada pela ditadura como forma autoritária e coercitiva de
violência em um setor que, no caso é a universidade, para tirar do seu
caminho aqueles que, de uma maneira ou outra, atrapalhavam os interesses
dos que se encontravam no poder.
6
Conforme despacho do Ministro da Educação, Jorge Bornhausen, datado de
21 de maio de 1987. Ver: Brasil, Diário Oficial da União, 03 jun. 1987, p. 12.
7
Os estudos específicos referentes à intervenção em universidades e à
relação Estado ditatorial-docentes existem em número reduzido. Entretanto,
cada vez mais pesquisas voltadas à análise desses processos vêm sendo
realizadas, logo paulatinamente vem sendo removido o manto de silêncio em

166
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Durante o processo resultante do golpe de 1964, aconteceu a


crescente polarização do confronto de ideias sobre o novo regime. O
debate – por vezes aberto, outras vezes velado – tornou-se cada vez
mais presente no meio intelectual e nas universidades brasileiras.
Analisar o processo de expurgo ocorrido na FURG é uma contribuição
importante para o registro de sua história, do regime ditatorial na
cidade e da política ditatorial para o ensino superior público brasileiro.
Deve-se ponderar, também, que o expurgo de professores na
FURG configura uma pesquisa de caráter exploratório e, por isto,
justifica uma percepção significativa de fatores conjunturais do
período. Assim, a memória dos docentes estudados apresenta-se como
fator de grande importância para a constituição de uma expressiva
fonte, capaz de auxiliar no entendimento das peculiaridades
delineadoras do processo ocorrido na Universidade. Deste modo, ela
contribui para a exposição de acontecimentos, os quais hoje não fazem
parte da História oficial da FURG. E, como destaca Luis Fernando
Veríssimo (2009, p.19):

A História, segundo um surrado e cínico adágio, é sempre a


versão dos vencedores. Uma mentira oficial que se instala e se
institucionaliza e com o tempo vira verdade. Mas o tempo nem
sempre colabora. Com o tempo vem a resignação e a opção por
não turvar águas passadas ou reabrir velhas feridas – mas
também vem a distância necessária para reexaminar mentiras
estabelecidas. O tempo traz o esquecimento – ou aguça a
memória. E nada ameaça mais a versão dos vencedores do que
memórias aguçadas.

Porém, justifica-se a elaboração de um estudo de caso,


considerando-se que – promovida por grupos civis e militares que
tomaram o poder à força, em um contexto no qual a hegemonia de sua
classe encontrava-se ameaçada – a ação repressiva do Estado ditatorial

torno do tema, como demonstram os trabalhos de: Ramos (1994), Resende e


Neves (1998), Salmeron (1999), Clemente (2005), Mansan (2009) e Amorim
(2009).

167
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

sobre o ensino superior público teve impacto e características diversas


de acordo com a especificidade de cada instituição de ensino.
Salienta-se que são consideradas as peculiaridades dos
expurgos ocorridos na FURG, que estão relacionadas à lógica da
Doutrina de Segurança Nacional e cuja análise pode colaborar na
concepção do funcionamento ditatorial nas Universidades brasileiras.
Ressalva-se que o número de 14 docentes que constitui o primeiro
grupo de anistiados da FURG é considerável, levando-se em conta a
intensidade da ocorrência deste fenômeno em outras instituições,
como: USP (23 docentes), UnB (15 docentes) e UFRGS (no ano de
1964, 17 docentes e em 1969, 24) (CARRION, 2009, p.57-58).
O presente trabalho, portanto, é um esforço no sentido de
debater a ditadura instaurada no Brasil pós-1964, para que este
importante período da História do país não caia no esquecimento e
não se torne “águas passadas”. Vale destacar que não é objetivo
desta pesquisa supervalorizar os professores expurgados na FURG.
Porém, entende-se como fundamental apontar criticamente o período
de expurgos na História da Universidade.

***

Os embates concernentes à luta pela memória configuram-se


de maneira evidente em valores e referenciais que são também do
presente. A partir do presente se buscam indagações sobre nosso
passado, que é, em razão disso, inacabado. Entender estas implicações
do passado pode ajudar a responder muitos elementos do cotidiano
atual da instituição.
Na Universidade, as questões primordiais referem-se à postura
do docente centrada no contexto político-institucional, assim como a
relação desta instituição com a sociedade de modo geral. Desta forma,
parte-se do pressuposto que, tanto na sociedade política como na
sociedade civil, os intelectuais podem posicionar-se contra os
interesses dominantes. E, quando não há ligação imediata com a
lógica da produção, como defende Antonio Gramsci (1991), tem-se na
sua organicidade uma maneira de interferir na dinâmica social.

168
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Deste modo, considerando a consciência como produto do ser


social, a atuação de um professor, no contexto da década de 1970 no
Brasil, poderia ser conveniente aos desígnios do Estado ou contrária à
determinada postura. Isso leva a entender a existência de
posicionamentos contra-hegemônicos dentro das universidades no
processo pós-golpe, mesmo estas instituições refletindo os interesses
da ditadura civil-militar brasileira.
Assim, baseando-se na perspectiva teórica do materialismo
histórico, busca-se estudar o processo social em sua totalidade, ou
seja, a fazê-lo quando surge não como mais uma História “setorial”,
mas como uma História total da sociedade. Nela, segundo Edward
Palmer Thompson (1978, p.83) “todas as outras histórias setoriais
estão reunidas”. Mostra-se, assim, que, de modos determinados, cada
atividade se relaciona com outra e atentando para o papel do homem
na esfera social.
A partir da leitura da obra de Thompson, direcionou-se a
atenção para refletir sobre a categoria de análise do trabalho em
função da forma pela qual o referido autor discute a experiência. O
autor aborda como todo um processo de homens comuns se tornam
sujeitos da História por meio de suas lutas cotidianas. A experiência
significaria um processo contínuo de criação e de resistências na qual
se destaca a afirmação das singularidades culturais de cada grupo
social. Como pesquisador, buscou-se a aproximação com o passado,
situando autores, experiências de categorias ponderadas e experiências
individuais em torno das questões políticas e educacionais na década
de 1970 na FURG, referentes ao objeto de estudo.

O Controle permanente: a Doutrina de Segurança Nacional


(DSN)

Como se sabe, vigoraram na América Latina ditaduras


baseadas na Doutrina de Segurança Nacional (DSN). O golpe civil-
militar brasileiro de 1964 inaugurou um ciclo de regimes que se
instituíram na região, tendo como pilares básicos as práticas
repressivas de domínio institucional.

169
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Dentre os diversos papéis exercidos pelo aparelho militar,


sobressaiu-se o repressivo. Esse foi organizado e implementado pelo
Serviço Nacional de Informação (SNI)8, com base teórica na DSN.
Esta doutrina balizou muitas ações e práticas de controle autoritário
no cerne das instituições civis. Este aporte teórico serve para entender
a forma como as ditaduras do Cone Sul atuaram de forma conectada e
sem fronteiras geográficas. Como enfatiza Nilson Borges (2007,
p.23), as atividades desenvolvidas pelo órgão geraram “uma síndrome
de tensão-pressão” no cerne do próprio aparelho militar entre os
oficiais ligados à comunidade de informações e os demais, que não
estavam comprometidos com os excessos praticados.
Neste processo de consolidação e de legitimação das medidas
repressivas após a promulgação do AI-5. Este período no qual a
Universidade começa a ser estruturada se refere à segunda fase da
“Operação Limpeza”. As práticas de expurgos ocorridas no período
da ditadura foram realizadas majoritariamente em dois momentos
principais: no ano de 1964, com vistas a uma primeira “limpeza” dos
opositores ao golpe, e no ano de 1969, muito em decorrência do AI-5.
As universidades enxertaram nas suas estruturas as assessorias
de segurança interna, ligadas ao Ministério da Educação e às agências
locais do serviço nacional de informação. Com base nos pareceres
dessas assessorias, aos professores eram negados pedidos de bolsa de
estudos e de licenças para comparecer a congressos técnicos, assim
como vetadas visitas de professores oriundos de outras instituições,
além de outras arbitrariedades do gênero que foram abundantemente
cometidas (CUNHA; GÓES, 1985, p.40). Os militares brasileiros
desencadearam uma “caça as bruxas”. Organizaram e executaram um
verdadeiro “arrastão” nas universidades, nos sindicatos, nos partidos
de esquerda e nas entidades estudantis. O clima de “terror cultural”
pelo qual o país passou, a partir de 1964, deixou marcas por todos os

8
O SNI se tornou um órgão militarizado que alcançou grande prestigio e
funcionou como centralizador da repressão do estado, transformando-se em
uma espécie de “força armada paralela” e bastante influente (REZENDE,
2001, p. 36).

170
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

lados: “universidades foram invadidas e ocupadas, professores e


alunos presos, editoras saqueadas, livros apreendidos e bibliotecas
destruídas” (CLEMENTE, 2005, p.20).

A cidade de Rio Grande, a FURG e o expurgo institucionalizado

Desse modo, em Rio Grande, o golpe de Estado de 1964


incidiu sobre uma realidade caracterizada pelas contradições e pelos
conflitos típicos de uma sociedade de base essencialmente tradicional,
em um momento de crise de seu processo de modernização. A própria
ocorrência do fenômeno no plano nacional e seu desdobramento na
cidade representaram uma alternativa aos dilemas gerados no cerne de
uma formação social confrontada por alternativas diversas. Essas eram
representadas pelo desenvolvimento industrial forte, socialmente
limitado e politicamente dependente de uma elite tradicional com
atuação cotidiana nos rumos políticos locais.
De sua parte, a ditadura civil-militar percebia a localização
estratégica do município e o valor do seu porto para a política
econômica do país, assim como o histórico de reivindicações
operárias da conhecida “cidade vermelha”, que faziam dela um
possível centro de revoltas e de resistências. Em virtude disso, o
município não estava à margem do projeto ditatorial, ao contrário, era
estrategicamente importante. De acordo com os princípios da DSN e a
grande presença de militares na região, a cidade foi novamente
“condecorada” como Área de Segurança Nacional, tão logo foi
instalada a ditadura, em 1964.9
No caso da FURG, uma instituição fundada já na vigência da
ditadura civil-militar, as práticas autoritárias e coercitivas contra
alunos, funcionários e professores existiram desde o início de suas
atividades. Os apoiadores e sustentadores diretos e indiretos do golpe
e do novo regime ocupavam postos centrais, tanto no poder local
quanto na FURG, tendo sido, nessa condição, figuras importantes no

9
Fala-se em novamente porque até 1951 ela era considerada Área de
Segurança Nacional.

171
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

processo de criação da instituição, em uma relação intensa de apoio


mútuo, quando não de laços diretos de parentesco. Esta situação é
facilmente constatável pelo simples fato do próprio Reitor Eurípedes
Vieira ser parente do Prefeito interventor, Tenente-Coronel Cid
Scarone Vieira. O Professor 1 relata alguns dos elementos dessa
ligação entre instituição, Prefeitura e ditadura:

O terreno onde hoje funciona o Campus Carreiros da FURG,


ele foi doado pela Prefeitura, cujo interventor da época era Cid
Scarone Vieira, primo do Reitor da época. Existia todo um
alinhamento com o riograndino que na época era conhecido
como a iminência parda da ditadura, chamado general Golbery
do Couto e Silva, e a partir desse alinhamento o Reitor da
época, com o interventor da época, com outras lideranças
chamadas forças vivas de Rio Grande compuseram esse perfil
de autocracia nessa gestão do Reitor da época (PROFESSOR
1, 2011, informação verbal).

Nessa perspectiva, por conveniência, por convicção ou por


necessidade, quando não por todas essas razões, as ações em que se
baseava a ditadura civil-militar foram reproduzidas, sem dificuldades,
no âmbito da FURG. Os dados e os depoimentos apontam o Reitor
Eurípides Falcão Vieira como o principal executor das práticas
autoritárias.
Foi na gestão dele que ocorreu a quase totalidade das
demissões de professores sem justa causa, conforme indica o
levantamento realizado pela Superintendência de Administração de
Pessoas da FURG, a partir do trabalho da Comissão Nacional de
Anistia. No período compreendido entre 16 de novembro de 1972 e 15
agosto de 1979, houveram 29 dessas demissões, conforme informa o
ofício no 261/86, datado de 8 de setembro de 1986 e assinado pelo
responsável do setor, José Martins Ávila, encaminhado ao então
Reitor, Jomar Laurino. A seguir no quadro 1 apresenta-se a relação de
professores expurgados nesta época:

172
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Nome do docente Dia do Afastamento Sumário


AtenéaFellistoffa S/D Reintegrada pela justiça
Lucia Ayala S/D Reintegrada pela justiça
Vera Bandeira Villamil S/D Reintegrada pela justiça
Raymundo Paulo Tomkowski 20/03/1973
BrazilioCezimbra Ruiz 29/08/1973
Mario José Simon 30/04/1974
FaridButrosYonan Nader 31/05/1974
José Carvalho Freire 31/05/1974
José Renato Amaral 27/06/1974
Luiz Carlos CrescentiFaleiro 31/08/1974
Alberto Garcia de Figueredo Junior 28/02/1975
Jorge Lopes da Silveira 31/07/1975
Oswaldo Cruz Felizolla 20/09/1975
Lenio Jones Borsato 13/11/1975
KiokoYamasaki 16/02/1976
Hilda Maria Fogaça Stein 04/03/1976
Walter Pool Rodrigues 17/07/1976
Oscar Edmundo KoFreitag 12/04/1976
Irene Dupuy de Araújo 09/08/1976
Neusa Marchand Pinho 03/09/1976
Claudete Duarte Botelho 13/02/1977
Luiz Bassouat Laurino 28/02/1977
Maria Dias Blis 28/02/1977
Maria Helena da Silva de 28/02/1977
Magalhães
Adolpho Roberto Brum 14/01/1978
Hilton Corrêa Lampert 30/01/1979

Fonte: FURG. Superintendência de Administração de Pessoas. Ofício


no261/86. Rio Grande, 08 set. 1986. FURG/Acervo Geral. Quadro 1 –
Professores da FURG demitidos sem justa causa, entre 1973 e 1979 10

10
Dessa listagem constam os 14 docentes expurgados que compuseram a
primeira relação daqueles que foram anistiados em 1987, nos quais está
enfocado este trabalho.

173
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A versão dos professores expurgados confirma a ação do


Reitor Eurípides Vieira. Este se encontrava em situação confortável
com o regime:

Sobre esse controle ditatorial a gente pode se referir como


sendo um ditador que passou pela Reitoria da Universidade e
esse ditador ele não era por si só um ditador, ele era ditador
porque ele tinha um respaldo para ser ou para se comportar
como tal. No contexto da época eram situações de mando
excessivo. Eram perceptíveis. E, esse ditador assim agia
porque assim o tornaram (PROFESSOR 1, 2010, informação
verbal).

Sobre o tipo de gestão implantada, o Professor 1 destaca que


“as práticas repressivas eram devido a esse centralismo, essa
autocracia desenvolvida pelo Reitor da época que centralizava tudo
em si e acreditava ser o único senhor do saber, centralizador pensava
que tudo tinha que ser como ele queria” (Idem). Portanto, a lógica de
punir, repreender ou utilizar qualquer outro recurso autoritário para a
manutenção do controle político de determinada instituição foi
especialmente empregada com os docentes da FURG.
O fato dos interesses da elite, que permanecia no poder, serem
colocados em cheque acelerou o embate nos diferentes espaços de
luta, como a Universidade.

Na década de 1970, a Universidade ainda em processo de


fundação, mesmo com o intervencionismo direto da ditadura
que indicava não só o Reitor como o Prefeito municipal,
existiam professores que por se tratarem de cientistas adotavam
uma didática mais progressista e isso já chamava atenção
(PROFESSOR 1, 2010, informação verbal).

As estratégias da ditadura para sua perpetuação têm relação


com a repressão por meio de instituições, como se fosse um fenômeno
autoritário totalmente ligado à estrutura, no qual não existem

174
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

culpados. Ou, então, o culpado é uma instituição. Na verdade, isso


corresponde a uma ficção, pois foram atores sociais que sustentaram e
buscaram a consolidação do regime. Como aponta um dos depoentes:

Precisa ficar claro que quem perseguiu os professores não foi a


instituição FURG, foram pessoas que amparadas por uma
ditadura se aproveitaram das circunstâncias para tirar do seu
caminho docentes que pensavam uma Universidade mais
progressista. Pessoas estas que queriam concentrar o poder
local e transformavam em inimigos da ditadura qualquer um
que estivesse frente a seus objetivos. No caso da FURG, o
Reitor era o ditador (PROFESSOR 1, 2010, informação
verbal).

A fala do docente, mesmo carregada de mágoa, demonstra o


papel de intelectuais orgânicos na manutenção do controle
institucional interno. As práticas autoritárias faziam parte do cotidiano
dos professores e o medo era um dos instrumentos mais comuns para
o domínio dentro da FURG. O medo era um condicionante da prática
docente:

O ambiente era de muito medo. Vivia-se o medo em função da


ditadura se ouvia falar sobre tortura, sumiços e o medo
colocado pelo Reitor da época na Universidade foi muito
grande, tanto que quando comecei nessa fase de maior crítica
ao Reitor em algumas das situações a que já me referi, Por
exemplo, da repreensão que levei do colegiado da minha
unidade, de todos os meus colegas da época nenhum quis
opinar nem a favor nem contra. Todos com medo da
consequência de que se eles fossem partidários da minha
versão ou se aceitassem a minha versão ou se eles
reconhecessem que eu não estava errado eles seriam atingidos
pela repreensão (PROFESSOR 1, 2010, informação verbal).

O controle permanente, característica herdada da DSN como


destacado anteriormente, foi aplicado em grande escala pela ditadura
no Brasil. Tratava-se de um instrumento aperfeiçoado ao longo dos

175
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

anos. Os docentes tinham dificuldades de reconhecer quem estava ao


seu redor com o objetivo de fazer a fiscalização:

É difícil, muito difícil, na época a gente sabia quem era do


SNI, mas eu me recordo que em uma reunião que nós tivemos
na casa de um colega pra fazer análise do reflexo desses ápices
autoritários do Reitor, terminamos a reunião vamos supor 11
da noite, meia-noite. Às 7 da manhã o pai de uma colega que
era do exército pertencia ao SNI acordou ela dizendo que ela
estaria em numa reunião contra o Reitor. Então era uma coisa
que achávamos que nossa reunião eram todos adeptos da
mesma ideia e surpresos ficamos que tinha dentro da nossa
reunião algum informante, tanto que levou essa informação pro
SNI que, em poucas horas, eles já sabiam de toda a nossa
conversa o que nós tínhamos tratado nessa reunião
(PROFESSOR 2, 2010, informação verbal)

Um dos mecanismos utilizados como perseguição aos


docentes vistos como empecilhos à Reitoria era prejudicar as
condições do desenvolvimento da docência. Por exemplo, para dar um
“aviso”, a administração interrompeu as atividades de pesquisa, no
Núcleo de Avaliação Pesqueira, de um dos docentes que seria
expurgado após algum tempo. Nesta lógica, o convite a algum
professor de fora da FURG para ministrar curso ou palestra também
passava pelo aval da Polícia Federal. Por exemplo, no memorando no
93/73, descrito como confidencial, o Reitor em exercício, João
Marinômio Carneiro Lages, descreve aos sub-reitores e diretores que:

Alertados de que o Sr. Domar Singh Avadhuta Chidrupananda,


conferencista indiano, vem se propondo a realizar palestras em
universidades do Sul do Brasil, levamos ao conhecimento de
V. Sª., que não deverão as mesmas serem autorizadas sem o
prévio consentimento da Polícia Federal (FURG, 05 out.
1973).

No documento destinado ao Presidente da Comissão Nacional


de Anistia do Ministério da Educação, Ronaldo Poletti, os docentes

176
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

expurgados descrevem em conjunto as práticas autoritárias ocorridas


na instituição:

Inúmeros foram os desmandos, coações, ameaças e


perseguições por parte do então Reitor da Fundação
Universidade de Rio Grande (FURG), culminando com a
sequente evasão de mais de 30 docentes no período acima
referido, prejudicando o Ensino e a Pesquisa. Que a maioria
das demissões, dispensas, ou pedidos de demissão,
caracterizaram-se ou tinham como reflexo, a PERSEGUIÇÃO
POLÍTICA efetuada pelos membros da Reitoria. Que estes
docentes, perseguidos que foram, até o reduto de seus
Departamentos, eram constrangidos ou compelidos;
primeiramente, a pedir demissão de seus cargos ou funções,
e/ou, aqueles que ainda tentavam resistir às graves ameaças ou
delações, secundariamente, eram demitidos de maneira sumária
(COMISSÃO NACIONAL DE ANISTIA, 06 nov. 1986).

O Professor 1 argumenta que:

O meu delito mais grave foi tentar participar de discussões,


desenvolver um sentimento critico, ajudar na criação da
Universidade já que ela era tão recente ela foi fundada em
1969, meu curso foi fundado também em 1969 e tenta ajuda a
construir essa Universidade, por tentar ajudar na construção,
por divergir com o reitor da época aconteceu tudo. [...]
Simplesmente o Reitor resolveu me punir por divergências que
estavam surgindo, pela maneira que eu estava me colocando ou
que estava apontando erros na sua administração ou apontando
algumas coisas ele resolveu me punir me tirando dessa área
que estava iniciando na FURG, que é a área de pesquisa que eu
gostava. [...] Acho que não foram um, foram vários, foram
vários pontos acho que eu me referi a esse excesso de mando a
todas as colocações da administração da FURG na época. Nada
podia ser contestado e eu fiz parte de um grupo aonde
contestamos várias coisas, questionamos outras e por todas
essas adoções, a não adoção das políticas por nós consideradas

177
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

erradas do Reitor da época levou a essa cassação


(PROFESSOR 1, 2010, informação verbal).

Nas entrevistas, os colaboradores relatam a existência de um


número considerável de expurgos:

Inúmeros, mas a gente não conhecia os detalhes, a professora


Atenéia Gallo, o professor Ubirajara, esqueci o sobrenome dele
agora, a professora Vera, que tinha sido diretora, a professora,
inúmeros professores, quer dizer havia assim um consenso, as
pessoas comentavam na FURG que todo mundo que se opunha
as ideias dele, a forma dele conduzir a Universidade, ele
simplesmente demitia (PROFESSOR 2, 2010, informação
verbal).

Olha isso é assim eu não sei se vou me lembrar de todos, mas


todos os que foram pra rua da Universidade de uma maneira ou
de outra. Não sei se o Reitor da época se sentiu ameaçado, mas
ele se sentiu tocado, pois não gostava de sofrer críticas ou ser
avaliado e todos os que foram na rua nesse período na década
de 1970 eram professores que estavam ligados a esse setor
crítico da FURG (PROFESSOR 1, 2010, informação verbal).

Na época, não havia organização de professores em


associações docentes, as quais somente no fim da década de 1970
começam a ser criadas.11 Desta forma, a desorganização da classe
facilitou a execução dos expurgos. Como aponta o Professor 1 (2011,
informação verbal): “lembro que após ser expulso da FURG, os meus
antigos colegas eram proibidos de falar da minha situação e eu de
entrar na Universidade”. Os mecanismos de intimidação
desenvolvidos e aplicados na instituição geram nos docentes um
sentimento de conformismo, de adaptação e, principalmente, de

11
No período dos expurgos, não só os professores estavam desarticulados.
Os estudantes, que em geral tem um espírito mais reivindicativo, também
viviam um clima de pouco entusiasmo, sendo reflexo do medo cotidiano
(KANTORSKI, 2008).

178
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

frustração. O fato de conviver com aqueles que vivenciaram ou até


mesmo tiveram participação no seu expurgo, criou um ambiente de
constrangimento/contenção na conduta docente.
Nas situações referentes aos professores do curso de
Oceanologia, observa-se o controle sobre os recursos orçamentários
como motivador especial para repreender os docentes por parte da
administração.

Considerações finais

Contribuir em parte para a compreensão da versão dos atores


políticos que normalmente são pouco enfatizados foi uma das
intenções amplas deste trabalho. Professores jovens que, ao mesmo
tempo em que visavam a construir uma instituição importante
regionalmente em sua cidade natal, voltam-se contra a administração
central para combater práticas autoritárias e equivocadas de direção.
Ao conhecer a documentação administrativa e os relatos dos
docentes entende-se que na Universidade em questão, quem
manifestava incompatibilidade com as práticas autoritárias dentro dos
cursos corria sério risco de ser expurgado e em muitos casos isso
acabou ocorrendo. Além disso, depois de expurgado, era proibido
voltar à instituição para estabelecer qualquer tipo de contato com
outros docentes.
Percebe-se que as relações entre a ditadura e o ensino
superior, no caso de Rio Grande, ainda assim foram muito
contraditórias. Mesmo considerando positiva a criação de uma
Universidade federal no município, sabe-se que o desenvolvimento
institucional da FURG ocorreu de forma conectada ao regime. Esse
investiu na cidade do Rio Grande, mas também em atrocidades dentro
e fora do contexto universitário, apenas para garantir sua manutenção
no poder. O estudo utilizando-se da oralidade, conseguiu uma
abordagem com subsídios dos atores que participaram do processo e
que a História institucional oficial até hoje não fez menção.
As decorrências históricas das medidas repressivas da
ditadura dentro e fora da Universidade estão presentes até hoje.

179
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Assim, o obstáculo em abordar o tema é algo presentes na vida dos


docentes expurgados. Assim, buscar no passado elementos para
compreensão do presente é uma das maiores contribuições da
História. Por fim, considera-se que o debate sobre a ditadura em Rio
Grande e os expurgos no estudo apresentados permanece aberto a
novas interpretações. Se este trabalho conseguiu colaborar neste
sentindo, terá logrado êxito em sua primordial intenção.

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182
Trabalho e Resistência: Os ferroviários riograndinos durante a
ditadura civil-militar de 1964.

Lidiane Friderichs.1

Os ferroviários brasileiros constituíram-se entre o final do


século XIX, e quase todo o século XX, em uma das principais
categorias de trabalhadores do país, devido à força política que
possuíam. Nacionalmente, os trabalhadores ferroviários são
reconhecidos por possuir uma grande força reivindicatória, contando
com um histórico de várias vitórias e conquistas na luta por direitos,
sendo uma das primeiras categorias a se organizar “em grandes
movimentos grevistas, foi também o primeiro grande núcleo de
trabalhadores assalariados em um momento da história brasileira em
que a mão-de-obra escrava ainda era preponderante” (MONTEIRO,
2000, p.31). Na década de 1960, o Rio Grande do Sul contava com
mais de 10.000 trabalhadores na Rede Ferroviária Federal (RFFSA),
sendo que, em torno de 2.000 desses, trabalhavam na cidade de Rio
Grande 2. Levando em consideração a importância dessa categoria, o
presente artigo visa discutir como a organização dos ferroviários
riograndinos foi afetada pelo golpe civil-militar de 1964, quais as
restrições impostas aos trabalhadores e quais suas possibilidades de
ação.
No período analisado neste artigo, Rio Grande era uma das
cidades mais industrializada do Estado, possuindo um movimento
operário atuante e bem organizado. Os trabalhadores riograndinos,
dentre os quais situa-se os ferroviários, estabeleceram, ao longo de sua
história, uma grande força reivindicatória, organizando-se em
diferentes associações de classe, sempre se mobilizando na busca por

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pelotas – PPGH/UFPEL. Bolsista Capes. Graduada em História-
Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. E-mail:
lidifriderichs@gmail.com.
2
Vide acervo Museu do Trem, em São Leopoldo-RS.

183
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

melhores condições de vida e trabalho. Devido a esse fato, Rio


Grande foi estigmatizada, durante muito tempo, como uma “cidade
vermelha”. Logicamente, tem-se presente que suas formas de luta nem
sempre seguiram um padrão, passando por períodos onde havia
garantias legais para os seus direitos, e por outros – de fechamento
político – nos quais os trabalhadores não os viram respeitados, nem
assegurados. Nesses momentos tensionados do cenário nacional os
governantes negaram-se a negociar com os trabalhadores e impuseram
forçosamente suas legislações. Exemplo disso foi o golpe de 1964 que
considerou sem efeito os acordos anteriormente estabelecidos.
Historiadores como Beatriz Loner e Mário San Segundo, entre
outros, abordaram em suas pesquisas o movimento operário
riograndino. A primeira autora foca seu estudo nos anos de 1888 e
1937 discutindo como se formaram e organizaram as associações
classistas das diferentes categorias de trabalhadores das cidades de
Rio Grande e Pelotas. O segundo autor aborda as manifestações
operárias dos anos de 1949, 1950 e 1952 em Rio Grande, os motivos
de suas realizações e suas consequências 3. Não se pretende aqui
aprofundar a discussão desses, nem dos anos trabalhados por eles,
busca-se apenas, traçar um panorama geral que demonstre a
continuidade da luta dos trabalhadores riograndinos por seus direitos.
De acordo com Beatriz Loner (1999) os principais
movimentos grevistas, das cidades de Rio Grande e Pelotas, se deram
entre os anos de 1917 a 1919, tendo esses anos e os posteriores
contado com intensas mobilizações operárias. Já,

Na década de 30, não surgiram tantas greves como em outras.


Cronologicamente, elas se concentraram nos anos do meio da

3
Esses autores não focam suas análises numa categoria específica. Dentre as
citadas nesses trabalhos estão: Ferroviários; Estivadores; Portuários;
Contabilistas; Comerciários; Trabalhadores da Construção Civil;
Trabalhadores nas indústrias de Carnes e Derivados; Trabalhadores na
Indústria de Peixe e Conservas; Bancários; Trabalhadores da Fiação e
Tecelagem; Trabalhadores na Indústria Metalúrgica, Mecânica e de Material
Elétrico, entre outros.

184
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

década, até a decretação do Estado Novo. Logo após a


revolução de 30, devido a um maior aumento da repressão
sobre os movimentos de trabalhadores, praticamente nenhuma
greve teve lugar. Nos anos seguintes, elas foram escassas,
devido ao impacto inicial das leis trabalhistas e sindicais.
(LONER, 1999, p. 516)

Assim, a década de 1930 é marcada por certo refreamento nas


mobilizações devido ao controle imposto aos sindicatos e aos
trabalhadores pelo governo/ditadura de Getúlio Vargas. Entretanto,
nos anos finais de década de 1940 e o início da década de 1950, a
cidade de Rio Grande contou, segundo Mário San Segundo (2009),
com a retomada dos grandes movimentos grevistas e reivindicatórios,
como foi o caso das paralisações de 1949 e 1952, e a manifestação do
1º de maio de 1950. Essas, grosso modo, lutavam por melhores
salários e contra o aumento do custo de vida, principalmente dos
gêneros alimentícios. Essas mobilizações sofreram intensa repressão
policial e condenação por parte da mídia e de alguns grupos políticos
da cidade, além disso, a violência direcionada aos manifestantes se
deu de forma brutal e resultou na morte de muitos trabalhadores. O
uso da força policial para conter as manifestações era uma prática
muito rotineira e era justificada pela defesa da cidade contra a
expansão do comunismo.

No entanto, o fato de mesmo com a repressão terem ocorrido


diversas greves e manifestações no período, alerta para outra
questão a respeito do controle social, que é a possibilidade dos
indivíduos e grupos se contraporem à dominação, pois não são
receptores passivos, que não possuem capacidade de romper
com o conformismo, mesmo que sobre coação, embora nem
sempre isso aconteça. Isso explica o fato dos operários
riograndinos, mesmo sobre coação policial e sendo ameaçados
de serem punidos como comunistas, terem ido às ruas em
vários momentos em busca de suas reivindicações (SAN
SEGUNDO, 2008, p.13).

185
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Como demonstram os autores citados, nas diferentes lutas e


contextos que analisaram, o movimento operário riograndino passou
tanto por momentos de erupção, como de refreamento, de acordo com
as possibilidades de atuação estabelecidas nos anos que abordaram.
Na década de 1960 isso se mantém presente, visto que, até a
deflagração do golpe os trabalhadores podiam se manifestar com
relativa tranquilidade, situação que se altera bruscamente a partir de
1964. Segundo um dos ferroviários riograndinos, entrevistado para
este trabalho 4, ao se referir a organização desses trabalhadores entre
os anos finais da década de 1950 e o começo da de 1960, afirma

Os cara reivindicavam mesmo e tinha muito funcionário na


época. Na época tinha aqui mil e poucas pessoas. [...] Entre
depósito, oficina, estação. [...] Teve muitas [greves]. A maior
[parte] das vezes era por salário. [...] E as vezes apoiavam
5
outras categorias, que eles nos apoiavam também .

Nesse espectro, os ferroviários riograndinos, devido ao


número expressivo de trabalhadores que possuíam e das diversas
associações6 que os representavam, constituíam-se em uma categoria
de destacada importância, visto que organizavam-se seguidamente em

4
Foram realizadas entrevistas, com alguns ferroviários riograndinos. Eles
apresentam algumas características em comum. Todos são homens e se
tornaram trabalhadores ferroviários em meados da década de 1950 e
aposentaram-se no começo da década de 1980. Na transcrição das
entrevistas, foi feita uma pequena limpeza no texto, retirando-se alguns
vícios de linguagem, mas foram mantidos os verbos como falados. Salienta-
se que, mesmo os narradores tendo permitido suas identificações, optou-se
por manter, nesse artigo, o anonimato deles.
5
Entrevista realizada pela autora em 16/12/2011, na cidade de Rio Grande,
na residência do ferroviário aposentado X.
6
A partir de 1946, a Coligação Pró-Reivindicações, congregava quase todos
os ferroviários desta cidade. No entanto, havia dentro dessa Coligação,
representantes de várias entidades existentes em nível estadual e nacional.
Por isso usa-se, nesse artigo, a denominação de associação, não as nomeando
diretamente, devido a elas serem múltiplas.

186
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

vários movimentos grevistas, para reclamar contra atrasos de


pagamento, reivindicar maiores salários, melhores condições de
trabalho, entre outros motivos, os quais visavam a ampliação de seus
direitos. Esses também tinham por prática fazer paralisações em apoio
a outras categorias, como a dos professores, bancários e dos
municipários.
De acordo com os ferroviários entrevistados, a primeira luta
que enfrentaram após sua entrada para a ferrovia (em meados da
década de 1950) foi pela sua efetivação no emprego, esta, além de
conceder estabilidade, também proporcionava a participação efetiva
dentro das associações de classe. Segundo um ferroviário
entrevistado, “nossa pauta de reivindicação, principalmente da
Coligação dos Ferroviários era [...]. Nós queria ser efetivado porque
nós vivia dia e noite na tensão [...]. E pra nós poder participar do
segmento coorporativo” 7. De acordo com o narrador, sua efetivação
no emprego ocorreu, depois de muita luta, no ano de 1954.
Outro exemplo citado, o qual permite visualizar a força dessa
categoria, foi a campanha contrária dos ferroviários gaúchos para a
não federalização da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS).
As negativas e as pressões dos trabalhadores para com o governo do
Estado do Rio Grande do Sul (na época gestado por Ildo Meneghetti,
do Partido Social Democrático, PSD), não foram suficientes para frear
a federalização, ocorrida em 1957. Assim, a VFRGS passou a integrar
a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), pela Lei nº
3. 115 / 1959. Porém, em 1961, foi assinada a “Lei de Reversão”, pela
qual “os funcionários que atuavam na VFRGS foram cedidos, na
condição de servidores estatutários do Estado do Rio Grande do Sul, à
RFFSA, mantendo conquistas funcionais auferidas em anos
anteriores” (FLÔRES, 2009, p. 282). Segundo o mesmo ferroviário
citado acima,

7
Entrevista realizada pela autora em 24/06/2011, na cidade de Rio Grande,
na residência de do ferroviário aposentado Y.

187
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A Rede queria encampar [...]. Aí, entrou essa batalha da Rede


com o Estado. O Estado querendo entregar a Viação Férrea do
Rio Grande do Sul pra Rede. Mas aí tinha muita divergência.
Nóis tava num problema, nóis dizia, nóis não podemos passar
pra Rede assim de braço cruzado, tem que migrar pra lá com
segurança. Foi aí que se deu a função do Brizola, que foi muito
precisa, muito ativa, né. Ele disse: Não, vocês se reúnam e
8
façam um estatuto. [...] Isso aí gerou num termo de reversão .

Muitos ferroviários expressaram que a ajuda de Leonel


Brizola (do Partido Trabalhista Brasileiro, PTB) foi de fundamental
importância para a aprovação do termo de reversão, demonstrando
certa dívida de gratidão para com este político. Esse sentimento se
compreende, em parte, pela garantia proporcionada por Brizola para
que os ferroviários gaúchos pudessem continuar ligados ao Estado,
fato que proporcionou a manutenção de uma série de direitos
conquistados anteriormente e que a União não dispunha. Bem como,
evidencia a capacidade de organização política desses trabalhadores
que estabeleceram um significativo campo de negociação com os
poderes constituídos.
No período posterior ao golpe de 1964, as antigas formas de
luta e reivindicação dos trabalhadores foram minimizadas ao extremo,
pois o Estado brasileiro implantou uma série de restrições que
cercearam a livre manifestação de ideias e reivindicações. Desse
modo, as formas de contestação passaram a ser reformuladas e
adaptadas a esse período, bem como repensadas as possibilidades de
luta dentro desse momento histórico. No caso dos ferroviários
riograndinos, a ditadura civil-militar exigiu uma necessária
ressignificação de suas práticas políticas e de sua ação sindical.
Assim, não se pode identificar estruturas fixas nas formas de
organização da sua classe, mas sim uma contínua formulação, ligada
ao contexto histórico e aos aspectos culturais e econômicos que
vivenciavam.

8
Idem.

188
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

A compreensão da imposição de um Estado Autoritário é


imprescindível para a análise desse momento, no qual os direitos civis
estavam cerceados e a população, sob vigilância permanente. Logo,
tendo em vista as transformações que advirão dele, não se pode
analisar os trabalhadores ferroviários de Rio Grande, e suas
associações, da mesma forma que se investiga um período
democrático. Um aparato policial que causava medo e insegurança foi
montado para tentar assegurar, por parte do Estado, que toda a ameaça
subversiva fosse afastada do território nacional. A lógica de punição
se inverteu, e era o indivíduo quem teria de provar sua inocência
frente ao Estado, e não mais este quem teria de reunir provas contra o
cidadão. Segundo Enrique Serra Padrós, instaurou-se tanto no Brasil,
como nos demais países do Cone Sul que implantaram ditaduras civil-
militares, o Terror de Estado.

Para quebrar o “inimigo”, utilizou-se a detenção sob a forma


de seqüestro, a tortura, a política do desaparecimento de
pessoas, o extermínio e os instrumentos da “guerra
psicológica”. Semeou-se o temor e a desesperança. Na medida
em que se impôs a autocensura, o Terror de Estado cumpriu
sua função pedagógica, dobrando vontades e resistências, o
que, combinado com a sensação de impunidade, gerou medo e
imobilismo (PADRÓS, 2005, p. 31).

Dessa maneira, pensar a articulação dos trabalhadores


riograndinos pós-golpe de 1964 é refletir sobre um ambiente de medo
e silêncio, no qual as possibilidades de luta estavam restritas e
intensamente vigiadas, uma vez que a forma como se implantou o
poder ditatorial foi além da violência física, pois a lógica policial e o
medo da delação tomaram conta do cotidiano da população, que via-se
obrigada a se autocensurar e era estimulada a vigiar os outros,
denunciando qualquer comportamento que pudesse ser considerado
uma ameaça à segurança nacional. Percebe-se, a expansão deste
controle para todos os setores da sociedade, que eram vigiados e
estimulados a delatar indivíduos considerados propensos à subversão.
Da mesma forma, cartilhas de como reconhecer um subversivo eram

189
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

amplamente divulgadas e explicitavam a atenção, que cada indivíduo


deveria ter, com novos vizinhos e colegas de trabalho, entre outros.
Assim, como deveriam ter cuidado, com conversas informais e
encontros festivos, que poderiam indicar, de alguma forma, o
descontentamento com o governo ou a simpatia com ideologias
estrangeiras. Nesse sentido, referindo-se a ditadura, um dos
ferroviários entrevistado afirma que o período foi,

Muito severo, barbaridade [...] Ai eles chegavam e, na época


eles demitiam, se fosse comprovado qualquer coisa nós não
tinha nem conversa. Ninguém falava mais nada, ficava todo
muito quietinho. [...] A revolução foi muito violenta.
Principalmente na época do Castelo Branco, ali eles não
9
perdoaram ninguém.

Através desse relato se pode perceber que as demissões,


afastamentos e condenações por qualquer ato que o governo e a Rede
considerassem subversivo era rapidamente punido e dificilmente
defensável. Outra questão que muito chama a atenção nessa fala é o
fato desse ferroviário considerar que a pior época da ditadura veio
com o Castelo Branco, o qual é considerado, por muitos, como um
dos mais amenos ditadores do período. A visualização da ditadura
para esse ferroviário, no entanto, é outra. Compreende-se essa
interpretação, pois foi com o primeiro governo militar que os
ferroviários riograndinos visualizaram a principal limpeza dentro dos
seus sindicatos e onde o impacto se sentiu forma muito mais forte.

Rio Grande, por conter na época do golpe civil-militar, uma


expressiva industrialização dentro do Rio Grande do Sul e por possuir
uma organização operária bem estruturada, despertava uma
significativa atenção/preocupação dos setores golpistas. Dias após o
golpe, iniciaram-se na cidade, as nacionalmente nomeadas operações
limpeza e gaiola, cujo objetivo era livrar a cidade dos agitadores

9
Entrevista realizada pela autora em 16/12/2011, na cidade de Rio Grande,
na residência do ferroviário aposentado X.

190
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

comunistas10. Essa operação limpeza invadiu os sindicatos, retirando


deles seus arquivos, prendendo seus líderes e impedindo que
continuassem funcionando, como foi o caso do sindicato dos
portuários. Muitos desses sindicatos passaram a ser controlados por
interventores, sendo proibida a realização de reuniões, greves, ou
qualquer contestação que viesse ferir a “honra da revolução”. A
associação dos ferroviários continuou aberta e comandada pelos
trabalhadores, mas neste momento por aqueles que não eram liderança
nos anos anteriores. No entanto, a Rede Ferroviária Federal no Rio
Grande do Sul passou a ser dirigida por interventores militares 11.
Sobre as intervenções nos meios sindicatos, Kátia Rodrigues explica
que os governos militares efetivaram

Um vendaval de intervenções, prisões, ameaças, silêncio


imposto pelo terror. Entre 1964 e 1970, o Estado efetuou 536
intervenções sindicais, sendo 483 em sindicatos, 49 em
federações e 4 em confederações. Das 536 intervenções, 433
foram efetuadas entre 1964 e 1965 (RODRIGUES, 1995, p. 8).

Percebe-se, nesse momento, uma intensa


repressão/intervenção nas organizações de classe de todo o país, as
quais foram instituídas na tentativa de desestabilizar os possíveis
apoiadores do governo deposto e também para intimidar as
movimentações contestatórias dos trabalhadores. Além dos sindicatos,
outras instituições foram ocupadas por interventores, políticos foram
cassados, e pessoas ligadas ao governo de Jango e/ou consideradas
subversivas foram expurgadas da sociedade. Muitos dos cidadãos
riograndinos foram demitidos e ficaram impedidos de se envolver em
qualquer agremiação política, bem como outros, que considerados
agitadores e perigosos, foram presos e sofreram violências físicas e
psicológicas. Alguns desses nomes são bastante conhecidos na cidade,
pois uma primeira lista de presos políticos, encarcerados no navio

10
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 07/04/1964, p. 1.
11
Nos primeiros anos pós-golpe ela foi dirigida pelo general Antonio Adolfo
Manta.

191
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Canopus12, foi divulgada pelo Jornal Rio Grande13. Nessa lista,


encontra-se o nome de vários líderes sindicais, incluindo alguns
trabalhadores ferroviários. Sobre as prisões efetuadas em Rio Grande
Edgar Gandra afirma que

A repressão aos inimigos da denominada revolução não foi


mais branda que em outras localidades. Em Rio Grande, várias
pessoas foram presas, entre elas os principais dirigentes do
Sindicato dos Trabalhadores nos Serviços Portuários de Rio
Grande. O município só perdia em número de encarcerados
para a capital gaúcha (GANDRA, 1999, p. 90).

Assim, durante a ditadura civil-militar de 1964, Rio Grande


passou a ser considerada área de Segurança Nacional. Isso significa
que várias instituições municipais receberam interventores nomeados
pelo governo civil-militar, entre elas, a prefeitura, a Alfândega, o
Departamento Estadual de Portos, Rio e Canais (DEPREC) e a Rede
Ferroviária. A classificação de Rio Grande como área de Segurança
Nacional não estava associada somente ao porto e a sua posição
estratégica, justificava-se também, por ser uma cidade basicamente
operária e um possível reduto contrarrevolucionário.
Após a deflagração do golpe, os ferroviários, assim como os
portuários e os estivadores, entre outras categorias, fizeram uma greve
geral na cidade, no dia 02 de abril de 1964, posicionando-se contra a
intervenção militar, em apoio ao governo legalmente eleito, de João
Goulart (PTB), bem como, a base governista da prefeitura municipal,
ligada ao prefeito Farydo Salomão, deposto dias após o golpe. Nas
palavras de um ferroviário,

[...] Nós já tava em greve ali, tava em greve esperando uma


decisão, que o João Goulart fosse tomá, uma decisão; uma

12
O Canopus era um navio hidroviário e estava realizando pesquisas sobre a
costa brasileira, no entanto, a partir da deflagração do golpe ele foi
utilizado como um navio-prisão.
13
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 25/04/1964, p.12.

192
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

decisão e que fosse haver uma cobertura, que fosse haver um


apoio, do Estado ou do Exército. E a gente esperava a qualquer
14
momento que fosse haver um apoio!

Essa greve impediu a circulação do Jornal Rio Grande,


principal veículo de informação do município, e um dos órgãos
apoiadores e sustentadores da ditadura em Rio Grande. A nota
divulgada pelo jornal no dia seguinte à sua paralisação, nomeada
Violência Sindical, contém a seguinte informação:

O jornal Rio Grande não circulou no dia de ontem. E isto


porque ainda vivíamos no regime de anarquia e estupidez.
Fomos vítimas de uma violência e contra ela protestamos com
vigor mas, tranquilos, pois nutrimos a confiança de que o
Brasil, nunca mais ficará na dependência de homens
complexados, de agentes da anarquia e da vadiagem
oficializada. [...] Procurando sustentar o dispositivo brizolista,
o espúrio Comando Geral de Greve, em Rio Grande, ontem
pela manhã concitou os trabalhadores a deixarem os locais de
trabalho em manifestação de solidariedade aquele que havia
sido deposto pelas Forças Armadas. (Jornal Rio Grande,
03/04/1964, p. 1)

Percebe-se, a partir dessa nota, o claro posicionamento do


jornal em apoio ao golpe, condenando as greves dos trabalhadores
riograndinos e o seu amparo ao governo de João Goulart15. Além do
Jornal Rio Grande também existiam na cidade muitos outros setores
conservadores que defenderam o golpe e saíram as ruas demonstrando

14
Entrevista realizada pela autora e por Edgar Gandra em 20/06/2011, na
cidade de Rio Grande, na residência do ferroviário aposentado Y.
15
É importante destacar que nem todos os trabalhadores foram contrários ao
golpe, pois assim como qualquer coletivo humano, eles tinham diferenças e
divergências políticas, não correspondendo a um todo coeso. Nesse artigo
usa-se uma generalização, devido ao fato de que, a maioria dos ferroviários
que a autora teve contato mostraram-se desfavoráveis ao golpe e perceberam
o período da ditadura como um grande retrocesso.

193
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

apoio aos militares e sua intervenção no país, fato que se percebe pela
realização da Marcha da Família com Deus pela Liberdade16 e de uma
missa pelo reconhecimento e agradecimento as Forças Armadas por
terem livrado o país da ameaça comunista17. A única nota contrária ao
golpe, publicada no jornal, foi um manifesto no qual os diretórios
acadêmicos das escolas superiores de Rio Grande, dos cursos das
Faculdades de Engenharia Industrial, Ciências Políticas e
Econômicas, Direito e Filosofia se declaram defensores da
Constituição e do processo democrático18.
Os trabalhadores, depois de verem frustradas suas
expectativas de um movimento de resistência vindo do presidente
João Goulart, sem alternativa, voltaram a seu trabalho no dia seguinte
a greve. O relato a seguir explica como se deram os impactos do
governo civil-militar nas associações ferroviárias de Rio Grande.

Na época né, quando a gente conseguiu a lei, quando a Rede


nos aceitou e foi criado o termo de reversão, ai logo em
seguida veio o Golpe né, ai, o golpe foi o que nos achatou.
Que nóis tava como queria, nóis ia deplora, nóis ia sair pra
batalha, pra usufruir do que a gente tinha direito; foi quando
deu o golpe militar. Ai com o golpe ele nos [inaudível], porque
não reconheceram o termo de reversão, eles não reconheceram.
Muito pelo contrario até tiraram a lei do termo de reversão.
Que era a lei que nos dava paridade de salário com o sargento
do exército. Nosso salário era pra ser equiparado a um sargento
do exército. Foi o primeiro que eles cortaram, eles cortaram;
foi quando Castelo Branco chegou né, e houve o cancelamento
do aumento do João Goulart de 110%. Foi ai, contrário dos
ferroviários todinhos, foi ai a gota d‟água, que eles deram o
golpe, quando eles deram o golpe. Dos 110, ai dos 110% eles
pegaram e deram 80% pra os chefes de exército e para nóis
deram 20%. E ai, foi quando começou aquela briga pra
reconhecer; fomos pro congresso, constituinte, pra nos darem

16
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 23/04/1964, p. 8 e 25/04/1964, p. 8.
17
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 29/04/1964.
18
Jornal Rio Grande: Rio Grande – RS; 03/04/1964, p. 1.

194
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

essa lei, e foi o que nos trouxe o resultado, que nóis fiquemo de
60, 69, mais ou menos, assim 69, 68 até 70, fiquemo na
pindaíba, na pindaíba mesmo. Era salário mínimo, não tinha.

De acordo com a fala do narrador, o governo civil-militar não


reconheceu o direito anteriormente conquistado. O decreto nº 5/1966,
aboliu todos os acordos anteriormente estabelecidos pelo governo de
João Goulart, ficando os ferroviários sem receber aumento salarial
acima da inflação por aproximadamente dez anos. Segundo Fabrício
Moura, o aumento salarial de 100% concedido aos ferroviários, o
qual, através da Lei da Paridade, equiparava o salário dos funcionários
civis e militares, havia proporcionado uma melhora considerável para
a qualidade de vida desses trabalhadores (2007, p. 80-81)19. No
entanto, esse reajuste salarial foi retirado pelo governo golpista.
Reiterando essa posição outro ferroviário afirma que

Quando rebentou a revolução [...]. Que era em janeiro que eles


davam o aumento. Pros militares e pros outros eles deram
110% e pra nós eles deram 30%. Porque os militares na época
[...] eles tinham, horror de ferroviário, por causa que os
ferroviários fez muita greve. Tudo que eles adquiriram foi
20
[por causa disso].

Além de reduzir o valor dos salários, o governo manipulava


os índices de inflação para não ser obrigado a conceder aumento,
diminuindo as condições de sobrevivência dos trabalhadores, que
tiveram que encontrar alternativas para se manter, “aquele salário que
a gente ganhava, não cobre as despesas da gente. Então, tive que

19
Salienta-se que a Lei da Paridade foi uma luta de várias entidades sindicais
brasileiras. Além dos ferroviários, também participaram os marítimos,
portuários e estivadores.
20
Entrevista realizada pela autora em 16/12/2011, na cidade de Rio Grande,
na residência do ferroviário aposentado X.

195
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

trabalhar fora para poder cobrir isso”21. O mesmo ferroviário afirma


que “aquela época foi um desastre. As pessoas saindo, o pessoal
saindo da Rede”. Com condições de trabalho cada vez mais abusivas e
salários miseráveis, muitos ferroviários consideraram mais válido
encontrar outro emprego ou trabalhar autonomamente do que manter
um vínculo empregatício, o qual mal dava condições para sua
subsistência. Sobre a diminuição dos salários no pós-64 Maria Helena
Moreira Alves, afirma que,

[...] o salário mínimo comprava em 1964 apenas 42% do que


podia comprar em 1959. Verificou-se ligeiro aumento em 1965
e 1966, e nova queda com a finalização do pacote de controle
salarial. A partir de 1967 o salário mínimo real continuou
caindo até atingir, em 1976, 31% de seu valor em 1959. Cabe
observar que a queda do poder aquisitivo, em 1976, 31% de
seu valor em 1959. Cabe observar que a queda do poder
aquisitivo dos salários ocorreu apesar de acentuada queda da
taxa de inflação, que baixou de 87,8% em 1964 para 20,3% em
1969. Desse modo, a diminuição do valor real dos salários não
pode der considerada efeito da inflação; foi, antes, resultado da
política de controle salarial do Estado. (ALVES, 2005, p. 139-
140)

Dessa forma, os ferroviários riograndinos reafirmam o que


muitos historiadores, como Maria Helena Moreira Alves (2005) e
Marcelo Badaró Mattos (1998), já discutiram sobre a temática, no que
se refere às precárias condições que os trabalhadores foram obrigados
a enfrentar, pois, além de verem reduzidas suas condições básicas de
subsistência, estavam presos a Atos Institucionais que impediam as
formas habituais de organização e resistência, como greves, reuniões e
pressões dos sindicatos junto à opinião pública e a mídia. Os direitos
trabalhistas foram constantemente reduzidos pelas leis de exceção,
como as de 1965 e pela nova Constituição de 1967.

21
Entrevista realizada pela autora em 24/06/2011, na cidade de Rio Grande,
na residência do ferroviário aposentado Y.

196
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Essas séries de medidas restritivas dos direitos trabalhistas22,


juntamente com um estado autoritário e repressor das manifestações e
dos protestos contrários ao governo golpista e as suas ações,
provocaram certa desmobilização da classe trabalhadora, e uma
tentativa, por parte do governo de apagar por meio de ações violentas
sua cultura reivindicatória. No entanto, de acordo com Edward P.
Thompson (2001), quando a classe trabalhadora é impedida de se
organizar da forma com que estava acostumada, cria outras
maneirares de se expressar e reivindicar, ou seja, produz outra cultura
contestatória. Assim, entende-se que não houve uma simples
conformação e um abandono das lutas, mas sim uma readequação ao
novo momento histórico, que permitia pouca mobilidade para que
houvesse um confronto mais objetivo e direto com o poder instituído.
Acredita-se, reportando a Thompson, que a classe não é uma estrutura
fechada, mas é refeita de acordo com as experiências vivenciadas.

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de


experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulam a identidade de seus interesses entre si, e com outros
homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos
seus (THOMPSON, 2011, p. 10)

22
Dentre as medidas que reduziram e excluíram direitos trabalhistas
adquiridos nos anos anteriores ao golpe, pode-se citar: a Legislação que
diminuía o poder dos sindicatos; a lei do arrocho salarial; a proibição de
greves; o controle dos índices do reajuste salarial (o governo fixava o
aumento máximo que os salários podiam ter, mas não o mínimo); o fim da
estabilidade aos 10 anos de emprego, instituído pelo Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS, de 1966), o qual substituiu as normas então
existentes de estabilidade no emprego. O novo programa não reconhecia a
estabilidade, reduzindo as indenizações por demissões e aumentando a
rotatividade da mão-de-obra e o desmonte do sistema previdenciário,
substituído pelo INPs. Anteriormente havia o IAPs (Instituto de
Aposentadorias e Pensões), criado no governo de Vargas, esse regulava o
sistema de previdência em cada ramo profissional e possuía a participação
dos trabalhadores nas decisões.

197
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Assim, essa troca de experiências políticas e culturais vai


definir a classe trabalhadora com objetivos, interesses e pensamentos
próprios, que não são estagnados, mas sim reformulados de acordo
com o período histórico vivenciado e com as experiências partilhadas.
A nova realidade em tela obrigou os ferroviários riograndinos a
reformular muitas de suas práticas, como não poderem mais se reunir
para discutir assuntos do sindicato sem antes conseguir permissão. Os
ferroviários afirmam que antes de qualquer reunião era preciso ir até a
sede da Seção de Ordem Política e Social do Rio Grande (SOPS/RG)
e tirar uma licença, “[...] a gente ia no DOPS tirar licença [...]. Ai o
Dops dava licença, mas [...] Ai ficava 5 ou 6 caras na porta da
diretoria vigiando”. Em outra passagem afirmam que sempre havia
algum militar vigiando ou infiltrado nas reuniões. “Nóis sempre tava
vigiado. A vigia deles era constante. A gente sabia né, mas vai fazer o
que, senão a gente nunca ia fazer nada”23. Essa ação permite refletir
que os trabalhadores enfrentavam os poderes constituídos jogando
com as regras dos mesmos, o que se pode ver na leitura que o
ferroviário acima edifica. Sendo atentos aos limites de suas
possibilidades reivindicatórias e formulando estratégias de
continuidade, como ceder a necessidade de se submeter a regras do
DOPS.
Através das entrevistas com os ferroviários, nota-se que as
reuniões do sindicato poderiam ocorrer, no entanto deveriam possuir
autorização prévia,

Isso ai em 74, 73, ai a gente pedia em termo de ofício. Nóis


tinha a associação, pedia licença para fazer uma reunião de
sindicato, assembleia. Às vezes eles ficavam aqui no portão,
paravam ali; perguntavam o que a gente ia reivindicar, aí
24
riscavam o que não queriam.

23
Entrevista realizada pela autora em 24/06/2011, na cidade de Rio Grande,
na residência do ferroviário aposentado Y.
24
Idem.

198
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Devido ao fato de existir uma vigilância constante pode-se


supor que as pautas das reuniões não deveriam conter discussões de
caráter polêmico, como o andamento político do país. Quando
questionados sobre o acontecimento de reuniões ilegais, os
ferroviários fazem afirmações contraditórias, pois em alguns
momentos afirmam que ocorriam estes encontros não aprovados pelo
DOPS e, em outros, que faziam tudo dentro da lei. Segundo um deles
era “muito perigoso subverter a ordem, e ainda dava confusão”.
Obviamente, na tentativa de se remontar o cotidiano trabalhista, lida-
se inevitavelmente com contradições:

[...] não resolvidas, silêncios, esquecimentos e temas


conflitantes. (...). O testemunho oral é mais desorganizado,
mais paradoxal, mais carregado de contradições e, talvez, por
causa disso, mais fiel à complexidade das vidas da classe
trabalhadora e da memória desta (JAMES, 2004, p. 311).

Como expressa James, não se deve deter na procura de relatos


coesos, como se a vida fosse uma linha reta em que todas as escolhas
tivessem um porquê predefinido. A vida cotidiana do local de trabalho
revela imprecisões, conflitos e disputas, não tornando as atuações
sempre coerentes e únicas. Entretanto revelando as complexidades de
um ambiente ditatorial, que tentou desmantelar as formas de cultura e
organização traçadas pelos trabalhadores.
Consultando os arquivos do SOPS/RG percebeu-se uma vigia
permanente sob os sindicatos e a existência de grande preocupação
das autoridades golpistas em averiguar as denúncias sobre possíveis
levantes contrarrevolucionários e possíveis reuniões ilegais em Rio
Grande. Exemplo disso é um documento de 13 de janeiro de 1975.
Com o assunto geral denominado “atuação dentro dos sindicatos”,
este afirma que “a divisão da Polícia Federal em Rio Grande/RS
permanece vigilante quanto aos movimentos reivindicatórios dos
sindicatos e seus associados, nesta circunscrição”, mas que “até a
presente data, não foi constatado infiltração no meio sindical de

199
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

elementos comunistas, nem a existência de orientação de cunho


subversivo” 25.
O teor das preocupações com os supostos movimentos
subversivos varia muito de ano pra ano e de documento pra
documento. De acordo com Leandro da Costa, “O serviço de
inteligência desenvolvido pelos agentes da SOPS também forneceu
subsídios para que a polícia política atuasse a fim de eliminar focos de
oposição ao regime militar e a administração municipal” (2011,
p.176). Reiterando essa posição, um dos ferroviários entrevistados
afirma que os membros do SOPS “eles faziam o controle, eles
vinham, o exército vinha até o DOPS [...] Vinha o DOPS fazer o
levantamento e entrevistar o cara” 26. O mesmo declara ter visto vários
de seus colegas levados para depor e esclarecer denúncias de que
seriam comunistas ou estariam difamando o regime político. Nesse
sentido, pode-se observar que as delações também eram práticas
comuns dentro desse espectro, na maioria das vezes, elas vinham sem
muita fundamentação e, em outras, faziam parte de vinganças
pessoais. Como exemplificou um dos ferroviários entrevistados, elas
eram normais dentro do local de trabalho. “Tinha muitos traidores
também. Tinha - Fulado de tal, é comunista. [...] Tinha muita
denúncia [...]. Tinha ferroviário denunciando os outros” 27.
Outro exemplo disso, são os Inquéritos Policiais Militares
(IPM‟s), esses mostram como vizinhos ou conhecidos davam
constantemente depoimentos sobre possíveis suspeitos de
envolvimento com ideologias políticas de esquerda. Os IPM‟s são
processos da Casa Civil do Governo do Estado do RS efetuados pela
Polícia Militar a funcionários públicos, estaduais ou municipais. Esses
Inquéritos estão separados por cidade e baseiam suas acusações num

25
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretária de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Rio Grande. SOPS/RG. Rio Grande, 13/01/1975.
26
Entrevista realizada pela autora em 16/12/2011, em Rio Grande, na
residência do ferroviário aposentado X.
27
Idem.

200
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

possível passado militante dos indiciados, acusados de serem


comunistas, subversivos e/ou brizolistas, confirmado ou não por
colegas de trabalho, amigos e/ou familiares. Muitas dessas acusações
estão ligadas a ferroviários de diversas cidade e suas vinculações
políticas.

Os arquivos do SOPS/RG também demonstram a colocação


de muitas pessoas de passado militante ou suspeitas de subversão sob
investigação, como demonstrado em um documento de 12/09/1976
que busca averiguar informações de um ferroviário riograndino, por
este ter sido presidente da Coligação dos Ferroviários e ter se
declarado simpatizante do Partido Comunista em 194428. A busca
sobre o passado das pessoas era prática corriqueira para a comunidade
de informação do governo civil-militar e entre elas estava o
SOPS/RG. Este era subordinado ao Departamento de Ordem Política e
Social do Rio Grande do Sul (DOPS), que estava ligado a nível
nacional, ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Assim, o
governo civil-militar se constituía como um polvo, o qual mantinha
seus tentáculos sobre todos os recantos do país, tentando controlar
todos os possíveis focos de oposição.
Historiadores como Kátia Rodrigues (1999), Marcelo B.
Mattos (1998) e Antonio Luigi Negro (2001), cujas pesquisas são
voltadas para a organização dos trabalhadores pós-golpe de 1964, nos
estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, salientam que as estratégias
de organização, adotadas pelos sindicatos, a partir dos anos 1970,
seguiram uma orientação assistencialista, justificada pela necessidade,
de atrair os trabalhadores para dentro deles. É nesse sentido que o
sindicato, como órgão assistencialista, passou a ter respaldo com os
trabalhadores, mudando em parte sua tática de ação, de luta
combativa, para o asseguramento de direitos, os quais deveriam ser
garantidos pelo Estado, passando a oferecer atendimentos médicos,

28
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretária de Segurança
Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.
Delegacia Regional de Rio Grande. SOPS/RG. Rio Grande, 12/09/1976.

201
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

odontológicos e jurídicos, assim como descontos em farmácias e em


gêneros alimentícios.
Nessa ótica, o jornal do Círculo Operário Ferroviário29,
indica o teor assistencialista que as organizações ferroviárias do Rio
Grande do Sul estavam executando. Uma série de benefícios, como
assistência médica e odontológica, cursos de formação profissional
para a família ferroviária e seguros de vida, são demonstrados como o
principal objetivo desses núcleos sindicais. Essa prática
assistencialista parece, de acordo com o jornal do Círculo Operário
Ferroviário, ter sido largamente utilizada pela maioria dos sindicatos
dos ferroviários brasileiros no pós-64. A partir das entrevistas e das
atas sindicais consultadas, nota-se que essa norma também se manteve
no sindicato dos ferroviários de Rio Grande.
Nessa perspectiva, considera-se que não existe uma postura
definida/correta a ser seguida, principalmente, no que diz respeito a
um período autoritário. Entretanto, significativa parcela da
historiografia acusa os trabalhadores de inação. Autores como Jacob
Gorender (1987), Luiz Alberto Moniz Bandeira (2001), Caio Navarro
de Toledo (1991), entre outros, consideraram que os trabalhadores
brasileiros não se posicionaram em um enfrentamento de classe contra
a ditadura civil-militar e os acusam de ter abandonado seu “dever
histórico”, ao não defender um presidente legalmente eleito e que os
representava. Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, “(...) os
trabalhadores, sem um programa de reivindicações políticas próprias,
não se bateram e se deixaram violentar, sem a menor resistência”
(2001, p. 180).
Por essa perspectiva, o sucesso do golpe é entendido como
consequência da falta de ação da esquerda, que estaria despreparada e
desarticulada para uma possível resistência. Gorender e Moniz
Bandeira endossam essa posição, ao afirmar que os trabalhadores não
exerceram oposição ao golpe, deixando-se vencer sem efetuar grande
objeção a ele. Diferentemente dessa postura, entende-se os

29
Arquivo Museu do Trem. Jornal do Círculo Ferroviário. Rio Grande do
Sul, 1972.

202
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

trabalhadores, dentro do contexto tumultuado e restritivo da ditadura


de 1964, como indivíduos que fizeram o possível para manter atuantes
e abertas suas entidades de classe. Contudo, esses indivíduos também
temiam a repressão, tinham um emprego para zelar e uma família para
sustentar, precisando preocupar-se, além da militância, com pessoas
que dependiam deles. Muitas vezes busca-se, nos trabalhos que
abordam o movimento operário, por “heróis” que abdicaram de tudo
em prol da classe ou que sempre tiveram uma atitude contestadora
frente ao poder, no entanto, novamente reportando a Thompson, tem-
se presente que “não se pode passar a vida inteira protestando; é
necessário dissimular e lidar com o status quo” (2001, p. 262).
Assim, apesar de toda a tentativa de desmonte do movimento
operário sindical brasileiro, Marcelo Mattos destaca que:

[...] poderia prevalecer a imagem de que este período foi


marcado apenas pela progressiva conformação das entidades
sindicais à ditadura militar. Contudo, não é este o caso. As
intervenções de 64 não seriam suficientes para apagar por
completo a memória das lutas dos anos anteriores ao golpe.
Greves ainda iriam surgir e, tão logo os governos militares
tentaram promover uma transição de diretorias interventoras
para dirigentes eleitos livremente, não tardariam a chegar aos
sindicatos lideranças dispostas a resistir à ditadura (MATTOS,
1998, p. 137).

Como bem observa o autor, não pode prevalecer a imagem de


trabalhadores conformados e sem oposição ao golpe. Pois, as formas
de resistência, eram muito difusas e variaram de acordo com as
possibilidades apresentadas a cada sindicato. Em Rio Grande,
percebeu-se que os ferroviários mantiveram uma posição ambivalente.
Por um lado não infringindo as leis e evitando ações que pudessem ser
entendidas como agressivas e revertidas em ações violentas, e por
outro lado tentando manter vivas e atuantes as associações, buscando
preservar alguns direitos, assim como efetuando formas de
reivindicação que se encontravam em um limiar bem complexo entre
oposição e autoproteção. Uma questão final a ser exposta é que se

203
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

entende esse tipo de atuação como uma forma de luta, em um cenário


de adversidades que estavam vivenciando esses trabalhadores, não
podendo tecer simples comparações com o pré-64 onde o contexto é
diferenciado.

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legitimação do regime militar da década de 1970. In: Anais da Jornada
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205
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206
“Golbery e a Cidade Surreal”: Reflexões de uma luta sem fim.

Francisco Cougo Junior.1

O sol tímido e a temperatura nada convidativa de apenas sete


graus daquele domingo, 21 de agosto de 2011, não inibiram a
presença das duas dezenas de autoridades que prestigiaram o
lançamento da pedra fundamental do monumento em homenagem ao
general Golbery do Couto e Silva, em Rio Grande – extremo Sul do
Brasil. Quase ninguém sabia da cerimônia liderada pelo prefeito da
cidade, Fábio de Oliveira Branco, e pelo major Aldenir de Andrade,
representante do 6º Grupo de Artilharia de Campanha do Exército
(GAC). Presentes na Praça Tamandaré – a maior do município –
apenas alguns curiosos e gente ligada ao poder, dentre eles os então
secretários de Governo, José Claudino de Oliveira Saraiva (o Charles
Saraiva) e da Educação, Claudiomar Nunes, o oficial de gabinete da
prefeitura, Edes Cunha, e o jornalista Willy César.
A imprensa registrou que a cerimônia foi curta e simples. Edes
Cunha, ancião que fora vereador pela Aliança Renovadora Nacional
(ARENA) durante a última ditadura, louvou o tributo a Golbery,
ressaltando “a importância da homenagem ao ilustre rio-grandino”2. Já
João Lages, representante da Academia de História Militar, discursou
sobre a vida do homenageado. Em seguida, o jovem prefeito Fábio
Branco declarou ser “uma honra para o Município fazer esta
homenagem a um rio-grandino que muitos serviços prestou à nossa

1
Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG..
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS. Arquivista Sem Fronteiras/Brasil, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Email: chicocougo@gmail.com
2
“Lançada a pedra fundamental ao monumento do Gal. Golbery do Couto e
Silva”, Prefeitura Municipal do Rio Grande, 22-08-2011
(http://www.riogrande.rs.gov.br/pagina/index.php/noticias/detalhes+7420
a,,lancada-a-pedra-fundamental-do-monumento-do-gal.-golbery-do-couto-e-
silva.html acessado em 22-04-2012, 15h02)

207
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

terra”3. Minutos depois, o chefe da administração municipal convidou


o major Andrade para o ato de inauguração das obras do monumento.
Foi então que o pequeno buraco cavado em um dos nichos da Praça
Tamandaré recebeu a cápsula de plástico contendo um exemplar do
jornal do dia, uma cópia da lei que instituíra o preito e uma biografia
do homenageado. A foto de Fernando Miki, publicada no sítio
eletrônico da prefeitura, no dia seguinte, mostra prefeito e militar
sorridentes, segurando o cilindro de plástico que seria enterrado
segundos depois.
Dois dias antes do episódio que desencadearia uma das maiores
polêmicas da política rio-grandina na última década, o diário Agora –
o único da cidade, fundado em 1975, por um empresário local –
lançou uma reportagem de 1.762 palavras, duas páginas inteiras,
intitulada “Centenário de Golbery”. Assinada por Willy César, a
matéria propôs uma biografia do general que seria homenageado no
domingo seguinte. Nela, sem citar suas fontes, César aponta Couto e
Silva como um prodígio de inteligência, estudante dedicado, homem
de preocupações nobres – sendo uma delas o meio-ambiente –,
“autêntico” e decidido a defender suas polêmicas “idéias
abertamente”. Ao citar o envolvimento do general com a ditadura
civil-militar que governou o Brasil com mãos de ferro por 21 anos, o
jornalista usa a terminologia “movimento militar-político” e ressalta:
antes de morrer, Golbery teve o “cuidado de se deixar julgar pela
história ao entregar ao jornalista Elio Gaspari todo seu acervo”4.
O último parágrafo do longo texto – que num primeiro
momento foi publicado apenas na Internet – anuncia a homenagem
promovida pela Prefeitura Municipal.
No dia seguinte à matéria de Willy César, o site ClicRBS
reproduziu uma nota de imprensa da própria Prefeitura, anunciando a
inauguração da pedra fundamental para o penúltimo domingo daquele

3
Idem.
4
“Centenário de Golbery”, Agora, 19-08-2011
(http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/de
talhe.php?e=5&n=16271 acessado em 22-04-2012, 15h06).

208
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

mês. Mais uma vez, o termo “movimento político-militar” foi repetido


para referir-se ao regime repressor. Enquanto isso, naquele mesmo 20
de agosto, chegava às bancas da cidade a edição 10.013 de Agora. Na
segunda página do diário, um editorial assinado por Moacir Rodrigues
teve o prazer de proclamar que a homenagem a Golbery em Rio
Grande era o pagamento de uma velha “dívida de gratidão” da cidade.
Antes de elencar uma duvidosa lista das supostas benfeitorias do
general papareia, o editor ressaltou que “no período da ditadura,
[Couto e Silva] nunca esqueceu o seu torrão natal, constituindo-se em
importante elo de influência para que a Noiva do Mar chegasse ao
estágio de desenvolvimento que hoje estamos vivendo”5.
Mas, afinal, quem foi Golbery do Couto e Silva? Porque
determinados setores da política riograndina sentiram a necessidade
de homenageá-lo? E como esta aparentemente simplória iniciativa nos
ajuda a perceber os meandros das políticas de memória/desmemoria
ao redor da história da última ditadura brasileira em Rio Grande?
Apesar de viver à sombra de quase todos os generais ditadores
que presidiram o Brasil entre 1964 e 1985, Golbery do Couto e Silva é
dono de uma biografia relativamente conhecida. Nascido em 1911, em
Rio Grande, o militar já foi descrito diversas vezes. Em quase todas
elas, ressaltam-se sua inteligência, seu espírito ardil e sua
impressionante capacidade de manipular o poder. Estudiosa do
universo teórico elaborado pelo general em suas oito obras de
geopolítica, a socióloga Vânia Noeli Ferreira de Assunção assim
definiu Golbery:

Interlocutor respeitado por líderes como D. Paulo Arns, Júlio


de Mesquita Neto e Ulysses Guimarães. Odiado pela linha-
dura e radicalmente anticomunista e antidemocrático.
Nacionalista e defensor da industrialização subordinada ao
estrangeiro. Pensador autodidata, eclético, de estilo
rocambolesco e árido, que não dispensava consultas a pais-de-
santo. Em uma palavra: controvertido. Este é o perfil de

5
“Dívida de gratidão”, Agora, 20/21-08-2011.

209
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Golbery do Couto e Silva, homem de poder, mas que preferia


os subterrâneos aos holofotes (ASSUNÇÃO, 2007).

Foi justamente nos subterrâneos descritos por Assunção que


Golbery do Couto e Silva fez circular sua verve mais nefasta, a de
conspirador. Sobre isso, o jornalista Luiz Claudio Cunha definiu
magistralmente a personalidade do general: “Golbery tinha um
especial fascínio pela manipulação das pessoas certas para fazer coisas
erradas de uma forma inteligente”6. Foi assim, depois de estudar
inteligência nos Estados Unidos e de servir à Força Expedicionária
Brasileira na Segunda Guerra Mundial, que o militar deu início ao seu
longo legado de textos bombásticos, tentativas de golpe, elaborações
de teorias mirabolantes e conjurações. Uma breve cronologia de suas
atividades mostra bem o papel de Couto e Silva na política brasileira
da segunda metade do século XX: em 1954, ele redigiu um manifesto
assinado por 82 coronéis e tenente-coronéis contra o aumento de
100% no salário mínimo, derrubando o então ministro do Trabalho,
João Goulart; no ano seguinte, foi um dos principais articuladores da
tentativa de golpe para impedir a posse do presidente eleito, Juscelino
Kubitschek, feito que lhe custou oito dias de detenção; resgatado pelo
governo Jânio Quadros, em 1961 redigiu com outros dois militares a
proclamação que tentou impedir a posse de Jango, movimento que
fracassou graças à heróica Campanha da Legalidade; derrotado,
inventou a fórmula parlamentar para esvaziar o poder do presidente e,
nos três anos subseqüentes, tramou dia e noite até derrubar o governo
democraticamente eleito e encabeçado pelo PTB, feito consumado
pelo Golpe de 1964.
Entre a derrota na Legalidade e o golpe que iniciou a ditadura
civil-militar no Brasil, Golbery trabalhou assiduamente em uma de
suas maiores obras: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES),
ligado ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática e ao Movimento

6
“Benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil”, Observatório da Imprensa,
05-09-2011 (http://www
.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/-benfeitor-em-rio-grande-
malfeitor-no-brasil acessado em 22-04-2012, 15h17)

210
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Anticomunista. Travestido de centro intelectual, o IPES era nada


menos que o embrião do futuro Serviço Nacional de Informações
(SNI). Dedicado à causa golpista, o instituto chefiado por Golbery
contava com pesado financiamento de empresários preocupados com
uma suposta guinada à esquerda do governo João Goulart.7 Além de
produzir vasto material de propaganda acusando Jango de levar o país
em direção ao comunismo, a organização atuava clandestinamente,
vasculhando a vida de seus potenciais inimigos. Afiliado da norte-
americana Central Intelligence Agency (CIA), o IPES chegou a
grampear três mil telefones só no Rio de Janeiro. Depois do Golpe, o
know-how e a estrutura deste filhote de monstro foram transferidos
para o governo, através do SNI, do qual Golbery foi o primeiro
ministro-chefe (FIGUEIREDO, 2005).
A partir de então, o “satânico Dr. Go” – como foi descrito por
Vânia Assunção – nunca mais se afastou do poder. Diferente da
imagem que se tentou vender em Rio Grande recentemente, Golbery
fez parte tanto dos governos militares tidos como “moderados”,
quanto dos de “linha dura”. Em relação ao primeiro grupo, onde suas
idéias encontraram maior ressonância, ocupou postos-chave da maior
grandeza. No governo Castelo Branco, coordenou o SNI; nas gestões
de Geisel e Figueiredo, chefiou a Casa Civil. Já durante os violentos
anos de Costa e Silva e Médici, o general investiu-se do principal
cargo no Tribunal de Contas da União. Em resumo, durante os 21
anos de ditadura, Couto e Silva esteve sempre ligado – diretamente ou
não – ao mais alto escalão das cúpulas militares no poder.
Poderoso e bem articulado, o general soube aproveitar o espaço
que ocupava. A propósito, vem daí a idéia – amplamente defendida
pelos principais setores políticos rio-grandinos – de que o general foi
um “benfeitor” em sua cidade natal. Ao justificarem a homenagem ao
criador do SNI, vereadores e prefeito de Rio Grande foram pródigos
em enumerar as realizações do ex-ministro em sua cidade de origem.
Segundo eles, Couto e Silva teria utilizado seu poder de influência – o

7
Para maiores informações, consultar: DREIFUSS, René Armand. 1964: a
conquista do Estado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981.

211
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

que em termos claros pode ser traduzido por puro e simples


clientelismo – para transferir o comando do 5º Distrito Naval de
Florianópolis para Rio Grande; para criar o Terminal de Trigo e Soja
(TTS); para erguer um ginásio de esportes e asfaltar ruas; e para
construir o canal adutor do rio São Gonçalo, privando a cidade dos
ameaçadores racionamentos de água.
Ninguém apresentou provas das supostas benfeitorias de
Golbery, mas pelo menos uma destas obras está registrada em uma
recente pesquisa do historiador Leandro da Costa. Segundo o
pesquisador, em meados dos anos 70, o projeto para captar água no
São Gonçalo tramitava com resistências na Câmara dos Vereadores de
Rio Grande. Na votação que definiria o início das obras, o Legislativo
local vetou o projeto. A solução do imbróglio foi rápida e condizente
com a postura antidemocrática do período. Cid Scarone, coronel do
Exército e então interventor de Rio Grande (que compunha parte do
mapa das Áreas de Segurança Nacional), telefonou para Golbery que,
“num „canetaço‟ fechou a Câmara”. Na seqüência:

O prefeito por decreto passou [o projeto] pra Corsan...


Imediatamente um dia depois foi reaberta a Câmara, mas já
tinha passado [o projeto], e por conta disso foi construído o
canal adutor. Foi por conta da criação do Super Porto e do
Distrito Industrial que havia necessidade de água para as
indústrias que vinham se instalar e nós não teríamos condições
de fazer. (COSTA, 2011, p. 171).

Evidentemente, os defensores da homenagem ao “benfeitor”


Golbery não citaram as manobras pouco usuais e nada democráticas
do general para “beneficiar” sua cidade de origem. Ao contrário,
procuraram ocultar informações preciosas, disseminando a
desinformação. Para tão inglória tarefa, contaram com o apoio
escancarado dos meios de comunicação, numa aliança que
exemplifica os usos e desusos da memória na consolidação de
determinados discursos históricos de interesses escusos.
A rigor, este processo começa muito antes de 2011,
precisamente em 5 de fevereiro de 1988, apenas cinco meses depois

212
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

da morte de Golbery. Naquele dia, conforme noticiou o jornal Agora,


o então prefeito de Rio Grande, Rubens Emil Correa, condecorou
postumamente o general com a Ordem de Silva Paes, mais alta
comenda citadina. Na ocasião, o chefe do Executivo justificou a
homenagem ao ideólogo da ditadura:

Considerando que o agraciado, durante os longos anos em que


esteve ligado ao Governo Federal e mesmo depois disso,
procurou ajudar sobremaneira no desenvolvimento da terra que
lhe serviu de berço, num esforço muito superior às meras
obrigações e cargos que ocupou, tendo sempre, em vida,
recusado agradecimentos e homenagens. 8

Naquele momento, ninguém se opôs à reverência. Como sinal


disso, dez anos depois, o Conselho Deliberativo da Associação
Comercial dos Varejistas de Rio Grande sentiu-se livre para “resgatar
uma injustiça histórica cometida contra esse rio-grandino ilustre”,
criando o Troféu Ministro Golbery do Couto e Silva –
“homenageando anualmente, uma personalidade que como ele, tenha
prestado relevantes serviços à comunidade”9. Contudo, a comenda e o
troféu ainda eram insuficientes. Couto e Silva precisava ganhar um
marco público. Foi aí que, em 2008, o coronel Augusto César de
Oliveira – então comandante do 6º GAC – mandou erguer um
monumento na praça do quartel com a efígie do general e a inscrição
“Ao Ministro Golbery do Couto e Silva – O reconhecimento da sua
terra natal”. Questionado sobre a obra, Oliveira disse que havia
investigado a vida do general, descobrindo nela a passagem heróica
pela FEB – motivo pelo qual decidira pela construção do preito10.
Contudo, apesar da justificativa, o título gravado no monumento é o
de “ministro”, e não o de “pracinha” ou “soldado”.

8
Agora, 11-01-1988.
9
A Lucta, dezembro de 2008.
10
Entrevista de Augusto Cesar de Oliveira ao programa RU Café, Rádio
Universidade – FURG FM, 06-11-2010.

213
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Mesmo com mais de vinte anos de sucessivas homenagens,


alguns cidadãos sentiram que o ilustre “benfeitor” do município
continuava esquecido – não compreendendo que, talvez, a própria
cidade não fizesse questão de lembrá-lo. Foi então que duas figuras de
confusas trajetórias entraram em ação na tentativa de recuperar a
memória de Golbery. A primeira delas merece seu próprio à parte.
Trata-se do multimilionário rio-grandino Ronald Levinsohn.
Nos anos 1970, Levinsohn já era um dos homens mais bem
sucedidos do país. Seu Grupo Delfin, dono de vultosos
empreendimentos financeiros, chegou a ter a segunda maior caderneta
de crédito do Brasil. No auge, a “Caderneta Delfin” contou com cerca
de 3,1 milhões de clientes somente nos estados do Rio de Janeiro e de
São Paulo. Homem de livre trânsito entre o alto escalão tanto
empresarial, quanto das Forças Armadas que compunham a ditadura,
o banqueiro acabou ganhando notoriedade quando, em 1982, o
jornalista José Carlos de Assis denunciou um enorme escândalo
envolvendo a Delfin. Em matéria intitulada “BNH favorece Delfin em
Cr$ 60 bi”, publicada na Folha de São Paulo em 30 de dezembro de
82, o jornalista trouxe indícios claros de uma transação milionária
envolvendo o Governo Federal (através do Banco Nacional de
Habitação) e o conglomerado financeiro de Levinsohn. Segundo a
matéria, no processo de quitação das dívidas da Delfin com o
Governo, o BNH superfaturara a avaliação de dois terrenos entregues
na transação. Na época, as dívidas da caderneta giravam em torno de
70 bilhões de cruzeiros, ao passo que os dois imóveis oferecidos por
Ronald Levinsohn para quitar os ativos valiam juntos apenas 9
bilhões.
A denúncia caiu como uma bomba na sede da Delfin.
Assustados pelo iminente escândalo envolvendo a empresa, os mais
de três milhões de clientes da caderneta promoveram uma verdadeira
caça às economias depositadas nela, levando o negócio milionário à
bancarrota em questão de dias. Levinsohn acusou o coronel Mário
Andreazza, ministro do governo Figueiredo e um de seus notórios
desafetos, de ser o responsável pela armadilha. Ainda poderoso e rico,
Ronald vingou-se de Andreazza dois anos depois, quando enviou ao

214
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

coronel um telegrama de três metros e meio contendo o nome dos


deputados que ele próprio “convenceu” a não votar no coronel – nas
cúpulas militares, um dos principais postulantes ao Palácio do
Planalto.11
O pai da Delfin demorou vinte anos para obter sua inocência,
que só veio através de decisão do Superior Tribunal de Justiça, no
início de 2006. Durante e depois disso, o ex-banqueiro seguiu fazendo
negócios: dedicou-se à produção de alimentos transgênicos, seguiu
atuando no ramo imobiliário e, a partir dos anos 2000, criou a
UniverCidade, um dos maiores complexos educacionais privados do
país. Foi a partir de sua atuação na área da educação, que Levinsohn
decidiu homenagear seu conterrâneo e amigo, Golbery do Couto e
Silva – um dos principais agentes dos governos nos quais o
empresário mais enriqueceu. A primeira medida de Ronald Levinsohn
para trazer à tona o passado de Couto e Silva foi reeditar, junto à
UniverCidade, uma das obras mais famosas do general, Geopolítica e
poder.12
A segunda foi mais efetiva. E é a partir dela que entra em ação
o segundo personagem de destaque nesta história, o vereador Renato
Espíndola Albuquerque (PMDB). O próprio edil – de 70 anos, vários
deles dedicados à política, inclusive como líder da extinta ARENA em
Rio Grande – conta como sua ação política na cidade se entrecruzou
com Ronald Levinsohn e Golbery do Couto e Silva:

Eu recebi um telefonema do diretor e proprietário da rede


UniverCidade – das universidades que são ligadas a este
complexo – (...) Ronald Levihnson... E ele me ligava porque
ele era muito amigo do meu pai, sabia que eu era vereador e

11
“Querem matar a concorrência a pauladas”, IstoÉ Dinheiro, 28-5-03.
12
Além da obra de Golbery, a editora da UniverCidade publicou vários livros
escritos por ideólogos, simpatizantes e figuras ligadas aos regimes de
repressão da América Latina, dentre eles o cronista Augusto Frederico
Schmidt e o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger. Os
livros podem ser adquiridos no sítio eletrônico da própria instituição
(http://www.univercidade.br/).

215
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

disse: „Albuquerque, eu estou te ligando porque eu acho que


Rio Grande deve uma gratidão ao general Golbery e o Golbery
estará completando 100 anos agora neste ano de 2011 e eu
gostaria de oferecer à prefeitura de Rio Grande um busto para
que fosse colocado em praça pública aí. Rio Grande resgataria
essa gratidão para com o general por tudo aquilo que ele fez
para Rio Grande‟. Eu fui buscar elementos e me aprofundar um
pouco mais naquilo que o Golbery tinha realizado por Rio
Grande e aquilo que o Golbery representou na Revolução de
64. Fiz uma avaliação e achei por bem que nós poderíamos
propor essa colocação do busto. (...) no andar da carruagem se
achou por bem não colocar um busto, e sim uma placa
comemorativa ao centenário do general Golbery13.

A ideia de Levinsohn, defendida por Albuquerque, é apenas o


desdobramento de outras ações conjuntas promovidas por ambos, a
primeira delas datada de 8 de maio de 2003, quando o prefeito Fábio
Branco sancionou a Lei 5.762, que “dá denominação de Ministro
Golbery do Couto e Silva a um bairro do município”. O projeto desta
homenagem foi elaborado por Renato Albuquerque e aprovado pela
Câmara, depois de várias tentativas frustradas. Mais tarde, em 19 de
fevereiro de 2009 (data curiosa, por tratar-se de feriado municipal), o
prefeito voltou a sancionar uma proposição de Albuquerque aprovada
pela vereança. Desta vez foi a Lei 6.642, que “denomina de Ministro
Golbery do Couto e Silva uma avenida de Rio Grande”. Só mais tarde,
no último dia de 2009, é que Fábio Branco assinou o recebimento do
busto em homenagem ao criador do SNI, através da Lei 6.835.
Este último projeto – o mais ousado de todos – foi levado à
votação na Câmara Municipal em 21 de dezembro de 2009. O projeto
de lei de vereador 93/2009 está registrado nas atas do legislativo rio-
grandino como o processo 2277/09, proposto por Renato
Albuquerque. A votação foi protagonizada pelo autor da homenagem
– que falou por longos minutos sobre a importância de Golbery para

13
Entrevista de Renato Espíndola Albuquerque ao programa RU Café, Rádio
Universidade – FURG FM, 06-11-2010.

216
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Rio Grande – e pelo vereador da oposição, Júlio Martins. O edil do


Partido Comunista do Brasil comparou Couto e Silva à Titica (Paulo
César Guimarães da Silva), assassino em série que aterrorizou a Praia
do Cassino durante os meses de fevereiro e março de 1999 – quando
fez sete vítimas:

Senhor Presidente, senhores Vereadores, se nós começarmos a


colocar bustos de certas figuras em praça pública, em breve
nós vamos colocar um busto do Titica. O Titica matou menos
gente que o Golbery. Era um criminoso! Foi o articulador,
Golbery do Couto e Silva, da Revolução do Golpe Militar de
sessenta e quatro no governo Figueiredo, era ele que controlava
as Forças Armadas e os porões da Ditadura. É um dos
articuladores do AI-5 que cassou vários políticos, que prendeu
muita gente, daí nós dissermos porque recebemos algumas
benesses que esse Senhor é uma boa pessoa, lamento, daí a
pouco nós vamos estar, como eu já disse, botando o busto do
Titica em praça pública também14.

Apesar dos argumentos de Martins, a proposição de


Albuquerque foi aprovada. Seis vereadores votaram a favor da
homenagem: José Antonio da Silva, Luciane Compiani Branco,
Wilson Batista Duarte da Silva, Thiago Pires Gonçalves, Giovani
Morales e o próprio Renato Espíndola Albuquerque. Júlio Cezar Jorge
Martins e Luiz Francisco Spotorno se opuseram. Não fossem as faltas
de Alexandre Lindenmeyer e Cláudio Costa, e as abstenções de
Delamar Corrêa Mirapalheta, Carlos Mattos e Paulo Renato Gomes e
a homenagem não teria passado na votação. Depois da sessão,
bastaram dez dias para que Fábio Branco sancionasse – no último dia
de trabalho do ano – o preito.
Com as eminentes festividades de fim de ano, pouca gente deu
atenção à história. Ainda assim, na ocasião, alguns internautas
tentaram divulgar a homenagem recém-aprovada, repudiando-a em

14
Ata N. 8448 – 122ª Sessão Ordinária – Câmara de Vereadores de Rio
Grande, 21-12-09.

217
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

absoluto. Foi talvez por isso que a Prefeitura Municipal atrasou a


execução do projeto em longos 20 meses, uma inércia que tirou
Golbery de cena para trazê-lo novamente, em pleno solo da Praça
Tamandaré, triunfal e heróico, naquele frio domingo de 21 de agosto
de 2011. O plano de Ronald Levinsohn sobre a homenagem ao
centenário de seu amigo general havia prosperado. Ou quase.
Três dias depois da cerimônia na Tamandaré, publiquei em meu
blog o primeiro dos vinte e três textos da série “Golbery e a cidade
surreal”. Indignado com o silêncio absoluto da comunidade rio-
grandina a respeito do assunto, busquei na História os subsídios
necessários para destituir de sentido a acintosa inauguração
protagonizada pelo alto comando da política local. No mesmo dia, 24
de agosto, enviei ao jornal Agora um pequeno artigo sobre Golbery do
Couto e Silva. No texto, repudiei o preito ao general, escancarei suas
ardilosas manobras para perpetuar a repressão no Brasil e critiquei
duramente a administração municipal por ser partícipe da infundada
homenagem. Sem nenhuma explicação de Agora, meu pequeno
manifesto desapareceu na imensidão das palavras que jamais são
tornadas públicas. O jornal da família Leite preferiu não publicá-lo.
Apesar do silêncio das mídias tradicionais, a agilidade e o poder
de difusão da Internet fizeram de “Golbery e a cidade surreal” uma
nova bandeira empunhada por cidadãos dispostos a não permitir
aquela afronta. Em 29 de agosto, aproveitando o impacto dos textos
publicados em meu blog, lançamos (a historiadora Ana Paula Amaral
e eu) um abaixo-assinado de repúdio ao monumento a Couto e Silva.
Surpreendentemente, nas primeiras 24 horas, a petição alcançou mais
de trezentas assinaturas, tornando-se a segunda mais acessada do país.
Nas horas seguintes, o ritmo frenético das assinaturas fez com que
mais rio-grandinos percebessem a gravidade da cerimônia de 21 de
agosto. Em poucos dias, Rio Grande voltaria a ser notícia nacional.
O abaixo-assinado criado no dia 29 ganhou um reforço de peso
quando Jair Krischke, histórico militante político e presidente do
Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) do Rio Grande do
Sul, passou a divulgá-lo através da ampla rede de contatos que criou
ao longo de quase cinco décadas dedicadas ao combate a todo tipo de

218
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

injustiça e repressão – no Brasil ou fora dele. Foi através de Krischke


que o repórter Felipe Prestes, da agência Sul21, ficou sabendo da
homenagem a Golbery em Rio Grande. Atento aos fatos, o jornalista
conseguiu arrancar aquela que seria a mais trágica das frases
proferidas no longo imbróglio cravado no verde da Praça Tamandaré.
Ao entrevistar Edes Cunha, chefe de gabinete do prefeito Fábio
Branco, sobre a opinião do líder do Executivo local a respeito da
homenagem ao general, Prestes ouviu uma resposta desconcertante:
“O prefeito nem era nascido, não tem nem conhecimento desta
história”15. Em onze palavras, Cunha resumiu, com magistral primor,
a nem um pouco desconhecida ignorância de Branco.
A declaração desencadeou uma surpreendente série de irônicas
manchetes a respeito do caso, algumas delas publicadas nos maiores
jornais do país, com destaque para Folha de São Paulo e Jornal do
Brasil. Enquanto o rio-grandino Agora levava aos leitores a versão
impressa da pequena biografia de Golbery – escrita por Willy César e
difundida dias antes, via Internet –, em sua edição do dia 28 de agosto,
nas 48 horas seguintes mais de dez artigos em meios de comunicação
de fora da cidade denunciaram a homenagem ao “satânico Dr. Go”.
Em 1º de setembro, como resultado de tamanho alarido, até o
conhecido Juremir Machado da Silva, colunista do Correio do Povo,
desancou sua verve de articulista contra a iniciativa da Prefeitura e
Câmara de Rio Grande: “[este monumento é uma] ideia digna de um
luminar palomense” – escreveu16.
Enquanto isso, em Rio Grande, começavam a brotar as
primeiras reações ao caso. Questionados via email sobre a iniciativa
de homenagear Couto e Silva, os vereadores da cidade preferiram o
silêncio. A exceção ficou por conta da única edil do Legislativo.
Através de sua assessora, Alda Lages, a vereadora Luciani Compiani
– esposa do prefeito da cidade – bancou a defesa de Golbery

15
“Em Rio Grande, prefeitura faz homenagem a Golbery do Couto e Silva”,
Sul21, 30-08-2011 (http://sul21.com.br/jornal/2011/08/em-rio-grande-
prefeitura-faz-homenagem-a-golbery/ acessado em 22-04-2012, 16h35).
16
“Estátua de ditador”, Correio do Povo, 01-09-2011.

219
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

argumentando que “as boas ações de uma pessoa não devem ser
negadas ou anuladas pelas ruins”. Depois de receber uma forte réplica
contrária ao fragilíssimo argumento, a resposta subseqüente da
legisladora foi de uma candura quase inacreditável: “Rezamos e
trabalhamos para que nunca mais nosso país esteja sob o jugo dos
ditadores” – disse Compiani. Luciane rezava contra a ditadura, mas
havia votado a favor de uma homenagem à própria, no pouco
longínquo 21 de dezembro de 2009.17
Outro político local que resolveu sair do silêncio perturbador ao
redor da homenagem a Golbery foi o ex-vereador Alexandre
Lindenmeyer. Sentindo-se injustiçado por não ter seu nome
enumerado entre os vereadores que se opuseram à construção do
monumento, o político do Partido dos Trabalhadores divulgou uma
nota de imprensa onde justificava sua falta na seção que votou a
proposta de Albuquerque e reafirmava sua contrariedade ao projeto.
Candidato declarado à sucessão ao Paço Municipal, Lindenmeyer não
contava que sua nota despertaria a afiada pena de Luiz Claudio
Cunha, um dos jornalistas mais respeitados do país, remanescente
repórter-militante e premiado lutador por uma imprensa mais séria e
contestadora.
Cunha foi mais um que tomou conhecimento do “Caso
Golbery” graças à rede de Jair Krischke. Seu primeiro artigo sobre o
tema, “Benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil”, foi publicado
em 5 de setembro, em meia dezena de sítios eletrônicos de
repercussão nacional e em outras dezenas de endereços menos
conhecidos. Sem medo e com característica ferocidade, Luiz Claudio
Cunha desferiu um duro golpe nos argumentos pouco coesos dos
políticos riograndinos. Mais do que isso, fez sair das sombras o
desconhecido Golbery do Couto e Silva Neto, descendente do general
que se sentiu ofendido pelo artigo do jornalista. O protesto de Golbery
Neto deu a Cunha argumentos para mais dois textos ferinos e

17
O conteúdo dos emails em questão foi concedido pelo internauta Jorge
Vivar, autor das mensagens de questionamento aos vereadores de Rio Grande
nos dias 30-08-2012 e 02-09-2012.

220
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

incisivos que até hoje não conheceram tréplica. Já Alexandre


Lindenmeyer, o deputado que tentou livrar-se da pecha de conivente
com a homenagem, também teve que engolir à seco a resposta do
articulista que mais contribuiu para difundir a homenagem ao
“satânico”: Cunha argumentou que a boa vontade do ex-vereador em
rejeitar o projeto do monumento era válida, mas que poderia ter sido
tornada pública antes que o caso se transformasse em um dos grandes
filões jornalísticos daquele início de setembro. Lindenmeyer não falou
mais no assunto. Preferiu agir: dias depois, seus assessores
anunciaram a criação de uma comissão chamada “Ditadura Nunca
Mais”, uma união entre os estudantes, os sindicalistas da área da
educação e a União da Juventude Socialista de Rio Grande (UJS). A
idéia era promover um longo debate e uma série de protestos contra a
perpetuação da tortuosa memória sobre o período da ditadura na
cidade.
A insistência da imprensa de todo o país na construção do
monumento a Couto e Silva em Rio Grande foi tão intensa que o
silêncio da mídia rio-grandina começou a tornar-se constrangedor. No
dia 5 de setembro, mesma data em que foi publicado o primeiro artigo
de Luiz Claudio Cunha, o Agora abriu espaço para uma nova versão
do texto que eu havia enviado à redação doze dias antes. Acuado pelos
vastos ataques que sofreu nas redes sociais virtuais por sua omissão, o
diário alegou que não havia recebido meu manifesto. Um dos editores
da publicação pediu que eu reenviasse o artigo. No dia seguinte, 6 de
setembro, Agora cedeu o espaço da “Carta ao Leitor” para outro
manifesto de repúdio ao preito a Golbery, desta vez assinado por
Shendler Siqueira, integrante da UJS18. Foi nesta mesma data, a
propósito, que aconteceu o debate mais intenso a respeito do caso, um
capítulo à parte no episódio.
No início da tarde daquela véspera de feriado, o pequeno
estúdio da Rádio Universidade FM ficou ainda menor diante do
verdadeiro embate aberto entre quatro personagens de juízos e táticas

18
Ver: “Sobre o monumento ao General Golbery do Couto e Silva”, Agora,
05-09-2011; “Comissão da verdade”, Agora, 02-09-2011.

221
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

diferentes. Naquele dia, o RU Café, programa apresentado pelo


historiador Fabiano da Costa, mexeu no vespeiro do “Caso Golbery”
com a participação dos vereadores Renato Albuquerque, Augusto
César de Oliveira (ex-comandante do 6º GAC e defensor do preito) e
Júlio Martins (oponente do projeto). Para completar a mesa, foi
convidado o historiador Leandro da Costa.
Durante uma hora e quinze minutos, quiçá pela primeira vez em
275 anos de História, Rio Grande pôde assistir a uma aberta disputa
de memória ao redor de um dos temas mais candentes da memória
local, o período da ditadura. O debate girava em torno da figura de
Golbery, defendido à exaustão por Albuquerque, até que Augusto
César resolveu investir-se por completo de sua mentalidade verde-
oliva e reacionária, passando a impedir qualquer pronunciamento mais
longo, esmurrando a mesa e berrando impropérios contra o
comunismo, Cuba, Fidel Castro e outros dos tantos fantasmas que
sempre pareceram assombrar os quartéis latino-americanos – e que
nada tinham a ver com a questão central. Para que se tenha uma idéia
do nível de agressividade do debate, basta dizer que o historiador
Leandro da Costa só conseguiu falar depois que uma das diretoras da
rádio invadiu o estúdio, exigindo respeito aos contendores. Os parcos
minutos que restaram ao jovem pesquisador foram suficientes para
que ele fosse ao ponto-chave do “Caso Golbery”. Sutilmente, Costa
lembrou que aquela manobra ao redor da memória de Couto e Silva
tinha por fito fazer com que as “realizações” da ditadura não fossem
esquecidas pelo evidente novo ciclo do desenvolvimento citadino,
desencadeado pelo atual governo federal. Desconcertado pelo
inesperado raciocínio, só restou ao vereador Renato Albuquerque
desqualificar o debate:

[...] essas ocorrências são de quase cinqüenta anos atrás, então


veja só, que a maioria dessa juventude, inclusive os dois
ilustres coordenadores do debate não eram nem nascidos [...]
então, o que sobrou [...] para aquelas ideologias que ainda
persistem é exatamente fomentar nesta juventude que não tem
um conhecimento do que realmente aconteceu, este espírito
beligerante contra a memória de um ilustre filho de Rio Grande

222
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

[...] não tem nenhuma prova de que ele tenha matado alguém
[...] estamos discutindo em troco de quase que nada, apenas
para trazer a tona problemas que não foram problemas para o
país, pelo contrário, foram as soluções encontradas para que o
Brasil chegasse a esse desenvolvimento que nós estamos
vivendo hoje, porque se não nós estaríamos transformados [...]
vocês estão de acordo com os interesses ideológicos do Partido
Comunista do Brasil19.

Para completar, Albuquerque desqualificou a petição pública de


repúdio à homenagem, ironizando sobre as 1.846 assinaturas obtidas
pela iniciativa. Talvez sem dar-se conta do número e de sua própria
realidade política, o vereador peemedebista esqueceu-se de que
aqueles “mil e poucos” nomes totalizavam mais de 70% do número de
votos obtidos por ele no pleito eleitoral de 2008. Ainda menos
preocupado com a opinião pública, Augusto Cesar encerrou sua
participação no debate do RU Café convidando os ouvintes a
acessarem o sítio de extrema direita Terrorismo Nunca Mais,
reconhecido ninho de repressores que abriga textos apologéticos à
ditadura.
Havia acabado o baile de máscaras do “Caso Golbery”.
No mesmo dia do debate na rádio mantida pela Universidade
Federal do Rio Grande – até então a única iniciativa da instituição,
que praticamente omitiu-se da disputa – a resposta aos desmandos da
política local apareceu no chão da Praça Tamandaré, em verde e
amarelo. Por algum motivo ainda desconhecido, a TV e o diário locais
mudaram a data da destruição da pedra fundamental do monumento a
Golbery do Couto e Silva para 8 de setembro, mas, na realidade, o ato
ocorrera no dia 6, quando um grupo de anônimos arrancou o cilindro
de plástico enterrado em um dos nichos da praça, destruiu a
construção recém-iniciada e pichou o local com as cores da bandeira
brasileira. A imprensa aproveitou o ensejo, denunciando a
movimentação como um ato de puro vandalismo. O jornal Agora –

19
Entrevista de Renato Espíndola Albuquerque ao programa RU Café, Rádio
Universidade – FURG FM, 06-11-2010.

223
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

que passara a publicar cartas de Edes Cunha e Renato Albuquerque,


ambas defendendo Golbery e acusando os contrários ao monumento
de “ideólogos da esquerda, expressão do atraso, sem compromisso
com o bem-estar do povo”20 – aproveitou a ocasião para lançar dois
editoriais defendendo o preito. Em um deles, jocosamente intitulado
“Ditador de casa não faz milagres”, o articulista Pedro Valério
questionava sem pudores: “Se outros ditadores merecem
[homenagens], porque não, quem tanto fez por esta terra?”21
Quando Edes Cunha, o oficial de gabinete do prefeito Fábio
Branco, publicou em Agora um artigo dirigido a mim, o diário – com
indisfarçável desfaçatez – só tornou pública minha resposta ao
representante de Branco na Internet (um pequeno texto onde rebati
todos os argumentos de meu interlocutor), poupando seus leitores
mais tradicionais da réplica. Naquela semana, atordoado pelos
protestos, o jornal lançou uma pesquisa interativa para saber a opinião
de seus leitores a respeito do assunto. Para decepção do conselho
editorial da publicação, 58,59% dos leitores-votantes de Agora votou
na opção “Discordo. A participação do gen. Golbery no regime
ditatorial no Brasil não deveria ser motivo de orgulho”22. Chafurdando
no lodo do desprestígio, a mídia local não se conformou com o
resultado. No dia 9 de setembro, a RBS TV Rio Grande resolveu tirar
a “prova real” da opinião pública, realizando uma segunda pesquisa.
A pergunta era simples – “Você concorda com a homenagem para o
General Golbery do Couto e Silva?” – e foi apresentada sem qualquer
explicação, no bloco local do programa Jornal do Almoço, em meio às
notícias do dia.23 A estratégia, aparentemente equivocada, ficou clara
minutos depois, quando uma reportagem sobre o caso foi exibida em
rede estadual. Produzida pelo repórter Maurício Gasparetto, a matéria
tentou mostrar os lados antagônicos da história, mas acabou
investindo em um tom descontraído, tirando a seriedade do assunto.

20
“Nobre historiador” – Agora, 9-9-2011.
21
“Ditador de casa não faz milagres” – Agora, 11-9-2011
22
Resultado publicado na edição de 10-9-2011 do diário Agora.
23
Programa Jornal do Almoço, RBS TV Rio Grande, 9-9-2011

224
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Ao final da pauta, a RBS colocou no ar seu principal homem de


opinião, o comentarista Lasier Martins, uma das vozes mais amadas e
odiadas do Rio Grande do Sul. O fechamento do curto comentário do
jornalista não deixava dúvidas sobre sua opinião a respeito do assunto:

Num país que se quer democrático, com liberdade de expressão


e de ideologias, nada deveria impedir que os simpatizantes do
general o homenageassem e os que o detestaram que ignorem a
homenagem. Simples, ou ainda não?24

Ainda não. Diferente do que propunha Lasier Martins, não era


tão simples ignorar uma homenagem à ditadura erigida em praça
pública, com verba saída dos cofres sempre nutridos pelo capital
oriundo dos impostos pagos por todos os cidadãos – simpatizantes ou
não do regime repressor. O tiro da RBS saiu pela culatra. No dia
seguinte, a emissora viu-se obrigada a apresentar o resultado nada
simples de sua pesquisa interativa telefônica. 916 telespectadores
haviam ligado para os dois números de telefone disponibilizados pelo
canal. 548 deles, 59,71%, não concordaram com a homenagem. 25 A
emissora não falou mais no assunto.
A semana mais pungente do “Caso Golbery” em Rio Grande
encerrou com a primeira manifestação pública de um professor da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG) contra o monumento ao
general da ditadura. O texto foi escrito por Juarez Fuão, historiador do
Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI), mas
permaneceu por quase três semanas desconhecido pelos leitores.
Apesar da insistência e escancarada crítica de Fuão, o diário Agora
(para onde o artigo havia sido remetido) não parecia disposto a tornar
pública a manifestação do professor universitário que, em 2009,
defendeu uma tese de doutorado justamente sobre o impacto dos

24
Idem.
25
Programa Jornal do Almoço, RBS TV Rio Grande, 10-9-2011.

225
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

monumentos na perpetuação de determinadas memórias seletivas.26


Mais uma vez, como nas outras, foi preciso denunciar o longo silêncio
do jornal mantido pela família Leite para que o texto de Juarez Fuão
chegasse às páginas do pequeno diário, o que aconteceu em 13 de
setembro. Neste mesmo dia, casualmente, o imbróglio virou tema de
uma anedótica canção, Golb, Golb, Aba, Aba, Fu, Fu, da dupla de
roqueiros rio-grandinos Raiovak & Netuno Punk. No refrão, a
referência à homenagem a Couto e Silva e uma menção a outro
acontecimento de grande repercussão na cidade, o espancamento de
dois vendedores ambulantes de abacaxi pela Brigada Militar:

Golb, Golb, Golb, Golbery


Aba, aba, aba, abacaxi
Fu, fu, fu... Fu-fu-fu
Fudidos nós vivemos aqui!27

Era a voz das ruas transformando a vergonha rio-grandina em


rock.
Outro professor da Universidade Federal do Rio Grande
publicou uma manifestação contrária ao monumento a Golbery, desta
vez no jornal pelotense Diário Popular.28 Daniel Prado, também do
ICHI, repudiou o preito, mas, inconsciente ou não, assinou apenas
como “historiador”, não revelando seu vínculo com a instituição
federal de Ensino Superior que, de acordo com os defensores da
reverência a Golbery, só foi transformada em escola pública a partir
da intervenção do general. Prado acabou por refletir a posição da
própria FURG, uma das entidades civis sobre a qual se esperava maior

26
FUÃO, Juarez José Rodrigues. A construção da memória: os monumentos
a Bento Gonçalves e José Artigas. Tese de Doutoramento. São Leopoldo, RS:
UNISINOS, 2009.
27
Ver http://www.youtube.com/watch?v=sfrlaog59dI (acessado em 31 de
julho de 2012, 18h33).
28
“Brasil: Nunca Mais – Rio Grande: Nunca Mais” – Diário Popular, 10-10-
2011.

226
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

ação a respeito do assunto – espera que acabou desaguando em


frustração.
Uma frustração que talvez só não tenha sido maior que a dos
proponentes e entusiastas da homenagem a Golbery do Couto e Silva,
um projeto que até hoje, passados mais de doze meses do lançamento
da pedra fundamental, ainda não saiu do papel.
A inauguração da Praça Tamandaré parecia o desfecho de uma
silenciosa e sutil reverência à ditadura, mas transformou-se em um
problema político difícil de ser administrado, ainda mais em época
pré-eleitoral. Repercutindo cada vez mais longe e sem o respaldo da
população, restou aos que defendiam o preito o silêncio. A partir do
início de outubro, quase ninguém mais se atreveu a revelar-se a favor
do monumento. Jornalistas do restante do país seguiram
acompanhando o caso e, em dezembro de 2011, Luiz Claudio Cunha
arrebatou o XXIX Prêmio Jornalismo de Direitos Humanos com uma
série de reportagens na qual estavam incluídos seus três artigos
repudiando Golbery, a ditadura e a desfaçatez rio-grandina. Antes
disso, ainda em meados de setembro, a Comissão “Ditadura Nunca
Mais” – criada por entidades locais para abrir a caixa preta do
autoritarismo em Rio Grande – promoveu um ato de protesto e
desagravo à homenagem proposta por Renato Albuquerque. No dia 14
de setembro, depois de uma longa reunião a respeito do caso,
representantes da comissão decidiram entregar dois presentes
simbólicos, uma forma inusitada e altamente crítica de ironizar o
silêncio do Executivo e Legislativo locais. Os livros A ditadura
escancarada e A ditadura derrotada, ambos de Élio Gaspari, seriam
dados a Fábio Branco e Thiago Gonçalves (então presidente da
Câmara de Vereadores), respectivamente. No entanto, os dois
agraciados alegaram “agenda lotada” e não puderam receber os
cidadãos. Os livros foram entregues a assessores que ficaram
incumbidos de repassar os presentes a seus superiores. No dia
seguinte, o que restou foi a foto dos manifestantes frustrados, livros à
mão, em frente ao Paço Municipal.29

29
“Movimento entrega livro sobre ditadura ao prefeito” – Agora, 15-9-2011.

227
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Cinco meses depois, o sítio eletrônico da Prefeitura de Rio


Grande publicou uma seqüência de fotos bem distintas daquela. No
gabinete, Fábio Branco recebia – para conhecer melhor a história de
quando não era nascido – exemplares dos livros Bacaba – Memórias
de um guerreiro de selva da Guerrilha do Araguaia e Bacaba II –
Toda a verdade sobre a Guerrilha. As obras, escritas por um antigo
repressor da Guerrilha do Araguaia – José Vargas Jiménez, o “Chico
Dólar” –, foram entregues a Branco por dois militares reformados,
Agapito Costa e o vereador Augusto Cesar de Oliveira, o ex-
comandante do 6º GAC que homenageou o “pracinha” Golbery na
praça do quartel. A agenda de Fábio Branco não estava lotada para
recebê-los.30
Em 23 de novembro de 2011, o portal Sul21 divulgou que a
homenagem a Golbery do Couto e Silva continuava nos planos da
prefeitura de Rio Grande. Edes Cunha, ainda chefe de gabinete do
prefeito, disse que a obra encontrava-se em processo de licitação – um
procedimento que, se de fato existe, até hoje não foi registrado no
Portal da Transparência da Prefeitura Municipal. A reportagem
informava, ainda, que um vereador não identificado revelava
descrença ao redor do projeto. Segundo o edil anônimo, a prefeitura
havia sentido a repercussão negativa da idéia, “empurrando-a para o
tapete”.31
Até hoje, o nicho da Praça Tamandaré projetado para receber a
placa doada por Ronald Levinsohn está vazio. Sobre a rua e o bairro
batizados de Ministro Golbery do Couto e Silva, não há informação de
que já existam para além de suas leis autorizativas. Já o preito em
homenagem ao general na Praça do Quartel segue inteiro, apesar da
ação do tempo. Aliás, inteiras também seguem a Avenida Castelo
Branco, em Porto Alegre, a Praça Presidente Stroessner, em

30
Ver
http://www.riogrande.rs.gov.br/pagina/index.php/noticias/detalhes+6b1f2,,pre
feito-recebe-livros-sobre-historia-da-guerrilha-do-araguaia.html (acessado
em 31 de julho de 2012, 18h33).
31
“Prefeitura de Rio Grande mantém projeto de homenagem a Golbery” –
Sul21, 23-11-2011.

228
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

Guaratuba (Paraná), a Escola Estadual Emílio Garrastazu Médici, em


Salvador (Bahia) e até a Avenida Almirante Maximiano da Fonseca,
logradouro rio-grandino que homenageia aquele que, entre os anos de
1963 e 1964, o navio Canopus – embarcação utilizada para pesquisas
hidrográficas que, durante o Golpe de 64, foi utilizada como navio-
cárcere em Rio Grande.32
Da homenagem a Golbery em Rio Grande, restam inteiras
também a dignidade de uma parcela da população que se opôs
fortemente ao preito, impedindo sua execução. Uma atitude louvável,
bem diferente daquela defendida por boa parte dos políticos locais –
insensíveis em reconhecer o clamor do povo –, pela mídia da cidade e
por instituições que se desejam respeitadas – mas que permaneceram
em silêncio –, como a FURG (uma universidade cuja graduação em
História tinha como limite cronológico o fim da República Velha em
seus planos de ensino, até pelo menos 2008; ignorando todo o ainda
recente processo de desmanche das estruturas democráticas
brasileiras) e até mesmo a Associação Nacional de História
(ANPUH), que não interveio no caso, apesar dos insistentes clamores
por parte de historiadores locais ou não (uma posição bem diferente de
uma associação congênere, a Ordem dos Advogados do Brasil, que
fez do “Caso Golbery” uma bandeira em defesa dos princípios
democráticos).
A propósito, sobre a atuação da FURG, é importante salientar
que o jornal Pó de Giz, mantido pela Associação dos Professores da
Universidade Federal do Rio Grande publicou – em sua edição
número 425 – dois textos referentes à polêmica homenagem a Couto e
Silva. Um dos artigos, defendendo o preito, foi assinado pelo vereador
Renato Albuquerque. O outro, combatendo o monumento, foi escrito
por mim. Ao que parece, a Aprofurg não encontrou sequer um dos
500 professores da instituição dispostos a argumentar pró ou contra o
assunto. Aliás, no editorial de apresentação do caso, o Pó de Giz
preferiu omitir-se de qualquer juízo de valores, defendendo a validade

32
Para maiores informações, ver: RODRIGUES, Athaydes. Agora eu. Rio
Grande: edição do autor, 1981.

229
Rio Grande Século XX: Olhares Históricos

das duas posições antagônicas em jogo.33 A FURG, mais uma vez,


perdeu a oportunidade de prestar um serviço à comunidade rio-
grandina.
Na cidade surreal, a memória do “benfeitor” Golbery não
venceu, mas ajudou a escancarar tristes posturas de silêncio e omissão
que só não suplantam a vivacidade da luta que impediu a homenagem.
E que nos mostra que é possível defender a História a partir dela
mesma.

Referências bibliográficas

ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira de. O Satânico Doutor Go: a


ideologia bonapartista de Golbery do Couto e Silva. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica, 2007 (Tese de doutorado).
COSTA, Leandro Braz da. “Todos os caminhos levam a Rio Grande”.
Desenvolvimento econômico, vigilância e repressão a serviço da
legitimação do regime militar na década de 1970”. I Jornada
Ditaduras e Direitos Humanos. Porto Alegre, RS: Arquivo Público do
Rio Grande do Sul, 2011.
FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. São Paulo: Record,
2005.
FUÃO, Juarez José Rodrigues. A construção da memória: os
monumentos a Bento Gonçalves e José Artigas. Tese de
Doutoramento. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2009.
RODRIGUES, Athaydes. Agora eu. Rio Grande: edição do autor,
1981.

33
“Polêmica Golbery” – Pó de Giz, set./nov.2011.

230

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