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Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul

Memorial do Legislativo
Organizadores

Alcides Cruz:
perfil parlamentar

Projeto MEMÓRIA DO
PARLAMENTO

Porto Alegre
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul
2017
54ª LEGISLATURA

MESA DIRETORA 2017/2018

Presidente
Edegar Pretto – PT

1ª Vice-Presidente 2º Vice-Presidente
Liziane Bayer - PSB Frederico Antunes - PP

1ª Secretária 2º Secretário
Juliana Brizola - PDT Juvir Costella - PMDB

3º Secretário 4º Secretário
Maurício Dziedricki - PTB Adilson Troca - PSDB
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Superintendência Geral Chefe de Gabinete da Presidência


Mari Ivane Oliveira Perusso Elton Antônio Mariani

Coordenação do Memorial do Legislativo


Débora Dornsbach Soares

Pesquisa, textos e edição Revisão e Diagramação


Equipe IHGRGS Débora Dornsbach Soares
Vanessa Gomes de Campos / IHGRGS
Revisão de Conteúdo
Foto da capa Eleni da Penha Nizu / ALRS
Faculdade de Direito da UFRGS Fabiane Barbosa Moreira / ALRS
Fotógrafo Marcelo Bertani
Elenice Maria de Mello / ALRS
Imagens Internas Vladimir Araújo / ALRS
Acervo Memorial do Legislativo Vanessa Gomes de Campos / IHGRGS
Faculdade de Direito da UFRGS
IHGRGS Apoio
Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana Equipe do Memorial do Legislativo
de Porto Alegre Instituto Histórico e Geográfico do RS
Departamento de Comunicação e Cultura- Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana
Fotografia/ALRS de Porto Alegre
Faculdade de Direito / UFRGS
Capa
Memorial do Legislativo Impressão
XXXXX

2017 - 1ª ed. - tiragem 1000 exemplares

(Dados Internacionais de Catalogação na Fonte-CIP)

A352 Alcides Cruz : perfil parlamentar / organização Instituto Histórico e Geográfico do


Rio Grande do Sul, Memorial do Legislativo/ALRS. – Porto Alegre: Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul, 2017. (Série Perfis Parlamentares, n. 14).
397 p.: il.

Modo de acesso: www.al.rs.gov.br/biblioteca


ISBN 978-85-66054-37-8

1. Cruz, Alcides de Freitas. 2. Perfil Parlamentar. 3. Biografia. 4. Produção


Intelectual. 5. Atuação Política. 6. Deputado Estadual. 7. Política. 8. Rio Grande do Sul. I.
Assembleia Legislativa do RS. Memorial do Legislativo. II. Instituto Histórico e
Geográfico do RS. III. Série.

CDU 32(816.5)
Bibliotecária Responsável: Débora Dornsbach Soares CRB-10/1700
Classificação CDU – edição-padrão internacional em língua portuguesa

Referência:
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RS; ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RS
Memorial do Legislativo. (orgs.). Alcides Cruz: perfil parlamentar. Porto Alegre: Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul, 2017. 397 p. (Série Perfis Parlamentares, n.14). ISBN 978-85-
66054-37-8. Disponível em: <www.al.rs.gov.br/biblioteca>.

©Direitos Autorais reservados. Reprodução permitida desde que citada a fonte.


O conteúdo intelectual no livro são de responsabilidade exclusiva dos autores.
Apresentação

No ano em que se registra os 150 anos de nascimento de Alcides


Cruz, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul apresenta ao público
o livro Perfil Parlamentar, com objetivo de contar e resgatar um pouco da
trajetória pessoal e política deste líder negro que ocupou uma cadeira no
parlamento gaúcho em cinco legislaturas, além de ter sido chefe de
gabinete do então presidente do Estado (cargo atual de governador) Júlio
de Castilhos e ter ocupado a vice-presidência do parlamento na primeira
década do século passado.

Filiado ao então Partido Republicano Rio-Grandense (PRR),


Alcides, mesmo num contexto de racismo, em que fora chamado
publicamente por desafetos de mestiço, mulato ou negro, termos
ofensivos utilizados quando se procurava injuriar alguém, ligando este à
escravidão ou oriundo desta, conquistou o respeito de seus pares. Nos
registros que nos contam algumas passagens da sua vida, é notório o seu
empenho intelectual, o grande conhecimento jurídico que possuía e que
resultava em ser procurado para consultas e emissão de pareceres sobre
questões voltadas ao Direito. Também atuou como promotor e professor
e, com um grupo de notáveis, foi um dos fundadores da Faculdade de
Direito, que mais tarde passou para a UFRGS.

Mesmo com esses predicados, Alcides Cruz ainda é um ilustre


desconhecido para a grande maioria das pessoas. Resgatar sua trajetória,
forjada num cenário contrário aos negros e negras da época e enfrentando
o preconceito vivido por essas comunidades econômica, social e
racialmente falando, é uma obrigação deste Parlamento com a memória,
é dar visibilidade aos que lutaram e contribuíram, principalmente em
contextos desfavoráveis, para que o povo negro fosse visto além da
questão do ser escravo - que nunca deverá ser esquecida, por óbvio -, mas
como grupo étnico tão capaz e importante como qualquer outro.

Boa leitura!

Deputado Edegar Pretto

Presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul

.
A história dos homens descomunais
deve começar a escrever-se à lâmpada
do seu túmulo.
À luz da vida tudo são miragens
nas ações dos heróis e estrabismos na
contemplação dos panegiristas.
É tempo de bosquejar o perfil deste
homem esquecido, e quem quiser que
o tire a vulto em mármore mais
persistente.

S. Miguel de Seide, julho de 1876


Camillo Castello Branco

CASTELLO BRANCO, Camillo. O cego de Landim.


In: ______. Novellas do Minho. 2. ed. Lisboa:
Parceria António Maria Pereira/Livraria Editora, 1903
AFDSP Arquivo da Faculdade de Direito de São Paulo
AHCMPA Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre
AHE Arquivo Histórico do Exército no Rio de Janeiro
AHRS/APJC Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul/ Arquivo
Particular Júlio Prates de Castilhos
AHSM Arquivo Histórico de Santa Maria
APERS Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
BNRJ/Heme Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro / Hemeroteca digital
CRC Cartório de Registro Civil
IHGRGS Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
IHGRGS/BM Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul/
Arquivo Pessoal de Borges de Medeiros
MCSHC Museu de Comunicação Social Hipólito da Costa
PRR Partido Republicano Rio-Grandense
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................. 15

CRONOLOGIA HISTÓRICA DE ALCIDES DE FREITAS


CRUZ ..............................................................................................20

SINOPSE BIBLIOGRÁFICA ........................................................37

1 LIVROS E OPÚSCULOS .............................................................................................. 38


2 ARTIGOS ..................................................................................................................... 38
3 TRADUÇÕES ............................................................................................................... 41
4 ENTREVISTA .............................................................................................................. 41

“EVITAR O CIRCUNLÓQUIO E CHAMAR-ME PELO QUE


SOU, MULATO OU NEGRO”: O PROFESSOR E DEPUTADO
ALCIDES DE FREITAS CRUZ (1867-1916)
Paulo Roberto Staudt Moreira
Vanessa Gomes de Campos
.........................................................................................................44

1 PRIMEIROS CONTATOS COM ALCIDES .................................................................. 46


2 A FAMÍLIA CRUZ ....................................................................................................... 47
3 BIBLIOTECA ............................................................................................................... 62
4 UM REPUBLICANO NEGRO ...................................................................................... 65
5 PAULINO DE SOUZA E O ELEITORADO NEGRO REPUBLICANO....................... 75
6 ESCRITAS DE SI – O CORVO ALCIDES.................................................................... 77
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 83
11

UM BREVE ESTUDO DO PENSAMENTO JURÍDICO-


POLÍTICO DE ALCIDES CRUZ (1867-1916) A PARTIR DE
DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM UM
HABEAS CORPUS DO CASO DO RIO
Gustavo Castagna Machado
......................................................................................................... 89

1 A PRIMEIRA REPÚBLICA NO DIREITO E NA POLÍTICA .......................................90


1.1 Interpretações das origens da Primeira República ........................................................ 90
1.2 Economia, sociedade e política na Primeira República ................................................ 92
1.3 O Supremo Tribunal Federal..................................................................................... 93
1.4 A formação dos juristas ............................................................................................. 94
1.5 Os meios de circulação do direito e das ideias jurídicas ................................................ 98
1.6 Modelo dos juristas brasileiros .................................................................................. 100
2 ALCIDES CRUZ E SUA DEFESA INTELECTUAL E DOUTRINÁRIA
DO PINHEIRISMO ................................................................................................ 105
2.1 Pinheiro Machado, ascensão e disputas políticas ....................................................... 105
2.2 A atuação dos ministros do Supremo Tribunal Federal entre a política dos governadores,
Pinheirismo e Salvacionismo ........................................................................................... 108
2.3 Alcides Cruz e sua atuação no caso do rio ................................................................ 114
CONCLUSÃO ............................................................................................................... 120
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 121

A QUESTÃO DAS ÁGUAS DO RIBEIRO


João Batista Santafé Aguiar
....................................................................................................... 125

ANEXOS ...................................................................................................................... 131


REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 136

O PENSAMENTO POLÍTICO DE ALCIDES CRUZ:


CONCEITOS, SEPARAÇÃO DE PODERES, ATUAÇÃO
ESTATAL
Wagner Silveira Feloniuk
....................................................................................................... 137

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 137


12

2 DADOS DA VIDA DE ALCIDES DE FREITAS CRUZ ............................................139


3 FUNDAMENTOS DO PENSAMENTO DE ALCIDES CRUZ ..................................140
3.1 Filosofia e Organização Social ................................................................................. 140
3.2 Escrita da História ................................................................................................. 146
3.3 Visão da História do Rio Grande do Sul................................................................ 147
4 CONCEITOS POLÍTICOS .........................................................................................149
4.1 Democracia e Liberdade .......................................................................................... 149
4.2 Representação .......................................................................................................... 150
4.3 Soberania ................................................................................................................ 151
4.4 República ................................................................................................................ 152
4.5 Federação ................................................................................................................ 153
5 PODERES DO ESTADO ...........................................................................................154
5.1 Poder Executivo ...................................................................................................... 155
5.2 Poder Legislativo ..................................................................................................... 157
5.3 Poder Judiciário ....................................................................................................... 158
6 ATUAÇÃO ESTATAL ................................................................................................162
6.1 Cobrança de Tributos .............................................................................................. 163
6.2 O Pedido de Anna Rörecke ..................................................................................... 165
6.3 A Proteção das Matas e o Código Florestal ............................................................. 166
CONCLUSÃO................................................................................................................167
REFERÊNCIAS .............................................................................................................169

ALCIDES CRUZ: O INTELECTUAL E SUAS IDEIAS NO


FINAL DO SÉCULO XIX
Jefferson Teles Martins
....................................................................................................... 173

CONCLUSÃO................................................................................................................180
REFERÊNCIAS .............................................................................................................180
13

PRODUÇÃO INTELECTUAL E DISCURSOS


PARLAMENTARES .................................................................... 182

DISCURSOS PARLAMENTARES.............................................. 295

DO VELHO REGIME MONÁRQUICO PARA O NOVO


REGIME REPUBLICANO: OS DESAFIOS DA REPÚBLICA
PORTUGUESA
Ana Silvia Volpi Scott
....................................................................................................... 361

ALCIDES CRUZ, POR ANDRADE NEVES NETO ...................................... 388


O Memorial do Legislativo e o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Sul (IHGRGS), em parceria, apresentam o deputado Alcides de Freitas Cruz (1867-
1916) neste Perfil Parlamentar, para o que contaram com a inestimável colaboração dos
autores que assinam os diversos textos que compõem a obra.
O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) em 30 de
março de 2016, celebrando o transcurso dos cem anos da morte desse ilustre rio-
grandense, publicou em seu site o artigo “HOMENAGEM A ALCIDES CRUZ NO
CENTENÁRIO DE SUA MORTE” onde destaca momentos de relevo de sua trajetória.
Posto fosse mais conhecido como o primeiro biógrafo de Rafael Pinto Bandeira
e autor de uma obra que até hoje tem grande circulação no meio jurídico, sobre divisão
e demarcação de terras, a figura do Dr. Alcides Cruz começou a merecer maior atenção
e ser investigada pela Equipe Técnica do IHGRGS a partir de alguns de seus escritos,
entre os quais por uma publicação de 1903, em que respondia a injúrias raciais no jornal
A Federação, de Porto Alegre. Inserido em um debate público, Cruz abordava suas origens
étnico-raciais, remetendo-as aos africanos da Colônia do Sacramento portuguesa.
Tal qual a pequena ponta de um imenso iceberg, Alcides Cruz se tornou o objeto
de extensa pesquisa que, além da Equipe Técnica do IHGRGS, contou com os
colaboradores cujos trabalhos ora vêm à luz.
O resultado de todo o empenho e contributo é exibido nesta obra, a fim de servir
de incentivo na continuidade da memória do Dr. Alcides Cruz.
Introduz-se o tema através da Cronologia Histórica e Sinopse Bibliográfica de
Alcides de Freitas Cruz. Baseadas no levantamento de informações em periódicos e
livros, a cronologia pretende construir este personagem de modo dinâmico,
demonstrando todo o movimento, no sentido de deslocamento geográfico e também no
das relações sociais e intelectuais. À cronologia, segue-se a sinopse dos diferentes tipos
de produção intelectual de nosso estudado. É certo que foram destacadas as suas
produções de maior fôlego e estamos plenamente cientes de que ainda há muito por ser
encontrado.
A partir daí, divide-se a obra em duas grandes partes.
A primeira, intitulada ALCIDES CRUZ E SUA ÉPOCA, objetiva apresentar o
Dr. Alcides sob diversos pontos de vista, contribuindo com o processo de conhecimento
deste protagonista.
No artigo “Evitar o circunlóquio e chamar-me pelo que sou, mulato ou negro: O professor
e deputado Alcides de Freitas Cruz (1867-1916)”, de Paulo Roberto Staudt Moreira e
Vanessa Gomes de Campos, Alcides é arquitetado desde suas origens genealógicas,
avançando às interações sociais. Os autores identificam na própria fala do deputado,
advogado e professor sua autopercepção étnico-racial, de matriz africana que transcendeu
às barreiras de seu tempo. Do âmbito privado ao espaço público que ocupou e
consolidou, Alcides de Freitas Cruz ostentava uma postura afirmativa quanto às suas
16

origens e a vasta erudição que se apreende de seus escritos propiciam ao leitor valiosa
percepção de sua complexidade.
O artigo de Gustavo Castagna Machado, “Um breve estudo do pensamento
jurídico-político de Alcides Cruz (1867-1916) a partir de decisão do Supremo Tribunal
Federal em um habeas corpus do Caso do Rio”, analisa e compreende o pensamento de
Cruz, articulando cultura jurídica, produção doutrinária, prática jurisprudencial e a regra
do jogo do esquema da Política dos Governadores, vigente no Brasil da República Velha.
O autor ambienta Alcides Cruz na história do Direito, buscando articular seu discurso
jurídico com as ciências humanas e sociais. Entende que, para compreender como
pensava e elaborava suas teses, é importante conhecer sua formação como jurista, para o
que faz revisão temporal aprofundada; a partir daí aborda os meios de circulação do
Direito e das ideias jurídicas e o modelo dos juristas brasileiros até percebê-lo como um
propugnador da defesa doutrinária e intelectual do Pinheirismo, vertente republicana da
qual era adepto.
Seguindo, no texto “A Questão das Águas do Ribeiro”, João Batista Santafé
Aguiar, versa sobre a atuação de Alcides Cruz como advogado em uma de suas ações
mais complexas, pelos desdobramentos políticos e sociais que dela decorreram e pela
publicidade que mereceu. Basta ver que Borges de Medeiros era uma das partes.
Advogado foi Alcides Cruz na mais lata acepção do termo, com uma militância
profissional intensa, competente e profícua. A causa trabalhada por Aguiar é um dos
primeiros conflitos sobre uso de águas levado aos tribunais no Rio Grande do Sul, num
momento em que a cultura do arroz dava seus primeiros passos. No mais, a importância
da “Questão das Águas do Ribeiro” integrar a obra também reside no fato de que foi no
âmbito desse enfrentamento judicial que Alcides sofreu, por parte do ex adversus advogado
Diogo Velho, a injúria racial repelida com o artigo “Troco Miúdo” publicado em A
Federação de Porto Alegre, em 9 de julho de 1913.
Wagner Silveira Feloniuk em “O pensamento político de Alcides Cruz: conceitos,
separação de poderes, atuação estatal” investiga as ideias do deputado Alcides Cruz a
partir de sua produção doutrinária, discursos e posicionamentos na imprensa, analisa seu
pensamento para mostrar as estruturas e opiniões sobre a política e a organização do
estado. Busca sua compreensão da filosofia e da história, seus conceitos políticos
fundamentais, como democracia, liberdade, soberania, federação, república, sua opinião
sobre a separação de poderes e, por fim, como defendia a atuação estatal perante
problemas concretos. A partir deste trabalho, é possível verificar sua proximidade com
autores como Augusto Comte e Herbert Spencer na filosofia e história, uma afiliação ao
constitucionalismo norte-americano na construção de conceitos políticos e uma atuação
estatal que se aproximava do pensamento positivista do Partido Republicano Rio-
Grandense, ao qual pertencia.
A inserção intelectual de Alcides Cruz é apresentada em “Alcides Cruz: o
intelectual e suas ideias no final do século XIX”, de Jefferson Teles Martins. Desde o
ponto de vista de Alcides, em relação a outros homens de letras de seu tempo e através
de artigos seus que versaram sobre crítica literária, Jefferson Martins evidencia o
entendimento de Cruz sobre o universo intelectual do período. Alcides Cruz, consciente
do lugar de sua fala, o fazia de modo destacado e erudito, demonstrando extenso
conhecimento literário, conhecimento este que se estendia à produção nacional e
internacional, e articulando-se com o sistema intelectual e político de seu tempo.
17

Na segunda parte desta obra, é reproduzida a PRODUÇÃO INTELECTUAL E


DISCURSOS PARLAMENTARES de Alcides Cruz. A compilação de artigos e
discursos auxilia na identificação do próprio retratado, pois a ideia é expô-lo por si
próprio. A fim de constituir um corpus do pensamento de Alcides Cruz, selecionou-se
uma série de publicações que versam sobre política e sobre matéria jurídica. São artigos
e outros escritos que frequentemente eram lidos nas páginas dos jornais e revistas, e
davam publicidade à sua atuação. 1 Além destes escritos, também foram compilados os
discursos parlamentares em que Dr. Alcides Cruz teve maior envergadura, sobretudo no
nível de argumentação. Importante ressaltar que alguns discursos sinalizam verdadeiros
marcos históricos (e até o momento, pouco conhecidos).
A elaboração de seu pensamento, as bases teóricas de seus estudos e prática, tanto
no campo jurídico quanto no político, podem ser analisadas desde seu próprio ponto de
vista, nos inúmeros artigos publicados nos mais variados órgãos da imprensa da época.
Optou-se por transcrever e atualizar a ortografia, a fim de facilitar o acesso às
ideias deste homem de breve, mas ilustre carreira. A partir da oportunidade de difundir
o legado intelectual deste vulto público dos fins do século XIX e princípios do XX,
realizou-se um substancial esforço em coletar seus artigos, crônicas, comentários e
discursos nas incontáveis páginas de diversos jornais e revistas e também nos Anais da
Assembleia Legislativa do RS.

Nesse sentido, é necessário mencionar que as publicações nos jornais, em sua


maior parte, foram consultadas através do portal da Fundação Biblioteca Nacional, a
Hemeroteca Digital Brasileira. Outra parte do levantamento deu-se no Museu de
Comunicação Hipólito José da Costa, cujo agradecimento especial se dirige ao
coordenador do Setor de Imprensa, Carlos Roberto da Costa Leite (o Beto), que, com
seus préstimos e disposição auxiliou no acesso aos periódicos. Importante citar, ainda, a
bibliotecária da Faculdade de Direito da UFRGS, Nariman Nemmen, que gentilmente
atendeu à Equipe, quando da busca por remanescentes da biblioteca particular de Alcides
Cruz.
Finalmente, os acervos do Memorial do Legislativo (Anais da Assembleia) e do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (revistas jurídicas)
complementaram o mapeamento dos escritos de Alcides Cruz.
Quanto à apresentação da segunda parte, ficou subdividida em dois conjuntos,
explicados a seguir.
PRODUÇÃO INTELECTUAL. Refere-se aos escritos, que foram ordenados
cronologicamente, com a proposta de facilitar o entendimento e a complexificação
intelectual do autor. Abaixo do título de cada trabalho, cita-se a fonte. Alguns artigos de
jornal foram originalmente publicados em três ou quatro partes; nesta apresentação,

1 Em 2017, O IHGRGS publicou dois e-books que reuniram tematicamente parte da produção de Alcides
Cruz: a) Mestiço, Mulato ou Negro. Compreende dois artigos (de 1903 e 1913) referentes às respostas à
intolerância racial impingida nas páginas do jornal. Disponível em:
<http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-%20Mestico,%
20mulato%20ou%20negro.pdf>. b) Notas de Leituras e Outros Escritos. Caracterizado pelos artigos e crônicas
de Alcides que versam sobre história, crítica literária e de arte, além de outros temas de sua vivência,
incluindo a “entrevista” de 1915, em Florianópolis, após o naufrágio do navio que o conduzia ao Rio de
Janeiro. Disponível em: <http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-
%20Notas%20de%20leituras%20e%20outros%20escritos.pdf>.
18

tivemos o cuidado em manter todo o conjunto sob o título atribuído pelo autor. Tal
critério se justifica pela possibilidade da leitura completa da exposição de Alcides Cruz
sobre determinada ideia.
Para compreender plural figura, destacam-se dois textos inseridos neste conjunto,
datados de 1912:
- Sentença da Decisão Arbitral sobre a questão de limites entre os municípios de
Santo Antônio da Patrulha e Conceição do Arroio (atual Osório), na qual Alcides Cruz
atuou como Juiz Arbitral. Junto, agregou-se a notícia da viagem que fez a Santo Antônio,
às voltas da sentença, visitando as localidades em litígio.
- “Dr. Graciano Alves de Azambuja”, no qual Alcides Cruz traça um perfil quase
psicológico do extinto amigo que, tangencialmente, declina a uma autorreflexão.
Além destes textos, chama-se a atenção para uma notícia de 1898, da Gazeta da
Tarde, do Rio de Janeiro. De repercussão nacional, trata-se de uma das primeiras
manifestações conhecidas em sua atuação parlamentar.
DISCURSOS PARLAMENTARES. Os discursos também seguem uma ordem
cronológica. Por ser necessária a realização de alguns recortes nos discursos, foi utilizada
a convenção: [...].
Importa salientar que houve ocasiões em que os discursos não foram totalmente
captados pelo estenógrafo, ocasionando lapsos que conseguimos resgatar através de
publicações no jornal A Federação. Foi o caso do discurso sobre a Magistratura
(16/11/1909), em que Alcides Cruz o publica resumidamente, pois o estenógrafo
“deixou de apanhar grande parte”. Outro momento foram as manifestações da 10ª
Sessão, ocorrida em outubro de 1910: devido à ausência completa do discurso nos Anais
da Assembleia, utilizamo-nos do que foi publicado em A Federação.
Ressalta-se que, junto à divulgação da "Moção Alcides Cruz” (10 e 14 de outubro
de 1910), referente à República portuguesa, cuja repercussão chegou ao Congresso
Nacional, acompanha um breve texto da Prof. Dra. Ana Silvia Volpi Scott que se propõe
a situar o leitor a respeito das circunstâncias históricas portuguesas da época.
O conjunto nomeado “Discursos Parlamentares” se encerra com dois
necrológios: um, de autoria de seu amigo Andrade Neves Neto e o outro, publicado no
jornal A Federação e lido em Sessão da Assembleia em sua homenagem.
O Perfil Parlamentar de Alcides de Freitas Cruz oportuniza a exploração
multidirecionada deste vulto do passado e propicia material que contribui à análise do
político, advogado, professor, historiador e jornalista.
Parte 1
Cronologia Histórica
e
Sinopse Bibliográfica
1867
Nasce em Porto Alegre, a 14 de maio, o quarto filho de Manoel Pinto Lacerda
da Cruz, natural de Pernambuco, e de Adelaide Leopoldina de Freitas, natural
deste Estado.
Leopoldino Joaquim de Freitas, irmão de Adelaide, é nomeado para o cargo de
Inspetor da Tesouraria da Fazenda Provincial a 31 de julho.

1868
Falece a 18 de agosto, de consumpção, Manoel Pinto Lacerda da Cruz, pai de
Alcides Cruz.

1874
O tio materno de Alcides, Leopoldino Joaquim de Freitas, é agraciado a 02 de
dezembro com a Comenda da Rosa.

1878
Leopoldino Joaquim de Freitas é nomeado diretor-geral da Tomada de Contas
do Tesouro Nacional a 21 de julho, mudando-se para o Rio de Janeiro, onde, a
11 de agosto, recebe o título de Conselheiro.

1879
No Rio de Janeiro, Leopoldino Joaquim de Freitas é, também, membro do
Tribunal do Tesouro Nacional ao lado do ministro da Fazenda e dos demais
membros conselheiros, doutor Joaquim Antão, Rafael Arcanjo Galvão e doutor
João Cardoso de Menezes e Souza.

1881
Alcides Cruz é matriculado no Colégio Souza Lobo (situado na rua Gen. Silva
Tavares nº 198, atual Mal. Floriano), dirigido pelo engenheiro geógrafo José
Teodoro de Souza Lobo. Nesse ano é aprovado nos preparatórios de português
(aluno de Souza Lobo) e de inglês (aluno de Frederico Fitzgerald). Na época,
nessa escola lecionavam, também, o padre mestre Vicente Wolfenbüttel (latim,
21

retórica e poética), Fernando Ferreira Gomes (geografia e álgebra), Apeles Porto


Alegre (história) e Demétrio Nunes Ribeiro (álgebra).
Leopoldino Joaquim de Freitas aposenta-se a 28 de maio.

1884
A 18 de julho, Alcides presta exames preparatórios em retórica e é aprovado.
Falece sua avó materna Estefânia Maria da Assunção, a 11 de agosto, com 90
anos de idade.

1885
Participa, a 20 de setembro, da fundação do Club Literário Democrático Vinte de
Setembro, cujos membros declaram que aceitam e assinam o Manifesto
Republicano de 1871; Alcides é designado membro da comissão da organização
dos Estatutos.
A 1º de outubro é eleito 2º secretário do Club Literário Democrático Vinte de Setembro
e membro da comissão de redação, da qual fazem parte Luiz Americano,
Apolinário Porto Alegre, Felicíssimo de Azevedo, João Maia e Christiano Reis.
Leopoldo de Freitas Cruz, irmão mais velho de Alcides, deixa a Escola Militar de
Porto Alegre e segue para o Rio de Janeiro, a fim de concluir os estudos na Escola
Militar daquela cidade.
Alcides recebe a carta de agrimensor na Escola Militar de Porto Alegre.

1886
No dia 14 de julho é distribuído o segundo número da revista mensal Luta, cujo
artigo de honra foi consagrado à data de 14 de julho, e Alcides Cruz participa
com o artigo Bibliographia.
Colabora, a partir desse ano até 1893, com os periódicos O Atleta e O
Contemporaneo, publicando contos e novelas.

1887
Leopoldo Cruz ingressa na Faculdade de Direito de São Paulo.

1888
Às 8 horas da noite de 23 de abril, o Clube Republicano de Porto Alegre realiza,
no salão da Soirèe, sessão solene comemorativa do 96º aniversário da morte de
Tiradentes, presidida por Luiz Leseigneur, presidente da União Republicana.
Alcides Cruz ocupa a tribuna antes de Ernesto Alves, orador oficial do Clube.
22

Em agosto, um grupo de egressos da Escola Militar, dentre eles Alcides Cruz, é


convidado a participar, ao lado dos alunos da mesma Escola, da propaganda
republicana.
Em nota de 23 de novembro, no jornal de Porto Alegre Folha da Tarde, Alcides
Cruz informa que desistiu de relatar as causas da reprovação dos exames de latim,
por ter sido persuadido pelos amigos a não fazê-lo. Entretanto, para provar aos
que “desconhecem o incidente”, publica a tradução do Capítulo IV – Vida
Agrícola, de Tácito, a fim de registrar que a reprovação não foi por falta de
conhecimento.

1889
Empregado da Estrada de Ferro Porto Alegre-Uruguaiana, como amanuense, na
seção de Contabilidade.
Falece em Porto Alegre, no dia 07 de junho, o conselheiro Leopoldino Joaquim
de Freitas, tio de Alcides Cruz. Adelaide, irmã e herdeira do conselheiro, doa à
Biblioteca Pública de Porto Alegre mais de duzentas obras literárias e científicas
do extinto irmão, conforme noticiado a 10 de setembro.
Alcides presta os exames preparatórios e é aprovado em latim, a 04 de novembro,
e em física, química e história natural, a 14 de dezembro.

1890
No dia 1º de janeiro a canhoneira de guerra Camocim, no porto de Porto Alegre,
suntuosamente adornada, recebe grande número de convidados para a cerimônia
do levantamento da bandeira. Às 11h30, o comandante da canhoneira profere
alocução alusiva ao momento. Em seguida, foi servida profusa mesa de doces e
licores, onde levantam brindes Damasceno Vieira, Tito Villalobos, Octacilio de
Oliveira, Alcides Cruz, Benjamin Flores e o comandante Afonso Vicente de
Carvalho.
Em abril é prorrogada por três meses, com vencimento na forma da lei, a licença
de trinta dias concedida pelo diretor engenheiro-chefe da Estrada de Ferro Porto
Alegre-Uruguaiana, para tratar de sua saúde.

1891
Alcides de Freitas Cruz ingressa na Faculdade de Direito de São Paulo.
Designado mesário da 6ª seção do 1º Distrito para as eleições de 05 de maio, para
o Congresso Constituinte do RS, tendo como presidente da mesa Felisberto B.
Ferreira de Azevedo.
Em agosto, doa 33 volumes de obras literárias para a Biblioteca Pública de Porto
Alegre. A maior parte das obras é de autores franceses como Guy de Maupassant,
23

Alphonse Daudet e Zola e títulos dos portugueses Oliveira Martins e Eça de


Queiroz.
Novamente designado mesário, conforme notícia de 29 de agosto, da 4ª seção do
1º Distrito para as eleições do primeiro Conselho Municipal de Porto Alegre,
tendo como presidente da mesa Felisberto B. Ferreira de Azevedo.
A Federação noticia a 10 de outubro a partida do correligionário Alcides Cruz para
Poços de Caldas, MG.
Leopoldo de Freitas Cruz gradua-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais a 31
de outubro.
A 25 de novembro, noticia-se a aprovação plena de Alcides nas cadeiras da 1ª
série da Faculdade de Direito.

1892
Em fevereiro, desafeto do “governicho”, Alcides Cruz é removido, como 1º
escriturário da Estrada de Ferro Porto Alegre-Uruguaiana, para o escritório da
linha da referida estrada.
Ao lado de Apolinário Porto Alegre e Benjamin Flores, Alcides Cruz, a partir de
setembro, integra a Comissão de Crítica Literária, na primeira diretoria da nova fase
do Parthenon Literário, presidida por Aurélio de Bittencourt.
Publica-se sua tradução, do francês, do livro O Jogador, de Th. Dostoievsky, pela
Livraria Americana, Pintos & Cia. É a primeira tradução de obra de Dostoievsky
no Brasil.

1893
Por decreto de 25 de maio é nomeado alferes da 2ª Companhia do 7º Batalhão
de Infantaria da Guarda Nacional de Porto Alegre, sob o comando do capitão
Frederico Linck.
Em junho é designado por Pinto da Rocha, presidente do Centro Republicano,
para, juntamente com Plínio Casado e João Maia, saudar Pinheiro Machado e
Fernando Abbot, como heróis do Inhanduí, por seus feitos em prol da República,
contra os federalistas.
Casam-se em São Paulo, a 17 de junho, Dr. Leopoldo de Freitas e Roma Moreira
da Silva.2

2 Desse enlace nasceram quatro filhos: Léa (falecida solteira a 15/07/1936 em São Paulo/SP, única neta
mencionada no testamento da avó Adelaide, de 1909, quando aquela teria 8 anos de idade), Eudoro (casou-
se com Minervina Maluf, em 1932, era capitão), Murillo (falecido em 1938, ex-escrivão da justiça militar
do Estado de SP, casado com Rosa Montemurro) e Boris. Roma Moreira de Freitas faleceu a 14/10/1936
também em São Paulo. Leopoldo casa-se em segundas núpcias com Lina Eudóxia de Castro.
24

1894
Desde o início do ano, Alcides Cruz integra o 7º Batalhão de Infantaria da
Guarda Nacional, aquartelado no Theatro São Pedro, como alferes assistente da
força. Esse batalhão é organizado e comandado pelo tenente-coronel Marcos
Alencastro de Andrade, à disposição do presidente Júlio de Castilhos, para ser
empregado na Revolução Federalista.
Noticia-se a 27 de abril que, no curso da Revolução Federalista, o 7º Batalhão de
Infantaria da Guarda Nacional regressa a Porto Alegre da expedição para guardar
a ponte sobre o rio Jacuí, realizada de 09 a 27 desse mês. Alcides Cruz participa
da expedição como alferes secretário interino. O 7º Batalhão de Infantaria integra
a 2ª Brigada da Divisão de Porto Alegre, comandada pelo coronel Francisco da
Rocha Callado. É comandante da Divisão de Porto Alegre o coronel Thomaz
Thompson Flores.
Neste ano, Leopoldo de Freitas é preso político, ocupando o cubículo 167 da 7ª
galeria da Casa de Correção de São Paulo.

1895
Alcides exonera-se do emprego na Estrada de Ferro Porto Alegre-Uruguaiana.
É publicado o opúsculo, de sua autoria, “A Propósito da Questão das Missões:
Barão do Rio Branco”, por Carlos Echenique, de Porto Alegre.
A 02 de maio é nomeado 1º Oficial da 2ª Diretoria (contencioso) do Tesouro do
Estado, de acordo com a reorganização dada pelo decreto nº 45 desta data; é
diretor do contencioso o doutor Joaquim Antônio Ribeiro e diretor-geral do
Tesouro Francisco Júlio Furtado. Seu vencimento anual é de 4:500$000.
No edital assinado pelo tenente-coronel José Pereira de Barbedo, presidente da
1ª seção Eleitoral do 1º Distrito de Porto Alegre, na relação nominal dos cidadãos
alistados, consta no número de ordem 36 Alcides de Freitas Cruz, 27 anos, filho
de Manuel Pinto Lacerda da Cruz, solteiro, agrimensor, conforme notícia de 21
de junho.
Em 21 de setembro é eleito 1º secretário do Centro Republicano, em chapa em
que figura como presidente Antônio Caminha e como vice-presidente Frederico
Linck.
Regressa de São Paulo a 11 de setembro. Aprovado na Academia de Direito no
segundo ano do curso jurídico.

1896
No dia 24 de fevereiro embarca para São Paulo para prosseguir seu curso na
Academia de Direito.
25

1897
A partir de janeiro (até meados do ano) é redator do jornal Mercantil, Porto Alegre.
Nomeado oficial do Tesouro do Estado.
A 08 de fevereiro publica no Mercantil o artigo “Com a ponta do pé”, uma
resposta à injúria racial impingida por Isidoro Dias Lopes no jornal A República.
Em fevereiro é eleito deputado estadual, em sua primeira disputa eleitoral, para a
terceira legislatura.
A 12 de abril informa aos leitores do Mercantil que se retiraria do Rio Grande do
Sul para tratar da saúde, deixando temporariamente a direção do jornal ao amigo
doutor Andrade Neves Neto. Nos meses seguintes são publicados artigos de
Alcides intitulados “Da Velha Paulicéia”.
Em São Paulo, a 02 de maio, encabeça a manifestação de apoio, de acadêmicos
da Faculdade de Direito de São Paulo, a Ferreira de Araújo, redator-chefe da
Gazeta de Notícias de São Paulo, em prol da obra de José de Alencar, nos
seguintes termos: Acadêmicos, admiradores de José de Alencar felicitam-vos por terdes
concorrido para a perduração de sua obra, Alcides Cruz, Raul Fernandes, Mello
Guimarães e outros.
No mesmo mês de maio, dia 16, ainda em São Paulo, em nome dos acadêmicos
do 5º ano da Faculdade de Direito, discursa saudando o professor Veiga Filho,
nomeado catedrático da cadeira de História do Direito Nacional.
Assume a direção do jornal O Constitucional, em São Paulo, em junho.
Nos meses seguintes, entre outros, publica artigo na Revista do Brazil, de São
Paulo.
Gradua-se a 25 de novembro em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de
Direito de São Paulo.

1898
Ainda em São Paulo, publica diversos trabalhos na Revista do Brazil.

1899
De volta ao Rio Grande do Sul, a 22 de janeiro é noticiada sua viagem para
Encruzilhada do Sul, onde atua como agrimensor e patrocina diversas causas
judiciais.
A partir de fevereiro, estabelece residência em Encruzilhada do Sul.
A 28 de fevereiro é publicado o artigo Nossa Prosa Recente, na Revista do Brazil de
São Paulo.
Nasce a 25 de junho sua única filha, Zoé.
26

Instalado em Encruzilhada do Sul, a 14 de julho, a imprensa local publica a


seguinte nota social: “Para comemorar essa gloriosa data republicana, a digna sociedade
‘Club dos Assaltantes’ levou a efeito na noite daquele dia um animado assalto. O assaltado foi
o ilustrado Sr. Dr. Alcides de Freitas Cruz, que recebeu os convivas da maneira mais correta
possível, oferecendo-lhes uma lauta e agradável mesa de doces e licores. A festa correu
animadíssima até avançada hora da noite”.

Sempre atuando como colaborador para diversos periódicos, a 06 e 13 de agosto


publica no jornal A Razão, de Encruzilhada, o artigo Município de Encruzilhada.
No dia 27 de agosto, discursa na casa do tenente Gaspar Pires da Fonseca, em
Encruzilhada, por ocasião do assalto (social) realizado pelo Clube dos
Assaltantes.
Regressa a Encruzilhada no dia 03 de setembro, após viagem de serviço a Rio
Pardo.
Dia 20 de setembro, na solenidade de entronização do retrato de Júlio de
Castilhos nos salões da Intendência de Encruzilhada, Alcides é o orador oficial
da homenagem.
Eleito suplente do 2º Secretário da Mesa da Assembleia dos Representantes, cujo
presidente é Gervásio Alves Pereira, a 23 de setembro.
Em outubro ajuíza, no foro de Encruzilhada, ação de petição de herança e
nulidade de inventário, feito de larga repercussão e que se tornou conhecido
como Caso Lima Veiga. A sentença é publicada, em partes, nos dias 13 de
outubro, 19 e 26 de novembro, 03 e 10 de dezembro.

1900
Radicado novamente em Porto Alegre, o doutor Alcides Cruz estabelece
escritório de advocacia, com endereço na rua Gen. Câmara nº 35, no qual terá
como colegas os bacharéis Thomaz Malheiros, Albino José Ferreira Coutinho3 e
Joaquim Maurício Cardoso4.
Nomeado professor da Faculdade de Direito de Porto Alegre a 17 de fevereiro.
Ainda em fevereiro, Leopoldo de Freitas é nomeado juiz distrital da sede do
município de Pelotas.

3 Albino José Ferreira Coutinho era bastante próximo à família, tendo sido testamenteiro da mãe de Alcides,
do próprio Alcides e da esposa dele, Severina.
4 Joaquim Maurício Cardoso (1888-1938) diplomou-se em São Paulo em 1908; deputado estadual pelo PRR
nas legislaturas 1913/16, 1925/28, 1929/30. Apoiou a Revolução de 1930, sendo ministro da Justiça até
1932, quando passou para a oposição. Foi deputado à Assembleia Constituinte pela bancada oposicionista
da Frente Única Rio-grandense (1933/34). Exerceu interinamente o governo do Estado de janeiro a março
1938. Morreu em maio de 1938 em um desastre de avião, quando regressava de uma viagem ao Rio de
Janeiro. Era filho do desembargador Melchisedec Mathusalem Cardoso, amigo e colega de docência de
Alcides Cruz na Faculdade de Direito. (FRANCO, Sérgio da Costa. Dicionário Político do Rio Grande
do Sul – 1821-1937. Porto Alegre: Suliani Letra & Vida, 2010, p. 53-54)
27

A 26 de maio Alcides é nomeado 2º Promotor Público de Porto Alegre.


Na audiência de 28 de junho, Leopoldo de Freitas despede-se do foro de Pelotas
e exonera-se das funções de juiz distrital após duras críticas à sua atuação,
notadamente veiculadas pelo Diário Popular, daquela localidade, por causa da
sentença por ele proferida no processo Zambrano e Sampaio, com a alegação de
ter esta aparecido na imprensa antes de publicada em cartório.
Em 05 de julho, Leopoldo de Freitas embarca em Pelotas com destino a São
Paulo, onde fixa residência.
Em outubro, no dia 09, é eleito suplente do 2º Secretário da Mesa da Assembleia
dos Representantes, cujo presidente é Antônio Soares de Barcellos.

1901
A 22 de janeiro é proclamado pela Comissão Central do Partido Republicano
candidato a deputado estadual pelo 5º Distrito, nas eleições de 11 de fevereiro,
nas quais é eleito deputado estadual para a quarta legislatura. De acordo com o
Boletim Eleitoral da apuração geral, publicado a 09 de março, Alcides Cruz
somou 6840 votos.

1902
No Annuario do Estado do Rio Grande do Sul, em maio, é publicada a letra da música
Tyranna, trazida do interior do Estado por Alcides Cruz, como informam os
comentários da publicação.
Em julho, assume a direção da revista jurídica Gazeta do Foro, função que exerce
até 1905. Fundada, na ocasião, por ele, juntamente com Antônio Marinho
Loureiro Chaves e Aurélio Veríssimo de Bittencourt Junior, a gazeta, mais tarde,
teria o concurso do antigo magistrado Raimundo Alexandre Pereira.
Torna-se suplente do 2º secretário da Mesa da Assembleia dos Representantes, a
25 de setembro, quando foi eleito como presidente Antônio Soares de Barcellos.

1903
Publica, em A Federação, carta aberta, datada de 11 de janeiro, ao doutor Pinto da
Rocha, que o chamou de Corvo do Príncipe Perfeito, na qual rebate as injúrias raciais
a ele dirigidas.
Tal como no ano anterior, a 06 de outubro, é eleito suplente do 2º secretário da
Mesa da Assembleia dos Representantes, sendo presidente Antônio Soares de
Barcellos.
28

1904
No dia 25 de fevereiro, participa da recepção a Pinheiro Machado, o qual chega
a Porto Alegre, vindo do Rio de Janeiro, no paquete Rio Pardo.
Dr. Alcides Cruz fala sobre o Marquês de Barbacena na série de conferências
históricas iniciada a 08 de junho pelo Grêmio Gaúcho.
Em 14 de julho, do Rio de Janeiro, dirige ao jornal A Federação telegrama de
regozijo pelo aniversário da Carta Constitucional do Estado, assim vazado:
“Grande data desperta saudade inolvidável chefe”.
Em 21 de setembro, licencia-se do cargo de Promotor Público para assumir a
cadeira de deputado estadual e tomar parte nas sessões da Assembleia dos
Representantes. É eleito, na sessão de 04 de outubro, suplente do 2º secretário e,
na de 05 de outubro, membro da Comissão de Constituição e Poderes,
juntamente com os deputados Ildefonso Simões Lopes e Longuinho Saraiva da
Costa.
No dia 06 de dezembro, pelo término do ano legislativo, reassume suas funções
de 2º Promotor Público de Porto Alegre.

1905
A 03 de janeiro, de ordem do presidente, convida, na condição de diretor-
secretário do Clube Júlio de Castilhos, os membros da entidade para as
cerimônias de encomendação e sepultamento de dona Honorina de Castilhos.
Publica, em A Federação de 31 de janeiro, o artigo “O problema jurídico da
satisfação do dano”.
Não integra a nominata de candidatos do PRR para as eleições estaduais de 28
de fevereiro de 1905.

1906
Em janeiro é eleito deputado estadual pelo 4º Distrito, na vaga resultante da
renúncia de Arlindo Corrêa Leite, em 27 de outubro de 1905.
É publicado em junho seu novo livro “Vida de Raphael Pinto Bandeira”, pela
Livraria Americana, Pintos & Cia, de Porto Alegre.
No jornal A Federação de 29 de junho é noticiada a despedida ao “distinto amigo
e colaborador” doutor Alcides Cruz, que seguiria no dia seguinte para São Paulo,
Rio e, depois, Europa. Em seu escritório, deixa o doutor Normélio Rosa5 como
substituto.

5 Graduou-se em 1891 pela Faculdade de Direito de São Paulo. Assim como Alcides Cruz, também foi um
dos fundadores da Faculdade de Direito de Porto Alegre, onde lecionou entre 1900-1940.
29

Desde Lisboa, hospedado no “Francfort Hotel”, a 04 de agosto, remete carta a


Borges de Medeiros, falando sobre o encontro que teve com mister Goodchild
na Ilha da Madeira, no qual trataram sobre empréstimos para a construção do
Porto das Torres.
Deixa, por solicitação dos editores, na Livraria Clássica Editora, de Lisboa, para
publicação, a tradução, do inglês, que fez do livro de Goldwin Smitt “Esboço de
História Política dos Estados Unidos”. Alcides Cruz manda, posteriormente,
sustar a publicação por não lhe ter agradado o trabalho.
De volta de Portugal, o jornal Gazeta de Notícias (RJ) publica a 09 de setembro a
informação de que, entre os passageiros que entram no Rio de Janeiro pelo
paquete inglês Amazon, consta o nome do doutor Alcides Cruz.
A 21 de setembro, embarcando no Rio de Janeiro no paquete nacional Prudente
de Morais, partem para o sul a baronesa de Ibiapaba e família, o capitão-tenente
Alfredo Dutra e o doutor Alcides Cruz. No dia seguinte, Alcides encontra a mãe,
Adelaide Leopoldina de Freitas, que embarca em Santos no mesmo paquete.
Em Porto Alegre, o retorno do colaborador de A Federação, Alcides Cruz, da sua
excursão à Europa, é noticiado a 1º de outubro.
No dia 06 de outubro, tem sua eleição reconhecida e toma posse como deputado
estadual representante do 4º Distrito Eleitoral do Estado, na segunda sessão
legislativa da quinta legislatura.

1907
É publicada, pela Livraria do Commercio, de Porto Alegre, sua obra “Epithome
da Guerra entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata”.
Apresenta em dezembro na Assembleia dos Representantes, juntamente com o
deputado Gonçalves de Almeida, emenda orçamentária para a construção de
estátua do marechal Floriano Peixoto, em uma das praças públicas de Porto
Alegre.

1908
A 05 de março é admitido sócio-correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo e em agosto, da Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro.

1909
Falece, em Porto Alegre, a 26 de janeiro, na própria residência (rua Fernando
Machado nº 241), Adelaide Leopoldina de Freitas, com 79 anos de idade, mãe de
Leopoldo de Freitas e de Alcides de Freitas Cruz. Alcides foi o inventariante da
mãe, que deixou a casa na rua Fernando Machado e uma meia-água na rua da
30

Concórdia nº 123 (atual José do Patrocínio) para ele e seu irmão, Leopoldo, assim
como legados à neta Léa de Freitas (filha de Leopoldo, residentes em São Paulo).
Em julho, vem a lume a tradução de Alcides Cruz da obra de Thomas Cooley,
“Princípios Gerais de Direito Constitucional dos Estados Unidos da América do
Norte”, editada em Porto Alegre por Carlos Echenique, Livraria Universal.
A 22 de julho, na Faculdade de Direito de Porto Alegre, assina o termo de
compromisso de sua promoção de lente da 3ª seção a lente catedrático da 1ª
cadeira do 1º ano (filosofia do direito).
Participa no dia 07 de setembro do 1º Congresso Brasileiro de Geografia,
realizado no Rio de Janeiro.
Na Assembleia, propõe, a 11 de outubro, seja encaminhada aos representantes
rio-grandenses no Congresso Nacional a moção para a preservação das matas do
Estado.
Ainda em outubro oferece razões de apelação na defesa de Victor de Brito, em
processo criminal, no qual o conhecido médico é acusado pelo promotor João
Neves da Fontoura do delito de revelação de segredo profissional.
Em discurso pronunciado em novembro, aborda a questão do escravo alforriado
norte-americano, Dred Scott, que afirmava o não-reconhecimento dos negros
como homens pelos redatores da Constituição americana.

1910
Em fevereiro é eleito deputado estadual para a sexta legislatura.
Na sessão da Assembleia Legislativa do dia 10 de outubro, foi justificada, com
discurso do deputado Alcides Cruz, a seguinte moção: A Assembleia dos
Representantes do Rio Grande do Sul associa-se cordialmente ao Congresso Nacional na sua
manifestação de apreço à gloriosa Nação Portuguesa pelo estabelecimento do regime republicano
naquela Pátria. A repercussão foi expressiva, chegando ao Congresso Nacional e
tornando-se conhecida por “Moção Alcides Cruz”.
Em nome do Partido Republicano, dia 24 de outubro, Alcides Cruz e o
acadêmico Renato Costa foram os oradores na romaria ao túmulo de Júlio de
Castilhos, liderada pelo presidente Carlos Barbosa.
No dia 27 de outubro, Alcides Cruz, Getúlio Vargas e José Antônio Flores da
Cunha impetraram, perante o Superior Tribunal de Justiça, recurso de habeas
corpus em favor de Mello Guimarães, Amyntas Maciel e outros, acusados de
assassinarem um irmão do coronel João Francisco Pereira de Souza.
Em dezembro, é exposto à venda o livro de Alcides Cruz “Noções de Direito
Administrativo Brasileiro”, editado pela Germano Gundlach, de Porto Alegre.
31

1911
Leopoldo Cruz publica no Almanak Litterario e Estatistico do Rio Grande do Sul
importante trabalho sobre o conselheiro Leopoldino Joaquim de Freitas.
No mês de janeiro, ajuíza no foro de Porto Alegre ação em prol de Antônio
Augusto Borges de Medeiros, Victorino Borges de Medeiros, Manoel Inácio
Evangelista e Luiz Albert Matzenbacher contra os irmãos Porto, conhecida como
a Questão das Águas do Ribeiro. A sentença é prolatada a 21 de maio pelo juiz
Francisco de Souza Ribeiro Dantas, acolhendo as razões de Alcides Cruz.
A 9 de julho morre Graciano de Azambuja e Alcides Cruz assume a direção do
Annuario do Estado do Rio Grande do Sul.
Eleito 1º secretário da Mesa da Assembleia a 22 de setembro, tornando-se
presidente o deputado Barreto Vianna.
No mês de novembro, pelo ministro da Fazenda, Alcides Cruz é nomeado
representante do Patrimônio Nacional nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná
e Santa Catarina, encarregado do levantamento dos bens próprios nacionais, com
o ordenado mensal de oitocentos mil réis.

1912
Viaja a Santo Antônio da Patrulha em 10 de fevereiro, como árbitro da questão
de limites entre os municípios de Santo Antônio da Patrulha e Conceição do
Arroio. Permanece até dia 21.
Em agosto vai ao Rio de Janeiro, sendo noticiado no dia 07 que “a sua viagem é
motivada, principalmente, por incômodo de saúde”; no mês seguinte, segue
viagem ao Rio da Prata.
A 25 de outubro Alcides retorna de Encruzilhada do Sul, onde esteve por
motivos profissionais.
A 07 de dezembro vai para Santo Amaro e depois a Caçapava do Sul, onde
também se encontrava o deputado Walmor Lima. No dia 18 hospeda-se em
Encruzilhada do Sul, em casa do coronel Avelino Borges, chefe do Partido
Republicano local.

1913
Eleito deputado estadual para a sétima legislatura em fevereiro.
Em carta de 11 de fevereiro remetida a Borges de Medeiros, Alcides solicita
intercessão do chefe para colocação de “sua prima” Emiliana Silveira de Freitas,
professora do Colégio Elementar de Encruzilhada do Sul, que se acha em Porto
Alegre para cuidar da mãe, em tratamento médico. Alcides demonstra interesse
particular, justificando ser a mãe de Emiliana a pessoa que ajudou a criá-lo e filha
de um famoso farrapo, compadre de Bento Gonçalves.
32

Decreto nº 1940, de 28 de fevereiro, do presidente Borges de Medeiros,


homologa o convênio celebrado entre os municípios de Santo Antônio da
Patrulha e Conceição do Arroio para fixação dos respectivos limites, nos termos
do laudo arbitral de Alcides Cruz.
Em junho é designado, juntamente com o general Oscar de Miranda, pelo doutor
Ramiz Galvão, presidente da Comissão Executiva do Primeiro Congresso
Nacional de História, delegado desta no Rio Grande do Sul.
A 03 de julho o Superior Tribunal do Estado dá provimento ao agravo dos
Irmãos Porto, reduzindo o valor da indenização pedida pelos autores na Questão
das Águas do Ribeiro. Comentários sobre iminente duelo entre Diogo Velho e
Alcides Cruz em razão das divergências na Questão das Águas do Ribeiro são
publicados a 08 de julho.

1914
Em maio sai a lume a segunda edição, corrigida e ampliada, da obra sobre direito
administrativo, com o título “Direito Administrativo Brazileiro”, contendo 264
páginas.
No dia 29 de junho é eleito secretário da Liga Rio-grandense contra a tuberculose
e designado para organizar os estatutos.
Participa, a 07 de setembro, do Primeiro Congresso de História Nacional, no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com os ensaios “A Incursão de
Fructuoso Rivera às Missões Brasileiras ou A Campanha de 1828” e “O Antigo
Forte de Santa Tecla”. Após o Congresso, os ensaios são publicados em livro,
pela Livraria do Globo, de Porto Alegre, sob o título “I - A incursão de Frutuoso
Rivera às Missões Brasileiras ou A Campanha de 1828. II - O Antigo Forte de
Santa Tecla”.
Orador oficial a 20 de setembro, no evento comemorativo da Revolução
Farroupilha no Grêmio Gaúcho de Porto Alegre.
Em 15 de novembro, também é o orador nos festejos comemorativos dos 25
anos da Proclamação da República.
Na homenagem oferecida em 1º de dezembro pelo presidente do Estado Borges
de Medeiros à Assembleia dos Representantes, realizada no picadeiro da Brigada
Militar, Alcides Cruz agradece pela festa, em nome da Assembleia.

1915
Em janeiro, o PRC do Rio Grande do Sul apresenta a nominata de seus
candidatos ao Senado e à Câmara Federal para as eleições desse ano, na qual está
incluído o nome de Alcides Cruz como candidato avulso a deputado federal. A
candidatura frustra-se por motivos de saúde.
33

A 05 de março viaja a serviço para Passo Fundo.


No mesmo mês, recebe o diagnóstico de tuberculose pulmonar e transfere seu
escritório da rua General Câmara nº 35 para sua residência na rua Fernando
Machado nº 1, Alto da Bronze.
Como representante dos concessionários da Loteria do Estado (Zambrano & La
Porta), a 09 de junho submete ao governo do Estado representação contra
empresa construtora de Rafael Bandeira Teixeira.
Em junho casa sua única filha, Zoé Pereira da Cruz, com João Inácio de
Barcelos6.
A 10 de julho registra o testamento.
Em viagem para o Rio de Janeiro, a 22 de agosto, é vítima do naufrágio do
Paquete Orion, do Lloyd Brasileiro, na costa de Santa Catarina. Resgatado, vai
por terra a São Paulo em visita ao irmão Leopoldo de Freitas7.
A 08 de setembro comparece ao velório do senador Pinheiro Machado, no
palacete do Morro da Graça, no Rio de Janeiro, e oferta uma coroa de flores em
cuja fita lê-se Veneração e Apreço de Alcides Cruz.
Ainda no Rio de Janeiro é “acometido de um grave derramamento pleural”, mas
que consegue controlar. Em Montevidéu, para onde se dirige na sequência, a fim
de deixar sua obra sobre Frutuoso Rivera para ser publicada em espanhol,
novamente a doença se manifesta.
Retorna a Porto Alegre a 24 de setembro.

1916
Casa-se em Porto Alegre a 09 de março com Severina Pereira dos Santos.
Dia 14 de março falece em Porto Alegre, vítima de tuberculose pulmonar.
A 29 de abril nasce a única neta, Alcídia.8
A 27 de julho falece a esposa, Severina Pereira dos Santos, em Porto Alegre,
também vitimada pela tuberculose pulmonar.

6 João Inácio de Barcelos nasceu em 1897, Porto Alegre, falecendo a 09/04/1932.


7 Último encontro dos dois irmãos. Leopoldo falece a 26/01/1940 em São Paulo, tendo colaborado para
diversos periódicos no País e na América do Sul; atuou como bibliotecário da Escola Normal da Praça da
República; foi cônsul honorário da Guatemala. Leopoldo também foi sócio-fundador do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) e do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo.
8 Alcídia Cruz de Barcellos casa-se a 14/5/1936 em Porto Alegre com João van Burg. O casal não teve
filhos; ela falece a 03/02/1940 de tuberculose na mesma cidade.
34

1917
Vem a lume, em edição póstuma, “Teoria e Prática da Demarcação e da Divisão
de Terras”, editado em São Paulo pela Francisco Alves.

Prêmio Alcides Cruz


O Prêmio Alcides Cruz era uma distinção conferida pela Faculdade de Direito de Porto
Alegre ao aluno do quinto ano letivo que apresentasse “por escrito o melhor trabalho
original versando sobre Direito Administrativo ou Ciência da Administração”. 9

1936
Conferido a Érico Itamar Baumgarten, por seu ensaio “Direitos Subjectivos
Publicos”, publicado em 1937 pela Editora do Globo.

1937
Conferido a Geraldo Otávio Brochado da Rocha.

1949
O jurista João Leitão de Abreu, por seu ensaio “A Discrição Administrativa”,
publicado na Revista de Direito Administrativo, v. 17, da Fundação Getúlio Vargas,
recebe o Prêmio Alcides Cruz, da Faculdade de Direito da Universidade do Rio
Grande do Sul.

1950
O jurista Paulo Brossard, por seu ensaio “Resgate ou Encampação”, publicado
na Revista de Direito Administrativo, v. 19, da Fundação Getúlio Vargas, recebe o
Prêmio Alcides Cruz, da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande
do Sul.

9 SANTOS, João Pedro dos. A Faculdade de Direito de Porto Alegre: subsídios para sua História. Porto
Alegre: Síntese, 2000. p. 153. Recebiam uma medalha de ouro e um diploma de pergaminho.
35

Figura 1 - Registro de casamento Joaquim Pedro de Freitas e Estefânia Maria da


Assunção, avós maternos de Alcides de Freitas Cruz

Fonte: AHCMPA. Registro de Casamentos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 6,
fls. 45.
36

Figura 2 – Registro de batismo de Alcides de Freitas Cruz

Fonte: AHCMPA. Registro de Batismos de Livres da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre,
Lv. 17, fls. 142v.
37

A sinopse que segue baseia-se em levantamento bibliográfico, hemerográfico


e documental. Não foram elencados todos os textos escritos por Alcides Cruz e nem
todos os periódicos para os quais colaborou. Buscamos arrolar os livros, artigos e outras
publicações de sua autoria, assim como suas traduções.

Parcialmente, o levantamento dos artigos e publicações em revistas e jornais


está disponível na presente obra e também nos dois e-books organizados pelo IHGRGS.
São eles:

- Mestiço, mulato ou negro10

- Notas de leituras e outros escritos11

Sobre a sua iniciação literária, Alcides Cruz12 escreve:

Fiz minhas primeiras armas, é certo que muito tarde, quando já eu tinha
dezenove anos, n’A Luta, em 86, ao lado de Domingos Nascimento,
Alcântara Filho, Soares dos Santos, J. Marques da Cunha etc., todos hoje
oficiais do exército e, então, ilustradíssimos alunos da Escola Militar,
redatores daquele excelente periódico.
Depois, num período de sete anos (1886-1893), tenho colaborado n’O Atleta
e n’O Contemporâneo, onde publiquei vários contos e novelas; no Jornal do
Commercio, do Desterro e no 15 de Novembro, da Cachoeira, na qualidade
de correspondente em Porto Alegre; na Folha da Tarde, onde fui um dos mais
dedicados auxiliares da redação; no Jornal, onde tem aparecido alguns ensaios
e, recentemente, n’A Federação, com diversos ensaios de crítica política e
literária e na Folha Nova, onde já fui experimentado na manipulação desde
a do artigo político até a da crônica teatral[...]
Fora disso, na minha obscura bagagem literária, trago uma tradução, de
sociedade com Domingos Nascimento, da comédia em 3 atos Le bouton de
rose, por E. ZOLA.
E mais: as traduções de dois romances de TOURGUENEFF, uma das
quais, a de Clara Militch, dada em folhetim pela Folha da Tarde e a outra,
a de Les eaux printannières, surgida com o título A bella Gemma, pelo
rodapé da Folha Nova; de uma novela de GUY DE MAUPASSANT,
Yvette, publicada no Jornal do Desterro, e a do Pêcheur d’Islande, romance
de PIERRE LOTI, começada a sair pela Folha da Tarde, numa época em
que esse grande romancista era desconhecido no Brasil e quando a sra. d.
Maria Amália ainda o não traduzira.

10 CRUZ, Alcides. Mestiço, Mulato ou Negro. Porto Alegre: IHGRGS, 2017. Disponível em:
<http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-
%20Mestico,%20mulato%20ou%20negro.pdf>.
11 CRUZ, Alcides. Notas de Leituras e outros Escritos. Porto Alegre: IHGRGS, 2017. Disponível em:
<http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-
%20Notas%20de%20leituras%20e%20outros%20escritos.pdf>.
12 CRUZ, Alcides. Traços Côr de Rosa (Versos por Zeferino Brasil). A Federação, 4 maio 1893.
38

É certo que muitos escritos de Alcides foram encontrados. Porém, é mais


certo que ainda há muito a descobrir.

1 Livros e Opúsculos

A propósito da Questão das Missões: Barão do Rio Branco. Porto Alegre: Carlos Echenique,
Livraria Universal, 1895.
Vida de Raphael Pinto Bandeira. Porto Alegre: Livraria Americana, Pintos & Cia., 1906.
Epithome da Guerra entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata. Porto Alegre: Livraria
do Commercio, Sousa & Barros, 1907.
COOLEY, Thomas. Princípios Gerais de Direito Constitucional dos Estados Unidos da América
do Norte. Tradução por Alcides Cruz. Porto Alegre: Carlos Echenique, Livraria Universal,
1909.
Noções de Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Germano Gundlach, 1910.
Direito Administrativo Brazileiro. 2. ed. corr. e ampl. , 1914.
A incursão de Frutuoso Rivera às Missões Brasileiras ou A Campanha de 1828; O Antigo Forte de
Santa Tecla, os dois títulos reunidos em uma brochura. Porto Alegre: Globo, 1914.
Incursión del General Fructuoso Rivera as las Misiones. Traduzido para o espanhol e anotado
por Doroteo Marquez Valdés, póstumo. Montevidéu: Claudio Garcia, 1916.
Teoria e Pratica da Demarcação e da Divisão de Terras, publicação póstuma. São Paulo, Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1917.

2 Artigos

A LUTA, órgão dos alunos da Escola Militar, Porto Alegre


Bibliographia, publicado na edição de julho de 1886.
A propósito do Elogio mutuo, artigo em defesa de Valentin Magalhães, diretor de A
Semana, do Rio de Janeiro, publicado na edição de agosto de 1886.
A FEDERAÇÃO, Porto Alegre
Quincas Borba, comentário sobre o romance de Machado de Assis publicado em duas
partes, nos dias 12 e 14 de maio de 1892.
Assumptos Politicos, artigo publicado em 18 de agosto de 1892.
Ainda a Questão dos Chins, artigo em três partes, publicado dias 16, 17 e 19 de setembro
de 1892.
Literatura e Política, ensaio publicado em quatro partes, nos dias 23, 24 e 28 de janeiro e 9
de fevereiro de 1893.
Livros, artigo sobre a poesia de Zeferino Brasil, publicado em duas partes em 3 e 4 de
maio de 1893.
39

Artes, artigo sobre o pintor Pedro Weingärtner, publicado em dia 20 de maio de 1893.
A Ilha de Santa Catharina, por Virgílio Várzea, recensão publicada em 26 de agosto de 1900.
Vestígios da Civilização Missioneira na Exposição, artigo sobre aspectos da história das
Missões Orientais, publicado em três partes em 17, 18 e 19 de março de 1901.
Digressão Histórica, artigo em que comenta pontos de vista de Clóvis Bevilaqua sobre a
campanha da Cisplatina, publicado em 4 de dezembro de 1902.
Carta Aberta ao dr. Pinto da Rocha, sobre irrogação de injúria racial, datada de 11 de
janeiro de 1903 e publicada em 12 de janeiro de 1903.
Denúncia, como promotor público, contra servidores extrajudiciais de Viamão, publicada
na íntegra em 10 de setembro de 1904.
Da satisfação do damno no juiso criminal, estudo jurídico publicado em cinco partes, nos dias
14 e 15 de outubro e 8, 10, 14 e 22 de novembro de 1904.
O problema jurídico da satisfação do damno, artigo jurídico publicado em 31 janeiro de 1905.
Guerra da Cisplatina, crítica historiográfica, publicada em três partes em 10 e 19 de janeiro
e 1º de fevereiro de 1907.
Razões de Apelação na defesa de Victor de Brito, em processo crime em que aquele médico
é acusado, pelo Promotor João Neves da Fontoura, do delito de revelação de segredo
profissional, publicada na íntegra no dia 11 de outubro de 1909.
Discurso pronunciado na Assembleia dos Representantes na sessão de 16 de novembro
de 1909 e publicado no dia 13 de dezembro de 1909.
A Magistratura, artigo sobre o discurso pronunciado na Assembleia dos Representantes,
na sessão de 16 de novembro de 1909, 19 de dezembro de 1909.
Discurso em homenagem a Júlio de Castilhos, perante seu monumento tumular, 1910.
Questão do Habeas Corpus, comentário jurídico e político justificando o não cumprimento
do “habeas corpus” concedido pelo STF ao Conselho Municipal do Distrito Federal,
publicado, em três partes, em 29 e 30 de março e de abril de 1911.
Júlio de Castilhos, perfil, de 29 de junho de 1911.
A Nova Lei Eleitoral, estudo jurídico, publicado em quatro partes, em 10, 11, 13 e 24 de
junho de 1913.
Troco Miúdo, resposta à irrogação de ofensa racial de Diogo Velho Cavalcanti de
Albuquerque, publicada a 9 de julho de 1913.
A Carestia da Vida, artigo de economia, publicado, em duas partes, nos dias 8 e 11 de
março de 1913.
Discurso pronunciado na Assembleia dos Representantes na sessão de 29 de novembro
de 1913, publicado em 13 de dezembro de 1913.
Discurso no Grêmio Gaúcho, como orador oficial nas comemorações da passagem da
data magna da República de Piratini, feito no dia 20 de setembro de 1914, publicado a
22 de setembro de 1914.
Discurso, em nome da Assembleia, agradecendo ao presidente do Estado, Borges de
Medeiros, pela homenagem por ele oferecida à Assembleia dos Representantes, no
picadeiro da Brigada Militar, publicado em 1º de dezembro de 1914.
A intervenção no Estado do Rio, artigo de cunho político e jurídico, publicado, em duas
partes, nos dias 5 e 8 de janeiro de 1915.
40

REVISTA DO BRAZIL, São Paulo


Litteratura Brasileira – Sertão, estudo sobre o romance de Coelho Netto; primeira parte
publicada na Revista do Brazil, ano I, nº 2, de 30 de julho; segunda parte publicada na
Revista do Brazil, ano I, nº 3, de 30 de setembro de 1897 e terceira parte publicada na
Revista do Brazil, ano I, nº 8, de 30 de fevereiro de 1898.
Simples Referências, artigo sobre a obra de José Vicente Sobrinho, ano 1, n. 10, 30 abr.
1898.
Nossa Prosa Recente, ano 2, n. 2, 30 ago. 1898.
Nossa Prosa Recente, ano 2, n. 4, 30 out. 1898.
Nossa Prosa Recente, ano 2, n. 3, 28 fev. 1899.
A NAÇÃO, São Paulo
Do Sul (1), crônica publicada em 10 set. 1897.
Do Sul (2), crônica publicada em 12 set. 1897.
A RAZÃO, Encruzilhada do Sul
Município de Encruzilhada, artigo publicado em duas partes, nos dias 6 e 13 ago. 1899.
CORREIO PAULISTANO, São Paulo
Pequenas Notas de Viagem – por São Paulo capital e metrópole, conjunto de cinco crônicas
publicadas no nos dias 29 e 30 de novembro e 4, 5 e 8 de dezembro de 1904.
REVISTA RENASCENÇA, Rio de Janeiro
A Morte do Marechal Abreu, excerto da Epithome, publicado em julho de 1907.
ARCHIVO JUDICIARIO, Porto Alegre
Da Demarcação, ensaio jurídico publicado em duas partes na Revista Archivo Judiciario, v.
I, fasc. I e II, Porto Alegre, Livraria do Globo, janeiro e março de 1913.
Decisão arbitral na Questão de Limites entre Conceição do Arroio e Santo Antônio da Patrulha,
prolatada em 4 de maio de 1912 - Porto Alegre: Livraria do Globo, v. I, fasc. II, mar.
1913.
Da Divisão de Terras, ensaio jurídico - Porto Alegre: Livraria do Globo, v. I, fasc. III, maio
1913.
Apostila a parecer de Lacerda de Almeida, em ação de divisão de terras, que responde à
questão se a ação de divisão de terras pode ser intentada só ou cumulada com a de
demarcação - Porto Alegre: Livraria do Globo, v. I, fasc. III, maio 1913.
Parecer sobre contrato de corrida de cavalos, juntamente com Mauricio Cardoso - Porto Alegre,
Livraria do Globo, v. I, fasc. III, maio de 1913.
ANNUARIO DO RIO GRANDE DO SUL, Porto Alegre
Município de Encruzilhada do Sul, 1901.
A Tyrana (Poesia Popular Rio-grandense), 1902.
Ligeiro esboço corographico do município de Gravatahy, 1903.
Vida de Raphael Pinto Bandeira – notas, 1904.
Vida de Raphael Pinto Bandeira, 1906.
41

A Fundação de Porto Alegre, comentários críticos à 2ª edição da obra de Augusto Porto


Alegre, 1911.

3 Traduções

Livros
O Jogador, Th. Dostoiewsky, tradução do francês (Porto Alegre: Livraria Americana,
Pintos Cia., 1892).
Esboço de História Política dos Estados Unidos, Goldwin Smitt, tradução do inglês (Lisboa:
Livraria Clássica, 1906). A edição foi sustada por determinação do tradutor.
Clara Militch, Ivan Tourgueneff, tradução do francês, folhetim da Folha da Tarde, de Porto
Alegre.
Les eaux printannières, Ivan Tourgueneff, tradução do francês com o título A bella Gemma,
folhetim da Folha Nova, de Porto Alegre.
Yvette, Guy de Maupassant, tradução do francês, folhetim do Jornal, do Desterro (atual
Florianópolis).
Pêcheur d’Islande, Pierre Loti, tradução do francês, folhetim da Folha da Tarde, de Porto
Alegre.

Capítulo de livro
Topografia da Região Missioneira, Max Beschoren, tradução do alemão, capítulo XI da obra
Beitrage zur Näheren Kenntnis der Brasilianischen Provinz São Pedro do Rio Grande
do Sul, Revista geográfica Pettermanns Mittelungen, suplemento 69, Gotha, 1889;
Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para 1908, 1907.
Peça de teatro
Le bouton de rose, comédia em três atos, E. Zola, tradução do francês, juntamente com
Domingos Nascimento, Porto Alegre, s/d.
Capítulo em obra coletiva
Pequenas notas de viagem por São Paulo. In: IHGRGS; IHPF; IHGGV (Orgs.). Sobre
trens e viagens: crônicas selecionadas: Porto Alegre, Passo Fundo: IHGRGS, 2017.
Crônicas publicadas no jornal Correio Paulistano entre novembro e dezembro de 1904 e
compiladas por ocasião do I Fórum Sul-brasileiro de Institutos Históricos – Ferrovia:
território, sociedade e memória (Passo Fundo, 18 a 21 de maio de 2017).

4 Entrevista

O DIA, Florianópolis
O Naufrágio do Orion, entrevista publicada em 24 ago. 1915.
42

Figura 3 – Capas de algumas obras de Alcides Cruz

Fonte: IHGRGS
43

Alcides Cruz
E sua época
Paulo Roberto Staudt Moreira*
Vanessa Gomes de Campos **

Em 19 de fevereiro de 1916 o jornal negro O Exemplo, editado na capital do


Estado do Rio Grande do Sul, publicou uma nota anunciando o passamento de um ilustre
indivíduo:

Dr. Alcides Cruz. Teve fim à 0 hora de segunda-feira última a trajetória


terrena da existência de Alcides Cruz, erudito preceptor de coisas de direito
em a faculdade desta Capital e conhecidíssimo talento de historiador patrício.
Nascido em 1867 nesta capital, o recém-extinto fora em sua juventude estudar
em São Paulo, onde fez brilhante curso jurídico.
Volveu em seguida ao estado natal e, envoldendo-se em política, tomou posição
definida e saliente no seio do partido castilhista.
Patriota até quase ao nativismo, o dr. Alcides Cruz era investigador devotado
dos homens e cousas do passado rio-grandense, tendo escrito a propósito deles,
trabalhos de alto valor.
Era autor e tradutor de várias obras, o que lhe facultou grande renome, além
da honra de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Já de há algum tempo era também deputado estadual, e no exercício de tal
mandato salientou-se em ocasiões várias seu extraordinário preparo
intelectual.
O ilustre homem público deixa viúva a Exma. Sra. d. Severina Pereira da
Cruz. Deixa também um filho maior, o sr. José Pereira da Cruz.
Às cerimônias de seu sepultamento, realizado às 16 horas de terça-feira,
compareceu o mundo oficial e representantes de todas as classes sociais.13
Talvez por erro de impressão os jornalistas d’O Exemplo se enganaram no
nome e gênero do rebento de Alcides. Alcides e Severina sacramentaram o seu

* Professor da Unisinos, doutor em História (UFRGS), bolsista produtividade CNPq. Atual presidente da
ANPUH/RS. Contato: moreirast@terra.com.br
** Graduada em História (PUCRS) e Arquivologia (UFRGS), historiadora do Arquivo Histórico da Cúria

Metropolitana de Porto Alegre e arquivista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
Contato: vanessagdecampos@gmail.com
13 O Exemplo. Jornal do Povo. Porto Alegre, ano 1, n.11, 19 fev. 916.
45

amasiamento naquele mesmo ano em que ambos morreram; e tiveram apenas uma filha,
chamada Zoé. Além de Zoé, Severina tinha de uma relação anterior duas outras filhas,
Fidelcina e Antelina. O pequeno obituário, principalmente se comparado ao que saiu nas
páginas do jornal republicano A Federação14, não transmite muito afeto entre os
periodistas e o ilustre falecido. Na verdade, o nome de Alcides Cruz pouco apareceu no
jornal, fora esta comunicação de sua morte. O motivo de isso nos provocar
estranhamento ficará claro ao longo das próximas páginas.

Nascido em Porto Alegre no ano de 1867, mesma cidade onde faleceu em


1916, Alcides de Freitas Cruz era o filho mais novo de Manoel Pinto Lacerda da Cruz e
Adelaide Leopoldina de Freitas. Órfão de pai com pouco mais de um ano de vida, foi
criado pela mãe e pelo tio materno, Leopoldino Joaquim de Freitas.

Aluno de renomados professores provinciais, como Fernando Gomes e Souza


Lobo, Apeles Porto Alegre e Demétrio Nunes Ribeiro, em 1885 Alcides recebia a carta
de agrimensor pela Escola Militar de Porto Alegre.

A trajetória de Alcides não pode ser considerada comum: em 1891, com a


idade de 24 anos, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, caminho regular dos
homens ilustres do Estado. Em 26 de agosto de 1891, uma notícia de A Federação
informava que Alcides Cruz doava livros para a Biblioteca Pública. A exposição crescente
dessa figura - desenrolando-se o fio de Ariadne através da busca pelo seu nome -
possibilitou-nos entender o percurso traçado e percorrido. É a força do mapeamento, a
partir do nome, que vai inserindo este indivíduo em um contexto que consideramos
destacar.

Mantendo atividades políticas em meio à escrita de caráter literário, Alcides


Cruz revelava-se um homem de seu tempo, amante das letras e de “extraordinário
preparo intelectual”. Antes do significativo marco de sua carreira pública político-
literária, que foi a direção do jornal Mercantil em nova fase do periódico, Alcides publicava
artigos em diversos jornais e revistas, em geral sob o tema da crítica literária. Não é de se
espantar que sua formação ilustrada lhe tenha rendido ser o primeiro tradutor de
Dostoievsky no Brasil. O livro “O Jogador”, traduzido do francês, foi publicado em 1892
pela Livraria Americana, Pinto & Cia. de Porto Alegre. Em 1895, enquanto cursava
Direito, publicou o opúsculo intitulado “A propósito da Questão das Missões: Barão do
Rio Branco”, pela Livraria Universal e Carlos Echenique, de Porto Alegre, cuja figura lhe
provocava admiração.15

Político, professor, jornalista, historiador, homem ilustrado, de forte


personalidade, Alcidez Cruz é uma dessas figuras que provocam admiração e estimulam
o trabalho do historiador sobre seu contexto. É o que vamos conhecer.

14 A Federação. Porto Alegre, ano 33, n. 61, 14 mar. 1916.


15 CRUZ, Alcides. A propósito da Questão das Missões: Barão do Rio Branco. Porto Alegre: Livraria Universal,
Carlos Echenique, 1895.
46

1 Primeiros contatos com Alcides

Em setembro de 1916, dois a pedidos foram publicados no Diário do Interior,


periódico publicado em Santa Maria (RS). O primeiro, anônimo, denunciava que um
mulato, morador na cidade, queria – por iniciativa própria – casar com uma moça, mas a
família dela se opunha.16 Dias depois outra nota foi publicada, desta vez assinada por
Claudeonor Martins de Souza, que dizia viver de seu trabalho de oficial de alfaiate e que
realmente havia tratado casamento, sem sedução alguma e com total acordo da moça.
Claudeonor encerrava sua resposta dizendo:

Quanto ao epíteto injurioso de mulato com que me pretendem diminuir, ocorre-


me a lembrança de uma frase do ilustre e saudoso dr. Alcides Cruz: ‘Não sei
que vantagem há de chamar-se mulato a um homem que não tem vergonha de
o ser’.17
Membro do associativismo negro local – como a Irmandade do Rosário –,
Claudeonor usou como argumento a autoafirmação étnico-racial de um indivíduo negro
morador da capital do Estado, que havia morrido naquele mesmo ano. Alcides Cruz, de
Porto Alegre, faleceu na mesma cidade no ano em que Claudeonor assumiu orgulhoso o
epíteto de mulato.

Os laços estabelecidos pela Irmandade do Rosário e as redes criadas pelo


espírito associativo também foram responsáveis pela formação de uma
consciência social e racial, como a que foi expressa pelo oficial de alfaiate
Claudeonor Martins de Souza, que não tinha vergonha e ridicularizava o fato
de ter o epíteto de mulato. Sua autoafirmação é uma indicação de como as
associações negras contribuíram para atribuir conotações positivas à epiderme
não-branca. O fato é que esses indivíduos enfrentaram as dificuldades de seu
tempo e protagonizaram suas histórias e das instituições que criaram.18
O pronunciamento público do alfaiate negro Claudeonor Martins de Souza
mostra as conexões do associativismo negro regional e a identificação/reconhecimento
de lideranças emblemáticas. Localizamos três textos do professor Alcides Cruz
posicionando-se em embates jornalísticos a respeito de sua cor, item que julgamos
geralmente desconsiderado historiograficamente na análise de sua trajetória,
normalmente aparecendo este indivíduo invisibilizado de sua posição étnica e racial. Ser
deputado e professor universitário invisibilizou o pertencimento racial de Alcides Cruz,
mas essa ausência de cor não corresponde às suas auto-percepções. Alcides orgulhava-se
de suas heranças afrodescendentes, as quais conhecia perfeitamente pela memória
familiar e pesquisas que ele próprio encetou em arquivos diversos. Como achamos que
ele mesmo gostaria, evitaremos os circunlóquios e o chamaremos da forma como ele se via

16 “Vai para alguns meses que o mulato conhecido pela alcunha de Nenê Epifano seduziu uma menor
pertencente a uma família síria aqui residente. Agora entendeu ele de casar, de motu-próprio, mas a família
da moça se opõe. Nenê, muito desgostoso, foi pedir a intervenção da autoridade, que não pode intervir
num caso de ação privada, como esse. Só será possível a intervenção policial no caso de representação da
parte ofendida, o que parece não se dará”. (Diário do Interior. Santa Maria, ano 6, n. 223, 24 set. 1916. Fonte:
AHSM).
17 GRIGIO, Enio. No Alvoroço da Festa, Não Havia Corrente de Ferro Que os Prendesse, nem Chibata que Intimidasse:
a comunidade negra e sua Irmandade do Rosário (Santa Maria, 1873-1942). São Leopoldo, 2016. Tese
(Doutorado) - PGH/Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2016. p.199.
18 Ibid., p. 199.
47

“pelo que sou, mulato ou negro”. Afinal, o professor Alcides de Freitas Cruz parece
configurar-se como daqueles indivíduos, como Machado de Assis, Aurélio Viríssimo de
Bittencourt e Lima Barreto, que eram afrodescendentes por “origem e opção” 19.

2 A família Cruz

O professor e advogado Alcides de Freitas Cruz faleceu à meia-noite do dia


23 de março de 1916, em sua casa na rua Coronel Fernando Machado nº 1, no primeiro
distrito de Porto Alegre, de tuberculose. Ele tinha 49 anos, era casado e, segundo o
registro de óbito, cor parda.20 Alcides foi batizado na Catedral de Porto Alegre em 13 de
outubro de 1867, no mesmo ano em que havia nascido, aos 14 de março. Era filho
legítimo de Manoel Pinto Lacerda da Cruz (natural de Pernambuco) e Adelaide
Leopoldina de Freitas (natural desta Província), neto paterno de Antônio Pinto Lacerda
e Maria da Conceição dos Prazeres (naturais de Pernambuco), neto materno de Joaquim
Pedro de Freitas e Estefânia Maria da Assunção (naturais desta Província). Foram
padrinhos José Constantino da Rocha e Rita Luiza de Freitas. 21

Chama a atenção que, se observarmos os registros de batismos em torno ao


de Alcides, notaremos outros quatro, todos assinados pelo mesmo pároco, o Cônego
José Joaquim da Purificação Teixeira. Três deles, “filhos legítimos”, foram descritos na
margem do livro como brancos. Nos outros dois não existe menção às cores dos rebentos.
Um deles era Olímpio, filho natural da escravizada Maria Rosa, cujo status tornaria
desnecessária a menção à sua cor. O outro era Alcides. Ou seja, na anotação do batismo
de Alcides a sua cor foi invisibilizada, sugerindo que sua família ocupava um lugar social
intermediário e de certa forma privilegiado naquela sociedade ainda escravista22. Por
outro lado, a explicitação na margem do livro eclesiástico da cor branca dos batizandos
localizados na mesma página visibiliza as hierarquias sociais e raciais ali atuantes. O
pároco registra na margem a opinião comunitária sobre os seus paroquianos, e o olhar
racializado aqui não se exprime explicitando a cor dos indivíduos negros (ou pardos), mas
negando-a, comparativamente a indivíduos socialmente brancos e aos ainda escravizados.
O pároco Teixeira eterniza no livro de registros de batismos a classificação da família
Cruz como não-branca. Mas tratando-se da família multirracial23 de Alcides Cruz e
considerando o que sabemos sobre ela até o momento, certamente o melhor seria tratar
as fontes primárias (incluindo aí os registros eclesiásticos) como registros polifônicos.
Consideramos que a família Cruz concordava com a invisibilidade de sua classificação
étnico-racial, mas isso não nos autoriza a pressupor uma estratégia de

19 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p.10.
20 APERS. Inventário do Dr. Alcides de Freitas Cruz (Inventariante: Dona Severina Pereira Cruz). Provedoria de
Porto Alegre, nº 46, ano 1916. CRC 1ª Zona de Porto Alegre. Registro de Óbitos, Lv. 80, folha 179, reg. 631.
21 AHCMPA. Registro de Batismos de Livres da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 17, fls. 148v.
22 GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo,
c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2008; MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros,
pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
23 ROSA, Marcus Vinicius de Freitas. Além da Invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante
o pós-abolição (1884-1918). Campinas, 2014. Tese (Doutorado) - IFCH/Unicamp, 2014. p.199.
48

embranquecimento, e sim contextos diferenciados historicamente de uso da negritude,


que pode ser afirmada, negada, contemporizada, afinal, negociada 24.

A classificação como pardos talvez expresse o autorreconhecimento desta


familia multirracial, localizada nas camadas intermediárias daquela sociedade oitocentista,
mas com um pretérito pertencimento – não muito distante – ao cativeiro25. Aceitar a
invisibilização da cor naquele tipo de registro – público – parece evidenciar uma estratégia
familiar de desvincular-se de signos que os aproximavam da escravidão. Era uma espécie
de leitura político-genealógica que recusava a exposição da cor em alguns momentos
rituais (públicos) importantes, porque ali tal característica seria exposta negativamente,
perpetrando o vínculo daquela família ao cativeiro.

Ao que tudo indica, sentindo que sua saúde – e de sua esposa – estava precária
e pensando em regularizar a situação familiar e patrimonial, o professor Alcides Cruz
legalizou sua relação afetivo-familiar no mesmo ano em que morreu. O casamento
ocorreu às 17 horas do dia 09 de março de 1916, na residência dos noivos, na Praça
General Osório26 nº 1. A noiva, Severina Pereira dos Santos, tinha 38 anos, era solteira e
filha ilegítima de dona Juliana Pereira dos Santos. Os noivos, “vivendo maritalmente há
alguns anos”, declararam que tinham uma única filha, fruto desta união, de nome Zoé
Cruz Barcelos, nascida em 25/06/1899 e casada com João Inácio de Barcelos. As
testemunhas que assinaram endossando o enlace são representantes das ligações político-
partidárias do noivo. 27

Aliás, seu casamento pode ser considerado seu último ato político-partidário.
A primeira testemunha a assinar o registro foi o Dr. José Montaury de Aguiar Leitão
(solteiro, do Rio de Janeiro, com 58 anos), que foi o intendente de Porto Alegre entre
1897 e 192428, seguido pelo Dr. Arthur Franco de Souza (casado, do Rio Grande do Sul,
médico, com 42 anos), genro de Júlio de Castilhos. Também assinaram o Dr. Fernando
Antunes29 (solteiro, de Porto Alegre, com 29 anos) e Henrique Bacellar (solteiro, do RS,
funcionário público, com 34 anos).

24 ROSSI, Gustavo. O Intelectual Feiticeiro. Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil. Campinas:
Ed. da Unicamp, 2015 p. 26. Branqueamento: “é uma categoria analítica que vem sendo usada com mais
de um sentido. Ora ele é visto como a interiorização dos modelos culturais brancos pelo segmento negro,
implicando a perda do seu ethos de matriz africana; ora é definido como o processo de ‘clareamento’
concreto da cor da pele da população brasileira, registrado, sobretudo, pelos censos oficiais e previsões
estatísticas do final do século XIX e início do XX”. (DOMINGUES, 2004, p. 253)
25 VIANA, Larissa. O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas: Ed.
da UNICAMP, 2007.
26 Esta praça foi assim denominada em 1866, quando o governo provincial desapropriou o terreno de
propriedade privada que ali existia, para que a Cia. Hidráulica instalasse um dos chafarizes programados
para abastecer a cidade. Anteriormente, aquele lugar era conhecido, principalmente, por Alto da Bronze
(FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1980.
p. 86, 297).
27 CRC 1ª Zona de Porto Alegre. Registro de Casamentos. Lv 34, f. 12v, reg. 105.
28 BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus Eternos Intendentes. Porto Alegre: EDIPUC, 1986.
29 Formou-se na Faculdade de Direito de Porto Alegre em 1908, tornando-se professor da instituição em
1916, onde permaneceu até 1935. Foi ainda Consultor Jurídico da prefeitura de Porto Alegre e Membro
do Cons. Penitenciário do Estado. (GRIJÓ, Luiz Alberto. Ensino Jurídico e Política Partidária no Brasil: a
Faculdade de Direito de Porto Alegre (1900-1937). Rio de Janeiro: UFF, 2005. p. 185).
49

De qualquer modo, a coabitação de Alcides e Severina na casa do centro de


Porto Alegre (onde Alcides residia) é uma dúvida, pois alguns indícios nos levam a crer
que Severina residia com as filhas na casa da Santo Alfredo, onde ela faleceu. As filhas
mais velhas, Fidelcina e Antelina, casaram-se em paróquias daquele bairro, assim como a
própria Zoé casou-se com um rapaz do mesmo bairro, conforme os levantamentos
genealógicos realizados até o momento. Além disso, em correspondência com Borges de
Medeiros, datada de 13/11/1915, Alcides escreve ao chefe desde o “Arraial de São José”,
informando-lhe que retornara de Montevidéu no dia 24 de setembro, “acometido de um
grave derramamento pleural”, que começou no Rio de Janeiro. 30 Que a sua relação de
amasiamento não se caracterizava pela coabitação, aliás, foi anunciado por ele mesmo em
artigo de 1913 (de que voltaremos a tratar logo em seguida), em que responde a uma
ofensa racista e, após
desbancar seu opositor
com inegável erudição,
encerra o texto desafiando-
o para um desenlace
marcado por um duelo ou
pugilato!

Agora, só pela coincidência de


achar-se o nome do Presidente do
Estado, até certo ponto, partícipe
desta controvérsia, fico inibido do
uso de um látego com que pudesse
ver se o sangue a esvurmar dos
fidalgotes mal criados é azul ou é
como a linfa das rameiras
verminosas.
Do contrário, eu não teria dado
tempo às ameaças, que não temo
nem nunca temi de outros, tanto
que resido sozinho em
lugar ermo e silente, para
onde ordinário recolho a desoras, à
volta de teatros e outros
divertimentos.
A viúva do
professor Alcides Cruz
faleceu a 25 de julho de
1916, às 4h30min, na casa
da rua Santo Alfredo nº 8,
Figura 4 - Quadro dos bacharelandos em Direito 1908. localizada no arrabalde de
Imagem de Alcides Cruz (ao alto, à direita) São José, o que seria hoje o
bairro Partenon, nas
Fonte: Faculdade de Direito/UFRGS. Foto Marcelo Bertani proximidades da avenida
Bento Gonçalves. Ela
também foi vitimada pela

30 IHGRGS/BM, n° 6149.
50

tuberculose pulmonar; tinha 40 anos, profissão doméstica e cor descrita como mista.31 O
registro de óbito atesta que Severina Pereira dos Santos ou Severina Cruz tinha três filhas,
sendo uma delas fruto do amasiamento com Alcidez Cruz e outras duas de um
relacionamento anterior, também consensual, com um indivíduo chamado Antério
Machado. Eram suas filhas: Fidelcina, Antelina e Zoé. Alcides e Severina faleceram da
mesma doença infectocontagiosa, a tuberculose.

Zoé casou com João Inácio de Barcelos, filho de Ângelo Inácio de Barcelos e
Fermina Espíndula Barcelos. Tiveram uma única filha, que foi batizada como Alcídia
Cruz de Barcelos, em homenagem ao avô Alcides32. A homenagem nominal certamente
foi também causada pelo fato de ela ter nascido no mesmo ano do falecimento do avô,
em 29/04/1916. Alcídia foi casada com João Von Burg e faleceu em 1940, de
tuberculose, sem deixar descendentes.

As filhas da outra relação consensual de Severina, com Anterio, ocorrida antes


daquela com Alcides, nasceram em Encruzilhada do Sul e se mudaram com a mãe para
Porto Alegre. Fidelcina dos Santos, filha de Severina dos Santos, casou com Arlindo
Pereira Nunes em 09/01/1909 na igreja do Rosário, a qual atendia ao bairro Partenon
naquela época.33 Antelina Pereira Machado, natural de Encruzilhada e "filha legítima" de
Anterio Machado e Severina Pereira, casou em 25/11/1914 com Frederico Bertoldi.34
Supomos que esta relação anterior de Severina se tenha dado em Encruzilhada do Sul.
Tanto no testamento de Alcides (quando ele reconhece Zoé como filha), como no
registro de casamento, Severina aparece como solteira.

A duradora relação de amasiamento de Alcides e Severina teve início na cidade


de Encruzilhada, para onde ele se mudou após voltar de São Paulo com o diploma,
atuando em causas diversas como advogado e agrimensor.

Aliás, a localidade de Encruzilhada do Sul é bastante pontual e marcante na


trajetória de Alcides Cruz. Em seu testamento, ele evidencia a permanência dos laços
com o local, legando:

A Quintina Machado Borges, filha do Coronel Avelino Machado Borges, a


quantia de três contos de réis (3:000$000) [...]. À fábrica da igreja de Santa
Bárbara de Encruzilhada, quinhentos mil réis (500$000). Aos mendigos da
vila da Encruzilhada, cem mil réis (100$000), de cuja distribuição se
encarregará ou o Intendente ou o Vigário.
Quintina Machado Borges, cuja família residia em São José do Patrocínio
(então distrito de Encruzilhada), era sogra do correligionário local do PRR, Avelino
Machado Borges, amigo pessoal de Alcides. Outra importante referência a Encruzilhada
do Sul foi encontrada na carta que Alcides enviou a Borges de Medeiros em 11/02/1913,
na qual solicitou ao chefe que colocasse “a prima Emiliana Silveira de Freitas” em algum

31 CRC 1ª Zona de Porto Alegre. Registro Óbitos, Lv 81, folha 61, reg. 1758.
32 O marido de Zoé faleceu em Porto Alegre em 09/04/1932, sem testamento, com 35 anos de idade, de
peritonite. Descrito como branco, trabalhava no comércio; o casal possuía três imóveis: dois prédios na
Estrada do Mato Grosso, números 1803 e 1809, e uma casinha na rua Santo Alfredo nº 8, arrabalde São
José (APERS. Inventário de João Inácio de Barcelos (Inventariante: Zoé Cruz de Barcelos). 3º Cartório de Órfãos
de Porto Alegre, nº 446, ano 1932).
33 AHCMPA. Registro de Casamentos da Igreja N. Sra. do Rosário. Porto Alegre, Lv. 11, fls. 93.
34 AHCMPA. Registro de Casamentos da Igreja Sto. Antônio do Partenon. Porto Alegre, Lv. 1, fls. 24.
51

colégio em Porto Alegre, visto ser a moça “professora do Colégio Elementar em


Encruzilhada” e, naquela ocasião, achar-se acompanhando a mãe doente em Porto
Alegre. O pedido de Alcides justificava-se por ter sido a mãe de Emiliana, além da pessoa
que ajudou a criá-lo, filha de um famoso farrapo, compadre de Bento Gonçalves, que
exerceu assinalados cargos na República de 35.35

Na primeira década do século XX, a vida do Dr. Alcides Cruz era agitada e
ocupada profissionalmente. Apesar disso, ele publicava artigos e preparava trabalhos de
forma incansável.

Em 1900 Alcides de Freitas Cruz participou da fundação da Escola Livre de


Direito de Porto Alegre (nomeado professor a 17 de fevereiro) e assumiu como 2º
promotor público de Porto Alegre (a 26 de maio). Nos anos seguintes, estabelecido em
Porto Alegre, exerceu a atividade de professor, promotor e também deputado estadual,
sendo eleito em fevereiro de 1901 para a quarta legislatura.

A única viagem que fez à Europa se deu em 1906. Porém, antes de viajar,
publicou em junho o trabalho “Vida de Raphael Pinto Bandeira”, pela Livraria
Americana, Pintos & Cia., de Porto Alegre. Esteve em Portugal no mês de agosto,
retornando em setembro, quando se encontrou com a mãe, em Santos, seguindo ambos
para Porto Alegre.36 Ainda em 1906, tomou posse como deputado estadual na segunda
sessão legislativa da quinta legislatura.

A trajetória do pai de Alcides, Manoel Pinto de Lacerda Cruz, denuncia as


migrações interprovinciais militares e a maneira como estes populares fardados acabavam
criando raízes e ficando onde serviam. No processo em que se habilitou ao matrimônio
com Adelaide, ele declarou que nasceu na cidade de Goiana, na Província de
Pernambuco, por volta de 1824, filho dos também pernambucanos Antônio Pinto
Lacerda e Maria da Conceição dos Prazeres. Ele saiu do Nordeste no ano de 1848 como
recruta, indo para o Rio de Janeiro - capital do Império - onde permaneceu por três
semanas, sendo destinado ao Rio Grande do Sul para “concluir o tempo de milícia”. 37
No artigo de A Federação (1913, ao qual voltaremos adiante), Alcides Cruz refere-se ao
pai como tendo migrado “devido à Revolução Praieira (1848)”.

No processo de habilitação matrimonial era necessário apresentar três


testemunhas que confirmassem a trajetória do aspirante ao casamento. Depuseram a
favor do pai de Alcides três pessoas. O alferes Francisco Xavier Barreto disse conhecê-
lo por ter sido praça em seu batalhão. José Francisco de Assis Campos Cosdem, natural
de Pernambuco, que vivia do próprio negócio em Porto Alegre, disse tê-lo conhecido no
Rio Grande do Sul havia 3 anos. Já o açougueiro Jacinto José Maria, atuante em Porto
Alegre, conheceu-o na província de Pernambuco, de onde vieram como recrutas,
primeiro ao Rio de Janeiro e depois ao Rio Grande do Sul, servindo no mesmo batalhão.
Homem humilde, analfabeto, Manoel Pinto de Lacerda Cruz sequer assinou o depoimento

35 IHGRGS/BM, nº 5197. Apesar de extremamente instigante, não conseguimos encontrar qualquer laço
familiar que os conectasse consanguínea ou ritualisticamente.
36 A Federação, 22 set. 1906.
37 Informações que constam em seu depoimento na Justificação de Solteiro, integrante do processo
matrimonial. (AHCMPA. Habilitação Matrimonial de Manoel Pinto de Lacerda e Adelaide Leopoldina de Freitas, cx.
252, ano 1861, nº 171)
52

com uma cruz, pois assinaram a seu rogo. Alcides e seus irmãos pouco conviveram com
o pai, falecido em Porto Alegre a 18 de agosto de 1868, com 44 anos de idade, de
consumpção.38

Mesmo que as causas de morte listadas no período dificultem qualquer análise,


referindo-se mais a sintomas do que a enfermidades específicas, cabe mencionar que os
dicionários médicos descrevem a consumpção como uma “diminuição lenta das forças e
carnes do doente; acompanha quase todas as moléstias crônicas, principalmente as
diferentes moléstias do peito - tidas como tísica, laringite e bronquite crônica - moléstias
do coração, ou muitas outras afecções antigas” 39. Trata-se de um definhamento
progressivo que precede a morte em algumas moléstias como a tísica (tuberculose)40. Ou
seja, Alcides morreu da mesma doença de seu pai, com décadas de distância entre os
falecimentos.

A história de Adelaide, mãe de Alcides, tem raízes mais profundas na América


afro-latina meridional41. Adelaide Leopoldina de Freitas nasceu42 em Porto Alegre a 16
de junho de 1828, onde faleceu43 a 26 de janeiro de 1909. Era filha do tenente paulista
(nascido na cidade de Santos) Joaquim Pedro de Freitas e de Estefânia Maria da Assunção
(nascida em Porto Alegre por volta de 1794). Joaquim e Estefânia, após anos de
convivência familiar, casaram-se na igreja. O ato deu-se a 30 de setembro de 1851. Na
mesma ocasião, legitimaram os filhos Leopoldino Joaquim de Freitas e Adelaide
Leopoldina de Freitas.44 Neste registro de casamento, foram informados os nomes dos
pais do noivo, João Nunes de Freitas e Ana Maria de São João. Já os pais da noiva,
Estefânia, foram dados como “incógnitos”.

Na busca de mais indícios sobre as origens de Estefânia, deparamo-nos com


um nome importante: Eufrásia Maria da Conceição. Eufrásia foi madrinha de dois filhos
de Joaquim Pedro de Freitas, tios maternos de Alcides, ambos declarados como de “mãe
incógnita”: Joaquim, nascido em 1819, e João, nascido em 1821.

38 AHCMPA. Registro de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 10, fls. 20.
39 LANGAARD, Theodoro J. H. Dicionário de Medicina Doméstica e Popular. 2.ed. Rio de Janeiro:
Laemmert & Cia., 1872. v.1; p. 520.
40 CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de Medicina Popular e das sciencias accessórias para uso das
famílias. 6. ed. consideravelmente aumentada, posta a par da ciência. Paris: A. Roger & F. Chernoviz, 1890.
41 ANDREWS, George R. América Afro-Latina (1888-2000). São Carlos, São Paulo: EDUFSCAR, 2007.
42 AHCMPA. Registro de Batismo da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 7, fls. 17v.
43 APERS. Inventário de Adelaide Leopoldina de Freitas (Inventariante: Alcides Cruz). Porto Alegre, n° 2171, 1909.
44 AHCMPA. Registro de Casamentos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 6, fls. 45.
53

Antônio Pinto Lacerda


da Cruz

Manoel Pinto Lacerda


da Cruz
(1824-1868) Maria Conceição dos
Prazeres

Alcides de
Freitas Cruz João Nunes de
(1867-1916) Freitas
Joaquim Pedro de
Freitas
(1790- )
Ana Maria de São
Adelaide Leopoldina João
de Freitas
(1828-1909)
Estefânia Maria da
Assunção “incógnitos”
(1796-1884)

Figura 5 – Gráfico de Linhagem de Alcides de Freitas Cruz

Fonte: Vanessa Gomes de Campos / IHGRGS

O gráfico de linhagem foi elaborado a partir da documentação encontrada e citada


ao longo de todo o trabalho, representando, da esquerda para a direita, a geração de
Alcides (e seus três irmãos: Adelina – nascida e falecida em 1862; Leopoldo de Freitas
Cruz - nascido em 1863 e falecido em 1940 e Tercília - nascida em 1865 e falecida em
1866), seguindo para seus pais, em que também se posicionam os quatro irmãos de
Adelaide: (Leopoldino – nascido em 1818 e falecido em 1889; Joaquim; João Pedro de
Freitas – nascido em 1821 e falecido em 1851 e Leopoldina – nascida em 1835 e falecida
em 1838). Na sequência, os avós paternos e maternos de Alcides e, finalizando, os bisavós
da linha materna de Alcides, pais de Estefânia, constando como “incógnitos”.

Mas quem teria sido Eufrásia Maria da Conceição?

No ano de 1842, Eufrásia Maria da Conceição registrou seu testamento,


declarando ser viúva de Francisco Félix de Souza, com quem não teve filhos. 45 Em 1852,
quando faleceu Eufrásia, Leopoldino Joaquim de Freitas assumiu o encargo de

45 APERS. Inventário de Eufrásia Maria da Conceição (Inventariante: Leopoldino Joaquim de Freitas). Porto
Alegre, nº 115, ano 1852.
54

testamenteiro e de inventariante. A esta altura, ele já havia sido deputado provincial, além
de ocupar outros cargos públicos em Porto Alegre.

De fato, Eufrásia Maria da Conceição, em 1793, com 13 anos de idade, casou-


se em Porto Alegre com Francisco Félix de Souza, sendo ela natural de Rio Grande e
ambos pardos forros46, da mesma forma que os pais de Eufrásia, Carlos da Costa (filho da
escrava Maria) e Eufrásia Maria da Conceição (filha da escrava Ana Maria Joaquina). Com
Carlos e Eufrásia, chegamos à Colônia do Sacramento, onde ambos nasceram e, no ano
de 1770, se casaram.47

Alcides Cruz registrou em um artigo em A Federação:

Não sou branco, porque minha mãe e minha avó e minha bisavó não o eram;
mas que aqui viveram, como muitas famílias de cor que vieram acompanhando
outras, a estabelecer-se em São Francisco do Porto dos Casais, quando da
famosa corrida, por efeito da lastimável rendição da Colônia do Sacramento
em 1763.48
Em uma de suas produções historiográficas, Cruz menciona vivamente a
invasão espanhola promovida por Dom Pedro Ceballos, “rancoroso inimigo dos
portugueses, guerreiro cruel e bárbaro invasor”. Segundo ele, essa invasão fez com que a
incipiente civilização rio-grandense sofresse um grande eclipse, de dolorosas consequências, mesmo
que muitas famílias colonistas (incluindo a dele próprio, Alcides) viessem “dar fecunda
impulsão aos dois povoados, já copiosos, de Viamão e Porto dos Casais”. Remoendo,
talvez, memórias familiares, ele comenta: “esta memorável invasão, que tão triste e
inapagável impressão fez perdurar durante mais de século na memória dos nossos avós,
ocasionou a perda da vila do Rio Grande”. 49

Leopoldo de Freitas, jornalista, irmão de Alcides Cruz, residente em São


Paulo, publicou uma homenagem ao tio Leopoldino Joaquim de Freitas, na qual, ao se
referir a Estefânia Maria da Assunção, mãe de Leopoldino, disse que era “descendida de
emigrados da Colônia do Sacramento por ocasião da invasão espanhola.” 50

46 AHCMPA. Registro de Casamentos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 1, fl. 81. Ver também:
AHCMPA. Habilitação Matrimonial de Francisco Félix de Souza e Eufrásia Maria da Conceição. Caixa 59, ano 1792,
nº 23. No processo de Habilitação, os noivos tinham que comprovar o estado de solteiros, entregando as
certidões de batismo como prova de idade. Eufrásia entregou a sua, constando ter nascido em Rio Grande
a 03/12/1779.
47 O assentamento do casamento encontra-se no Livro 2, a folhas 13. Os livros de batismo, casamento e
óbito de Colônia foram transcritos e publicados em BUYS (2012).
48 CRUZ, Alcides. Troco Miúdo. A Federação, 9 jul. 1913. (O texto na íntegra está disponível na publicação
do IHGRGS intitulada Mestiço, Mulato ou Negro: Disponível em:
<http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-
%20Mestico,%20mulato%20ou%20negro.pdf>.
49 CRUZ, Alcides. Vida de Raphael Pinto Bandeira: Ligeiras notas esparsas para a biografia do herói
continentino. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas da Livraria Americana, 1906. p. 39. Em sua tese de
doutoramento o historiador Fabio Kühn (2006, p. 24) intitula o período de 1733 a 1763 de “idade de ouro”,
“marcado pelas migrações lagunenses, açorianas e indígenas”, período antibellum que antecedeu a invasão
espanhola de 1763/1776.
50 FREITAS, Leopoldo de. Conselheiro Leopoldino Joaquim de Freitas. Almanak Litterario e Estatistico do Rio
Grande do Sul. [S.l.]: Editores Pintos & C, ano 23, p. 4, 1911
55

No seu casamento, Estefânia Maria da Assunção, avó materna de Alcides


Cruz, foi declarada natural de Porto Alegre e filha de pais incógnitos. Infelizmente, em
documento algum foi possível encontrar sua filiação. Por outro lado, algumas conexões
e deduções podem ser alvitradas, tendo como eixo Eufrásia Maria da Conceição, filha de
Carlos da Costa.

A parda Estefânia Maria da Assunção faleceu em Porto Alegre, aos 90 anos


de idade, em 1884.51 Deduz-se, daí, que tenha nascido por volta de 1794. Dentre os
batismos realizados em Porto Alegre no período de 1773 a 1800, foram localizados os
assentos de duas meninas com o nome Estefânia, uma nascida em 1794 e a outra em
1796.52 O mais enigmático é o fato de ambas terem nascido cativas por serem filhas da
preta Eva, escravizada de Carlos da Costa.53

Carlos da Costa e esposa alforriaram a “hua parda por nome” Estefânia, de


dois anos de idade, filha da cativa de nação Benguela Eva, do mesmo senhor, em 20 de
junho de 1798.54 Portanto, é bem provável que a Estefânia nascida em 1794 não tenha
sobrevivido, falecendo antes de 1796, quando batizaram a nova filha da escrava Eva com
o mesmo nome de Estefânia, que foi alforriada em 1798. No mesmo ano de 1798, no mês
de outubro, faleceu Carlos da Costa, aos 55 anos de idade, deixando viúva a esposa. 55

A carta de alforria de Estefânia foi redigida em 1798, mas registrada em


cartório local apenas em 3 de julho de 1802. A liberdade foi concedida a Estefânia
gratuitamente ou, como consta naquele documento de liberdade, "sem estipêndio algum"
pelo "muito amor que lhe temos". Provavelmente em função do analfabetismo dos
senhores a carta foi redigida, a pedido do casal, por José Inácio de Medeiros. Por que a
carta levou quatro anos para ser registrada em cartório nunca saberemos. Se fosse um
documento de alforria concedido mediante pagamento, poderia significar o prazo que a
escravizada levaria para indenizar seus senhores, mas não foi o caso. Podemos,
entretanto, cogitar não ter sido coincidência a carta ter sido registrada no mesmo ano do
falecimento do senhor, 1798. O documento de liberdade de 1798 denuncia os laços
afetivos que existiam entre os senhores e aquela criança escravizada. Na verdade, o termo
usado foi amor, o qual, segundo dicionário da época, era “sentimento com que o coração
propende para o que lhe parece amável, fazendo disso o objeto de suas afeições e
desejos”56. Sabedor de seu estado de saúde frágil e temendo afastar-se desta vida sem
acertar as contas de seus afetos, Carlos da Costa tratou de alforriar Estefânia, que caso
contrário deveria ser arrolada como mercadoria em inventário.

51 AHCMPA. Registro de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 15, fls. 40.
52 AHCMPA. Registro de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 1, fls. 275v e fls. 285
(respectivamente). Estefânia, nascida em 1794, teve como padrinho Marcelino Gomes (sem madrinha). A
outra menina Estefânia, de 1796, também só teve padrinho: Marcelino de Seixas.
53 Carlos da Costa casou-se na Colônia do Sacramento em 1770. Historicamente, a Colônia deixou de ser
domínio português em 1777. Em 1779, nasceu a filha Eufrásia em Rio Grande, assim como seus irmãos
Isidoro (1781), Martiniana (1783) e Ana Maria (1785). Em 1792, a família de Carlos já se encontrava em
Porto Alegre, pois neste ano se casou Eufrásia.
54 APERS. Tabelionato de Porto Alegre, Lv. 2, fls. 72; MOREIRA; TASSONI, 2007.
55 AHCMPA. Registro de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 2, fls. 13v. Em seu óbito,
registrou-se que era natural da Praça da Colônia, pardo forro e que “não fez Testamento por pobre”.
56 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Oficinas da S. A. Litho-
Litotipographia Fluminense, 1922. t. 1; p.124. (Edição fac-símile da 2ª edição, de 1813, sendo a 1ª edição
de Lisboa, Officina de Simão Thadeo Ferreira, em 1789)
56

Esta Estefânia, nascida escrava e alforriada em 1798, seria a avó de Alcides


Cruz?

Outra questão que chama a atenção é a proximidade de Eufrásia com a família


da avó de Alcides, apadrinhando crianças e deixando quase todos os seus bens a eles:
seria um indício de parentesco consanguíneo, além do parentesco espiritual que sabemos
existir?

Joaquim, nascido a 25 de junho de 1819, e João, a 17 de novembro de 1821,


foram originalmente batizados como filhos de “mãe incógnita” e reconhecidos pelo pai,
o alferes Joaquim Pedro de Freitas. 57 A madrinha de Joaquim e João não sabia ler e nem
escrever, o que nos leva a formular diversos questionamentos sobre a formação de
Leopoldino e de Adelaide. Além disso, o capital legado por Eufrásia atravessou gerações,
chegando a Alcides Cruz.

Os avós maternos de Alcides Cruz casaram na Catedral de Porto Alegre, em


30/09/1851, sob as bênçãos do padre Francisco de Paula Macedo. 58 Tratava-se de uma
relação consensual que se estendia há anos e, aproveitando o matrimônio, os noivos
reconheceram como legítimos os filhos Leopoldino Joaquim de Freitas (então com 32
anos de idade) e Adelaide Leopoldina de Freitas (com 22 anos). Ou seja, pelo menos
desde 1818 esse casal existia. Ambos os noivos assinaram o documento eclesiástico,
mostrando contato com a cultura escrita e serviram de testemunhas o futuro tio de
Alcides (e futuro Conselheiro do Império) Leopoldino Joaquim de Freitas e Florisbela
Querubina de Sampaio.

Leopoldino Joaquim de Freitas e João Pedro de Freitas foram elencados por


testamenteiros de Eufrásia, que preparou o testamento em 1842. Leopoldino e sua irmã
Adelaide herdaram os bens de Eufrásia, uma vez que seu outro irmão, João, falecera59
antes da testadora. Ao final, Leopoldino herdou uma casa no Beco do João Coelho, “com
porta, uma janela, mal construída e muito arruinada”, no valor de 450$000 réis e dividiu
a casa na rua da Igreja nº 126 “com uma porta, 3 janelas, de frente ao sul”, que
confrontava a leste com o beco do Poço, “construída sobre esteios com poucos fundos,
mal construídas e muito arruinadas”, avaliada por 1:800$000 réis. Essa casa na rua da
Igreja foi legada a Adelaide, “com obrigação de morar na mesma casa a mãe Estefânia,
enquanto viver.”60

Joaquim Pedro de Freitas deve ter sido a grande influência que deu condições
à formação dos filhos Leopoldino e Adelaide e, consequentemente, ao neto Alcides.
Sobre Leopoldino e, revelando o próprio Joaquim, escreveu Leopoldo de Freitas: “Teve

57 Joaquim foi batizado em 10/7/1819 (AHCMPA. Registro de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto
Alegre, Lv. 5, fls. 168); e João, em 11/01/1822, tendo como padrinho Manoel Joaquim Pires (AHCMPA.
Registro de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 6, fls. 58v).
58 AHCMPA. Registro de Casamentos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Lv. 6, fls. 45.
59 João Pedro de Freitas faleceu em 19/07/1851 de escarlatina, solteiro, filho do tenente Joaquim Pedro de
Freitas e Epifânia Maria da Conceição. (AHCMPA. Registro de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto
Alegre, Lv. 7, fls. 253v)
60 APERS. Inventário de Eufrásia Maria da Conceição. Porto Alegre, n. 115, 18520. (O testamento está trasladado
no processo de inventário.)
57

educação muito boa, no lar; seu pai ensinou-o a ler e escrever, a aritmética e a geografia,
mandando-o já preparado elementarmente cursar latim, história, francês e filosofia.” 61

Perdendo o pai com apenas um ano de idade, Alcides Cruz teve como
referências afetivas familiares a mãe Adelaide e a vó Estefânia, o tio Conselheiro do
Império Leopoldino e o irmão Leopoldo.62 Sua avó Estefânia, como já dissemos, morreu
em 11/08/1884, e sua mãe Adelaide faleceu em 1909. Em seu testamento 63, redigido em
11/11/1908, Adelaide informava que possuía a casa em que morava, na rua Fernando
Machado nº 241, e outra menor na rua da Concórdia nº 123. Ela deixou a sua terça da
herança, depois de deduzidas as despesas, para a neta Léa de Freitas, filha de seu filho
Leopoldo Joaquim de Freitas, naquela época professor da Faculdade de Direito de São
Paulo.64

O santista Joaquim sentou praça de soldado voluntário em 1809, com a idade


de 19 anos, “no extinto regimento de caçadores da Praça de Santos”. 65 Passou de alferes
em comissão ao 1º Batalhão de Infantaria da Legião de São Paulo em 1814 e a alferes de
cavalaria adido ao Estado Maior do Exército em 1819, sob as ordens do conde de
Figueira. Foi promovido a tenente, graduado em 1820, por distinção na Batalha de
Taquarembó. Sabemos que do final de 1817 até início de 1819 estava em Porto Alegre,
pois foi quando nasceram Leopoldino66 e Joaquim67.

Apesar de atribulada a vida militar, que exigia constantes deslocamentos, é


possível acompanhar as “estadias” de Joaquim Pedro em Porto Alegre através do
crescimento da prole. Após a comprovada ausência no início de 1820, tendo-lhe rendido,
inclusive, uma promoção militar, ao final de 1821 nascia o terceiro filho, João 68. De 1825
até 1827 “fez as Campanhas”, retirando-se doente para Porto Alegre e ocupando-se

61 FREITAS, 1911, p.4.


62 As outras duas irmãs de Alcides faleceram antes dele nascer: Adelina morre com 8 meses de vida, de
coqueluche (AHCMPA. Registro de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 8, fls. 158),
enquanto Tercília, de convulsões, na idade de 1 ano e 6 meses (AHCMPA. Registro de Óbitos da Igreja N. Sra.
Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 9, fls. 112).
63 APERS. Testamento de Adelaide Leopoldina de Freitas (Testamenteiro: Albino José Ferreira Coutinho).
Provedoria de Porto Alegre, nº 38, ano 1909.
64 Através do jornal republicano A Federação, ano 26, n.26, 30 jan.1909, Alcides e seu irmão Leopoldino (que
estava em São Paulo e não compareceu ao velório) agradecem pelas “demonstrações de pesar recebidas”
pelo falecimento da mãe e convidam as pessoas de suas relações para a missa que ocorreria na Catedral no dia
1º de fevereiro, às 8h.
65 AHE. Joaquim Pedro de Freitas, Pasta IV/23/110.
66 Leopoldino foi exposto em casa do tenente Francisco de Paula Soares a 25/05/1818, tendo sido
reconhecido pelo pai no batismo, em 03 de agosto do mesmo ano. (AHCMPA. Registro de Batismo da Igreja
N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 5, fls. 125v).
67 Batizado em 10 de julho do mesmo ano do nascimento, 1819 (AHCMPA. Registro de Batismo da Igreja N.
Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 5, fls. 168). A mãe ficou declarada como “incógnita” e seu pai, o
alferes Joaquim Pedro de Freitas. É provável que Joaquim Pedro de Freitas, integrando a Legião de São
Paulo, tenha-se deslocado para o Sul juntamente com o tenente Francisco de Paula Soares, a fim de
comporem as manobras bélicas voltadas à região do Prata. (CAMPOS, Vanessa Gomes de; MOREIRA,
Paulo Roberto Staudt Moreira. "Eu me não molesto com os epítetos mestiço, mulato ou negro": trajetória
e escritas de si de um professor negro (o Dr. Alcides de Freitas Cruz). In: ENCONTRO ESCRAVIDÃO
E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL, 8., de 24 a 27 de maio de 2017, Porto Alegre (UFRGS).
Textos Completos. p.1. Disponível em: <http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/
8encontro/Textos8/paulomoreira.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2017)
68 João nasceu em 17/11/1821, tendo sido batizado a 11/01/1822. (AHCMPA. Registro de Batismo da Igreja N.
Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 6, fls. 58v)
58

como empregado na Secretaria Militar de maio de 1829 a 1835, quando se reformou.69


Finalmente radicado em Porto Alegre, nasceram as duas últimas filhas: Adelaide
(16/06/1828) e Leopoldina (21/04/1835).70

O paulista Joaquim Pedro de Freitas e a porto-alegrense Estefânia Maria da


Assunção, avós maternos de Alcides, tiveram, pelo que sabemos até agora, cinco filhos,
sendo que, quando do casamento, em 1851, apenas dois ainda viviam (Adelaide e
Leopoldino). Pelos registros de batismos dos filhos percebe-se que o casal demorou em
legitimar a relação, quem sabe temendo que a ligação com uma mulher negra prejudicasse
a ascensão daquele paulista – pelo menos socialmente branco – na hierarquia militar.

No quadro 1, reproduzimos a sequência de filhos que Joaquim Pedro de


Freitas batizou, solteiro:

NOME NASCIMENTO PADRINHOS


Ten. Francisco de Paula Soares e N. Sra. da
Leopoldino 1818
Conceição

Joaquim 25/06/1819 Sarg. Mor Francisco de Paula Soares e Eufrásia Maria


da Conceição
João 17/11/1821 Manoel Joaquim Pires e Eufrásia Maria da Conceição

Adelaide 16/06/1828 Sarg. Mor José Luiz de Andrade e esposa D.


Henriqueta Marinha da Silva e Andrade
Leopoldina 21/04/1835 Leopoldino Joaquim de Freitas e Adelaide
Leopoldina de Freitas71
Quadro 1 - Filhos do casal Joaquim Pedro de Freitas e Estefânia Maria da Assunção (avós
de Alcides de Freitas Cruz)

Fonte: AHCMPA

Em nenhum dos registros de batismo acima o nome da mãe foi mencionado,


sendo que no caso de Joaquim e João o padre anotou “mãe incógnita”; em todos, porém,
encontramos o nome do pai, que reconheceu a paternidade nos três primeiros. Nos dois
primeiros batizados o pai aparece acompanhado da patente de alferes e nos seguintes ele
consta como tenente, mostrando uma trajetória positiva na carreira militar. Aliás, a
presença de militares entre os padrinhos atesta o círculo de relações em que esse migrante
paulista estava envolvido. Foram, na verdade, dois movimentos migratórios que
confluíram e se encontraram em Porto Alegre: aquela família negra fugida de Sacramento
e alguns militares para o sul deslocados para manter o domínio brasileiro na Banda

69 AHE. Joaquim Pedro de Freitas, Pasta IV/23/110.


70 Adelaide, a mãe de Alcides Cruz, foi batizada a 03/09/1828. (AHCMPA. Registro de Batismo da Igreja N. Sra.
Madre de Deus. Porto Alegre, Lv.7, fls. 17v). Leopoldina, batizada a 15 de outubro do mesmo ano do
nascimento, foi apadrinhada por seus irmãos Leopoldino – que lhe emprestou o nome – e Adelaide.
(AHCMPA. Registro de Batismo da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 9, fls. 50v). Leopoldina
faleceu com 3 anos de idade, de moléstia interior, declarada como “filha natural do tenente Joaquim Pedro
de Freitas”. (AHCMPA. Registro de Óbito da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 6, fls. 12).
71 AHCMPA. Registro de Batismos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 5, fls. 125v e 168; Lv. 6 fls.
58v; Lv. 7, fls. 17v; Lv. 9, fls. 50v.
59

Oriental. Segundo o cronista comendador Coruja, que viveu em Porto Alegre no período,
eram chamados colonistas os que fugiram da Colônia de Sacramento em razão da invasão
espanhola de 1762: “Dizer-lhe que alguém era colonista era fazer-lhe o elogio, pois eram
ordinariamente bem considerados”72.

Como já mencionados, o filho primogênito do alferes Joaquim Pedro de


Freitas, Leopoldino, segundo consta no seu registro de batismo, foi exposto na casa do
tenente Francisco de Paula Soares a 25 de maio de 1818, sendo batizado e reconhecido
pelo pai biológico a 03 de agosto do mesmo ano. O motivo dessa passageira exposição
pode estar no afastamento do pai de Porto Alegre quando do nascimento de seu primeiro
filho, talvez em missão militar fora da Capital. Se o filho fosse registrado apenas pela
mãe, Estefânia, sem a presença do pai, que ostentava uma patente militar como uma
insígnia de prestígio, provavelmente o rebento teria seu nome acompanhado da cor da
mãe e, quem sabe, do status ancestral da família materna forra. Ser enjeitado
temporariamente na casa do seu superior hierárquico deu tempo para que o pai biológico
retornasse para casa e registrasse o rebento em seu nome, invisibilizando a herança social
e racial materna. Lembremos que:

Ter ou não filhos, em quais circunstâncias tê-los, enjeitar alguns eram decisões
ligadas aos projetos familiares. Filhos eram peças importantíssimas para a
viabilização de alianças – que começavam no ato do batismo, através do
compadrio, e se estendiam até os enlaces matrimoniais. Mesmo filhos ilegítimos
ou expostos podiam, dependendo das circunstâncias, desempenhar esse tipo de
papel.73
Leopoldino se tornaria conselheiro do Império e peça importante na criação
e educação de seu sobrinho Alcides. Como cabia a um conselheiro do Império, aquela
criança exposta, filha da negra Estefânia, seria no seu óbito registrada como branco. Aliás,
sua morte coincidentemente ocorreria no ocaso do Império, às 14h, em 08/06/1889,
com 72 anos de idade, solteiro, vitimado pela ataxia motora progressiva, em sua casa na
rua Duque de Caxias.74

Joaquim Pedro de Freitas, como já dito, é quem deve ter dado suporte tanto
financeiro e material quanto estrutural ao crescimento intelectual dos filhos e,
provavelmente, à própria companheira, a parda forra Estefânia. Apesar dos esforços em
encontrar mais indícios sobre Joaquim, localizamos apenas, além do que foi apresentado,
o fato de ele ter contribuído com 2$000 réis quando da passagem de Dom Pedro II por
Porto Alegre75 e a alforria que concedeu, a 09 de dezembro de 1861, a uma escrava

72 CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas. Reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Cia. União de
Seguros Gerais, 1983. p. 57.
73 (BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII
e XIX). São Paulo: Annablume, 2007. p.217). Sobre a exposição em Porto Alegre, ver: SILVA, Jonathan
Fachini da. Os Filhos do Destino: a exposição e os expostos na freguesia Madre de Deus de Porto Alegre
(1772-1837). São Leopoldo, 2014. Dissertação (Mestrado em História) - PGH/Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, 2014.
74 AHCMPA. Registros de Óbitos da Igreja N. Sra. Madre de Deus. Porto Alegre, Lv. 17, fls. 8v. Ataxia era uma
denominação “empregada para caracterizar a desordem e irregularidade dos sintomas nas afecções
nervosas; este estado de ataxia se desenvolve principalmente nas inflamações aguda e crônica do cérebro
e nas das membranas que lhe servem de invólucro”. (LANGAARD, 1872, v.1, p. 232).
75 O Imparcial, Porto Alegre, 06 dez. 1845.
60

chamada Lucrécia, preta, Conga, com 50 anos de idade e que o servira havia mais de 25
anos.76

Estefânia Maria da Assunção faleceu viúva, de velhice, em 1884. Alcides


estava com 17 anos. A partir das informações coletadas, deduzimos que Estefânia viveu
com os dois filhos, Adelaide e Leopoldino, quando este se encontrava em Porto Alegre,
uma vez que: “Não casara; viveu acompanhando a irmã viúva, Sra. d. Adelaide
Leopoldina de Freitas, cujos filhos Leopoldo e Alcides educou e protegeu com seus
recursos pecuniários e a benevolência do seu coração”77. Próximo e fiel ao senador
Gaspar Silveira Martins78, após ocupar diversos cargos públicos em Porto Alegre, em
julho de 1878, desembarcava na Corte do Rio de Janeiro para assumir o posto de diretor-
geral da tomada de contas do Tesouro Nacional 79; no mesmo ano, em agosto, recebeu o
título de Conselheiro80.

Leopoldino Joaquim de Freitas desde jovem apresentava uma formação


diferenciada, por assim dizer, se levarmos em conta a origem materna. Em dezembro de
1835, com 17 anos, solicitou dispensa de idade para candidatar-se à Cadeira de Francês
de Porto Alegre. Após sua passagem pela Revolução Farroupilha, como alferes e ajudante
de campo do brigadeiro Francisco Xavier da Cunha81, foi provido, em 1842, na Cadeira
de Francês nas aulas de Instrução Secundária da Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul.

Além das atividades de ensino, foi deputado provincial na 3º legislatura (1848-


1849), sendo 1º suplente da Mesa Diretora de 1849. A 02 de março de 1854, assumiu a
direção da Instrução Pública da Província, altamente elogiado pelo presidente da
Província no relatório de 1855. Na década seguinte, participou da guerra do Paraguai,
onde acompanhou o exército em operações em Corrientes (Argentina), com o propósito
de organizar a Pagadoria Militar. Em 1866 adoeceu e retornou a Porto Alegre, passando
a dedicar-se ao cargo de Inspetor da Tesouraria da Fazenda Provincial, que lhe deu

76 APERS. Tabelionato de Porto Alegre, Lv. 17, fls. 102. Essa é a última notícia encontrada de Joaquim Pedro.
Apesar das buscas em processos de inventário e testamento, assim como de seu registro de óbito em Porto
Alegre, nada se localizou. Chama a atenção no registro de casamento dele com Estefânia a anotação de ter
sido expedida uma certidão a 04/10/1862. Teria sido usada para comprovar a ligação do casal por questões
de inventário?
77 FREITAS, 1911, p. 8.
78 O jornal A Reforma, do Rio de Janeiro, na primeira página da edição de 21/02/1878, trouxe uma
reportagem referente à homenagem prestada ao senador Silveira Martins no dia 17 de fevereiro daquele
ano, no seu embarque para a Corte a fim de assumir o Ministério da Fazenda. Na ocasião, Silveira Martins,
em seu discurso, disse não possuir, “como amigos pessoais, senão cidadãos dignos do apreço público, pelo
seu devotamento patriótico.” E, ao final, mencionou que “ali presente se achava um desses cidadãos que
tinha merecido toda sua estima pessoal, não porque a procurasse [...], não deixando jamais de mostrar-se
um tipo de empregado público, para quem os deveres do cargo e os interesses do Estado estavam acima
das conveniências públicas, e que a posição em que se achava, havia-a atingido somente pelos seus
merecimentos, porque a si só a devia, que era esse o Sr. Leopoldino Joaquim de Freitas, inspetor da
tesouraria, a quem brindava.” (grifo nosso)
79 A Reforma, Rio de Janeiro, 30 jul. 1878.
80 A Reforma, Rio de Janeiro, 11 ago. 1878.
81 Importante ressaltar que a participação de Leopoldino na guerra civil farroupilha também teve momentos
belicosos, pois participou da batalha do Caminho Novo, de 25/07/1837. (ORDEM DO DIA, Quartel do
Comando em Porto Alegre, 27 jul. 1837). Do mesmo modo, em 1838, em Rio Pardo, “padeceu e
perambulou, encontrando abrigo na estância da família Azambuja Rangel”, tendo como companheiro para
toda a vida Firmino de Azambuja Rangel. (FREITAS, 1911, p. 4)
61

destaque para chegar à capital do Império. 82. Portanto, a referência masculina de Alcides
Cruz, assim como de seu irmão Leopoldo, foi o tio Leopoldino.

Quando o conselheiro Leopoldino faleceu, sua irmã entrou com um processo


de devolução da herança, por ser a única herdeira. O bem de valor que deixou foi uma
casa na rua Duque de Caxias, esquina General Paranhos, avaliada em 2:000$000 réis por
estar “precisando de reforma completa”.83

A essa altura, Alcides Cruz já havia perdido a avó Estefânia (falecida em 1884)
e o tio Leopoldino, em 1889. Seu irmão Leopoldo, quatro anos mais velho, encontrava-
se estudando na Faculdade de Direito de São Paulo desde 1887, na qual se formou em
1891, ano em que Alcides lá ingressou. 84

Leopoldo de Freitas Cruz também teve uma trajetória bastante profícua. Os


estudos preparatórios, diferentemente de Alcides, foram iniciados em Porto Alegre, para
seguir o curso na Escola Militar do Rio de Janeiro, onde se achava em 1885.85 Após
concluída a faculdade, até princípios de 1900 permaneceu em São Paulo, onde se casou
com Roma Moreira86; a partir de fevereiro assumiu as funções de juiz distrital em Pelotas.

Apesar da família radicada em Porto Alegre e da tentativa de Leopoldo de


viver no Rio Grande do Sul, no entanto, a meados de 1900 fixou residência definitiva em
São Paulo. Em 1936, após o falecimento de Roma, casou-se novamente com Lina
Eudóxia de Castro. Na carreira de Leopoldo, destaca-se a contribuição a diversos
periódicos dos estados de São Paulo e Minas Gerais, versando sobre temas literários,
históricos e políticos.87

O contato entre os irmãos era frequente, como podemos observar nas


diversas idas de Alcides a São Paulo – acompanhado pela mãe, inclusive – noticiadas em
A Federação, assim como as vindas de Leopoldo a Porto Alegre.

Pela cronologia dos registros eclesiásticos da família do professor Alcides


Cruz, percebemos que se configura – parafraseando Sheila de Castro Farias – uma
fronteira negra em movimento, na qual famílias negras escravizadas, forras e livres
procuravam aproveitar as oportunidades daquela fronteira aberta, tendo seus planos
modificados pela invasão castelhana e pelos arranjos e desarranjos imperialistas. Ele
mesmo menciona isso em seu livro sobre a Cisplatina, quando se refere à resistência dos
gaúchos e dos sul-rio-grandenses a pertencer à infantaria, já que “uns e outros não
podiam dar 50 ou 100 passos se não a cavalo”. Descrevendo as tropas do general

82 FREITAS, 1911, p. 7.
83 APERS. Devolução da Herança de Leopoldino Joaquim de Freitas (Inventariante: Adelaide Leopoldina de Freitas).
2ª Vara Cível de Porto Alegre, n. 497, ano 1889.
84 AFDSP. Leopoldo de Freitas Cruz, Dossiê nº 3008, 1887-1891.
85 Não sabemos exatamente quando o Conselheiro Leopoldino Joaquim de Freitas regressou a Porto Alegre;
em 1881 se aposentou, falecendo em 1889. Portanto, é plausível que tenha recebido o sobrinho no Rio de
Janeiro em 1885.
86 Roma Moreira era filha do advogado Antônio Moreira da Silva e de Maria L. Moreira da Silva. Antônio
era um antigo deputado paulista do Congresso Constituinte Republicano; era natural de Sorocaba e faleceu
em Curitiba em 1920 com 69 anos. Leopoldo e Roma tiveram os seguintes filhos: Léa de Freitas; Eudoro
de Freitas, militar, casado com Minervina Maluf; Murillo de Freitas, que se casou com Rosa Montemurro;
e Boris de Freitas. (Correio Paulistano, São Paulo, 26 jan. 1940)
87 CYRIANO, Almeida. Dr. Leopoldo de Freitas. A Comarca, Guaxupé (MG), 23 jan. 1941.
62

português Carlos Frederico Lecor, o qual, a pedido do diretório de Buenos Aires, tomou
Montevidéu e conquistou a Banda Oriental, Alcides menciona que: “Quase
exclusivamente de portugueses adotivos, de alguns espanhóis velhos e de poucos naturais
do Brasil – libertos paulistanos ou catarinenses - se compunha a infantaria” (CRUZ, 1907, p.
52). Tal informação ele pode ter extraído dos acervos históricos que frequentava com
prazer, mas certamente a confirmou através dos relatos orais de sua família, ela própria
resultante dessas mobilidades espaciais e sociais.

3 Biblioteca

O professor Alcides fez o seu testamento – “são e em seu estado perfeito de


juízo” – a 10 de julho de 1915, e sua então esposa Severina ditou as últimas vontades dele
– “doente e de cama, porém em seu perfeito juízo” – quase um ano depois, a 30 de junho
de 1916. Ambas as disposições finais traziam restrições a um dos genros, Arlindo Pereira
Nunes, casado com Fidelcina. Severina é mais discreta em seu arrazoado, já Alcides Cruz
exige que os bens que porventura ficassem com Fidelcina “não se comuniquem de forma
alguma com o seu marido [...] devido à irregular conduta do mesmo, mostrando não ter
ele a necessária idoneidade para possuir bens de qualquer natureza”.

Estudante do Ginásio São Pedro, Colégio Souza Lobo e Escola Militar, em


Porto Alegre, Alcides Cruz formou-se em direito em São Paulo. Após, dedicou-se à
advocacia, foi fundador e professor da Faculdade de Direito de Porto Alegre entre 1900
e 1916 e deputado estadual pelo PRR por sete legislaturas, de 1897 a 191688.

O patrimônio material acumulado pelo casal Alcides-Severina não era nada


desprezível, situando-os numa elite intermediária de abastados urbanos. Cotejando o
inventário post-mortem do casal, temos:

a) Uma chácara no lugar denominado Santo Antônio, 4º e 5º distrito desta


Capital, com casa de moradia e mais benfeitorias – avaliada em 28 contos
de réis;
b) uma casa na rua Fernando Machado nº 1 – avaliada em 20 contos de réis;
c) uma meia-água, na rua José do Patrocínio nº 245 – avaliada em dois
contos de reis;
d) uma casa no arrabalde S. José, na rua S. Alfredo nº 8 – avaliada em seis
contos de réis;
e) 50 reses de criar e 50 ovelhas – avaliadas, respectivamente, por dois
contos de réis e 250 mil réis;
f) uma biblioteca com 1837 volumes – avaliada em dois contos de réis;
g) uma caderneta no Banco do Comércio com 36:089$400 réis;

88 GRIJÓ, 2005.
63

h) dívidas ativas: honorários advocatícios devidos à herança por D. Carolina


Correa do Canto: 12:500.000 réis.
Temos, assim, um patrimônio material de 108:839$400 réis, sendo
praticamente 52 por cento dele concentrado em bens imóveis e 33 por cento em dinheiro.
Se somarmos a essa porcentagem de patrimônio em dinheiro as dívidas ativas,
passaremos a 44,6 por cento, recursos provavelmente advindos de honorários
advocatícios que, se são irregulares, representam volumes consideráveis89.

Chama a atenção entre os legados do casal Alcides-Severina o sólido capital


intelectual e simbólico consolidado numa biblioteca de 1837 volumes, doados quase
integralmente para a Faculdade de Direito de Porto Alegre, e por isso descrita
individualmente no inventário. Norbert Elias destaca que: “O aumento da demanda de
livros numa sociedade constitui bom sinal de um avanço pronunciado no processo
civilizador, porque sempre são consideráveis a transformação e regulação de paixões
necessárias para escrevê-los quanto para lê-los”.90 No Brasil, “desde meados do século
XIX a posse de livros passou a proporcionar um status aos grupos médios urbanos,
principalmente àquele formado pelos profissionais liberais, tais como médicos,
advogados e jornalistas”91

Gisele Venâncio, que elaborou uma biografia intelectual de Oliveira Viana


através do seu acervo privado, que incluía uma sólida biblioteca, usa uma metáfora de
Jorge Luiz Borges e indica estes patrimônios como espelhos e máscaras de seus
acumuladores. Similares aos “espelhos”, as bibliotecas refletem heranças intelectuais,
habitus, instituições, mas também atuam como máscaras, funcionando como “uma
representação de seu dono, para ele mesmo, para os outros e para a posteridade” 92.
Conforme Artières “arquivar a própria vida é pôr-se no espelho”93.

Assim, observada com atenção, uma biblioteca denuncia estilos de vida e,


considerando que o seu processo de acumulação decorre durante anos, lega-nos pistas
sobre a trajetória de seus acumuladores (o indivíduo propriamente dito e sua família).
Considerando a passagem desses personagens por instituições de ensino superior, por
exemplo, esses livros acumulados estão impregnados de visões de mundo geracionais e
por isso mesmo não necessariamente unívocas. Certamente não concordamos com todos
os autores que acumulamos em nossos acervos literários, mas eles nos descrevem
enquanto leitores. Segundo Venâncio:

89 APERS. Petição (Requerido: Carolina Correa do Canto: Requerente: não consta). Comarca de Porto Alegre.
Para o ano de 1914 há dois processos (nº 46 e nº 61); para o de 1915, outros dois (n° 276 e nº 277).
90 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizatório: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
p.229.
91 VENÂNCIO, Gisele Martins. Oliveira Viana entre o Espelho e a Máscara. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Ver também: FERREIRA, 1999, p. 313-334
92 CHARTIER apud VENÂNCIO, op. cit., p. 13
93 ARTIÈRES, Philipe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos. v. 11, n. 21, p. 11, 1998
64

Colecionar livros era uma etapa importante na formação de um intelectual.


Possuir um gabinete de leitura, estantes cobertas de livros, uma quantidade de
raridades ou de livros pertencentes aos cânones literários nacionais ou
estrangeiros simbolizavam para seus pares sua importância intelectual.94
No caso específico do professor Alcides de Freitas Cruz ele não era apenas
um leitor, mas um autor envolvido na escrita e na tradução de livros. Sua pujante
biblioteca possuía livros em diversas línguas: latim, espanhol, italiano, francês e
português. Se a pensarmos como uma máscara ou autorrepresentação, aquela biblioteca
projeta a imagem de um intelectual, um homem de razão (como diria Norbert Elias), um
homo academicus, tradutor, historiador, pensador da área do direito, leitor de romances de
qualidade, desde Machado de Assis, Eça de Queiroz a Mallarmé.

Mas a afeição pelos livros também pode ser encontrada em outras trajetórias
de intelectuais negros. O sociólogo Oracy Nogueira, tratando da trajetória do médico e
parlamentar negro Alfredo Casemiro da Rocha, narra as destruições sofridas pelos bens
daquele indivíduo em decorrência da revolução de 1932, quando a família teve de fugir e a
sua casa foi saqueada. Segundo carta de Alfredo para seu filho Alfredinho, toda a
residência foi destruída e mesmo os preciosos diplomas rasurados com dizeres ofensivos;
porém, na missiva ele se lamentava de um item de seu particular afeto:

Entretanto, o que me acabrunha por demais é a perda dos melhores livros da


minha tão querida biblioteca. Lá se foram o Labrousse (16 volumes); o dicc.
Internacional (24 volumes) e mais e mais. É bem verdade que ainda me
deixaram muitos livros, mas infelizmente souberam fazer a seleção[...].95
Este afeto pelas letras acumuladas em uma bela biblioteca também pode ser
verificado em um caso de um intelectual negro local. Segundo José Antônio dos Santos,
o caso diz respeito a Dario de Bittencourt, neto de Aurélio Viríssimo de Bittencourt:

Em 1943, quando terminou a edificação da sua casa própria [Dario]


reservou uma das maiores salas à sua Biblioteca Jurídica que denominou Sala
Aurélio Júnior, como seu pai assinava na maioria das vezes os poemas que
eram publicados nos jornais da época, Correio do Povo, Jornal do Comércio,
Petit-Journal e O Exemplo. A referida Sala foi formada com livros de
Direito, Filosofia, Sociologia e Economia, em homenagem ao pai, embora, dos
livros deste, um único havia restado. Era a obra “Princípios Gerais de Direito
Constitucional dos Estados Unidos da América do Norte”, versão de Alcides
Cruz, então professor da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre. O livro
foi editado em 1909, e havia sido dedicado pelo autor ao “dr. Aurélio Júnior”.
O livro havia sido guardado por Tia Zezé desde a morte do seu pai e lhe foi
entregue em 1918, quando Dario se preparava para entrar na Faculdade de
Direito.96
“Tia Zezé” era tia-avó materna de Dario. Os pais de Dario, Aurélio Viríssimo
de Bittencourt Júnior e Maria da Gloria Quilião, se divorciaram após nove anos de

94 VENÂNCIO, 2015, p.160.


95 NOGUEIRA, Oracy. Negro Político, Político Negro: a vida do Doutor Alfredo Casemiro da Rocha,
Parlamentar da República Velha. São Paulo: Ed. da USP, 1992. p.233.
96 SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da História: trajetórias intelectuais na imprensa negra meridional.
Porto Alegre, 2011. Tese (Doutorado) - PGH/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
2011. p. 238-239.
65

casamento, ficando o filho único sob a tutela paterna.97 O divórcio não significou,
entretanto, um afastamento de Dario da família de sua mãe, já que, segundo Santos98, tia
Zezé foi sua segunda mãe, falecendo em 1922 com 77 anos de idade.

A intimidade de tia Zezé com a família Bittencourt fica ainda mais evidente se
pensarmos que a ela foi atribuído (ou ela tomou para si) o encargo de portadora de um
objeto da memória afetiva daquela família negra. O livro em questão – Princípios Gerais de
Direito Constitucional dos Estados Unidos da América, de Thomas Cooley – foi traduzido pelo
professor Alcides de Freitas Cruz e editado em 1909 pela Editora Carlos
Echenique/Livraria Universal99. Materializar a memória afetiva familiar em um livro é
um gesto que não pode ser desprezado, pois evidencia a valorização de uma trajetória
vinculada ao espaço acadêmico e à intelectualidade, no qual a titulação e o ingresso como
professor, além da fruição de boa e atualizada literatura (incluindo romances), servem
como símbolos de prestígio e afirmação social.

O legado do professor Alcides Cruz, transmitido através da tia Zezé, mostra


como a troca de presentes em forma de livros era um modo de consolidar redes
interpessoais, sendo usados até mesmo como objetos de recordação. Os presentes
fomentam e consolidam redes de amizade e sociofamiliares, compartilhando o prazer da
leitura e o gosto social pela presença de livros nas casas, com o investimento na
montagem de locais próprios para conservá-los, gozá-los e mostrá-los. Nesse sentido é
que podemos compreender o gesto de doar a biblioteca para a Faculdade de Direito,
numa espécie de escrita de si póstuma, voltada para a posteridade. O destino dado aos
livros mostra que eles não eram acumulados e preservados apenas ou sobretudo por seu
valor financeiro, mas principalmente pelo seu significado simbólico e mesmo afetivo.
Aliás, a única parte da biblioteca que Alcides Cruz não legou àquela instituição de ensino
superior foi a Enciclopédia Britânica, deixada em testamento ao seu irmão Leopoldo de
Freitas Cruz, então professor da Faculdade de Direito de São Paulo. 100

4 Um republicano negro

O nome de Alcides relaciona-se aos “republicanos históricos”, tendo vivido


ativamente o período conhecido por propaganda republicana: aos 18 anos, ainda aluno da
Escola Militar, participou, em setembro de 1885, da fundação do Club Litterario
Democrático Vinte de Setembro, cujos membros declararam aceitar e assinar o Manifesto
Republicano de 1871. Em outubro daquele ano ele foi eleito 2º secretário desse mesmo
clube, compondo a comissão de redação dos estatutos, junto com Luiz Americano,

97 APERS. Apelação Cível – Divórcio (Apelante: o Dr. Juiz de Casamentos; apelados: Dr. Aurélio Viríssimo de
Bittencourt Júnior e Maria da Glória Quilião de Bittencourt). Superior Tribunal do Estado do RS, maço
18, nº 183, ano 1906.
98 SANTOS, 2011, p.216.
99 ALMEIDA, Vinicius Furquim de. Vida de Raphael Pinto Bandeira: as formas de escrita da história em Alcides
Cruz. [no prelo]
100 Para se ter uma ideia do impacto da doação daqueles 1837 livros, consideremos que a biblioteca da
Faculdade de Direito de Porto Alegre foi inaugurada em 1906 com 774 volumes, possuindo, em 1910,
2200 volumes. (GRIJÓ, 2005, p. 166, 168).
66

Apolinário Porto Alegre, Felicíssimo de Azevedo, João Maia e Cristiano Reis. Tinha na
época 18 anos de idade.101

No ano seguinte, em 1886, já egresso da Escola Militar, escrevia para a revista


A Luta, que, segundo ele próprio, foi o marco de sua carreira como plumitivo:

Fiz minhas primeiras armas, é certo que muito tarde, quando já eu tinha
dezenove anos, n’A Luta, em 86, ao lado de Domingos Nascimento,
Alcântara Filho, Soares dos Santos, J. Marques da Cunha, etc., todos hoje
oficiais do exército e, então, ilustradíssimos alunos da Escola Militar,
redatores daquele excelente periódico.102
Tratava-se do segundo número da revista mensal Luta, consagrado à
comemoração do início da Revolução Francesa, a 14 de julho de 1789. Nesse número
Alcides Cruz aparece como autor de um artigo, Bibliografia.

Nas vésperas da abolição da escravatura, a 23 de abril de 1888, o Clube


Republicano de Porto Alegre organizou uma sessão solene comemorativa ao 96º
aniversário da morte de Tiradentes. O evento ocorreu às 20 horas, no salão da Soirée,
presidido por Luiz Leisegneur, presidente da União Republicana. Alcides Cruz ocupou a
tribuna antes de Ernesto Alves, orador oficial do Clube.

A primeira inserção profissional de Alcides de que se tem informação depois


de formado agrimensor pela Escola Militar de Porto Alegre foi a de amanuense, na seção
de contabilidade, na Estrada de Ferro Porto Alegre-Uruguaiana (1889), no mesmo ano
em que perdeu seu tio, Leopoldino Joaquim de Freitas, que falecia como Conselheiro do
Império.103

O rápido deslocamento proporcionado pelos trens tornava este setor de


transporte parte essencial das mobilizações militares e político-eleitorais, salientando o
papel político dos trabalhadores ali envolvidos.

Eleito em julho de 1892 para presidente do Estado do Rio Grande do Sul,


Júlio Prates de Castilhos foi derrubado por um golpe a 03 de novembro daquele mesmo
ano. A tensa situação política regional naquele período pós-proclamação da República,
que levaria à guerra civil federalista de 1893-1895, fez com que o diretor do escritório
dessa linha férrea em Porto Alegre, Dilermando de Aguiar, passasse ao engenheiro-chefe,
ainda em abril de 1892, uma “relação dos empregados que daqui se retiraram
acintosamente, para que não os admitais, quando vos forem pedir ocupação”. 104 Nessa

101 A Federação, nas edições de 20 de setembro e de 2 de outubro de 1885.


102 CRUZ, Alcides. Os livros Traços Cor-de- rosa (Versos por Zeferino Brasil). A Federação, 02 mai. 1893.
103 BNRJ/Heme. A Federação, 22 abr. 1890, Porto Alegre, ano VII. A notícia relacionava-se à prorrogação de
uma licença de saúde por mais três meses.
104 BNRJ/Heme. A Federação, 11 ago. 1892. A notícia é uma resposta dos republicanos do PRR a uma crítica
feita por “um jornal da tarde”, de que o major Telles, então diretor daquele escritório, teria dado uma
gratificação aos funcionários “por serviços prestados no período revolucionário de julho último”. Segundo
o PRR isso não ocorreu, ao contrário das ações do ex-diretor Dilermando, energúmeno funcionário, que
perseguia os de cor política distinta. A relação completa de abril de 1892 é: João Carlos Maywald, Augusto
Cezar de Medeiros, Henrique C. da Fontoura Trindade, Leovegildo Velloso da Silveira, Victorino Borges
de Medeiros e Alcides de Freitas Cruz.
67

relação encontramos Alcides de Freitas Cruz e Victorino Borges de Medeiros (irmão do


futuro presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros).

Com a eclosão da guerra civil de 1893-1895, encontramos Alcides Cruz


envolvido na resistência republicana contra os federalistas. Em 1894 integrou o 7º
Batalhão de Infantaria da Guarda Nacional, aquartelado no Theatro São Pedro, como
alferes assistente da força. Batalhão organizado e comandado pelo tenente-coronel
Marcos Alencastro de Andrade, estava à disposição do presidente Júlio de Castilhos para
ser empregado contra os revoltosos.

Em Ordem do Dia de 28 de março de 1894, assinada pelo tenente-coronel


comandante Marcos Alencastro de Andrade, é elogiado o brioso 7º Batalhão da Guarda
Nacional, comandado pelo coronel Thomas Thompson Flores, que havia guarnecido
durante os dias 09 a 27 daquele mês a ponte sobre o rio Jacuí, em uma “expedição
confiada pelo Governo da República”. Salientaram-se alguns nomes, entre eles o alferes
e secretário interino Alcides de Freitas Cruz. A Ordem do Dia destacava que:

ao patriotismo e mérito dos senhores oficiais, instrutores,


inferiores e praças é que devo motivo de orgulho por comandar o
7º Batalhão, na sua totalidade composto de moços criados no
conforto da capital, sem a rude experiência dos campos e
desafeitos ao rigor da vida militar [...].105

Em um de seus trabalhos historiográficos Cruz denuncia que a sua ligação


efetiva com o Partido Republicano Rio-Grandense ocorreu no ano de 1886 106. Segundo
ele mesmo escreve no jornal republicano A Federação (03/05/1893), sua conexão com o
PRR e a iniciação literária ocorreram no mesmo período. Ele dá o ano de 1886 como seu
debute republicano e literário, como se as duas faces se complementassem – político
republicano e homem de letras.

Sendo um republicano histórico e tendo demonstrado fidelidade ao PRR em


vários momentos, seja no apoio à posse de Júlio de Castilhos e mesmo na guerra civil
federalista, Alcides estava pronto para voos políticos mais altos. Em 1897, no último ano
em que cursou a Faculdade de Direito de São Paulo, assumiu, em janeiro, a redação do
jornal Mercantil, que naquela data mudava de orientação político-partidária, deixando a
política do conselheiro Silveira Martins.

O segundo jornal a circular em Porto Alegre com o nome de Mercantil era


propriedade de João Câncio Gomes, que também atuou como seu redator. 107 Câncio

105 O 7º Batalhão de Infantaria era comandado pelo tenente-coronel Marcos Alencastro de Andrade e
integrava a 2ª Brigada da Divisão de Porto Alegre, comandada pelo coronel Francisco da Rocha Callado,
sendo comandante da Divisão de Porto Alegre o coronel Thomaz Thompson Flores. (A Federação, 08 jan.
e 27 abr. 1894)
106 CRUZ, Alcides. Epitome da Guerra entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata. Porto Alegre: Oficinas
Tipográficas da Livraria do Comércio, 1907. p.II.
107 Câncio Gomes (1836-1859), aos 15 anos de idade, começou a trabalhar na imprensa local como tipógrafo,
em um jornal homônimo ao seu (de propriedade de Félix Xavier da Cunha); em 1861 era empregado na
tipografia do periódico A Ordem; depois foi chefe da oficina do jornal Rio-Grandense; em 1872 fundou o
órgão literário Álbum Semanal; e, em 1873, lançou o seu próprio jornal, o segundo Mercantil. Fez parte da
Comissão Conservadora para a libertação imediata de escravos e dos indivíduos contratados do 3º Distrito
68

Gomes não tinha ligação efetiva com nenhum dos partidos políticos existentes, mas seu
posicionamento sempre oscilava a favor dos conservadores 108. Após seu falecimento, o
Mercantil mudou de curso político, tornando-se próximo ao Partido Liberal. Em 1897
mudava novamente os rumos e, ironizando as oscilações partidárias d’O Mercantil, o
jornalista d’A Gazetinha (Porto Alegre, 17/02/1897, p. 2) acusa aquele periódico de
praticar um jornalismo cata-vento, inclinando-se politicamente em direção de onde sopravam
os ventos da situação:

Era neutro; depois, quando o sr. Mario Santos pôs-se a frente do antigo diário
fundado pelo honesto Câncio Gomes, vimo-lo monarquista declarado. [...]
Dizia, mais ou menos, isto: Se a monarquia é um mal, eu quero antes este
mal para a minha pátria do que a república que temos. [...] De monarquista,
o Mercantil [...] transformar-se em republicano federal, isto é, adepto do
partido do dr. Gaspar Martins, foi de cousa do pouco tempo.
Assumiu então a chefia do caracolante órgão o sr. Dr. Henrique d’Avila,
antigo senador da Monarquia. Contudo, o sr. Mario Santos lá ficou algumas
semanas. Parece-nos, porém, que as finanças do novo órgão federalista
começaram a ficar mal; e dai [...] um desacordo houve entre o sr. José Francisco
Dias e o sr. Dr. Henrique d’Avila, e o [...] Mercantil voltou à neutralidade
primitiva, sob a redação presumível do sr. Carlos Gomes Dias, a princípio, e
do sr. Mario Santos, em seguida. Ultimamente, porém, não sabemos por que
meios, nem por que modos, o Mercantil nos surge de novo com o gorro frígio à
cabeça, mas neutro ainda, e recomendando à benemerência popular o governo
do sr. Dr. Julio de Castilhos.
E foi no clima de acalorados debates políticos (e de políticas definidoras) que
Alcides Cruz, recém assumindo o posto de redator do jornal Mercantil de Porto Alegre,
viu-se obrigado a responder às ofensas raciais que lhe foram lançadas por Isidoro Dias
Lopes, nas páginas de A República (06/02/1897). A agressiva investida de Isidoro foi
provocada por um artigo de Alcides em que ele o acusava de ter desertado do Exército. 109

A resposta de Isidoro merece ser transcrita mais longamente, pois carrega


ofensas racistas que ilustram o contexto intelectual do início da República e a forma como
naquela comunidade urbana se evidenciava o pertencimento racial do então deputado
Alcides de Freitas Cruz:

Desertor do Exército. Entre as muitas infâmias publicadas ontem no


Mercantil contra os escritores da República, pelo negro alugado ao
governo, há uma que nos é individualmente dirigida, pois presentemente,
sou o único militar na Redação.
Vou responder, não em atenção ao ridículo e covarde capitão de carnaval,
que tendo trocado a pena pela espada, fugiu miseravelmente, a única vez em

da Capital, conforme deliberado no meeting abolicionista de 08 de dezembro de 1887 (MCSHC. Mercantil,


Porto Alegre, 09/12/87).
108 BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravismo e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982;
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os Cativos e os Homens de Bem. Experiências Negras no Espaço
Urbano. Porto Alegre: EST, 2003.
109 Isidoro Dias Lopes (1865-1949) era aluno da Escola Militar em 1888, quando Alcides Cruz, já egresso, foi
convidado a fazer parte do grupo que organizava a propaganda republicana dentro da Escola. Dias Lopes
fez carreira militar, tendo abandonado o Exército em 1893 para aderir à Revolução Federalista. Exilado na
Europa, retornou a Porto Alegre em 1896 após a anistia, seguindo sua carreira militar. (FRANCO, Sérgio
da Costa. Dicionário Político do RGS – 1821/1937. Porto Alegre: Suliani Letra & Vida, 2010. p. 121-122)
69

que teve ocasião de pelejar pelo seu amo, mas sim em consideração ao público.
Só a mais supina ignorância ou a mais requintada má fé levariam esse
gorila, que dá pelo nome de Alcides Cruz, a tentar injuriar-me, dando-me
a qualificação de desertor do Exército. Perante as leis fundamentais da
república brasileira e em face do compromisso (antigo juramento) contraído
pelos oficiais do Exército, não há desertores em guerras civis ou pelo menos na
revolução última.
Fosse o Brasil ainda monarquia, onde o soldado era do rei, e seriam desertores
todos aqueles que pegassem em armas contra o governo; mas na república,
onde o militar é, em primeiro lugar, cidadão, só mesmo a estupidez, inerente
nos mestiços produtos de raças inferiores, é capaz de, em desacordo
com as leis que nos regem, inventar o qualificativo de desertor. (grifos nossos) 110
Descrever o deputado Alcides de Freitas Cruz como produto da mestiçagem de
raças inferiores aponta sintonia com as últimas modas intelectuais importadas e
diligentemente aplicadas (mediante adaptações) na interpretação da sociedade brasileira
e de seu futuro como país111. Também aponta certo reconhecimento mais próximo de
Alcides, que talvez não seja simplesmente uma consideração de sua epiderme, mas da
formação multirracial de sua família. Os epítetos de gorila e de negro alugado ao
governo demonstram como Alcides era vulnerável a ofensas e constrangimentos
baseados no determinismo racial. No entanto, aos 30 anos de idade, com a educação
familiar e formal solidamente já elaboradas, a sua resposta veio em seguida.

Dois dias depois de ter sido publicamente ofendido, o então deputado Alcides
de Freitas Cruz respondeu com um artigo intitulado “Com a ponta do pé”.

Os miseráveis pasquineiros, que há uma porção de dias vem me insultando,


através do anonimato, por um papelucho vespertino a que chamam A
Republica excederam-se desabridamente sábado, cobrindo-me de asquerosas
insolências.
O que, porém, teve mais petulância foi um certo Isidoro, que do alto de seus
tamancos, pretendeu atirar-me o labéu, como se eu me sentisse
deprimido com o preconceito da cor, perante uma sociedade
onde gozo do melhor conceito.
Sou mestiço, sim; mas que não me envergonho de sê-lo,
como se o não deve envergonhar nenhum brasileiro digno,
porque todos os brasileiros são mestiços.
E é nesse fato que está a excelência de sua raça!!
Só os relapsos que foram solidários com Aparício Saraiva, com os polacos
colonos de Paraná, com Colombo Leone, e outros aventureiros que não
nacionais vieram profanar o solo da pátria, é que se sentem bem quando
julgam estigmatizar um brasileiro, dando-lhe o epíteto de
negro.
Como o homem que, à custa de um trabalho dignificador e uma conduta
inatacável, acentuou sua posição, obscura, mas honrada e acatada, na
sociedade em cujo seio nasceu e tem vivido, sociedade que já acatava seus

110 A República, Órgão do Partido Republicano Liberal, Porto Alegre, terça, 6 fev. 1897, Gerente Francisco
Miranda.
111 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930.
São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
70

antepassados, orgulho-me com o epíteto, como o antigo Romano que dizia:


Roma num sum.
Que consideração pode merecer essa imprensa onde só prevalecem os abusos e
os anonimatos? Não se viu que durante muitos dias da semana passada,
aquilo era um pelourinho, cujos verdugos da minha dedicação partidária e
do meu amor ao estudo, não trepidaram diante a enfermidade herpética
que me flagela? Além de tamanha torpeza, chamavam-me diariamente de
chimpanzé, de gorila, de makololo, e atiravam-se outros apodos, que
o pasquim de sábado homologa como sendo um lece ridículo!
Debalde procurei no terreno da doutrina, no domínio da teoria, responder a
uma das sandices que por um cano da folhinha, vazava-se com o fito de
salpicar-me. Não surtiu efeito algum, porque novas fezes despejaram-se por
outras goteiras.
Rude prova aquela por que passa a vítima, sem ter para onde apelar um
corretivo para esses desmandos da imprensa, sob pena de descer a arena do
periodiqueiro desarrazoado.
Mas afinal já está tão puído e rafado o alvitre de chamar-se negro a
quem não sendo branco, entretanto, não tem pesar de o não
ser; porque as leis das sociedades civilizadas nivelam-no a todas as outras
raças humanas – que tal preconceito apenas serve para degradar a quem o
maneja, na falta da mais insignificante acusação para tisnar a pureza do
agredido.
Protesto, porém, quando o agitado rabiscador afirma que o “ridículo e covarde
capitão de carnaval, que tendo trocado a pena pela espada, fugiu
miseravelmente a única vez em que teve ocasião de pelejar pelo seu amo”.
De envolta com a calúnia infame, veio também o soez insulto a uma
corporação distintíssima que tem sido elogiada pelos mais eminentes estadistas
e chefes do exército – a Guarda Nacional –, que é o braço direito do exército,
porque sem ela o Brasil não teria cantado vitória nas campanhas de 52, do
Uruguai e do Paraguai.
É uma criação legal; as nomeações para os postos de oficial emanam do governo
federal, do mesmo modo que para o exército. Por conseguinte, não é uma
corporação carnavalesca. De carnaval são aqueles tenentes-coronéis de
bobagem cujos postos eram conferidos caricatamente por generais que hoje são
despachantes de alfândega ou rábulas em São Paulo. [...] E tu, se tens algum
brio, se não quiseres passar como o último dos caluniadores, prova que fugi
covardemente do campo de batalha!
Com a ponta do pé devolvo à cara dos que se escondem no antro da Rua
Nova, as vilanias com que me saudaram. (grifos nossos)112
O tom da resposta de Alcides ecoará em outros de seus escritos, que veremos
adiante. Neles existe uma assumida e explícita não branquitude, um elogio à mestiçagem,
apontada como característica geral do povo brasileiro, aceitando ser chamado de várias
definições por ele não tomadas como negativas, mas como insígnias de pertencimento
racial (e familiar) – mulato, negro etc. Ele ostenta uma opinião pública que propõe o
elogio ao mérito e ao reconhecimento social, defendendo uma ordem republicana

112 Mercantil. Folha da tarde. Ano 24, n.30, segunda-feira, 8 fev. 1897. Proprietário e editor José Francisco
Dias; secretário da redação Mario Santos; fundado por Câncio Gomes.
71

desracializada, em que a virtude e o saber fossem os elementos diferenciadores e


estabelecedores de hierarquias.

Lendo os textos de Alcides Cruz e observando a lista de livros e periódicos de


sua extensa biblioteca pessoal, percebemos que este homem negro de letras estava muito
bem informado sobre as discussões, candentes no século XIX, a respeito dos
determinismos raciais, do evolucionismo e do darwinismo social.

Em seu livro de 1907, Alcides de Freitas Cruz aplica as leis do atavismo e da


hereditariedade em Pedro I, acusando-o de degeneração mental113, por ser portador de
“heranças mórbidas”. Segundo ele, “o primeiro imperador do Brasil, esse rebelado contra
seu pai e sua pátria, é o tipo mais bem acabado da agitação, da incoerência, da hipocrisia
e do arrebatamento, depositário e herdeiro maior do fatal legado de seus avós” 114. Usando
um dos livros encontrados em sua biblioteca (La Mort Et Le Diable: Histoire Et
Philosophie des Deux Negations Supremes, de Pompeyo Gener. Paris: C. Reinwald,
1880), ele cita Esquirol e Haeckel para defender a maior proporção de demência nas
famílias reais do que no restante da população, seja pelos casamentos entre membros da
própria estirpe e pelo gênero de vida que levam (educação formalista, artificialidade do
meio em que se movem etc.).115

O meio era fundamental nas argumentações históricas de Alcides Cruz,


levando-o a tecer arguições detalhadas sobre, por exemplo, o efeito da alimentação nos
temperamentos. Segundo ele, os portugueses eram acostumados a uma nutrição
carbonatada, que que lhes causava um caráter ousado e aventureiro. Mas, deslocando-se para o
Brasil meridional, aqui acostumavam-se a uma alimentação carnívora por excelência116.

Os portugueses, como de resto todos os estrangeiros, que se passaram a


América nos séculos XVI e XVII, sofreram incontestáveis transformações
orgânicas que os descendentes revelaram logo na primeira geração. Buckle, o
insigne filósofo, desenvolvendo a sua dupla tese de como o “homem modifica a
natureza e a natureza reciprocamente modifica o homem”, fornece-nos dados
bastantes, para bem se compreender o que deu causa à enérgica ação dos filhos
de reinicolas. Sobre a energia modificadora do meio (clima e solo), bem como
da alimentação e da influência dessas variações no indivíduo que se
transportava de outro habitat, muito se tem escrito e, portanto, podem
prescindir-se novas considerações.117
Usando como referência o livro Le Darwinisme, de 1872, de Émile Ferriére,
Alcides Cruz defende que esses sinais evolutivos eram ainda mais profundos na raça
branca, pois ela “sofre profundas variações uma vez submetida à ação mesológica, visto

113 CRUZ, 1907, p. 4.


114 Ibid., p.5.
115 Em artigo publicado em A Federação (1913), destratando a genealogia de quem lançava ofensas racistas
contra ele e sua família, escreveu: “Pelo lado moral, são inúmeras as famílias brasonadas, em cujo seio a
sânie ferve e enriquece os anais do crime, de nada servindo que os antepassados tivessem cingido a coroa
de príncipe ou o chapéu cardinalício. Haja vista os terríveis venenos de que só os Borgias eram senhores
do segredo. Nas galerias de retratos de criminosos, que enchem os gabinetes policiais das grandes cidades
do Velho Mundo e da América do Norte, quantos príncipes não estão ali reproduzidos?”.
116 CRUZ, 1906. p. 33.
117 Ibid., p. 5.
72

que a mudança das condições de existência bastam para determinar as mais graves
transformações sociais”.118

Em sua análise da formação do Rio Grande do Sul, Alcides busca orientação em


Tristão de Alencar Araripe Júnior119, que compôs uma lei – chamada de obnubilação –
que teria atuado preferencialmente nos dois primeiros séculos coloniais. Na biblioteca de
Alcides Cruz encontramos uma obra de Araripe Júnior. Trata-se do romance Miss Kate,
lançado em 1909, em Portugal, com o pseudônimo de Cosme Velho. Nesta obra, com o
prefácio do médico psiquiatra Afrânio Peixoto, professor da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, Araripe Júnior trata da questão da loucura, representada pelo personagem
principal, um “evadido da razão prática”, cuja insanidade era justificada por vários
fatores, como o consumo de álcool, o fumo, a ociosidade.
Também na biblioteca de Alcides encontramos encadernado o periódico A
Semana. É possível que em tal publicação constasse o ensaio de Araripe Júnior intitulado
"Literatura Brasileira", publicado ali em 1887. Naquele ensaio “se depreendem os
princípios teóricos que estariam por trás da concepção de sua história da literatura
brasileira”120.

O sumário daquele texto de Araripe Júnior apresenta como último ponto,


justamente, “5. O meio. Leis físicas e mentais, segundo H.T. Buckle. Sua aplicação ao
Brasil. – Obnubilação do colono”. Discutindo e se opondo a Silvio Romero, Araripe
Júnior defendia que – pelo menos no que se referia à análise do século XVI da história
da literatura brasileira – o fator raça deveria ser desconsiderado pela valorização da
variável meio, expressando seu conceito de obnubilação brasílica. Tal lei consistia “na
transformação por que passa o indivíduo ao atravessar o oceano Atlântico e,
posteriormente, adaptar-se ao meio físico e ao ambiente primitivo” 121. Nas palavras de
Alcides Cruz:

A força individual de cada homem, desamparada na vastidão imensa da terra


recém descoberta, longe de reagir, aniquiliva-se. E assim, quanto mais se
afastava da costa, mais se animalizava, baixando a inteligência na escala da
progressão.122
Produto híbrido de uma família multirracial, o professor e deputado Alcides
de Freitas Cruz demonstra em seus escritos uma construção intelectual que via
positivamente a mestiçagem, percebendo-a como característica imanente de toda a
população brasileira. Se ele era vilipendiado como estúpido, por ser um mestiço produto do

118 (CRUZ, 1906, p. 34). Em sua biblioteca encontramos ainda: Raymundo Nina Rodrigues (As raças humanas
e a responsabilidade penal no Brasil, de 1894); As Theorias da Evolução, de Delage & Goldsmith (em português);
Origine de l’Homme et des Sociétés, de Clémence Augustine Royer; La Lutte des Races, de Selon Ludwig
Gumplowicz; Darwinism and other Essays, de John Fiske (1879, London); Lois scientifiques du dévelopement des
nations: dans leurs raports avec les principes de la sélection anturelle et de l'hérédité, de Walter Bagehot (1875, em
francês).
119 Tristão de Alencar Araripe Júnior (Fortaleza, 1848 - Rio de Janeiro, 1911) formou-se na Faculdade de
Direito de Recife em 1869. Em artigo 1898, Revista do Brazil (São Paulo), Alcides Cruz já mencionava a
importância da leitura de Alencar Araripe a respeito da lei da obnubilação: “para completa inteligência
deste princípio, ler Araripe Júnior, sobretudo Gregório de Mattos”. (CRUZ, 2017, p. 38)
120 CAIRO, Luiz Roberto Velloso. Araripe Júnior: crítico e historiador da literatura brasileira. Teresa. Revista
de Literatura Brasileira. São Paulo, v.14, p. 55, 2014.
121 Ibid., p.57.
122 CRUZ, 1906, p.27.
73

cruzamento de raças inferiores, ele respondia que aí nesta mistura estava a excelência da raça
brasileira. A sua racionalização dialogava com suas experiências sociais e raciais,
orgulhando-se de suas origens familiares, das trajetórias de seus ancestrais. Sua altaneira
não-branquitude, exposta publicamente em vários momentos, o posicionava no debate
sobre a presença negra no país. Consciente de que vivia em um país cujas hierarquias
sociais eram mediadas pelo pertencimento racial de seus integrantes, ele recusou, mesmo
no início de sua carreira política, uma imagem embranquecida.

O imprevidente Isidoro Dias Lopes não soube ficar calado e, para nossa
felicidade, tomou novamente a pena para ofender seu inimigo político. No artigo de 08
de fevereiro Alcides protesta contra o sórdido e mesquinho comportamento de seu
oponente, que não respeitou nem mesmo a sua enfermidade herpética. E, a 09 de fevereiro,
Isidoro publicou um longo artigo, no qual parece ter um prazer sádico em sentir que a
menção a doença atingira o seu adversário, voltando a usar tal artifício ironicamente.
Selecionamos:

Dizem que não há engenho, mesmo a vapor, que seja capaz de fazer mais
farinha em um dia do que o makololo faz em uma hora, quando se coça[...].
Ora, makololo, você é uma engenhoca[...] [...]
Escuta makololo, você diz que até aludimos a uma doença que tanto lhe
flagela e por isso protesta indignado. Mas que zanga é essa agora? 123
Na ficha estudantil de Alcides Cruz, da Faculdade de Direito de São Paulo,
encontramos dois atestados médicos passados em Porto Alegre, um em 1896 e outro em
1897, confirmando que ele não podia partir de Porto Alegre “por se achar em tratamento
da enfermidade de lichen da qual sofre”.124 Essa ênfase na moléstia de pele125 que afligia
Alcides talvez seja a reação do seu opositor, uma vez que notou que ele não se ofendia
dos reiterados ataques racistas. E Isidoro Dias Lopes não hesitou em continuar com
ataques eminentemente de ordem racial. Escreveu ele:

Ora, este makololo é das arábias. [...] Makololo você diz que nós lhe
insultamos, chamando-o de gorila, chimpanzé, etc., etc. Realmente, makololo,
isso é um grande insulto, mas não a você e sim àqueles macacos. Que os
macacos se zangassem conosco por lhe termos dado semelhante companheiro,
vá; mas você? Dê-se por muito satisfeito. [...]
A cor não dá nem tira qualidades, mas que queres, a gente assim, não gosta.
Bem se sabe tudo o que alegaste a este respeito; mas repara bem que não te
demos o qualificativo de negro. A palavra negro está substanciada e com o
competente adjetivo qualificativo ao lado. Você tomou a nuvem por Juno. Veja
bem o adjetivo que está junto a palavra negro[...]126
A frase “a cor não dá nem tira qualidades” denuncia certo receio do periodista
em expressar tão ostensivamente (e reiteradamente) o seu preconceito racial.
Provavelmente isso acusava sua sensibilidade de que não escrevia unicamente para um
público leitor branco, mas também para negros letrados e organizados coletivamente,

123 A República, Órgão do Partido Republicano Liberal, Porto Alegre, nº 31, terça, 09 fev. 1897.
124 AFDSP. Alcides de Freitas Cruz. Dossiê nº 3478, 1891-1897.
125 LANGAARD, 1872, v. 2, p. 673.
126 A República, 09 fev. 1897.
74

seja em clubes sociais (como o Floresta Aurora, fundado em 1868), irmandades (como a
do Rosário e Conceição) e jornais (como O Exemplo, fundado em 1892).

Independente desse tênue receio expressado, ele persistiu, como percebemos


acima, nas ofensas com bases raciais, insistindo nas palavras gorila, chimpanzé e macaco e
também makololo. Aliás, makololo acrescenta às ofensas já feitas um elemento novo – a
negatividade e o preconceito contra o continente africano - e, com isso, investe contra a
ancestralidade escravizada de Alcides Cruz. Tratava-se de uma referência aos Kololo,
povo habitante da África Austral, de tronco linguístico banto, que migrou do Vaal em
1823, pressionado por outros grupos invasores, liderado por um príncipe chamado
Sebetwane. Seus partidários eram chamados de makololo. Depois de muitas batalhas e
marchas, eles se estabeleceram no alto Zambeze, onde constituíram um reino. Sebetwane
faleceu em 1851, mas seu reino persistiu, sendo que Livingston quando ali passou
contratou alguns carregadores Kololo.127

Isidoro ainda replicou, mas Alcides Cruz deu sua última palavra, não voltando
mais ao assunto. Apesar de alguns percalços, o ano de 1897 não poderia ter sido mais
produtivo: eleito deputado estadual no final de fevereiro, a 25 de novembro formou-se
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Paulo, na turma nº 67.
Antes do ano findar, afastado da direção do Mercantil para concluir seus estudos, assumiu
em São Paulo a direção do jornal O Constitucional e publicou em algumas revistas temas
concernentes à crítica literária e crônicas.

Na alvorada do novo século, em outubro de 1900, foi criado o Clube Júlio de


Castilhos, em Porto Alegre, com a finalidade de “estreitar os laços da solidariedade
republicana”. Naquele empreendimento político-partidário, que mostra que a construção
do mito sobre Júlio de Castilhos se antecipou à sua morte, ocorrida somente em 1903,
encontramos dois indivíduos que defenderam a capital do Estado do avanço federalista.
A diretoria provisória daquele clube era composta por Marcos Alencastro de Andrade,
presidente, e Alcides de Freitas Cruz, 1º secretário.128

A iniciativa de Alcides Cruz na formação e manutenção deste associativismo


político republicano não tem relação direta com sua residência, mas sim com sua base
eleitoral. Naquele ano ele já estava advogando em Encruzilhada, onde constituiu família
e sólidas relações que duraram até a sua morte.129 Iniciando em 1897 e indo até sua morte
em 1916, Alcides Cruz elegeu-se deputado sete vezes na Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul, pelo PRR. Um telegrama reservado enviado pelo intendente de
Montenegro, o capitão Antônio Maria Vargas, ao presidente do Estado, Júlio Prates de
Castilhos, evidencia o papel desta liderança do PRR na carreira política de Alcides. Nesse
telegrama, de 09 de fevereiro de 1897, o capitão Vargas comunicou que alguns

127 HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA. África do século XIX à década de 1880. Editado por J. F. Ade Ajayi.
Brasília: UNESCO, 2010. p. 135-136.
128 Os membros restantes daquela diretoria provisória eram: Antônio Soares de Barcellos, vice-presidente;
Evaristo Teixeira do Amaral, 1º secretário; e Frederico Augusto Gomes da Silva, tesoureiro. Em
19/10/1910 o Clube convidou todos para a romaria que faria ao túmulo de Júlio de Castilhos, no dia 24,
aniversário de sua morte: “Fará o discurso oficial o dr. Alcides de Freitas Cruz”. (BNRJ/Heme. A Federação,
ano 17, n.242, 20 out. 1900).
129 Até a sua formatura na Faculdade de Direito de São Paulo, Alcides aparecia no alistamento eleitoral como
agrimensor, já a partir de 1899 consta como advogado. (BNRJ/Heme. A Federação, ano 12, n. 145, 21 jun.
1895; A Federação, ano 17, n. 78, 04 abr. 1900).
75

correligionários locais haviam pretendido excluir Alcides Cruz da chapa eleitoral,


substituindo-o por Mostardeiro. Entretanto, a preferência de Castilhos foi mantida,
justificando que o intendente encerrasse o telegrama orgulhoso: “Ficae certo manterei
disciplina partidaria”.130

Alcides de Freitas Cruz cursou a Faculdade de Direito de São Paulo de 1891


a 1897. Configurando uma situação de revezamento de oportunidades de estudo –
situação normal numa família socialmente intermediária – Alcides ingressou na faculdade
exatamente no mesmo ano em que seu irmão Leopoldo lá se formou. Como podemos
ver, sua primeira candidatura para a Assembleia Legislativa do RS coincide com a
formatura em direito, o que nos parece configurar que a trajetória acadêmica tenha sido
pensada também como uma espécie de pré-condição às suas ambições legislativas. Existia
uma tendência de sólida presença de bacharéis de direito nos quadros do PRR: “De 71
membros do PRR a ele agregados nos primeiros anos, 40 possuíam títulos em escolas
superiores. Destes, 29 eram bacharéis em direito, sendo 27 por São Paulo e apenas dois
por Recife”131.

Não sabemos como o republicanismo de Alcides dialogava com o


monarquismo de seu tio conselheiro do Império, falecido em 1889, mas ao contrário de
outras trajetórias que temos estudado – como a de Aurélio Viríssimo de Bittencourt – a
opção política republicana deste personagem é contemporânea à própria estruturação do
PRR, na ainda província sulina.

Ao que parece, no pós-1889 encontramos um acentuado posicionamento


republicano da população negra, principalmente porto-alegrense, o que já foi verificado
por outros autores. Santos132 e Rosa133 argumentam e exemplificam sobre esta relação ser
mediada pelo acesso a empregos públicos e pelo aumento da esfera pública no período
pós-1888. Tratando de um personagem negro que se elegeu deputado estadual pelo PRR
por sete legislaturas, achamos importante pensar sucintamente a questão do eleitorado
negro urbano.

5 Paulino de Souza e o eleitorado negro


republicano

Em 2014 o historiador Petrônio Domingues publicou um artigo chamado


Cidadania Levada a Sério: Os republicanos de cor no Brasil. No artigo, Domingues foca o ocaso
do Império; porém, se considerarmos o período pós-1889, estas “experiências político-
culturais da ‘gente de cor’” se tornam ainda mais diversas e cambiantes” 134. Pelo menos
desde a reforma eleitoral promovida pela lei de 1881, a presença e a força deste eleitorado
negro urbano podem ser verificadas através dos apelos feitos por alguns jornais a tal

130 AHRS/APJC. Série telegramas; BNRJ/Heme. A Federação, ano 18, n. 20, 23 jan. 1901. Ver: FRANCO, 2010,
p. 70-71.
131 GRIJÓ, 2005, p. 129.
132 SANTOS, 2011, p. 128.
133 ROSA, 2014, p. 245.
134 DOMINGUES, Petrônio. Cidadania Levada a Sério: Os republicanos de cor no Brasil. In: GOMES,
Flávio; DOMINGUES, Petrônio. Políticas da Raça: experiências e legados da abolição e da pós-
emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014. p. 122.
76

segmento populacional. Vejamos se podemos sugerir algumas questões a partir da análise


de certas vicissitudes biográficas de um indivíduo negro do período, pensando nele como um
exemplo das plurais “ambivalências, motivações e lógicas próprias” da população de cor
do período135.

Paulino de Souza Bastos tinha a matrícula nº 22 do controle de sócios da


Sociedade negra Floresta Aurora, criada em Porto Alegre em 1868 136. Ele aparece com
variadas denominações profissionais nas documentações que compulsamos: operário,
açougueiro, agências. Casado formalmente com Isidora da Silva, o casal teve apenas uma
filha legítima, Paulina, nascida em 1889 e considerada como parda no registro civil. Após
o falecimento de Paulino (1926), seu inventário post-mortem traz uma série de
informações relevantes, tendo em vista a briga ocorrida entre Paulina, que se
autointitulava a única filha legítima de Paulino, e seus dois irmãos bastardos, uma vez que,
com o falecimento da mãe de Paulina (1891), Paulino amasiou-se com Maria Luiza
Felisberta.

Os ditos filhos bastardos – Felisberto Souza Bastos e Cezar Souza Bastos –


reclamaram judicialmente que sua meia-irmã Paulina usufruía ilegalmente dos
rendimentos dos dois prédios contíguos legados, localizados à rua Venezianos, e
provaram que seu pai os reconhecera antes de morrer. O falecido comparecera pessoalmente
ao Cartório do Registro Civil e os reconhecera. Tal reconhecimento é comprovado por
dois atestados, um de 1898 e outro de 1906, em que Paulino pessoalmente registra o
nascimento de seus filhos ilegítimos e reconhece a paternidade.

Quando tudo parecia se encaminhar para uma equânime resolução jurídica, o


juiz estranhou que Paulino houvesse assinado o termo de nascimento de Cesar, de 1906,
uma vez que constava no de Felisberto, de 1898, que ele não sabia escrever. A isso estes
herdeiros argumentaram:

Paulino de Souza Bastos lia mal e não sabia escrever, portanto, quando deu
a registro o nascimento dos requerentes, assinaram a seu rogo.
Posteriormente, desejando ser eleitor, o que conseguiu, tendo votado, muitas
vezes, como o Partido Republicano, como podem atestar os drs. Henrique
Pereira Neto, Cristiano Felipe Fischer, Carlos Leite e todos os antigos
funcionários da Prefeitura Municipal desta Cidade, conseguiu assinar o seu
nome, não com perfeição, pode-se mesmo dizer melhor que desenhava o seu
nome.
Estabelecendo certa cronologia político-eleitoral da vida de Paulino, de
acordo com estes pequenos registros das memórias de seus filhos Cesar e Felisberto,
podemos conjeturar que foi após 1898 que este homem negro aspirou a participar da
cidadania política tornando-se eleitor.

Naquele ano solidificava-se o poder republicano no Estado, com a posse de


Júlio de Castilhos em 1893 na presidência do Estado e com o fim da guerra civil
federalista em 1895. Além disso, tomava posse na Intendência de Porto Alegre, no ano
anterior (1897), o engenheiro José Montaury, escolha pessoal de Júlio de Castilhos,

135 DOMINGUES, 2014, p. 122.


136 NONNENMACHER, Marisa Schneider. Tudo Começou em uma Madrugada. Sociedade Beneficente Cultural
Floresta Aurora (1872-2015). Porto Alegre: Medianiz, 2015.
77

consolidando o poder republicano também na esfera da capital administrativa do estado.


Habilitar-se ao voto equivalia a exercer a cidadania política, dialogando com a
consolidação e o aumento da influência republicana no Estado. Nesse sentido, talvez
políticos negros como Alcides de Freitas Cruz tivessem um sensível apelo a esse
eleitorado de cor, principalmente urbano.

6 Escritas de si – o corvo Alcides

Segundo os autores do livro Além da Escravidão. Investigações sobre raça, trabalho e


cidadania em sociedades pós-emancipação, o caráter multirracial da população livre – disposta
em uma “grade de categoriais raciais não-bipolar” – teria gerado o que os autores chamam
de uma ética do silêncio em relação à discriminação das cores nos anos oitocentos:

De um modo ou de outro, ao longo das tumultuadas primeiras décadas da


jovem monarquia, as pressões políticas dos novos cidadãos por igualdade de
direitos permitiram que uma ética do silêncio (em relação às raças ou cores)
fosse progressivamente desenvolvida para operar nas situações formais de
igualdade. Esta solução atendia às reivindicações dos que conquistavam alguns
espaços de respeitabilidade social, ao mesmo tempo em que impedia que as
identidades de cor pudessem estender-se para além da fronteira da condição
escrava137
Já o historiador norte-americano James Woddard, em trabalho que retoma o
estudo da trajetória do médico baiano Alfredo Casemiro da Rocha (analisado, como já
dissemos, em obra clássica do sociólogo Oracy Nogueira), critica a aceitação exagerada
da etiqueta racial brasileira, a qual teria criado um “consenso entre os quadros políticos do
país de que referências à cor e/ou ascendência africana não fossem feitas”. Woodard
contesta esse silêncio, mencionando pilhérias publicadas nos jornais sobre o político por
ele estudado, evidenciando que a posição étnica e racial daquele indivíduo fora usada
como arma depreciativa por seus desafetos políticos138.

No caso do professor Alcides de Freitas Cruz temos três momentos em que


ele responde pelos jornais injúrias raciais a ele dirigidas. Como vimos anteriormente, estas
respostas foram lidas e consumidas de modo positivo por indivíduos negros, que
politicamente as ostentaram como respostas coletivas ao racismo vigente. Não podemos
esquecer da força da imprensa naquele momento histórico, sendo lida e ouvida
amplamente, além de perpetuada: “Ao contrário das palavras ditas, que se esvanecem
imediatamente, da tinta que se deita em papel corre-se o risco da perpetuidade”139.

137 COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Além da Escravidão. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005. p.17, 25. Imprescindível citar MATTOS DE CASTRO, 1995.
138 WOODARD, James. Negro Político, Sociedade Branca: Alfredo casemiro da Rocha como exceção e estudo de
caso (São Paulo, décadas de 1880 a 1930). In: GOMES, Flávio; DOMINGUES, Petrônio. Políticas da
Raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições,
2014. p. 241.
139 ROSEMBERG, André. A pena como arma: trabalho, intimidade e rotina nas cartas dos policiais paulistas
(1870-1915). Revista Estudos Históricos. Dossiê Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro, v. 29, n. 59, p. 642,
set./dez. 2016
78

A quebra dessa etiqueta racial brasileira pelos adversários políticos – ou de


opinião oposta no júri – de Alcides Cruz criou pelo menos três oportunidades em que
ele se posicionou explicitamente com relação às suas autorrepresentações étnicas e raciais.
Além disso, tratando-se de um intelectual interessado pela história regional, legou-nos
nestas escritas de si visões de sua genealogia. Assim, tomaremos estes artigos assinados por
Alcides Cruz como testemunhos pessoais que significavam suas autopercepções
indivíduais e familiares140.

O primeiro artigo datou de 1897, já mencionado nas páginas anteriores. O


segundo foi publicado no dia 12 de janeiro de 1903, numa segunda-feira, no jornal
republicano A Federação. Na página 3, seção livre, Alcides de Freitas Cruz publicou um
texto intitulado: “Ao Ilustrado Contemporâneo dr. Pinto da Rocha”. Tratou-se de uma
briga entre indivíduos que tinham pelo menos duas características similares: eram
republicanos ligados ao PRR e professores na Faculdade de Direito de Porto Alegre.

O mote para o texto de Alcides Cruz foi responder a um ataque de seu


confrade Pinto da Rocha.141 Comemorando-se naquele mês de janeiro mais um
aniversário da folha republicana criada em 1884, Alcides havia publicado “um ligeiro
apanhado geral da honrada vida daquele diário, sem ter à mão nenhuma coleção antiga
ou moderna”. Pinto da Rocha interpretou essa reconstituição histórica de A Federação,
feita por Alcides, como uma tentativa proposital de omitir alguns nomes de
correligionários e contestou-o por escrito, chamando-o de corvo, ao que aquele neto de
pardos forros manifestou:

Para que preferir essa comparação, quando, aliás, eu me não molesto com os
epítetos mestiço, mulato ou negro? Não dissestes lá, oh! camarada velho!, que
sou homem sem preconceitos? Como iludir-me, então, com alvas propriedades
que não tenho, nem jamais terei? Corvo só poderia agastar-me, porque é uma
ave de rapina, e eu sou avesso à rapacidade. Mas, certamente não me deveria
ter chocado; pois sobre a imprensa de outros povos menos mestiçados que o
nosso adejam aves muito mais perigosas que o corvo, esse heroico espécime da
ornitologia, imortalizado na poesia por Edgar Poe.
Evitar o circunlóquio e chamar-me pelo que sou, mulato ou negro, à vontade,
era maneira mais franca e mais altiva, sobre ser mais generosa: dava o que é
meu. Mestiços, mulatos ou negros foram meus avós e pais, e nem por isso
vários deles deixaram de acudir às guerras de então, desembainhando o gládio,
tal como os antigos fidalgos de Portugal, avós dos vossos filhos, que pelejaram
na Ásia ou África, “pelo seu rei e pela pátria”. E mestiços, mulatos ou negros,

140 FOUCAULT, Michel. A Escrita de Si. In: ______. Ditos e Escritos. Ética, Sexualidade e Política. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2012. v.5; p. 145-162; GOMES, Ângela de Castro. Escritas de Si. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2004
141 Artur Pinto da Rocha nasceu na cidade de Rio Grande em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro em 1930, filho
do Visconde Antônio Joaquim Pinto da Rocha, português. Formou-se em direito na Universidade de
Coimbra, em 1890, ingressando nos quadros da Faculdade de Direito de Porto Alegre em 1900, onde
permaneceu por dez anos. Foi eleito para a Assembleia Estadual pelo PRR em 1892-96 e como deputado
federal de 1894 a 1905. Aderindo ao Partido Federalista, foi eleito deputado federal em 1918/20, 1921/23
e 1924/26. Foi diretor do jornal A Federação (GRIJÓ, 2005, p. 178; FRANCO, 2010, p. 182). Pinto da
Rocha esteve envolvido nas disputas político-eleitorais republicanas de 1906-7, que ecoaram dentro dos
muros da Faculdade de Direito local. Naqueles anos, o PRR dividiu-se na eleição regional entre o candidato
“oficial” Carlos Barbosa (apoiado por Borges de Medeiros) e o “dissidente” Fernando Abott. Pinto da
Rocha toma o lado da dissidência e funda a Gazeta do Comércio, obtendo o apoio de boa parte dos alunos
(GRIJÓ, 2005, p. 220).
79

como eu, legaram-me aquela virtude que Deus, na sua infinda bondade
entendeu dar a todos os descendentes do deserdado e misterioso contingente
bíblico, nascidos sob um estigma que os vinte séculos do cristianismo ainda
não puderam apagar, como singela compensação aqueles de quem tirara a
alvinitência epidérmica – o afeto.
Como vimos, essa manifestação de Alcides Cruz ecoou pelo interior do
Estado, sendo usada 13 anos após, por um indivíduo negro, devoto do Rosário, em Santa
Maria. Alcunhá-lo pejorativamente de corvo permitiu que ele se posicionasse racialmente,
tomando para si uma identidade representada pelas plurais definições de mestiço, mulato,
negro. Reconhecendo-se como herdeiro da maldição de Cam, Alcides parece contrapor
explicitamente um republicanismo negro/mestiço/mulato a um (mesmo que
socialmente) branco. A retórica racista de Pinto da Rocha permitiu que o professor
Alcides demonstrasse erudição ao associar a ofensa sofrida ao poema de Edgar Allan Poe
e terminasse o artigo pedindo que o seu confrade aceitasse a sua mão estendida, “sem
embargo da minha cor de corvo”.

Dez anos depois dessa manifestação, o professor Alcides de Freitas Cruz


voltou para as páginas do jornal republicano A Federação, dialogando com outra injúria
racial que lhe foi dirigida. Dessa vez, o artigo por ele assinado foi publicado na primeira
página, numa quarta-feira, no dia 09 de julho de 1913, com o título “Troco Miúdo”. 142
Tratou-se de desdobramentos da discussão judiciária havida para determinar os limites
entre os municípios de Santo Antônio e Conceição do Arroio, quando o advogado do
segundo município, Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, esgotado de argumentos,
tratou de racializar o embate:

Desmuniciado o seu exíguo arsenal de argumentos jurídicos, o sarrafaçal


causídico vale-se da injúria e de uma circunstância por demais eventual, que
não depõe senão contra a insuficiência de escrúpulos dos pasquineiros
desaçaimados que, à carência de fatos deprimentos da minha conduta moral e
cívica, recaem neste rafado lugar comum – a cor.
Das suas espojaduras, porém, não me atinge a lama.
Reduz-se, tudo, portanto, em saber se depois da misérrima escrevedura de
domingo, esse velho Diogo se elevou aos olhos da população desta Capital, e
se eu desci no conceito da mesma, bem como até que ponto, por efeito disso, eu
desci e ele ascendeu.
Que não sou branco [...]. Eis a estupenda clava [...] de sebo com que o
paspalhão julgou achatar-me!
Sim, não sou branco; mas não deploro que a natureza tivesse sido avara em
dar a minha pele menos alvinitência que a outros, acidente que afinal não dá
para deplorar; pois em nada me há prejudicado na estima dos homens de bem
e na consideração da melhor sociedade.
O que para mim seria de deplorar, reputando mal irreparável, é que os
contemporâneos me privassem desta estima pública prestada por muitas
gerações passadas aos meus avós.
Nem outra coisa pretendo e aspiro senão a existimatio, que muitos em vão
cobiçam.

142 Tanto este artigo, quanto o de 1903 estão disponíveis na íntegra em: CRUZ, 2016.
80

Novamente, temos a afirmação convicta e pública do professor Alcides Cruz


de que não era branco, feita em um palco jornalístico onde questões como essa não
costumavam ser tratadas. O artigo em análise é mais extenso que o primeiro e,
infelizmente, não poderá ser tratado exaustivamente como merece. Na sequência de seus
argumentos, Alcides esgrima suas armas de historiador-genealogista, explicando a origem
de sua cor:

Não sou branco, porque minha mãe e minha vó e minha bisavó não eram;
mas que aqui viveram; como muitas famílias de cor; que vieram
acompanhando outras, a estabelecer-se em São Francisco do Porto dos Casais,
quando foi a famosa corrida, por efeito da lastimável rendição da Colônia do
Sacramento, em 1763. Que era então o Porto Alegre de hoje, que não a mal
conhecida póvoa daquele nome, recém-provida em freguesia? Da vinda dessas
famílias de cor, cuja descendência perdura, vive honradamente e é de fácil
nomeação, há provas nos arquivos eclesiásticos – assentamentos de óbitos,
batizados e casamentos.
Quanto a meu pai, Manoel Pinto Lacerda da Cruz, ignoro se era branco,
porque quando faleceu ainda eu não tinha um ano de idade. Mas como era de
Pernambuco, nascido em Goiana, segundo consta no assentamento de
casamento de minha mãe, dirão os de lá. Sei que veio devido à Revolução
Praieira (1848). Diga, porém, quem o souber, quem eram os Lacerdas de
Goiana, que a mim nada importa, porque nunca os procurávamos.
Meu avô materno, Joaquim Pedro de Freitas, oficial da Legião de São Paulo,
era dos Freitas daquela Capitania, referidos em mais de um passo na
Nobiliarquia Paulista de Pedro Taques e na Genealogia Paulista de
Almeida Leme.
No trecho citado acima, vemos que Alcides Cruz atribui a sua cor ao lado
materno da família. Como um experiente investigador, ele afirma a presença da história
de sua família de cor nos documentos eclesiásticos. A forma como Alcides constrói e expõe
a sua genealogia, dá-nos a ideia de sua autorrepresentação como um indivíduo negro,
consciente de que era fruto de uma família multirracial.

Esboçar a biografia de um indivíduo, ainda mais um homem público, é um


caminho sinuoso, porque a tendência do escritor é criar empatia em relação ao biografado,
quase que desconsiderando a “dinâmica histórica”, como ressalta Moreira (2011, p.85).
O escritor estabelece uma predeterminação na trajetória individual do biografado e
exacerba a racionalidade dos agentes e das suas estratégias. Contudo, construir uma
biografia também é enfeitiçante, pois instiga a curiosidade e incentiva a pesquisa.

Infelizmente, não foi possível ter acesso a arquivos pessoais de Alcides, ou


seja, documentos que ele próprio tenha produzido ou recebido ao longo da vida. É bem
provável que parte (ou o conjunto) de documentos que configurariam seu arquivo
pessoal, como correspondência (recebida/expedida) e originais de seus estudos e
publicações, tenha sido doada em vida ao seu irmão Leopoldo, que desde o início do
século XIX residia em São Paulo, onde faleceu.

Restou-nos a busca minuciosa e acurada na documentação disponível em


outras tipologias, capazes de evidenciar os fragmentos da história desta vida. Portanto,
trazer à tona aspectos de suas origens, assim como da própria vivência familiar,
fortalecem a compreensão da dinâmica indivíduo-sociedade-momento histórico. Cremos
81

que tal investigação - com o rastreamento dos atos próprios e de seus familiares em
registros eclesiásticos e inventários post-mortem - lhe agradaria. Alcides era fortemente
atraído pela pesquisa histórica e valorizava documentos de origens diversas, usando-os
em suas investigações sobre personalidades e momentos da história regional e nas
referências que fazia da trajetória de sua família, evocando seu lado afrodescendente.

No seu livro de 1907, voltado para a formação do Brasil meridional e os


acontecimentos da Província Cisplatina, o historiador Alcides explica suas motivações,
dizendo que aquele trabalho era fruto do seu “amor ao estudo das cousas pátrias,
sobretudo antigas”143. Alcides manejava uma sensível percepção das fontes, propondo
criticá-las em sua própria origem:

Não devendo confiar cegamente nas ordens do dia, nas partes oficiais e em
outros papéis dessa natureza, ordinariamente escritos sem a devida
sinceridade, como convém às altas patentes que erram, e cujo alvo direto muitas
vezes é dar pábulo às paixões, encobrir faltas (quando não verdadeiros crimes),
amesquinhar o valor e as qualidades do inimigo e elogiar a si próprios, foi
preciso uma grande prudência e muito escrúpulo para apurar a verdade contida
nas entranhas dos arquivos públicos.144
Tais documentos oficiais seriam contaminados, segundo Alcides Cruz, por
um “convencionalismo de etiqueta”145, e só mediante o uso de muito escrúpulo e prudência
se conseguiria atingir a verdade histórica.

As referências de Alcides Cruz em seus escritos autodefensivos eram


orgulhosas de sua origem negra, de sua ancestralidade afrodescendente, mas ele não fez
referências ao passado escravizado de seus parentes. Mesmo em seus estudos históricos,
não mencionou muito a escravidão. Temos poucas passagens, como quando ele comenta
sobre como se comportavam os açorianos, por exemplo:

E mal apuravam algum dinheiro, equivalente ao valor de um escravo,


adquiriam logo esse braço humilde, que passava a ser utilizado
duramente sob uma vigilância enérgica e espoliadora, no serviço da lavoura do
trigo, origem das primeiras fortunas que habilitaram os nossos passados a
poderem depois comprar e medir muitas das sesmarias atuais 146.
Interessante o fato de ele atribuir a fortuna destes sesmeiros ao trabalho
escravizado, referindo-se aos cativos como braço humilde e criticando a forma áspera e
exploradora como eram tratados. Em rodapé ele cita como base argumentativa o livro
publicado em 1898 por Joaquim Francisco de Assis Brasil, “Cultura dos Campos - Noções
gerais de agricultura e especiais de alguns cultivos atualmente mais urgentes no Brasil”.

A trajetória de Alcides de Freitas Cruz, pelo que pesquisamos até o momento,


parece fundamentalmente moldada pela figura masculina do tio Leopoldino e pelas
figuras familiares femininas, fato demonstrado inclusive em seu autorreconhecimento
como não-branco (de cor, mestiço, negro, mulato, pardo).

143 CRUZ, 1907, p.I.


144 Ibid., p.I-II.
145 Ibid., p.II.
146 Idem, 1906, p. 38.
82

Encontramos mulheres que carregavam no nome “Conceição”, denunciando


pertencimentos religiosos. Cogitamos que a proximidade dessas mulheres com uma
religiosidade racializada fazia com que seus filhos apreendessem a sociedade a partir de
um modo próprio.

Talvez o pertencimento étnico e racial de nosso personagem – e de outros


que temos acompanhado, como Aurélio Viríssimo de Bittencourt, por exemplo – tenha-
se dado pelas vias da sociabilidade religiosa, já que estas mulheres negras frequentavam
devoções negras, como as da Conceição e do Rosário. Convenções sociais e de gênero
marcavam a circulação ativa e desinibida de mulheres negras nos espaços devocionais,
onde também sentiam certas limitações.

Os rebentos desses ventres negros, pardos, mulatos, de cor, construíam suas


visões de mundo tendo em suas memórias e sensibilidades a experiência direta com o
protagonismo de suas referências familiares femininas (mães, avós, tias) e também com
a mobilização devocional, sentindo-se de certa forma parte de um plural coletivo não-
branco.

Apesar disso, parte de suas apreciações socioculturais percebiam a porosidade


daquelas manifestações religiosas e de suas experiências familiares. 147

Não se nasce negro148, pois tal conformação tem uma dimensão social e se
estrutura paulatinamente ao longo da biografia dos sujeitos, no diálogo com experiências
próprias e familiares. Indivíduos com lugares sociais e com uma condição de classe
específica podem, por vezes, burlar os constrangimentos inerentes a sociedades racistas
como a brasileira, e tornar-se socialmente brancos, invisibilizando momentaneamente a cor,
principalmente em experiências públicas.

Entretanto, certos indivíduos posicionavam-se assumindo publicamente um


pertencimento racial (mesmo de mestiço) que – se, por um lado, rendia-lhes alguns (e
substanciais) dividendos políticos e afetivos, por outro, tornavam-lhes frágeis e passíveis
de agressões dos mais diversos tipos: limites em sua mobilidade social e laboral,
diminuição dos espaços associativos em que podiam transitar livremente etc.

Claro que, quando consideramos a “condição de classe” de Alcides Cruz,


temos que tomá-la sem ilusões biográficas. Sua origem familiar não nos permite pensar
que ele teve uma experiência social, na infância e adolescência, diferente de qualquer
outro popular negro oitocentista. Talvez chamá-lo de popular negro seja exagerado, pois
provavelmente seu núcleo familiar já havia ascendido aos estratos intermediários quando

147 Na verdade, estas observações se referem à família de Alcides, mas não a ele especificamente. Não
encontramos, até o momento, muitas vinculações dele com o associativismo religioso da cidade. Seu tio, o
conselheiro Leopoldino Joaquim de Freitas, participou longamente da Irmandade dos Pardos de Porto
Alegre, a Nossa Senhora da Conceição (desde a década de 1850 até sua morte). Já, sobre Alcides,
encontramos apenas uma menção de ter participado da Mesa conjunta da Venerável Ordem Terceira de
Nossa Senhora das Dores, que congregava parte da elite social e econômica da capital, em 1911. Naquele
período, o prior era o tenente-coronel Aurélio Viríssimo de Bittencourt, personalidade negra ligada à
cúpula do PRR. (AHCMPA. Livro de Matrícula dos Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição. 1845-
1890, fls. 84; A Federação. Porto Alegre, ano 28, n. 27, 31 jan. 1911)
148 OLIVEIRA, Ângela Pereira Oliveira. A Racialização nas Entrelinhas da Imprensa Negra: o caso O Exemplo e
A Alvorada – 1920-1935. Pelotas, 2017. Dissertação (Mestrado) - PGH/ Universidade Federal de Pelotas,
2017.
83

de sua juventude e ele, pelo menos, não precisou dedicar-se a tarefas braçais. De qualquer
maneira, o jovem Alcides certamente aprendeu logo o contexto em que estava envolvido;
e as habilidades sociais de seus parentes e os constrangimentos raciais que sofreram
devem tê-lo instrumentalizado para viver como um negro ou mulato naquela sociedade
altamente excludente.

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88

Figura 6 - Quadro exposto na Faculdade de Direito da UFRGS. Foto Marcelo Bertani, 2017.
89

Gustavo Castagna Machado**

O deputado Alcides Cruz foi muito respeitado em vida como intelectual e


jurista, de importante contribuição para o Direito Administrativo brasileiro e tendo
realizado também uma tradução de Thomas Cooley (Princípios Gerais de Direito
Constitucional dos Estados Unidos da América) que foi bastante citada. Entretanto, seu papel
de intelectual de partido se tornou pouco lembrado ao longo dos anos.

Assim, aqui, em um estudo de caso, utilizam-se artigos de Alcides Cruz (1867-


1916) publicados no jornal A Federação em 5 e 8 de janeiro de 1915 e voltados contra a
decisão do STF no habeas corpus 3697, concedido em dezembro de 1914 em favor de Nilo
Peçanha. O episódio ficou conhecido como O Caso do Rio149, para fins de análise e
compreensão do pensamento de Cruz, articulando cultura jurídica150, produção
doutrinária, prática jurisprudencial e a regra do jogo do esquema da Política dos
Governadores.

Dessa forma, faz-se aqui História do Direito sob um ponto de vista externo151,
buscando-se articular o discurso jurídico com a realidade (i.e., com as Ciências Humanas

* O autor gostaria de agradecer especialmente ao doutor Miguel Frederico do Espírito Santo (presidente
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul – IHGRGS) pelo auxílio em fontes, pela
discussão na elaboração do presente texto e pela inspiração.
** Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período sanduíche

no Max-Planck-Institut für Europäische Rechtsgeschichte [Instituto Max Planck de História do Direito


Europeu] (MPIeR), Alemanha. Doutorando em Ciência Política pela Johann Wolfgang Goethe-Universität
Frankfurt am Main, Alemanha. Coordenador do curso de Direito das Faculdades João Paulo II (FJPII).
Professor de graduação na mesma Instituição. Professor de pós-graduação lato sensu na Verbo Educacional.
Membro pesquisador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS). É editor-
executivo do periódico Revista da Faculdade de Direito - UFRGS (2016-atual) e da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (2015-atual). Foi editor-executivo da Cadernos do Programa
de Pós-graduação em Direito - PPGDir/UFRGS (2013-2016). Membro da Comissão de Ensino Jurídico
da OAB/RS (2017-atual).
149 Quando se usa o termo caso aqui, deve ser pensado no uso atribuído pela imprensa do período, no sentido
de caso político e não no sentido de caso jurídico.
150 Fala-se aqui em cultura jurídica no sentido de um “conjunto de significados (standards doutrinários, padrões
de interpretação, marcos de autoridade doutrinária nacionais e estrangeiras, influências e usos particulares
de concepções jusfilosóficas) que efetivamente circulavam na produção do direito e eram aceitos nesta
época no Brasil” (FONSECA, Ricardo Marcelo. Os Juristas e a Cultura Jurídica Brasileira na Segunda
Metade do Século XIX. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno. Firenze, v. 35, t. 1, p. 339-
371, 2006. p. 340).
151 IBBETSON, David. Historical Research in Law. In: TUSHNET, Mark; CANE, Peter (Eds.). The Oxford
Handbook of Legal Studies. Oxford: Oxford University Press, 2003.
90

e Sociais). Também se utiliza a ideia de observar o uso da linguagem, à maneira de Stolleis,


com base em Wittgenstein. Isso é muito importante para perceber o emprego de termos
como judiciarismo e federalismo neste texto (algo que será explicado ao longo do artigo).
Stolleis ficou interessado em como seu orientador de doutorado, Sten Gagnér, havia
escrito um livro de um jeito muito diferente para a época, pelo estudo de usos da palavra,
na acepção do Ludwig Wittgenstein. No mesmo livro, ele se deparou com uma citação-
chave de Wittgenstein das Investigações Filosóficas (Philosophischen Untersuchungen),
segundo a qual o significado de uma palavra está no uso da linguagem (Sprachgebrauch).
Também para Gagnér, esse era um pensamento-chave: inclinar-se à linguagem do
passado como um observador aos jogadores de xadrez. Não se conhece as regras do jogo,
mas a partir do uso das peças no tabuleiro de xadrez podem-se compreendê-las
gradualmente. Em vez de preconceitos ideológicos e dogmáticos da teoria do direito, do
jeito de Gagnér, deve-se preferir a dedicação ao estudo dos usos de palavras de outrora.
Conforme Stolleis, ele ficou impressionado ao ler as Investigações Filosóficas de
Wittgenstein e ver que este pensador considerava todos os problemas filosóficos como
hexágonos de uso da linguagem. De repente, Stolleis compreendeu que o mundo real
consiste em interpretações, de palavras e usos de palavras, e pode-se compreender o
mundo por meio disso. Ao mesmo tempo, percebeu que a palavra usada atualmente na
teoria do direito para a investigação da história do direito se está sempre modificando.
Juristas tendem a compreender conceitos de forma a-histórica e usá-los como pedra de
construção da dogmática. É atribuída uma pressuposição ontológica aos conceitos, uma
posição platônica. A crítica de Wittgenstein da linguagem, porém, leva-nos à ideia de que
por vezes se utiliza palavras iguais de forma diferente, ou palavras semelhantes de forma
igual. Como isso ocorre, deve ser descoberto152.

Em termos de fontes, utilizaram-se fontes primárias (jornais e livros da época)


e secundárias na elaboração deste texto.

1 A Primeira República no direito e na política

1.1 Interpretações das origens da Primeira República

O caso que aqui se analisa está situado entre o fim do governo Hermes da
Fonseca e o começo do governo de Wenceslau Braz. Há, em tal período, uma
animosidade entre elites civis e elites militares, o que pode ser compreendido pela origem
da República.

Duas são as linhas de interpretação a respeito da passagem da monarquia para


a república que surgiram já nos primeiros anos desta: a dos vencedores e a dos vencidos,
a dos republicanos e a dos monarquistas.

152 STOLLEIS, Michael. Nahes Unrecht, Fernes Recht. Göttingen: Wallstein, 2014. p.144-145.
91

Para os republicanos, a República sempre foi uma aspiração nacional e a


Monarquia era o regime de corrupção e de arbítrio, de violência e de injustiças e,
sobretudo, do governo do poder pessoal, discricionário e alheio aos interesses do povo.

Já para os monarquistas, a proclamação da República não passava de um


levante militar, alheio à vontade do povo. Ela teria sido o fruto da indisciplina das classes
armadas que contavam com o apoio de alguns fazendeiros descontentes com a
manumissão dos escravos. Tinha sido grande equívoco. O regime monárquico havia dado
ao país setenta anos de paz interna e externa, garantindo a unidade nacional, o progresso,
a liberdade e o prestígio internacional. Uma simples parada militar substituíra esse regime
por outro instável, incapaz de garantir a segurança e a ordem ou de promover o equilíbrio
econômico e financeiro e que, além de tudo, restringia a liberdade individual153.

Mencionam-se duas obras paradigmáticas para esses grupos: Felisbelo Freire,


para os republicanos154, e Oliveira Viana, para os monarquistas (ainda que surgida mais
para o final da Primeira República, ela vem a consolidar interpretações que vinham sendo
debatidas ao longo do período pelos monarquistas) 155.

Retroagindo às principais motivações do movimento republicano, com suas


origens em 1868, encontra-se o Manifesto do Partido Liberal (realizado após a queda do
ministério liberal e sua substituição por um conservador). Em tal manifesto, o Partido
Liberal propunha-se a defender a “descentralização administrativa, dando mais ação ao
elemento executivo nas administrações provinciais, para emancipar as províncias da
dependência da corte, no provimento de muitos cargos” 156. Como se argumenta,
principalmente no caso do republicanismo paulista, o tema do federalismo era central e,
não raro, mais importante que a própria ideia republicana. Outro tipo de republicanismo
foi mais bem caracterizado pelo político pernambucano Silva Jardim. Em sua versão
positivista do republicanismo, ele defendia um regime centralizado, racional,
modernizado e ditatorial (no sentido positivista), legitimado por plebiscitos, de evidente
inspiração francesa. Em conexão a isso, viu-se que as ideias positivistas eram ensinadas
na Escola Militar do Rio de Janeiro desde pelo menos 1850, e noções tais como o valor
da técnica e da racionalização, anticlericalismo, centralização política e governo efetivo
eram correntes entre os intelectuais militares na década de 1880. Silva Jardim percebeu
isso e buscou abertamente o apoio militar para a causa republicana 157.

Até em função dessa colaboração, formam-se desde logo duas narrativas


distintas a respeito da proclamação da República: a versão que se poderia chamar
militarista e a versão civilista. Uma reivindicava para os militares, outra para os civis, a

153 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1999. p.387-394.
154 LYNCH, Christian Edward Cyril. Da Monarquia à Oligarquia: história institucional e pensamento político
brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014. p.173-174.
155 CARVALHO, José Murilo de. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Disponível em:
<http://www.academia.org.br/academicos/jose-murilo-de-carvalho/discurso-de-posse >. Acesso em: 11
jan. 2016.
156 RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Assembléia
Legislativa do Estado do RS, 1976 [1932]. p.149-152.
157 SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Publit, 2007. p.182-186.
92

glória do movimento. Uma condenava a atuação dos militares na política, considerando-


a nociva. Outra acentuava os benefícios que tinham decorrido daquela intervenção 158.

Principalmente no período das Salvações (e as tentativas de intervenção) essa


disputa simbólica vai ressurgir de forma significante.

1.2 Economia, sociedade e política na Primeira


República

Do ponto de vista da questão socioeconômica da República, nela predominou


a força econômica do café, situação que entende também a força de São Paulo, com a
decadência da economia açucareira e a crise que a borracha viria a passar no período
investigado. E, do ponto de vista da questão social, as oligarquias agrárias constituíam o
grupo dominante no Brasil (na época, cerca de 80 por cento da população brasileira vivia
em zonas rurais). Para Carone, por exemplo, o que existiu no período foi a predominância
total das oligarquias agrárias, o que explicaria também a existência dos fenômenos do
coronelismo e das oligarquias e a importância do federalismo para esses atores 159.

Claro, os grupos dominantes eram heterogêneos e essas diferenças aparecem


ainda na Constituinte, com disputas em relação a diferentes concepções de federalismo.
Os liberais tendiam ao unionismo, e os conservadores, ao contrário, tendiam ao
ultrafederalismo160. Em tal contexto, acabou prevalecendo uma versão mais ampla do
federalismo, embora esta tenha sido desafiada ao longo da República. A Política dos
Governadores, de Campos Sales, torna-se predominante em tal contexto. De acordo com
ela, as decisões políticas fundamentais para a dinâmica equilibrada da República são
tomadas por um condomínio de chefes, que visam manter o todo sob seu controle direto,
exercem a direção política segundo suas avaliações subjetivas da situação e se
fundamentam em seus títulos de soberania como ocupantes de cargos políticos 161.

Na Primeira República, o federalismo consolidou uma estrutura partidária em


plano estadual e antipartidária em plano nacional, apesar das tentativas de organização de
agremiações como o Partido Republicano Federal (PRF) e o Partido Republicano
Conservador (PRC). Com o advento do novo regime, os partidos nacionais não só
desapareceram como também passaram a ser estigmatizados, sendo vistos como uma
ameaça à boa condução do governo162. Além disso, fraudes passaram a ser comuns em
tal período, como no caso das eleições de bico de pena163. Em tal sistema, a chamada

158 COSTA, op cit., p. 401-402.


159 CARONE, Edgard. A República Velha: Evolução Política. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971. p. V-
X e 249-271.
160 LYNCH, 2014, p. 90.
161 KOERNER, Andrei. A Ordem Constitucional da República: uma análise política da jurisdição
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Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Ciência Política, 2015. p.200.
162 PINTO, Surama Conde Sá. Só para Iniciados... o Jogo Político na Antiga Capital Federal. Rio de Janeiro: Mauad
X/Faperj, 2011. p.77.
163 BORGES, Vera Lúcia Bogéa. Morte na República. Os Últimos Anos de Pinheiro Machado e a Política Oligárquica
(1909-1915). Rio de Janeiro: IHGB/Livre Expressão, 2004. p.129-137.
93

“comissão de verificação de poderes”, chamada de terceiro escrutínio164, era fundamental


para manter o sistema, uma peça-chave da engrenagem da Primeira República. Foi por
conseguir controlá-la que Pinheiro Machado se tornou tão relevante.

Na ausência de um Poder Moderador como no Império, a ordem previu três


remédios para tentar arbitrar as querelas intra e interoligárquicas: o estado de sítio (arts.
6º e 81 da Constituição), a intervenção federal (que ficava a cargo do presidente da
República e do Congresso) e o controle normativo da constitucionalidade (arts. 59, § 1º,
“a” e “b” - cujo encarregado era, em última instância, o Supremo Tribunal). Todos esses
três instrumentos seriam utilizados largamente durante a Primeira República165. Contudo,
havia disputa em relação a qual deles usar. Aqueles que Lynch chama de liberais tendiam
ao unionismo, ao judiciarismo. Aqueles que Lynch chama de conservadores tendiam ao
ultrafederalismo, ao presidencialismo166.

1.3 O Supremo Tribunal Federal

Com a República, foram ampliadas as atribuições do novo Supremo Tribunal


Federal167. Durante a Primeira República jamais se chegou a um consenso mínimo acerca
do modo como deveriam funcionar institutos como o estado de sítio, a intervenção
federal, a jurisdição constitucional (controle de constitucionalidade), o habeas corpus e os
princípios da organização federativa168, devendo ser mencionada também a querela
envolvendo o recurso extraordinário. Isso afetava inclusive o funcionamento do próprio
STF.

Rui Barbosa, quando revisou o anteprojeto da CF de 1891, reescreveu quase


todo o capítulo do Poder Judiciário e lá enxertou o controle normativo da
constitucionalidade. Basicamente, na passagem do Império para a República, Barbosa
buscava substituir o poder moderador do chefe do Estado pelo controle jurisdicional da
constitucionalidade169. Essa doutrina iria encontrar uma grande adversária no posto de
“Poder Moderador” do regime. Trata-se da “política dos governadores”170. A disputa
permanece durante a Primeira República, no embate entre os judiciaristas (que preferem
o Poder Judiciário como moderador) e os federalistas (que preferem a Política dos
Governadores como moderador)171. É de se observar, por exemplo, que no período
Hermes, principalmente, quando São Paulo vira oposição, Pedro Lessa (um aliado dos
paulistas) vai preferir o modelo judiciarista. Ocorre também que as nomeações dos
ministros do STF eram feitas segundo o jogo das alianças políticas federais e das

164 RICCI, Paolo; ZULINI, Jaqueline Porto. Quem ganhou as eleições? A validação dos resultados antes da
criação da justiça eleitoral. Revista de Sociologia e Política, v. 21, n. 45, p. 94-97, mar. 2013
165 LYNCH, Christian Edward Cyril; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O constitucionalismo da
inefetividade: a Constituição de 1891 no cativeiro do estado de sítio. In: ROCHA, Cléa Carpi da et al.
(Orgs.). As Constituições Brasileiras: notícia, história e análise crítica. Brasília: OAB, 2008. p. 48.
166 Idem, 2014, p. 90
167 VENÂNCIO FILHO, Alberto. Juízes e Tribunais – Perspectivas da História da Justiça no Brasil – O STF
na República Velha. DPU, n. 41, p. 192, set./out. 2011
168 LYNCH, 2014, p. 17-18.
169 LYNCH, Christian Edward Cyril. O Momento Oligárquico: a construção institucional da República
brasileira (1870-1891). Historia Constitucional, v. 12, p. 297-325, 2011. p.307-311.
170 LYNCH, 2008, p. 29-30.
171 Conforme o uso do termo na época estudada. Nesse sentido, ver CARNEIRO, 1930, p. 127-177.
94

oligarquias dos estados; e as decisões dos ministros do STF variavam conforme a posição
adotada nas alianças políticas federais pelos grupos estaduais aos quais os ministros eram
ligados172. Muitos dos ministros tinham carreira política, muitos foram chefes de polícia,
muitos foram jornalistas, muitos publicaram livros de poesia e romance etc. Sublinhamos
que os juízes do STF no período aqui analisado são formados nas faculdades brasileiras
(com a exceção de um) entre 1851 e 1888, sem contar os advogados, jornalistas, políticos
etc., que também contribuíam para a formação do direito.

Apenas para fazer um paralelo, de forma comparativa, Alcides Cruz tem uma
carreira de perfil similar a muitos dos ministros do período. Cruz se matriculou na
Faculdade de Direito de São Paulo em 1891, onde colou grau como bacharel. Ele foi um
dos fundadores e lente da Faculdade de Direito de Porto Alegre, hoje unidade da
UFRGS, onde lecionou Direito Administrativo e Filosofia do Direito, em substituição a
James Darcy. Foi, ainda, deputado estadual e muito atuante no jornalismo 173.

1.4 A formação dos juristas

Analisar em que contexto acadêmico a formação dos juristas republicanos


ocorreu é importante para compreender como pensavam e elaboravam suas teses.

Assim, aponte-se que as reformas pombalinas em Portugal (1769-1772)


tiveram um forte e profundo impacto na formação e na prática jurídica dos juristas
brasileiros, especialmente no uso de literatura estrangeira, algo que produz efeitos até os
dias atuais. É de se mencionar, também, que a Lei da Boa Razão ainda era aplicável no
Brasil do período aqui investigado.

Com as reformas pombalinas, pela Lei da Boa Razão é operada uma total
remodelação nas fontes (e, assim, nos conteúdos) do direito português e, a pretexto desta
remodelação, introduzidos novos métodos de interpretação e de integração do direito,
tarefa que Pombal completaria nos Estatutos Pombalinos da Universidade, em conjunto
com os quais esta lei tem de ser entendida. Pombal, sagazmente, mais do que apenas
editar leis, pôs os juristas a trabalhar para ele como agentes da transformação, realizando
uma modificação profunda do estilo de trabalho, recorrendo ao novo corpo doutrinal
que a produção dogmática dos alemães tinha mais uma vez adaptado do velho direito
romano-justiniano, neste ponto, às necessidades das sociedades burguesas em
desenvolvimento acelerado no Centro da Europa. Tal sistema dogmático e normativo
havia sido originariamente designado por usus modernus pandectarum (uso moderno das
Pandectas, ou seja, dos textos do direito romano); mas, agora, com a naturalização
progressiva da visão de mundo burguesa, foi decorado com uma denominação mais
prestigiada, a de “direito natural”. Em tal contexto, o direito romano suscetível da
aplicação subsidiária em Portugal seria somente o que estivesse de acordo com os
princípios de direito natural ou das gentes em vigor nas nações cristãs e civilizadas,

172 KOERNER, 1998, p. 30; LYNCH; SOUZA NETO, 2008, p. 56.


173 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Homenagem a Alcides Cruz
no centenário de sua morte. 30 de mar. 2016. Disponível em:
<https://www.ihgrgs.org.br/fragmentos/Biblioteca%20-%20Homenagem%20Alcides%20Cruz.pdf>.
Acesso em: 10 jul. 2017
95

conforme a “boa razão”. Para avaliar a “razoabilidade” do direito romano, os juristas


deveriam indagar-se sobre “o uso moderno das mesmas leis romanas entre as sobreditas
nações, que hoje habitam a Europa”174.

O direito romano subsidiário em Portugal seria a versão modernizada que dele


tinham dado os jusracionalistas alemães da escola do usus modernus pandectarum (Strik,
Boehmer, Heinnecius, Thomasius etc.). Conforme Hespanha, a autêntica “bomba de
sucção” da doutrina estrangeira constituída pelos processos tradicionais da dogmática
jurídica, aplicados agora ao novo corpo doutrinal da literatura jurídica iluminista, deu
lugar, em pouco mais de trinta anos, a uma invasão maciça dos princípios jurídicos
modernos. Primeiro, os autores alemães do usus modernus pandectarum para quem a Lei da
Boa Razão remetia e os jusprivatistas franceses dos séculos XVII e XVIII (v.g., Vinnius
e Domat); depois, os códigos modernos da Prússia (1794), da Sardenha (1827), da Áustria
(1811), da França (1804) etc. Para o autor, é esta importação maciça do direito estrangeiro
e das opiniões doutrinais sobre ele estabelecidas que vem completar a grande revolução
do direito nacional português, pondo-o de acordo com a nova natureza do poder político
e com a visão de mundo dos estratos sociais dirigentes na primeira metade do século
XIX. Em tal projeto, a filosofia moral era, na altura, a disciplina central de um
empreendimento em que a ideologia laicizada do Iluminismo armazenou os temas
inspiradores da visão de mundo burguesa 175.

Após a Independência do Brasil (1822), os primeiros cursos jurídicos


brasileiros foram criados em 1827 e passaram a funcionar em 1828, norteados
provisoriamente pelos estatutos da Universidade de Coimbra176.

Buscando seu próprio curso, o Brasil, no entanto, reproduziria em grande


parte o enfoque adotado em Coimbra e isto também é compreensível.

Embora se encontrem em debates parlamentares da época críticas ao modelo


da Faculdade de Direito de Coimbra, isso convivia com a inspiração e adoção de práticas
coimbrãs. O Estatuto do Visconde da Cachoeira sofreu grande influência do estatuto e
das práticas escolares da Universidade de Coimbra 177. As recomendações feitas pelo
Visconde de Cachoeira (Luís José de Carvalho e Melo) mostram o que foi introduzido
na cultura jurídica brasileira. Melo Freire é recomendado em duas disciplinas: tanto no
direito civil, como no direito constitucional. Em relação ao direito natural, recomendava-
se utilizar as obras de Grócio e Pufendorf, além de Heinécio. O direito público
eclesiástico (não o direito canônico propriamente dito) deveria ter como obra de consulta
outra vez Melo Freire. No direito criminal, recomendavam-se os iluministas Filangieri,
Beccaria e o reformador e utilitarista Bentham. No direito comercial e na economia
política, dominava o brasileiro José da Silva Lisboa (Visconde de Cairu) com os Princípios
de Direito Mercantil (publicado em Lisboa entre 1798 e 1804) e a Economia Política, ao
lado de Adam Smith, Ricardo e Malthus178. O estatuto, na sua introdução, não só exaltava

174 HESPANHA, António Manuel. A História do Direito na História Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.
p.73-82.
175 Ibid., p.82-108.
176 ADORNO, Sergio. Os Aprendizes do Poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988. p.82.
177 BASTOS, Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p.XV.
178 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 3. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas,
2011. p.316.
96

as virtudes do ensino do Direito Romano como também estabelecia que ele deveria ser
a fonte primacial do direito brasileiro. Todavia, a cadeira de Direito Romano só foi
formalmente introduzida, ou restaurada ao modelo do Visconde de Cachoeira, no
currículo jurídico do Império em 1851. Entretanto, os primeiros professores, assim como
os livros, como os de Melo Freire, mantiveram a tradição coimbrã 179.

Em relação ao ensino no Brasil, em nenhum momento da história imperial


brasileira se incentivou ou viabilizou qualquer política para a formação do magistério
jurídico, deixando que o pessoal docente, nem sempre formado em direito, se
confundisse com os advogados e militantes da advocacia e, principalmente, da política e
parlamentares. Essa é, aliás, uma das características de parlamentares do Império,
principalmente aqueles das províncias de São Paulo e Recife180. É possível que isso guarde
relação com o tamanho da elite, que era muito pequena.

Ademais, era possível que isso fosse uma estratégia, para utilizar os juristas
como agentes do desenvolvimento. Isso também vai ter conexão com a questão que
alcança o período aqui pesquisado, de que os termos “pensamento constitucional” e
“pensamento político” se confundiam em certa medida. Não existindo uma separação
clara entre as reflexões e atividades que envolviam o direito constitucional e as
instituições políticas, os principais teóricos da Constituição foram também as principais
figuras da sua operacionalização prática181.

Com a reforma de 1854, os cursos se subdividiram em Curso de Ciências


Jurídicas, voltado para a formação dos advogados, e de Ciências Sociais, voltado para a
formação de quadros administrativos e diplomáticos, o que teve significativos efeitos na
estrutura curricular182. É lugar comum normalmente apontar que até 1870,
aproximadamente, as Faculdades de Direito não foram centros de debates e que a vida
cultural jurídica dava-se no foro ou na Corte183. Mas essa é uma visão um pouco
exagerada, pois sugere uma guinada radical posterior, o que não aconteceu realmente. O
contexto sociopolítico estava passando por modificações e algumas ideias políticas
estavam sendo acolhidas no meio acadêmico, mas isso não implicava em uma mudança
de método ou do locus de debates.

Aponta-se que, no Nordeste, a mudança do curso de Olinda para Recife em


1854 assinalaria uma guinada tanto geográfica como intelectual. A partir de então, surgiria
uma produção original e um verdadeiro centro criador de ideias e aglutinador de
intelectuais engajados com os problemas de seu tempo e de seu país. Seria a partir de tal
momento que se perceberia o surgimento de um novo grupo de intelectuais, cuja
produção iria transpor os estreitos limites regionais. A Faculdade de Direito
pernambucana expressaria tendência para a erudição, a ilustração e o acolhimento de
influências estrangeiras vinculadas ao ideário liberal. No caso da Faculdade do Recife, a
introdução simultânea dos modelos evolucionistas e social-darwinistas (mais a partir de

179 BASTOS, 1998, p. 34, 47.


180 Ibid., p. 53
181 PIVATTO, Priscila Maddalozzo. Idéias Impressas: o direito e a história na doutrina constitucional brasileira
na primeira república. São Paulo, 2010. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de
Direito, 2010. p.69.
182 BASTOS, op cit., p. 126.
183 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 3. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas,
2011. p.321.
97

1870) resultaria em uma tentativa bastante imediata de adaptar o direito a essas teorias,
aplicando-as à realidade nacional. Recife teria sido, talvez, o centro que se apegara de
forma mais radical tanto às doutrinas deterministas da época como a certa ética científica
que então se difundia184.

Já a Faculdade de Direito de São Paulo seria um cenário privilegiado do


bacharelismo liberal e da oligarquia agrária paulista e trilharia na direção da reflexão e da
militância política, do jornalismo e da “ilustração” artística e literária. Aliás, teria sido o
intenso periodismo acadêmico o traço que predominou na tradição do Largo de São
Francisco, levando os bacharéis ao desencadeamento de diversas lutas políticas. Algumas
diretrizes filosófico-culturais encontrariam guarida no interesse do corpo acadêmico,
como o jusnaturalismo, o ecletismo filosófico, o laicismo e, finalmente, o próprio
positivismo. Afirma-se que a Escola paulista teria vivenciado um ecletismo autodidata,
porquanto seus integrantes não se teriam limitado ao estudo exclusivo da cultura jurídica,
mas aderido às práticas do periodismo e da militância política 185.

A principal proponente dessa teoria, Lilia Schwarcz, afirma que enquanto


Recife educou e se preparou para produzir doutrinadores, “homens de ciência” no
sentido que a época lhe conferia, São Paulo foi responsável pela formação dos grandes
políticos e burocratas de Estado186. Para Christian Lynch, essa interpretação confundiria
o crescimento político de São Paulo no cenário nacional (o que justificaria que uma
quantidade maior de egressos da faculdade ocupassem mais postos políticos e
burocráticos no Estado) e a queda de importância política do Nordeste (o que justificaria
que os egressos da faculdade tivessem menos espaço na política e burocracia nacional,
tendo um percentual maior de juristas profissionais, doutrinadores e professores) com a
análise da educação nas faculdades; e a falta de utilização desse ponto de vista externo
faria com que Lilia Schwarcz tentasse buscar respostas apenas internas às instituições e
ao discurso jurídico, o que seria muito despistador.

Note-se que, ao longo de sua história, as faculdades de direito também tinham


uma função estratégica. No imaginário imperial, o jurista seria a figura mais apta a
participar na esfera dita política e guiar o País rumo à chamada civilização. O esforço do
Império em fundar faculdades de direito no Brasil teria sido uma resposta à necessidade
de quadros para gerir a política no momento em que o Brasil se tornava independente de
Portugal. As faculdades eram locais onde se homogeneizava a elite pela educação, dando
aos seus alunos valores e linguagens comuns 187.

Claro, muito se criticou da formação dos estudantes nas faculdades. É


importante notar, contudo, que as precariedades (que eram reais) do ensino jurídico do

184 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil-1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.146-151; WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito
no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.81-83.
185 ADORNO, 1988, p. 92-95; SCHWARCZ, 1993, p. 174; WOLKMER, 2002, p. 83.
186 SCHWARCZ, 1993, p. 186-187.
187 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política
imperial. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.39-44; SONTAG, Ricardo. Triatoma
Baccalaureatus: sobre a crise do bacharelismo na Primeira República. Espaço Jurídico. Joaçaba, v. 9, n. 1, p.
67-78, jan./jun. 2008. p.68.
98

século XIX eram correspondentes às precariedades estruturais do próprio Estado e da


vida intelectual brasileira do período188.

A crítica de que o ensino era precário, isto é, não impactava a formação dos
alunos e de que a importância das faculdades de direito estava menos no conhecimento
ali transmitido do que no estabelecimento de redes e afinidades políticas que elas
propiciavam, é exagerada. Lendo sobre os currículos, os professores, obras e pensamento
jurídico dos docentes e comparando os produtos disso, os alunos, não se deixa de notar
continuidades189. Claro que questões paralelas, que faziam parte da vida dos estudantes,
eram importantes, como dedicar-se ao jornalismo, fazer literatura, especialmente a poesia,
consagrar-se ao teatro, ser bom orador, participar dos grêmios literários e políticos, das
sociedades secretas e das lojas maçônicas 190. Mas isso não excluía a relevância das aulas.
Alguns dos ex-estudantes que escreveram críticas às faculdades, que se diziam
“autodidatas”, que pouco teriam adquirido nas faculdades, como Silvio Romero, fizeram-
no para legitimar suas posições hipoteticamente inovadoras, de suposta “ruptura”, pois
é perceptível uma influência de fundo neles. Entende-se aqui que esse tipo de jurista é
tipicamente brasileiro, com as características que identificamos nestes, conforme tratado
adiante. Outros, escrevendo no começo do século XX, fizeram-no no contexto do
conflito entre os “homens de ciência” e os “homens de letras”, quando caía o prestígio
dos bacharéis.

Com o surgimento da República, acaba o monopólio de Recife e São Paulo,


sendo permitida a criação de faculdades livres em diversos Estados, e isso amplia, ao
menos potencialmente, o campo institucional de reflexão a respeito das ideias jurídicas e
sociais no país191. A República foi proclamada, do ponto de vista educacional, sem um
programa prospectivo definido, embora o ideal federativo que se associara ao programa
republicano - especialmente com a colaboração de Rui Barbosa - traduzisse as esperanças
dos liberais radicais do fim do Império. Da mesma forma, as propostas de liberdade de
ensino traduziam o ideal educacional192. A criação de faculdades nos estados se adequava
ao ideal federalista e possibilitava que as oligarquias predominantes locais formassem e
controlassem melhor a formação de seus quadros.

1.5 Os meios de circulação do direito e das ideias


jurídicas

Sobre os meios e espaço de produção e circulação do direito, ressalta-se o


papel dos jornais e dos debates parlamentares, espaços de discussão pública, onde os
juristas desempenhavam as atividades política e jornalística, importantes ambientes de
formação do Direito Público brasileiro e, também, arenas em que o jurista eloquente
manifestava tanto a ênfase oratória de sua palavra como a construção sonora de sua frase.

188 FONSECA, 2006, p. 369.


189 Ibid., p. 369
190 VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982. p.136.
191 ALVAREZ, Marcos César. A Formação da Modernidade Penal no Brasil: Bacharéis, Juristas e a
Criminologia. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (Orgs.). História
do Direito em Perspectiva. Curitiba: Juruá, 2012. p. 292.
192 BASTOS, 1998, p. 136.
99

Voltadas à intervenção na esfera de publicidade, essas habilidades importavam ao bom


desempenho do homem público, interpelado a defender oralmente ideais e interesses em
discursos proferidos na tribuna parlamentar, ou a fazê-lo textualmente nas páginas das
gazetas193.

Dentre os meios de circulação do direito e das ideias jurídicas do período, os


institutos desempenharam um importante papel. O Instituto da Ordem dos Advogados
Brasileiros (IAB) foi o local por excelência de debates intelectuais sobre os mais variados
aspectos do que estava a se construir enquanto nacionalidade brasileira. É importante ter
em mente que a criação do modelo ideal do ser advogado esteve inserida e fez parte de
um processo mais amplo de centralização e consolidação do Estado nacional no período.
Destaca-se aqui o IHGB, que também teve um papel relevante na Primeira República,
com a participação de juristas e com contribuições para o direito brasileiro194 (PENA,
2001b, p. 57-60; SCHWARCZ, 1993, p. 129-131).

Igualmente relevante para a formação dos juristas e para a formação de


discursos foram as sociedades acadêmicas, que ensinavam os estudantes a defender
“causas”, socializavam e criavam redes, que se manteriam pelo resto da vida
profissional195.

Os congressos tiveram um papel de destaque na cultura jurídica da Primeira


República e surgiam como novo espaço de articulação de juristas de diversas partes do
país que, em um grupo, tentariam demarcar um espaço de preponderância na elaboração
de teses que serviriam de referência para a intepretação do texto constitucional de 1891 196.

Não devem ser esquecidas as revistas jurídicas, que abordavam o pensamento


jurídico-doutrinário de escolas jurídicas, defendiam o constitucionalismo liberal,
divulgavam a jurisprudência, davam publicidade às leis e aos códigos, criticavam as
decisões judiciais, dialogavam com velhas e novas teorias. Também especializavam o
discurso jurídico por meio da imprensa periódica jurídica, com um caráter estratégico
disciplinar197.

Os livros (de autores brasileiros) possuíam um papel secundário na cultura


jurídica do período, pois eram mais generalistas, embora não tenham deixado de existir
exceções198. Não propunham discussão, normalmente vinham atrás da discussão, que era
travada principalmente em outros meios mais dinâmicos, como os jornais e os debates
parlamentares (é de se recordar que, em geral, os livros mais citados eram petições

193 LOBO, Judá Leão. A Opinião Pública entre Pensamento e Arquivo: encarnação e releituras de uma categoria
constitucional no Brasil monárquico. Curitiba, 2015. 213p. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal
do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2015.
194 Ver ADORNO, 1988; COELHO, 1999; FREIRE, 1977; HOLANDA, 1995; PENA, 2001a; 2001b; SÁ,
2006; SCHWARCZ, 1993; SILVA, 2005.
195 VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 148-151.
196 GALVÃO, Laila Maia. Espaços de Construção da Interpretação Constitucional: análise dos congressos jurídicos da
Primeira República. [S.l.: s.n.], 2012.
197 RAMOS, Henrique Cesar Monteiro Barahona. A Revista “O Direito” – Periodismo Jurídico e Política no
final do Império do Brasil. Niterói, 2009. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, 2009.
198 PIVATTO, 2010; PIVATTO, Priscila Maddalozzo. Leituras Republicanas: produção e difusão de livros de
Direito Constitucional brasileiro na Primeira República. História. São Paulo, v. 30, n. 2, p. 144-178,
ago./dez. 2011.
100

publicadas, como o “Atos Inconstitucionais” e “O Estado de Sítio”, de Rui Barbosa, ou


manuais como o de João Barbalho). Além disso, os autores dos livros de Direito Público
eram, em geral, clínicos gerais, caso do próprio Rui Barbosa.

1.6 Modelo dos juristas brasileiros

Há uma grande produção no Brasil em torno do tópico do bacharel, com


diversas abordagens199.

Um ponto importante é o debate travado entre “homens de letras” e “homens


de ciência”, no Brasil das primeiras décadas do século XX, que terminou por disseminar
duradouros estigmas em relação aos bacharéis em direito200. Com esse debate e esse
labéu, passou-se a olhar de forma crítica para os bacharéis. Muitos livros de memória,
críticos das faculdades de direito e dos bacharéis, surgem nesse período, muito em função
desse debate.

Cita-se aqui a forma como Dominichi Miranda de Sá caracteriza a construção


da diferença de percepção entre um dos principais “homens de letras” da época, Rui
Barbosa, e um dos principais “homens de ciência” da época, Oswaldo Cruz, na passagem
do século XIX para o século XX:

houve um tempo em que Rui Barbosa era imbatível, tendo sido aclamado como
o maior ‘ator’ entre todos, ou ainda como a maior inteligência entre todas do
planeta. Dominava a ‘arte de bem dizer’ e de encantar o público com palavras
tão sonoras e períodos tão bem decorados que parecia mesmo querer arrebatar
o espírito dos auditores que o apreciavam embevecidos. No período em que
reinava Barbosa, Oswaldo Cruz, por exemplo, não fazia ‘apresentações’.
Não dominava a técnica de exibição em público. Não era orador, não possuía
vasta memória. Não era talhado, nem formado para esse tipo de encenação
pública. Não ‘tinha tempo’; aliás, preferia dedicar-se com exclusividade à
figura dramática que ‘tinha escolhido’ para si. No mais, à vista de Barbosa,
seria considerado limitado pelo público, por suas falas serem muito específicas
e por sua exibição ser tão esotérica. No entanto, no tempo em que Oswaldo
Cruz foi aclamado como ator de um só personagem - o ‘Pasteur brasileiro’ -,
Barbosa já era alvo das maiores caçoadas, pela pretensa inutilidade das peças
inteiras que levava à mente. A plateia passava a desconfiar de tamanha boa
memória, insistindo em saber do préstimo dos saberes desfilados ao palco 201.
No caso específico de Rui Barbosa, o “bacharel”, o “homem de letras”, a
evolução da crítica foi a seguinte:

199 Ver SILVA, Wilton C. L. Os Guardiões da Linguagem e da Política: o bacharelismo na República Velha.
Justiça & História, v. 5, n. 10, p. 1-23, 2005; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995; FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio,
1977; ADORNO, 1988; PENA, 2001b); COELHO, Edmundo Campos. As Profissões Imperiais: medicina,
engenharia e advocacia no Rio de Janeiro (1822-1930). Rio de Janeiro: Record, 1999; SCHWARCZ, 1993;
SÁ, 2006.
200 ALVAREZ, 2012, p. 287.
201 SÁ, Dominichi Miranda de. A Ciência como Profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935).
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p.22.
101

Tomando Rui Barbosa como o maior exemplo do letrado brasileiro de


formação enciclopédica, impossível não mencionar sua notabilidade como uma
“cerebração extra-comum”, “uma memória que dificilmente se encontra”;
memória que lhe permitiu ser a “mais vasta erudição do Brasil”, senão mesmo
de toda a Terra! À parte isso, era tido como orador de altíssima cepa, cujo
talento só poderia ser rivalizado por Cícero e Vieira (Moacir Silva. 'Rui
Barbosa como poeta', Revista do Brasil, n. 94, out. 1923, p. 119).
Acrescentem-se, inclusive, os abundantes comentários de que uma vasta
ilustração como a de Barbosa só era possível em países que ainda não teriam
feito a divisão do trabalho intelectual. E urgia, portanto, adotá-la. E, como
na fórmula dos aspirantes à especialização, generalidade intelectual e falta de
préstimo social eram sinônimos inseparáveis, bradava-se que a produção
cultural brasileira não poderia mais ser realizada com afetação e por
diletantismo, como art d'agrément, como o piano ou os bordados, mas, ao
contrário, como um mister exercido por vocação e com seriedade (José
Veríssimo. 'O movimento literário brasileiro em 1910', Revista Americana,
n. 4, abr. 1911, p. 6-14; Afonso Celso. 'Trabalho intelectual: crise de que
se sofre. Como remediá-la', Revista do Brasil, n. 88, abr. 1923, p. 374) 202.
Percebe-se, claramente, a transformação do referencial teórico pelo qual é
entendido agora o homem de letra: antes algo visto positivamente, agora passa a ser
avaliado negativamente.

Se, ainda no século XIX, a denominação “homens de letras” englobava a


atuação de indivíduos dos mais diversos campos de atividade – de jornalistas a homens
de ciência, de artistas a médicos, de advogados e bacharéis a historiadores ou mesmo
poetas – o que havia de comum a todos eles era a posse de um saber enciclopédico,
sustentado pelos exercícios retóricos, plenos de referências em língua estrangeira e
argumentos de autoridade203.

A autora Dominichi Miranda de Sá montou a seguinte descrição dos “homens


de letras” com base nos relatos da época:

Para começar a descrição que deles era feita nas revistas, saliente-se a
presumida suntuosidade desses ‘homens de letra’. Todos com sua expressão
facial ponderosa, trajados solenemente em sobrecasaca preta e cartola (‘Bilhetes
à Cora’, Fon-Fon!, n. 28, out. 1907). Sem esquecer o monóculo e o charuto
entre os dedos, e sempre ciosos dos modos elegantes de se portar em casas de
fora. Habitués das festas mundanas, dos bailes, banquetes e mesas de doces
do Palácio Monroe, recitariam versos, longos trechos de prosa e monólogos que
decorariam aos montes; além de cantar cançonetas, dançar valsas e o pas de
quatre. Saberiam, é claro, francês, e leriam romances em inglês, alemão e
espanhol. Teriam lá suas doses de filosofia, direito criminal, sociologia e de
economia política. Na estante, Augusto Comte, Platão, Sócrates, Balzac,
Zola, La Fontaine, Byron, Shakespeare – afinal, “um pouco de tudo”
('Vendo autores', Careta, n. 8, jul. 1908). Uma vez de posse desses atributos,
toda a gente era cumprimentada como ‘doutor’, contam as revistas. Expressão
que, como a de bacharel, passou a ser cada vez mais confundida na linguagem
corrente da cidade com o genérico termo ‘homem de letras’. Ideias proliferariam
no espaço público como moscas, inúmeras, e por qualquer pretexto “a gente

202 SÁ, 2006, p. 84-85.


203 ALVAREZ, 2012, p. 287-288.
102

fala[va] a um sábio de alta envergadura” ('Moscas', Fon-Fon!, n. 11, 22


jun. 1907; 'O astrônomo da avenida', Fon-Fon!, n.8, jun. 1907)204.
Afirma Alvarez que contra a tradição desses homens de letras, em grande parte
organizada em torno da oralidade e disseminada em leituras de salão e conferências, os
cientistas locais do início do século XX buscaram erigir um novo estilo de produção
cultural. Bacharéis e juristas passaram a ser identificados como os “antimodernos” por
excelência, exemplos típicos do antigo paradigma que se pretendia superar 205.

Como se sustenta aqui, o modelo de Alcides Cruz era claramente o do


“homem de letras”, em razão de seu estilo retórico, eloquente, de seu conhecimento
generalista com produção em várias áreas do saber, como direito, história, filosofia, letras
(chegou a traduzir O Jogador, de Dostoiévski, ao português) etc.

No necrológio de Alcides Cruz elaborado por Andrade Neves Neto, é


apresentado como um homem de letras, com um viés positivo:

Nele madrugando assim tão prematuramente o gosto de estudo e o interesse


por uma leitura tanto quanto possível enciclopédica, se deu apaixonadamente
a uma existência recolhida e tenaz de estudioso, o que lhe estava valendo, em
plena maturidade do espírito, única cultura vantajosa e variada que, além de
útil aos seus interesses profissionais de advogado laborioso, lhe conferiram
autoridade suficiente para se tornar um dos mais valiosos auxiliares, de
reconhecida confiança da suprema direção do Partido Republicano Rio-
grandense206.
Analisam-se também as características dos juristas do período. A característica
“eloquente” refere-se ao jurista que valoriza sobremaneira os atributos da palavra falada,
como a forma, o ornamento, a sonoridade (mesmo quando por escrito), além das
vantagens da oralidade. Essa classe de jurista tem o advogado como modelo por
excelência e é o típico tribuno, alguém que transmite com eficácia e grandiloquência seu
saber por meio do discurso declamado. Assim, a memória é o maior aliado do profissional
do direito. A literatura (e mais particularmente a poesia) se mostra como matéria-prima
essencial no ofício do advogado. O culto literário representava o cumprimento de um
dever profissional que estava arraigado na “tradição eloquente”.

Aponta Fonseca que outra face óbvia desse tipo de profissional seria, de um
lado, naturalmente, a da intervenção jornalística (usando-se dessa linguagem que se
assemelha, de fato, àqueles conteúdos de eloquência retórica próprios de uma cultura que
valoriza a oralidade), atividade na qual os advogados eram, efetivamente, presença
constante, e, de outro lado, a intervenção política (a atuação do advogado como homem
público, o homem “de causas”)207.

Outra característica normalmente apontada nos juristas brasileiros é o


autodidatismo. Autodidatismo aqui pode ser tanto no sentido em que novas ideias

204 SÁ, 2006, p. 46-47.


205 ALVAREZ, 2012, p. 288.
206 NEVES NETO, Andrade. Alcides Cruz Por um Contemporâneo. O Depoimento de Andrade Neves
Neto. In: Almanack Litterario e Estatistico do Rio Grande do Sul. Rio Grande: Pintos & Cia., Livraria Americana,
1917.
207 FONSECA, 2006, p. 358-360.
103

artísticas, sociais e políticas eram discutidas pelos estudantes de direito, principalmente a


partir da segunda metade do século XIX, mas essa discussão ocorria fora das salas de
aula e longe dos mestres, como no sentido de ser capaz de gerar teses jurídicas
convincentes a partir de um amplo e desconexo quadro de referências nacionais e
estrangeiras208.

Ainda, cite-se também o ecletismo como característica atribuída aos juristas


brasileiros do período, normalmente apontado como algo no sentido de julgar com
equilíbrio todas as escolas, delas procurando retirar o que houvesse de verdadeiro e
eliminando o que houvesse de falso. Montar teses com doutrinas aparentemente
repelentes umas das outras seria uma característica desse ecletismo 209. Claro, isso mais se
parece com uma característica do autodidatismo do que realmente um “ecletismo”, pois
não há uma real análise e escrutínio de diversos autores, apenas a construção de um texto
com a defesa de ideias que o autor já possuía e pretendia defender, com a inclusão da
citação de diferentes autores desconexos.

Na questão da tática de construir e definir o direito brasileiro, os juristas


procuravam por países que seriam ideais civilizacionais, com o uso de autores de
determinada língua ou país. Mais do que revelar meras preferências doutrinárias (pois,
como já abordado, as doutrinas poderiam ser manipuladas ao gosto do freguês), essa
disputa também tinha um grande simbolismo, no sentido de estabelecer ideais, que tipo
de nação gostaria de ser, que tipo de instituições deveríamos copiar para alcançar esses
objetivos etc. Ao longo do Império e da República, identificam-se três grandes tradições:
a dos anglo-americanos, a dos franco-portugueses (que predominou no Império) 210 e a
dos germanistas (que encontra recepção na elite acadêmica brasileira no século XIX,
resultado da ascensão da Alemanha depois de sua unificação, por volta de 1870, em
especial naqueles identificados com a assim chamada “Escola do Recife” – muito por
não defenderem uma República, mas um Império reformado nos moldes da unificação
alemã que Bismarck havia feito, algo que seria mais interessante para a elite nordestina
do período). Claro, no período aqui pesquisado acabam prevalecendo os anglo-
americanos211, e o que mais transparece da discussão jurídica é o que o STF tentava
espelhar-se mesmo na Suprema Corte dos Estados Unidos.

Em relação ao uso de doutrina estrangeira, aponta-se a classificação de


Seelaender, que trata da figura do “jurisconsulto adaptável”, o tipo ideal do estrategista
eclético, descompromissado com “progressismos”, “conservadorismos” e “cartilhas
ortodoxas” em geral, mas capaz de se deslocar rapidamente, em um quadro político
instável e em um meio acadêmico cientificamente ainda gelatinoso, dentro de um amplo

208 ALVAREZ, 2012, p. 15; SEELAENDER, 2013, p. 8.


209 MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 71-77; MERCADANTE, Paulo. A Consciência Conservadora no Brasil.
3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p.210-211.
210 Ver, nesse sentido, o debate no início da República entre Ruy Barbosa, defensor de posições anglo-
americanas, e o então ministro do STF Joaquim da Costa Barradas, defensor de posições franco-
portuguesas (CASTAGNA MACHADO, 2015, p. 179-205).
211 Houve até mesmo um esforço para positivação disso no Decreto 848 de 1890, que estabelecia em seu art.
386:
“Art. 386. Constituirão legislação subsidiária em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e
comercial, não sendo contrarias às disposições e espírito do presente decreto. Os estatutos dos povos
cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do
Norte, os casos de common law e equity, serão tambem subsidiários da jurisprudência e processo federal.”
104

espectro de opções ideológicas, doutrinárias e metodológicas distintas. Ele se difere do


tipo “conservador-refratário”, que teria por atitude básica uma relativa desconfiança face
às “novidades vindas de fora” – mudanças inspiradas na doutrina europeia seriam aqui
defendidas apenas enquanto representassem adaptações ou atualizações vistas como
“inevitáveis” ou de extraordinária conveniência. O outro modo poderia ser chamado de
“assimilacionista-modernizante” – não por gerar “progresso”, mas por pretender gerar
ampla modernização assimilando padrões estrangeiros. Os juristas de que aqui tratamos
poderiam ser mais bem classificados daquilo que Seelaender chamava de “jurisconsulto
adaptáveis”, criadores de teses convincentes com o uso de autores e citações, oriundas
dos locais mais diversos, de forma aleatória212.

Aliás, conforme Hespanha, essa é uma tradição que se mantém no Brasil


contemporâneo, pois, segundo ele, a doutrina estrangeira, com origem europeia e norte-
americana, é citada e usada, mas de forma tópica, por vezes para obter resultado que não
tem muito a ver com a sua lógica original. Porém, para o autor, diferentemente de
Seelaender, esse uso instrumental da doutrina, que à primeira poderia parecer oportunista,
pode ser explicado não pela chave do oportunismo ou da superficialidade, mas sim por
uma leitura da doutrina orientada para problemas 213.

Em relação a referenciais teóricos de fundo, olhamos para a pesquisa de José


Reinaldo de Lima, que aponta a ascensão daquilo que chama de “naturalismo jurídico”
nas últimas décadas do século XIX, no Brasil, uma forma de passar a tratar o direito
como um fenômeno empírico, um processo entre os muitos que aconteciam no mundo
e para o qual a melhor forma de abordagem e de conhecimento seria a das ciências, não
mais a da teoria moral ou a da sistematização conceitual pura e simples. Isso teria ocorrido
em contraposição aos modelos jusnaturalista e conceitualista. O próprio Lopes afasta
“purismos” e aponta para uma “miscigenação” dos modelos 214. O uso dessas visões de
fundo pode ser visto nas discussões sobre habeas corpus, por exemplo, como quando Enéas
Galvão aponta para uma evolução do instituto e Pedro Lessa (normalmente visto como
um positivista) respondia apontando para um “conceito” habeas corpus215. Embora se
tente, muitas vezes, elaborar listas rígidas apontando quais autores se filiavam a quais
correntes, entende-se aqui que isso muitas vezes não estava bem resolvido na cabeça dos
próprios personagens, que utilizavam os autores do período de acordo com a
conveniência.

212 SEELAENDER, 2013, p. 1-11.


213 HESPANHA, António Manuel. As Culturas Jurídicas dos Mundos Emergentes: o caso brasileiro. Revista
da Faculdade de Direito - UFPR, n. 56, p. 16, 2012.
214 LOPES, José Reinaldo de Lima. Naturalismo Jurídico no Pensamento Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014.
215 RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Doutrina Brasileira do Habeas-Corpus
(1910-1926). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991b. p.118-130.
105

2 ALCIDES CRUZ E SUA DEFESA


INTELECTUAL E DOUTRINÁRIA DO
PINHEIRISMO

2.1 Pinheiro Machado, ascensão e disputas políticas

No governo de Afonso Pena, o ano de 1905 representou uma transição entre


os acordos de 1901, dos presidentes de São Paulo e de Minas Gerais, e a disputa eleitoral
ocorrida em 1910 entre Rui Barbosa e Hermes da Fonseca. O Rio Grande do Sul já
ocupava a condição de terceiro estado da federação e os mineiros não pareceram
dispostos a aceitar mais um paulista no poder. Claro, o governo de Pena marca também
a ascensão de Pinheiro Machado na política nacional. Afonso Pena não era o político
mais poderoso daquele estado e necessitaria de seu apoio para governar. Um acordo entre
gaúchos, baianos e mineiros permitiu a vitória de Afonso Pena. Tendo em vista o fato de
que o candidato era favorável à valorização do café e à baixa cambial, o Estado de São
Paulo aceitou seu nome. O importante Convênio de Taubaté foi elaborado no governo
de Rodrigues Alves e ratificado por Afonso Pena, que foi escolhido também em função
de ser simpático ao convênio. Era o Estado intervindo na Política do Café para atender
aos interesses do setor. E esse convênio iria colaborar para causar certo mal-estar no
Exército216.

Logo no Manifesto Político, lido no dia do lançamento oficial de sua


candidatura presidencial, Afonso Pena delineia sua posição em relação ao legislativo, e,
do jeito que a apresenta, gera um grave problema nas relações entre o presidente da
República e o Congresso, dominado por Pinheiro Machado. Para se contrapor ao Bloco,
liderado por Pinheiro Machado, cria-se o Jardim de Infância, com Carlos Peixoto, David
Campista e outros. Carlos Peixoto, inclusive, é escolhido para líder do governo, mas isso
não leva a um rompimento definitivo das partes 217.

No governo Afonso Pena, o problema sucessório surge antes do tempo, o


que permite a intensificação da luta pelo predomínio político. Durante algum tempo,
David Campista era o candidato oficial de Afonso Pena, com o apoio de São Paulo, o
que significa a aprovação à política de valorização de café preconizada por Afonso Pena.
Mas há um racha na política mineira e acaba ocorrendo um recuo na candidatura
campista. Nisso, a candidatura de Hermes da Fonseca começa a despontar. Inicialmente,
Pinheiro Machado não tinha interesse em sua candidatura e se mantinha distante. Na falta
de opções, ele até preferia apoiar seu então amigo Rui Barbosa. Vendo como inevitável
a candidatura Hermes e seu favoritismo, passa a apoiá-lo. Entretanto, isso não fica muito
bem resolvido, e as lutas entre pinheirismo e militarismo vão ser o pano de fundo do

216 BORGES, Vera Lúcia Bogéa. Morte na República. Os Últimos Anos de Pinheiro Machado e a Política Oligárquica
(1909-1915). Rio de Janeiro: IHGB/Livre Expressão, 2004. p. 105, 110-116; PENNA, Lincoln de Abreu.
Uma História da República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p.107
217 CARONE, Edgard. A República Velha: Evolução Política. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971. p.228-
229; BORGES, op cit., p. 120-126.
106

quatriênio seguinte. Enquanto isso, São Paulo não apoia a candidatura de Hermes e
procura candidato218.

No sentido do reconhecimento da candidatura Hermes da Fonseca, outro fato


fundamental que ocorrerá será a pressão de Pinheiro Machado para que os pequenos
estados o aprovem. Para isso ele usará de sua influência na Comissão de Verificação de
Poderes no Congresso. É importante notar também que o “hermismo” correspondeu a
um dos momentos em que foi possível a existência de um mecanismo de revezamento
político. A acirrada disputa presidencial envolve Hermes da Fonseca e o candidato
“civilista” Rui Barbosa, apoiado por São Paulo para que a oligarquia paulista perdesse
“com honra”219.

Então, com o desaparecimento de Afonso Pena começa o governo Nilo


Peçanha, que muda o ministério, de certa forma como ato de partidarismo pró-Hermes
da Fonseca. Em seu governo, combate São Paulo e as oligarquias que não apoiam a
candidatura Hermes. Ele apresenta também divergências com Pinheiro Machado 220.

Durante o período Nilo, ocorre a campanha civilista. A indicação de um


candidato como Barbosa leva a campanha a uma intensidade eleitoral nunca vista antes,
que discursa, percorre estados. Nas eleições de 1910 ocorre uma mudança nos métodos
da campanha eleitoral, mas há a permanência das formas de eleição. Muitas vezes a
disputa é apresentada de forma maniqueísta: o civil contra o militar, o democrático contra
o autoritário, o culto contra o ignorante. Mas esse não é o melhor enfoque para a questão.
Os militares que apoiavam Hermes eram os bacharéis de farda, oriundos da Escola Militar
da Praia Vermelha, não estando muito distantes dos oligarcas que apoiavam Rui. A
conotação militarista do governo deveu-se muito mais à campanha de Rui Barbosa do
que à presença do marechal. Assim, Barbosa cometeu um engano sério em relação ao
Exército quando incentivou a Questão Militar. O hermismo se deu num contexto distinto
do de 15 de novembro e das lutas do primeiro quinquênio da República, enquadrando-
se dentro do jogo da política dos estados, embora alguns militares tornassem a questão
mais complexa, e só pode surgir e vencer graças ao desacordo entre Minas e São Paulo e
à divisão interna de Minas. Em tal contexto, a novidade é que as lideranças civis,
sobretudo a mineira, já se dispunham a aceitar um candidato militar como saída para o
impasse sucessório. Os hermistas tinham a pauta do combate às oligarquias, pauta essa
que Rui tenta “roubar”221.

Porém, antes do término do governo Nilo Peçanha, ocorrem problemas nos


estados e distrito federal, tendo havido, no caso dos estados, revoluções e agitações no
Amazonas, no Estado do Rio de Janeiro e em Sergipe 222. No caso do Amazonas, Nilo
Peçanha, embora de política favorável a Hermes da Fonseca, rompe publicamente com
Pinheiro Machado, um de seus apoios, devido ao caso do bombardeio de Manaus223.

218 CARONE, 1971, p. 231-238.


219 Ibid., p.239-241.
220 Ibid., p.244-245.
221 CARONE, 1971, p.245-247; CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006
222 CARONE, 1971, p. 247.
223 RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Defesa do Federalismo (1899-1910). 2.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991a. p.162-166.; CARONE, 1971, p. 250-251.
107

As eleições de l.º de março de 1910 correm tranquilas, com cada lado


proclamando-se vencedor e, ao final, Hermes da Fonseca reconhecido presidente. O
problema da vitória eleitoral leva a contínuos debates na Comissão de Verificação de
Poderes (contestações de Rui Barbosa etc.), mas a atitude do situacionismo e dos militares
permanece constante como força de pressão para o reconhecimento da vitória de Hermes
da Fonseca224.

Hermes da Fonseca, quando toma posse, visita o STF, tornando-se o primeiro


presidente a fazê-lo225. Em seu governo, o Brasil vai passar por uma crise, como efeito
da Primeira Guerra Mundial que estava se anunciando, o que também ajuda a entender a
pressão do período. Hermes pede a colaboração de Rui Barbosa, para que o auxilie na
escolha de seu Ministério, buscando uma conciliação. Entretanto, os nomes indicados
são todos de seus partidários, numa afirmação dos grupos e estados que o apoiam. O seu
governo teria como característica ocupação de cargos políticos por jovens. Por outro
lado, a tendência dominante, liderada por Pinheiro Machado no Congresso, é excluir das
diversas comissões todos os membros da minoria parlamentar, para assim conseguir o
controle absoluto das decisões226.

Temendo a dualidade de liderança em relação a Hermes – e essa antinomia


caracterizará o período – Pinheiro Machado incentiva a criação de um novo partido (o
Partido Republicano Conservador), para tentar dominar a situação 227.

As ambiguidades da candidatura Hermes vieram à tona durante os conflitos


surgidos em seu governo entre militares e as lideranças políticas estaduais apoiadas por
Pinheiro Machado. O próprio Hermes era atingido pela animosidade dos militares
quando optava por apoiar seu mentor político 228. Flávia Borges Pereira entende que, nos
bastidores do governo federal, Pinheiro Machado (senador do Rio Grande do Sul), de
um lado, e Dantas Barreto (“salvador” de Pernambuco e articulador da Política das
Salvações), de outro, disputavam entre si maior influência junto ao marechal Hermes da
Fonseca229.

No governo Hermes ocorrem problemas nos estados e distrito federal. Os


frágeis laços, devido aos antagônicos interesses, estabelecidos na campanha de Hermes
começaram a ruir logo após sua posse. Hermes da Fonseca, pressionado por forças que
pretendem uma continuidade do status quo – Pinheiro Machado e o Partido Republicano
Conservador – e por elementos que ambicionam conquistar o poder – minorias estaduais
e Exército –, titubeia, não sabendo qual a atitude que deve tomar. Surgem conflitos
durante seu governo entre militares e as lideranças políticas estaduais apoiadas por
Pinheiro Machado. Em uma primeira fase, houve a política das salvações, em que alguns
militares, geralmente coronéis, tentavam desalojar oligarquias estaduais, contando com o
apoio (real ou presumido) da organização. Em uma segunda fase, ocorre uma reação
pinheirista230. Há, no período, até mesmo uma tentativa de intervenção em São Paulo

224 CARONE, op cit., p. 251-252


225 RODRIGUES, 1991b. v.3. p. 61.
226 PENNA, 1989, p. 115.
227 CARONE, op cit., p. 256-257.
228 CARVALHO, 2006, p. 47
229 PEREIRA, Flávia Borges. Salvações no Nordeste: política e participação popular. Cotia: Ateliê Editorial, 2011.
p.81-82.
230 Infelizmente, não se dispõe de espaço para se tratar de todos os casos aqui.
108

(estado então na oposição), que era o único caso em que o interesse de intervenção era
comum ao Pinheirismo e aos militares do Salvacionismo231.

2.2 A atuação dos ministros do Supremo Tribunal


Federal entre a política dos governadores, Pinheirismo e
Salvacionismo

Durante o governo Hermes da Fonseca, em função de toda a tensão política


e da divisão do período, o STF se tornou um órgão fraturado. A divisão que vinha sendo
criada desde o governo Afonso Pena, entre os oligarcas que controlavam a República
desde os primeiros governos civis (aí incluídos São Paulo, parte de Minas Gerais e Bahia)
e o grupo desafiante ligado a Pinheiro Machado (oligarquias periféricas), aprofundou-se
durante o governo Hermes da Fonseca, com a soma de um terceiro grupo, que estava
ligado ao “militarismo” bacharelesco (o Salvacionismo), o que atribui uma inédita
complexidade à dinâmica do Tribunal. Naquele momento Enéas Galvão e Pedro Lessa
eram as duas maiores figuras do Tribunal e líderes de grupos 232.

No dia 22 de janeiro de 1916, o jornal A Época publicou em sua capa uma


matéria com o título de “Os Ministros do Supremo Tribunal estão divididos em dois
grupos que se digladiam”, subintitulada “Interessantes observações – Pedro Lessa
‘versus’ Enéas Galvão”233.

A matéria começa com a afirmação de que “O Supremo Tribunal Federal tem


também a sua política e está, por conseguinte, dividido em dois partidos que obedecem
a chefes diferentes.” Utilizando como fonte o relato de um advogado anônimo, que
chamava atenção para pequenos incidentes ocorridos nos debates que se travavam
naquele tribunal e que apareciam como principais figurantes, na posição de chefes, os
ministros Pedro Lessa e Enéas Galvão234.

Assim relatava o advogado anônimo:

Vocês já devem ter notado que sempre que o Pedro Lessa é o relator de um
caso, o Enéas Galvão não subscreve o parecer, dá voto vencido e vice-versa.
Há mais. Ambos se procuram ferir por meio de palavras e frases mais ou
menos ásperas, proferidas de maneira indireta e em oposição às alegações
contidas no parecer do outro.
Se vocês corressem os debates publicados, se atendessem aos discursos
pronunciados da cátedra ministerial, chegariam à observação real da prevenção
que existe entre os dois eminentes juízes.

231 CARONE, 1971, p. 263-265; CARVALHO, 2006, p. 47; SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O
Processo Político-partidário na Primeira República. In: MOTTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em
Perspectiva. 8. ed. São Paulo: Difel, 1977. p.203.
232 RODRIGUES, 1991b, p. 118.
233 A ÉPOCA, 22 jan. 1916, capa.
234 A ÉPOCA, 22 jan. 1916, capa.
109

Para exemplo temos em nossa frente o “Diário Oficial” de 19, em que se


verifica o que acabo de dizer.
Num agravo de petição entre “estrangeiro domiciliado em país estrangeiro e
outra em uma sociedade com sede em um dos Estados da União”, (caso de
ação possessória, movida contra Stockle & Comp., por A. Thum, para o fim
de defender a posse que alega ter sobre terrenos da fazenda Figueiredo, comarca
de Ouro Preto), o dr. Pedro Lessa assim se refere ao dr. Enéas Galvão, autor
do voto vencido:
“Sendo uma das partes litigantes um estrangeiro (importa bem notar que esta
é a espécie, e não a que falsamente afirma o voto vencido) e outra[...]”
Mais adiante ainda o dr. Pedro Lessa nesse seu relato, referindo-se ao mesmo
voto vencido do dr. Enéas Galvão, refutando considerações que por este foram
feitas, assim se externa:
“No momento em que patenteiam, ao alcance dos próprios estranhos à ciência
e à arte do direito, aquilo que o mais desidioso jurista não pode ignorar, cessa
a competência da justiça local e a causa passa para a justiça federal!”
Ora, meu caro amigo, o ministro Enéas sustenta opinião oposta a do seu
colega relator, discute as considerações deste e faz salientar no seu voto
justamente aquelas doutrinas que são inquinadas pelo dr. Lessa, de falsas e
“não ignoradas pelo mais desidioso jurista”.
Este caso de hoje é um exemplo pequeníssimo e pálido. Diariamente no
Tribunal nós assistimos litígios deste espécie entre os dois juristas e cada qual
mais agressivo235. (destaques no original)
É questionado pelo jornal como estariam divididos os dois grupos do
Supremo. Com a observação do advogado de que um dos grupos obedece ao comando
de Pedro Lessa e o outro a Enéas Galvão, ele estabelece as seguintes relações:

Com o dr. Pedro Lessa, estão os ministros Coelho Campos, Godofredo


Cunha, Oliveira Ribeiro.
Com o dr. Enéas Galvão ficam os srs. Leoni Ramos, Sebastião de Lacerda,
Canuto Saraiva, André Cavalcanti, Pedro Mibielli, Manoel Murtinho e
Viveiros de Castro.
Na maioria dos casos é isto que se verifica236.
Entretanto, a fonte do jornal estabelece algumas exceções:

Mas os dois partidos não podem contar de maneira positiva com a


intransigência desses elementos. Viveiros de Castro é mais neutro que
partidário. Canuto Saraiva também, às vezes diverge do seu grupo, mas,
raríssimas vezes, dá o voto ao grupo Lessa. Pedro Mibielli, quando o fato é
político, age antes de acordo com os interesses do partido que o fez ministro.
De forma que podemos dizer que intransigentes com seus chefes só
encontramos237:

235 A ÉPOCA, 22 jan. 1916, capa.


236 Ibid.
237 Ibid.
110

E, então, conclui:

Ao lado do dr. Pedro Lessa, os srs. Coelho Campos, Oliveira Ribeiro e


Godofredo Cunha. Ao lado do dr. Enéas Galvão, os ministros Leoni Ramos,
Sebastião de Lacerda, André Cavalcanti e Manoel Murtinho.
É esta a divisão da política interna do Supremo Tribunal. O Enéas Galvão
chefia o grupo maior238.
Embora o relato não seja totalmente preciso, é um relevante ponto de partida.

Essa briga ainda era um resquício das disputas que tiveram o seu auge durante
o governo Hermes, e que se encerraram progressivamente após o término do governo
de Hermes da Fonseca, tendo fundamento também em um fator externo, com a morte
de Pinheiro Machado em 1915, e interno, com a doença e morte de Enéas Galvão, que
viria a ocorrer em 24 de novembro de 1916, aos 53 anos de idade.

O posicionamento dos ministros do STF dependia muito da rede de relações


políticas que eles tinham e as soluções jurídicas eram construídas em torno disso. Aqui,
parte-se da ideia de que as disputas ocorridas internamente no STF não possuem relação
com a ostensividade, violência ou gravidade das intervenções federais nos entes
federados, nem com inimizades ou vaidades entre os ministros, tampouco com as
doutrinas jurídicas que pudessem sustentar em um nível científico, mas com a posição
política com que se filiavam. Claro, com isso não se quer ignorar completamente o papel
do pensamento jurídico nas decisões, quando eram obrigados a decidir contra um aliado pela
mais absoluta falta de fundamentos jurídicos para decidir aos olhos de sua visão jurídica.

A análise que aqui se faz interpreta uma motivação política por detrás da
divisão supra-apontada, assim como fez Koerner:

[...] nos conflitos entre as oligarquias estaduais analisados, os votos dos


ministros do STF acompanharam as posições dos chefes políticos aos quais
eles eram ligados. Os casos apresentados nos dão uma indicação de que os
votos dos ministros do STF nos demais casos políticos deviam variar do mesmo
modo239.
Ainda durante a formação das chapas para a campanha presidencial da qual
resultou vencedor Hermes, ocorreu uma importante cisão entre os dois principais estados
que controlavam a República, São Paulo e Minas Gerais (mesmo dentro de Minas ocorreu
uma divisão interna). São Paulo e aliados apoiaram Rui Barbosa. Minas Gerais e aliados
apoiaram Hermes da Fonseca.

Isso é apontado por Lynch:

Durante o quadriênio Hermes da Fonseca (1910-1914), porém, a suspensão


da política dos governadores, provocada pela defecção de São Paulo e da Bahia,
além do ressurgimento do Exército como ator político, conduziu a seguidas
intervenções militares nos estados e a decretações de longos estados de sítio,

238 A ÉPOCA, 22 jan. 1916, capa.


239 KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo:
Hucitec/Departamento de Ciência Política, USP, 1998. p.202.
111

destinados a garantir a governabilidade pela prisão dos oposicionistas e pela


censura da imprensa240.
Ora, os ministros do STF, que haviam sido nomeados em parte por São Paulo
e aliados, em parte por Minas Gerais e aliados, seguiram essa divisão, algo que se explicita
nos casos políticos.

Koerner, ao analisar o caso do Estado do Rio de Janeiro de 1909/1910, aponta


que a distribuição dos votos dos ministros do STF no caso acompanhava as posições
estabelecidas na disputa entre Rui Barbosa e Hermes da Fonseca para a Presidência da
República em 1910. De acordo com os interesses de quem apoiou a chapa de Rui Barbosa
(São Paulo, Bahia e algumas oposições estaduais) votaram os ministros Manuel Murtinho,
Canuto Saraiva, Amaro Cavalcanti, Oliveira Ribeiro e Pedro Lessa. De acordo com os
interesses de quem apoiou a chapa de Hermes da Fonseca (Minas Gerais, Pinheiro
Machado, Nilo Peçanha, Rosa e Silva, Bulhões, Epitácio e as situações dominantes dos
estados menores) votaram os ministros Godofredo Cunha, André Cavalcanti, Cardoso
de Castro, João Pedro B. Vieira e Manuel Espínola241.

Aponta ele também que, em relação ao caso da Bahia de 1908, mudaram de


grupo Manuel Murtinho, que votou com Nilo e passou a votar com os paulistas em 1910,
e Cardoso de Castro, que acompanhou a posição do chefe político J. J. Seabra. A mesma
distribuição ocorreu nos julgamentos de 15.7.1910, a favor dos aliados de Nilo, e de
4.1.1911, a favor de seus adversários. Concederam no primeiro caso e negaram no
segundo os ministros: Godofredo Cunha, Cardoso de Castro, André Cavalcanti,
Guimarães Natal. Os aliados que votaram em apenas um dos julgamentos, como Espírito
Santo, Leoni Ramos, Muniz Barreto e Epitácio seguem a mesma distribuição. No campo
contrário, os votos foram de Amaro Cavalcanti, Oliveira Ribeiro, Pedro Lessa, Canuto
Saraiva e Manuel Espínola, bem como Manoel Murtinho, que só participou do segundo
julgamento. Koerner aponta que o único juiz que não acompanhou esse esquema foi
Ribeiro de Almeida, sobre quem ele não obteve informações 242.

Nos famosos habeas corpi do caso da Bahia de 1912, pedidos ao STF pelos
aliados de Rui Barbosa, a distribuição dos votos foi a mesma, exceto pelo voto de
Guimarães Natal, pois Bulhões tinha rompido com Hermes devido à sua intervenção na
política dos estados243.

No Ceará, a oligarquia dos Aciolis foi derrubada com o apoio de Hermes,


sendo empossado o novo governador Franco Rebelo em julho de 1912. Interpreta
Koerner, que nos meses seguintes houve a reação do pinheirismo, e que o grupo de
Rebelo teria acabado ficando sem nenhuma aliança federal. Os deputados da oposição
requereram habeas corpus ao STF em outubro do mesmo ano, que o concedeu por
unanimidade244.

240 LYNCH, Christian Edward Cyril. Cultura Política Brasileira. In: SANTOS, Gustavo; BRITO, Éder (Orgs.).
Política no Brasil. São Paulo: Oficina Municipal, 2015. p. 149.
241 KOERNER, 1998, p. 200-201.
242 Ibid., p.201.
243 Ibid., p.201.
244 KOERNER, 1998, p. 201.
112

Aqui, tende-se a interpretar esse caso de forma diferente. Entende-se que, o


que houve, foi o pensamento jurídico limitando as ações dos juízes. Mesmo os favoráveis
a Rebelo, não tinham argumento para negar o habeas corpus. Viu-se, por exemplo, que,
durante o julgamento, Enéas Galvão, um hermista, tentou que o Tribunal, naquilo que
Galvão afirmava que era a jurisprudência do STF, pedisse primeiro informações ao
presidente do estado do Ceará. O Tribunal acabou entendendo que esse pedido era
desnecessário. Caso o Tribunal tivesse aceitado o pedido de diligência, com a resposta do
presidente do estado ele poderia ter encontrado um argumento para negar o habeas
corpus. Entretanto, como Tribunal não concordou com a realização da diligência, Enéas
nada pode fazer.

Além disso, é de se ter em conta que a própria chapa de Hermes apresentava


divergências internas entre hermistas (muitas vezes chamados de “militaristas”) e
pinheiristas. Conforme José Maria Bello é nítido no período “o perigoso duelo entre o
grupo dos amigos do Presidente e os correligionários de Pinheiro Machado” 245. Assim,
entende-se aqui ser possível diferenciar os ministros identificados com o pinheirismo
(como é o caso de Pedro Mibielli e Coelho e Campos) de um ministro identificado com
hermismo (como é o caso de Enéas Galvão 246, que às vezes se opunha aos interesses do
pinheirismo, quando ele conflitava com os do hermismo, ou melhor, dos militares que
apoiavam Hermes) quando os interesses conflitavam. Assim como, naturalmente,
também se entende ser possível diferenciar os ministros de oposição, ligados aos civilistas
(como é o caso de Pedro Lessa e Canuto Saraiva). Esses três grupos se combinaram de
forma diferente ao longo dos casos, conforme os interesses envolvidos, e isso é um fator
de dificuldade nas análises, mas são identificáveis pelas doutrinas que defendem.

Articulando essa posição política com as doutrinas jurídicas criadas e aplicadas


pelo STF, logo se percebe que há um problema com a construção de autores como Lêda
Boechat Rodrigues, que afirma o seguinte:

Diante da falta de outros remédios existentes no direito anglo-americano - o


mandamus, a injunction, o certiorari e o quo warranto - o Supremo Tribunal
Federal viu à sua frente apenas um caminho: ampliar o habeas corpus através
da Interpretação lata ou construction do texto constitucional, art. 72 § 22,
na visão liberal que dele teve, em primeiro lugar, como grande advogado e
excelso constitucionalista, Rui Barbosa. Conseguiu o Supremo Tribunal
Federal faze-lo magnificamente ficando o seu esforço coroado como a Doutrina
Brasileira do Habeas Corpus.
[...]
O ponto mais alto da Doutrina Brasileira do Habeas Corpus não pertence,
de modo algum, ao Ministro Pedro Lessa.
Para Pedro Lessa, o habeas corpus somente protegia o direito de locomoção,
ou o direito de ir e vir. Numa interpretação muito forçada, através do que
chamou a liberdade-fim, atrelou ao direito de locomoção vários outros direitos.

245 BELLO, José Maria. História da República. 6. ed. São Paulo: Nacional, 1972. p.221.
246 Embora aqui se concorde em grandes linhas com o argumento utilizado em sua excelente obra, bastante
citada nesta tese, pontualmente se discorda de Lynch na interpretação de Enéas Galvão, pois ele não fazia
parte dos “excluídos do arranjo oligárquico, permanentes ou episódicos”, de uma “oposição liberal”
(LYNCH, 2015, p. 91, cf. também LYNCH, 2015, p. 149). Penso que essa impressão poderia ser
decorrente da leitura de Rodrigues (1991b). Em parte por ser parente de Hermes, em parte por suas
posições, sempre se manteve fiel ao hermismo.
113

Sua longa Judicatura, de 1907 a 1921, ajudou a dar-lhe enorme influência


e sua perda foi considerada irreparável.
O Ministro Enéas Galvão, nomeado em 1912 e morto em 1916, serviu ao
Supremo Tribunal apenas quatro anos: Mas esse tempo exíguo permitiu que
deixasse marcados na jurisprudência do habeas corpus, sua coragem, sua
altivez e seu espírito criador.
Ninguém mais do que ele deixou seu rastro luminoso no habeas corpus
brasileiro e na sua ampliação, justificando a chamada Doutrina Brasileira do
Habeas Corpus247.
Claro está que, ao olhar apenas para a doutrina do habeas corpus, para o
aspecto de ter ele maior ou menor amplitude, Rodrigues não consegue enxergar o
problema. Em seu esquema interpretativo, ela coloca Enéas Galvão ao lado de Rui
Barbosa e Pedro Lessa contra Rui Barbosa quando, na verdade, Pedro Lessa costumava
decidir de acordo com as posições que Rui Barbosa sustentava como advogado, político
ou jornalista. Essa interpretação a respeito de Enéas Galvão aparentemente se tornou
bastante difundida entre historiadores do direito.

Enéas Galvão, parente e aliado de Hermes, não estava sendo exatamente


“corajoso” ao defendê-lo. Em seus julgados, viu-se que ele combinava a atribuição de um
alcance mais amplo da teoria do habeas corpus, com a impossibilidade de o Tribunal
julgar da inconstitucionalidade ou conveniência do decreto de intervenção, que constitui
matéria política. Publicado no Diário Oficial, revestido de todas as formalidades de
direito, e executado, o decreto de intervenção não poderia ter sua eficácia contestada. O
mesmo raciocínio valia para o estado de sítio. Do ponto de vista probatório, devia ser
comprovada a legitimidade do título do paciente, verificada se era concludente a prova
da ameaça de constrangimento e analisada a ilegalidade da coação. Do conjunto dessas
três condições emergia o direito ao habeas corpus. Pelo que se notou, ele manobrava nos
casos essas condições em um sentido “unionista”, favorecendo a União, em especial o
presidente.

Os pinheiristas Coelho e Campos e Pedro Mibielli, e.g., defendiam uma teoria


mais conservadora do habeas corpus, que seria restrito ao amparo da liberdade física.
Entendiam que teorias do habeas corpus como a de Pedro Lessa constituíam uma espécie
de ação possessória. Eles eram contra o envolvimento do Tribunal em habeas corpus que
envolvessem questões políticas. Normalmente, sequer conheciam o pedido de habeas
corpus. Quando concederam habeas corpus, foi para deputados cuja qualidade era líquida
e incontestável, para que entrassem e saíssem livremente, sem coação, no edifício da
mesma Assembleia e aí, no recinto, exercessem os direitos e funções do seu mandato.
Assim votavam sem reconhecer absolutamente a legitimidade desta ou daquela Mesa.
Afinal, o Poder Judiciário não poderia realizar a verificação de poderes (que, no plano federal,
era dominada por Pinheiro Machado). Eram federalistas.

Já para o civilista Pedro Lessa, o habeas corpus tinha por fim exclusivo garantir
a liberdade individual. A liberdade individual, ou pessoal, que seria a liberdade de
locomoção, a liberdade de ir e vir, seria um direito fundamental, que assenta na natureza
abstrata e comum do homem. Entendia ser possível controlar a constitucionalidade dos
atos do presidente, mesmo em casos políticos, pois os cidadãos tinham determinados

247 RODRIGUES, 1991b, p. 33.


114

direitos que não poderiam ser violados. Era maleável com o uso das provas, variando a
sua posição de acordo com as conveniências. Era estadualista. Um judiciarista, embora um
judiciarista de oportunidade, pois era leal à política paulista.

Conforme título de matéria d’A Época, entende-se aceitável falar em “divisão”


do Tribunal, na medida em que o jogo de nomeações fazia com que o tribunal fosse
composto em sua maioria por pinheiristas e civilistas. Alguém como Enéas Galvão era muito
peculiar em tal contexto, e daí se compreende a dificuldade em categorizá-lo.

2.3 Alcides Cruz e sua atuação no caso do rio

O jurista Alcides Cruz era membro do Partido Republicano Rio-grandense


(PRR) e, como tal, combateu os liberais e a dissidência republicana no âmbito estadual
(tendo, inclusive, disputas com os juristas católicos doutrinários, como Lacerda de
Almeida, que também era membro do PRR) 248. Ao longo dos anos, tornou-se membro
da corrente de Pinheiro Machado dentro do partido 249.

Em sua posição publicada no jornal A Federação em 5 e 8 de janeiro de 1915,


Alcides Cruz se voltou contra a decisão do STF no habeas corpus 3697, concedido em
dezembro de 1914 em favor de Nilo Peçanha, um habeas corpus dentre vários outros
naquilo que ficou conhecido como O Caso do Rio250.

O que ocorreu em tal caso foi: Oliveira Botelho foi eleito por Nilo Peçanha e
durante seu governo desentendera-se com o chefe oligarca, porque o primeiro era a favor
da candidatura de Pinheiro Machado à presidência da República e o outro era contrário.
Quando chega a época da sucessão estadual, Oliveira Botelho escolheu o tenente
Feliciano Sodré, e Nilo Peçanha levantou sua própria candidatura (jan./fev. de 1914). As
eleições correm normais (12 de julho), mas logo começam os conflitos: os deputados
governamentais, liderados por Ponce de Leon, impedem a entrada da oposição no prédio
da Assembleia; os deputados oposicionistas, liderados por João Guimarães, pedem
habeas corpus ao Supremo Tribunal Federal para poder se reunir em outro prédio
(julho)251.

248 Ver, e. g., a discussão entre Alcides Cruz e Joaquim Luís Osório, um liberal que era membro do PRR e
autor de um importante livro em que comentava a Constituição castilhista do RS. Em tal discussão,
enquanto Joaquim Osório argumentava contra a criação de imposto, Alcides Cruz sustentava que “imposto
é instrumento da ação e do progresso social” (A FEDERAÇÃO, 13 dez. 1909, capa). Por ter posição
favorável ao divórcio, também entrava em atrito com juristas católicos doutrinários (GAZETA DA
TARDE, 29 out. 1898, p. 3).
249 Por exemplo, era apontado como possível candidato pinheirista em 1913, ao lado de Flores da Cunha e
Ildefonso Pinto (JORNAL PEQUENO, 28 jan. 1913, p. 3). Suas ligações com o pinheirismo também
podem ser observadas em caso dos anos de 1910/1911, quando o delegado Amynthas Maciel de Oliveira
e o juiz de Livramento Luiz Mello Guimarães foram acusados da morte de um irmão de João Francisco
Pereira da Cunha no Club Pinheiro Machado, em Santana do Livramento. Alcides Cruz assinou o habeas
corpus em defesa dos acusados ao lado dos então também pinheiristas Getúlio Vargas e Flores da Cunha.
250 Aquilo que ficou conhecido como O Caso do Rio começa ainda no governo Nilo Peçanha e possui uma
série de reviravoltas até findar no governo de Wenceslau Braz, mas, infelizmente, não dispomos aqui de
espaço para tratar do caso completo.
251 CARONE, 1971, p. 299.
115

Em um caso de habeas corpus preventivo, a maioria do Tribunal sustentou,


acompanhando o Ministro Enéas Galvão, que aquele writ garantia a liberdade individual,
a liberdade de pensamento e a de consciência. Verificada a legitimidade do exercício das
funções dos pacientes, de acordo com a jurisprudência anterior, decidiu conceder a
ordem para permanecerem naquele exercício até que o poder competente, a Assembleia
Estadual, os substituísse 252.

O Ministro Pedro Lessa dava a ordem apenas para os pacientes penetrarem


no edifício da Assembleia de que faziam parte e aí [Niterói] exercerem suas funções.
Acrescentou que à Justiça Federal não era permitido decidir tais controvérsias, e o
Supremo Tribunal não podia conceder habeas corpus preventivo com tal antecedência
(habeas corpus 3554, de 6.6.1914)253.

A intranquilidade política no estado do Rio de Janeiro aumentava diariamente,


à medida, talvez, que o Supremo Tribunal concedia ordens de habeas corpus aos
deputados da oposição. Estes alegavam estar sofrendo coação e violências das
autoridades estaduais e federais. Marcado o dia 20 para a instalação da Assembleia, o
presidente do estado mandou cercar o edifício desta por força pública e agentes da
polícia, com ordens formais de impedir a entrada dos deputados protegidos pelo
Supremo Tribunal Federal. Dirigiram-se eles ao cartório do juízo federal, protestaram
contra a violência sofrida e requereram o cumprimento do acórdão. Também pediram
novo habeas corpus. Entrementes, os deputados governistas mandaram arrombar as
portas do edifício da Assembleia e lá se instalaram. Os deputados oposicionistas
ocuparam outro prédio. Constituiu-se, assim, a duplicata de assembleias, já tão comum
em outros casos254.

O Ministro Guimarães Natal propôs que se remetessem os documentos


apresentados ao procurador-geral da República e concedeu o habeas corpus. O Ministro
Sebastião Lacerda também concedeu a ordem, acompanhando o voto do Relator. O
Ministro Pedro Lessa afirmou que a violência praticada pelo presidente do estado do Rio
de Janeiro era de tal natureza, que correspondia a verdadeiro desacato ao Supremo
Tribunal Federal. Mas este não dispunha de força material para fazer cumprir o seu
acórdão desrespeitado. O Ministro Oliveira Ribeiro declarou que se o Tribunal não
assegurasse aos deputados-pacientes lugar para se reunirem, o habeas corpus era uma
mentira. O Ministro Coelho e Campos acompanhou o voto do Ministro Pedro Lessa
(habeas corpus 3584, de 26.6.1914). O Tribunal declarou não caber segunda ordem de
habeas corpus para o mesmo fim. Ocorrendo tal hipótese, devia-se dar execução da
ordem anterior (habeas corpus 3584 originário. Rel. Min. Guimarães Natal. RST 31610.
No mesmo sentido habeas corpus de outros municípios do Ceará) 255.

O Ministro Enéas Galvão, com a palavra, disse:

Fui relator do acórdão de 6 de junho de 1914 e sustentei que o Tribunal


desconhecia a dualidade de assembleias e de presidentes. Três ministros apenas,
os Srs. Coelho e Campos, Pedro Mibielli e Godofredo Cunha, pensavam que

252 RODRIGUES, 1991b, p. 118.


253 Ibid., p.118.
254 Ibid., p.119.
255 Ibid., p.119.
116

o habeas corpus era restrito ao amparo da liberdade física. A esses votos não
se podia juntar o do Sr. Ministro Pedro Lessa, porque entendia S. Exa. que
o habeas corpus, guardando, embora, o conceito das antigas leis, era suficiente
para proteger o indivíduo contra um ataque à sua atividade como funcionário
ou profissional.
Enquanto o júri caminhava para o perecimento, o habeas corpus, ao contrário,
ia alargando a sua esfera até abraçar a liberdade individual nas suas mais
variadas formas de manifestação. [...] Nenhum outro meio existente em nossa
processualística capaz de amparar eficazmente o exercício livre de todos os
direitos, a liberdade de ação, a faculdade de fazer tudo o que a lei não veda
ao indivíduo, a de proteger este para não ser obrigado a fazer o que a lei não
lhe impõe, uma grande porção de atos cuja prática pode ser obstada, sem que
isso se dê para impedir-se a livre locomoção. Dentro da própria prisão, o
condenado pode invocar a proteção do habeas corpus para garantir-se contra
excessos do poder, evitar constrangimentos além dos decorrentes da sentença
que o lançou no cárcere. [...] Com essa extensão, com esse critério, o Tribunal
deferira os pedidos de habeas corpus impetrados a favor de conselheiros
municipais, de deputados estaduais, de magistrados, de funcionários de ordem
administrativa. Nem de outro modo teria sido eficaz nesses casos a concessão
da garantia constitucional. Se a lei vive principalmente pela interpretação que
lhe dão os juízes nos casos que decidem se tal tem sido a Interpretação do texto
constitucional, o Tribunal, que em casos idênticos a este assim tem entendido,
assim julgará sempre, porque nessa firmeza de conduta, de orientação da
justiça, repousa a tranquilidade dos jurisdicionados.
Haveria erro nessa jurisprudência? Não. Se o conceito do habeas corpus
evoluiu por esse modo é porque as necessidades da nossa organização social ou
política o exigiram, como resultante de repetidos atentados à liberdade
individual, determinando, assinalando função maior, mais alta ao instituto
do habeas corpus.
Cresceram as necessidades da defesa do indivíduo, e muito naturalmente
determinou isso a expansão daquela norma judicial, desenvolvendo-se em
determinado ambiente, e exigindo para que possa manter-se, ou prover à sua
defesa contra os ataques do mundo exterior uma cada vez maior capacidade
dos órgãos judiciais. [...] No nosso meio político, os repetidos ataques à
liberdade individual impuseram a necessidade de alargar a concepção do
habeas corpus, o exercício deste meio judicial. O que se pode desejar é que esta
função não tenha necessidade de progredir mais tarde, ao invés de tornar
precisa para o futuro a criação de uma ação judicial especial para a defesa do
indivíduo contra os desmandos do poder público. Não há outra explicação
para o fenômeno que ao observador menos atento pode sobressaltar. O
Tribunal está cumprindo a sua missão tutelar dos direitos, está evoluindo com
as necessidades da justiça; se há excesso, é o excesso que leva ao caminho da
defesa das liberdades constitucionais. Concedo o habeas corpus nos termos do
pedido256.

Apesar de os oposicionistas terem tidos diversos habeas corpi concedidos,


tropas estaduais os impedem de comparecer à abertura solene da Assembleia Legislativa
(1.8.1914)257.

256 RODRIGUES, 1991b, p. 119-121.


257 CARONE, 1971, p. 299.
117

Com a criação da duplicidade de Assembleias, os governistas pedem


intervenção federal. No dia 8 de outubro, é enviada Mensagem ao Congresso assinada
por Hermes da Fonseca, onde pede reconhecimento da Assembleia Fluminense como
legítima (facção Ponce de Leon) e Feliciano Sodré como vencedor. O pedido encontra,
porém, oposição de vários senadores, entre os quais, Rui Barbosa. Apesar de Pinheiro
Machado manobrar, o governo desiste de seu intento, porque o futuro presidente não
apoia o ato; Epitácio Pessoa, as bancadas de São Paulo, Minas, Pernambuco e parte dos
deputados da Bahia estão contra258.

Nilo Peçanha, porém, consegue que a Comissão de Verificação de Poderes –


composta na maioria de seus partidários – o considere vitorioso; pede então, habeas
corpus ao Supremo Tribunal Federal, no sentido de ter garantias para a sua posse 259.

A Assembleia Legislativa, competente para a apuração do pleito, cindiu-se. A


facção presidida pela mesa diretora dos trabalhos da última reunião ordinária, composta
dos deputados João Antônio de Oliveira Guimarães, presidente, Constâncio José
Monnerat e Raul de Almeida Rêgo, amparados em ordem de habeas corpus concedida pelo
Supremo Tribunal Federal (acórdão de 6 de junho, reiterado pelo de 25 de julho),
reconheceu e proclamou presidente eleito do estado Nilo Peçanha, para o quatriênio de
1915 a 1918. A outra facção, apoiada pelo governo estadual, reconheceu e proclamou
como presidente eleito Feliciano Sodré Junior260.

O advogado Astolfo Vieira de Resende impetrou ao Supremo Tribunal


Federal em 14 de dezembro uma ordem de habeas corpus preventivo em favor de Nilo
Peçanha. Sob o fundamento de que o paciente se via coagido em sua liberdade individual,
ameaçado de violências, que se preparavam com maior aparato, segundo justificação
processada no juízo federal do estado, e alegando ser notório que o então presidente,
chefe ostensivo de um partido que hostilizava a eleição do presidente, não queria passar-
lhe o poder, requeria o impetrante fosse concedida a ordem para que pudesse o mesmo
paciente, livre de qualquer constrangimento, e assegurada a sua liberdade individual,
penetrar, no dia 31 de dezembro, no palácio da presidência do estado do Rio, e exercer
suas funções de presidente do mesmo estado até à expiração do mandato, proibido
qualquer constrangimento por parte das autoridades e funcionários estaduais ou federais,
e assegurada a ordem pelo juiz federal da seção do Rio de Janeiro261.

No dia 16 de dezembro, o pedido foi conhecido, discutido e julgado na sessão,


servindo inicialmente de relator o Ministro Pedro Lessa. Como acabou vencido, o relator
para o acórdão foi o ministro Enéas Galvão, sendo a ordem concedida pelos votos dos
Ministros Enéas Galvão, Guimarães Natal, Sebastião de Lacerda, Leoni Ramos e Canuto
Saraiva, e contra o voto de Pedro Lessa, Amaro Cavalcanti, Pedro Mibielli e Coelho e
Campos, declarando-se impedido, por ser amigo íntimo do paciente, o Ministro
Godofredo Cunha. Presidiu à sessão o Ministro Hermínio do Espírito Santo 262.

258 CARONE, 1971, p. 299.


259 Ibid., p. 299.
260 COSTA, Edgard. Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Primeiro Volume (1892-1925). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. p.228.
261 Ibid., p.228-229.
262 COSTA, 1964, p. 229.
118

Alcides Cruz era um crítico habitual do STF: criticava a “manifesta vacilação


e incoerência” de sua “jurisprudência”, afirmava que “dos luminares do Direito não é
que se compõe o nosso Supremo Tribunal: aqueles, onde se encontram, é nas cátedras
das Faculdades de Direito, na advocacia e na magistraturas dos Estados” e chegava a
afirmar que a maioria dos ministros eram parvenus. Aliás, chegava a afirmar que “o órgão
impropriamente chamado Poder Judiciário, não constitui de fato um terceiro poder da
nação, como erradamente outrora se pensava, mas como hoje acertadamente combatem
os mestres”263.

Ao mesmo tempo, ele era aliado não somente de Pinheiro Machado, mas
também de Pedro Mibielli (desde os tempos em que Mibielli foi membro da magistratura
estadual), que muito elogiava pela imprensa.

Cruz criticou a decisão do STF no habeas corpus 3697 com todas as


características de jurista eloquente, com a citação ornamental de diversos autores
estrangeiros, de uma forma casuística-oportunista, visando apoiar a posição política de
Pinheiro Machado.

Como era comum aos pinheiristas, afirmava que os atos políticos não estariam
sujeitos a recurso de espécie alguma, “como é corrente em direito público”264, tendo
elaborado sofisticada doutrina que estabelecia que as variadas e múltiplas ações dos
chefes de Estado se exteriorizam na prática por uma série de atos, em última análise
reduzidos a dois únicos tipos: atos políticos e atos administrativos. Enquanto que os atos
administrativos não seriam suscetíveis de uma rigorosa enumeração, dada a sua
diversidade e multiplicidade, os atos políticos seriam aqueles concernentes à ação e às
relações exercidas pelos órgãos políticos entre si, e também os de ordem política e
constitucional feitos com o desígnio de ser mantida a unidade política. Sobre esses atos
os tribunais nenhuma ação exerceriam e, portanto, escapariam a toda ordem de
recurso265.

Nos termos de Alcides Cruz, a questão enfrentada pelo STF tratava-se de


“questão meramente política”. E iniciava sua argumentação afirmando que a órbita de
ação do poder judiciário seria stricti juris; determinada por lei e não poderia ser
interpretativa ampliativamente266.

Para o administrativista, a competência política dos tribunais da União achava-


se definida nos arts. 59, 1, a, b, c, d; § 1º b; art. 60, d, i, da Constituição da República de
1891267. Fora destes casos ela seria sempre ilícita e até mesmo constituiria uma usurpação.

263 A FEDERAÇÃO, 30 mar. 1911, capa.


264 A FEDERAÇÃO, 30 mar. 1911, capa.
265 CRUZ, Alcides. Noções de Direito Administrativo Brasileiro: exposição summaria e abreviada. Porto Alegre: G.
Gundlach, 1910. p.20-21.
266 A FEDERAÇÃO, 5 jan. 1915, capa.
267 Art 59 - Ao Supremo Tribunal Federal compete:
I - processar e julgar originária e privativamente:
a) o Presidente da República nos crimes comuns, e os Ministros de Estado nos casos do art. 52;
b) os Ministros Diplomáticos, nos crimes comuns e nos de responsabilidade;
c) as causas e conflitos entre a União e os Estados, ou entre estes uns com os outros;
d) os litígios e as reclamações entre nações estrangeiras e a União ou os Estados;
[...]
119

A escola virginiana e Jefferson entendiam “ser muito perigoso considerar os magistrados


como árbitros em última instância de todas as questões constitucionais, porque seria
colocar-nos sob o despotismo de uma oligarquia”. Na própria Constituição de 24 de
fevereiro se encontrariam os meios de resolver as demais questões políticas não previstas
nos mencionados arts. e que não poderiam ter figura e forma de juízo. Alcides Cruz
entendia que o habeas corpus era uma manobra e, assim obtida a ordem, o eixo da
questão mudava de lugar. Se alguém se opusesse ao cumprimento do habeas corpus, aí
estava aberta a porta do art. 6º, § 4º, que é onde Nilo Peçanha queria chegar: a intervenção
do governo federal para assegurar a execução de leis e sentenças federais, mediante a
emprego da força pública268.

Alcides Cruz lamentava a decisão e afirmava que três coisas concorreram para
esse inglório desideratum: a artimanha e a audácia do político (Nilo Peçanha), por um lado;
a fraqueza do Supremo Tribunal Federal, por outro 269.

Posteriormente, em 8 de janeiro de 1915, volta a se manifestar sobre o caso


em jornais.

Afirmava que

Reconhecem os constitucionalistas americanos que em se agitando a questão de


garantir a forma republicana dos Estados é ao Congresso que cabe conhecer
da matéria; ao passo que quando se questiona acerca da comoção intestina
(domestic violence) ou de invasão, a competência é privativa do Presidente da
República, conforme o Ato de 28 de fevereiro de 1795270.
Aplicando tal raciocínio ao Brasil, quem resolveria a questão seria Pinheiro
Machado. Ainda, pinçava a citação de que “Os tribunais federais, acrescente Woodburn,
não podem ocupar-se da ação do Presidente, nem da sua conduta política”. Citava mais
de livros e casos estadunidenses271.

E ressaltava:

§ 1º - Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal
Federal:
[...]
b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição,
ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis
impugnadas.
[...]
Art 60 - Compete aos Juízes ou Tribunais Federais, processar e julgar:
[...]
d) os litígios entre um Estado e cidadãos de outro, ou entre cidadãos de Estados diversos, diversificando
as leis destes;
[...]
i) os crimes políticos.
§ 1º - É vedado ao Congresso cometer qualquer jurisdição federal às Justiças dos Estados.
§ 2º - As sentenças e ordens da magistratura federal são executadas por oficiais judiciários da União, aos
quais a polícia local é obrigada a prestar auxílio, quando invocado por eles.
268 A FEDERAÇÃO, 5 jan. 1915, capa.
269 Ibid.
270 A FEDERAÇÃO, 8 jan. 1915, capa.
271 Ibid.
120

De toda esta longa enunciação resulta que naquele país, por excelência
republicanamente educado, cujas instituições, cujas praxes jurídicas, cujos
métodos e cujas interpretações constitucionais nós brasileiros frequentemente
invocamos, as contendas políticas locais se dirimem com o beneplácito tão
somente dos poderes políticos por excelência: jamais, porém, com o do poder
judiciário.
Como era rio-grandense e castilhista, fazia a seguinte ressalva, extremamente
importante para o contexto do Rio Grande do Sul: “É entretanto de ver que a maioria
desses incidentes, muitos deles complicados e de excepcional gravidade, se liquidam pelo
interesse das próprias partes interessadas e promotoras, sem o concurso da autoridade
federal”272. Ou seja, nada do governo federal intervir na disputa entre ximangos e
maragatos.

Concluía, ainda, que

O retumbante acontecimento do Rio era dos que deviam ser decididos por si
próprio, como incidentes de aspecto idêntico o terem sido em outros Estados.
Pelos tribunais, poder estranho, a situação só tinha de agravar – e
consideravelmente, como era de esperar; de sorte que os promoventes dessa
subversiva e reacionária solução, sem outro fim em mira que não o de agitar
os espíritos, o de ameaçar os tímidos e de amedrontar os fracos, quando havia
uns tantos meios que não forma sequer tentados, merecem a mais enérgica
censura, da qual participará o Supremo Tribunal com a sua conivência em
tão perigosos expedientes, que oxalá não se reproduzam para decoro e respeito
da República273.
Essa era a mesma posição de Pinheiro Machado a respeito do caso, apenas
revestida de maior erudição, de maior eloquência e de maior verniz jurídico.

Conclusão

Com o passar do tempo, o jurista Alcides Cruz tornou-se membro da corrente


de Pinheiro Machado dentro do PRR. Em razão de ser muito respeitado em vida como
intelectual e jurista, ao longo dos anos acabou sendo apagado do imaginário e de sua
biografia sua proximidade com Pinheiro, um político que se tornou “maldito”.

Entretanto, caso se dê uma olhada para sua atuação jurídico-política, a


proximidade resta clara. Cruz, em relação à resolução de disputas intra e interoligárquicas,
era um federalista. Entendia, por exemplo, que as questões políticas deveriam ser resolvidas
pelo Poder Legislativo, no Congresso, pela comissão de verificação de poderes. Ou seja,
era um adversário intelectual dos judiciaristas. Assim, ele era um crítico habitual do STF:
criticava a “manifesta vacilação e incoerência” de sua “jurisprudência”, afirmava que “dos
luminares do Direito não é que se compõe o nosso Supremo Tribunal: aqueles, onde se
encontram, é nas cátedras das Faculdades de Direito, na advocacia e na magistraturas dos
Estados” e chegava a afirmar que a maioria dos ministros eram parvenus.

272 A FEDERAÇÃO, 8 jan. 1915, capa.


273 A FEDERAÇÃO, 8 jan. 1915, capa.
121

No caso em análise, Cruz, com todas as características de jurista eloquente,


demonstrava ser juridicamente qualificado por ter conhecimento das doutrinas e autores,
nacionais e estrangeiros, relevantes naquele tempo e espaço, por ser capaz de elaborar
doutrinas jurídicas sofisticadas, convincentes, coerentes, sem contradições grosseiras,
ocultando ou suavizando o elemento político de suas posições. É isso que fazia dele um
grande jurista do período e é assim que agia para apoiar a posição política de Pinheiro
Machado.

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João Batista Santafé Aguiar*

Enquanto advogado de Borges de Medeiros274, Alcides Cruz atuou em um


processo judicial que teve grande repercussão à época, segundo decênio do século XX,
que buscou resolver a intitulada “Questão das Águas do Ribeiro”. Nesta condição, foi
chamado a defender, ainda por vários anos, o chefe republicano, recebendo ataques
diretos ao fato de ser afrodescendente. A “Questão” foi utilizada pelos oponentes
políticos para criticar Borges de Medeiros.

E, por outro lado, certamente uma questão que envolvesse um bem natural,
como, no caso, a água, não era novidade na vida de Alcides Cruz. Em diferentes
oportunidades, manifestou-se em favor da manutenção de nossas matas 275. Discutir na
Justiça critérios para uso da água dos nossos rios e arroios não se constituía motivo que
o afastasse de enfrentar o processo – ao contrário. E, claro, havia o interesse também
como profissional da Advocacia, como Professor da Faculdade de Direito e o contato
direto com o Chefe do partido.

Em 1911, no jornal A Federação276, Cruz comentou a sentença do Juiz


Francisco de Souza Ribeiro Dantas277, exarada uns dias antes, que havia decidido o caso
da ‘Águas do Ribeiro’278 em favor dos autores279 e da população de Barra do Ribeiro 280.

*Jornalista.
Pesquisador. Integrante do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul.
274 Antônio Augusto Borges de Medeiros foi Presidente do Rio Grande do Sul entre 1898 e 1908 e também
entre 1913 e 1928. Bacharelou-se no curso de Ciências Jurídicas e Sociais em Recife, em 1885, após tê-lo
iniciado em São Paulo. Participou da Constituinte, em 1890-1891. Republicano, foi escolhido para integrar,
como Desembargador, a primeira composição do Superior Tribunal de Justiça do Estado. Em maio de
1893 afastou-se um período para defender o Governo pelas armas durante a Revolução Federalista,
retornando ao cargo no Superior Tribunal em 1894, renunciando em fevereiro de 1895, por ter sido
nomeado Chefe de Polícia do Estado e entender ser o cargo incompatível com a sua atividade política.
275 Em 11/9/1909, na sessão da Assembleia dos Representantes (a atual Assembleia Legislativa), Alcides Cruz
pede a palavra e apresenta uma moção em favor das matas que seria dirigida à representação rio-grandense
no Congresso Nacional. Mais detalhes nos Anexos deste texto.
276 A Federação, Edição nº 125, de 1º jun. 1911.
277 Francisco de Souza Ribeiro Dantas Filho nasceu em São José de Mipibu, RN, em 12/5/1862 e faleceu em
Porto Alegre, a 27/4/1931. Em 1884, bacharelou-se pela Faculdade de Direito de Recife. Foi Procurador
Fiscal da Tesouraria Provincial em RN, em 1885. No mesmo ano transferiu-se para o Rio Grande do Sul,
tendo sido nomeado Juiz Municipal e de Órfãos de Santo Ângelo, cargo do qual se exonera em 1888 para
acompanhar José Gomes Pinheiro Machado na propaganda republicana. Proclamada a República, foi
nomeado Promotor Público em Santo Ângelo, que exerceu interinamente até janeiro de 1890. Neste ano,
tornou-se Juiz Substituto e, em 1891, Juiz de Direito de Santo Ângelo. Foi Juiz de Direito em Porto Alegre
e depois Desembargador do Superior Tribunal de Justiça. Ingressou como Professor na Faculdade Livre
de Direito de Porto Alegre em 1906, aonde lecionou a cadeira de Direito Penal por 25 anos. Há um retrato
do Professor no Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRGS, mesmo local em que lecionara. No
mesmo ambiente, há o retrato de Alcides Cruz, também professor no mesmo local. Contribuiu com
melhorias ao texto do Código de Processo Civil e Comercial do Estado. (MACEDONIA, Leonardo.
Mestres do Passado. Revista da Faculdade de Direito de Porto Alegre. ano 4, n. 1, p. 149-151, 1958. Disponível
em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/revfacdir/article/view/66984/38251>.
278 Não foi localizado o processo, – provavelmente incinerado no incêndio do prédio do Tribunal de Justiça,
ocorrido em 19 de novembro de 1949.
279 O Juiz Distrital Manuel Pereira de Escobar Júnior teria sido o magistrado que primeiro conheceu a causa.
280 Isto muito antes da atual legislação sobre uso da água existir no Brasil em que são previstos comitês
formados por instituições governamentais, empresariais, de ensino, sindicais e da comunidade, além do
126

Era uma disputa pelo uso das águas do arroio Ribeiro, na região que hoje conhecemos
como Barra do Ribeiro281.

Propuseram a questão à Justiça o então ex-presidente do Rio Grande do Sul,


Antônio Augusto Borges de Medeiros, o capitão Victorino Borges de Medeiros, o
tenente-coronel Manoel Ignacio Evangelista e o capitão Luiz Albert Matzembacher. Não
se tem notícia de tentativa de acordo pré-processual. Alcides de Freitas Cruz foi um dos
advogados dos autores, juntamente com Joaquim Maurício Cardoso e Francisco
Thompson Flores. No outro lado, os irmãos Porto – Vespúcio, Armando e Ricardo de
Souza Porto representados pelo Advogado Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque. As
partes do processo, proponentes e réus, haviam arrendado terras, para o cultivo do arroz
ao longo do Arroio Ribeiro282. Hoje o local em que o arroio deságua no Lago Guaíba é
sede do Município de Barra do Ribeiro. Toda a região pertencia ao Município de Porto
Alegre.

Para surpresa dos Medeiros, os irmãos Porto construíram uma segunda


represa para captar água do mesmo curso d’água que já utilizavam, mais perto das
nascentes, diminuindo o fluxo do precioso líquido nas áreas de terras que arrendavam.

Pediram que a Justiça condenasse os irmãos a reduzir a derivação de águas


que haviam estabelecido e também fossem obrigados a indenizá-los pelos prejuízos
causados, conforme os cálculos a serem feitos quando da liquidação da sentença.

Já proposta a ação, a Intendência Municipal de Porto Alegre foi aceita no


processo como assistente para defender os interesses dos habitantes da localidade de
Barra do Ribeiro, buscando a demolição da represa, que teria sido construída sem a
indispensável licença.

Na sentença, o Juiz Ribeiro Dantas foi minucioso no relatório que antecedeu


a sua decisão e registrou que os autores construíram a sua barragem com assentimento
da autoridade municipal para irrigação das suas plantações e que a nova barragem trazia
prejuízo à cultura “pois as águas deixadas no arroio Ribeiro, a jusante da represa, eram
insuficientes para essa lavoura”. Os peritos constataram que acima da represa dos réus,
o volume de água no arroio Ribeiro era de 1.041 litros e abaixo da mesma represa, 592
litros.

O magistrado utilizou, para decidir, o Alvará de 27 de novembro de 1804,


mandado publicar pelo Príncipe Regente de Portugal e integrado às Ordenações
Filipinas283. Destacou que,

pagamento pelo seu uso. É exemplar, atualmente, por exemplo, o Comitê de Gerenciamento da Bacia
Hidrográfica do Rio dos Sinos (www.comitesinos.com.br).
281 Em 1959, a região tornou-se Município e, em 1984, sede de Comarca (instalada em 1986).
282 Hoje a região continua produzindo arroz. Segundo estatísticas do IRGA – Instituto Rio Grandense do
Arroz a área do Município de Barra do Ribeiro cultivou 13.179ha, colhendo 96.910t de arroz na safra 2016-
2017. (Fonte: www.irga.rs.gov.br)
283 Ordenações Filipinas foi uma compilação de legislações esparsas que levou o nome de Felipe II, rei da
Espanha e de Portugal, reformador do Código Manuelino. A partir da sua entrada em vigor, em 1595,
passou a incluir novas leis.
127

segundo este alvará, as águas dos rios e ribeiros podem ser ocupadas por
particulares e derivadas por canais ou levadas em benefício da agricultura e
indústria, contanto que a ocupação não prejudique aos que já anteriormente
faziam uso das águas para a rega de terras ou para o labor de máquinas (§§
11 e 12 do citado Alvará)284.
Concluiu que os réus haviam infringido exatamente estes dispositivos do
Alvará ao construírem uma represa nas águas do arroio Ribeiro, com prejuízo aos autores,
que já faziam uso delas para a irrigação de terrenos em que cultivavam arroz. Como
condenação, Ribeiro Dantas determinou a redução do volume de águas captadas na
barragem dos réus, de forma a não prejudicar a cultura dos autores, nem o abastecimento
de água aos habitantes do povoado “Barra do Ribeiro”. E também condenou os réus a
indenizarem o dano causado aos autores. Veja a íntegra da decisão no anexo que se segue
a este artigo.

Alcides Cruz destacou, na nota do jornal, ser o assunto de capital interesse e


atualidade “atento o progressivo desenvolvimento das lavouras de arroz neste Estado, e,
portanto, a decisão do preclaro dr. Ribeiro Dantas merece ser divulgada pois que resolveu
um caso, o qual dadas as circunstâncias que o revestiam, pode não ser único”.

E consignou ter havido outra decisão em caso análogo, cuja sentença, da lavra
do juiz da Comarca de Cachoeira do Sul, dr. Mello Guimarães 285, concluiu no mesmo

284 O Alvará de 27 de novembro de 1804 integra os aditamentos do Livro 4 das Ordenações Filipinas.
Reformou em alguns pontos o Alvará de 20 de junho de 1774 e tratou de regulamentar questões que
prejudicavam a produção de cultura de forma a não prejudicar a classe dos proprietários. O parágrafo 11
diz o seguinte: “Em qualquer das Províncias do Reino, aonde ou alguma Povoação em comum, ou algum
Proprietário em particular empreender o tirar de algum Rio, Ribeira, Paul, ou Nascente de água, algum
Canal, ou Levada para regar as suas Terras, ou para esgotar sendo inundadas, requererá a qualquer dos
Ministros de Vara Branca do Termo, ou Comarca, para que lhe demarque, e assine o lugar, e sítio mais
cômodo, por onde ela pode ser construída, ouvindo o parecer de Louvados, ou de pessoas inteligentes: o
qual do que acordarem mandará formalizar um processo verbal, e por ele lhe dará, ou negará a licença para
a construção, citando-se por Editos as partes interessadas; e do que julgar se poderá recorrer à Mesa do
Desembargo do Paço. Não poderão estas obras ser embaraçadas pelos Proprietários dos Terrenos, por
onde elas passarem: mas serão obrigados a deixarem construir o Aqueduto, e passar a água, pagando-se-
lhe o prejuízo por arbítrio de Louvados. Já o parágrafo 12, diz: Excetuo porém as Quintas nobre, e
muradas, e os quintais dos Prédios urbanos nas Cidades ou Vilas, pelos quais seria de grave prejuízo a
construção de levadas, ou canais para as regas: pois a respeito dessas somente poderá se obter a Licença
por expressa Resolução minha, tomada em Consulta da Mesa do Desembargo do Paço, no caso de se
verificar um grande interesse na construção do Canal. E excetuo também o caso em que a levada prejudica
a outra já construída, ou seja para rega de Terras, ou para alguns Engenhos; porque então somente será
permitida a Licença, quando possa haver cômoda divisão da água, de forma que não fique inútil a cultura
já feita, ou o Engenho já construído.” (Fonte: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4pa1020.htm.)
285 Luiz Mello Guimarães nasceu em Rio Grande, RS, em 18 de outubro de 1874. Formou-se em Ciências
Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de São Paulo em 1897. Júlio de Castilhos convidou-o para ser
Promotor de Justiça. E depois, apelou para que Mello Guimarães seguisse a carreira da magistratura “então
dominada por nortistas” (citação ao livreto “A Última Lição do Mestre” que contém o discurso do então
Vice-Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, Professor Geraldo Octávio Brochado da Rocha,
em 1953, realizado em sua homenagem – Acervo do Memorial do Judiciário). Fez então concurso para a
magistratura, atuando nas Comarcas de Encruzilhada do Sul, Santa Vitória do Palmar, Santana do
Livramento, Cachoeira do Sul, Rio Grande e Pelotas. Guimarães, em 1921, foi nomeado Desembargador
do Superior Tribunal de Justiça. Foi o primeiro presidente do Tribunal Regional Eleitoral, entre 1932 e
1935. Foi presidente da Corte de Apelação, atual Tribunal de Justiça, entre 1935 e 1936. Integrou a
Comissão que elaborou o anteprojeto da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, em 1935.
(Informações disponíveis no Banco de Magistrados do Memorial do Judiciário do RS e Memorial da Justiça
Eleitoral Gaúcha). É bisavô do Desembargador com o mesmo nome integrante do atual Tribunal de
Justiça.
128

sentido286. Também o Superior Tribunal de São Paulo decidira em 1910 aplicando o item
12 do Alvará de 1804, “já existindo o açude e engenho dos autores não podia o réu, por
meio de idêntica construção em ponto superior, desviar as águas de modo a prejudicar
aquele”. E Alcides Cruz concluiu:

A questão do aproveitamento de águas decorrentes de um prédio superior, pelos


ribeirinhos, do prédio inferior, em face destes julgados, conteste e informe, não
pode oferecer mais vacilações nem surpresas.
Não houve apelação da decisão de mérito ao Superior Tribunal.

Já na fase de execução da sentença houve novo embate entre as partes. Os


irmãos Porto agravaram ao Tribunal, pois haviam discordado da decisão, entre outros,
no ponto que os condenava ao pagamento de 41:585$420 (quarenta e um contos e
quinhentos e oitenta e cinco réis), mais as custas. O julgamento do Agravo foi
francamente favorável a eles (íntegra nos Anexos).

Praticamente todos os julgamentos realizados pela Justiça, à época, mereciam


mera citação ou se tornavam notícia nos diários da Capital, como no Correio do Povo e em
A Federação.

Um dia antes do julgamento do agravo sobre a execução, em segunda


instância, em 3 de julho de 1913, o jornal A Federação, à época órgão oficial do Partido
Republicano, publica artigo de capa de Alcides Cruz sobre a questão das águas do Ribeiro,
dirigindo-se diretamente aos argumentos do advogado da outra parte, Diogo Velho
Cavalcanti de Albuquerque.

Manifestou-se Cruz:

Incide em lastimável erro o patrono ex-adverso, em pensar que só são públicas


as águas navegáveis e de rios. Bem sabemos que o Ribeiro não é um rio
propriamente dito: é apenas uma ribeira, um arroio não navegável, mas ainda
assim não deixa de ser público pelas razões expostas à sociedade desde o início
do pleito, o mesmo neste escrito, sob a égide dos mais abalizados interpretes
da legislação pátria, das quais se verifica que águas podem ser públicas tanto
as de rios como as de arroios, sejam ou não navegáveis, bastando serem perenes
e não de curso artificial.
Afinal, o arroio Ribeiro tinha águas públicas ou particulares? O arrendatário
poderia ajuizar ação buscando ressarcimento por prejuízos havidos na sua produção em
terras que não são suas? Citando tratadistas da época, como Borges Carneiro e Coelho
da Rocha, Cruz defende os princípios contidos no Alvará de 27 de novembro de 1804,
“extensivo ao Brasil, então colônia portuguesa”. O uso da água dos rios públicos ou
perenes poderia ser realizado desde que não prejudicasse o uso que já acontecia ou não
provocasse dano a algum vizinho ou a algum moinho já construído.

286 Ainda não foi localizado este processo ou a publicação da sentença aqui referida. Seria a primeira no Rio
Grande do Sul tratando de regular o uso da água, penalizando quem usurpasse o líquido de
empreendimento já existente. Mello Guimarães foi contemporâneo de Alcides Cruz na Faculdade de
Direito de São Paulo.
129

Acusando ingerência politico partidária no comportamento do advogado


Diogo Velho, afirmou Alcides Cruz, que os argumentos da outra parte visavam atingir
“pessoas da mais assinalada posição política e social, dentre as quais se destacava o
Presidente do Estado e chefe politico de prestígio não comum”. E continuou:

É que a singular circunstância de que esse homem, Borges de Medeiros, alia


aos magníficos dotes de inteligência e caráter, de todos conhecidos, uma pureza
de costumes e um escrúpulo na maneira de proceder, que a mínima alusão
desairosa o punge e melindra profundamente.
Cruz ataca pessoalmente Diogo Velho:

Borges de Medeiros, com a conduta pública e particular que tem, está a


cavaleiro de todas as insídias e a salvo da faca de ponta posta nas mãos de
qualquer salteador, como Cartouche, ou de qualquer judeu sem entranhas,
como Shylock287, quanto mais da de um pobre comediante.
Borges de Medeiros já estava de volta ao cargo de Presidente do Rio Grande
do Sul.

Em sessão realizada em 4 de julho de 1913, o colegiado deu ganho de causa


parcial aos agravantes em relação aos valores a serem pagos pelos réus aos autores, e
baixou o valor da quantia para 23:803$220 réis, um pouco mais do que a metade288. Os
julgadores deixaram de lado questões de mérito novamente levantadas pela defesa dos
Porto:

[...] considerando que a liquidação é preliminar da execução; mais não visa


do que fixar-se o valor ou quantidade da condenação; e, portanto, não admite
controvérsia que respeite à causa ou tenda a ilidir o julgado, para versar
exclusivamente sobre o que ficou explícito em suas conclusões ou dispositivos
[...].
Na decisão inicial da execução, o prejuízo sofrido, com a redução da
capacidade de produção da região com a diminuição da irrigação, se referia a 4.426 sacos
de arroz com 221.300 kg. Os julgadores do colegiado entenderam de diminuir a
indenização a 3.882 sacos, com 19.100 kg. Reconheceram que também incorreu na
redução da produção a ocorrência de uma forte estiagem em 1911, ano em que o dano
aconteceu. Ao invés de considerar a produção média de sacos dos anos anteriores,
levaram em conta, para a fixação dos preços, apenas o ano de 1910, quando o desvio das
águas pelos Irmãos Porto ainda não havia se efetivado.

Compuseram o tribunal, o presidente desembargador Epaminondas Brasileiro


Ferreira, o relator desembargador José Valentim do Monte, e dois Juízes da Capital
convocados para o julgamento – Armando D’Azambuja e Arsenio da Silveira Gusmão,
já que impedidos os desembargadores Manoel Ferreira Escobar Junior e Francisco de
Souza Ribeiro Dantas, que tiveram intervenção na causa quando na instância inferior, e

287 Shylock é um agiota judeu que empresta dinheiro a seu rival cristão, personagem fictício da peça O Mercador
de Veneza, de William Shakespeare.
288 Agravo nº 720, Porto Alegre – Vespúcio de Souza Porto, sua mulher e outros, agravantes; Dr. Antonio
Augusto Borges de Medeiros e outros, agravado. Decisão transcrita adiante, nos Anexos.
130

James de Oliveira Franco e Souza e Melchiesedek Mathuzalen Cardoso, por serem


advogados na questão os seus filhos Leonardo Macedonia e Maurício Cardoso 289.

Já no dia 6 de julho, o advogado Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque,


que havia trabalhado como defensor dos irmãos Porto, publica uma longa carta, na Seção
Livre do jornal Correio do Povo, endereçada a Sua Excelência o Sr. Dr. A. A. Borges de
Medeiros. A missiva tem data de 4 de julho e foi republicada no dia 8 por ter sido
inicialmente divulgada com erros e omissões que haviam escapado à revisão 290.

Nela, Diogo Velho diz-se prejudicado com o advento da República:

Pertencendo a uma família amiga do nosso magnânimo Imperador, cuja


augusta sombra há de presidir eternamente aos destinos da nossa
nacionalidade, auspiciosamente formada a sua imagem, fiquei sendo uma
espécie de deserdado político nesta república representativa em que o voto não
vale nada, não obstante a minha adaptação ao novo regime.
Entrando no assunto das águas do Ribeiro, disse:

Nessa mesma questão de águas do Ribeiro, sopitando o ressentimento de


algumas injustiças, eu quis ser o mensageiro da paz, quando em carta de
cumprimentos que dirigi a V. Exa. Por ocasião de sua nova eleição ao elevado
cargo de Presidente do Estado, pedi vênia para aconselhá-lo a desistir do pleito.
V. Exa. Porém não se dignou responder-me.
Neste mesmo artigo, Diogo Velho ataca pessoal e violentamente Alcides
Cruz:

Não se engane, pois, V. Exa., Sr. Dr. Medeiros: V. Exa. Tem a seu serviço
no foro um negro paranoico. Mas[...]cautela: os animais dessa raça,
principalmente o negroide, produto híbrido de um cruzamento maldito, não
primam pela lealdade: lateja-lhes na alma ruim o ódio instintivo contra a raça
superior que os dominou [...].
Houve continuidade no ‘debate’ público. A edição de 8 de julho de 1913 de
A Federação, traz longo comentário de Alcides Cruz sobre a tática de enveredar pelo
ataque à honra de Borges de Medeiros escolhida por Diogo Velho. Em 9 de julho291, em
artigo intitulado ‘Troco Miúdo’, Alcides Cruz rebate direto:

Que não sou branco[...] Eis a estupenda clava [...] de sebo com que o
paspalhão julgou achatar-me! [...] Não sou branco, porque minha mãe e
minha avó e minha bisavó não o eram; mas que aqui viveram; como muitas
famílias de cor, que vieram acompanhando outras, a estabelecer-se em S.
Francisco do Porto dos Casais, quando foi da famosa corrida, por efeito da
lastimável rendição da Colônia de Sacramento em 1763 [...].
Ao final deste longo texto, disse que:

Agora, só pela coincidência de achar-se o nome do Presidente do Estado até


certo ponto partícipe desta controvérsia, fico inibido do uso de um látego com

289 Conforme nota do CORREIO DO POVO, de 5 jul. 1913, p. 6.


290 A FEDERAÇÃO, de 6 jul. 1913, republicada em 8 jul. 1913, capa e p. 2.
291 A FEDERAÇÃO, n. 158, 9 jul. 1913, capa.
131

que pudesse ver se o sangue a esvurmar dos fidalgotes mal criados, é azul ou é
como a linfa das rameiras verminosas.
Certamente a Questão das Águas do Ribeiro só obteve tanta repercussão à
época por ter como uma das partes o chefe republicano e presidente do Rio Grande do
Sul, Borges de Medeiros. No entanto, é de se destacar o uso, pelo Judiciário, da legislação
advinda do século XIX – integrada às Ordenações Filipinas, no que se relaciona com o
uso das águas perenes para a irrigação de cultivos destinados ao alimento e ao consumo
dos habitantes de Barra do Ribeiro, então pertencente a Porto Alegre. O Código das
Águas veio apenas em 1934. E a Lei das Águas, em 1997.

Alcides Cruz destacou-se também como integrante da Assembleia dos


Representantes do Estado do Rio Grande do Sul e professor na Faculdade de Direito.
Em ambas as atividades, eventualmente, citava a necessidade de conservação de
ambientes naturais. No artigo “Município de Encruzilhada” publicado no Anuário do
Estado do Rio Grande do Sul de 1901, Alcides Cruz faz apologia da necessidade de
conservação dos matos:

Basta para tanto que todo o encruzilhadense tenha sempre no espírito a


seguinte sentença, de um distinto naturalista alemão292, muito amigo do Rio
Grande do Sul. Os morros ou as montanhas de forte declive não devem ser
privados ou despidos dos seus matos. Tirem-se deles as boas madeiras e a
lenha, mas deixem-me crescer as árvores novas e as que não tiveram atingido
ainda o seu pleno crescimento.

Anexos

Para melhor ilustrar o ambiente à época vivido por Alcides Cruz, publicamos
alguns documentos, como as decisões judiciais e excertos de debates havidos na
Assembleia dos Representantes sobre a conservação das matas com a sua participação.

A) Sentença do processo sobre as Águas do Ribeiro, seguido de comentário de


Alcides Cruz, ressaltando o seu ineditismo e importância (A Federação, Porto
Alegre, 1º jun. 1911, capa)

Alegam o dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros, o capitão Victorino Borges


de Medeiros, o tenente-coronel Manoel Ignacio Evangelista e o capitão Luiz
Albert Matzembacher:
Que no lugar denominado Barra do Ribeiro, à margem direita do
arroio deste nome, fizeram extensa plantação de arroz;
Que, para irrigação do terreno cultivado, mediante licença da
autoridade competente, construíram, no mesmo arroio, uma represa, derivando
a água necessária para aquela irrigação;

292 Hermann Von Ihering nasceu na Alemanha, em 1850. Foi Médico, Zoólogo e Geólogo. Com 30 anos veio
ao Brasil radicando-se em Taquara, RS e depois em Guaíba, RS. Em 1892, mudou-se para São Paulo onde
fundou o Museu Paulista e também o Jardim Botânico. Pai de Rodolpho von Ihering, nascido em Taquara,
RS, e considerado o pai da piscicultura no Brasil.
132

Que, em fins do ano passado, Armando de Souza Porto, Ricardo de


Souza Porto e Vespúcio de Souza Porto construíram para igual fim, à margem
esquerda do mesmo arroio e a montante dos autores, uma outra represa;
Que, com essa represa, fizeram uma derivação de águas em tal
quantidade que não só prejudicou a plantação dos autores, como até tornou
escassa a água necessária ao povoado de Barra do Ribeiro;
Que, assim sendo, devem os réus ser condenados a reduzir a derivação
de águas por eles estabelecida, de modo a não prejudicar a cultura dos autores,
e à indenização do dano causado, conforme se liquidar na execução.
Juntaram os documentos de fls. 9 a 14.
Os réus, regularmente citados, não compareceram em juízo, à exceção
do corréu Ricardo de Souza Porto, que esteve presente à audiência em que a
ação foi proposta; mas não contestou, não deu prova, não arrazoou.
Os autores produziram as testemunhas de fls. 42 a 44 e requereram a
vistoria constante de fls. 52 e seguintes.
Arrazoaram afinal, a fls. 59, juntando mais o doc. de fls. 64.
Em seguida, compareceu a Intendência Municipal, como assistente,
adotando as alegações dos autores, para defender os interesses dos habitantes
da Barra do Ribeiro e conseguir a demolição da empresa pelos réus, sem a
indispensável licença.
A fls. 78 habilitaram-se a viúva e herdeiros do litisconsorte cap.
Victorino Borges de Medeiros.
Tudo visto e examinado
Considerando
Que o fato da causa está provado.
1) pelos docs. de fls. 9 e 10, dos quais conta que os terrenos cultivados
foram arrendados, obrigando-se o locador a “facultar a canalização da
água do arroio Ribeiro, através de sua propriedade, para o efeito de
irrigação de culturas efetuadas pelos locatários”.
2) pelos depoimentos fls. 42 a 44, que afirmam: a) a existência das
plantações alegadas pelos autores, b) a derivação de água do arroio
Ribeiro, feita, mediante assentimento da autoridade municipal, para
irrigação das ditas plantações, c) a represa construída pelos réus, em
data posterior, e em ponto superior à dos autores, d) o prejuízo
ocasionado pela construção daquela represa, à cultura dos autores;
3) pela vistoria constante do auto de fls. 52, da qual os peitos concluíram,
por informações obtidas, não restar dúvida que a represa construída
pelos réus prejudicou a lavoura dos autores, pois as águas deixadas no
arroio Ribeiro, a jusante da represa eram insuficientes para essa
lavoura”, e, finalmente,
133

4) pelo doc. de fls. 54, que demonstra um volume de água no arroio


Ribeiro igual a 1.041 litros a montante da represa dos réus, e a 592
litros abaixo da mesma represa;
Considerando
- que a regra de direito aplicável ao fato da causa acha-se contida no
Alvará de 27 de novembro de 1804, consolidado por T. de Freitas
(cons. arts. 894 a 896) e por Carlos de Carvalho (consol. art. 412);
- que, segundo esse alvará, as águas dos rios e ribeiros podem ser
ocupadas por particulares e derivadas por canais ou levadas em
benefício da agricultura e indústria, contanto que a ocupação não
prejudique aos que já anteriormente faziam uso das águas para a rega
de terras ou para laboração de máquinas (§§ 11 e 12 do citado Alvará);
- que os réus infringiram essa regra de direito, construindo uma represa
para a ocupação das águas do arroio “Ribeiro”, com prejuízo dos
autores, que “já anteriormente faziam uso daquelas águas para
irrigação de terras cultivadas”.
Julgo a ação procedente para condenar, como condeno, os réus a
reduzir a derivação de águas por eles estabelecida, de acordo com as posturas
municipais, de forma a não prejudicar a cultura dos autores, nem o
abastecimento d’água aos habitantes do povoado ‘Barra do Ribeiro’ e à
indenização do dano já causado aos autores, conforme se liquidar na execução,
e custas, na forma da lei.
Porto Alegre, 21 de maio de 1911.
Francisco de Souza Ribeiro Dantas

- Publicando esta jurídica sentença, temos em vista concorrer com um


valioso subsídio para a constituição da jurisprudência acerca de uma matéria,
que até época recentíssima ainda não havia sido aventada nos nossos tribunais,
porque nenhum gênero de cultura agrícola havia determinado a intervenção da
autoridade a respeito da regulação das águas correntes.
É, como se vê, assunto de capital interesse e atualidade, atento ao
progressivo desenvolvimento das lavouras de arroz neste Estado, e portanto a
decisão do preclaro dr. Ribeiro Dantas merece ser divulgada, pois que resolveu
um caso, o qual dadas as circunstâncias que o revestiam, pode não ser único.
Cumpre, todavia, consignar que também recentemente o dr. Mello
Guimarães, ilustrado juiz de comarca da Cachoeira, proferiu idêntica decisão em
caso semelhante, ocorrido naquele foro. Já em S. Paulo (v. S. Paulo Judiciário,
1910, v. 24 p. 270) foi estabelecido pelo Superior Tribunal deste Estado, que
nos termos do item 12 do alvará de 27 de nov. de 1804 já existindo o açude e
engenho dos autores não podia o réu, por meio de idêntica construção em ponto
superior, desviar as águas de modo a prejudicar àquele.
134

A questão do aproveitamento de águas decorrentes de um prédio


superior, pelos ribeirinhos, do prédio inferior, em face destes julgados, contestes
e informe, não há de oferecer mais vacilações nem surpresas.
A.C.

B) Decisão do Superior Tribunal no Agravo interposto pelos Irmãos Porto. Em


consequência, diminuiu-se o valor da indenização. (MEMORIAL DO
JUDICIÁRIO DO RS. Publicação das Decisões do Superior Tribunal do Estado
do Rio Grande do Sul proferidas durante o ano de 1913)
Agravo
Nº 720. Porto Alegre.
Vespúcio de Souza Porto, sua mulher e outros, agravantes; Dr.
Antonio Augusto Borges de Medeiros e outros, agravados.
ACÓRDÃO
Vistos os autos de agravo interposto da decisão de fls., que julgou
provados os artigos de liquidação de fls. E condenou os liquidados, agravantes,
a pagar aos liquidantes, agravados, a quantia de 41:585$420 e nas custas.
E considerando que a liquidação é preliminar da execução; mais não
visa do que fixar-se o valor ou quantidade da condenação: e, portanto, não
admite controvérsia que respeito à causa ou tenda a ilidir o julgado, para versar
exclusivamente sobre o que ficou explícito em suas conclusões ou dispositivos;
L. Velho, Exc. § 403; João Monteiro, Teoria do Processo civil, vol. 3º, § 260;
Acordam em não conhecer das alegações de fls. e provas sobre elas
dadas; e, tendo em vista o deduzido na inicial, prova que a amparou e os laudos
dos arbitradores, dão provimento em parte ao agravo.
Porquanto, vê-se do 7º articulado a fls. 3 que os agravados Medeiros e
Borges fizeram uma sementeira de 280 sacos de arroz com 14.000 kg; Victorino
Borges de Medeiros, ora representado por sua esposa e filhos, a sementeira de
250 sacos com 12.500 kg; Manoel Ignacio Evangelista a sementeira de 100 sacos
com 5.000 kg.
Sobre estas quantidades deram os liquidantes prova, testemunham na
ação e se expressaram os peritos de fls., com pequenas variantes e, assim
mesmo, baseadas no provável. Tais dados, que não foram seriamente impugnados
pelos liquidados, são os que devem servir de base liquidação, onde sofreram
alteração para mais, com ofensa ao julgado e sem amparo de qualquer prova da
sua realidade.
Neste pressuposto, o prejuízo sofrido pelos liquidantes, em lugar de
4.426 sacos de arroz com 221.300 kg é de 3.882 com 19.100 kg.
135

E considerando que os peritos, tomando por base a média dos preços


do arroz no ano de 1911, quando aconteceu o dano a ser ressarcido, deram o
valor de 9$800 por cada saco, que o prejuízo de cada um dos liquidantes varia
na proporção de suas sementeiras e do produto ou porcentagem de suas
colheitas nos anos anteriores, sendo o da firma Medeiros e Borges de 2.468
sacos; dos representantes de Victorino de Medeiros de 914 sacos e finalmente
de 500 sacos o prejuízo que teve Manoel Evangelista, que são plausíveis os
fundamentos invocados pelos arbitradores, no sentido de uma redução de
quarenta por cento sobre o total daquele prejuízo, em razão de causas estranhas
aos liquidados, como a excessiva estiagem, sempre reconhecida pelos
liquidantes.
Por estes motivos reduzem a condenação a importância de vinte e três
contos oitocentos e três mil duzentos e vinte réis (23:803$220), ou sejam aos
liquidantes Medeiros e Borges (2468-987=1481x9$800x9965220 = 15:483$020)
quinze contos quatrocentos e oitenta três mil e vinte; aos representantes de
Victorino B. de Medeiros (914-365=549x9$800=5:380$200) cinco contos
trezentos e oitenta mil e duzentos; e ao liquidante Manoel Ignacio Evangelista
(500-200=300x9$800=2:940$000) dois contos novecentos e quarenta mil réis.
Custas pagas proporcionalmente pelos liquidantes e liquidados.
Porto Alegre, 4 de julho de 1913.
Epaminondas, vice-presidente. V. do Monte. Foram votos vencedores
os dos Srs. Drs. Armando de Azambuja e Arsenio Gusmão, juízes de comarca
da 1ª e 2ª varas desta capital.

C) Apresentação por Alcides Cruz de moção a favor das matas (Debate na


Assembleia dos Representantes, atual Assembleia Legislativa, em 11 de outubro de
1909)
O texto apresentado por Alcides Cruz foi o seguinte, tendo sido, ao final, aprovada
moção:
“A Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, no intento
de secundar os patrióticos esforços do governo estadual, no tocante às medidas
necessárias à conservação das suas matas, tendo em vista que o referido governo
não tem competência legislativa para estender a ação até as florestas de
propriedade privada, impedindo a devastação delas, pede a vv. Exs. tomarem a
iniciativa de um projeto de lei no sentido de ser regulada aquela exploração.”
A moção era dirigida à representação rio-grandense no Congresso Nacional. O
deputado Arlindo Leal faz referências à necessidade de o próprio Governo do
Estado evitar a devastação de suas matas, e cita a questão climática: Se é intenção
do governo do Estado evitar a devastação das matas de domínio privado,
porque não começa por poupar as suas, de área suficiente para manter o estado
climatológico atual? Ainda acusa o governo do Estado de ter estabelecido
núcleos coloniais nas matas cuja conservação deveria zelar. Ao que o deputado
Pereira Parobé esclarece que o governo estadual não havia fundado colônia
alguma: “As que existem no território do Rio Grande foram criadas pelo
136

governo geral no antigo regime e pelo governo da União antes de passar o


serviço para o Estado, entre as quais as de Ijuí, Uruguai e Comandaí”.
E o debate segue ‘quente’, com Alcides Cruz retomando a palavra para lembrar
que o deputado Pereira Parobé, quando secretário de Obras Públicas havia
expedido uma circular às diversas intendências do Estado recomendando-lhes
que reprimissem a devastação de matas e proibindo o corte de madeiras às
margens dos rios. Arlindo Leal afirma que votará a favor, mas que seu temor é
que a nova legislação atinja o colono: “[...] Eles não derrubam as madeiras pelo
gosto de destruir mas por absoluta necessidade e na proporção crescente que
têm de prover a subsistência de suas famílias. Se essas derrubadas se
compreendem também no termo DEVASTAÇÃO DAS MATAS, têm elas para
si a atenuante do inevitável. Como agir de outro modo? Desejo, pois, saber se a
moção apresentada tem por fim determinar uma ação coercitiva à propriedades
dos colonos”. Pereira Parobé esclarece que não se poderia fazer leis especiais
para os colonos: “A propriedade é uma, sabe-o o ilustre colega, e o caráter da
lei – geral”.

Referências

MACEDONIA, Leonardo. Mestres do Passado. Revista da Faculdade de Direito de Porto


Alegre. ano 4, n. 1, p. 149-151, 1958. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/revfacdir/article/view/66984/38251>.
PORTUGAL. Ordenações Filipinas: ordenações e leis do Reino de Portugal. Disponível
em: <www1.ci.uc.pt/inti/proj/filipinas/l4pa1020.htm>. Acesso em: 15 ago. 2017.
ROCHA, Geraldo Octavio Brochado da. A Última Lição do Mestre. Porto Alegre:
Livraria do Globo, 1953. [O autor era Professor e Vice-Presidente da Câmara
Municipal de Porto Alegre; contém discurso proferido na Câmara Municipal de Porto
Alegre, in Memorial do Desembargador Luiz Mello Guimarães.]
SUPERIOR TRIBUNAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Decisões
proferidas durante o ano de 1913. Porto Alegre: Officinas Gráficas da Livraria do Comércio
de Souza & Barros, 1914. [Biblioteca do Memorial do Judiciário do RS]

Fontes:
Arquivo do Correio do Povo
Hemeroteca do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa
Hemeroteca da Biblioteca Nacional (edições do jornal A Federação e a Mensagem enviada à
Assembléa dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Carlos Barbosa Gonçalves –
20 de setembro de 1911)
137

Wagner Silveira Feloniuk*

1 Introdução

Este trabalho parte do acesso aos livros publicados por Alcides Cruz, dos
discursos parlamentares encontrados na Assembleia Legislativa e uma grande quantidade
de artigos encontrados em longo trabalho realizado pelo Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul293 em periódicos como A Federação294, Annuario do Estado do

* Doutorado em Direito (2013-2016, bolsa CAPES), Mestrado Acadêmico (2012, bolsa CNPq),
Especialização em Direito do Estado (2011) e Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais com láurea
acadêmica (2006-2010) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Professor das pós-
graduações da Verbo Jurídico, Instituto de Desenvolvimento Cultural. Editor-Executivo da Revista da
Faculdade de Direito da UFRGS (B1) e da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul (B2), membro do Conselho Editorial da Revista E-Civitas (B4), da Revista Brasileira de Direitos
Humanos da Lex Magister (B2), das editoras científicas DM e RJR. Ex-servidor da Corregedoria-Geral da
Justiça do TJ/RS (2009-2016). Autor dos livros "A Constituição de Cádiz: Análise da Constituição Política
da Monarquia Espanhola de 1812" e "A Constituição de Cádiz: Influência no Brasil". Pesquisador dos
Grupos de Pesquisa CAPES: Supremacia do Direito e Direito e Filosofia. Membro da Associação Nacional
de História, da Associação Brasileira de Editores Científicos, Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Direito e Membro Pesquisador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
293 Essa pesquisa teve apoio fundamental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul,
especialmente da arquivista Vanessa Gomes de Campos, que buscou documentos originais, ofereceu
dados, materiais indispensáveis para a construção dos dados biográficos do autor. Igualmente, foi grande
a importância do doutor Miguel Frederico do Espírito Santo, presidente do Instituto e um idealizador da
retomada dos estudos sobre Alcides Cruz, sempre aberto para discutir o tema com entusiasmo. Agradeço
ainda a Priscila Pereira Pinto e Thais Nunes Feijó pela atuação constante neste e em outros projetos.
294 Este era o “órgão” oficial do Partido Republicano Rio-Grandense, o jornal de divulgação do partido. Ele
circulou a partir de 1884 e a primeira publicação de Alcides parece ter sido em 12 de fevereiro de 1892, no
seu segundo ano de faculdade, um comentário sobre o romance Quincas Borba. Seu primeiro artigo sobre
política foi em 18 de agosto de 1892, em texto defendendo o seu partido e criticando os gasparistas e as
aspirações parlamentaristas defendidas por eles. Foram muitas publicações posteriores, a última encontrada
pelo Instituto Histórico e Geográfico é de 8 de janeiro de 1915, um ano antes de seu falecimento.
138

Rio Grande do Sul295, A Nação296, Gazêta do Foro297. Com essas fontes, tentar-se-á
entender como pensava o pesquisado a respeito da política e da organização do Estado,
do papel dos poderes constituídos e qual deveria ser a atuação deles.

Não se perguntaria, por sua trajetória política, se ele apoiava Júlio de Castilhos,
a quem chama de genial estadista rio-grandense no discurso de seu falecimento298, adepto
do positivismo com ênfase. Mas veremos uma pessoa matizada, e certamente distante do
positivismo ortodoxo, mais próximo de uma posição em que aceitava diversas correntes
e autores para explicar diferentes fenômenos. Procuraremos saber o quanto ele se apoiava
em ideias do positivismo comtiano e, também, a influência do constitucionalismo norte-
americano, das ideias evolucionistas do positivismo de Herbert Spencer e talvez de
posições contrárias ao positivismo. Com essas passagens se pode até caracterizar um
pouco mais a elite do Rio Grande do Sul no início do século, na pessoa de um de seus
membros.

José Murilo de Carvalho, ao apresentar o governo que se instala no Brasil a


partir de Vargas, afirma que: “[a] maior influência do positivismo ortodoxo no Brasil
verificou-se no estado do Rio Grande do Sul. A constituição republicana gaúcha
incorporou várias ideias positivistas299”. Conhecer o pensamento de Alcides Cruz reforça
o dado, mas também ajuda a mostrar os matizes, reafirmando que os juristas gaúchos
estavam também próximos das ideias que no centro do país serviam até como
contraponto ao positivismo, como o constitucionalismo norte-americano, doutrina
utilizada em 1890 para criar uma Constituição em que os principais valores positivistas já
não aparecem com peso300.

295 Alcides Cruz não apenas publicou, mas assumiu, ao lado de Graciano de Azambuja, a direção do anuário.
Nessa publicação, no ano em que a assume, em 1911, ele fala sobre as dificuldades de publicar no Rio
Grande do Sul, com dados interessantes sobre o cenário editorial local e suas dificuldades: “Seguro
conhecedor do meio em que vivia, Graciano de Azambuja não era tão ingênuo que não previsse logo, que
a terra não comportaria uma revista, nem mesmo da índole das chamadas magazines.
Já, porém que o periódico não podia ser nem trimestral, nem semestral, ao menos que fosse anual. E
praticamente havia uma única forma a dar-lhe, a de almanaque. Só assim, poderia vingar a empresa.
Amadurecida a ideia, a propriedade foi imediatamente esposada pela antiga firma editora Gundlach & Cia.,
hoje Krahe & Cia., que assim se tornou benemérita, amparando aquela modesta causa, mais tarde
estimulada, aplaudida pelos competentes, imitada por outros, e que, afinal, após vinte e oito anos de
indefesso labor, nenhuma compensação material tem outorgado àqueles honrados livreiros”. (CRUZ,
Alcides de Freitas. Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para o ano de 1912 – ano XXVIII. Porto Alegre,
1911d).
296 Periódico paulista.
297 Essa publicação também foi editada por Alcides entre 1902 e 1903. Era um periódico jurídico, no qual
havia produções dos editores e convidados, traduções de trabalhos (de Cesare Lombroso, inclusive) e
respostas a consultas feitas.
298 CRUZ, Alcides de Freitas. Discurso na romaria ao túmulo de Júlio de Castilhos. A Federação, Porto Alegre,
24 out. 1910.
299 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.
111.
300 “Todavia descançavam no prestigio de Benjamin Contant. Essa influencia tendeu a diminuir, pela
resistencia que lhe opuzeram os outros membros do governo, de educação scientifica e politica muita
diversa do Comtismo. E então os actos que se seguiram aos em que a influencia positivista é incontetavel,
foram della expurgados. Não só nas reformas dos serviços administrativos, como no projecto de
Constituição, ela não se fez mais sentir”. (FREIRE, Felisbello Firmo de Oliveira. Historia Constitucional da
Republica dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Typophafia Moreira Maximino, 1894. p. 200).
139

Com relação ao uso das fontes, pode parecer que o livro “Noções de Direito
Administrativo Brasileiro”301, a obra de maior fôlego, pudesse se tornar o principal meio
para cumprir o objetivo. A publicação tem uma parte longa sobre o Estado e sua
organização política, no entanto, o livro tem um caráter predominantemente didático e
se dedica mais ao Direito Administrativo, apresentando com simplicidade os conceitos
políticos, de tal forma que até mesmo as influências podem ser difíceis de reconhecer.
Os escritos mais relevantes estão nas outras fontes, na medida em que Alcides se deparava
com situações concretas que demandavam sua opinião ou decidia escrever em particular
sobre um tópico. Assim, essas fontes esparsas serão muito utilizadas, mas, exatamente
por serem dadas predominantemente dentro de contextos políticos ou de resoluções de
casos, é preciso considerar esses posicionamentos com atenção, pois parte de sua carga
poderia estar voltada ao posicionamento no caso debatido. Apesar da necessidade de
atentar ao contexto, foi possível notar uma constância no pensamento do autor, que
propõe ao longo de anos os mesmos pensamentos sobre os temas abordados.

2 Dados da vida de Alcides de Freitas Cruz

Alcides de Freitas Cruz viveu apenas 49 anos, entre 14 de maio de 1867 e seu
falecimento por tuberculose, em 14 de março de 1916. O principal de sua atuação política
e jurídica se deu a partir do ingresso na Faculdade de Direito de São Paulo, iniciado
quando ele possuía 24 anos, em 1891. Nesse intervalo, ele foi deputado estadual por sete
mandatos a partir de 1897, lente de Direito Administrativo da Faculdade Livre de Porto
Alegre (atual UFRGS) desde julho de 1909, capitão do 7º Batalhão de Infantaria da
Guarda Nacional durante a Revolução Federalista, Promotor de Justiça desde 1900,
advogado, autor, editor e tradutor de diversas publicações.

Dois elementos são importantes para iniciar o seu pensamento político.


Primeiro, o autor afirmava ser como seus pais e avós: eram mestiços, mulatos ou negros
– denominações que ele afirmava não o incomodar e que não havia impedido os
antepassados de participar das guerras de seu tempo302. Sua cor lhe rendeu
discriminações, foi chamado de Corvo do Príncipe Perfeito por Arthur Pinto da
Rocha303, desrespeito que ele respondeu com ênfase na defesa e reconhecimento de sua
origem. Como escreve, “[n]ão sou branco, porque minha mãe e minha avó e minha
bisavó não o eram”304. Adelaide Leopoldina de Freitas, sua mãe, era de uma família
remotamente vinda para a então freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, atual
Porto Alegre, após a rendição da Colônia de Sacramento em 1763 e, como tantas outras
famílias que fizeram a migração, tinham ascendência africana. Do seu pai, ele ignorava a
cor, o pernambucano chamado Manuel Pinto Lacerda da Cruz faleceu quando Alcides
tinha um ano de idade e ele não conhecia as origens de sua família na cidade de Goiana.

301 A primeira edição, de 1910, tem esse título. A segunda edição, mais difundida no Brasil, seria lançada em
1914 com o título “Direito Administrativo Brazileiro”.
302 CRUZ, Alcides de Freitas. Carta aberta a Arthur Pinto da Rocha. A Federação, Porto Alegre, 12 jan. 1903.
In: ______. Mestiço, Mulato ou Negro. Porto Alegre: IHGRGS, 2017a. p. 6.
303 Ibid, p. 5.
304 CRUZ, Alcides de Freitas. Troco Miúdo. A Federação, Porto Alegre, 9 jul. 1913. In: ______. Mestiço, Mulato
ou Negro. Porto Alegre: IHGRGS, 2017b. p. 9.
140

Em segundo lugar, sua família materna, no momento de seu nascimento, tinha


recursos e uma boa posição social, seu avô fora da Legião de São Paulo, parte de uma
família tradicional daquela capitania e seu tio fora o conselheiro Leopoldino Joaquim de
Freitas305. Alcides Cruz estudou no Colégio Souza Lobo, participou ainda jovem da
fundação Club Literário Democrático Vinte de Setembro e de atividades do Club
Republicano de Porto Alegre e, por fim, foi realizar seu curso de Direito na prestigiada
Faculdade de Direito de São Paulo. Alcides Cruz teve um acesso privilegiado à educação
e contatos sociais que ele soube cultivar em sua trajetória. Assim, estudaremos o
pensamento de um político que enfrentava dificuldades, mas teve uma educação formal
de alta qualidade e tinha uma posição social que lhe permitia mais o acesso à política.

3 Fundamentos do Pensamento de Alcides Cruz

A primeira parte da pesquisa está voltada às estruturas básicas do pensamento


filosófico e histórico do autor. A partir delas, é possível ter mais clareza sobre quais
marcos fundamentais e estruturas eram utilizadas por ele para construir suas opiniões
sobre o governo. A partir desse estudo inicial, será possível ver o quanto, na política,
Alcides Cruz mantém a aderência aos grandes marcos teóricos adotados.

3.1 Filosofia e Organização Social

Iniciamos a reconstrução do pensamento de Alcides Cruz com o Programa


de Ensino escrito para lecionar na disciplina de Filosofia de Direito da Faculdade Livre
de Direito, em 1905, quando ele era Lente Substituto 306. A disciplina era a primeira ser
dada aos alunos que ingressavam no curso e introduzia não apenas o Direito, mas
elementos de compreensão da realidade com base em outros ramos das ciências.

Com o programa é possível verificar como ele organizava o ensino jurídico e


quais autores eram utilizados. Como o documento é uma contribuição de importância
para compreender o pensamento e influências de Alcides Cruz, ele será mostrado sem
alterações. É o curso:

PHILOSOFIA DO DIREITO

PROPEDEUTICA
I

305 CRUZ, 2017b, p. 9.


306 O acesso a esse livro com planos se deu pelo apoio das bibliotecárias da Faculdade de Direito da UFRGS,
especialmente Nariman Marisa Nemmen, que cederam acesso às obras raras, encontraram o material e
tentaram encontrar outros semelhantes dos anos seguintes, a partir do seu ingresso como professor de
Direito Administrativo. Infelizmente parecem não estar no acervo.
141

Quadrupla explicação do Universo, segundo as escholas dualista, monista,


positivista e evolucionista. Noção da lei da evolução.
II
Do methodo geral. Analyse e synthese. Observação, experimentação, analogia
e comparação. Inducção e deducção.
III
Organismo vivo e organismo social. Em que se assemelham e em que differem.
Do methodo a seguir no estudo da sociologia.
IV
Idéa retrospectiva da Sociedade e do Estado atravez da História. A sociedade
moderna no seu organismo physico, economico e intellectual.

PARTE GERAL
V
Noção de philosophia do Direito. Do methodo a seguir estudado da materia.
VI
Theorias antigas acerca do Direito Natural. Crítica da Idéa do Direito
natural.
VII
Doutrina da eschola historica. Seus defeitos; suas vantagens.
VIII
O Direito considerado quanto aos seus fundamentos naturaes.
IX
O Direito considerado quanto a sua evolução historica.
X
Características do Direito antigo. Symbolismo e formalismo do mesmo.
Direito e Religião; Direito e Moral; sua indistinção primitiva.
XI
Fontes do Direito: o costume; a lei; a obra dos jurisconsultos.
XII
Relatividade do Direito. O Direito e as condições sociaes relativamente a
moral, ao territorio, a psychologia, a politica, a cultura, a religião, a esthetica
e a economia dos povos.
XIII
Definições mais notaveis do Direito dadas pelos juristas romanos, pelos
juristas medievaes e pelos metaphysicos. Ihering, Spencer e seus discipulos.
Sylvio Roméro e Tobias Barreto: como todos elles definiram o Direito.
XIV
142

O Direito considerado como conjuncto de <<normas coercitivas>>. O seu


ponto de vista formal e utilitario.

PARTE ESPECIAL
XV
Sujeito de Direito - pessoa physica ou natural; pessoa juridica ou moral.
Objecto do Direito - Cousa. Modo de exercer-se o Direito - Acção.
XVI
Primeira forma de organisação social: a familia; sua constituição, seu futuro.
Theorias modernas acerca da familia primitiva.
XVII
Matrimonio ou relações legaes entre o homem e a mulher. Feição religiosa do
matrimonio; caracter juridico. Indissolubilidade do vinculo conjugal, e divorcio.
XVIII
A propriedade primitiva. O solo como sujeito da propriedade. Conceito
juridico de propriedade.
XIX
Successão legitima e sucessão testamentaria. A successão na antiguidade. Seu
caracter religioso. Liberdade de testar.
XX
A força obrigatoria dos contractos. O primeiro contracto.
XXI
Noção e fundamento das obrigações.
XXII
Natureza e fins do Estado. A boa organização do poder publico.
XXIII
Direito publico e Direito privado.
XXIV
Fundamento do Direito de punir. Este Direito pressupõe o crime. Theorias
acerca do crime.
Porto Alegre, 4 de março de 1905.
O lente substituto,
Dr. Alcides Cruz.

Aprovado em sessão da Congregação de 31 de Março de


1905.
O Secretario,
Dr. Leonardo Macedonia Franco e Souza.307

307 CRUZ, Alcides de Freitas. Programma de Ensino para o anno de 1905 da 1.ª cadeira do 1.º anno. Philosofia do
Direito, apresentado pelo Lente Substituto Dr. Alcides Cruz. Porto Alegre: Officinas Typographicas da
Livraria do Commercio, 1905.
143

O plano é afastado do positivismo comtiano. A primeira aula é sobre a


quádrupla explicação do Universo, uma referência ao pensamento evolucionista de
Herbert Spencer308 que é defendido no Brasil com força nas publicações de Silvio
Romero. Pela estrutura da ementa, é possível concluir que a aula era encerrada dando a
explicação spenceriana como principal forma de compreensão. Na segunda e terceira
aulas à frente, há novo uso de Spencer, por meio da explicação da sociedade a partir da
noção de um organismo vivo309.

É interessante observar a viva oposição ao positivismo comtiano nos únicos


autores brasileiros citados nominalmente (ver aula XIII), e o fato de diversas aulas se
apoiarem em Spencer e não em Augusto Comte, especialmente as introdutórias. Silvio
Romero escreveu em uma seção intitulada Spencer versus Comte no "Doutrina contra
Doutrina" e afirmou que "[a]final o positivismo reduziu-se a uma synthese subjectiva,
que se opõe radicalmente á portentosa synthese objectiva do evolucionismo
naturalista"310. Tobias Barreto não era adepto de Spencer, mas igualmente criticava o
comtianismo311. Em 1905, Alcides Cruz parece estar filosoficamente mais vinculado ao
pensamento de Spencer.

A produção rio-grandense envolvendo o positivismo evolucionista é antiga.


Trinta anos antes das aulas de Alcides, em 1875, aparece "O Fim da Criação ou a
Natureza Interpretada pelo Senso Comum", de José de Araújo Ribeiro, que no seu final
trata da origem do homem recorrendo a Laplace e Darwin. Pouco depois, veio a grande
produção relacionada ao tema. Graciano Alves de Azambuja publicou pelo jornal Gazeta
de Porto Alegre, em 1880, o seu livro "Lições de Filosofia Elementar". Na obra, mostra-
se o avanço da assimilação dessas ideias no Rio Grande do Sul; a publicação foi
considerada por autores como Silvio Romero e Carlos Maximiliano como uma obra de
filosofia de grande relevância no Brasil. Conforme Martins, Silvio Romero chegou a
incentivar o seu uso como livro texto para o Colégio Dom Pedro II, onde lecionava
filosofia312.

308 Sobre o tema, o próprio Silvio Romero faz uma síntese: "Funda-se o evolucionismo spenceriano nas quatro
idéias capitaes de todo o desenvolvimento philosophico e scientifico moderno: a critica do conhecimento,
iniciada por Hume, desenvolvida por Kant e levada ás suas ultimas conseqüências por Hamilton e Mansel;
o principio fundamental da evolução, do werden perpetuo, que lhe passou, do próprio Kant, de Góthe, de
Hegel; a aplicação pratica desse principio à biologia pelo experimentalismo transformístico, de von Baer,
Darwin, Wallace; finalmente, a concepção monística do universo, preparada pelas descobertas de Grove,
Meyer, Youle, Helmholtz e trinta outros, aceita hoje geralmente por naturalistas, como Hàckel e por
philosophos, como Noiré". (SILVIO, Roméro. Doutrina contra Doutrina: o evolucionismo e o positivismo
na Republica do Brasil. Rio de Janeiro: J. B. Nunes, 1894. p. 115-116).
309 Tradução livre de passagem de Spencer: "Um organismo social, assim como um organismo individual,
passa por modificações até estar em equilíbrio com as condições ambientais; e após continua sem novas
alterações de estrutura". (SPENCER, Herbert. The Principles of Sociology. Nova Iorque: D. Apleton and
Company, 1898. p. 96).
310 SILVIO, op cit., p. 115.
311 Um exemplo das críticas de Tobias Barreto é a passagem: "Ainda aqui importa observar que o meu ponto
de vista é alguma cousa diverso do da escola positiva, para quem toda a metaphysica é um producto da
insensatez; o que aliás não obsta que ella tenha creado uma metahistoria e uma metapolitica, tão pouco
adaptadas aos factos se tão difficeis de compreender, como a velha sciencia dos noologos e
transcendentalistas". (BARRETO, Tobias. Ensaios e Estudos de Philosofia e Crítica. Pernambuco: José
Nogueira de Souza, 1889).
312 Esses dados são retirados da obra de José Salgado Martins, que traça com detalhes relevantes o precoce
desenvolvimento intelectual do Rio Grande do Sul a partir do início dos 1800, avançado, ainda que restrito
a uma parcela pequena da população. Ele mostra como, apesar de afastado, o estado mantinha forte ligação
144

Na obra aparecem as concepções de Comte e Spencer, e Azambuja acolhe o


pensamento positivista desses autores como o mais avançado a respeito da definição de
filosofia. Aparecem as ideias de indução, partindo da observação para depois abstrair e
criar regras gerais, e a ideia de que a filosofia deveria atentar ao que era observável, sem
adentrar nas indagações inacessíveis à inteligência. As ciências estavam restritas pela
imperfeição e limites da inteligência humana, precisavam de demonstrações empíricas,
feitas com método científico, para deixaram de ser simples hipóteses 313.

Azambuja utiliza autores de grande importância, vários deles representantes


de pensamentos vigentes na Europa naquele momento - Kant, Hegel, Fichte, Schelling,
Krause, Locke, Leibniz, Comte, Spencer, Lamarck, Darwin, Haeckel, Tyndall, Huxley.
José Salgado Martins, no entanto, coloca que Azambuja é, sobretudo, o precursor de
Herbert Spencer no estado do Rio Grande do Sul. Assim como Alcides Cruz seria
décadas depois, ele era simpático à filosofia positiva de Comte, mas sua afinidade maior
era com as concepções evolucionistas do inglês 314.

Nesse mesmo período, enquanto Azambuja já defendia Spencer sobre Comte,


grandes condutores da política rio-grandense estariam em São Paulo e Rio de Janeiro e
voltariam para difundir o pensamento comtiano com o qual haviam entrado em contato
durante sua formação315. Júlio de Castilhos e Demétrio Ribeiro são os dois principais e,
dada a enorme ascendência que o primeiro teria sobre toda a política estadual, o
comtianismo logo se tornaria um guia da política, da formação das instituições, da atuação
do grupo dominante no Rio Grande do Sul. A adesão seria ampla e logo transformada
em diretriz política definitiva por meio da Constituição de 14 de julho de 1891 316. Como
coloca Martins: "Embora dúctil a posição de Spencer, no âmbito do positivismo, havia
um motivo político determinante da dissenção filosófica. A doutrina de Comte desfrutava
do prestígio oficial e, por isso, a ela sincera ou hipocritamente, aderia o maior número" 317.

Na última década dos 1890, surgem até publicações gaúchas discutindo a


contraposição entre spencerismo e comtismo, mas o tema não tomou a dimensão de criar
problemas políticos no partido. Júlio de Castilhos poderia ser comtista, mas os
spencerianos não parecem ter sido tolhidos, o que explica o posicionamento tão aberto

com a doutrina europeia mais recente, não muito afastado do restante do país em sua temática e autores
do liberalismo europeu. Como exemplo da narrativa na obra, ainda anos de 1820 havia no Rio Grande do
Sul aulas sobre a filosofia kantiana no estado. (MARTINS, José Salgado. Breve História das Idéias no Rio
Grande do Sul (Século XIX e Princípios do Atual). Porto Alegre: Centro Regional de Pesquisas Educacionais
do Rio Grande do Sul, 1972. p. 7-8).
313 Ibid, p. 9-11.
314 Ibid, p. 11-12.
315 "Embora o comtismo já existisse como orientação política incipiente e desorganizada antes de 1881, é
somente com o retorno do grupo de estudantes gaúchos reunidos em torno do Clube Vinte de Setembro
na Faculdade de Direito de São Paulo que essa corrente ganha corpo. As atividades de propaganda desse
grupo - ideologicamente liderado por Júlio de Castilhos, Assis Brasil e Alcides Lima - encontram apoio em
Demétrio Ribeiro, no plano político, e a assistência de positivistas e cientificistas em geral como
Damasceno Vieira, Alarico Ribeiro, Torres Homem, Pereira Parobé, Graciano Alves de Azambuja e
Argemiro Cícero Galvão, no terreno mais geral da crítica dos valores culturais ligados ao regime imperial".
(BOEIRA, Nelson. O Rio Grande de Augusto Comte. In: DACANAL, José H. (org.); GONZAGA,
Sergius (org.). RS: cultura & ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 38).
316 MARTINS, op cit., p. 13.
317 Ver MARTINS, 1972, p. 15. Com a mesma posição, de crescimento do pensamento ligado à adesão oficial,
BOEIRA, 1980, p. 38.
145

de Alcides Cruz anos depois, lecionando Spencer na Faculdade de Direito apesar da sua
autodeclarada fidelidade ao Partido Republicano Rio-Grandense.

Em 1899, Dinarte Ribeiro traduz os "Opúsculos de Filosofia Social", de


Comte, e o defende das críticas dos spencerianos. Apesar dessa contraposição, as duas
vertentes pertenciam ao positivismo, convergindo sobre parte do método de
compreensão dos fenômenos, refutando outras correntes e se unindo em suas críticas ao
pensamento oriundo da filosofia clássica, que era aceito no Rio Grande do Sul muito
antes da chegada do positivismo e continuava com adeptos. Demonstrando essa situação
de críticas "ponderadas" entre positivistas, há a passagem de Alcides Maia, publicada no
jornal A República, em 12 de setembro de 1898, em trecho retirado da obra de José
Salgado Martins:

Não pertencemos à escola do grande filósofo de Montpellier, certamente uma


das recebrações geniais destes tempos; em filosofia, em moral, em direito e em
estética, somos spenceristas puros. Mas, com Augusto Comte, concordamos em
um ponto capital, e foi esse justamente o alvejado pelo padre Locher. Aludimos
ao método positivo, cuja excelência ninguém discute hoje, fora dos arraiais
escuros da reação católica318.
Assim, uma pureza do pensamento comtiano pode não ter existido no Rio
Grande do Sul. A adesão oficial, gerada pela posição de Júlio de Castilhos, não impede
que se reconheçam haver vários positivismos 319, não apenas por terem variado no tempo,
conteúdo, objetivos e patamares de difusão social entre 1870 e 1930 320, mas também por
terem, desde o início, sido formados por uma contraposição em relação ao pensamento
de Comte, que permaneceu viva por décadas e ainda podia ser sentida com força nos
ensinamentos que Alcides Cruz dava em 1905 na Faculdade Livre de Direito de Porto
Alegre.

Como fator importante para o pensamento político de Alcides Cruz, não


apenas o filosófico, Silvio Romero apresenta sua própria versão sobre a organização
política baseada no spencerianismo, que pode não ser completamente fiel ao pensamento
original, mas representava parte do pensamento brasileiro. Ela estava bastante afastada
do pensamento interventor do positivismo comtiano, de avanço social baseado na
educação e trabalho com grande controle estatal:

Ora, nós aspiramos a uma organisação politica, onde o governo tenha o


minimo de poder e seja apenas uma garantia de policiamento geral. Em um
regimen de praticas pacificas, de conquistas industriaes, onde o voto de todas
as classes pôdese fazer valer, a dupla dictadura da lei e da acção - é
simplesmente um anachronismo, que nem sacerdócios, nem Grand-Prêtre, nem
patriciatos, nem proletariatos podem disfarçar para illudir 321.
O plano mostra uma aproximação do evolucionismo de Spencer e, por
consequência, ao pensamento positivista liberal inglês e norte-americano. Apesar disso,
Alcides Cruz não aderia estritamente à organização política narrada por Romero. Voltou-

318 MARTINS, op cit., p. 14.


319 BOEIRA, op cit., p. 34.
320 Boeira narra o período de 1928 a 1937 como o período no qual as obras se tornam cada vez mais raras e
espaçadas. (BOEIRA, op cit., p. 59).
321 SILVIO, 1894, p. 120.
146

se a um modelo no qual aceitava usar os recursos estatais para resolver os problemas da


sociedade - esse tema será retomado na seção sobre seus pensamentos a respeito da
atuação estatal.

3.2 Escrita da História

Um dado importante para a composição do pensamento de Alcides Cruz está


em um escrito publicado n'A Federação, em 26 de agosto de 1900, cinco anos antes do
plano de aula ser publicado322. Spencer é novamente mostrado com proeminência, mas,
no tema, aparenta haver a conclusão de que vários autores caminham em um percurso
comum na melhoria da compreensão da história e do modo como ela deve ser escrita.

Alcides Cruz cita que os maiores remodeladores do estudo histórico foram,


na Inglaterra, Macauley, Spencer e Buckle e, na França, Comte e Taine. Afirma que a
única história com valor prático poderia chamar-se sociologia descritiva. Alcides narra as
características que ela deveria ter. A história deveria estabelecer as "leis naturais que
subordinam os fatos, como aplicando eficazmente as generalizações do método
indutivo". A historiografia, para Alcides Cruz, deveria descrever o "passado intelectual,
moral e físico", e esses fatos deveriam ser estudados com o objetivo de proceder a uma
síntese que ao mesmo tempo mostrasse os fatos e fosse uma chave explicativa deles. Seria
necessário um plano sistemático que partia do particular para o geral, da análise para a
síntese - e cita como aquele que foi mais longe na historiografia nacional Virgílio
Várzea323.

Ele critica os textos antigos de história geral, que fariam uma recapitulação de
todas as intrigas e biografias dos chefes de estado. A história deveria consistir pouco de
uma cronologia de festas militares e "esse indigesto amontoado de datas e de atritos entre
povos e semiligeiras consequências para o direito e à civilização" 324.

Alcides faz duas citações literais para embasar melhor seu posicionamento
sobre história, ambas instrutivas sobre seu pensamento. A primeira é a Pompeio Gener,
na obra "Amigos y maestros", lançado em 1915. Alcides Cruz cita, por meio do autor,
que a história deveria ser “análise psicológica e visão fisiológica de uma época, de uma
raça, de um movimento, de um aspecto do progresso humano". Sua segunda citação é ao
político inglês Thomas Macauley, no livro History of England, de 1863, e do livro afirma
que a história deveria "[r]elatar tanto a história do povo como do seu governo, descrever
o progresso das belas artes, estudar a formação das seitas religiosas e as variações do
gosto literário, reproduzir os costumes das gerações sucessivas"325.

Alcides Cruz escreve duas obras históricas maiores em sua vida - "Epitome
da Guerra entre o Brasil e as Provincias Unidas do Prata" 326 e "Vida de Raphael Pinto

322 CRUZ, Alcides de Freitas. A Ilha de Santa Catarina. Por Virgílio Várzea. A Federação, Porto Alegre, 26 ago.
1900. In: CRUZ, Alcides de Freitas. Notas de Leituras e Outros Escritos. Porto Alegre: IHGRGS, 2017c.
323 Ibid, p. 51
324 Ibid, p. 51.
325 CRUZ, 2017c, p. 51.
326 Idem, 1907.
147

Bandeira"327. Em nenhuma delas o autor retoma seu pensamento sobre historiografia.


Ambas tratam de uma visão histórica construída a partir das decisões dos grandes
homens, como Lecór no primeiro livro e Pinto Bandeira no segundo 328.

Em suas noções de filosofia e de história, Alcides Cruz parece estar mais


próximo do positivismo de Spencer, mas não deixam de aparecer as citações a Comte. A
noção metodológica adotada pelos dois autores introduzia uma sociologia baseada em
métodos positivistas como caminho necessário para a compreensão dos acontecimentos
sociais. Um pensamento baseado nas observações empíricas, de fenômenos concretos,
que culminaria em uma melhor compreensão da vida, da sociedade, e das necessidades
da organização social. Comte, baseado na ideia de ordem e progresso para evolução da
sociedade; Spencer, na ideia de sociedade como organismo social, ambas amplamente
debatidas no Brasil e geradoras de correntes específicas sobre como deveria ser a atuação
estatal.

3.3 Visão da História do Rio Grande do Sul

Na mesma publicação em que fala de seu método, foi escrito que a história do
Rio Grande do Sul era dotada de uma dificuldade insuperável, por ter sido este o Estado
brasileiro com passado mais cheio de guerras e agitações. Ele foi palco de mais
campanhas que qualquer outra região. Por um lado, esses acontecimentos haviam
recebido grande atenção dos especialistas, mas, por outro, eles haviam deixado de seguir
a produção da história como ela deveria ocorrer por estarem concentrados nesses fatos.
Não haviam estabelecido a situação intelectual, os usos trazidos do exterior e os aqui
adquiridos, as disposições para com o governo local, com a justiça, com o progresso
material e o desenvolvimento das atividades econômicas comercial agrícola e industrial 329.

Uma segunda abordagem do Rio Grande do Sul foi feita 14 anos depois. Em
22 de setembro de 1914, Alcides Cruz esboça uma interpretação da história do Rio
Grande do Sul. Nessa oportunidade, fica fortalecida a sua percepção de que há evolução
social e a história é um fenômeno que ocorre em ritmo constante para uma direção. Além
do evolucionismo, há aparente citação à lei dos Três Estados - teológico, metafísico e
positivo -, ainda que utilizando as expressões "guerreira", "metafísica" e "científica", em
referência às condições sociais e históricas em cada fase:

Pinto Bandeira, como Bento Gonçalves, como Gaspar da Silveira Martins,


como Julio de Castilhos, cada um por sua vez e em seu tempo, assinalam uma
época histórica na vida sulista; mas os seus feitos relevantes, embora
destacados, se coordenam e encadeiam numa ordem
natural, sem sobressaltos nem hiatos, de modo a poder
dizer-se que culminam e se integram a final, constituindo a
verdadeira evolução política e social do Rio Grande.

327 CRUZ, 2017c, 1906.


328 Um exemplo do tratamento do personagem pode ser visto no final do livro: "Este é um fugitivo bosquejo
biographico do paladino emerito, sem par nem precedente, que encheu de fama não sómente o Rio Grande
do Sul no primitivo periodo da sua formação política e social, mas do Brasil inteiro". (CRUZ, 1906, p.
105).
329 CRUZ, op cit., p. 51.
148

São fatos estes, verificados sob aspecto tão distinto pela clareza e naturalidade
com que se manifestam num discurso de século e meio, que a qualquer
espírito, mesmo medianamente informado em filosofia
elementar, não escapam à, já hoje clássica, distinção em fase
guerreira, metafísica e por ultimo cientifica. Sem grande
penetração, vê-se facilmente que com Pinto Bandeira corresponde a época da
conquista e constituição geográfica; com Bento Gonçalves, a tentativa frustrada
da definitiva organização política que, entretanto por ser prematura, falhou;
com Gaspar Martins, o amadurecimento e o peso da influência rio-grandense
nas deliberações da Coroa, conjuntamente operados através da política
monárquico-parlamentar, que serviu de transição entre o passado colonial e o
presente republicano; com Júlio de Castilhos, a definitiva concretização da
forma entrevista por Bento Gonçalves. Estas duas figuras, por assim dizer,
completam-se. Sendo então quatro vultos, representam e sintetizam, aliás, três
épocas, porque um procurando adiantar-se e agir fora do seu tempo, não
logrou alcançar o êxito colimado e isto, longe de o amesquinhar, pelo contrário,
o engrandece, fazendo-se admirar pelo seu arrojado descortino330.
A parte sobre História, especialmente a estruturação final da história do Rio
Grande do Sul, permite concluir que há uso do comtianismo e do evolucionismo em
conjunto no pensamento do autor. Essa é uma visão adequada com o que veremos a
frente. Essa estrutura mostra o espaço para que a construção de conceitos políticos fosse
feita utilizando elementos, no mínimo, dos dois pensamentos. E não será surpreendente
notar que estruturas liberais inglesas e norte-americanas, das quais o pensamento de
Herbert Spencer faz parte, sejam utilizadas com grande frequência. Não se afirma que
Spencer fosse uma ponte para que Alcides chegasse aos conceitos norte-americanos ou
ingleses. Era um sinal de compatibilidade, mostrando como o positivismo comtiano no
Rio Grande do Sul não impediu que altos membros do partido fossem em outras direções
e que elas sequer lhes pareceriam inteiramente colidentes. Era, também, uma amostra de
aproximação do pensamento do restante do Brasil, pois Alberto Sales, o mais importante
doutrinador do pensamento republicano no período, era um grande defensor do
spencerianismo331.

Independentemente de qualquer autor, o constitucionalismo norte-americano


circulava no Brasil, e com força desde 1870332. Um estudante de Direito, como foi Alcides
Cruz em São Paulo, certamente iria entrar em contato com essas obras durante sua
formação, o contato independia de uma afiliação filosófica. Tais doutrinas tinham
enorme influência por terem sido adotadas desde as últimas décadas do Império pelo
grupo econômico dominante, os proprietários rurais, e pela sua compatibilidade com o
objetivo de criar uma república federada com ampla descentralização de poderes, ideia
que prevaleceu no pensamento do republicanismo após o fim da monarquia333 e era
defendida também pelo Partido Republicano Rio-Grandense de Alcides Cruz.

330 Grifo nosso, ressaltando a interpretação do autor. (CRUZ, Alcides de Freitas. Discurso ao Grêmio
Gaúcho. A Federação, Porto Alegre, 22 set. 1914b).
331 LYNCH, Christian Edward Cyril. Da Monarquia à Oligarquia. História Institucional e Pensamento Político Brasileiro
(1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014. p. 89-90.
332 BASTOS, Tavares. A Provincia. Estudo sobre a descentralisação no Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1870.
333 LYNCH, 2014, p. 99-100.
149

4 Conceitos Políticos

Ao contrário da primeira parte, nos conceitos políticos há uma forte ligação


com os Estados Unidos e a Inglaterra334, especialmente com o primeiro país, e o uso de
ideias liberais não necessariamente ligadas ao positivismo. É possível indicar
preliminarmente essa influência estrangeira quando ele discute uma intervenção estadual
sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (a seguir, STF) e usa a doutrina norte-
americana como exemplo para negar a possibilidade de o Judiciário avaliar casos de
decisão Política do Executivo. Sobre os Estados Unidos, ele afirma: “naquele país,
republicanamente educado, cujas instituições, cujas praxes jurídicas, cujos métodos e
cujas interpretações constitucionais nós brasileiros frequentemente invocamos” 335,
mostrando reconhecer a influência ampla. Em seu manual, escreve sobre a federação e
afirma categoricamente: “Estados Unidos, cujas instituições políticas são fontes das
nossas”336. Na sua vida, Alcides Cruz ainda realizou a tradução do livro "Princípios Gerais
de Direito Constitucional" de Thomas Cooley337, confirmando a influência e dando
contribuições para aumentá-la.

4.1 Democracia e Liberdade

É em uma resenha sobre o livro “A Ilha de Santa Catarina”, de Virgílio Várzea,


que Alcides Cruz apresenta um conceito elaborado sobre democracia e aborda,
marginalmente, seu conceito de liberdade. A democracia seria uma forma de governo
presente nos Estados Unidos e no Brasil. O autor afirma que se poderia notá-la a partir
da leitura das constituições dos países. É uma conceituação curta, mas instrutiva como
introdução ao pensamento do autor:

Em face dos mais recentes estudos, porém, os publicistas chegaram à conclusão,


definitiva, talvez, de que a Democracia nada mais é do que a forma de governo
na qual, perante a lei, são reconhecidas todas as condições de igualdade e a
Liberdade a atribuição do governo ao que lhe é severamente necessário para o
desempenho da lei; de onde se infere que, sob pena de se confundir com a
Anarquia, a Liberdade não é a faculdade possuída por qualquer indivíduo
para fazer o que bem lhe parecer sem o impedimento de nenhuma lei 338.

334 A Inglaterra é representada sobretudo por Spencer. Mas o autor cita outros autores, como Macauley,
Buckle, Gladstone, e, tratando de questões históricas, da importância do pensamento de Hume e Harley.
Ver: CRUZ, 2017c e CRUZ, Alcides de Freitas. Discurso Comemorativo aos 25 Anos da Proclamação da
República no Theatro São Pedro. A Federação, Porto Alegre, 17 nov. 1914c.
335 CRUZ, Alcides de Freitas. A Intervenção. A Federação, Porto Alegre, 8 de janeiro de 1915.
336 O livro inicia com uma história política dos Estados Unidos, com foco nos acontecimentos que levaram à
promulgação da Constituição de 1787, e depois apresenta didaticamente o conteúdo da norma e a
interpretação das cortes judiciais. (CRUZ, Alcides de Freitas. Direito Administrativo Brasileiro. Exposição
summaria e abreviada. 2. ed. Rio de Janeiro; São Paulo; Bello Horizonte; Paris; Lisboa: Francisco Alves &
cia; Aillaud, Alves & Cia, 1914a. p. 112).
337 COOLEY, Thomas. Principios Geraes de Direito Constitucional dos Estados Unidos da América do Norte. Tradução:
Alcides de Freitas Cruz. Porto Alegre: Livraria Universal, 1909.
338 CRUZ, Alcides de Freitas. Literatura e Política. A Federação, Porto Alegre, 23, 24 e 28 jan. e 9 fev. 1893,
grifo do autor.
150

Apesar do conceito liberal de democracia, Alcides escreve que muito


recentemente conceitos como “Democracia, a Soberania do Povo, a Liberdade” haviam
sido modificados e que, naquele momento, ainda não havia uma resposta definitiva para
esses conceitos de difícil interpretação. Até o momento anterior, eles dependiam de várias
ideias administradas a priori e que, quando não removidas, elas ocasionavam grande
confusão. Ele afirma que essas alterações conceituais recentes se deram pela inclusão da
sociologia às considerações. Alcides não chega a explicar como os conceitos sociológicos
haviam dimensionado o conceito defendido na passagem acima. E, conforme José Murilo
de Carvalho, poucos meses depois da publicação desse texto, haveria a participação de
apenas 2,2% da população no pleito que elegeu o presidente Prudente de Moraes, em
1894339, o que mostra o ambiente político para que considerações assim fossem feitas.

Ele afirma no mesmo texto que os Estados Unidos eram uma democracia,
pois não poderia ser dado outro nome a uma república nos quais todas as funções
governamentais eram eleitas. Assim, pode-se concluir que a democracia para Alcides
Cruz também estava ligada à eletividade e liberdade de escolha dos representantes 340.

Sobre liberdade, abordada conceitualmente na última frase, a semelhança com


a famosa conceituação de Montesquieu é grande: “[a] liberdade é o direito de fazer tudo
o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que ele desejasse, ele não teria
mais liberdade, porque os outros teriam igualmente este poder”341. O conceito, no
entanto, é abordado de maneira tão ampla que não se poderia afirmar a existência de uma
origem, seja do liberalismo político de Montesquieu ou de outros autores 342.

4.2 Representação

Uma vez que a democracia direta seria inviável em um Estado com grande
população, era um tema importante encontrar os melhores meios para garantir que os
cidadãos tenham sua vontade reconhecida e atendida. O autor dá importância ao assunto,
tratando em diversos momentos da sua obra, tanto enquanto conceito, como se verá
nesta seção, quanto tematizada frente aos problemas de fraudes eleitorais criticadas por

339 Ver tabela com a participação em todas as eleições da Primeira República em: CARVALHO, José Murilo
de. Os Três Povos da República. Revista Usp. São Paulo, n. 59, p. 96-115, set./nov. 2003. p. 104.
340 CRUZ, 1893.
341 Tradução livre de: “La liberté est le droit de faire tout ce que les lois permettent; et si un citoyen pouvait faire ce qu'elles
défendent, il n'aurait plus de liberté, parce que les autres auraient tout de même ce pouvoir”. (MONTESQUIEU. De
l’Esprit des lois, I. Paris: Folio Essais, 1748/1955. p. 325).
342 Sobre o tema, vale a passagem seguinte sobre o pensamento comtiano a respeito: “Dessa forma, há uma
organização institucional para a regulação da vontade; ela tem que ser livre e livremente regulada, no
sentido de que não cabe ao poder Temporal, ao Estado – cujo instrumento específico é a violência física
–, querer mudar as vontades, as idéias e os valores da sociedade. A constituição desses elementos tem que
ocorrer por meio do convencimento, da persuasão, dos exemplos, da mobilização de afetos, ou seja, com
base em instrumentos intelectuais e afetivos (COMTE, 1929, v. 4, p. 280); institucionalmente, ela deve
ocorrer na sociedade civil (COMTE, 1929, v. 4, p. 167)”. (LACERDA. Gustavo Biscaia de. Vontades e
Leis Naturais: liberdade e determinismo no positivismo comtiano. Mediações. Londrina, v. 20, n. 1, p. 307-
337, jan./jun. 2015. p. 325-326).
151

ele, de sistemas eleitorais ou da falta de consistência de membros de partidos políticos e


suas coalizões temporárias343.

Afirma Alcides Cruz: “o deputado não é mandatário do eleitor e sim do país


e que não há nenhum interesse, quer para o eleitor, quer para o deputado, que ambos se
conheçam pessoalmente, bastando, apenas, não haver equívoco acerca do programa
político, econômico e social do deputado”344. Representação era cuidar dos interesses dos
representados.

O conceito apresentado por Alcides é feito a partir do jurista francês León


Duguit, um expresso adepto da filosofia de Augusto Comte. Apesar da ligação com o
positivismo pelo autor utilizado, o conceito não vai além da teoria da representação
moderna na sua faceta mais aceita, desenvolvida conforme os Estados estabeleceram
sistemas indiretos. Era ligado, sobretudo, ao pensamento liberal europeu. Uma definição
que pode ser atribuída, pelo menos, ao discurso do inglês Edmund Burke, no século
XVIII345.

4.3 Soberania

Um dos temas de Direito Público e política analisados com mais atenção por
Alcides Cruz no manual de Direito Administrativo é a questão da soberania. Ele colocava
que ela era “a faculdade de uma nação de se organizar politicamente como melhor lhe
parecer”346 e que “todo o poder deve vir do povo; deste modo o povo é quem designa
os seus governos e dita a maneira pela qual quer ser governado” 347 e afirma que
historicamente, no Brasil, ela deve ser atribuída ao povo desde a Constituição da
República348.

Ele afirma, no entanto, que a questão é das mais infecundas e obscuras, que
ela poderia ser contornada, por não ser ligada ao tema do manual, que era indemonstrada

343 CRUZ, Alcides de Freitas. A Nova Lei Eleitoral (II). A Federação, Porto Alegre, 11 de junho de 1913a.
344 Nessa publicação, ele criticava o sistema majoritário de apenas uma vaga para formar legislativos, quando
pequenas circunscrições são criadas, uma para cada vaga de deputado, e os candidatos disputavam pela
maioria dos votos apenas entre os cidadãos residentes ali. Era o sistema vigente na Lei Saraiva de 1881,
que ele afirma ser especialmente propício para que fossem feitas promessas, favores e, não raro, tinha seu
resultado decidido pela capacidade de sustentar campanhas mais dispendiosas. Assim, apesar de ser
possível conhecer bem o posicionamento e ele ser o dominante, é de se ressaltar que ele foi redigido dentro
de um contexto de especial atenção e rechaço às ligações negativas entre eleitores e candidatos. (CRUZ,
1913ª).
345 “Mas sua opinião desenviesada, seu julgamento maduro, sua consciência esclarecida, ele não deveria
sacrificar por vocês, por qualquer homem, ou por qualquer conjunto de homens viventes. Esses atos que
ele pratica não derivam do prazer de vocês – não, nem da lei ou da Constituição. Eles são uma confiança
na Providência, por cujo abuso ele é profundamente responsável. Seu representante deve-lhes não somente
sua diligência, mas seu julgamento; ele trai-os, em vez de servi-los, caso ele sacrifique seu julgamento em
favor da opinião de vocês”. Discurso de Edmund Burke aos eleitores de Bristol, ao ser declarado pelos
juízes devidamente eleito como um dos representantes desta cidade no Parlamento, na quinta-feira, 3 de
novembro de 1774. (BURKE, Edmund. Discurso aos Eleitores de Bristol. Traduzido por Gustavo Biscaia
de Lacerda. Revista de Sociologia Política. Curitiba, v. 20, n. 44, p. 100, nov. 2012).
346 CRUZ, 1914a, p. 30.
347 Ibid, p. 30.
348 Ibid, p. 30-31.
152

e inútil, conforme já afirmara Duguit349. Atualmente, o tema dificilmente seria tratado


como possuindo tal controvérsia, mas Alcides Cruz estava no ambiente em que se
discutia acirradamente sobre teorias dualistas e monistas da soberania em Estados
federados, se a soberania era única ou cada estado federado a possuía junto da União. O
tema não era novo, Campos Sales, o político mais relevante para a conformação da
política brasileira na época de Alcides Cruz, fora um dos maiores defensores do
reconhecimento da soberania estadual ainda na constituinte de 1890350. Já na constituinte
havia discordâncias, tanto sobre haver soberania dual, quanto sobre a necessidade de
discutir o tema se outorgar direitos amplos aos estados federados poderia ser feito
independentemente da definição.

Apesar da indefinição de décadas, Alcides trata o tema com bastante


profundidade e se posiciona claramente. Ele afirma que em Estados Federados, como o
brasileiro, havia duas ordens separadas de manifestações políticas, as federais e a locais,
e isso gerava dois poderes públicos, o federal e o estadual. Assim, os habitantes estavam
sujeitos a duas soberanias. Seu posicionamento, afirma, não estava de acordo com a
escola que defende a unidade e a indivisibilidade, mas era o que os fatos lhe revelavam.
A soberania no Brasil deveria ser apreendida a partir das instituições norte-americanas e
reconhecida a dualidade. A soberania não era atributo exclusivo da União porque os
Estados tinham vontade própria para se organizar e para tomar decisões sobre seus
cidadãos. Afirmar que os estados estavam limitados por normas não era suficiente para
lhes retirar o atributo porque a União estava igualmente limitada 351. Assim, Alcides Cruz
adota a posição que futuramente não iria prevalecer, mas era forte naquele momento em
que a política nacional estava enfraquecida e os estados haviam sido dotados de amplos
poderes.

4.4 República

A república é conceituada no início do Direito Administrativo com


simplicidade, com termos semelhantes aos utilizados hodiernamente em textos
introdutórios. Alcides afirma que o Brasil é uma república porque, após um exame “da
situação jurídica das pessoas que detem a autoridade, as revela não só sujeitas ao princípio
da responsabilidade como electivas e de exercício temporário. A responsabilidade, a
elegibilidade e a temporariedade são, pois, os únicos característicos da forma
republicana”352.

A implantação da república era um tema já resolvido no Brasil quando Alcides


Cruz escreve seus textos, todos elaborados após a derrocada da monarquia. Apesar disso,
o assunto é tratado por ele com semelhança às defesas feitas no período anterior, como

349 CRUZ, 1914a,, p. 24.


350 BRASIL. Annaes do Congresso Constituinte da Republica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1926. p. 244-247.
351 CRUZ, op cit., p. 28-31.
352 Ibid, p. 28.
153

por exemplo, no Manifesto Republicano353. Afirmava com grande determinação a


necessidade de um sistema no qual todos os cargos fossem eleitos. Escreveu Alcides:

Bem se sabe que a República não faz impossíveis, nem contém princípios
infalíveis, nem opera com métodos impecáveis; porque virtudes sobrenaturais,
como seriam estas, não existem; basta entretanto que cada qual reconheça,
como ensina o admirável Scherer, que as liberdades políticas não são o fim da
sociedade, mas apenas garantias para que ela possa viver normalmente,
segundo o seu curso natural, para ver que a República, melhor que
todas as outras criações governativas, é a única que pode
fazer tudo quanto politicamente promete354.
A sua conceituação do republicanismo era bastante majoritária e pouco se
modificou no último século. Nota-se, no entanto, como não estavam superadas as
questões de sua defesa naquele ambiente político que sucedia décadas de luta pela sua
implantação no Brasil. O mais relevante sobre o tema da república é notar como há
aderência ao pensamento do Partido Republicano Rio-Grandense e aos dos demais
republicanos brasileiros355.

4.5 Federação

No manual, Alcides Cruz afirma que Estado-composto é um Estado Federal,


e que a federação, ou Estado de Estados, tinha uma composição com quatro elementos:
“nação, territorio, governo e a união de um certo numero de Estados-membros”356. No
Brasil, sua origem fora o despedaçamento de um Estado unitário 357.

O tema da soberania dual, em outros termos, a defesa de que os entes


federados locais eram soberanos, apresenta bastante do posicionamento de Alcides sobre
a prática da federação. No Brasil, ela tinha sido feita de acordo com modelo norte-
americano358, com amplo reconhecimento de poderes e liberdades aos Estados. Assim,
os entes federados eram supremos naqueles assuntos determinados pela Constituição,

353 “Para que um governo seja representativo, todos poderes devem ser delegações da nação, e não podendo
haver um direito contra outro direito segundo a expressão de Bossuet, a monarchia temperada é uma ficção
sem realidade. A soberania nacional só pôde existir, só pode ser reconhecida e praticada em uma nação
cujo parlamento, eleito pela participação de todos os cidadãos, tenha a suprema direcção e pronuncie a
última palavra nos públicos negocios”. (O MANIFESTO Republicano. Itú: 1870. Cadernos ASLEGIS.
Brasília: Associação dos Consultores Legislativos e de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos
Deputados, n. 37, 2009. p. 56).
354 Grifo nosso. (CRUZ, 1914c).
355 Em um sentido menos conceitual, Alcides Cruz também mostra sua pouca simpatia com a família real: "E
o Imperador, primeiro do nome Pedro, recem coroado, mas deslumbrado pelas funções majestaticas,
cambaleava entre a reaccionaria facção lusitana e a orgia. Instigado pela aulica camarilha de favoritos
arrogantes e incultos, ou recebendo inspirações na alcova de uma dama, o Bragança iniciava uma politica
vilipendiosa; movia-se dentro desse fatalissimo circulo vicioso: o seio aflante da marquêsa de Santos e os
conselhos e imposições do gabinete aulico". (CRUZ, 1907, p. 2).
356 CRUZ, 1914a, p. 28.
357 Ibid, p. 28.
358 Ibid, p. 29.
154

tinham liberdade para se organizar, criar suas administrações e executavam as


competências reconhecidas no ordenamento jurídico com liberdade 359.

Todos esses posicionamentos permitem concluir que as estruturas e


instituições norte-americanas são de grande importância na concretização da organização
estatal, até mesmo que elas são as predominantes. O positivismo não deixa de aparecer
direta ou indiretamente, como por meio de Duguit, mas o principal dos conceitos para
estruturação estatal está no pensamento predominante no restante do país, ligado ao
constitucionalismo norte-americano.

5 Poderes do Estado

A tripartição de poderes, pilar do constitucionalismo norte-americano, é


encarada com ceticismo por Alcides Cruz. Após uma construção tão liberal de conceitos
políticos, da tradução de obras e constante uso do direito norte-americano, há descrença
sobre seu funcionamento e até existência. No manual, a introdução ao tema da separação
dos poderes é inequívoca: "[e'] opinião vencedora entre os mais recentes mestre de direito
publico, que a tese da separação de poderes, não encerra em teoria nenhum conteúdo
scientifico. Não tem o caracter de verdade juridica pretendida pelas Constituições dos
povos que adoptando-a, veem nella uma panacéa capaz de os salvar em qualquer
emergência"360. A separação de poderes seria algo radical em tese, e haveria um notável
baralhamento deles na situação concreta361.

A explicação dada é a de que os poderes penetram e invadem suas


competências a tal ponto que a tendência geral dos juristas seria a de reconhecimento da
impropriedade da denominação, que seria, na teoria e na prática, indemonstrável. Alcides
Cruz não faz essas considerações a respeito do Brasil, escreve que a teoria de
Montesquieu nunca pode ser aplicada em geral e que o seu incompleto estudo das
instituições inglesas tinha servido apenas para mostrar como a sua constituição havia
criado, por meio de sua divisão de funções e colaboração de órgãos, um ambiente
favorável à liberdade. Mesmo nos Estados Unidos haveria uma geral irrelevância e
descrença362. É de se cogitar, ainda que faltem elementos escritos, que o positivismo
defensor de um Presidente da República forte, e a circunstância de um partido político
tão dominante no Rio Grande do Sul tenham relevância nessa posição.

Afirma Alcides Cruz, utilizando o jurista francês Joseph Barthélemy, que não
havia poderes. Há apenas um poder, o Poder Público, e as manifestações de sua atividade
teriam diversas formas. Seriam apenas órgãos os denominados poderes, aos quais se
atribuiria a função executiva e as demais. No entanto, o uso do termo poder já estava a
essa altura consagrado363.

359 CRUZ, 1914a, p. 28-31.


360 Ibid, p. 41.
361 Ibid, p. 44.
362 Ibid, p. 41-42.
363 Ibid, p. 42.
155

No discurso proferido no falecimento de Júlio de Castilhos e publicado n'A


Federação, o tema reaparece, abordado da mesma forma, tratando os poderes como
funções:

A Constituição de 14 de Julho estabeleceu em toda a sua pureza o verdadeiro


tipo do sistema chamado presidencial, pois que ao chefe de Estado conferiu
toda a soma da atividade, iniciativa e autoridade dirigentes, sem que
semelhante preponderância, num destaque intenso, prejudique a autonomia, a
independência das demais funções por onde se reparte a suprema ação do
governo do Estado364.
O trecho reafirma sua posição, mas também deixa vislumbrar o que outros
posicionamentos confirmam, o Poder Executivo é tratado como uma fonte de iniciativa
e de força particularmente grandes.

5.1 Poder Executivo

Enquanto na teoria o papel do Executivo consistiria em executar a vontade


do legislador, o exame dos fatos, escreveu Alcides, mostrava uma ampla gama de
atividades que superavam a previsão legal, que envolviam não apenas todas as previstas
em lei, como outras não previstas, além do dever de tomar iniciativas conforme o
interesse público e de representação do Estado perante todos - interna e externamente.
Sua limitação estaria, ele afirma, na proibição de praticar atos contrários à lei 365.

Alcides afirma que os fatos traziam uma dificuldade de definir o que seria o
Poder Executivo em uma república, a teoria seria excessivamente simplificadora. Se
previa o Estado de maneira abstrata, como se ele fosse um mero criador e mantenedor
do Direito, no qual alguns órgãos assumiriam a responsabilidade por tarefas específicas.
No entanto, "a atividade concreta do Estado é a administração publica, a gestão dos
negócios públicos, praticável independentemente da vontade do legislativo" 366, e era uma
função com um grande leque de atividades e o papel do Executivo nelas era
preponderante.

A posição do Executivo fica fortalecida também em relação aos outros


poderes. Sobre o Poder Legislativo, ele escreve passagem significativa imediatamente a
frente da que descreve as atividades concretas do Estado:

Assim, portanto, movendo-se numa órbita muito ampla, e com inteira


liberdade, quando as assembleias legislativas não cumprem a
sua missão assinalada em lei, dissipando o tempo de duração do seu
funcionamento, sem nenhum proveito para o país, porque nos
revoltarmos quando o chefe do executivo, se for homem
revestido de ânimo, iniciativa e vontade firme, procura

364 Grifo nosso. (CRUZ, 1910).


365 CRUZ, 1914a, p. 42-43.
366 CRUZ, Alcides de Freitas. A questão do “habeas-corpus” e o Presidente da República IV. A Federação, Porto
Alegre, 1 de abril de 1911c.
156

resolver magnas questões, que, retardadas, conduziriam à


mais espantosa anarquia?367
Assim, na falta do Legislativo, Alcides Cruz vê no Executivo um dever de
atuação - talvez afastando-se da visão norte-americana de Judiciário, especialmente
Suprema Corte, atuando para garantia da Constituição e das leis. Nesse possível embate
com o Legislativo há ainda mais desenvolvimento por parte de Alcides. Ele cita Esmein,
o francês teria dito que nas repúblicas hispano-portuguesas (inclusive o Brasil) havia um
grande mal na separação entre Legislativo e Executivo, conforme a separação de poderes
feito nos Estados Unidos368. E afirmou: "o remedio que talvez produzisse o salutar effeito
de diminuir a reproducção das contínuas commoções politicas e motins á mão armada,
seria - pensamos nós - a preponderancia da autoridade presidencial executiva sobre tudo
mais, ficando a legislação entregue ao plebiscito e este depois submetido ao simples
referendum do Congresso[...]"369. Portanto, ainda que permanecesse um papel grande no
Legislativo, o papel do Executivo é alargado em suas concepções.

As posições práticas sobre esse posicionamento aparecem também. Alcides


citou os artigos correspondentes da Constituição de 1891 e considerou um
"baralhamento" caber ao Legislativo conceder previamente autorização sobre
empréstimos e outras operações de crédito, dívida pública, assim como ter papel nas
nomeações a cargos diplomáticos e do Judiciário. Essas decisões seriam restrições ao
presidente, que não eram justas em um regime de responsabilidade presidencial370. Assim,
mais do que verificar qual era a divisão estabelecida na norma, Alcides parece ter uma
concepção do que seriam as atividades do Executivo, ainda que elas não tenham sido
apresentadas em uma lista.

Essas competências envolvendo vários poderes, assim como o


funcionamento do impeachment perante o Senado, seriam uma tentativa de criar um
sistema equilibrado por meio de intromissões e compensações. Na prática, no entanto,
elas geraram as turbulências do primeiro ano de vigência da Constituição Federal e
deixaram o Executivo e o Legislativo em um estado de permanente antagonismo 371.

É importante notar que ele mesmo afirma dar suas opiniões com base no
conturbado momento político brasileiro no que tange ao Executivo. Suas opiniões
indicam poderes extensos, mas não há plena certeza se sua opinião era geral ou se decorria
do cenário nacional. Suas críticas não se estendem abstratamente à política nesses
momentos, como ocorre com a separação de poderes, mesmo a afirmação de que o
fortalecimento do Executivo seria uma solução é feita dentro do cenário local e sua
citação de Esmein é sobre a América Latina. Afirmou-se que a instituição dos Estados
Unidos não era adequada às republicas hispano-portuguesas, mas não ao país de origem.

367 Grifo nosso. (CRUZ, 1911c).


368 A leitura da passagem parece indicar que o autor indicava o uso de um parlamentarismo a esses países.
Alcides Cruz não chegou a discutir essa possibilidade de interpretação.
369 CRUZ, 1914a, p. 43.
370 Ibid, p. 44.
371 Ibid, p. 45.
157

5.2 Poder Legislativo

Genericamente, escreve, o Poder Legislativo é o responsável por fazer as leis.


Alcides Cruz apresenta a teoria, a partir da qual se concluiria que a vontade do Legislativo
seria o único fator na formação da lei, salvo nos casos previstos de atuação do Poder
Executivo ou Judiciário. No entanto, os fatos relevariam que ao Executivo não caberia
essa "acanhada tarefa de simples executor"372. Na questão de um habeas corpus, ele narrara
como a falha do Legislativo em cumprir suas tarefas induzia a atuação do Executivo 373.
Imerso nesse caso e defendendo o Presidente da República, Alcides Cruz escreveu em
favor do presidente e do papel diminuído do Legislativo quando ele não cumpre bem
suas tarefas e o chefe do Executivo, por sua vez, o faz 374.

Essa ampla possibilidade de atuação do Executivo, no entanto, não parece ter


dado azo para conclusão de que o Legislativo deveria se submeter às decisões que
violassem a Constituição. Citando Woodburn em longa consideração, ele defende que se
o Presidente da República caísse em erro e invadisse os direitos do povo, caberia ao
Congresso a aplicação do remédio constitucional previsto, a responsabilização política 375.
É o mesmo argumento utilizado por ele quando defende que o Executivo devesse ter
mais liberdade na nomeação a altos cargos - o de que ao Legislativo caberia punir se
houvesse abuso376.

Portanto, Alcides Cruz defende um Legislativo que cria leis e responsabiliza o


presidente, não se afastando da estrutura criada em 1787 na Constituição dos Estados
Unidos. No entanto, nas discussões práticas, se posiciona fortalecendo o Executivo
quando necessário. Aparentemente, ele via essa necessidade com frequência no cenário
político de então.

372 CRUZ, 1914a, p. 42.


373 CRUZ, 1911c.
374 O trecho mais significativo daquela discussão, no qual ele dava amplo apoio à decisão do presidente, foi:
"De sorte que a causa de tais movimentos, cuja consequência é sempre o acréscimo de autoridade pessoal,
verdadeira projeção de governo individual, sempre lícito quando bem intencionado, é a incúria das
assembleias deliberantes, que perdem todo o longo período das suas sessões nas mais estéreis e
desnecessárias discussões, que aos interesses do país não aproveitam.
Disso tem resultado o desprestígio dos parlamentos, em favor do fortalecimento da autoridade primordial
do executivo, quando sabe aproveitar-se do ensejo, e está no seu papel legítimo, pois o presidente da
Republica também, e pelos mesmos títulos que o parlamento, representa o povo.
Por esse modo a opinião pública, ensina o professor Barthelemy, também vai governando, mas através do
presidente.
Quando não se dá isso, invertem-se na prática as instituições políticas do país: a lei desconhece o regime
parlamentar, mas passa-se a sofrer os efeitos do parlamentarismo, apresentando todos os seus
inconvenientes sem oferecer nenhuma vantagem!". (CRUZ, 1911c).
375 Ibid..
376 CRUZ, 1914a, p. 44.
158

5.3 Poder Judiciário

O Judiciário reestabeleceria o Direito quando violado 377. Para Alcides Cruz, a


instituição não seria separada em sua essência do Executivo, ao contrário do que se
acreditara no passado. Em publicação de 1911, ele afirma que estariam corretos os
mestres que combatiam a ideia antiga de que ele seria um poder378. Em seu manual, afirma
o mesmo, e lista Berthélemy, Jacquelin e Michoud 379, como autores que defendiam que
"o chamado poder judiciário nem sequer constitue um poder à parte, mas apenas uma
face do Executivo"380. São afirmações controversas atualmente e, mesmo no período,
eram minoritárias no cenário nacional. Como o próprio Alcides afirma, as posições dos
Estados Unidos eram a fonte de inspiração do Brasil 381, e elas tratavam o Judiciário como
um poder e davam grande espaço institucional para a Suprema Corte, como a guardiã da
Constituição, abarcando papéis além da aplicação da lei aos casos, como o controle de
constitucionalidade e a interpretação das leis. O posicionamento de Rui Barbosa 382,
concretizado na Constituição de 1891, não foi o defendido por Alcides Cruz.

Em outra abordagem que se afasta da doutrina norte-americana, críticas à


Suprema Corte americana são feitas por Alcides com base em sua história. Ele conhecia
casos como Dred Scott, que causou grandes críticas pela corte não aceitar julgar um
escravo que havia fugido para um estado no qual a escravidão era proibida e,
potencialmente, contribuiu para o início da Guerra de Secessão de 1861 383. Ele cita a
história da corte para afirmar que ela é considerada infalível apenas no estrangeiro, mas
sua história tivera momentos de envolvimento ruidoso com a política, e que ela não pode
ser considerada modelo em qualquer situação:

Como vê a Assembleia, as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos


não têm e não devem exercer sobre nós a autoridade que se lhes pretende
atribuir, e mormente o ilustre colega, e para corroborar a sua afirmativa lê
novos trechos, mostrando que a infalibilidade daquele tribunal afigura-se

377 CRUZ, 1911c.


378 Ibid.
379 CRUZ, 1914a, p. 45.
380 Ibid, p. 45.
381 "Passando a outra ordem de considerações, começa dizendo que o ilustre deputado dr. Joaquim Osório,
como todos aqueles que estudam as nossas instituições e procuram a interpretação exata de algum texto
constitucional, recorrem logo à Constituição dos Estados-Unidos, procurando derivar dela os princípios
do nosso direito". (CRUZ, Alcides de Freitas. Debates Parlamentares, 43ª Sessão Legislativa. Porto Alegre, 15
de novembro de 1909d).
382 "Os atos, que, justos ou injustos, acertados ou errôneos, não têm corretivo na ordem jurídica do regimen,
são aqueles, em que um poder constitucional, na órbita de uma autoridade incontestável, exerce uma
atribuição exclusiva, suprema, ou discricionária. Assim o Supremo Tribunal Federal, como a voz viva e o
último árbitro da Constituição, quando se pronuncia sobre a validade constitucional dos atos do Executivo
e do Congresso, discrimina os atos políticos dos não políticos, e traça a divisória entre os vários poderes
da União". (BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Trabalhos Jurídicos. Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1911. p. 141).
383 "Numa obra recente, do professor James Woodburn, The American Republic (1906), se nos não falha a
memória exaltada pelos louvores de outra conhecida autoridade, o sr. Ruy Barbosa, historiando as
ocorrências verificadas por ocasião do célebre caso Dred Scott, escreve que Lincoln considerava como
errônea essa decisão, “negando que o país estivesse obrigado a acatá-la, ambos, ele e Seward, acusavam o
Presidente da República (Buchanan) e o Chief Justice (Taney) de conluio, e não há dúvida de que, como
Presidente, Lincoln teria recusado submeter-se à decisão do Supremo Tribunal" (CRUZ, Alcides de Freitas.
A questão do “habeas-corpus” e o Presidente da República III. A Federação, Porto Alegre, 31 de março de 1911b).
159

muito grande só no estrangeiro, onde não chega o eco da ruidosa politicagem


que lá reina384.
Um segundo dado importante, separado doutrinariamente da posição
institucional do Judiciário, é sobre a atuação da magistratura em atos políticos. Alcides
Cruz defende a possibilidade de o Executivo resistir a decisões judiciais que adentrassem
no âmbito político. Não era um questionamento sobre o papel do Judiciário em causas
civis, comerciais ou criminais, como em geral não se questionou o papel nessas
competências. Fora da política, o Judiciário era reconhecido como legítimo e necessário
decisor - podia até se discutir a jurisprudência em seus méritos, esse é o papel dos
advogados e professores, mas não afirmava que o Judiciário deveria deixar de julgar
causas e aplicar a lei385. Por outro lado, havendo a decisão nas áreas restritas à política,
iniciavam os questionamentos sobre quais poderiam ou não ser apreciadas.

Alcides Cruz estava participando de uma discussão com quase um século no


Brasil, e naquele momento ganhara força novamente pela atuação do STF por suas novas
competências previstas na Constituição de 1891. Durante o Império, o movimento
pendera para afastar o Judiciário e reforçar o Poder Moderador e o Conselho de
Estado386. Durante a maior parte do período, até mesmo contratos firmados pelo
governo eram assunto reservado ao conselho, algo que atualmente seria inserido no
Direito Administrativo e o Judiciário seria responsável pelo julgamento ao menos em
questões não discricionárias. Só perto do fim do regime, o quadro começa a se
modificar387 e, na República, a possibilidade de atuação se desenvolveu ao longo de
décadas, lentamente, em favor do Judiciário verificando o que não eram consideradas
decisões discricionárias. Alcides escrevia durante parte conturbada da transição, pouco
após ocorrerem os embates de diversos grupos contra os presidentes militares. Sobre as
questões políticas, o posicionamento de Alcides pode ser visto já em um processo de
atenuação da posição adotada durante grande parte do funcionamento do Conselho de
Estado no Império, pois previa que parte dos atos do Executivo, os administrativos,
deveriam também ser decididos por cortes judiciais, ficando afastados apenas os
políticos. Ainda assim, era uma visão que restringia o Poder Judiciário e favorecia a
liberdade do Executivo:

É ponto unanimemente aceito e ensinado, sem discrepância, por todos os


mestres e tratadistas, que as variadas e múltiplas atribuições dos chefes de
Estado se exteriorizam, na prática, por uma série de atos, em última análise
reduzidos a dois únicos tipos – atos políticos e atos administrativos.
Se os da segunda natureza não são suscetíveis, tal a sua diversidade e
multiplicidade, de uma rigorosa enumeração, não sucede o mesmo quanto aos
primeiros.

384 CRUZ, 1909d.


385 Um caso de apreciação do papel de aplicador estrito da lei é o do mais relevante autor de Direito
Constitucional do Império, Pimenta Bueno: "A missão directa e fundamental devia dirigir-se a reconduzir
os tribunaes ao sagrado respeito da lei, á pureza e uniformidade de sua aplicação, a obedecê-la
religiosamente". (BUENO, Jose Antonio Pimenta. Direito Publico Bbrazileiro e Analyse da Constituição do
Imperio. Rio de Janeiro: Typographia Imp. e Const. de J. Villeneuve & C., 1857. p. 346).
386 LYNCH, Christian Edward Cyril. A Idéia de um Conselho de Estado Brasileiro: uma abordagem histórico-
constitucional. Revista de Informação Legislativa, v. 42, n. 168, p. 45-63, out./dez. 2005. p. 53-54.
387 GARCIA NETO, Paulo Macedo. O Judiciário no crepúsculo do Império (1871-1889). In: LOPES, José
Reinaldo de Lima (org.). O Supremo Tribunal de Justiça do Império: (1828-1889). São Paulo: Saraiva, 2010.
p.133. (Coleção direito, desenvolvimento e justiça. Série Produção Científica).
160

Em qualquer compendio de direito público, especialmente administrativo, não


deixará de vir uma sucinta referencia a todos os atos políticos.
Não há estudante do 5º ano da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre
que não saiba, por ter ouvido de nós mesmos, conforme se vê a p. 20 e 21 das
Noções de Direito Administrativo, que são atos políticos os concernentes à
ação e às relações exercidas pelos órgãos políticos entre si, e também os de
ordem política e constitucional feitos com o desígnio de ser mantida a unidade
política.
“Tais são [...]. SOBRE ESTES ATOS OS TRIBUNAIS
NENHUMA AÇÃO EXERCEM E, PORTANTO,
ESCAPAM A TODA A ORDEM DE RECURSOS”388.
Apesar da justificativa doutrinária e da discussão longa, o contexto é relevante.
As posições do STF sobre a intervenção nos estados e ampliação do conceito de habeas
corpus, dois temas políticos de grande repercussão na época, influenciavam diretamente
na atuação dos partidos estaduais389. Com essa posição, Alcides se aproximava do
pensamento de autores que participavam dos grupos políticos dominantes, que
frequentemente viam seus atos resistidos por meio dessas ações. Um exemplo
paradigmático é Campos Sales, o maior político do período e responsável pela
implantação da Política dos Governadores que regeria o cenário até 1930. Sales fora um
ardente defensor do Poder Judiciário e do STF na constituinte, mas nos anos seguintes
passou a defender a limitação dele para atuar em assuntos políticos - sobre isso, ver
Christian Lynch no estudo sobre a judicialização da política ocorrida no cenário nacional
da Primeira República390.

Para demonstrar como os posicionamentos podem ser relacionados às


questões contextuais do Poder Judiciário federal, há as críticas feitas por Alcides aos
membros do STF na 43ª Sessão Parlamentar, de 15 de novembro de 1909, quando se
discute a cobrança de impostos sobre o vencimento de magistrados. Ao questionar o
julgamento do STF, afirmou: "[q]ue importa a maioria se a sabedoria do Supremo
Tribunal, com franqueza, é escassa, porque os luzeiros do direito, excetuando Pedro

388 CRUZ, 1911b.


389 Sobre o tema, a tese de Andrei Koerner elaborou profunda reflexão. Um trecho específico é: "Vimos que,
para Rui Barbosa, os direitos civis não diziam respeito apenas aos indivíduos, mas à própria ordem pública,
a qual, fora da legalidade, transformava-se em tirania. Do mesmo modo, o habeas-corpus era um
instrumento da ordem pública, destinado não só a defender a liberdade individual contra prisões ilegais,
mas em geral a defender a liberdade constitucional dos cidadãos contra os atentados ilegais das autoridades
públicas". (KOERNER, Andrei. O Habeas-Corpus na Prática Judicial Brasileira (1841-1920). São Paulo, 1998.
Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito de São Paulo, 1998. p. 431-432).
390 "Na qualidade de Ministro da Justiça do Governo Provisório (1889-1891), Sales havia sido um dos
principais defensores da introdução da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal,
cuja neutralidade lhe parecia indispensável à preservação da forma ultrafederativa de Estado por que tanto
se batera sob a monarquia e que era e havia desde sempre sido a sua principal obsessão. Entretanto, ao
assumir a liderança do governo Floriano no Senado, Sales dedicou todos os seus esforços no sentido de
construir uma jurisprudência constitucional que permitisse ao Poder Executivo, por meio do estado de
sítio, enfeixar a maior soma possível de poder a fim de reprimir a oposição rebelde ou inconformada. Ele
abandonou a tese de que o regulador do regime deveria ser o Supremo Tribunal, para atribuir semelhante
função ao Presidente da República, entendido como vigilante ou sentinela do federalismo oligárquico. O
conservadorismo de Sales combinava assim interpretação ampliativa do estado de sítio (destinada à
repressão) e interpretação minimalista da intervenção federal (destinada a proteger as oligarquias
estaduais)" LYNCH, Christian Edward Cyril. Esforços de Judicialização da Política na Primeira República:
o voto vencido do Ministro Pedro Lessa no julgamento do Habeas Corpus nº 3.528/1914. Revista dos
Tribunais. São Paulo, v. 916, p. 27-28, 2012.
161

Lessa, Oliveira Ribeiro e Amaro Cavalcanti, lá não estão"391. Para ele, o grande saber
jurídico estava com os professores das faculdades, advogados notáveis e membros da
magistratura estadual392. E afirma que, mesmo sendo a posição minoritária e derrotada,
era preferível resolver o caso com o voto do Ministro Amaro Cavalcanti, pela sua
qualidade e pela compreensão que o autor tinha de impostos e de Direito
Constitucional393. Talvez pela repercussão das falas, cerca de um mês depois, em 18 de
dezembro de 1909, publica artigo n'A Federação afirmando que as críticas não eram à
magistratura em geral: "[...] não deixariam de concordar que os conceitos expendidos por
nós todos, naquele dia, não podiam visar senão a magistratura federal; tais foram as
claríssimas referências feitas. E basta considerar que só ela é que se tem manifestado
sobre o assunto debatido" 394.

Encerrando a sistematização do Poder Judiciário e sumarizando os achados


sobre a organização estatal, nota-se a consistência do autor nessa estruturação. Alcides
Cruz nega a existência dos poderes, haveria apenas um poder em cada soberania - um
Poder Público estadual e outro, federal. Esses poderes, únicos em suas esferas, tinham
órgãos aos quais eram atribuídas funções, como a legislativa, a executiva e a judiciária.
Ter essas funções não os transformava em um poder, permaneciam órgãos. Também se
observa uma tendência de fortalecimento do Poder Executivo em diversos momentos,
que não era isento de responsabilidade e nem avocaria as funções de outros órgãos, mas
teria seus atos menos vigiados se comparado com a posição de políticos que seguiam um
modelo mais próximo do constitucionalismo norte-americano e de fortalecimento do
Poder Judiciário. Uma passagem de muitos anos anteriores a essas discussões, 1897, na
qual ele discute a história inglesa e a compara ao seu ambiente, mostra elementos
importantes desse contexto:

Lembro-me de que li em Macaulay uma interessante passagem em que esse


poderoso historiador britânico, referindo-se aos clássicos partidos de sua pátria,
o whig e o tory, dizia que um representava as velas do navio e o outro o lastro.
Que eram os elementos indispensáveis: a vela para fazer o barco andar,
simbolizava o partido progressista; o lastro, o elemento de estabilidade, era
indispensável para fazer a embarcação suportar o temporal e simbolizava a
segurança: o partido da ordem.
Um completando o outro, eram forças necessárias à harmonia das instituições.
Nós, no Sul, não precisamos disso. O partido republicano é uma nau com
todos os seus aprestos: velame, artilharia e lastro395.
Alcides Cruz demonstrava posicionamentos que favoreciam o Executivo
forte.

391 CRUZ, 1909d.


392 "Também ele tem a coragem de dizer que o saber jurídico não está com a magistratura federal, mas com
os professores das faculdades de direito, os advogados notáveis e vários membros das magistraturas dos
Estados, sem contudo querer dizer que na magistratura estadual não seja muito regular o número dos
incompetentes. A prova está nos julgados do Supremo Tribunal, que constituem um acervo de
contradições". (CRUZ, 1909d).
393 Ibid.
394 CRUZ, Alcides de Freitas. A magistratura. A Federação, Porto Alegre, 18 de dezembro de 1909a.
395 CRUZ, Alcides de Freitas. Do Sul II. A Nação, São Paulo, 12 set. 1897.
162

6 Atuação estatal

A última etapa proposta para conhecer o pensamento político de Alcides Cruz


é seu posicionamento sobre a atuação estatal, o modo como deveria funcionar o Estado
e em quais áreas ele deveria intervir. O objetivo é concluir a pesquisa não com as
estruturas teorizadas por ele, mas com dados sobre seus posicionamentos concretos na
gestão do Estado.

No seu manual, Alcides aborda rapidamente essa questão quando relacionada


à saúde, mas apenas para afirmar que "[e'] um problema difficilimo, o de assinalar o papel
do Estado perante a mendicidade[...]"396. O melhor posicionamento teórico encontrado
é dado em uma discussão legislativa de 1913. Nela são narradas estruturas que parecem
mais próximas do positivismo ou, simplesmente, de implementação de um Estado de
Bem-Estar Social como começava a se desenhar na Europa e ocorreria, a partir de 1929,
também nos Estados Unidos. É notável a diferença em relação à passagem de Silvio
Romero, citada durante a análise de suas bases filosóficas, que defendia um estado com
o mínimo de poder e ingerência:

Não sigo certas doutrinas pregadas por economistas de autoridade, porém hoje
considerados retardatários que baseiam o seu programa na inflexibilidade da
fórmula - laissez faire, laisser aller. Segundo a orientação desses
economistas, a missão única do Estado é zelar pela ordem
no interior e no exterior pela segurança das fronteiras. O
direito público moderno, no entanto, não se satisfaz apenas
com a manutenção da força armada, com a aplicação da
justiça e o policiamento.
A política contemporânea, o desdobramento econômico e industrial sempre
novo criam outros deveres para o Estado sob múltiplos aspectos que o obrigam
a intervir em assuntos de outra ordem, por interessarem do perto essa
interdependência em que na sociedade se acham os indivíduos uns para com os
outros.
É isso que provoca essa nova missão dos governos
modernos, sob uma forma não expressa em leis, mas tácita,
no sentido de serem tomadas umas tantas resoluções que,
parecendo estranhas, dão lugar, como a atual, a que se diga
que estamos indo de encontro à Constituição397.
O contexto dessa afirmação é a criação de um imposto sobre a exportação de
gado e sobre bovinos abatidos durante a gestação. A discussão com outros deputados
versava sobre a conveniência do imposto sobre a economia estadual, e o aumento de
custos para o consumidor. Alcides Cruz não é a favor aumentar impostos em geral, mas
apoia a medida com base na ideia de que o Estado se vê diante de crescentes necessidades
e essa é uma das maneiras legítimas para viabilizar os recursos.

Alcides Cruz, em resumo inicial, não se apoia em uma expansão generalizada


do Estado, mas vê áreas específicas em que ele deve atuar. Uma melhor compreensão

396 CRUZ, 1914a, p. 246.


397 CRUZ, Alcides de Freitas. Debates Parlamentares, 50ª Sessão Legislativa. Porto Alegre, 9 de novembro de
1913b, Grifo nosso.
163

dessas afirmações, visto que ele não faz associação expressa com nenhuma linha de
pensamento, pode ser dada a partir do seu posicionamento sobre os impostos e porque
eles eram cobrados.

6.1 Cobrança de Tributos

O tema dos tributos é tratado por Alcides Cruz em diversos momentos -


quando ele trata do imposto sobre cerveja e tabaco398, sobre os vencimentos dos
magistrados399, sobre o abate de gado400, sobre o desmatamento e o imposto sobre
lenha401. Nessas oportunidades, aspectos diversos dos impostos foram abordados 402 e
elas poderiam render uma pesquisa específica. O tema aqui é a abordagem na atuação do
estado, então haverá restrição apenas aos pensamentos concernentes ao papel do
imposto na sociedade.

"O imposto é um instrumento da ação e do progresso social" 403, escreve


Alcides Cruz. Ele explica a colocação fazendo a leitura de um trecho escrito pelo
sociólogo francês Guillaume de Greef, professor da Universidade Nova de Bruxelas. De
Greef escreve sobre Spencer e Comte 404, cita-os como os representantes mais científicos
da sociologia de sua época405, os dois chefes das ciências sociais, mas afirma que Spencer
estava mais próximo da verdade apesar do protagonismo e da enorme importância do
trabalho de Augusto Comte406 sugerindo substituir a ideia de organização baseada na
ordem e no progresso pela ideia de organização e de vida de acordo com a biologia e a
interação entre organismos407.

Sobre os impostos, a citação feita por Alcides de De Greef foi a seguinte:

1° - O imposto, sendo o cumprimento de um dever social, todos os indivíduos


devem pagá-lo. 2º - Sendo o cumprimento de um dever social, cada um deve
pagar o imposto na medida de suas forças. 3º - Devendo ser pago segundo as
forças de cada qual, há uma tendência a concluir que para cobrar
equitativamente o imposto é preciso conhecer exatamente as forças de cada
qual. Deve-se ter em conta a situação pessoal de cada indivíduo, indagar se ele
tem dívidas ou não. Por outras palavras, os impostos devem ser tanto quanto
possível pessoais e não reais: os impostos reais, aqueles que não levam em conta
a situação pessoal do contribuinte, de suas dívidas, do seu encargo de família,
parecem injustos. Tal é, em particular, o caso dos impostos de consumo. 4º -
Pela mesma razão, o imposto deve ter em consideração a origem das rendas e

398 CRUZ, Alcides de Freitas. Debates Parlamentares, 24ª Sessão Legislativa. Porto Alegre, 14 de novembro de
1911e.
399 CRUZ, 1909d.
400 CRUZ, 1913b.
401 CRUZ, Alcides de Freitas. Debates Parlamentares, 18ª Sessão Legislativa. Porto Alegre, 11 de outubro de 1909b.
402 Como cobrar, quais geram efeitos sociais melhores (diretos ou indiretos), quais as últimas tendências para
a limitação de cobrança.
403 CRUZ, 1909d.
404 GREEF, Guillaume de. Introduction à la Sociologie. Bruxelles: Gustave Mayolez; Paris: Félix Alcan, 1886. p.
2, 5, 8.
405 Ibid, p. 8.
406 Ibid, p. 9.
407 Ibid, p. 10-19.
164

da fortuna do contribuinte. Aquele que aufere os seus rendimentos do seu


trabalho deve ser menos tributado que os que os tiram do seu capital (terras,
prédios, valores mobiliários[...]) outrora os governos se dirigiam, de
preferência, aos impostos de consumo porque, se dizia, o consumidor os paga
sem sentir408.
Alcides Cruz não cita outros fundamentos de De Greef naquele momento,
mas na obra do francês o fundamento dos tributos está no liberalismo e na defesa da
propriedade privada - "[l]e dévelopement de la proprieté privée coïncide avec une nouvelle forme de la
consommation publique: l'impôt"409. Afirma o professor francês que na medida em que o
poder supremo dos reis foi abolido e a propriedade passou a ser das pessoas, a sociedade
precisou estabelecer uma organização preocupada com os seus interesses de
desenvolvimento. Assim, ao governo foi progressivamente cabendo regular as despesas
sociais, buscar em que haveria interesse na utilização de recursos. Como as decisões
necessárias à organização social não cabiam mais ao monarca unilateralmente e ele não
arcaria com as despesas por recolhimentos feitos nos termos do antigo regime, a
sociedade cobrava impostos de seus próprios membros, dentro de condições adequadas,
para manter seu funcionamento e progresso 410.

Essa visão estabelece que os tributos não podem servir de meio para o fim da
propriedade privada, mas não estabelece que o Estado deva ter uma atuação mínima e,
sim, de acordo com os interesses da sociedade. Spencer, o grande inspirador de De Greef,
aposta na educação como meio de ensinar as pessoas a concorrerem por recursos na
sociedade. De Greef afirma sua esperança de que um dia ela pudesse ser feita inteiramente
pela sociedade e os profissionais da área, mas que naquele momento o Estado ainda tinha
um papel a cumprir411.

Essa é uma forma de estabelecer o pensamento de Alcides Cruz que será vista
a seguir. Evidencia-se uma aparente regra geral de limitada atuação na sociedade, mas há
diversos pontos em que ele acredita haver interesse estatal e, nesses casos, defende
impostos, obras, incentivos, leis reguladoras. Ele afirma, inclusive, que naquele momento
os Estados veem a necessidade de aumentar sua receita a cada ano, o que levava ao
aumento de impostos412.

Alcides Cruz afirma também que esse crescimento de despesas chegou a criar
monopólios estatais em nações modernas, voltados a cobrir as necessidades crescentes:

As nações modernas tendem a estabelecer vários monopólios e, num país cuja


administração o nobre deputado conhece melhor do que eu - a Alemanha - as
estradas de ferro são exploradas pelo Estado, o que se explica perfeitamente,
porque nos Estados modernos, onde os orçamentos de despesa cada vez
aumentam mais, se as rendas crescem, paralelamente crescem as despesas,

408 CRUZ, Alcides de Freitas. Debates Parlamentares, 26ª Sessão Legislativa. Porto Alegre, 17 de novembro de
1911f.
409 Tradução livre: "[o] desenvolvimento da propriedade privada coincide com uma nova forma de consumo
público: o imposto". (GREEF, 1886, p. 75).
410 Ibid, p. 74-76.
411 Ibid, p. 236-237.
412 A afirmação sobre o aumento progressivo de despesas é feito em uma discussão sobre aumento de taxação
de tabaco, no qual Alcides Cruz não teoriza longamente esse aumento de atuação estatal, mas afirma que
essa é a realidade e que melhor, pelos motivos apresentados, seria aumentar o imposto da cerveja. (CRUZ,
1911e).
165

donde a necessidade de procurar outras fontes de renda que não em novos


impostos porque os contribuintes não são inesgotáveis413.
Apesar dessa realidade descrita, há uma reticência com despesas novas. Ele
coloca que os gastos com a saúde eram uma questão difícil414 e mostra, por sua atuação,
que sua posição dependia bastante da análise individual das situações. Dois casos
específicos podem ser citados para defender essa percepção sobre a atuação: o primeiro,
sobre a subvenção ao Instituto de Belas Artes e o pagamento de passagens à Europa para
o aperfeiçoamento de Anna Rörecke415; o segundo, a proteção de florestas com a
possibilidade de criar um Código Ambiental para o Rio Grande do Sul 416.

6.2 O Pedido de Anna Rörecke

Germano Rörecke fez pedido para que sua filha, Anna Rörecke, recebesse
uma pensão para se aperfeiçoar na Europa no estudo da pintura. A Comissão de Petições
e Reclamações do parlamento deu parecer contrário, com base na falta de previsão na
Constituição do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891. No dia 29 de outubro de
1909, o caso foi retomado, e foi feita a leitura de uma proposta substitutiva, que
autorizava o governo do Estado a despender 2:400$000 anuais, na Europa ou no Rio de
Janeiro, caso entendesse que Anna merecia tal deferência. Citou-se o precedente de que
pedido semelhante fora aceito no passado, quando Olga Fossati recebeu apoio
semelhante417.

Diversos deputados participaram da discussão. A posição contrária, defendida


principalmente pelos deputados Armênio Jouvin e Luiz Englert, via na concessão
anterior uma ilegalidade pela falta de previsão constitucional. A concessão exorbitaria as
funções do Estado previstas na Constituição 418.

Um dos argumentos utilizados ao longo dela foi o de que o Rio Grande do


Sul pagava vinte contos de reis anualmente ao Instituto de Belas Artes local, contanto
que ele aceitasse dar instrução gratuitamente. A isso, um deputado não identificado
anuncia que o Instituto não possuía nenhum professor de pintura. Nesse momento, o
deputado Armênio Jouvin afirma que se ele não cumpria seus objetivos, deveria ser
encerrado419.

Alcides Cruz se posicionara logo no início da discussão pela correção da


negativa do auxílio por parte do Legislativo sem, no entanto, se posicionar sobre o
substitutivo que permitia ao Executivo concedê-lo se julgasse conveniente. No entanto,
afirma ele, isso não mudava o fato de que faltava ao Brasil o desenvolvimento das artes
e o Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul praticamente não existia. Após a fala

413 CRUZ, 1911f.


414 CRUZ, 1914a, p. 246.
415 CRUZ, Alcides de Freitas. Debates Parlamentares, 33ª Sessão Legislativa. Porto Alegre, 9 de outubro de 1909c.
416 CRUZ, Alcides de Freitas. Pela Preservação das Florestas de Encruzilhada (Excerto do ensaio Município
de Encruzilhada - Esboço Geográfico). In: Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para o ano de 1901. Porto
Alegre, 1900b e CRUZ, 1909b.
417 CRUZ, Alcides de Freitas. Debates Parlamentares, 33ª Sessão Legislativa. Porto Alegre, 9 de outubro de 1909c.
418 Ibid.
419 Ibid.
166

de muitos outros deputados e da crítica de Jouvin ao instituto, Alcides assume novamente


a palavra para uma intervenção longa. Ali ele afirma que a questão do financiamento ao
Instituto era uma questão de Filosofia do Direito. De fato, a Constituição de 14 de julho
não permitiria subvencionar esses estabelecimentos de instrução dentro da doutrina
estabelecida, mas interpretação constitucional não resolveria o problema 420.

Afirma ele que em sucessivas legislaturas, o Estado vinha se posicionando


constantemente no sentido de prestar auxílios a tais estabelecimentos e que os governos
estaduais que se sucederam não discordaram dessa prática. O Estado era alheio à
fundação e funcionamento de tais estabelecimentos, mas os socorria com concurso
pecuniário. No caso do pedido de Anna, ele via o assunto como um favor pessoal, não
uma medida geral, e que o Estado poderia excepcionalmente concedê-la se lhe parecesse
oportuno, não havendo nisso uma inconstitucionalidade 421, apesar de não ser, como
dissera o relatório, decisão do Legislativo.

Depois de Alcides Cruz, apenas Joaquim Osório se manifestou, contra o


substitutivo. Na votação, a visão de Alcides Cruz prevaleceu, o substitutivo foi
aprovado422.

Esses argumentos parecem reforçar a posição sobre o Estado e os impostos.


Alcides Cruz adota o posicionamento de analisar os casos de acordo com o seu conteúdo,
sem um posicionamento determinado previamente sobre a atuação estatal. Partia da
análise das normas jurídicas e da crença de uma intervenção estatal pequena, mas não
resolvia os casos com base nessas premissas. Enquanto reconhecia a falta de previsão
constitucional para criar um Instituto de Belas Artes, não era contra o desenvolvimento
de algo considerado importante para ele e, por isso, aceitava que o Estado concedesse
auxílios.

6.3 A Proteção das Matas e o Código Florestal

Três anos antes de falecer, Alcides Cruz afirma que há 20 anos vinha se
posicionando na imprensa e em debates sobre a necessidade de "conservação de várias
forças vivas da natureza", cita as matas, pesca, caça, e afirma que, para garantir essas
riquezas, haveria a necessidade de intervenção dos governos423. No anuário de 1900, treze
anos antes, ele afirmava a mesma necessidade, e propunha uma união pela defesa das
florestas que envolvia o restante da sociedade, ela deveria ser feita por meio de uma
"propaganda tenaz e ao alcance de todos", a ser mantida pela imprensa, professorado
público, sacerdócio, intendência e todos os que conhecessem os benefícios da
preservação e da silvicultura, esta última uma prática que poderia levar os proprietários
rurais e donos de matas a defender o patrimônio natural424.

420 CRUZ, 1909c.


421 Ibid.
422 Ibid.
423 CRUZ, 1913b.
424 CRUZ, Alcides de Freitas. Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para o ano de 1901. Porto Alegre, 1900a.
167

Quanto à atuação estatal, na publicação do anuário, ele afirma que a exposição


de motivos da nova Lei de Terras, feita por Júlio de Castilhos em 1897, na abertura da
Assembleia dos Representantes, mostrava como a questão estaria afeta também ao Poder
Público. Júlio de Castilhos fizera na oportunidade uma defesa das florestas, chamando a
atenção para os resultados nocivos e irremediáveis que a devastação constante e
imprevidente iria causar425. Alcides assume, portanto, a defesa da posição que encontrava
acolhida no Partido Republicano Rio-Grandense, que era a de regular a atividade privada
para defender um bem especialmente relevante para todos.

Em discussão parlamentar, em 1909426, o assunto é novamente abordado sob


a perspectiva da atuação estatal. Alcides Cruz afirma não haver competência do governo
estadual para legislar diretamente sobre florestas de propriedade privada pela redação da
Constituição, mas defende que fosse criada uma lei para regular aquela exploração no
estado por meio de tributos. As soluções dadas por Alcides Cruz, como se nota, unem a
atuação estatal e a ideia de informar a sociedade e levar os que detinham conhecimento
a atuar para defender as florestas.

Alcides Cruz, em suma, parece ver no Estado um agente de promoção de


determinadas pautas relevantes. A iniciativa deveria ser da sociedade quando possível,
mas não estava negada a possibilidade de atuação direta para alcançar fins importantes.
Esse posicionamento pode vir do positivismo vigente no Rio Grande do Sul, que tinha
características interventoras em relação à sociedade, atuando fortemente em diversos
temas, como a educação427.

Conclusão

Alcides Cruz foi um importante político, inserido nas discussões de seu


tempo, atento aos pensamentos produzidos na academia e ao ambiente político que o
rodeava. Seu pensamento estava próximo principalmente do positivismo, tanto de
Spencer quanto de Comte, e do constitucionalismo norte-americano. A pesquisa separou
seu pensamento em quatro partes, e a partir delas se verificou como o autor construiu
seus conceitos.

Na primeira parte, sobre filosofia e história, parece haver uma divisão. A


compreensão da sociologia de Alcides Cruz parece se encaminhar para o pensamento de
Herbert Spencer, de sociedade como um organismo vivo. As aulas que dava na Faculdade
Livre de Direito são a principal evidência inicial nesse sentido - a disciplina era listada
como a primeira a ser dada aos que ingressavam no curso, e ao final da primeira aula, os

425 Trechos do discurso de Júlio de Castilhos e um aprofundamento da questão da lei podem ser encontradas
em: MACHADO, Ironita Policarpo; FARIAS, Álisson Cardozo; SANTOS, Caroline Lisboa dos. A
Questão Florestal na Legislação Agrária Rio-grandense. MÉTIS: história & cultura, v. 12, n. 23, p. 177-
201, jan./jun. 2013. p. 182.
426 CRUZ, 1909b.
427 "A política educacional implementada pelos republicanos positivistas, na Primeira República, integrou uma
estratégia mais abrangente de ação do Estado, que atuou de forma interventora no âmbito da sociedade,
desenvolvendo uma série de políticas entre as quais teve destaque a relativa à educação [...]". (CORSETTI,
Berenice. Cultura Política Positivista e Educação no Rio Grande do Sul/Brasil (1889/1930). Caderno de
Educação. Pelotas, n. 31, p. 55-69, jul./dez. 2008).
168

alunos ouviriam sobre a Quadrupla Explicação do Universo e a Lei da Evolução. Quanto


à história, mormente quando resume a do Rio Grande do Sul, o pensamento de Augusto
Comte também se torna relevante, construir a história do Estado a partir da noção de
que ela, como em todas as outras sociedades, passou pela fase guerreira, metafísica e, por
último, científica é uma indicação forte, não bastasse a citação direta de Comte, ao lado
de outros, como autores necessários para se construir o único tipo de história, que ele
chama de "sociologia descritiva".

A segunda parte da pesquisa foi sobre os conceitos de democracia, liberdade,


representação, soberania, república e federação. Logo ao tratar dos dois primeiros,
Alcides afirma que eles estavam, recentemente, sendo reescritos pela sociologia. Apesar
disso, nesse momento do trabalho, o mais notável é a sua influência liberal norte-
americana. Os conceitos são feitos de maneira a estruturar um Estado semelhante ao
defendido por seu partido, com forte marca liberal daquele país. A defesa de que havia
soberania estadual nas federações, sobretudo, mostra sua proximidade com as discussões
vividas e a defesa das ideias que naquele momento moldavam a política brasileira.
Defendiam uma república federada com outorga de ampla liberdade aos estados-
membros e pouca intervenção da União.

A terceira parte, sobre a Separação de Poderes, representa um afastamento


relativo do pensamento norte-americano. Alcides Cruz não reconhece haver poderes,
eles seriam meros órgãos de um Poder Público existente em cada ente soberano. Desses,
ele vê no Executivo uma competência muito ampla, de iniciativa nas necessidades sociais
que ia além da mera execução de leis, de resistência aos outros poderes quando houvesse
entrada em suas prerrogativas. Nessas posições, ele se aproximava do pensamento
político que os positivistas tinham no Brasil. A defesa de um Executivo forte e, na
vertente comtiana, a existência de um estado promotor de atividades e interventor em
alguns campos sociais como educação e trabalho.

A quarta parte pesquisou as opiniões sobre a atuação do Estado na sociedade,


tanto em teoria, quanto em dois casos específicos - do Instituto de Belas Artes de Porto
Alegre e da proteção do meio ambiente por meio da criação de um Código Florestal.
Essa parte permite notar que Alcides não defende um estado puramente baseado no que
ele refere como laissez faire, laisser aller, marcado pela atuação apenas com a manutenção
das forças armadas, aplicação da justiça e realização do policiamento. Alcides Cruz não
defende uma atuação ampla, nota-se que ele propõe a educação e o engajamento de
membros da sociedade para encontrar solução, mas, se, afinal, o Estado precisasse
intervir em causas consideradas por ele importantes, ele não tinha uma restrição à
atuação. Nesse aspecto, também, ele estava próximo do positivismo tão forte no seu
partido.

O pensamento do autor está inserido nos debates e posições regionais e


nacionais. Sua admirável trajetória de vida, ainda que breve, mostra a capacidade de se
inserir no pensamento de seu tempo a despeito de qualquer dificuldade e ajudar a moldar
o pensamento político do Rio Grande do Sul.
169

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173

Jefferson Teles Martins*

O objetivo deste artigo é tentar responder parcialmente à seguinte questão:


quem era o Alcides Cruz intelectual no contexto da época? Procuramos responder a esta
pergunta a partir de uma perspectiva relacional, ou seja, levando em conta as relações e
as tomadas de posição de Alcides Cruz no pequeno universo da intelectualidade porto-
alegrense (e brasileira, em menor medida) com o recorte da última década do século XIX.
Desde já admitimos a exiguidade deste trabalho e o caráter provisório das respostas em
razão da brevidade da pesquisa, embora esta tenha sido facilitada pela reunião de fontes
no E-book Notas de leituras e outros escritos (2017), publicado pelo IHGRGS.

Do ponto de vista metodológico há algumas questões que merecem ser


explicitadas. Partimos da análise de alguns artigos de crítica literária produzidos por
Alcides Cruz para jornais e revistas da época. Nesses artigos selecionados, damos relevo
ao que Alcides Cruz fala de si, da sua relação com outros homens de letras e da
configuração do sistema intelectual brasileiro. Portanto, desnecessário dizer que se trata
de uma leitura que passa pelo olhar de Alcides Cruz.

Alertamos o leitor sobre alguns cuidados que estudos como este requerem e
suas limitações. Ao se analisar os artigos publicados em jornais e revistas, nos quais o
intelectual fala de si mesmo, é necessário ter em mente que os intelectuais, em geral, ao
utilizarem este tipo de escrita veiculada publicamente, estão conscientes de sua
capacidade de impor uma imagem de si mesmos aos outros que os ajude a conseguir um
“lugar ao sol” no campo das letras. Portanto, o risco que se corre (e o cuidado para que
isso não ocorra) é o do historiador comparar a visão das fontes e legitimar a imagem que
o intelectual queria fixar. A escritura de si pública e publicizada, nesse sentido, é como
um jogo de imagens recíprocas duplamente refletidas no espelho.

Porém, ao utilizar a visão ou representações de Alcides Cruz sobre si mesmo


e sobre o reduzido meio intelectual porto-alegrense do final do século XIX, não
estaremos procurando acessar ou evocar uma suposta realidade objetiva ou invariante.
Estaremos, sim, apreendendo os pontos de vista (as representações subjetivas) do
indivíduo a partir do seu lugar na estrutura das posições relacionais, pois o ponto de vista
é sempre relativo ao ponto no espaço social em que um agente se encontra no contato
com outros agentes e que se modifica ao longo do tempo. Essa perspectiva, conquanto
possua limitações, nos permite explicitar os conflitos cotidianos, individuais ou coletivos,
além de expor as múltiplas conexões entre o capital simbólico, capital social e capital
cultural; ainda pode servir como indício de uma certa configuração das relações sociais.

* Doutor em História pela PUCRS.


174

Alcides Cruz escreveu em 2 de maio de 1893 um interessante artigo de crítica


nas páginas de A Federação, por ocasião do recebimento de um exemplar com dedicatória
do livro Traços Cor de Rosa do poeta Zeferino Brasil. Naquela época era comum a reunião
de aspirantes ao universo literário em “grupos” ou “rodas” conforme afinidades eletivas
com indivíduos que compartilhavam, mais ou menos, os mesmos gostos literários (e até
políticos). Sandra Pesavento identificou Zeferino Brasil à geração da “boêmia literária”
do final século:

Nascida entre 1860 e 1880, essa geração viveu a Porto Alegre onde
recém nascia uma questão urbana. “Geração Correio do Povo”,
foi nas páginas deste jornal e no do Comércio, assim como também
através da Livraria Americana que ela encontrou, localmente,
publicação para suas obras. A boêmia literária de Otávio
Dornelles, Souza Lobo, Marcelo Gama, Pedro Velho e Zeferino
Brasil compunha com Mário Totta e Paulinho de Azurenha, os
“moços de talento” da época428.

A prática de remeter um exemplar de um livro recém-publicado a pessoas que


escrevem em jornais de grande circulação foi sempre um hábito comum entre escritores.
Essa prática se dava mesmo quando não havia vivas relações pessoais entre o remetente
e o destinatário. De certa forma, este último ficava obrigado a oferecer uma nota, senão
elogiosa, pelo menos de divulgação do novo trabalho. As benévolas dedicatórias faziam
parte do jogo de trocas sociais na busca por visibilidade. Os jornais funcionavam como
vitrinas onde podiam ser expostos os livros de autores novos. Estas relações envolviam
uma assimetria de posições, pois embora o jornalista não tivesse condições de emprestar
prestígio à obra ou conferir reconhecimento ao autor, no entanto, tinha o poder de dar
visibilidade ao trabalho. É importante não inferir qualquer fixidez nessas posições que
podiam inverter-se, pois no momento seguinte o antigo remetente podia ser o
destinatário, e vice-versa.

Alcides Cruz justificou o artigo dedicado aos Traços Cor de Rosa como “um
duplo dever”, primeiro “particular”, pois Zeferino Brasil, disse o jornalista, “teve a nítida
cortesia de oferecer-me um exemplar do seu recente livro, no qual quis ter a fineza de
dirigir-me uma benévola dedicatória”; e segundo, “porque o poeta é brasileiro”, e
acrescentou que seria “simpático labor o de registrar [...] o aparecimento das obras [...] de
autores nacionais”429. O referido artigo deu ensejo ao jornalista defender sua própria
expertise de crítico.

O que nos interessa destacar são as asserções de Alcides Cruz sobre o universo
intelectual porto-alegrense na primeira metade da década de 1890, e como ele se via
dentro daquele meio. Disse ele: “estou já bastante advertido [...] de que essa minha
teimosa resolução [de escrever sobre trabalhos novos] desagrada a outros escritores
conterrâneos”. Considerava as “censuras” que recebia em resposta ao seu labor de

428 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano - Paris, Rio de Janeiro,
Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1999. p.284.
429 CRUZ, Alcides.; IHGRGS (Org.) Notas de Leitura e Outros Escritos. Porto Alegre: IHGRGS, 2017. p.28.
Disponível em: <http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-
%20Notas%20de% 20leituras% 20e%20outros%20escritos.pdf>.
175

jornalista que se aventurava pela crítica literária, injustas e dadas em “termos ressumantes
[gotejantes] de má vontade”430.

Dizendo que seus críticos se dividiam entre aqueles que o consideravam


incompetente e aqueles outros que estranhavam o fato dele “escrever pouco” e “mal” –
com este último grupo e com ironia mal disfarçada, ele dizia concordar. Porém, quanto
à primeira acusação – a de incompetência – ele se insurgia com veemência. Assim, Alcides
Cruz fez a defesa de suas credenciais para a crítica literária listando todos os periódicos
nos quais foi colaborador desde que fez suas “primeiras armas” em A Luta, periódico da
Escola Militar, no ano de 1886, aos dezenove anos, a saber: O Atleta, O Contemporâneo,
Jornal do Commércio (do Desterro), 15 de Novembro (de Cachoeira), Folha da Tarde, Jornal, A
Federação e Folha Nova, além de alguns trabalhos de tradução431. A imprensa porto-
alegrense, que se mostrou vigorosa desde cedo no século XIX, constituía os jornais e
suas redações em espaços privilegiados de sociabilidades, trocas intelectuais e também do
surgimento de eventuais inimizades e críticas recíprocas. Assim, o trabalho na imprensa
era parte constitutiva do que era ser um homem público. Os jornais no século XIX eram
a principal arena de atuação desse homem, que não separava a atuação política da
atividade letrada, ora utilizando os jornais como tribunas para compartilhar seu
pensamento e ideologias políticas, ora como foro de discussão e crítica literária.

Alcides Cruz, naquele ponto de sua trajetória, combinava o trabalho de


“empregado público subalterno”, segundo suas próprias palavras, com a vida de
estudante de Direito432, dedicando o seu tempo livre para os trabalhos intelectuais. Pedia
que essas dificuldades fossem levadas em conta por aqueles que quisessem prestar alguma
atenção a sua “carreira de aspirante a uma modesta posição nas letras pátrias”. Essa
confissão de Alcides Cruz é importante, pois, era raro um intelectual admitir seu interesse
de maneira tão clara. O mais comum era dissimular o interesse para que a ação parecesse
desinteressada. Dessa forma, em geral, justificavam suas ações em nome do amor pela
cultura, pela pátria, pelas artes. Ele seguiu sua justificativa contra as “insinuações e
reproches” que lhe eram dirigidos, afirmando: “há muito rio-grandense que, em melhores
circunstâncias, tem feito menos do que eu”433.

É interessante observar que assim como Alcides Cruz foi funcionário do


Tesouro Público do Estado, Zeferino Brasil também trabalhou na mesma repartição,
indicando uma tendência constante na trajetória de intelectuais no Rio Grande do Sul e
Brasil de buscarem uma ocupação profissional nas atividades do serviço público.
Posteriormente, as trajetórias dos dois intelectuais se separam; Alcides Cruz migra para a
política, que se torna sua principal ocupação, mesmo sem nunca abandonar o jornalismo,
e Zeferino Brasil continua atrelado ao funcionalismo do Tesouro do Estado e dedicado
à poesia.

430 CRUZ, 2017, p. 28.


431 Ibid.
432 “Primeiro, Alcides Cruz foi funcionário da Estrada de Ferro Porto Alegre a Uruguaiana e depois passou a
funcionário do Tesouro do Estado, enquanto estudava para formar-se bacharel em direito na Faculdade
de São Paulo, onde ia prestar exames vagos na época própria, não podendo, então, durante os cursos
escolares dispensar nem se alhear das funções aqui de empregado público” (Anuário do Estado do Rio
Grande do Sul, 1917, p. 3).
433 CRUZ, op cit., p. 29
176

Ao final do artigo, Alcides Cruz fez uma breve análise do meio intelectual
porto-alegrense naquela quadra de 1890 e das condições que a cidade oferecia aos que se
dedicavam ao labor intelectual. Disse: “em Porto Alegre é muito difícil escrever-se”, e
acrescentou: “o meio onde se desenvolve o literato não pode ser mais adverso”. Para
sustentar sua avaliação listou todas as deficiências do ambiente: “a falta de bons livros,
que dificilmente pode ser sanada”; “a falta de convivência com pessoas de cultura
intelectual elevada”; “ausência de salões onde se faça boa música, onde o homem de letras
nesse mundo elegante e no convívio de senhoras de fino trato passasse algumas horas”
– que segundo ele ajudaria a “refinar o bom gosto e fazer adquirir ideias mais
significativas”434.

Porto Alegre, em 1890 (apenas três anos antes do artigo em análise ser escrito),
tinha 52421 habitantes.435 Em 1893 ainda não tinha nenhuma instituição de ensino
superior, sendo a primeira criada em 1895, a Faculdade de Farmácia. Em 1896, foi criada
a Escola de Engenharia, e posteriormente, em 1898 e 1900, a Escola de Medicina e a
Escola Livre de Direito, respectivamente. Por tudo isso, Alcides Cruz, considerava “um
forte” todo aquele que conseguia “escrever com aproveitamento” mesmo em face a “tão
infecunda arena”. Ao dizer isso, não apenas louvava os feitos literários de Zeferino Brasil,
o jovem poeta cuja obra poética estava em apreciação, mas também reivindicava seu
próprio valor (e esforço) na sua busca por uma “posição nas letras pátrias”.

Alcides Cruz também dialogava com o sistema intelectual brasileiro da época.


Em suas críticas literárias não ficou restrito aos autores sul-rio-grandenses, mas também
abordou autores e obras nacionais em jornais e revistas do centro do país como a Revista
do Brazil, de São Paulo. Nessa revista Alcides Cruz, em artigo intitulado Literatura
Brasileira, analisou o romance O Sertão, de Coelho Netto, onde, para ressaltar as qualidades
literárias do escritor maranhense, deixou entrever sua própria visão da literatura e do
realismo.

Seja que assunto for, escabroso, ousado, trivial, torpe ou disforme; seja tudo
isso ou parte, Coelho Neto enroupa-os de tal vocabulário de elite, velando uma
seleção de ideias tão bem combinadas, que o leitor não se enoja ou se irrita.
Este deve ser o ideal do realismo436.
No romance, duas tendências ou estéticas se mostravam dominantes: o
realismo e o naturalismo. Na poesia, o parnasianismo era dominante, secundado pelo
simbolismo. Na crítica ao livro de Zeferino Brasil, Alcides Cruz declarou que se
interessava muito mais pelo romance do que pela poesia. Para ele, o romance já
conseguira o que era “apenas vaga aspiração da poesia”, a saber: “por sua unidade de
Ideia e Estilo, ter atingido uma concepção, senão exata, pelo menos, aproximada duma
compreensão do que é a Vida [...]”437. Se para Alcides Cruz o romance estava à frente da
poesia, os poetas simbolistas haviam dado um passo adiante dos parnasianos
“procurando imprimir à arte um ideal mais amplo, mais bem orientado e um fim mais

434 CRUZ, 2017, p. 32.


435 (PESAVENTO, 1999, 263). Em 1900 já eram 73.647 habitantes. A década de 1890 foram anos de rápido
crescimento populacional em Porto Alegre. A população de Porto Alegre cresceu 40% somente naquela
quadra.
436 CRUZ, 2017, p. 35.
437 Ibid., p. 29-30.
177

geral”438. E alvitrava que os poetas brasileiros não deviam ficar estranhos a “esse nobre
movimento” da poesia de “tomar uma direção geral, um fim elevado” 439.

Ainda na seara da crítica literária, Alcides Cruz analisou o romance Quincas


Borba, de Machado de Assis. Ele via os romances machadianos como sendo
“humorísticos, filiados à escola inglesa contemporânea da rainha Anna, século XVIII,
representada por Sterne, Henry Fielding, Swift, Tobias Smollet, etc.”440. Esse traço da
obra de Machado de Assis seria retomado por outros trabalhos de crítica como em
Machado de Assis, um estudo sobre o humor (1912), de Alcides Maia. Destacou o estilo original
e a personalidade própria de Machado de Assis, que consistia, segundo Alcides Cruz, em
fixar “a impressão mais forte no ânimo do leitor” pela repetição de termos que davam
“um sangue tão quente e escarlate” ao estilo 441. A esse respeito escreveu:

o estilo do sr. Machado de Assis fulge preferentemente devido à habilidade do


jogo e da transposição das palavras a propósito de uma ideia ou de uma
situação, ainda que a escolha do vocábulo cantante, raro e sonoro, que ondule
a frase, trabalho de poesia e escultura, não seja a exclusiva preocupação do
artista; e, reconhecendo-se que é ao estilo tão propriamente adaptado à sua
índole humorística, que ele consegue fecundar um campo tão pobre como o da
ação dos seus romances, poder-se-á concluir que a expressão verbal,
corretíssima, rica e bem ajustada ao fundo da obra – é o grande tom, não o
único, da sua personalidade literária442.
A um só tempo reconhecia o tom artístico e humorístico do escritor
fluminense que aliado à verve propriamente literária conferiam a Machado de Assis a
qualidade de romancista com “extraordinários dotes de exposição” 443.

De acordo com a perspectiva sociológica de Alcides Cruz, ele julgava que


Machado de Assis não podia ser conhecido como um romancista de costumes, mas sim
um poeta. Dizia que o livro em apreço não poderia “ser consultado como acessório para
a História da Sociedade Brasileira do século XIX”. Não era um romance de costumes.
Segundo sua concepção, a estética de Machado de Assis admitia que “o romance não tem
a missão de substituir a obra científica, porque, no dia em que ele for sociologista,
rigorosamente sociologista, perderá o cunho artístico”. Fez uma contraposição da obra
de Machado com o romance O Cortiço, de Aluízio Azevedo, que fora publicado havia dois
anos. Lembrou a afirmação de Arthur Azevedo, irmão de Aluízio, de que a maioria dos
prosadores brasileiros escolhia os bairros do Catete e Botafogo, no Rio de Janeiro, como
o ambiente onde se desenvolviam os seus romances. E era nesse meio que Machado de
Assis circunscreveu as atividades de seus personagens. Entretanto, segundo Alcides Cruz,
o conjunto desses bairros nobres “cuja opulência, magnificência e costumes dos
moradores, foco da fina sociedade elegante, e ambiente onde se criam todas as
necessidades da vida moderna, não pode ser tomado como o documento primordial do
costume brasileiro” (CRUZ, 2017, p. 14). Por outro lado, como se sabe Aluízio Azevedo
ambientara seu romance fora da cena burguesa do Rio de Janeiro, o que daria crédito ao

438 CRUZ, 2017, p. 30


439 Ibid., p. 30.
440 Ibid., p. 12.
441 Ibid., p. 14.
442 Ibid., p. 10.
443 Ibid., p. 14.
178

seu trabalho para desenhar os costumes da sociedade brasileira do século XIX, de acordo
com a visão de Alcides Cruz. Por fim, pontifica:

o caso do sr. Machado de Assis é bem nítido: o autor é um poeta e está


acostumado a idealizar, tendo já escrito excelentes poesias, como a Mosca azul,
e novelas puramente de ficção, como a Igreja do diabo, As academias de Sião,
Conto alexandrino, etc., onde de nenhum modo colabora o documento
humano, tão estreitamente utilizado pelo naturalismo444.
Na mesma Revista do Brazil, Alcides Cruz abordou alguns aspectos do romance
brasileiro no artigo chamado A nossa prosa recente. Justificou que não queria dar a impressão
de que trataria sobre a literatura brasileira do último período, pois sua intenção era apenas
falar sobre livros de prosa, deixando de abordar a poesia. E mesmo dentro deste recorte
não trataria de todos os romances vindos a lume nos últimos doze meses daquele ano
"porque de dez livros editados de São Paulo para o norte, oito medrosamente receiam o
agreste bafejo do inclemente minuano que soe soprar rijo através dos pampas do extremo
sul do país”, explicou445.

Essa afirmação de Alcides Cruz lança alguma luz sobre um aspecto de difícil
mensuração para o historiador contemporâneo. Fica claro que não era fácil a circulação
dos livros nacionais produzidos no centro do país no espaço regional. Muito do acesso
que Alcides Cruz tinha sobre a literatura produzida no centro do país se devia ao fato de
que ele ocasionalmente viajava para São Paulo, a fim de prestar exames para o curso de
Direito da Faculdade de São Paulo, onde bacharelou-se. Por conta de uma alegada doença
de pele não pôde residir em São Paulo durante seus estudos. No entanto, isso não o
impossibilitou de trabalhar na Estrada de Ferro Porto Alegre-Uruguaiana, durante o
mesmo período.

Alcides Cruz fez a defesa da literatura nacional contra as desdenhosas


insinuações de críticos nacionais ao que era produzido no Brasil sob a acusação de
imitação da literatura francesa. Para ele, os críticos nacionais se negavam a aceitar o que
chama de "leis da imitação" no processo de desenvolvimento das literaturas nacionais.
Assim chega a uma questão mais profunda: de saber se existia "entre nós uma literatura
nacional". Tentando responder a essa pergunta ele afirma:

Nossa literatura [...] como a de todos os países cujo caráter individual do


habitante ainda está dependente das várias obliterações devidas à superposição
e amálgama de raças diariamente admitidas para povoamento do solo requer
extrema cautela no exame das respectivas questões conexas; e no domínio de
ideias cosmopolitas difundidas pelo comércio, pelos livros estrangeiros, pelas
revistas, pelas modas e pelos usos de outras terras, não conseguindo de pronto
fixar sua vida regular, própria e distinta, terá de ir refletindo toda a transição
que ora atravessamos; o contrário disso é um absurdo; a literatura não pode
preexistir à conquista que o homem brasileiro ainda não conseguiu 446.
Em suma, dizia que responder a essa questão do surgimento da literatura
nacional implicava lidar com a problemática anterior ainda não resolvida da constituição
da própria nacionalidade brasileira. Ele levanta dois pontos que provocavam esse atraso

444 CRUZ, 2017, p. 14.


445 Ibid., p. 41.
446 Ibid., p. 41.
179

na fixação de um caráter nacional próprio e distinto: o primeiro, de natureza demográfica


e ao mesmo tempo cultural. De fato, à época o Brasil abolira a escravidão havia pouco
mais de uma década, e, além disso, estava recebendo vários contingentes populacionais
de outras nações pelo fluxo imigratório, que tornavam o processo de amálgama cultural
ainda mais complexo; o segundo, no campo da circulação de ideias, que chegavam de
fora difundidas pelo comércio, livros, revistas, modas, costumes de outras terras. Tudo
isso, justificava, segundo ele, o estado da literatura nacional e a tendência dos escritores
nacionais para a imitação de outras literaturas.

Ainda discorrendo sobre o mesmo tema, Alcides Cruz cita Hutcheson


Macaulay Posnett447, que foi um pioneiro no estudo da literatura comparada. Alcides
Cruz embasa seu pensamento na obra de Posnett, onde defende que Inglaterra e França
eram “os únicos tipos perfeitos de nacionalismo literário 448. À vista desse juízo, defendeu
que era uma utopia querer naquele momento uma literatura nacional brasileira. Então,
abordou um ponto mais crítico: a preponderância do Rio de Janeiro sobre a produção
artística e cultural do país:

E não podemos mesmo acrescer que, enquanto o centro produtor por excelência
localizar-se quase que exclusivamente no Rio de Janeiro, centro fatalmente
cosmopolita, as ideias primordiais da literatura do país hão de acusar
constante cosmopolitismo? E menos há de colimar-se o caráter nacionalístico
quando os centros de produção irradiarem simultaneamente (se tal suceder
algum dia) de Belém, de Fortaleza, de Recife, de S. Paulo, de Porto Alegre[...]
Enfraquecido o espírito centralizante há de refletir as ações e os pensamentos
da gente dessas longínquas e, entre si, desconhecidas terras449.
Sua visão estabelece certa homologia entre os campos literário e político da
época. Defendeu o federalismo literário em consonância com o federalismo como
princípio de autonomia política dos estados que era uma bandeira do Partido
Republicano Rio-grandense, onde Alcides Cruz cerrava fileiras sob a liderança de Júlio
de Castilhos. No ano seguinte – 1900 – outro jovem jornalista que à época ainda não
estava integrado ao PRR, chamado Alcides Maia, lançou o livreto Através da Imprensa, no
qual defendeu a mesma ideia: “ao federalismo político, definitivamente triunfante,
corresponda o federalismo literário. Evitemos a centralização das letras. O Brasil não
pode ser, em estética, uma dependência da Capital Federal”450. O princípio federativo era
visto como suporte para a unidade nacional, enquanto que a centralização era apresentada
como um fator centrífugo que alimentava as veleidades separatistas.

447 Hutcheson Macaulay Posnett, advogado e professor Irlandês-Neozelandês. Nasceu em 1855 e morreu em
1927. De 1885 a 1890, Posnett ocupou a Cátedra de Clássicos e Literatura Inglesa, na Universidade de
Auckland, na Nova Zelândia. Seu livro Comparative Literature, publicado em 1886, é considerado o trabalho
pioneiro nesse campo de estudos (BOLDOR, Alexandru. Perspectives on Comparative Literature. 2003.
Dissertação (Mestrado). Lousiana State University, 2003. p. 36).
448 CRUZ, 2017, p. 42.
449 Ibid., p. 42.
450 MAIA, Alcides. Através da Imprensa. Porto Alegre: [s.n.], 1900. p.95.
180

Conclusão

Este breve artigo procurou recuperar o perfil intelectual de Alcides Cruz no


início de sua carreira. O que se depreende do estudo é que ele era um homem articulado
ao sistema intelectual e político da época, com uma lógica profissional e que aspirava a
uma “posição nas letras pátrias”. Dialogava com a produção cultural local e do centro do
país. Jovem possuidor de sólida cultura pela leitura de autores estrangeiros e nacionais
conseguiu estabelecer relações entre estes e aqueles apresentando sua visão particular. A
precoce erudição adquirida pelos estudos e leituras contumazes fez de Alcides Cruz um
crítico arguto capaz de identificar as filiações e influências literárias, bem como a
personalidade artística dos autores que analisava, como fez no caso de Machado de Assis.

À medida que Alcides Cruz falou de si em seus artigos em jornais e revistas


deixou entrever sua visão sobre o modesto universo cultural porto-alegrense e, também,
o padrão sociocultural que valorizava: o gosto burguês refinado. Aspirava a um meio
social que refletisse e inspirasse cultura.

Há ainda muitos outros lados da personalidade e carreira de Alcides Cruz que


não foram contemplados neste artigo e mereceriam atenção. Um deles é o Alcides Cruz
historiador, outro é a conexão entre a atuação literária e a jornalístico-partidária. Enfim,
há espaço para novas pesquisas e descobertas sobre essa personalidade cujo estudo ainda
pode lançar mais luz sobre a história social, política e intelectual sul-rio-grandense do
período final do século XIX e décadas iniciais do XX.

Referências

BOLDOR, Alexandru. Perspectives on Comparative Literature. 2003. Dissertação (Mestrado).


Lousiana State University, 2003.
CRUZ, Alcides.; IHGRGS (Org.) Notas de Leitura e Outros Escritos. Porto Alegre:
IHGRGS, 2017. Disponível em: <http://www.ihgrgs.org.br/ebooks/ Ebook%20-
%20ALCIDES%20CRUZ%20-%20Notas%20de%20leituras%
20e%20outros%20escritos.pdf>
MAIA, Alcides. Através da Imprensa. Porto Alegre: [s.n.], 1900.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano - Paris,
Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1999.
181

Parte 2
Produção Intelectual
e
Discursos Parlamentares
Assuntos Políticos
A Federação, Porto Alegre, 18 ago. 1892

Literatura e Política
A Federação, Porto Alegre, 23, 24, 28 jan. e 9 fev. 1893

Do Sul (I e II)
A Nação, São Paulo, 10 e 12 set. 1897

O Divórcio no Rio Grande (Notícia)


Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 29 out. 1898

Pela Preservação das Florestas de Encruzilhada


Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para 1901, Porto Alegre, 1900

Da Satisfação do Dano no Juízo Criminal (I, II, III, IV e conclusão)


A Federação, Porto Alegre, 14 out., 8, 10 14 e 22 nov. 1904

O Problema Jurídico da Satisfação do Dano


A Federação, Porto Alegre, 31 jan. 1905

Discurso na Romaria ao Túmulo de Júlio de Castilhos


A Federação, Porto Alegre, 24 out. 1910

A Questão do “Habeas Corpus” e o Presidente da República (I, II, III e


IV)
A Federação, Porto Alegre, 29, 30, 31 mar. e 1º abr. 1911

Júlio de Castilhos
A Federação, Porto Alegre, 29 jun. 1911

Dr. Graciano Alves de Azambuja


Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para 1912, Porto Alegre, 1911

Questão de Limites entre os Municípios de Conceição do Arroio e Santo


Antônio da Patrulha (Decisão Arbitral de Alcides de Freitas Cruz, proferida em
14/5/1912)
Archivo Judiciario, Porto Alegre, mar. 1913
183

A Carestia da Vida (I e II)


A Federação, Porto Alegre, 8 e 11 mar. 1913

A Nova Lei Eleitoral (I, II, III e IV)


A Federação, Porto Alegre, 10, 11, 13 e 24 jun. 1913

Questão das Águas do Ribeiro


A Federação, Porto Alegre, 3 jul. 1913

Discurso no Grêmio Gaúcho


A Federação, Porto Alegre, 22 set. 1914

Discurso Comemorativo aos 25 Anos da Proclamação da República no


Theatro São Pedro
A Federação, Porto Alegre, 17 nov. 1914

O Picadeiro da Brigada (parcial)


A Federação, Porto Alegre, 1º dez. 1914

O Caso do Estado do Rio (Intervenção Ilegal; A Intervenção)


A Federação, Porto Alegre, 5 e 8 jan. 1915
184

LITERATURA E POLÍTICA
(A Federação, Porto Alegre, 23, 24 e 28 jan. e 9 fev. 1893)

Summer Maine, na sua análise à Constituição Federal dos Estados Unidos,


apensa ao Ensaios sobre governo popular, alude a um romance americano de nome Democracia,
que, sendo uma sátira, aplicada às instituições daquele país, agitara singularmente os
espíritos preocupados pela política.

O só fato da referência feita por um homem de ciência da estatura do grande


jurista inglês e o título da obra, bastante para despertar a curiosidade de quem deseja
cultivar certa ordem de estudos dependentes da ciência social, induziu-nos a lê-la.

Da demorada e calma leitura através daquelas trezentas e vinte e tantas páginas


de uma negligente edição barata da casa Plon & Cia., de Paris, acudiu-nos à mente repetir
uma vez mais, agora que se procura estudar certos textos da nossa Constituição, os já
muito velhos conceitos referentes à ainda hoje difícil interpretação que se possa dar à
forma de governo que se conhece pelo tradicional título de “democracia”.

O romance, que é exclusivamente calcado sobre costumes americanos, foi


editado em fins de 1883, simultaneamente em Nova York e em Londres; o autor, não
obstante ter guardado o mais rigoroso anonimato, deixa perceber que seu único intento
foi esculpir em alto relevo as tendências da democracia americana para a imitação dos
feitos da aristocracia europeia, os vícios que já corroem aquele novíssimo organismo
político, tão deploravelmente como os que solapam as vetustas sociedades de além-mar;
e, por fim, deixar à inteligência do leitor a dedução dos pontos cardinais que os princípios
sobre que repousam as instituições americanas divergem dos que emanaram da revolução
francesa.

Democracia é um trabalho feito à maneira que os franceses chamam à la clef, no


qual cada figura traz uma máscara que oculta a feição de um personagem verídico. No
prefácio, o tradutor francês, que também é anônimo, declara que a obra, tanto na América
como na Europa, produziu ruidosa sensação, já sob o ponto de vista literário, já sob o
ponto de vista político, e cuja energia repercutiu por todos os jornais e revistas.

Como romance na acepção absoluta do termo, é trabalhado sem a menor


preocupação de escola, como todas as obras produzidas pela literatura extralatina,
questão secundária para a crítica contemporânea que só tem de se ocupar com os sinais
característicos da manifestação da obra d’arte, que bem pode ser fruto da escola realista
ou da psicologista ou da decadista, etc.
185

Logo após a leitura das primeiras páginas, o leitor conhece-se conduzido por
sutilíssima inteligência marcada por extraordinária perícia na arte de dialogar; por astuto
e sagaz conhecedor das leviandades e natureza particularmente coquete das mulheres;
por malicioso observador da vida do homem político: juntem-se a essas qualidades
primas de um grande observador a espontaneidade e extraordinária verve que flamejam
no diálogo, e ter-se-á a prova de que não é só o romance gráfico francês que preenche
satisfatoriamente a exigência do leitor moderno.

A peça, intensamente tanto pode evocar por meio da descrição, como por
meio do diálogo, como por meio da análise. Na literatura anglo-saxônica, desde séculos
agora distantes, a grande força evocatriz das peças românticas ou dramáticas resulta a
cada página, por meio desse processo puramente parlante, repetido pelo personagem que
se reduz ao papel de transmissor do pensamento do autor; além disso, o mesmo fato
determina a linha divisória que limita essa literatura da oriunda da corrente galo-céltica,
porque nesta o tempo, a ação, o lugar são aproveitados para assinalar tudo quanto
interessa à vida humana, constituindo um doce e largo acessório para o complemento da
obra de arte.

O profundo amor pela natureza fica sendo, pois, o indício mais importante da
tendência da literatura meridional.

II

Ausente e anêmico o enredo, todo o frêmito de vida brota da abundância de


truques e pequenos incidentes que degeneram a súmula da lição ora numa cena de
opereta, ora num episódio trivial, comuníssimo, porém que o romancista salga com as
mais quentes cores do seu humorismo que cintila de princípio a fim da obra, numa
progressão de chamas cada vez mais ardentes, tornando a ação, no conjunto, tão viva
quão variada na diversidade de aspectos tanto sombrios, como nuançados, como
luminosos, que projeta em infinitos reflexos a esfera em que se desenvolve o assunto do
romance Democracia.

Para melhor acentuar documentadamente o que dissemos, citemos algumas


passagens em que o autor diabolicamente diverte-se em humorizar a vida íntima dos seus
principais personagens:

Trata-se de uma jovem senhora, americana, viúva, opulentamente rica,


instruída e aventureira – que se chama Magdalena Lightfoot Lee, viúva de Lee, família
importante, cujo nome acha-se ligado à História. Depois de uma viagem, longa e
proveitosa, a toda a Europa, veio residir definitivamente no seu país natal, que ela
pitorescamente apelidara a terra do petróleo e dos porcos, escolhendo a cidade de
Washington a fim de poder estudar de perto o mecanismo político-administrativo da
União.

Imediatamente travou relações de amizade com John Carrington, político e


advogado de ruidosa nomeada, então empobrecido pelos acontecimentos que se
186

seguiram à Guerra da Secessão, em que ele, natural da Virgínia, combateu ao lado dos
escravagistas.

Parente do marido de Mrs. Lee, e orgulhoso da descendência dos Lee, recebeu


a Mistress com o maior alvoroço, tratando logo de pô-la ao fato dos sucessos da política
dominante. Seu primeiro cuidado foi levá-la ao Senado Federal no dia em que discursava
Silas Ratcliffe, senador por um dos Estados do Oeste, e alcunhado o Gigante da Campanha,
também célebre orador e prestigioso chefe político. Em Washington era tão procurado,
recebia tão insistentes empenhos para obter colocação para os seus correligionários, por
tal forma roubavam-lhe o tempo necessário à concertação de seus planos políticos, em
cuja maquinação era exímio, que o senador achou um meio de dispor semanalmente de
duas horas para realizar seus desejos: era frequentar, aos domingos, a igreja e, durante a
missa, achando-se só, refletia a gosto, sem importunações.

Como eloquência, dizia-se que era rival de Clay, Calhoum e Webster, os


maiores oradores americanos; como influência política, basta dizer-se que por três votos
deixara de ser candidato do seu partido à presidência da República, e essa defecção dera-
se unicamente “porque dez pequenos intrigantes são mais malignos que um só grande
intrigante”.

Fora abolicionista e isso criara-lhe o sólido préstimo de que gozava no Oeste


do país.

Quanto ao físico, era um brutamonte, um gebo, e tão inculto nos modos como
na maneira de viver.

Um dos seus mais audaciosos rivais era Carrington, que por fim também não
deixava de amar Mistress Lee, e, percebendo esta mesma disposição em Ratcliffe, a mútua
antipatia entre um e outro dos convivas da casa da atrevida ianque redobrou de ponto.

Deu-se então um fato muito comum na vida dos homens públicos: fazer uso
da habilidade de modo a desarmar o inimigo por meio de uma comissão que o inibisse
dos combates jornaleiros, sempre perigosos para quem serve de alvo.

Ratcliffe, então, ministro das finanças, serviu-se do mesmo processo que o


presidente da República praticara para consigo, e, nomeando Carrington para diretor
geral do contencioso do tesouro federal e, depois, em seguida a uma recusa, para uma
comissão ao México, conseguiu o meio de tirar-se da dupla e difícil posição política e
amorosa em que se achava.

A passagem acima referida, e que se dera entre Ratcliffe e o presidente, fora


muito fina.

Como já se sabe, Ratcliffe dominava todo o Oeste da confederação, e o seu


majestático prestígio valera-lhe o cognome de Gigante da Campanha.

Por essa razão, não tendo sido eleito presidente da República, devido a uma
intriguinha partidária, aquele que realmente o tinha sido devia com justíssima razão temer
187

qualquer desagrado de tão poderoso correligionário desgostoso; e também, diz o ditado,


que não há pior inimigo do que um amigo desajeitado.

O novo presidente estava em vésperas de inaugurar a sua administração;


Ratcliffe, na manhã do domingo precedente, dispôs-se a estudar que atitude deveria
guardar em face do que se ia dar. Assim, enquanto o pastor celebrava o ofício na Igreja
Metodista Episcopal, não tanto pelas convicções religiosas, mas porque, muito em parte,
um grande número dos seus eleitores ia à igreja, e ele, senador, precisava dar-lhes uma
prova de concordância de sentimentos, pensou em impor ao presidente a nomeação de
certos cidadãos do seu partido para cargos de ministros; e, o alvitre aceito, mais uma vez
confirmar-se-ia. O acerto de quem inventara a seguinte significativa sentença: que Ratcliffe
tinha laçado o presidente, pelos cornos, antes que o bom velho tivesse tido tempo de respirar.

Sua grande habilidade consistia em evitar calculadamente as questões de


princípios. Como ele próprio confessava espertamente, o que ele procurava obter não era uma
questão de princípios, mas sim uma questão de poder.

O novo presidente, recentemente eleito, entrara na vida política como britador


de pedras numa pedreira, origem de toda a sua carreira e que agora muito o orgulhava
(Não irá aqui uma feroz alusão ao finado presidente Abrahão Garfield, de honrosíssima
memória?[...]).

“Na Convenção Nacional do partido, nove meses antes, depois de muitas


dezenas de escrutínios sem resultado, nos quais não tinham faltado senão três votos de
maioria a Ratcliffe, seus adversários fizeram o que ele próprio procurava fazer
presentemente: puseram de lado seus princípios e escolheram para candidato um simples
camponês do estado da Indiana, cuja vida política, toda ela, resumia-se a alguns discursos
pronunciados au plein air e às funções de governador do seu Estado nativo. A escolha
nele recaíra, não porque os eleitores julgassem-no apto para desempenhar os encargos da
suprema magistratura, mas porque esperavam, desse modo, subtrair do domínio de
Ratcliffe a Indiana.”

Durante a campanha eleitoral, as extraordinárias circunstâncias do candidato


eleito tinham ocupado largamente a atenção pública.

Chamavam-no “o Quebrador de Pedras do Wabash 1”, outras vezes “o


Cavouqueiro da Indiana” e, sobretudo, de “Velho Granito”.

Com o que, porém, Ratcliffe não contara era que o “Carreiro da Indiana”
mostrara-se mais astuto do que ele – escolhendo-o para ministro das finanças!

Essa resolução muito lhe facilitou o desempenho do horroroso cargo, porque


qualquer negócio importante para o qual o presidente não se julgava com capacidade para
resolver enviava ao secretário das finanças. “Um visitante pedia alguma coisa para si ou para
outrem, a resposta era invariavelmente: – Dirija-se ao sr. Ratcliffe, ou: Eu penso que o sr.
Ratcliffe estudará isso.”

1 Wabash é um rio em Indiana. (N. A.)


188

Ratcliffe era, pois, de fato, o primeiro ministro e o cérebro pensante da


administração do presidente Jacob.

Desembaraçado da oposição de Carrington, operação laboriosa, em que mais


uma vez a sua astúcia não o traiu em sucesso final, o ardente ministro foi se
encaminhando por uma via verdadeiramente alegre e gloriosa. Vagarosamente, com
resolução, também foi se emancipando da rudeza campônia, e os cuidados por uma
toalete elegante e digna da sua posição iam-lhe preocupando a atenção.

A esposa do presidente não era menos bordalenga que o marido: logo à


primeira visita que Mrs. Lee lhe fez, à Casa Branca, foi de uma grosseria tão insolente
como cheia de ingenuidade e gandaíce. Desembestou tremenda objurgatória contra
certos costumes da capital, que lhe pareciam extraordinariamente perversos; falou com
veemência das modas usadas pelas senhoras de Washington e afirmou que faria todo o
possível para deter esses excessos; tinha ouvido dizer que havia mulheres que
encomendavam vestidos a Paris, como se a América não fosse bastante hábil para os
confeccionar! Mas consolava-a a promessa do marido, que lhe falara em promulgar uma
lei contra o abuso. Na sua cidade natal, na Indiana, ninguém dirigiria a palavra à jovem
que trajasse tais vestimentas!

Mrs. Lee instintivamente pensou de si para si que nem para cozinheira quereria
semelhante cidadã.

Entretanto, há nesse romance uma figura muito excepcional e admirável pela


escassez do gênero: é o barão Jacobi, diplomata búlgaro, sempre de bom humor, porém
temperamento irônico, espírito ferino até o último excesso, não obstante a
impassibilidade habitual.

“Os sarcasmos de Jacobi e a grosseria de Ratcliffe foram causa para que,


pouco a pouco, fossem deixando de falar-se e contentassem-se em se olhar como dois
cães de porcelana”.

Carrington, que jurava obstar o casamento de Ratcliffe com Magdalena Lee,


no que era bem apoiado por Sybilla Ross, irmã dessa, quando soube da boa disposição
de parte à parte, forneceu à irmã da outra um documento, escandaloso e decisivo, que
resumia em si a maior arma contra a probidade do ministro da fazenda, visto como se
tratava de um indecoroso suborno que lhe fizera, mediante cem mil dólares, uma
companhia de navegação com o propósito de obter do senado uma subvenção.

Na verdade, Magdalena, sabedora da patota, sem demora renunciou o


projetado matrimônio, não obstante as artificiosas escusas do famoso estadista. Ratcliffe,
provocado a explicar-se, relatou que a eleição presidencial realizada oito anos atrás fora
renhidíssima, a força dos partidos era igual; entretanto, fosse como fosse, custasse o que
custasse, era urgente que o seu partido derrotasse o adversário, que tanto contribuíra para
ensanguentar o solo da pátria. Gastou-se dinheiro copiosamente, sem conta; no quê? Ele
próprio ignorava – tudo era entregue ao Comité Central Nacional, em cujo nome tomaram-
se empréstimos. O resultado foi que, num belo dia, o chefe do Comité, precedido de dois
senadores, apresentou-se a Ratcliffe, no sentido de lhe prevenir da necessidade, em nome
189

dos interesses do partido, de cessar a oposição contra a pretensão sustentada pela


companhia de paquetes a vapor. O resto é fácil de deduzir-se.

Terminada a entrevista com Mrs. Lee, em que o projeto de casamento ficou


absolutamente desfeito, na rua deu-se uma importante cena de carnaval agarotado:
Ratcliffe e o barão Jacobi encontraram-se a dois passos da porta do palacete de Lee; “um
só olhar lançado sobre o senador bastou ao barão para adivinhar que algum mau sucesso
tivera lugar na carreira desse estadista, cuja fortuna tanto desprezo sempre lhe inspirara.
Com o pior dos sorrisos, o barão estendeu a mão ao senador dizendo-lhe da mais azeda
das maneiras:

– Espero poder oferecer as minhas felicitações a V.Exa.

Ratcliffe sentiu-se feliz por achar uma vítima sobre que desabrochasse a sua
cólera”.

Com um simples gesto, o senador rejeitou-lhe a mão e, detendo-o pelo ombro,


lançou-o fora do caminho. O barão, que não era homem para sofrer insultos, estava-lhe
ainda a mão de Ratcliffe sobre o ombro, já a sua bengala vibrava o ar, e, antes que o
ministro tivesse podido defender-se, recebia-a violentamente em pleno rosto. E iam
prosseguir no pugilato – que teve em Washington a truanesca e ululante repercussão de
um escândalo sem qualificativo – quando, de uma outra parte, reconheceram os
contendores as posições oficiais que ocupavam e refrearam-se.

Os outros personagens mais simpáticos são Lord Shye, correto e apreciável


gentleman, embaixador da Grã-Bretanha, Lord Dunberg, hóspede da embaixada britânica,
o senador French, Papoff, adido à legação russa, o deputado Gore, etc.

Das mulheres, destacam-se Sybilla Ross, irmã de Magdalena, e miss Victoria


Dare, “que sussurrava como os ventos e as torrentes”, com absoluta indiferença pelo que
dizia e a quem se dirigia. Quando falava de algum assunto ousado, afetava uma ligeira
gagueira e se dava um ar de langorosa simplicidade. Dizia-se em Washington que ela não
valia melhor que as piores, que constantemente violava todas as regras de conveniências
e que tinha escandalizado todas as famílias honestas da capital federal. Era pequena e
encantadora, qualidade que a fazia tolerada.

Suas ambições e pretensões não tinham limites; queria casar a todo o transe,
porém com indivíduo de posição elevada. Da sua requintada perversidade deu exemplo
uma vez que, indo a um piquenique em Mount Vernon (residência habitual do general
Washington), confessou que não podia respirar um ar tão puro, e acrescentou que o
general purificava tudo que tocava, e as outras, inclusive ela, pareciam manchar tudo o
que tocavam! Sua principal preocupação era desposar Lord Dunberg, para se tornar lady,
condessa senhora do castelo de Dunberg, na Irlanda[...]

E era democrata? Republicana, filha da burguesia industrial da União?

Assim são todas as suas patrícias que representam um papel saliente na


sociedade americana, e é esse um dos característicos da futura crise das ideias das
190

condições de igualdade, do nivelamento de classes e de outras ilusões que andam paralelas


a uma falsa concepção de democracia.

E todo o intento do romancista foi marcar indelevelmente a propensão que


reina nos Estados Unidos em se imitar o que se passa nas cortes europeias, já
ridicularizando as de estirpe menos elevada, que conseguem altos cargos na
representação, já frisando os rasgos de ostentação digna de uma república onde
predominam os Vanderbiltts e outros decamilionários.

Como já anunciamos ao encetar esta publicação, o romance recomenda-se


antes de tudo pelo sal do humorismo que lhe aduba as melhores páginas do que pela
profundeza da análise dos caracteres, o fulgor das descrições e o fantasioso colorido do
estilo, arquitorturado, sacrificado e fatigante das obras recém-publicadas em França.

Resta-nos fazer a síntese das conclusões morais, formulando, então, não com
dogmatismo ou pretensão a doutrinamento, porém com os secos dados da observação
de um crítico, alguns princípios gerais a respeito da forma de governo que tem o nome
de democracia.

Por mais de uma vez, no correr desta publicação, temos nos referido que o
literato-político, autor do romance, não teve outro intento senão evidenciar, à luz da
literatura, os costumes de certa parte da sociedade americana e como a tão preconizada
democracia não é o governo que concretiza formalmente as ardentes e visionárias
esperanças dos jacobinos; a delenda Carthago da exploração dos demagogos ignorantes,
que só sabem explorar a paixão dos anarquistas desejosos do amotinamento; ou a Terra
da Promissão antevista pelos ideólogos.

A leitura do romance em questão nos não moveu da convicção que temos –


que a democracia não passa de uma forma de governo, e que os Estados Unidos, do
mesmo modo que o Brasil, segundo se depreende de uma leitura das respectivas
Constituições Federais, são, não há dúvida, democracias de natureza especial.

Difícil circunstância, entretanto, surge ao iniciar-se qualquer exame em certa


ordem de matérias, como a presente, que, participando da sociologia, andam cercadas de
várias ideias admitidas a priori e que, não sendo antecipadamente removidas, ocasionam
grande confusão. Entre essas ideias, em Direito Público há algumas a que frequentemente
se alude, tais como a Democracia, a Soberania do Povo, a Liberdade, etc., que exprimem coisa
diversa do que se lhe atribuía até pouco tempo.

Em face dos mais recentes estudos, porém, os publicistas chegaram à


conclusão, definitiva, talvez, de que a Democracia nada mais é do que a forma de governo
na qual, perante a lei, são reconhecidas todas as condições de igualdade, e a Liberdade, a atribuição do
governo ao que lhe é severamente necessário para o desempenho da lei; de onde se infere que, sob
pena de se confundir com a Anarquia, a Liberdade não é a faculdade possuída por
qualquer indivíduo para fazer o que bem lhe parecer sem o impedimento de nenhuma
lei.
191

No caso vertente, pois, a ideia de Igualdade resume-se no direito que assiste à


qualquer cidadão que acumule as qualidades concedidas pelo uso dos direitos civis, de
desempenhar funções administrativas, dando-se, pois, a exclusão do privilégio de casta.

O caso dos Estados Unidos é exatamente, pela força de circunstâncias que lhe
deram origem, o que melhor se presta para elucidar a questão.

A História Política desse país já nos ensinou como a república foi uma forma
de governo adotada com o constrangimento e contra a vontade dos fundadores dessa
nacionalidade.

Na época em que surgiu o primeiro sintoma de desagregação da metrópole, a


situação social dos Estados Unidos era um tanto singular.

A contar do meado do século passado, por efeito das obras filosóficas e


demolidoras de Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Quesnay, etc., em França, Hartley e
Hume, na Inglaterra, e Kant, na Alemanha, começou a lavrar um grande espírito de
revolta contra instituições seculares, tais como o Estado e a Igreja, e certas ideias sobre o
homem em geral, abertamente declarado pela tendência à emancipação e abolição do
pulso guante dos governos absolutos.

Em tal estado de excitação, fácil fora estalar as hostilidades contra uma


metrópole suserana a que a colônia nada devia e perante a qual nem sequer tinha
representação. Facilmente obtida a independência, seus patriarcas, no entanto, tremeram
diante o quadro rubro – de carnificina e de incêndio – oferecido pela revolução francesa,
estranho espelho no qual nenhuma nação podia inspirar-se para consumar sua
organização política.

Ora, dava-se o fato de aí não haver aristocracia reconhecida pela Inglaterra,


composta de elementos bastante poderosos para que um dos seus representantes
aventurasse-se a se coroar rei.

Assim, não havia remédio senão optar pela República; porém, como esta
estava com os créditos muito avariados, foi mister revesti-la de normas conservadoras,
emprestadas da pragmática britânica.

E foi a esse espírito reconhecidamente conservador, sabiamente introduzido


nesse pacto orgânico, que a forma republicana deveu o restabelecimento dos créditos,
estatuindo definitivamente o princípio de que a forma de governo eletivo é a
incontestável tendência da evolução das sociedades civilizadas.

Se fatos quiséssemos acumular para reforçar o que acima assinalamos com


respeito à índole conservadora da heroica geração que produziu a independência
americana, bastava referirmo-nos às tentativas, aliás, sem sucesso, para a criação de um
partido aristocrático, em plena república, e ao empenho em prolongar no governo,
sempre que era possível, os mesmos presidentes. De Washington, que inaugurou em 1789
a série de presidentes eletivos, até 1837, em que o general Jackson deixou a administração
superior, os presidentes Washington, Jefferson (1801), James Madison (1809), James
192

Monroe (1817) e Andrew Jackson (1829) foram todos reeleitos findo o primeiro
quatriênio administrativo.

É certo que o segundo presidente, John Adams, não foi reeleito – mas seu
filho John Quincy Adams foi eleito presidente.

Agora não se diga que semelhante república conservadora não seja uma
democracia; que nome poderíamos, pois, a não ser este, dar a uma república, onde todas
as funções governamentais são eletivas?

DO SUL
I

(A Nação, São Paulo, 10 set. 1897)

Os intrépidos republicanos paulistas certamente já tiveram conhecimento de


que o apoio dado ao governo federal pelas duas facções politicantes que se debatem no
Rio Grande, ingloriamente, contra o benemérito dr. Júlio de Castilhos e o partido de que
é chefe emérito o ilustre general Glycério, não pode ser um apoio honroso e digno,
porque as tais agrupações não constituem partidos: são verdadeiros matizes de um
ajuntamento faccioso.

Isto que sempre dissemos nós, os republicanos, acaba de ser confirmado pelos
próprios federalistas (maragatos) e pelos próprios dissidentes (marangunços, prudentistas ou
nórmicos), numa curiosa contenda que os vai dilacerando em terríveis refregas diariamente
travadas.

A origem da rusga foi, é público, o fracasso da projetada fusão dos dois


grupos, absurdo já demonstrado em anteriores tentativas.

Após o fiasco coligacionário, A Reforma estampou artigo sensacional


epigrafado Dissecando cadáveres, em que reduzia os nórmicos ao seu justo papel. Por seu
turno, a resposta não se demorou, e A República replicou, com veemência, denominando
o partido federalista de partido moribundo.

Assim travou-se o escandaloso prélio, que teve a vantagem de ratificar a


veracidade das acusações que o partido republicano fazia a tão mesquinhos adversários.
193

Vão aqui os seguintes admiráveis fragmentos da opinião recíproca com que


os dois partidos que apoiam o sr. Prudente saudaram-se mutuamente:

Diz A República:

“O partido chefiado por Silveira Martins é um cadáver, porque nada mais


pode dar; porque a sua vida seria a ressurreição de um passado mau; porque o seu triunfo
seria uma derrota para o regime presidencial, que nós queremos nacionalizar de todo,
alterando-o no sentido de afeiçoar-se às modalidades populares e não ofender as
conquistas liberais”.

_______

“Não somos fanáticos; nem estão em nossos hábitos os ataques individuais.


Somos inteiramente emancipados desse vezo, que julgamos, além de falso, condenado;
pois que aos nossos sentimentos repugnam inteiramente essas práticas perniciosas, que
ora alimentam a exacerbação do ilustre redator do órgão gasparista.

Se fôssemos partidários dessa teoria contraproducente e má, teríamos,


certamente, campo vasto para analisar a vida[...] pública do sr. Gaspar Martins, sem,
todavia, nos remontarmos aos tempos da Joana louca e de Pedro mentecapto; nem à época
posterior em que ele abjurava suas ideias democráticas, colocando-se ao serviço da Mulher
perdida e do Pedro demente, para fazer jus ao cargo vitalício que este lhe oferecia como
mordaça.”

Contesta A Reforma:

“DISSECANDO CADÁVERES – Prossegue em sua faina inglória o


talentoso redator da folha cassalista, e desta vez acolitado por outro, que enche coluna e
meia para elevar às nuvens o sr. Cassal, notável estadista, orador sem par, guerreiro
emérito, plumitivo exímio e[...] chefe dissidente alijado por motivo pouco honroso.”

O distinto redator gastou meia coluna a declamar sobre minha pessoa.

Afinal escreveu:

“Não fuja o sr. Maximiliano do ponto principal da questão; não olvide com
tanta pressa, com ardor tão desusado, quais as nossas opiniões acerca do seu partido DESDE
OS TEMPOS MONÁRQUICOS.”

Logo após, o moço parece dar a entender que julga o sr. Gaspar imperialista.

Se desde os tempos monárquicos estavam os dissidentes convencidos disso,


são traidores da República, eu já o disse.
194

Traidores porque votaram num imperialista para deputado à Constituinte


estadual; traidores, porque apoiaram a revolução de que esse homem era a cabeça;
traidores, porque procuraram unir-se a um partido que ele dirigia e continuaria a dirigir
de fato; traidores, porque, ainda depois de ler a sua carta, pouco favorável à fusão,
Homero procurou ainda entrar em acordo por intermédio de um nosso amigo, e Antão
quis escrever a Silveira Martins, concitando-o a chegar a um acordo e abrindo mão da
preponderância dos dissidentes no diretório do novo partido.

_______

“S.Exa.2 via com íntimo contentamento o chefe da nação apenas defendido


entre nós por um grupinho desnorteado, sem amor às ideias, cheio de ambição e de
vaidade, tendo por norte o poder e, como meio de alcançá-lo, intrigas políticas, cartas de
namoro e até a corrupção.

O dr. Castilhos ria-se da pose dos políticos engraçados, para os quais ser
evolucionista é brigar com amigos por questões de nonada, andar embaçando os chefes
federalistas, não escrupulizar quanto aos meios de empolgar o mando, girar como cata-
vento, voltando-se para um e logo repelindo-o, conforme o acha ou não capaz de servir
de escada para eles subirem.

Esses evolucionistas sui generis divertiam o sr. presidente, fazendo, na corda


bamba em que se mantêm, evoluções de clown e manobrando a maromba dos partidistas
obcecados pela ambição de governar.

Não inspirava receio a S.Exa. a atitude hostil daquela grei filosofante, que
empurra para a frente o velho e bom Spencer, quando precisa provar que Silveira Martins
é menos evolucionista que o filancioso Antão e o incompreensível Cassal”.

_______

Enfim o escritor dissidente elogia os seus amigos, por haverem rompido com
o dr. Castilhos!

Das duas uma: ou aquela cisão era imposta pelo dever cívico e republicano,
ou não.

2 Refere-se ao dr. Júlio de Castilhos. (N. A.)


195

No primeiro caso, são criminosos os chefes Homero, João Francisco, Assis


Brasil et reliqua, por haverem continuado ao lado dos que “falseavam a doutrina
republicana”; no segundo, erraram os srs. Cassal, Antão e Demétrio.

Se os últimos são que representam o verdadeiro pensamento dos liberais,


porque A República ataca a revolução que eles apoiaram?

No caso contrário, confessemos que há ali uma liga de elementos híbridos, de


apoiadores e inimigos do comtismo, de adeptos e adversários de revoluções: logo, é justo
augurar para a dissidência a morte prematura, como a do P.R.F., tanto mais que ela existe
há sete anos e nada tem crescido.

Demais, a conduta posterior dos cassalistas, o empenho por empolgar o


mando tantas vezes manifestado de modo indiscutível provam até a evidência que o sr.
Cassal e amigos erraram o pulo, não romperam por desprendimento pessoal e amor às
ideias, julgavam garantida a popularidade do ferido arruaceiro de 13 de maio, criam fácil
esmagar o sr. Castilhos; mas iludiram-se e iludiram-se vergonhosamente.

Foi muitíssimo maior a soma de apodos trocados entre os ligueiros, entre


esses comediantes, tristes boêmios de feira, que vivem au jour le jour das conveniências de
corrilho, no mar encapelado das vicissitudes inerentes a uns desclassés cujo voto, mesmo
os dos mais arrogantes, não é seguro: entretanto o que aí fica transcrito é suficiente para
se ter uma ideia de que constam os soi disant partidos prudentistas no Rio Grande, tal qual
se explicaram eles próprios.

_______

Confirmam-se as notícias telegráficas referindo que indivíduos suspeitos de


monarquismo brasileiro percorrem a fronteira Argentina do rio Uruguai, comprando
armas e munições. Na semana passada estiveram no Salto, em Payssandu e na Conceição
do Uruguai. Atualmente andam por Libres e Alvear, cidades argentinas que ficam
defronte às nossas de Uruguaiana e Itaqui. As autoridades republicanas os vão vigiando
de perto.

Já devem achar-se eles em S. Thomé, que fica fronteiro a S. Borja.

O eminente presidente do Estado, a quem com imenso motivo denominam a


sentinela da República no extremo sul, é constantemente informado do que se trama lá para
aquelas regiões de além-limites.

_______

O inverno persiste com um rigor pouco comum; as árvores, despidas de


folhagem, erguem seus ramos esguios, como que pedindo ao céu um pouco mais de
196

clemência; o vento, quase todo ele soprado do sul ou sueste, canta e assobia; as chuvas,
em frequente queda, encharcam as ruas, barretam os veículos, a roupa, o trânsito público,
e fazem os rios e os regatos transbordar alagando tudo.

Mas como o frio é a temperatura que melhor faz viver-se, quando a chuva
cessa e o minuano, a salutar ventania do oeste, das pampas, alcança esta terra modesta e
operosa, o céu clareia, descobrindo um formoso azul de pintura antiga, e as porto-
alegrenses, do meio-dia às três horas, vão para a rua, para o sol vivificante, ostentando
esse bem conhecido carmim natural com que a estação fresca lhes tinge o rosto.

_______

De livros novos apenas dois apareceram e que, por agora, limitar-nos-emos a


assinalar:

O Rio Grande, por Alfredo Varela.

Obrigações, exposição sistemática desta parte do direito civil pátrio, por Lacerda
de Almeida.

DO SUL
II

(A Nação, São Paulo, 12 set. 1897)

Ainda a polêmica entre prudentistas. – O dr. Júlio de Castilhos e a


colônia italiana. – Crimes. – Propaganda hábil. – Vox veritatis e eu.

A Reforma é o órgão do partido parlamentar gasparista, federalista, maragato


ou que mais outro nome tenha.

A República, folha nórmica, dissidente, cassalista ou não sei mais quê[...] menos
órgão de bons republicanos, é o outro diário que apoia o governo federal.

Ora, a questão não é tão simples como parece: ambos os partidos


representados por esses jornais apoiam o governo do bom homem de Piracicaba. Porém,
197

essas agrupações digladiam-se ferozmente no terreno agreste da rixa pessoal e


causticante.

De modo que, posta a questão dentro do cadinho de apuração da verdade,


resulta que os amigos do dr. Prudente, uns parlamentaristas e outros presidencialistas, o
que fazem é um completo trabalho de anulação mútua.

Podia transcrever, fiz como na outra missiva, tópicos de veementes artigos


trazidos por A Reforma, sob a epígrafe Dissecando cadáveres, em que se diz que a facção dos
srs. Homero Baptista, Cassal, Antão de Faria, Moacyr e Demétrio é “um partidinho
composto de saltarins”, sem coesão nem prestígio, nem eleitores; apenas ávido de graças,
de gozos e de patentes da Guarda Nacional.

Por seu turno, A República, em escritos sob os títulos Partido moribundo, A


questão do moribundo, etc., profliga acirradamente a incoerente e sibilina conduta política de
Silveira Martins e seus sequazes; recordam-se os tempos de seu entusiasmo por Joana a
louca e seus arroubos quando declarava no Senado do Império: “Procura ser correto nestas
formas parlamentares, PORQUE JÁ TEVE A FRAQUEZA DE SER ENTUSIASTA
DO PARLAMENTARISMO, do qual já se vai desiludindo, sobretudo quando reflete nas muitas
condições necessárias para constituir um homem político”.

Como se vê, a questão toda incide entre cadáveres e moribundos, sendo que o
moribundo é o antepasso dado para se chegar a cadáver.

Logo, o que temos diante de nós, republicanos, é um campo semeado de


cadáveres políticos a empestar o ar, mas cujo trabalho de saneamento vai caber, como
está cabendo, no partido republicano de que são chefes os senhores Glicério, Júlio de
Castilhos e Pinheiro Machado.

Lembro-me de que li em Macaulay uma interessante passagem em que esse


poderoso historiador britânico, referindo-se aos clássicos partidos de sua pátria, o whig e
o tory, dizia que um representava as velas do navio, e o outro, o lastro. Que eram os
elementos indispensáveis: a vela, para fazer o barco andar, simbolizava o partido
progressista; o lastro, o elemento de estabilidade, era indispensável para fazer a
embarcação suportar o temporal e simbolizava a segurança: o partido da ordem.

Um completando o outro, eram forças necessárias à harmonia das instituições.

Nós, no Sul, não precisamos disso. O partido republicano é uma nau com
todos os seus aprestos: velame, artilharia e lastro.

Mais de uma borrasca assaltou-a, e de todas desembaraçou-se chegando a bom


porto.

Por enquanto, aqui apenas há lugar para um só partido.

O L’Italiano, conceituado e importante órgão da progressiva colônia italiana


no Rio Grande do Sul, em seu último número, traz um importante artigo editorial,
198

recomendando aos seus patrícios o nome do preclaro dr. Júlio de Castilhos para o cargo
de presidente da República.

Não me pronunciarei quanto ao conhecimento desse nobre alvitre; na


qualidade de membro militante que sou do partido de que é chefe o eminente cidadão, o
dever é aguardar a palavra dos demais chefes, representados pela convenção que ainda
não se reuniu.

O fato, o que tem de significativo, é patentear o quanto se impõe dia a dia


aquele simpático estadista à estima e à consideração das classes produtoras – quer
nacionais, quer estrangeiras.

_______

Alguns crimes praticados por audazes bandidos, entre os quais destaca-se o


assassinato do inditoso casal Capote, não ficarão impunes.

De todos os que a imprensa registrou, cercando vários deles de circunstâncias


rocambolescas, já os autores foram descobertos e devidamente postos na cadeia.

A chefatura da polícia acha-se investida na pessoa de um distinto paulista – o


major Cherubim Fabeliano da Costa, natural de Sorocaba.

É um republicano bravo e impoluto. Como homem de ação, prova o seu valor


exibindo sua fé de ofício, adquirida durante o tempo da revolta, onde se bateu ao lado
dos generais Lima e Pinheiro Machado.

_______

Um espírito altamente culto e emancipado, o dr. Graciano Alves de


Azambuja, autor de várias publicações científicas muito estimadas, descobriu um meio
vantajoso e profícuo para obter que na região colonial do Estado observe-se a
conservação das florestas.

Na zona alemã, Piedade (Hamburgo), Bom Jardim, Hortêncio, S. Salvador,


Nova Petrópolis e Travessão, não se cuida só de preservar a mata: os colonos já tratam
de replantação.
199

Mas o que também muito concorre para incutir no ânimo dessa população
agrícola a vantagem da silvicultura é a prédica tenaz e convincente dos jesuítas, que têm
um prestigio imenso nessa região.

Mas quem lhes despertou esse estímulo foi o homem erudito a que acima me
referi, o dr. Graciano.

_______

Já que falei em jesuítas, aproveito a oportunidade para uma explicação pessoal,


se me permitem os senhores Redatores d’A Nação.

Quando ultimamente estive em São Paulo, escrevi dois artigos a respeito das
conferências anchietanas aí efetuadas com inexcedível brilhantismo em o ano anterior.
Meu intento, aliás, era antes o de referir-me a uma obra da lavra do eminente historiador
Araripe Júnior, prestes a ser publicada, do que às próprias conferências de 96.

Nessa ocasião, também falei, aliás incidentalmente, de uns famosos opúsculos


anchietanos que aí foram distribuídos, sob o pseudônimo de Vox Veritatis.

Era natural que me coubesse, como a quem quer que seja, o direito de ocupar-
me de qualquer publicação lançada à tona da publicidade.

Cerca de um mês mais tarde, quando já me achava em Porto Alegre, havia


muitos dias, recebi um número do Diário Popular, edição de 20 de agosto, em que pela
secção livre, Vox Veritatis, com quem absolutamente não receio medir-me, seja em que
discussão for, joga-me um longo aranzel em que nem sempre é guardada a linha de boa
urbanidade.

Não lhe responderei; porque quando me referi ao seu trabalhinho, assinei meu
nome: saí ao campo sem máscara alguma.

O contendor reincide, mas, como sempre, acobertado pela armadura que inibe
o autor de assumir a responsabilidade do que escreve.

Eu, porém, é que lhe não posso atender porque não discuto com anônimos.
200

O DIVÓRCIO NO RIO GRANDE3


(Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 29 out. 1898)

Os nossos colegas do Diário Popular publicam o seguinte:

“Vimos uma carta expedida do Rio Grande do Sul em que se descreve o


incidente da moção Haslocher na Assembleia dos Representantes.

– Numa das sessões foi apresentada a moção contra o projeto de divórcio


defendido pelo dr. Erico Coelho, no Congresso Federal.

O deputado dr. Alcides Cruz pediu a palavra e levantou a preliminar de


inconstitucionalidade.

A Constituição estadual, não permitindo à Assembleia tratar de legislação civil,


ipso facto proibia de enviar moções ao Congresso sobre tal assunto. Firma-se na autoridade
de Cooley, dizendo que, em direito constitucional, prevalece o princípio – como toda a
Constituição significa uma outorga de poderes, tudo o que não vem explícito ou
declarado é vedado.

– A preliminar caiu e a moção passou aprovada por três votos.

Se tivesse entrado mais tarde, não conseguiria ser aceita, porque muitos
representantes ainda estavam ausentes.

Pode-se dizer que a maioria do partido é favorável ao divórcio.

Na Assembleia sabe-se que são seus partidários muitos representantes, não


obstante doze representantes serem adversários.

Vê-se, pois, que o ato da Assembleia rio-grandense não pode ter o alcance que
os impugnadores do divórcio lhe pretendem dar”.

3 Apesar de não ser um texto de Alcides Cruz, mas uma notícia veiculada no Rio de Janeiro, é algo singular,
pois se trata de uma das primeiras manifestações de Alcides Cruz, como deputado, que se conhece
201

PELA PRESERVAÇÃO DAS FLORESTAS DE


ENCRUZILHADA
Excerto do ensaio MUNICÍPIO DE ENCRUZILHADA – Esboço
Geográfico

(Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para o ano de 1901, Porto Alegre, 1900)

A nossa simpatia pelo município de Encruzilhada não pode ser posta em


dúvida, porque transparece inequivocamente sempre que se oferece ensejo de a
exprimirmos. Por isso mesmo, todo o nosso empenho é que ele prospere com a maior
segurança. Entretanto, afigura-se em o nosso espírito, pobre de otimismo, a terrível
apreensão de que um grande mal, se não for prevenido a tempo, virá ser causa de amargas
decepções para a geração futura.

Queremos falar do erro cometido sucessivamente por duas gerações, a


passada e a atual – a da impiedosa destruição das belas florestas que engrinaldam o
aprazível território encruzilhadense.

Cumpre preparar previamente o espírito do povo por meio de uma


propaganda tenaz e ao alcance de todos, mantida pela imprensa, pelo professorado
público, pelo sacerdócio, pelas intendências e por todos quantos conheçam os benefícios
a auferir da prática da silvicultura. Feita ela, e compreendida a verdade que encerra, os
proprietários territoriais e os próprios donos das matas serão os primeiros a zelar pela
sorte desse precioso patrimônio prodigalizado pela natureza, mas cujo desbarato está
sendo causa de profundos dissabores, como o que certas regiões do Estado tiveram,
ocasião de provar durante o verão deste ano.

A última mensagem presidencial do ilustre dr. Júlio de Castilhos, quando se


abriu a sessão da Assembleia dos Representantes, em 1897, a exposição de motivos da
recente lei de terras, bem como os arts. 2º e 3º e parágrafo único, da dita lei estadual de
5 de outubro de 1899, são o testemunho indubitável de que a questão está afeta ao poder
público. Compete agora a nós, governados, concorrermos também com o contingente
de nossas forças, secundando-o em seus patrióticos esforços.

Basta para tanto que todo o encruzilhadense tenha sempre presente no


espírito a seguinte sentença, de um distinto naturalista alemão 4, muito amigo do Rio
Grande do Sul: “Os morros ou as montanhas de forte declive não devem ser privados ou despidos dos
seus matos. Tirem-se deles as boas madeiras e a lenha, mas deixem-se crescer as árvores novas e as que
não tiverem atingido ainda o seu pleno crescimento” (Annuario para 1892, p. 170).

4 O dr. Hermann Von Ihering. (N. A.)


202

DA SATISFAÇÃO DO DANO NO JUÍZO


CRIMINAL (I)
(A Federação,14 out. 1904)

Discute-se com a ardente paixão própria da época, não com a calma e


metódica reflexão indispensável a todo o exame de índole exegética, a constitucionalidade
da seguinte disposição do Código de Processo Penal do Estado do Rio Grande do Sul:
‘liquidado definitivamente o dano, não tendo o réu meios para a satisfação dentro em
oito dias que lhe serão assinados, será condenado à prisão com trabalho pelo tempo
necessário para ganhar a quantia da satisfação” (art. 559).

A corrente reacionária desencadeada contra a lei processual rio-grandense, e


que se reveste mais de ardor partidário do que de uma controvérsia doutrinária, pretende
encontrar apoio no texto do artigo 70 do Código Penal da República – “a obrigação de
indenizar o dano será regulada segundo o direito civil.”

É neste enunciado, evidentemente lacônico, cuja insuficiente redação não


exclui, aliás, o princípio da competência pela prorrogação de jurisdição e pela qual é
admissível a reparação do dano perante o juízo criminal, mas tão somente dispõe que a
forma seja regulada pelas regras do direito civil, que os nossos opositores procuram
descobrir incompetência na legislação processual do Estado.

Entretanto, estudando-se a tese jurídica enunciada sob o ponto de vista dos


recentes julgados do Supremo Tribunal Federal, podemos facilmente rebater a doutrina
da egrégia corporação, mediante a tarefa que se reduz ao desenvolvimento dos seguintes
temas: a) das origens do Código Penal da República; b) de como a matéria arguida é
simplesmente processual e, portanto, da competência legislativa estadual; c) de como a
conversão da dívida proveniente de obrigação ex-delicto, em prisão do devedor insolvente,
é consoante à doutrina e às tendências do moderno direito criminal, como já o era às do
direito criminal antigo.

O Código Penal da República, promulgado quando ainda não era dado prever
qual a sorte do direito processual, depois definida pela Constituição de 24 de fevereiro,
traz disposições de natureza tanto substantiva ou material como de adjetiva ou formal.

Ele reflete a orientação do seu eminente autor, o pranteado dr. Baptista


Pereira, espírito propenso, pela educação política e índole conservadora, à unidade de
legislação, quer substantiva, quer adjetiva, levada às mais exageradas consequências.
203

O dr. Baptista Pereira, conforme mais tarde declarou, em curiosa série de


interessantes revelações publicadas na Revista de Jurisprudência (vols. 3º e 4º, 1898), era
convicto sectário da unidade do direito, revelando-se, apesar de nossa profunda
veneração pela memória de inteligência tão culta e de caráter tão severo, desconhecedor
da pureza dos princípios que sintetizam as melhores normas federativas.

Dizia o eminente jurisconsulto: “A Constituição de 24 de fevereiro de 1891


contentou-se em outorgar aos Estados a faculdade de legislarem unicamente sobre as leis
formulárias ou processuais, o que, ainda, foi um erro que não devemos perder a esperança
de ver emendado quando se compreender que a unidade do direito é um vínculo forte
de nacionalidade e se não podem separar as leis substantivas das adjetivas porque todas
se completam em uma eurritmia harmônica visando um único escopo: a homogeneidade
da legislação”.

Tais foram sempre as ideias do saudoso autor do Código Penal da República,


ideias de um homem amante da centralização e que elaborara aquele Código não para a
República, mas para o regime monárquico, que não teve tempo de servir-se dele, porque
desapareceu antes de achar-se pronto.

Era no gabinete Ouro Preto. Desde anteriores anos, havia a ideia de reformar
alguns capítulos do Código Criminal de 1830 e, influenciado por esta ideia, o notável
jurista sr. Dr. João Vieira de Araújo, hoje o mais lúcido, o mais profundo criminalista
pátrio, havia composto uma obra a que dera o nome de Ante-projeto de nova codificação
criminal, submetendo-a à apreciação do governo.

O sr. Cândido de Oliveira, então Ministro da Justiça, nomeou uma comissão


de três juristas, entre os quais o sr. Baptista Pereira, para emitir parecer sobre o
anteprojeto. A comissão examinou-o e manifestou-se pela rejeição dele, opinando,
porém, por uma revisão geral do Código Criminal de 1830, com o que concordou o
governo.

Estava já articulada a parte geral do código, rememorava o seu autor em 1898,


quando, a 15 de novembro, um mês depois, sobreveio inopinada a sedição militar que,
com grande assombro da nação, derrocou a monarquia e, de improviso, fundou a
República.

O governo instituído pela nova ordem de coisas logo dissolveu a comissão


revisora do Código, cujo serviço feito já não era insignificante, pois que abrangia toda a
parte geral. Poucos meses mais tarde, entretanto, confiou ao preclaro dr. Baptista Pereira
a delicada investidura de proceder, com urgência, a reforma do Código de 1830.

O saudoso criminalista, que, por ocasião de desempenhar idênticas funções


durante o gabinete Ouro Preto, já havia terminado a revisão da parte geral, que é aquela
onde se consubstanciam os princípios doutrinários do assunto, não teve outro trabalho
senão o de prosseguir, escrevendo a parte especial e adaptando-a à nova forma de
governo.

Ora, temos, pois, que a parte principal do Código Penal da República foi
redigida no regime monárquico e por um monarquista que, conquanto distinguido com
204

uma merecida nomeação do governo republicano, declarava, arrogantemente, oito anos


depois, não aspirar à confiança deste governo (cit. Revista de Jurisprudência, 1892).

Não é, portanto, de estranhar, que o texto do art. 70 do Código disponha


sobre assunto de índole puramente processual, uma vez reconhecidas as tendências
políticas do seu redator, contrário à multiplicidade de legislação processual.

Além dessa circunstância que a hermenêutica deve aproveitar, acresce que,


quando foi dada a promulgação do Código (11 de outubro de 1890), o governo provisório
ainda nem sequer havia ultimado a redação definitiva do projeto de constituição que
deveria servir de base à Constituição no Congresso, projeto de 23 de outubro daquele
ano. Vigorava, então, o projeto Werneck, cujas ideias concernentes ao direito processual
estavam aquém do que no ano seguinte se alcançou da Constituinte. O projeto Werneck
investia o Congresso Federal do poder de codificar as leis civis e comerciais, e as de processo,
salvo aos Estados o poder de alterá-las em ordem de adaptá-las convenientemente às suas
condições peculiares (art. 33, n. 13).

Só a 23 de outubro de 1890, isto é, doze dias após o decreto mandando vigorar


o Código Penal, que baixou o decreto n. 914 A, o qual fazia substituir o primitivo projeto
de Constituição, acima referido, por um outro, que deveria ser presente ao Congresso
para por ele adotar-se definitivamente a Constituição da República.

Consignava, então, o projeto de 23 de outubro ao Congresso, por conseguinte,


à União, a autoridade de “codificar as leis criminais e comerciais da República e, bem
assim, as processuais da justiça federal”, art. 33, n. 24; a este dispositivo corresponde hoje
o art. 23 da Carta de 24 de fevereiro.

Assim, pois, o Código Penal, elaborado em parte ainda no pleno regime


monárquico, além de promulgado anteriormente à Constituição da República, quando
não havia certeza de abrir aos Estados a fecunda competência de legislarem acerca de
matéria processual, instituindo-se, deste modo, a diversidade e a pluralidade processual,
reflete a orientação do seu eminente autor, turvada por preconceitos inerentes à política
do antigo regime e, daí, a inserção de princípios implicitamente anulados pelo fato
constitucional de 1891.

Alcides Cruz
205

DA SATISFAÇÃO DO DANO NO JUÍZO


CRIMINAL (II)
(A Federação, 8 nov. 1904)

O assunto tratado no art. 70 do Código Penal encerra matéria de natureza


processual, o que, por força da lei básica da República, só aos Estados assiste o direito
de prover e regular.

Como regular a obrigação de indenizar o dano senão lançando mão de um


meio coativo de fazer efetiva a obrigação?

A resposta é intuitiva: – por meio da ação.

Surgirá, então, outra questão: a matéria das ações é de direito substantivo ou


adjetivo?

O assunto é complexo e, ao mesmo tempo, discutível. Para resolvê-lo, carece


estabelecer preliminarmente o que pode ser próprio de atribuições de direito penal e,
portanto, do código penal ou lei substantiva, e o que pode ser próprio das atribuições do
processo e, portanto, da lei processual ou adjetiva.

O direito penal tem por missão definir o que seja o crime e em que deva
consistir a pena, quer na generalidade, quer na especialidade dos casos, mas sempre em
abstrato; ao passo que o processo criminal torna aplicáveis concretamente as sanções
penais a todo aquele que se torne culpado por crime cometido. Tal é a magistral lição de
Lucchini, nos seus Elementi di procedura penale.

Assentados deste modo os dois conceitos, do direito penal e do respectivo


processo, examinemos se a ação, que é o elemento primordial do processo em geral, sem
a qual o processo não teria razão de ser, deve ou não ser prescrita pelo código processual
na qualidade de lei formal.

É, ainda, o insigne Lucchini que responde ao quesito proposto.

Todo processo é uma consequência do direito estatuente, e todo instituto


processual é de caráter jurídico.

Além disto, tolhida a ação ao processo, este ficaria sem ponto de apoio, sem
razão de ser e sem vínculo de relação com o direito substancial, material; ao passo que,
de outro lado, suas funções e relações estão fora do campo, do conteúdo próprio e dos
fins do direito punitivo.

O processo penal rio-grandense não excedeu das suas atribuições, atentos os


enunciados acima expostos e que provêm de fonte das mais autorizadas. Qualquer lei da
206

natureza da nossa, simplesmente processual, tem plena competência para dispor a forma
que deve ser concretamente aplicada para tornar realizável o efeito que o Código Penal,
isto é, a lei substantiva, faz decorrer do art. 69, concernente à obrigação de o condenado
indenizar o dano.

Ora, a conversão da satisfação em prisão com trabalho, diz o douto Silva


Costa, não importa pena da ordem criminal, é uma medida civil, é um meio de execução,
como bem diz Troplong no seu Contrainte par Corps, p. 15.

Se é propriamente uma execução ao processo, cabe regulá-la.

Em última análise, do que se trata é do meio, do remédio pelo qual


coercitivamente se faz reparar a violação de um direito, e este meio, este movimento, este
remédio é, verdadeiramente, positivamente, a ação. Daí a conclusão a que se chega – que
a doutrina do art. 70 do Código Penal é de índole meramente processual.

Mas mesmo que não o fosse, ainda assim a lei processual deste Estado não
deixava de sufragar diretamente o princípio sagrado pelo Código Penal, de que a
obrigação de indenizar o dano será regulada segundo o direito civil; tanto assim que,
declarando competir aos tribunais penais (art. 35 do Código de Processo) prover sobre a
plena satisfação do dano e resolver em consequência as questões que lhe são correlatas,
posto que de natureza civil, outra coisa não faz senão subordinar-se à regra geral de que o
juiz que dá a sentença é o competente para executá-la.

E o art. 36, completando ou ampliando o conteúdo do artigo antecedente,


estabelece o seguinte preceito:

“Os tribunais penais são do mesmo modo competentes para decidir todas as
questões de direito civil que incidentemente surgirem no curso do processo penal.”

Estes dois procedimentos judiciais têm lugar em razão do princípio jurídico


que criou o poder de administrar justiça, mediante o qual, sendo o juiz a princípio
incompetente, torna-se competente em virtude de disposição de lei. É o que se chama
competência em razão da prorrogação, matéria de direito formal, processual.

Nem o Código Penal, art. 70, determinando que a obrigação de satisfazer o


dano seja regulada pelo direito civil, tem a terminante imposição da lei de 3 de dezembro
de 1841, quando, pelo seu art. 68 (depois revogado pela circular de 18 de outubro de
1854), prescreveu como fórmula essencial para a consecução daquele fim, inseparável de
todo o delito, a ação civil.

Alcides Cruz
207

DA SATISFAÇÃO DO DANO NO JUÍZO


CRIMINAL (III)
(A Federação, 10 nov. 1904)

O art. 559 do Código do Processo Penal do Estado, pelo qual fica assegurada
a realidade da reparação do dano, garantida com a prisão com trabalho pelo tempo
necessário para ganhar a quantia da satisfação, reproduz o art. 32 do Código Criminal do
Império, esse imperecível monumento de legislação moderna.

Dirão que a lei de 3 de dezembro de 1841, redigida com intuitos


verdadeiramente reacionários, derrogou com o seu art. 68, pelo qual se determinava que
a indenização do dano só podia ser pedida por ação civil, o art. 32 do Código de 1830.

Ainda aqui o argumento não subsistirá.

Com a data de 18 de outubro de 1854, o ministro da Justiça, que então era o


preclaro Nabuco, expediu um aviso que pôs termo à questão, repondo as coisas nos seus
competentes lugares e dissipando todas as dúvidas acerca da casuística interpretação que
queriam dar à lei de 41 (como hoje ainda querem), e pela qual presumiam derrogar o art.
32 do Código Criminal vigente na época.

O citado aviso, baixado por um notável jurisconsulto, que fazia parte do


gabinete de 1853, o grande ministério de Paraná, que contava, em seu seio, além daquele
eminente jurista e homem de estado – Nabuco de Araújo –, com mais os nomes gloriosos
de Paranhos, Abaeté, Cotegipe e Caxias, estatuía o seguinte:

“A jurisdição civil é competente para a execução da sua sentença sobre a


indenização do dano proveniente do delito, se o réu tem bens para serem executados;
mas no caso de verificar-se que não os possui ou que são insuficientes para a execução,
compete ao juiz das execuções criminais reduzir a satisfação do dano à prisão, nos termos
do art. 32 do Código Criminal.”

Dizer que Nabuco, chefe da escola liberal e jurisconsulto de têmpera e saber


como poucos o Brasil tem produzido, era espírito obumbrado pelo sectarismo de
doutrinas ditatoriais?

Nem Pimenta Bueno, criminalista propenso à brandura no corretivo penal,


teve relutância alguma em aceitar a doutrina do aviso de 1854.

No seu livro clássico, tamanha é a autoridade que exerce, Processo Criminal


(cap. 5º, seção 3ª, § 3º, 386 e 387), produziu várias observações acerca da indenização do
dano, mas não suscitam dúvidas sobre a observância do aviso.
208

“A liquidação se faz por artigos ou pela forma civil mais conveniente, segundo
as circunstâncias da hipótese.

“Feita a liquidação, se o réu tem bens que ipso jure são hipotecados à solução
do dano e com a preferência qualificada pelo Código Criminal, art. 30, a execução não
oferece dificuldades. Se, porém, não tem, dá-se o caso do art. 32 do mesmo Código.

“Este art. determina que, não tendo o delinquente meios para a satisfação,
será sujeito à prisão com trabalho pelo tempo necessário para ganhar o respectivo valor,
ao menos até que ele, ou alguém por ele, satisfaça ou preste fiança idônea, ou que o
ofendido se dê por satisfeito.

“A este respeito temos o aviso de 18 de outubro de 1854, que declara que o


juízo municipal, como o das execuções criminais, é o competente para fazer essa
conversão, isto é, para determinar a respectiva substituição de prisão com trabalho pelo
tempo correspondente à soma da satisfação devida.”

Tal era, com todo o peso da sua imensa autoridade, a fria lição dada por um
dos mais acatados processualistas pátrios, há meio século.

O venerando sr. conselheiro Olegário H. de Aquino e Castro, ornamento da


magistratura brasileira, atualmente elevado, por incontestável merecimento, à augusta
cadeira presidencial do Supremo Tribunal Federal, comunga nas mesmas ideias, e que
outras não são as que fielmente, palavra por palavra, reproduziu o Código Processual do
Rio Grande do Sul.

Em substanciosa e erudita memória da lavra de S.Exa., publicada em 1865, na


excelente Revista Jurídica (vol. 1, p. 278-290), dirigida pelo consumado mestre Silva Costa,
o sr. ministro Olegário, hoje ilustre presidente do Supremo Tribunal Federal, de tão
implacável crítica e jurisprudência contra a legislação rio-grandense, expôs criteriosos
conceitos concernentes à doutrina que ora sustentamos.

S.Exa., depois de, lúcida e suscintamente, fazer fundadas considerações sobre


o instituto da satisfação do dano, comenta, com o elevado senso jurídico que todos lhe
admiramos, o art. 28 do antigo Código Criminal, com uma digressão para divergir da
opinião de Teixeira de Freitas, exarada em nota ao art. 799 da Consolidação, e em cuja
digressão a vantagem, diga-se a verdade, foi de S.Exa., que levou de vencida a doutrina
do grande jurisconsulto extinto.

“A satisfação, ensina o eminente Olegário, não é uma pena; tanto que em


muitos casos é exigível mesmo falhando a criminalidade (art. 10 e 11 do Código Criminal);
é, simplesmente, um meio de reparação do dano.”

“Na imposição da pena, insiste mais adiante S.Exa., o interesse social


prevalece sobre o individual; na satisfação atende-se mais o prejuízo da parte do que a
gravidade do crime, já compensado pela severidade do castigo.”
209

São, pois, muito valiosas as opiniões dos dois reputados mestres Silva Costa e
Olegário, no sentido de reconhecerem que a conversão da satisfação do dano em prisão
com trabalho não importa numa pena de ordem criminal.

Logo, o Código rio-grandense não comete a heresia de pretender impor penas


maiores que as da lei substantiva.

Se a lei de 20 de junho de 1774 acabou com a prisão por dívida, ordenando


que quando o executado não possua bens e o exequente não prove que o devedor
executado procedeu de má-fé, ocultando bens, o juiz dê por finda a execução, bem se
entende que a lei visou, tão somente, amparar de um vexame o devedor de boa-fé, isto é,
aquele que de boa-fé deixou de cumprir uma obrigação ex-contractu. Não o devedor de
má-fé, aquele que deixa de cumprir uma obrigação ex-delicto, que presume sempre o dolo,
a má-fé.

O caso da indenização do dano difere profundamente quando possa dar lugar


à prisão do espírito da lei de 1774. É o mesmo Silva Costa que vitoriosamente elucida o
assunto, mostrando como a disposição da lei reinícola foi afetada pelo princípio instituído
pelo Código de 1830, o qual, dominado pela ideia de que a satisfação deve ser a mais
completa possível, entendeu sujeitar o delinquente insolvável à prisão com trabalho:
“providência civil de grande alcance, que não é para estranhar, desde que em vários casos
no cível se estabelece a prisão; embora não se trate de punir crimes propriamente tais.
Assim é que, mesmo nas execuções das sentenças civis, manda a Ord. L. 3º, tit. 86 § 18,
que o executado seja preso até que se finde a execução, se for esta por ele retardada por
mais de três meses; assim é que o depositário é preso quando, infringindo as leis do
depósito, se torna infiel e remisso; e a legislação comercial emprega em diferentes
hipóteses a pena civil da prisão, como no caso do art. 284 do Código Comercial e art.
313 do regulamento n. 737, de 25 de novembro de 1850 – Estudo theoria e pratica sobre a
satisfação do damno, p. 57”.
210

DA SATISFAÇÃO DO DANO NO JUÍZO


CRIMINAL (IV)
(A Federação, 14 nov. 1904)

A solução do difícil problema fora dada com verdadeiro êxito pelo Código de
1830, assinalando a culminância atingida neste instituto do direito criminal pela sabedoria
da legislatura do Primeiro Império, dominada pela iluminante capacidade – Bernardo
Pereira de Vasconcellos.

E precedeu, assim, em muitas dezenas de anos a aspiração, ainda não realizada,


da criminologia moderna, cujo empenho se tem manifestado ardorosamente, como se
evidencia das resoluções adotadas nos seus congressos efetuados nas principais cidades
europeias, particularmente nas da Itália.

Às principais conclusões do último congresso de antropologia criminal, que


se reuniu em S. Petersburgo, aderiram Von Hammel, Von Liort, Garraud e outros
eminentes criminalistas até então discordantes.

Enquanto, pois, os sábios europeus e norte-americanos ainda discutem o


modo de praticar o assunto, já a lei brasileira havia resolvido o magno problema,
afigurado insolúvel a muitas legislações.

E porque outras nações embaraçaram-se assoberbadas com preconceitos e


desfalecimentos havemos de abdicar a nossa conquista, condenando-a, segundo o
inveterado hábito nosso de reformar criações e institutos que representam uma tradição,
um costume nacional?

Dos comentadores do Código Criminal de 1830, foi sempre maior a falange


dos apologistas das generalizações concernentes à reparação do dano, completa e eficaz,
o próprio juízo criminal, convertendo-a em prisão para o delinquente insolvável.

Os divergentes constituíam pequena minoria.

Que importa Teixeira de Freitas houvesse formado na rarefeita minoria, se ele


era civilista e não criminalista?

Muitas vezes os grandes homens pecam na emissão das suas crenças, e o vulgo
diz – cochilos de Homero, porque só não cochilam os que dormem de todo.

Também Tobias Barreto audaciosamente negou que existisse uma ciência


social, a que Spencer e Comte chamaram sociologia.
211

Araripe, reputado jurista e homem de estado, cheio de serviços à causa


pública, num como no outro regime, em sua estimada Consolidação das leis do processo criminal
(art. 533, § 2º), consolidou a matéria supra referida.

O Conselho de Estado, aquela veneranda corporação consultiva de outrora, à


qual oportunamente se há de fazer a devida justiça, porque lá tinham assento vultos de
valor, teve ensejo de manifestar-se, ratificando a doutrina do art. 32 do Código Criminal,
ainda na vigência da lei de 1841 e anteriormente a da circular de outubro de 1854 (Vide
Caroatá, Consultas do Conselho de Estado, v 1, p. 66).

Também aos mais sagazes comentadores do Código de 1830 e da lei de 3 de


dezembro de 1841 pareceu uma completa anomalia a inovação trazida por esta lei,
francamente reacionária, instituindo a ação civil para só por meio dela pedir a reparação
do dano.

Mendes da Cunha, o destemido criticista processual, cujos juízos tamanha


influência exerceram, declarou que a reforma judiciária de 1841, nesse ponto, é de uma
injustiça notória e subversiva da ordem, unidade e coerência, que são de invencível
necessidade na administração da justiça.

Outro consumado analista do Código de 1830, Thomaz Alves Junior (Annots.5


part. II, tom. I ao art. 32), defendeu a legitimidade dos princípios consagrados pelo
Código e pela circular de 1854, reconhecendo incompleto o art. 68, da lei de 1841, por
não ter previsto a hipótese do art. 32 do Código Criminal, que o legislador daquela lei
revogou sem o querer talvez, e deixou uma grave lacuna, ferindo o princípio de que a
satisfação deve ser a mais completa possível, porque tudo fica reduzido ao seguinte: – ou
tem bens e paga, ou não tem bens e não paga – qualquer que seja a pena em que incorrer.

Mas releva antes de tudo pesar o juízo do mais profundo criminalista


contemporâneo, João Vieira de Araújo6, conhecedor de todos os códigos e tratados, de
uma cultura jurídica universal, modesto mas fecundíssimo – o derradeiro comentador do
Código de 1830 e o único do de 1890 –, sustentando longamente a legitimidade daquelas
doutrinas no seu substancioso livro Código criminal brazileiro: commentario philosophico-
scientifico, infelizmente escrito com alguma falta de clareza expositiva, o que não é defeito
total, e descuido gramatical, o que é deplorável.

No seu Código Penal Commentarios, n. 191, diz ele: “Destacar um processo do


outro, separar os juízos, regular pelas normas gerais do direito civil, aplicável à vida
econômica moral, os atos criminosos, fraudulentos da vida econômica normal, é fazer
obra inútil e prejudicial aos interesses patrimoniais do indivíduo ou da sociedade,
atacados pelo crime contra o qual agora têm sido impotentes, neste ponto, as sanções
puramente penais.”

Ainda hoje aplaude as disposições do Código de 1830, neste assunto.

5 Annotações Theoricas e Praticas ao Codigo Criminal (nota da revisão).


6 É extraordinário que ao Sr. dr. João Vieira, erudito mestre na Faculdade do Recife, não se tenha feito
justiça devida ao seu mérito, que lhe granjeou uma reputação europeia, ou como colaborador de revistas
estrangeiras, ou como doutrinador cuja opinião mais de um livro do exterior cita com encômios. (N. A.)
212

O ressarcimento do dano causado pelo delinquente sem bens para cumpri-lo,


convertido em prisão com trabalho, anda nas legislações estrangeiras à procura de fixar-
se definitivamente e, excetuadas a França e a Bélgica, nenhum dispositivo legal satisfaz
por completo a aspiração do direito moderno.

A nossa, pelo Código de 1830, chegou a ecoar longe.

Silva Torrão, eminente jurisperito português, comentando o Código Penal de


seu país, aplaudiu o texto do art. 32 do antigo Código brasileiro, como muito honroso
para o legislador brasileiro, que “soube resolver essa falta ou omissão do Código
português” (ao art. 110 do Código Penal de Portugal).

Tão defeituosa é a marcha seguida na Itália, que provocou a Garofalo


veemente crítica. Lá, o credor de uma obrigação contraída ex-delicto tem o direito de obter
a prisão do réu, devendo, porém, prover a alimentação deste, cuja prisão não excederá de
um ano, prazo exíguo dentro do qual nem o culpado satisfará o débito, nem o credor
embolsar-se-á de seu crédito.

Em França, todo o credor tem direito a fazer prender o devedor insolvável


durante certo, determinado tempo até que salde a dívida.

Semelhante disposição, é verdade que foi abolida pela lei de 22 de julho de


1867, quanto ao devedor civil, mas está de pé quanto ao devedor das obrigações ex-delicto,
que são todas as resultantes das condenações criminais e que se resolvem em
indenizações pecuniárias (chamadas restitutions, dommages-interêts e frais), cuja origem pode
ser um crime ou uma contravenção (Code Pénal francês, art. 52).

Garraud, incontestavelmente o criminalista francês de maior evidência e


conceito destes últimos tempos, duplamente prestigiado pela regência de uma cátedra na
Universidade de Lyon, sustenta, nos seus notáveis livros, destinados a terem na geração
nova a mesma autoridade que tiveram os de Chauveau e Helie na geração passada, a
necessidade de converter toda a dívida de tal natureza na prisão a que os franceses
chamam contrainte par corps, palavra, aliás, de significação diferente de prison, cuja origem
pode ser um crime ou uma contravenção, conforme já se disse.

Em virtude da contrainte par corps (detenção pessoal), o réu insolvável só


recuperará a liberdade depois de ter cumprido a detenção durante metade do tempo da
condenação (C. instr. cr. art. 429).

Mas ensina Garraud que a parte ofendida pode, por livre escolha, intentar a
ação ao mesmo tempo perante o juízo criminal ou separadamente, perante os tribunais
civis, é livre a escolha (Précis de Droit Criminel, § 385).

Se bem que independentes as duas ações (pública ou penal e civil), contudo


uma se prende à outra por laços íntimos em razão da sua origem comum. “Assim é que
a ação civil não é da exclusiva competência dos tribunais civis, ela pode ser intentada ao
mesmo tempo e perante os mesmos juízes da ação penal; e, quando o ministério público
ainda não houver intentado a ação pública, o exercício da ação civil perante os tribunais
213

repressivos põe necessariamente em movimento a ação pública”7. (Précis de Droit Criminel,


§ 353).

Parece que a matéria de competência em razão da prorrogação, compendiada


nos arts. 35 e 36 do Código do Processo Penal do Rio Grande do Sul, não passa longe,
nem contém dispositivos de natureza diferente da tratada na primeira parte do enunciado
supra transcrito.

Se a ação penal nasce de um delito, considerado como uma perturbação social,


e a ação civil nasce, também, de um delito, considerado sob o ponto de vista privado,
como um fato reparável, qual o inconveniente de correrem por um só juízo, que, na
espécie, não pode deixar de ser o criminal?

Alcides Cruz

7 Ação pública no processo criminal francês é sinônimo de ação penal. (N. A.)
214

DA SATISFAÇÃO DO DANO NO JUÍZO


CRIMINAL (conclusão)
(A Federação, 22 nov. 1904)

Não sendo, por conseguinte, a detenção pessoal, jamais, um modo liberatório,


mas simples meio de execução das condenações, é bem de ver que a sua natureza é
essencialmente processual, e sobre esses pontos são acordes todos os jurisconsultos
estrangeiros.

Nos Estados Unidos, os constitucionalistas reconhecem a índole processual


do instituto de que tratamos, até nos próprios comentários à Constituição da República.
“Arrest and imprisonment of the debtor, like a preliminary attachment of his goods, is
clearly a part of the mere procedure”. Pomeroy, Const. Law, § 619.

Na Bélgica, o Código de Instrução Criminal autoriza a parte ofendida a


promover a ação de indenização perante o tribunal criminal, porque ela é parte integrante
da pena. Neste caso, a prisão é chamada subsidiária.

O Código de Instrução Criminal da Áustria, 1873, organizou um sistema


análogo.

A tendência das teorias modernas da criminologia, profundamente


remodelada depois das imortais contribuições da nova escola italiana, em regra atribui ao
juiz criminal a decisão sobre a indenização do dano, conforme a velha corrente dos
códigos de 1830 e 1832.

Desde o Congresso de Antropologia Criminal de 1885, reunido em Roma,


que a questão foi motivo de sério estudo, tendo merecido fulgurantes manifestações de
Garofalo, Fioretti, Berenini, Lioy, etc., que colocaram o debate nos termos os mais claros
e aplicaram-lhe o método o mais fecundo.

A confusão e o erro, dissipados por Fioretti e Garofalo, nasciam de se querer


negar a existência do homo delinquens distinta da do homo sapiens e, daí, o querer equiparar
o pagamento de uma dívida contraída civilmente por uma pessoa honesta ao pagamento
obrigado por indivíduo criminoso, que razoavelmente deve ser presumido de má-fé.

Releva, aliás, dar a prioridade desse critério aos nossos legisladores de 1830 e
aos seus esclarecidos apologistas, muitos dos quais, como Silva Costa e Olegário,
emitiram seus autorizados juízos acerca deste instituto, a satisfação do dano,
particularmente sobre este, mas calcado naquele critério.

Naquela ordem de ideias foi que Garofalo considerou um grande erro o


considerar o crédito originário de perdas e danos causados pelo crime como objeto de
direito puramente civil, segundo pretende o Supremo Tribunal Federal.
215

João Vieira (Código Criminal Brasileiro, 144, p. 425), rendendo homenagem à


nossa sábia geração passada, escreveu: “Depois destas observações é fácil ver quanto
andou bem avisado o legislador brasileiro colocando a matéria neste Código e no do
processo e estatuindo certas disposições que lhe fariam honra mesmo na atualidade.”

A legislação italiana, em tese, não é contrária a que a liquidação de perdas e


danos causados pelo criminoso seja da competência do juízo criminal, cujo princípio vem
enumerado no art. 569 do respectivo código processual. O que provocou a veemente
crítica de Fioretti é o fato de ter caído em desuso, atribuído ao insigne criminalista pela
excessiva afluência de processos naquele juízo, pelo que remetem os processos de
indenização para o foro civil.

Diversa, pois, sendo a origem da dívida civil, diversa sendo a origem da dívida
proveniente de delito – é lógico que o processo para o pagamento assuma forma diversa,
de modo que a dívida originária ex-delicto corra em foro diferente daquele de dívida ex-
contractu.

O que não é lógico é ambos os processos correrem pelo foro civil, ainda assim
permitido pelo nosso Código, ad-libitum da parte ofendida. O fim da detenção pessoal é
duplo: garantir o pagamento das condenações oriundas de uma infração e substituir pela
pena corporal a pena pecuniária que não foi executada.

Que importa o envolver certo rigor penal, se é um rigor necessário para evitar
que os insolváveis de má-fé gozem de uma impunidade que, injustamente, colocá-los-ia
em condição mais vantajosa que os insolváveis de boa-fé?

Onde a justiça?

____________________________

Em síntese, reatando a adiantada corrente estabelecida em 1830, interrompida


funestamente em 1841, para de novo ser restaurada em 1854, o Código rio-grandense
verdadeiramente nada inovou. Se inovasse, tal inovação teria surgido sob os auspícios da
tradição nacional e das legislações estrangeiras e dos mestres. Menos ainda postergou a
letra ou o espírito do Código Penal de 1890, aliás, implicitamente derrogado nessa parte
pela Constituição de 24 de fevereiro.

Sem embargo das muitas lacunas e imperfeições ocorridas no despretensioso


desenvolvimento do difícil instituto jurídico longamente tratado com serenidade e
convicção, obedecendo unicamente ao ponto de vista doutrinário, aqui ficamos, pondo-
lhe remate.

Censurem-nos os doutos, que receberemos a censura como lição.


216

Há, porém, reacionários, sem responsabilidades diretas e sem passado a zelar,


que sorrateiramente vão desorientando a opinião geral com as suas impertinentes
agitações, no sentido de alterarem a ordem judiciária criada por efeito imediato e lógico
da Constituição da república, no tocante à dualidade de legislação; estes serão capazes de
refutar-nos sem parti-pris?

Alcides Cruz
217

O PROBLEMA JURÍDICO DA SATISFAÇÃO


DO DANO
(A Federação, Porto Alegre, 31 jan. 1905)

Profundamente operada na fecunda Itália a mais completa remodelação dos


estudos jurídicos em todos os seus ramos, assim do direito privado como do público,
surgiram novos horizontes e nova orientação, sobretudo para o direito criminal.

Na nova fase que se lhe abriu a ele, ficou assinalada ao Estado (na acepção
lata de sinônimo de poder público) a função eminentemente humana de defensor social
na tarefa reprimida do delito, verificada na prática pela punição dos delinquentes
conjuntamente com o meio de operar o ressarcimento do dano causado pela lesão
criminal.

Punir o criminoso sem cuidar de reparar o dano causado por ele é uma ação
incompleta, que fica indefinidamente à espera da sua respectiva integração.

Ao Estado, para complemento da atribuição que o direito criminal lhe afeta,


é que cumpre efetivar a satisfação do dano, consoante a fórmula de Spencer – que se uma
das condições de vida foi violada, o que se deve, antes de tudo, exigir do culpado é a
reposição das coisas no seu estado anterior, isto é, a reparação do dano produzido pelo
delito.

Subordinada a esta orientação, acaba de ser publicado em Turim, pelo


advogado Giuseppe Gregoraci, um volumoso tomo de quatrocentas páginas, sob o título
Della Riparazione del Danno nella funzione punitiva.

Em apologético e copioso prefácio, o conhecido professor Pessina,


aplaudindo calorosamente as teorias do autor, recomenda o substancioso livro pelas
opiniões que compendia e que são as mais recentes, e mais em voga, e em caminho de
próxima realização acerca das reformas de que o direito penal necessita.

O autor expõe lucidamente e com elevada sagacidade os termos da palpitante


questão, demonstrando como em todo o delito há dois fatos lesivos carecedores de
repressão: há uma ofensa direta aos direitos do indivíduo vitimado e há uma ofensa aos
direitos da sociedade da qual o indivíduo é parte componente.

Dessa necessidade de punir surge outra necessidade – a da proteção que o


Estado deve aos direitos do indivíduo e aos da sociedade. E na douta opinião do ilustre
jurista, sem essa exigência jurídica de proteção não se pode compreender a defesa social
que reside na função punitiva, à qual dá lugar ao mesmo tempo em que a reparação dos
vários danos do delito emergente torne-se um eficaz remédio repressivo.
218

O Estado, segundo a teoria de Gregoraci, deve fazer com que as suas leis
consigam o ressarcimento do dano, incluindo-o na irrogação da própria pena.

Ele propugna, pois, pela direta intervenção do Estado na indenização do dano


à vítima do delito, demonstrando amplamente como essa intervenção justifica-se, tanto
sob o ponto de vista da caridade pública, como sob o ponto de vista econômico, ainda
mesmo que não seja possível obter a reparação pecuniária com o patrimônio ou com o
produto do trabalho forçado dos delinquentes.

Quando assim não puder ser, há outros meios.

Estabelecidos esses princípios gerais, o autor passa a examinar o lado prático


da questão, sempre estudada com espírito de originalidade e indefectível senso jurídico.

Quando ao delito o seu agente em tempo útil operou o respectivo reparo,


pode dizer-se que o curso foi interrompido, não tendo atingido ao objetivo que o referido
agente se propunha. “Em certos casos é possível, talvez, uma reintegração do bem lesado,
em outros somente é possível uma simples reparação, a qual pode consistir tanto na
desistência de cometer o delito começado, como no ressarcimento pelo lado econômico.
Não se trata tanto de aumentar a pena quando o dano não possa ser reparado, mas,
certamente, de diminuí-la quando se facilite o ressarcimento do dano resultante do
delito.”

A reparação pode ser tanto moral como pecuniária. Quanto ao dano de


natureza puramente moral, como, por exemplo, a difamação de um médico atribuindo-
se lhe pouca capacidade intelectual ou pouco escrúpulo no exercício profissional, é um
dos tais danos que não pode ser reparado pecuniariamente.

Entretanto, não há crime cujo dano não possa ser reparado; a dificuldade é
apenas quanto ao modo.

Tantos os delitos contra a segurança do Estado, a liberdade, a administração


pública, a fé pública, a incolumidade pública, os bons costumes, a ordem da família, a
pessoa e a propriedade, como também aquele contra o disposto em leis especiais acerca
da conservação dos monumentos e objetos de arte ou de antiguidade, da caça, das matas,
dos transportes ferroviários, do fisco, da saúde pública, etc. – são passíveis de indenização
pelo dano que ocasionarem.

A matéria, de si tão complexa, foi tratada por um sem número de fases,


tornando-se uma seara abundantíssima, viçosa e louçã, onde o imenso e variado saber
jurídico do autor ceifou fecundamente.

Na vibrante exposição doutrinária, tanto quanto na sapiente enumeração das


aplicações práticas, Gregoraci declara-se francamente sectário da detenção pessoal com
trabalhos forçados, a mais segura fonte de reparação do dano; e já pelos princípios que
advoga com tamanha convicção e competência, já pela natureza do assunto, não admite
separação de foro entre a pena e a satisfação. Sem unidade de juízo, o criminal, para
ambas as figuras jurídicas ora apontadas, não é possível nenhum alcance prático.
219

Tal é a tendência geral do moderno direito penal; e é questão de tempo o


triunfarem as ideias sustentadas nesse livro e que de resto encontram apoio em todos os
círculos de adiantada cultura jurídico-criminal.

A satisfação do dano, como complemento da pena e, portanto, afeta à própria


justiça repressiva, legítima aspiração dos maiores criminalistas da atualidade, foi instituto
outrora compendiado no direito pátrio e teve autorizados paladinos no antigo regime.
Neste particular, porém, ao invés de tudo o mais que com a mudança das instituições
políticas foi renovado por um largo hausto vivificador, o direito repressivo brasileiro nada
melhorou, nem mesmo ficou estacionário, mas abdicou de uma conquista alcançada à
custa de tanto sacrifício.

O Rio Grande do Sul, fiel à tradição e à corrente histórica, restaurou os


princípios do Código de 1830, esquecidos pelo de 1890, acerca da unidade de juízo
quanto à pena e ao ressarcimento do dano.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, incontestavelmente errônea e


reacionária, tem-lhe sido, porém, de tal forma e tão insistentemente hostil, que não deixa
de alarmar todos quantos sustentam e defendem os princípios da soberania estadual em
matéria de processo.

Alcides Cruz
220

DISCURSO NA ROMARIA AO TÚMULO DE


JÚLIO DE CASTILHOS
(A Federação, Porto Alegre, 24 out. 1910)

Senhores.

É aqui, como marco miliário postado à entrada do Campo Santo, que se


depara com esta figura de mulher “simples e veneranda, a viúva bem recolhida em amplas
e humildes roupagens, de faces melancólicas esmaecidas, brotando-lhe dos olhos tristes
lágrimas, como dizendo a quem passa ao vento e à tempestade, às estrelas e aos homens,
nestas solidões silenciosas, uma grande saudade numa sentida e clamorosa dor[...]”

Assim exclamou um discípulo de Oliveira Martins ao defrontar com a campa


do insigne historiador; assim também nós, diante desta alegoria que um estatuário de
sentimento e engenho ergueu como preito de mágoa num poema de bronze.

Também aqui a criação tocante e sóbria do artista ergueu, mas como suprema
imagem soluçante da República, este símbolo que vedes, sucumbido de tristeza, a guardar
a memória de uma das individualidades mais tersas e de espírito mais culto e universal
que a terra pátria tem produzido.

Correligionários.

O Centro Republicano e o Club Júlio de Castilhos, associando-se numa mesma


oblação, aqui vos congregaram para esta homenagem devida por todos quantos, com o
Patriarca à frente, vencemos em belicosos prélios, que a história há de registrar como os
mais árduos de que foi teatro o Rio Grande do Sul, desde que definiu o seu vasto papel
no concerto do Brasil independente.

A obra de Júlio de Castilhos, fortemente sugestiva na sua severa grandeza


épica, é a sua segunda vida, a sua imortalidade.

Ela, como sabeis, compreende o Partido Republicano e a Constituição de 14


de julho.

O Partido Republicano é esta legião hoje temida, respeitada, cujo só rufar dos
tambores, como os de Coriolano, assusta o inimigo, admirada em toda a vasta extensão
territorial do país, pelas suas vistas superiores, pelas suas nobres aspirações, pela sua bem
definida orientação e – por que não dizer? – pelo seu desprendimento e pela sua
extraordinária abnegação, constituindo a verdadeira guarda avançada, não deste ou
daquele governo, mas da República.

Único que logrou em todo o Brasil constituir-se como um bloco formidável,


sobranceiro no meio das mais desencadeadas tempestades, tira toda a sua pujante
221

vitalidade das normas traçadas pelo seu grande fundador, o homem que por si só era uma
bandeira.

Quando, porém, serenaram as agitações e os temporais foram amainando, até


o completo amortecimento, o partido retemperado pela direção de Borges de Medeiros
guardou o eco da voz de Júlio de Castilhos, conservando-o como um depósito sagrado,
que se não pode sacrificar sem o sacrifício da própria honra.

E a noção de honra para nós vale tudo.

Júlio de Castilhos ensinou, graças à sua profunda ascendência pessoal, o


Partido Republicano a premunir-se contra as invectivas dos aventureiros e dos
ambiciosos que convertem a política em ofício mercenário e oprobrioso. Para dar
combate a esses falidos morais, Júlio de Castilhos usou de todos os meios lícitos, o
conselho e a força, a inspiração do sentimento e a energia do caráter, exortando, apelando
e, por fim, impondo.

Eis porque a figura de Júlio de Castilhos refulge como a de um Pedro o


Eremita, despido de todas as vaidades e de todas as ambições, dando o exemplo, tão raro,
de subordinar a sua ambição a uma causa, e não esta causa à sua ambição, escapando,
assim, à censura a que um escritor mordaz fez dobrar o perfil de Prevost Paradol.

A outra obra imorredoura é a Constituição do Rio Grande, cujo grande


alcance não reside somente nos princípios de governo nela esculpidos. Estes, ainda que
muito salutares e fecundos, na ciência da política têm comportado variações.

O seu mérito excepcional está na simplicidade da contextura aliada ao máximo


efeito que o seu funcionamento é capaz de conseguir, circunstância que não tem passado
despercebida àquele a quem coube a árdua sucessão diretora – Borges de Medeiros.

É a simplicidade de instituições políticas, compendiadas num Código


Constitucional, a suprema aspiração recomendada hoje pelos novos mestres que surgiram
ou, pelo menos, só foram lidos exatamente depois do desaparecimento do genial estadista
rio-grandense.

E como imagem viva da complicação, difusão, indecisão e, pois, de


dificuldades práticas que chegaram a anular estadistas como Júlio Ferry e Casemiro Perier,
é a Constituição Francesa atual que em cada artigo contém uma entrelinha, e em cada
entrelinha, uma disposição sibilina.

Expondo, ultimamente, as imperfeições dessa carta constitucional, um


professor de Direito lamentava o prematuro passamento de Gambetta, por não haver ele
tido tempo de imprimir o cunho viril da sua individualidade na Presidência da República,
para esclarecer o que ainda de ambíguo e de obscuro há no sistema constitucional de
França.

Equivale isso à condenação peremptória das instituições de uma das principais


nações modernas; princípios ocultos, desconhecidos dos mais ilustres homens de Estado,
mas dependentes da ação de um determinado indivíduo, como o único capaz de
222

desvendá-los, ainda que tal indivíduo seja uma força, não são os que convêm ao moderno
governo popular, isto é, o governo que pode ser exercido por todos.

A Constituição de 14 de julho estabeleceu em toda a sua pureza o verdadeiro


tipo do sistema chamado presidencial, pois que ao chefe de Estado conferiu toda a soma
da atividade, iniciativa e autoridade dirigentes, sem que semelhante preponderância, num
destaque intenso, prejudique a autonomia, a independência das demais funções por onde
se reparte a suprema ação do governo do Estado.

E, como referem as gazetas, ainda ontem o grande parlamentar da atualidade,


talvez o de maior vulto, Jorge Clemenceau, encanecido nas rumorosas refregas em que
são férteis as instituições opostas, consagrava as novas doutrinas com a sinceridade das
suas convicções:

– O parlamentarismo, definia ele, é uma forma de governo muito brilhante,


mas certamente menos fecunda que o vosso presidencialismo.

O outro assunto, a que a nossa Constituição dedicou o máximo empenho em


assentá-lo sobre novos fundamentos, e que o futuro dirá se foi ou não feliz na inspiração,
é o do regime municipal, abrindo-lhe amplos e imprevistos horizontes, cujo alcance só
pode ser medido por quem está a par e acompanha diariamente os esforços inauditos que
os Estados Unidos, a Inglaterra e outros países empregam para chegar à resolução dos
complexos e crescentes problemas municipais.

Correligionários.

Por que a dupla obra de Júlio de Castilhos, se bem que ciclópica, não sofreu
solução de continuidade?

Deve-se a alguém este singular fenômeno?

Sim, e incontestavelmente a esse romano, pela austeridade, Borges de


Medeiros, que, ao tombar combalido pela fatalidade, o supremo chefe da nova Cruzada,
empunhou o lábaro vitorioso em mil jornadas, reacendeu a chama do entusiasmo
castilhista, aviventou coragens, que de outro modo poderiam ter vacilado, e fez fremir
intensamente a alma republicana.

Ei-lo, o Partido Republicano de Porto Alegre, solene e compacto, tal qual fala
a lenda germânica, que, para saudar a volta anual da primavera, ia, em piedosa e mística
peregrinação, depor aos pés de Santa Walpurges os seus escudos.

E esta legião política, respeitável pelo número e pelas tradições, unida como
um só coração, simboliza a sua veneração pelos extintos em um único – Júlio de
Castilhos, “em quem poder não teve a morte”.
223

A QUESTÃO DO “HABEAS CORPUS” E O


PRESIDENTE DA REPÚBLICA
I

(A Federação, Porto Alegre, 29 mar. 1911)

Na marcha constitucional dos governos republicanos, surgem incidentes que,


ou por sua novidade, ou por sua importância, despertam a atenção pública, e os
politicantes profissionais, ao sabor das suas paixões, aproveitam a oportunidade para
agitar a multidão, como se estivesse em crise alguma das liberdades fundamentais
garantidas pela carta constitucional.

Um de tantos incidentes é esse recente caso do habeas corpus concedido pelo


Supremo Tribunal Federal a alguns cidadãos, que se consideravam eleitos conselheiros
municipais da cidade do Rio de Janeiro.

Até aqui, nada de extraordinário; o que, entretanto, despertou ruído e chamou


a atenção pública foi o ato do presidente da República, que, depois de examinar
maduramente o caso, recusou cumprimento ao decreto judiciário, servindo-se de
fundamentos justamente apropriados e de considerações muito bem documentadas;
ainda assim, não faltou quem, deixando de apreciá-las imparcialmente, as considerasse
como o início de um tremendo conflito constitucional, cujas consequências indagam,
com curiosidade e fingido temor, até onde irão parar[...]

Que se trata de um incidente constitucional, não há dúvida.

Mas de conflito, não nos parece demonstrável. E como a ocorrência dá lugar


a investigações de caráter jurídico, é natural que se possa submetê-la a uma sucinta análise
sob o ponto de vista doutrinário, subtraída a toda e qualquer preocupação partidária.

A desorientação política, o baralhamento de ideias e a ausência de princípios


capazes de servir de bandeira a um partido fatalmente geram ambições e estimulam
fortemente a disputa das posições eletivas, ocasionando a formação de núcleos efêmeros
que se agremiam periodicamente, para o único fim de conquistar lugares, dependentes
do sufrágio popular, vilmente explorado por essa forma deprimente do regime
representativo.

Na capital federal do Brasil, esse fenômeno tem assumido proporções sem


par, nem precedente, no que em tranquibérnias, sofismas, falsificações e desacatos se
verifica nos comícios eleitorais, de resto não de todo estranháveis nas circunscrições onde
224

os partidos não têm estabilidade, nem forma conhecida, nem programa, e muito menos
um chefe que se saiba impor e dominar as ambições mal refreadas, sobretudo
liberalmente remunerados.

A eleição realizada a 31 de outubro de 1909, para intendentes municipais, deu


lugar, pelas suas muitas irregularidades, a uma ordem de coisas de tal forma complicadas,
que o presidente da República, procurando resolver, encontrou o mais alto tribunal
judiciário pela frente; opondo-se-lhe ao passo e fazendo causa comum com a facciosidade
estuante.

Feita a referida eleição, a junta de pretores não conseguiu apurá-la a contento


dos interessados, e daí essas duas séries de intendentes diplomados, cada qual se
arrogando de mais legitimamente eleita, e em duas mesas, também distintas, a proceder
o reconhecimento de poderes.

Estavam assim claramente acentuadas a balbúrdia e a impossibilidade de


alcançar-se por esta forma a regular constituição do conselho municipal, porquanto
nenhum dos dois agrupamentos conseguiria os dois terços legais para a instalação dessa
assembleia.

Deu-se, então, nos termos do decreto de 29 de dezembro de 1902, a


intervenção do poder executivo, cujo efeito foi o de entregar a administração e o governo
municipal do Distrito Federal ao respectivo prefeito, visto a acefalia do órgão legislativo.

Ambos os grupos de diplomados, entretanto, não se deixaram estar pela


intervenção do presidente da República de então, o sr. Nilo Peçanha; moveram-se,
trabalharam junto do poder judiciário, que, aliás, em sucessivas decisões, reconheceu a
legitimidade do ato presidencial, conferindo poderes ditatoriais à prefeitura, e
prosseguiram além, embrenhando-se através de insolúveis dificuldades, não se detendo
diante de nenhum dispositivo legal, cuja infração se fez despejadamente.

Um dos grupos afinal reconhecendo a sua impotência e a impossibilidade de


chegar a um resultado prático, renunciou as suas pretensões, dissolvendo-as
espontaneamente.

O outro, cuja origem não era mais legítima, nem a sua composição menos
inidônea, preferiu ficar em campo, e, com uma revoltante falta de escrúpulo, procurou
completar o reconhecimento dos membros que faltavam para atingir o número legal, a
fim de que pudesse funcionar.

Deparando com esta anormal situação, a medida empregada pelo poder


executivo obteve pleno apoio do Supremo Tribunal Federal, que, considerando motivo
de força maior, julgou válido o ato do presidente da República mediante o qual anulava
a eleição.

O sr. Nilo Peçanha levou ao conhecimento do Congresso, em fins de 1909, a


anormalíssima situação política da municipalidade da grande capital brasileira. Mas o
Congresso consumiu esterilmente não só o resto da sessão daquele ano, como toda a de
225

1910, sem embargo da extraordinária que precedera de um mês a ordinária, não tratando
de destrinçar a grave crise cujo desenredo lhe era solicitado.

Tal era a ordem de coisas no tocante à política municipal do Rio de Janeiro


quando, em 15 de novembro de 1910, o marechal Hermes assumiu o supremo governo
do país.

Não tendo o Congresso Federal prestado a mínima consideração ao magno


assunto, a que fora provocado a decidir, urgia pôr paradeiro ao tumultuário estado de
coisas, já que a prefeitura, ia para dois anos, não era assistida de seu órgão legislativo; o
marechal quis endireitar, dando fim àquela desorganização, e por isso deliberou efetuar
nova eleição, designando o respectivo dia.

Alcides Cruz
226

A QUESTÃO DO “HABEAS CORPUS” E O


PRESIDENTE DA REPÚBLICA
II

(A Federação, Porto Alegre, 30 mar. 1911)

Importa não esquecer que já o sr. Campos Salles, encontrando em quase


idêntica acefalia o governo municipal, deliberou intervir diretamente, sem audiência de
qualquer natureza, o que levou a termo pela resolução de 22 de janeiro de 1902, e por
conseguinte muito antes da lei que, só quase após um ano, foi promulgada.

Naquela ocasião, rememore-se de passagem, não houve tribunal que julgasse


ato de inconstitucionalidade aquela intervenção.

O marechal Hermes não aparece, pois, isoladamente, inaugurando uma


política reacionária, de desrespeito e afronta às instituições vigentes.

Seu papel é exatamente ao contrário do que se lhe atribui insidiosamente.


Mandando proceder a nova eleição, de que maior consideração ao regime representativo
queriam que ele desse testemunho?

Obedecendo às injunções do comum espírito de revolta e indisciplina


partidária, de par com o receio de não apanharem o ambicionado fruto, ainda que por
modo ilegal – o desempenho de um cargo bem remunerado e sem trabalho na proporção
do avultado subsídio –, alguns dos pretensos intendentes eleitos recorreram ao poder
judiciário, impetrando uma ordem de habeas corpus preventivo para, por esse meio, se lhes
assegurar o exercício dos direitos decorrentes do cargo, no qual se presumiam eleitos.

O Supremo Tribunal, contradizendo e abdicando doutrina firmada vitoriosa


e salutarmente em sábias deliberações anteriores, forçou princípios jurídicos
universalmente consagrados pelo direito de todos os povos cultos, concedendo a ordem
pedida.

O presidente da República, não querendo dar cumprimento à atropelada


decisão judiciária, enviou ao Congresso Federal uma minuciosa, jurídica e bem aduzida
exposição de motivos, em forma de mensagem, na qual, analisando com profunda
elevação de vistas o aresto impugnado, solicitava do Congresso Federal a aprovação do
seu ato.

Incidentemente, também está criado direito novo de ordem constitucional


pátria – o bill de indenidade.
227

Bem se vê que o presidente da República, chefe do poder executivo,


subordinando-se, desse modo, à ação do poder legislativo, não manifesta tendências de
forma alguma subversivas, mas procura praticamente realizar a tão propalada harmonia
de poderes.

Não se verifica na espécie ruptura alguma dessa suposta harmonia; o marechal,


deixando de cumprir a ordem de habeas corpus, não se torna passível de censura por tal
fundamento, porque, segundo os seus luminosos fundamentos insertos na mensagem,
não cabiam na espécie nem pedido nem concessão de habeas corpus, uma vez que a
liberdade de nenhuma pessoa se achava ameaçada, e muito menos havia coação material,
como prisão ilegal ou outro constrangimento à pessoa física de quem quer que fosse.

Isto por um lado.

Por outro lado, também a conduta do presidente da República escapa à


censura, porque os atos políticos praticados pelas autoridades investidas dessa
competência estão fora do alcance de todo e qualquer recurso judiciário.

E ainda milita em favor do procedimento do chefe de Estado, como


argumento de peso, a teoria prestigiada pelo endosso de bons autores, de que o órgão
impropriamente chamado poder judiciário não constitui de fato um terceiro poder da
nação, como erradamente outrora se pensava, mas como hoje acertadamente combatem
os mestres.

Disso resulta que, não sendo ele um poder igual aos outros dois, não só lhe é
impedido, com mais forte razão, o arvorar-se em poder super omnia, como igualmente a
atividade política do chefe da nação não lhe poder ficar subordinada, tampouco por ele
ser entravada.

Contudo, antes de prosseguirmos no desenvolvimento do assunto,


convenhamos em que, se o marechal Hermes desobedeceu à ordem emanada do
judiciário, ao menos se lhe faça a justiça de o livrar da ingrata paternidade de uma ação
sem precedentes, e por todos os modos, no hiperbólico dizer dos atacantes – ditatorial,
despótica e profundamente antipática.

Não. O procedimento de agora não é caso único.

Ele tem antigos precedentes nos anais da alta administração nacional e parece
ter seduzido os espíritos tanto liberais como conservadores do antigo regime[...]

Em 1851, 29 de dezembro, baixou a ordem n. 301 do Tesouro Nacional, em


que o Ministro da Fazenda (visconde de Itaboraí), a propósito de um habeas corpus
concedido pela Relação da Bahia a um coletor preso por alcance, sustentou uma doutrina
francamente reacionária e redigida em termos muito menos comedidos e respeitosos que
a mensagem do presidente da República:

O aviso ministerial dispunha “que tais atos e decisões da Relação são


manifestadamente injurídicos, irregulares e praticados com ofensa da independência das
autoridades administrativas encarregadas da administração da fazenda no exercício das
228

suas atribuições [...] que este exercício as autoridades judiciárias devem respeitar,
abstendo-se de embaraçar e empecer.”

Finalmente, o ministro ordenava ao inspetor da tesouraria que se o coletor


não prestasse contas dentro do prazo marcado, novamente o fizesse prender.

Outra Ordem do Tesouro, expedida em 1856 pelo marquês do Paraná,


desenvolvia idênticos princípios, que então nenhuma gazeta consideraria ditatoriais.

Em 8 de agosto de 1878, o ministro da fazenda, o inolvidável estadista liberal


Silveira Martins, contestava ao Supremo Tribunal de Justiça competência para tomar
conhecimento de um recurso de habeas corpus, requerido por um tesoureiro de loterias,
preso administrativamente por ordem daquele ministro, e requisitava do procurador da
Coroa suscitasse o conflito de atribuições.

Em relação, porém, a prisões de militares, as concessões de habeas corpus deram


lugar a muitos conflitos de atribuições, e o Conselho de Estado resolveu “não ser
admissível o recurso de habeas corpus em favor do réu militar, preso por crime sujeito ao
foro privativo.”

Ainda em 1883, os conselheiros Paulino de Sousa e visconde do Cruzeiro


decidiam, em resolução do Conselho de Estado, que “o princípio essencial da
Constituição, que consagrou a independência dos poderes políticos, sofreria quebra
irreparável, se um ato dos agentes do poder executivo, autorizado expressamente por lei,
pudesse ser burlado por decisão de qualquer dos outros poderes.”

Em vista destes e outros constantes atos e votos de tantos estadistas ilustres


do passado regime, o dr. João Mendes Junior, eminente professor de direito em S. Paulo,
expõe num livro seu, de grande autoridade nos círculos jurídicos, que “apesar dos termos
claros da Lei, o Governo nem sempre quis reconhecer a competência do Poder Judiciário
para conceder habeas corpus aos presos por ordem de autoridade administrativa.”

Em todos estes casos referidos, as circunstâncias eram muito menos


adequadas do que o atual porque se tratava de prisão efetuada por autoridade
administrativa, e os atos administrativos, é regra geral, estão sempre sujeitos a recurso e
podem ser anulados pela autoridade judiciária.

O momento atual, como sabemos, não comportará nenhuma estranheza se se


tiver em conta: primeiro – não ter ocorrido nenhuma prisão, nem achar-se ninguém
exposto a constrangimento corporal; segundo – os atos políticos não estarem sujeitos a
recursos de espécie alguma, como é corrente em direito público; e o ato do marechal
Hermes, contra o qual se quiseram amparar na ação do judiciário, era rigorosamente
político.

Alcides Cruz
229

A QUESTÃO DO “HABEAS CORPUS” E O


PRESIDENTE DA REPÚBLICA
III
(A Federação, Porto Alegre, 31 mar. 1911)

Não escapa à vulgar compreensão de espírito medianamente instruído em


Direito, e muito menos à alta cultura do Egrégio Tribunal Federal, que na espécie se
tratava precisamente de um ato político praticado pelo presidente da República.

É ponto unanimemente aceito e ensinado, sem discrepância, por todos os


mestres e tratadistas, que as variadas e múltiplas atribuições dos chefes de Estado se
exteriorizam, na prática, por uma série de atos, em última análise reduzidos a dois únicos
tipos – atos políticos e atos administrativos.

Se os da segunda natureza não são suscetíveis, tal a sua diversidade e


multiplicidade, de uma rigorosa enumeração, não sucede o mesmo quanto aos primeiros.

Em qualquer compêndio de direito público, especialmente administrativo,


não deixará de vir uma sucinta referência a todos os atos políticos.

Não há estudante do 5º ano da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre


que não saiba, por ter ouvido de nós mesmos, conforme se vê às pp. 20 e 21 das Noções
de Direito Administrativo, que são atos políticos os concernentes à ação e às relações
exercidas pelos órgãos políticos entre si, e também os de ordem política e constitucional
feitos com o desígnio de ser mantida a unidade política.

“Tais são: a) as relações do governo com o Congresso Federal – contando-se


nessa ordem os decretos de convocação, de prorrogação das sessões e de adiamento das
mesmas; b) certas medidas de segurança interna ou externa da União ou dos Estados, tais
como as que estabelecem o estado de sítio, as declarações de guerra e os tratados de paz;
c) as intervenções da União nos negócios peculiares aos Estados – membros, segundo o
art. 6º da Constituição: d) os decretos de convocações eleitorais para eleições de
senadores, deputados, presidente e vice-presidente da República; e) a nomeação e a
demissão dos ministros de Estado. SOBRE ESTES ATOS OS TRIBUNAIS
NENHUMA AÇÃO EXERCEM E, PORTANTO, ESCAPAM A TODA A ORDEM
DE RECURSOS.”

Nem se objete que não incidem nessas atribuições políticas do chefe de


Estado as eleições intendenciais da cidade do Rio; quem negará que a convocação do
eleitorado para tal fim difere da que é feita para a escolha de senadores e deputados?

Não se reveste da mesma natureza?


230

Demais, uma instituição política, com o regime municipal do Rio,


imediatamente debaixo da ação do presidente da República, que é quem lhe nomeia o
prefeito, nesse particular da escolha de membros por meio de eleição popular, não se
pode subtrair à interferência daquela autoridade, quando já nada pode dominar o tumulto
e a anarquia.

Contra o ato político da convocação de eleitores que procedessem à escolha


de intendentes municipais, alguns que se presumiam eleitos requereram ao Supremo
Tribunal Federal a concessão de uma ordem de habeas corpus.

O Tribunal indevidamente concedeu-a, cometendo assim um duplo erro:


primeiro, admitindo o recurso extraordinário do habeas corpus, remédio criado para
garantir a liberdade individual de todo aquele que a tem constrangida ou ameaçada. Em
caso como esse de que se trata, o Tribunal violou doutrina por ele mesmo assentada, e
tumultuariamente inverteu a ordem processual estabelecida em lei, pois atribuiu ao habeas
corpus a elasticidade e os efeitos de uma verdadeira ação, o que o nosso direito não
permite. Segundo, procurou perturbar a ação do chefe do poder executivo, estorvando-
lhe a ação política; e, portanto, o poder judiciário exorbitou as raias da sua competência.

Não se pode admitir em face da doutrina e da jurisprudência norte-


americanas, que, ex-vi do art. 387, do decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, são
subsidiárias do nosso direito público, que a autoridade do poder judiciário alcance a ação
política do chefe de Estado.

Numa obra recente, do professor James Woodburn, The American Republic


(1906), se nos não falha a memória exaltada pelos louvores de outra conhecida
autoridade, o sr. Ruy Barbosa, historiando as ocorrências verificadas por ocasião do
célebre caso Dred Scott, escreve que Lincoln considerava como errônea essa decisão;
“negando que o país estivesse obrigado a acatá-la, ambos, ele e Seward, acusavam o
presidente da República (Buchanan) e o Chief Justice (Taney) de conluio, e não há dúvida
de que, como presidente, Lincoln teria recusado submeter-se à decisão do Supremo
Tribunal” (both he and the Chief Justice with collusion, and there is no doubt that, as President, Lincoln
would have refused to be bound by the Supreme Court’s decision), p. 103.

E, revindo ao mesmo assunto, à p. 333, considera esta decisão como a mais


séria imiscuição do Tribunal na arena política, cujas consequências foram ainda muito
mais sérias.

Decidindo o caso, que apaixonara os partidos políticos, de um lado os


abolicionistas que sustentavam os direitos do negro Dredd Scott, e de outro os
escravocratas que defendiam os do senhor dele, o Supremo Tribunal, por órgão do Chief
Justice Taney, muito arrebatado na politicagem, entrou em largas considerações que
irritaram o partido abolicionista ou republicano, chefiado por Summer, Seward, Stevens,
Lincoln e outros. E vindo ele, em seguida, ao poder, por efeito da eleição de Lincoln à
presidência da República, conceitua Woodburn “denouncing the Supreme Court and
repudiating its decision.”

Em outra passagem do mesmo livro, o autor, que, como é sabido, os


contemporâneos o têm em alta conta, sustenta (p. 174) que “os tribunais federais não
231

podem conhecer da sua ação (do presidente da República), nem intervir na sua conduta
política.”

Outro recente livro de um também professor americano, igualmente


estimado, o dr. Wilford Garner, aparecido apenas há alguns meses, apoia a doutrina ora
exposta e os princípios correntes entre os modernos escritores.

Lê-se à p. 568 da sua obra Introduction to political science (1910), capítulo The
executive department: “We may it down as a proposition of almost universal application that
the chief executive cannot be subjected to the control of the courts neither for his
criminal acts or his political policies. It is a general principle of public law that the chief
executive should be exempt from the jurisdiction of any court or magistrate so long as
he remains in office”.

Digamos de passagem que, pela sua conduta criminosa, o presidente responde


perante o Senado, convertido para esse fim em alto tribunal, aliás de jurisdição limitada
simplesmente a exonerar o presidente do seu cargo e julgá-lo incapaz do exercício de
outro.

Continuando a tratar superiormente da matéria, o professor Garner refere, em


nota a p. 569, que em alguns Estados da União Americana os tribunais têm exercido o
direito de conceder o writ of mandamus (que aliás não é o habeas corpus) “contra o executivo
para compeli-lo a desempenhar o seu dever puramente ministerial; mas se o governo resistir,
é difícil prever como o judiciário poderá manter as suas ordens. Importaria isso num conflito entre o
executivo e os tribunais, o qual terminaria pela derrota do judiciário”.

Finalmente, o professor Goodnow, em livro já celebre, The principles of the


administrative law (1905), ensina que, por motivos políticos, os tribunais têm geralmente
decidido, como regra, não exercerem sua jurisdição quando ela puder abrir conflitos com
o chefe do executivo (p. 484 in fine). E que no caso Merryman, de habeas corpus, a ordem
não preencheu o fim almejado porque o funcionário, que deu lugar ao ato, era apoiado
pelo presidente da República, e o tribunal não quis tomar conhecimento, receando o
perigo de um conflito com o executivo.

Alcides Cruz
232

A QUESTÃO DO “HABEAS CORPUS” E O


PRESIDENTE DA REPÚBLICA
IV

(A Federação, Porto Alegre, 1 abr. 1911)

Não faltará quem, avaliando superficialmente os princípios acima


estabelecidos, se apresse em prever um calamitoso efeito: que o presidente da República,
assim abusando da ação assaz enérgica e desembaraçada que lhe permite o executivo,
ponha em risco as liberdades públicas.

Mas a objeção se desfará sem nenhum esforço, bastando recordar que o


corretivo contra as usurpações do chefe de Estado está na autoridade, na competência,
na faculdade conferida pela Constituição ao Congresso, único poder legal capaz de
reprimir as demasias do executivo.

E o marechal Hermes, subordinando-se ao espírito e à letra da Constituição,


foi o primeiro a levar ao conhecimento do Congresso os seus feitos, para que a
representação nacional tome oportunamente a iniciativa de julgá-los passíveis ou não de
censura e pena.

Isto a que presentemente assistimos, e em que várias gazetas lobrigam uma


deturpação do regime, um gesto ditatorial, não passa de um incidente, já dissemos, na
nossa história constitucional, apto, é certo, para modificar costumes políticos, mas que,
mais cedo ou mais tarde, haveria de dar-se logo que à frente do governo estivesse um
homem dotado de suficiente decisão e energia para fazer alguma coisa por si,
espontaneamente, como lhe permitem as instituições.

Também nos Estados Unidos, após mais de século de aplicação constitucional


uniforme e estável, surgiram normas novas criadas pelos dois últimos presidentes, Mac
Kinley e Roosevelt, sem que fosse preciso saírem dos moldes constitucionais.

Em todas as criações novas, há muito que aprender, porque, não sendo dado
descobrir previamente a medida exata das suas manifestações, quando estas se verificam
são outros tantos ensinamentos.

Nós, não estando ainda bem enfronhados no regime presidencial que


adotamos, não tínhamos percebido que algumas das instituições se pudessem modificar
segundo o modo de dirigi-las e pô-las em andamento, ou que surgissem situações
imprevistas exigindo solução pronta e acertada.
233

Do modo pelo qual o Congresso se tem conduzido, e caído em tão grande


desfavor público, era de prever alguma como que reação legal, a exemplo do que se deu
nos Estados Unidos, obrigando o presidente da República a reagir normalmente, sem sair
da órbita constitucional e, portanto, legal.

Já que o Congresso não se importou com a resolução do assunto que lhe fora
afeto, alguma coisa era necessária, e o presidente tomou a si essa missão.

De sorte que a causa de tais movimentos, cuja consequência é sempre o


acréscimo de autoridade pessoal, verdadeira projeção de governo individual, sempre lícito
quando bem intencionado, é a incúria das assembleias deliberantes, que perdem todo o
longo período das suas sessões nas mais estéreis e desnecessárias discussões, que aos
interesses do país não aproveitam.

Disso tem resultado o desprestígio dos parlamentos, em favor do


fortalecimento da autoridade primordial do executivo, quando sabe aproveitar-se do
ensejo, e está no seu papel legítimo, pois o presidente da República também, e pelos
mesmos títulos que o parlamento, representa o povo.

Por esse modo, a opinião pública, ensina o professor Barthelemy, também vai
governando, mas através do presidente.

Quando não se dá isso, invertem-se na prática as instituições políticas do país:


a lei desconhece o regime parlamentar, mas passa-se a sofrer os efeitos do
parlamentarismo, apresentando todos os seus inconvenientes sem oferecer nenhuma
vantagem!

Eis o que exclamava há pouco um jovem político francês, quiçá constrangido,


porém em todo o caso falando verdade.

Que é, pois, o poder executivo republicano?

Não é fácil definir.

Conceito simples na aparência, envolve, entretanto, uma tese complexa e de


difusa explanação.

Em teoria, simplifica-se; mas em saindo dela, os fatos incumbem-se de refutá-


la, ou, pelo menos, de pôr a descoberto a sua imperfeição.

O papel do executivo realmente não se circunscreveu à mera execução de leis,


como em outras épocas foi apregoado.

É que se não tinha levado em conta, se não exteriormente, a lição dos fatos.

Parecia que à atividade específica do Estado, caracterizando-se pela criação e


manutenção do Direito, eram logicamente necessários tais órgãos – o legislativo criando
a lei, o executivo pondo-a em execução e o judiciário restabelecendo-a quando violada.
234

Era, destarte entrevista, só uma face da vida do Estado, e ainda assim encarada
sob um ponto de vista exclusivamente abstrato, sendo desprezado o seu lado concreto.

Ora, a atividade concreta do Estado é a administração pública, a gestão dos


negócios públicos, praticável independentemente da vontade do legislativo, pelo que a
execução de leis em face da administração do país ocupa subalterno lugar, para que ela
só a isso se dedique.

O poder executivo ordinariamente toma a iniciativa de medidas conformes


com o interesse público e se, em verdade, é o executor da lei, em mais larga esfera de
atividade traduz a representação do Estado, perante todos, não só no exterior como no
interior; há, portanto, fora da execução das leis, enorme domínio da sua atividade,
chegando mesmo a praticar atos não previstos em lei: o que não pode é praticar os que
ela proíbe (BARTHÉLEMY, Le rôle du pouvoir exécutif dans les républiques modernes).

Assim, portanto, movendo-se numa órbita muito ampla, e com inteira


liberdade, quando as assembleias legislativas não cumprem a sua missão assinalada em
lei, dissipando o tempo de duração do seu funcionamento, sem nenhum proveito para o
país, por que nos revoltarmos quando o chefe do executivo, se for homem revestido de
ânimo, iniciativa e vontade firme, procura resolver magnas questões, que, retardadas,
conduziriam à mais espantosa anarquia?

Alcides Cruz
235

JÚLIO DE CASTILHOS
(A Federação, Porto Alegre, 29 jun. 1911)

Na vida de agora, intensamente agitada, oito anos já representam dilatado


período de tempo capaz de apagar da mente a lembrança de muitos homens ilustres,
mesmo de alguns que em vida pareciam, por suas ações, fadados a se irem “da lei da
morte libertando”, Les morts s’en vont vite[...]

Entretanto, à proporção que os anos se passam e os dias se sucedem sem


cessar, a figura de Júlio de Castilhos assume, cada vez mais, extraordinárias proporções.
E hoje, que se ele fosse vivo completaria mais um ano de fecunda existência,
reverenciando-lhe a memória, neste preito de puro afeto e imperecível saudade, a auréola
de glória que lhe nimba a altiva fronte alada, só própria de quem foi como ele uma das
personalidades mais cultas e notáveis da atualidade brasileira, é o supremo conforto dos
que em vida o souberam admirar, obedecer e amar.

Só depois do seu fatal desaparecimento é que se pode avaliar quão insondável


foi o vácuo deixado.

Os pigmeus que investiam, desaçaimados, contra ele como que se


atemorizaram, e o silêncio generalizou-se por toda a linha desmantelada e rota.

Também é certo que palavras faladas ou escritas jamais foram bastantes para
lhe delirem a obra imensa.

Até nem mesmo a guerra guerreada. Quanto aos primeiros, cabe a sentença,
cega e enérgica, do profundo crítico francês: “não escreviam com a pena, mas com a
ponta de um chifre sobre folhas de chumbo”.

Por temperamento e por estudos, Júlio de Castilhos, que em vida evoluiu


sempre o seu espírito sintético, de que deu exuberante prova o seu famoso voto em
separado no célebre parecer emitido pela chamada Comissão dos 21, inclinava-se para as
obras de conjunto.

Nos últimos tempos, seria incapaz de empreender polêmica da ordem e do


objeto daquela – a hipótese de terem os fenícios povoado a América – travada quando
era ainda muito jovem e que lhe deu nome pela vantagem alcançada sobre o terrível
adversário, o cientista que fora Carlos de Koseritz, um mestre de saudosa memória.

Nas questões sociais, em que era profundamente versado, o que mais


preocupava a Júlio de Castilhos era a previsão dos futuros acontecimentos, e essa era uma
faculdade que ele possuía como poucos.

Prever é saber, já ensinava o filósofo da indução.


236

Daí o seu pendor pelos estadistas que tinham aquele dom. Cotegipe era para
Júlio de Castilhos o maior brasileiro da última década monárquica. Não se referia a ele
sem que fosse por esta forma: Cotegipe, o grande Cotegipe[...]

Também a Saraiva apreciava muito, não só pela sua política liberal exercida
no Prata, como pela simpática atitude desse estadista baiano na Constituinte da
República.

Um dia Júlio de Castilhos há de ser estudado de perto e, então, conjuntamente,


a influência que exerceu sobre a arte de governar com a novidade e os efeitos atingidos
pelos seus princípios.

E já é tempo de se cuidar de uma tal empresa.


237

DR. GRACIANO ALVES DE AZAMBUJA


(Annuario do Estado do Rio Grande do Sul para o ano de 1912 – Porto Alegre, ano 28,
1911)

Foi dos mortos mais lamentados do ano de 1911, Graciano Alves de


Azambuja. E assim foi que, com o desaparecimento de dois dos seus filhos ilustres, ele e
Germano Hasslocher, em intervalo próximo, o Rio Grande do Sul satisfez à morte o
pagamento de um tributo superior às suas forças.

O dr. Graciano de Azambuja faleceu no dia 7 de julho de 1911, em Porto


Alegre, onde nasceu em 9 de agosto de 1847. Pertencia ele, em grau apertado, à
antiquíssima família Azambuja, contemporânea da fundação e primeiro povoamento do
Rio Grande do Sul.

Cá recebeu toda a instrução primária e secundária, a qual foi sólida, bem


dirigida e melhor aproveitada. Depois, em São Paulo, dentre uma geração cheia de nobres
estímulos e destinada a merecido renome, tendo por amigos e contemporâneos Pizza e
Almeida, posteriormente célebre magistrado, e Paranhos, o futuro chanceler Rio Branco,
bacharelou-se em direito o conhecido rio-grandense Graciano Alves de Azambuja.

Se o diploma desta matéria satisfazia ou não as suas tendências, aspirações e


naturais inclinações, ele próprio tinha embaraço em responder. No fundo, é de presumir,
a vocação para a atividade jurídica fracamente se lhe definia; e só a poder de muita energia,
firmeza e inexcedível sentimento de deveres a cumprir, conseguiu exercê-la com o mais
assinalado êxito, tornando-se notável advogado e indiscutida autoridade forense.

Ouvimo-lo referir, nos últimos tempos, já em repouso da gloriosa carreira de


advogado, que a sua natural vocação fora outra, – a da matemática; porém que não
lamentava o ter-se dedicado ao direito porque ao menos conseguira alcançar uma relativa
independência, ao passo que na engenharia teria chegado ao fim da vida sem jamais ter
passado de mero empregado público. Então, aconselhava-nos nunca deixássemos a
advocacia, como sendo uma das poucas profissões que, não exigindo o direto emprego
de capital, pode levar, honestamente, o indivíduo, à largueza de recursos.

Na abastança, ele não entrevia o meio de alcançar os gozos materiais da vida,


mas o de atingir a independência e, neste estado, aliás, tão relativo, prestar serviços à
sociedade em que se vive. Não podia conceber a missão do homem sem funções a
exercer, sem deveres a cumprir, porém condicionados a uma necessária e ampla liberdade
de ação, onde lhe não fossem impostas obrigações contrárias ao seu modo de pensar e
sentir.

Este frio sentimento, de uma altiva liberdade de movimentos de qualquer


ordem, ele o cultivou intensamente, com o cuidado de quem cultiva uma flor de rara
238

delicadeza e de alto preço. Para guardá-lo intacto, temeu envolver-se na política


partidária, onde só, hesitante e tímido, militou efemeramente, sentindo-se contrariado.

Na propaganda republicana, de 1882 a 1889, é certo, não se alistou nela, mas


pareceu ter simpatias por ela, julgando apenas prematura a causa. Entretanto, era um
grande amigo dos melhores propagandistas, então chamados novos: e Júlio de Castilhos,
Ernesto Alves (ambos os quais se iniciaram na advocacia sob os auspícios dele), Ramiro
Barcelos, Álvaro Chaves, Antão de Faria e outros formaram roda em torno de Graciano
de Azambuja, que o tinham na conta de um mestre.

Agora, por último, totalmente divorciado da política, nenhum entusiasmo lhe


inspirava a forma republicana; já prostrado no leito fatal, de onde não se levantaria mais,
ouvimo-lo dizer “que o maior pesar que levava desta vida era o de morrer sem ver a
restauração da monarquia em Portugal”.

Convencido, desde moço, da esquisita verdade, entrevista há tantos séculos,


pelo melancólico filosofante da criação shakespeariana, de que o mundo é um teatro,
onde todos nós, homens e mulheres, somos os atores, cada qual a representar não um,
mas diferentes papéis, o dr. Graciano retraiu-se cedo, renunciando os esplendores de uma
vida aparatosa, de uma carreira fulgurante, que a sua enciclopédica ilustração, o seu
aprimorado sentimento de justiça e a sua intuição dos deveres cívicos lhe asseguravam,
fazendo dele um triunfador.

Há na vida desse homem superior alguma nuvem que, tendo concorrido para
essa resolução súbita, tivesse influído de modo salutar para ele e para a sociedade em que
passou os seus dias?

No Brasil, é raro o homem público, mesmo desligado de compromissos


partidários, capaz de ficar isento de injustiças e desgostos, poupando-o desses dissabores
a que, em regra, só escapam as mediocridades. E são felizes aqueles, como Graciano de
Azambuja, que, tragando o fel das injustiças, não estacam e, fiéis a princípios definidos,
caminham para um fim, nobremente persuadidos de uma missão a cumprir!

II

Retraído, o dr. Graciano de Azambuja, bem longe de imobilizar o espírito, de


fossilizar-se, de anular-se, mergulhou, cheio de fé, na cultura das suas admiráveis
faculdades intelectuais, achando um saudável derivativo contra imperiosos preconceitos,
que nem sempre fortalecem a sociedade moderna.

E como soube reagir vitoriosamente contra falsas e rancorosas apreciações de


que era vítima ilustre!

Assim foi que, sem embargo de ser portador do título de bacharel em direito,
numa época em que a superstição pelo diploma acadêmico era obstáculo a que o titular
dele exercesse profissão diversa, considerada subalterna, ainda que rendosa, e honrada
como as que mais o forem, não trepidou em desempenhar a modesta escrivania dos feitos
239

da fazenda, alicerçando, em boa hora, com essa previdência que caracteriza todo o
homem bem equilibrado, um futuro risonho, para que pudesse ter à sua inteira disposição
tempo e liberdade para os estudos e as leituras da sua predileção.

Ao tempo, o fato quase causou escândalo. Ninguém quis compreender quanto


tinha de natural essa prática reveladora da positiva intuição que do mundo tinha o dr.
Graciano.

Não foi mais que uma antecipação. Hoje, nenhum comentário teria suscitado
fato idêntico.

No entanto, ele, homem de programa definido, tinha uma diretriz a percorrer


até alcançar o alvo, e por ela prosseguia sem desvios nem vacilações.

Estudava, lia muito, meditava sempre e aparecia como homem de saber. Não
só se preparava solidamente para ser o emérito advogado que foi depois, como o
adiantado publicista, que tanto ensinou. Calava ele a crítica maléfica, lecionando a
juventude que se destinava aos altos estudos, geometria e filosofia, cujas modernas
doutrinas professadas por Bain, Spencer, Taine e Mausley, recém-conhecidas no país, ele
adaptando-as no que era possível, ia vulgarizando-as já na aula, já na imprensa.

É igualmente extraordinário que, não dispondo das qualidades próprias para


a popularidade do jornalista, tais como o ímpeto da polêmica, cintilância do estilo, a
audácia da frase, o esmalte da forma, sem as quais tudo é em vão para o sucesso, mesmo
assim a imprensa atraísse Graciano de Azambuja.

Amava-a, foi jornalista indefesso; e não há uma folha porto-alegrense destes


últimos quarenta e anos em cujas colunas não semeasse os frutos dos seus vastos
conhecimentos. Submetido esse aspecto da sua atividade ao característico diretor da sua
personalidade, e encarado como um fenômeno cuja causa se procura descobrir, resulta
que ele se servia da imprensa antes como instrumento de propaganda das suas ideias, que
para satisfação de gostos literários.

De temperamento frio, próprio do homem de ciência, espírito refletido e


sereno, no jornalismo se distinguiu pelo extraordinário bom senso com que manifestava
sobre o assunto submetido à sua consideração, pela profundeza com que discutia e pela
preocupação em só tratar de coisas úteis e aproveitáveis.

Por índole fugia à polêmica; mas uma vez arrastado nela, era um adversário
terrível pela dialética, uniforme e severa, sem temer que no ardor da luta fosse preciso o
sacrifício do próprio sangue, contanto que o adversário caísse, repulsado, mortalmente
ferido.

Mas ainda mesmo que lhe fossem peculiares os requisitos de cor, de calor e
de plástica, só porque eles criam a popularidade, provocam os aplausos e caem no gosto
da turba, ele os teria renunciado; fugindo sistematicamente às manifestações da massa
impulsiva e ignorante, desdenhava a lisonja inconsciente e flutuante, como passageira que
é.
240

É desnecessário recordar que odiava a declamação, sobretudo vazia e


espetaculosa. Vivendo para o estudo, àquilo que não tivesse o cunho da durabilidade ou
a que faltasse método, era infenso.

III

Como o insigne seiscentista, que o visconde de Castilho definiu numa frase,


tinha sempre os olhos voltados para a alma, para dentro de si.

O exame da sua psicologia complexa, feito com uma sutileza que de todo nos
falta, haveria de descobrir que, não obstante ser ele um esquivo às públicas manifestações,
às grandezas mundanas, ao ruído em roda de si, malgrado tudo isso, o dr. Graciano não
era indiferente ou insensível a muitas emoções, cada qual mais própria do homem
moderno e que, por isso, fica obrigado a satisfazê-las. O que, porém, deve ser sabido, é
que, amando certas criações da natureza, preferia gozá-las sozinho.

Tinha um profundo amor à paisagem, às flores e aos pássaros.

Durante muitos anos, mal se manifestavam as implacáveis calmas de janeiro e


fevereiro, quando as ruas da capital escaldam sob um sol africano, ele munia-se de uma
Kodak e saía a excursionar, demorando-se em vilegiaturas pelo litoral Atlântico, por vezes
fixando-se na vila de Torres. Também o encantavam certos trechos da zona colonial
antiga, como a cascata do Bom Jardim. Ainda no verão passado, insistira com o autor
destas linhas a que o acompanhasse numa estranha e sobretudo inconfortável excursão à
inóspita paragem, onde a saúde dele, extremamente sensível, haveria de correr perigo.
Desejava, no decorrer do pretérito janeiro, aproveitando-se da via férrea S. Paulo – Rio
Grande, ir até a ponte do rio Pelotas e aí, durante uma semana, demorar em plena mata,
para adquirir conhecimento de uma região ainda pouco explorada!

Por fim, o projeto da original excursão foi substituído por outro, o de uma
estação de águas no Estado de Minas, igualmente não realizado, por impedimento à
última hora sobrevindo; mais tarde, quando se dispunha a empreendê-la, tendo já
acertado o momento, sobreveio-lhe, inesperadamente, o mal que o vitimou em poucos
dias.

Não houvesse sido esse o triste desenlace, que ao talento do dr. Graciano de
Azambuja estava reservada nova fonte de aperfeiçoamento. A viagem a Minas seria
prolongada por outra à Europa, onde poderia fazer comparações, ver aquilo que já
conhecia através dos livros e julgar melhor.

Para o seu estado de saúde e anos, já ele considerava uma temeridade a


execução desse plano e receava empreendê-lo sem que alguém o acompanhasse. Não
seria essa a primeira vez que se ausentava do país; todavia pressagiava mal a qualquer
demora no exterior, temendo achar-se, de um dia para outro, isolado em nação
estrangeira, lembrando-se que na América do Norte já havia adoecido seriamente.
241

Consoante o seu hábito de guardar para si as suas resoluções, tinha resolvido


não divulgar essa secreta tenção. E explicava-nos: – “O melhor é fazer como o dr. Olinto,
que, a pretexto de assistir no Rio a um congresso médico, de lá embarcou para o
estrangeiro. Ou como V. que de Porto Alegre partiu dizendo simplesmente que ia
acompanhar sua mãe a S. Paulo”.

Como floricultor emérito, o amor às flores, especialmente parasitas, rosas e


cravos, o levou tanto à organização de riquíssimas coleções como ao estudo da botânica,
em que se aprofundou, adquirindo, nesse ramo da biologia, um seguro conhecimento,
estranho a todos quantos não são profissionais em ciência natural.

Quando, já rico, resolveu deixar o exercício da advocacia, repousar dos


desfibrantes labores dessa afanosa carreira e mudar-se para a opulenta fazenda que
possuía na Barra do Ribeiro, mandou vir dos Estados Unidos o que de mais recente os
zoólogos americanos tinham publicado sobre a ornitologia e o respectivo canto dos
pássaros.

Há a admirar, nesse homem extraordinário, a facilidade com que assimilava


tudo quanto lia e a brevidade de tempo em que essa leitura, diversíssima, se espalhava
pela vasta quantidade de jornais, revistas e livros, quer nacionais, quer estrangeiros.

Estando em correspondência com livreiros e muitos sábios estrangeiros que


encontrara quando foi da Exposição de Chicago, onde com honroso destaque
representou o Brasil, não aparecia artigo ou livro a respeito do Brasil que não lhe
enviassem. E lendo-os, não só corrigia as inexatidões, como da correção dava pronta
ciência ao respectivo autor. E quanto tempo e trabalho consomem a leitura, as anotações
e a correspondência com o exterior?

O respeitado geólogo norte-americano dr. João Casper Branner, vice-


presidente da Universidade de Palo Alto (Califórnia), o mais bem informado sabedor e
escritor da geologia brasileira, não tinha no Brasil melhor correspondente que o dr.
Graciano. Do mesmo modo, o ilustre botânico sueco Lindmann, autor de um ótimo
estudo da flora rio-grandense, cuja publicação no vernáculo só a ele é devida. Do célebre
romancista Huysmans recebeu o A Rebours com dedicatória autêntica. E bem assim com
vários institutos científicos norte-americanos se correspondia regularmente.

A diversidade de aptidões, distinguida em muitos homens eminentes,


Graciano de Azambuja, pela variedade de conhecimentos e a multiplicidade de matérias
de que tratou, fá-la recordar, com a vantagem de que ele era um bacharel em direito,
formado num meio acanhado e num curso atrasado, tal como o de S. Paulo naquele
tempo, dando assim vibrante ideia da energia do seu esforço, da solidez do seu método,
da direção das suas nobres aspirações.

IV

Dotar o Rio Grande do Sul de uma publicação periódica, inspirada por ele e
com uma feição toda dele, era o seu maior desejo, havia bem uns cinco lustros.
242

Seguro conhecedor do meio em que vivia, Graciano de Azambuja não era tão
ingênuo que não previsse logo que a terra não comportaria uma revista, nem mesmo da
índole das chamadas magazines.

Já, porém, que o periódico não podia ser nem trimestral, nem semestral, ao
menos que fosse anual. E praticamente havia uma única forma a dar-lhe, a de almanaque.
Só assim poderia vingar a empresa. Amadurecida a ideia, a propriedade foi imediatamente
esposada pela antiga firma editora Gundlach & Cia., hoje Krahe & Cia., que assim se
tornou benemérita, amparando aquela modesta causa, mais tarde estimulada, aplaudida
pelos competentes, imitada por outros, e que, afinal, após vinte e oito anos de indefesso
labor, nenhuma compensação material tem outorgado àqueles honrados livreiros.

O Annuario surgiu com o programa certo, jamais renunciado, cumprido à risca


e sucessivamente melhorado; e impondo-se a escolhido mas pequeno número de leitores,
seus fiéis favorecedores, conseguiu fazer-se conhecido não só no Brasil como no
estrangeiro. Se não é uma publicação literalmente popular, o que é certo é que a sua
clientela, conquanto resumida, é seleta, constituída de verdadeira elite científica.

Foi o Annuario a grande arena onde Graciano de Azambuja, revelando-se o


primeiro agrônomo rio-grandense, sustentou tenazmente e, por muito tempo, só, sem
importar-se com o espírito negativista do meio, essa fecundíssima campanha pacífica em
prol do renascimento da agricultura rio-grandense, própria de um verdadeiro patriota,
abnegada alma, dessas que só visam o bem estar da sua terra, esquecendo ambições,
vencendo egoísmos, transpondo obstáculos. E, tudo isso, sem esperança alguma de
qualquer paga.

Orientado por este norte, a que espontaneamente se traçara, foi ao terreno da


experiência e desviou copioso cabedal dos seus haveres na aquisição de castas de videiras
desconhecidas no Estado, e plantou, e observou, e estudou, e ensinou, até que, por fim,
conseguiu romper a espessa mole da indiferença popular e chamar a atenção para a
cultura da vinha, acabando com a rotina até então mantida neste futuroso ramo da
pomicultura.

Ao cabo de vinte e cinco anos de profícua atividade diretora d’O Annuario,


renunciou-a, sem que, aliás, tivesse tido a ventura de encontrar substituto na altura de
quem, tendo-o criteriosamente dirigido durante um quarto de século, também conseguira
reunir um distinto corpo de colaboradores ilustres.

E, sendo indispensável, como é a todos quantos escrevem sobre o Rio Grande


do Sul, a consulta do Annuario, cuja coleção (cada vez mais rara e de difícil aquisição)
constitui uma como que enciclopédia de coisas rio-grandenses, só um espírito fútil, desses
incapazes da mais rudimentar construção, desdenhará folheá-lo, receando boçalmente
incorrer na pecha de ilustração de almanaque, qualificativo lorpa, com que, às vezes, se exibe
a ignara fatuidade de tantos medalhões[...] No Brasil, onde a impressão é cara, almanaques
da feição do Annuario são verdadeiras revistas de publicação anual.

Fora da direção do Annuario, do qual, entretanto, ainda era Graciano de


Azambuja o seu mentor e conselheiro leal, não sofreu a menor solução de continuidade
a sua tarefa de publicista.
243

Causava-lhe vivo entusiasmo e reacendia-lhe o ardor patriótico esse pujante


desenvolvimento econômico da atualidade rio-grandense, ao qual ele acompanhava cheio
de nobre confiança, escrevendo assiduamente na imprensa diária. Aparelhado como
poucos no estudo e manejo da estatística, da economia social, da matemática, da finança
e das ciências naturais, podia abordar todos os assuntos relacionados àquele movimento,
estudando-os com o seu peculiar bom senso, de perfeito entendedor da matéria.

Não foi um literato, é certo. Nem a música, nem o desenho foram do seu
alcance imediato. Todavia, não sendo isento de frequentes momentos de sonho, lia tudo
quanto a boa literatura, quer nacional, quer estrangeira, produzisse de valor, e guardava
carinhosamente as estampas finas, interessando-se, igualmente, pela ópera e pelo drama.

A conversação com os seus íntimos não revelava senão modéstia.


Inteiramente despretensioso no trato com os amigos, cujo círculo era severamente
escolhido, porque, malgrado ser o dr. Graciano delicado de maneiras e atencioso para
quem dele se acercasse, não facilitava o acesso ao primeiro que o procurasse, tampouco
desde esse momento se franqueava em intimidades.

A sua esmerada cultura não era pretexto para fatigar o espírito do interlocutor,
com descabidas e tediosas citações a propósito de tudo e em tudo achando motivo para
essa copiosa loquacidade, com que a retórica meridional, ao serviço de vários paroleiros
espirituosos, abusa da complacência alheia, ingenuamente persuadidos de que atraem e
encantam com a sua pedantesca tagarelice acompanhada de um motejo lerdo,
supremamente aborrecíveis.

Paulo Stapfer, um espírito alegre, entretanto nota, com muita propriedade,


que o chiste da conversação está em o que fala não dever parecer-se um ator. Riam-se do
que ele diz e não do modo por que diz. Esses, de ordinário, descambam para a jogralidade
e recebem o causticante estigma do inimitável Camilo: “aplaudidos pela gargalhada e
aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem”.

Não. Graciano de Azambuja falava o bastante para manter animado o diálogo,


interessando-o vivamente pelo bom senso das suas reflexões, a escolha do tema, o
propósito das citações e a oportunidade da anedota.

E seria incompleta qualquer notícia referente à pessoa de Graciano de


Azambuja se o considerasse unicamente como um publicista de valor, um agrônomo de
competência e um advogado ilustrado.

Exatamente, porém, já que os seus estudos quase abrangiam o complexo dos


conhecimentos humanos, isso constitui, por si, verdadeira filosofia e exige que, embora
superficialmente, se investigue a que corrente de princípios obedecia ela. Qual a escola
professada por ele? Eis o problema, bem difícil de resolver.
244

Em vida, ao menos durante largo período da sua maturidade, pareceu convicto


discípulo do agnosticismo inglês, sendo muito intensa a sua admiração por Spencer. Por
vezes, falou em escrever alguns ensaios de filosofia moderna, e é possível que tivesse
dado início a este trabalho. Que a direção dos seus pensamentos não se condicionou aos
princípios da filosofia espiritualista é evidente, a julgar pelas obras existentes na sua
opulenta livraria e pela ausência de práticas religiosas, ao menos das que a Igreja exige.

Veio, sem embargo, afinal, a operar-se profunda e decisiva mudança nas suas
crenças, levando-o, no termo da vida, a aceitar a concepção do mundo tal e qual o
cristianismo impõe aos seus fiéis. O testamento dá público testemunho da sua conversão,
em incisiva profissão de fé.

O agnosticismo, sabem-no todos, sustenta que é baldado o falar do começo


ou do fim do universo, por escaparem tais acontecimentos à experiência; como também
é inútil o investigar a causa primária e a essência ou substância das coisas, questões estas
que por sua natureza são inacessíveis à nossa inteligência.

Admite-se, à vista desta limitação à órbita dos conhecimentos humanos, que


certos espíritos propensos ao estudo filosófico, de ordinário iniciado sob os auspícios da
doutrina teológica, a renunciem quando penetram nas teorias difundidas pelo
agnosticismo, para, por sua vez, igualmente, abandonarem-nas. É que, à proporção que
avançam na vida, não se satisfazem com o simples estudo dos fenômenos, conforme se
manifestam, e das leis que os regem, circunscritos à observação e à experiência. Querem
ir além, sentem-se insatisfeitos pela falta de explicação do enigma; indagam em vão; a
ciência emudece. Por outro lado, domina-os um sentimento de devoção, aguça-os a
necessidade de um ideal consolador, e a fé leva-os a aspirações mais altas. Voltam, então,
à antiga doutrina, àquela em que primeiro comungaram, e ei-los na estrada da conversão
religiosa.

Para tais consciências, os juramentos na fé agnóstica jamais poderão ser


solenemente cumpridos. Recordam a enérgica prevenção de Rosalinda: “são mais falsos
que os juramentos feitos sob o estado de embriaguez”.

A leitura que mais eficazmente concorreu para que o dr. Graciano de


Azambuja aderisse, por último, à semelhante ordem de ideias e sentimentos não foi outra
senão a obra de Arthur Balfour – As bases da crença (The foundations of Belief), da qual falava
com a mais contrita veneração.

Numa pessoa honesta como ele, o significativo fato da submissão a uma


crença universal traduz um ato nobremente redentor, de pura sinceridade e de generosa
altivez, quando proclamado espontaneamente, sem nenhuma sugestão estranha ou
suspeita.

VI

A folha de serviços oficialmente prestados à nação pode ser pequena.


Pequena, mas sucosa. À burocracia, que lhe causava aversão, só pertenceu quando na
245

mocidade. Exerceu as funções de procurador dos feitos da fazenda geral e, mesmo assim,
acidental e interinamente.

E só. Reclamados, porém, os seus serviços, como em comissão honorífica,


acudia pressuroso e prestava-os com a elevada consciência de quem só procura ser útil
ao país e à sociedade. Foi assim que prestou assinalados serviços como membro da
Exposição Brasileiro-Alemã, em Porto Alegre, em 1881, cujo bem elaborado catálogo dá
ideia dos seus amplos conhecimentos.

Na Exposição Colombiana de Chicago, representou o Brasil com a diligente


preocupação de empreender a propaganda dos produtos brasileiros no estrangeiro, muito
mais tarde, e sem nenhum resultado prático, operada oficialmente pelo governo federal.

Também foi membro da comissão diretora da Exposição Estadual de 1902.

Convidado mais de uma vez para o exercício de vários e elevados cargos


públicos, de vantajosa remuneração, recusou persistentemente o seu assentimento.

Figura que em vida se manteve de pé, Graciano de Azambuja pela sua


dignidade, pela sua ilustração, pela sua firmeza de proceder e pelo seu acendrado civismo,
teve uma existência fecunda e legou por onde se lhe possa fazer um honroso inquérito
da sua passagem pela vida.

E quem for possuidor dos complexos elementos com que resistir a essa prova,
ainda mesmo severa, é positivamente individualidade primacial no meio em que atuou.
246

QUESTÃO DE LIMITES ENTRE OS


MUNICÍPIOS DE CONCEIÇÃO DO ARROIO
(Osório) E SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA
DECISÃO ARBITRAL DE ALCIDES DE FREITAS CRUZ,
PROFERIDA EM 14 DE MAIO DE 1912

(Archivo Judiciario - Porto Alegre: Globo, publicação bimestral, v. I, fasc. II, mar. 1913)

Vistos estes autos do litígio sobre limites, entre os municípios de Conceição


do Arroio e Santo Antônio da Patrulha.

Alega, em resumo, o primeiro destes municípios:

Que, na espécie, tratando-se de restabelecer e fazer reconhecer limites já traçados e


prefixados ou, pelo menos, determinados e conhecidos, é, em definitivo, reivindicar parte de um
território usurpado, de sorte que o município da Conceição do Arroio está neste pleito,
para com o de Santo Antônio, como o autor reivindicante está para o esbulhador;

Que não há limites a traçar ou a resolver, “não há que rotear uma divisória no
rigor da tecnologia jurídica e exatidão geodésica, mas uma extensa área de território a
reivindicar com seus limites conhecidos”;

Que a lei provincial n. 401, de 16 de dezembro de 1857, elevando a então


freguesia à vila, conservou-lhe os limites sem que, todavia, os houvesse fixado claramente;

Que, se fossem conhecidos os limites da freguesia, é certo que seriam


conhecidos os da vila, mas que nada mais difícil do que pesquisar e encontrar assentos
de tal ordem nos arquivos e tombos do governo colonial e, portanto, “fora esse trabalho
insano e baldado”;

Que, posteriormente, fundada a Colônia Vilanova entre os dois municípios,


resultou ficarem dentro do município da Conceição do Arroio grande parte da secção
Caraá, inclusive a sua sede no Morro Agudo, a secção Bocó, a secção Fraga e diversas
linhas coloniais;

Que Conceição do Arroio, para que tais núcleos não fossem sufocados em
seu desenvolvimento, não lhes fez pesar a devida taxação de impostos e, desse aparente
abandono, aproveitando-se Santo Antônio, não só inscreveu nos seus lançamentos as
casas de negócio situadas neles, como qualificou eleitores aos respectivos moradores;

Que os fatos – tais como a Intendência de Santo Antônio, em ofício de 6 de


julho de 1895 à de Conceição do Arroio, pedindo a esta que esclarecesse àquela quais
eram as divisas exatas, pois que não tinha elementos para neste sentido informar ao
247

governo do Estado, que assim exigia; bem como a tradição, conservada através de mais
de uma geração, e “a constituição corográfica do município, pela própria estrutura física,
orográficas e hidrográficas da região” – militam em seu favor;

Que, igualmente, militam em prol de Conceição do Arroio fastos da vida civil


e administrativa, como atos oficiais da administração fiscal do Estado, mandando lançar
e arrecadar pela coletoria da Conceição impostos relativos às colônias situadas na zona
litigiosa;

Que a geografia do Estado, por órgão de seus autores, descreve o Rio dos
Sinos como nascendo na Serra da Pedra Branca, que fica no município de Conceição do
Arroio;

Que o mapa do Estado do Rio Grande do Sul, organizado pela Diretoria da


Viação, traça a verdadeira linha divisória dos dois municípios, a qual obedece à orientação
topográfica de toda a região, quer em relação aos acidentes naturais do solo, quer em
relação à divisão das águas, pois, partindo ela do ponto reconhecido pelos dois
municípios (nascente e curso do Capivari, ao Sul), dirige-se à Barra do Ouro “sem ir de
encontro aos acidentes naturais do solo”; e

Que Conceição nunca perderia por usucapião os seus direitos, que são
imprescritíveis, porque o são sobre bens do domínio público municipal, inalienáveis e
não sujeitos à prescrição.

Alega, em síntese, o município de Santo Antônio:

Que a linha divisória entre ambos os municípios é a figurada na planta junta,


doc. n. 1, a qual, partindo do extremo sul da Lagoa dos Barros, segue pela cerca do Pinho
e, encontrando o limite da Colônia Vilanova, contorna-a até alcançar o arroio Bulcão,
seguindo daí pelo contraforte principal da Serra Geral, até encontrar o dorso da mesma;

Que a dúvida sobre os respectivos limites provém de não se acharem eles


expressamente determinados em lei, relevando ponderar que a lei provincial que criou o
município de Conceição do Arroio apenas declara que fica elevada à categoria de vila a
freguesia da N. S. da Conceição do Arroio, compreendendo os seus limites o território
da mesma freguesia, sem determiná-los, quando, aliás, também não constam nos arquivos
eclesiásticos;

Que, nestas condições, à falta de títulos autênticos do domínio ou direitos dos


litigantes, são de aplicar as regras de Direito Público para a solução de litígios desta
natureza: na falta de títulos originários do domínio, prevalecerá a posse dos litigantes (uti
possidetis) e, na falta dela, a comodidade das partes;

Que o município de Santo Antônio, desde épocas imemoriais, exerce sobre o


território litigioso sua posse só ultimamente discutida; e

Que o próprio município de N. S. da Conceição do Arroio reconhece a posse


de Santo Antônio.
248

Respondendo à exposição oferecida pelo município de Santo Antônio, o da


Conceição sustentou a sua primitiva exposição, e o de Santo Antônio, por sua vez,
impugnou a de Conceição, desenvolvendo os argumentos referentes à ocupação que vem
exercendo.

Para melhor esclarecer-se, este juízo procedeu, em pessoa, a várias diligências


in loco, e, na forma do art. 25 do Código do Processo Civil e Comercial, foi reduzido a
termo o depoimento verbal e sumariamente prestado pelas testemunhas; também
descobriu documentos que, fazendo-os juntar, mandou sobre eles dissessem as partes.

O procurador do município da Conceição do Arroio declarou, em cota nos


autos, que nada esclarecem nem influem na substância do pleito, e que a provisão
eclesiástica que criou a freguesia da Conceição também nada adianta, porquanto a
discriminação dos limites das circunscrições paroquiais no antigo regime ficava a cargo
do poder temporal.

Depois de várias outras considerações, termina com a renúncia da missão de


advogado do município da Conceição do Arroio.

O de Santo Antônio limitou-se a pedir justiça.

O que, tudo visto e examinado:

O ato legislativo de 1857, que elevou à vila a freguesia da N. S. da Conceição


do Arroio, não tendo determinado os limites do novo município por ele criado, mas,
simplesmente, declarando que seus limites compreendiam o território da freguesia criada
em 1773, pela provisão eclesiástica, permite que se lhe possam tirar as seguintes ilações:

a) Que não altera os respectivos limites;

b) Que, portanto, se foram anteriormente criados, ainda persistem eles;

c) Que já o legislador de 1857 os não tinha presente, tanto que os não


enumerou.

Documento, pois, de imprescindível valia para a decisão do pleito, como


ambos os municípios, em suas alegações, reconhecendo-o, lamentam a perda dele e a
impossibilidade de ser encontrado, malgrado todos os esforços; este juízo, por seu turno,
também o procurou e, com tamanha certeza de o encontrar, que logo à primeira tentativa
o descobriu e o mandou juntar aos autos, abrindo-se vista a ambas as partes para que
dissessem sobre ele.

Realmente, o Bispado do Rio de Janeiro, sob cuja jurisdição eclesiástica estava


o Rio Grande do Sul, baixou, em 18 de janeiro de 1773, uma provisão criando a vigararia
de Nossa Senhora da Conceição do Arroio, provendo-a do respectivo pároco e erigindo-
249

a “em freguesia, assinando-lhe por limites aqueles mesmos que para a dita nova Povoação
forem assinados pelo Coronel Governador da dita Província por mandado do
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Marques Vice-Rei e por Fregueses todos os
moradores que ficarem compreendidos no território da nova Povoação[...]”.

O ato episcopal criador da freguesia da Conceição do Arroio, sobre o qual se


baseou a lei provincial de 1857 que a elevou à vila e, portanto, a município, como se vê,
não só não declarou os limites da freguesia por ele ereta, como deixou esta tarefa a cargo
do governador do Rio Grande do Sul, que, então, era o benemérito José Marcelino de
Figueiredo. E isto porque, como lucidamente justifica o representante do município da
Conceição do Arroio, “era em virtude do direito de padroado e consoante as praxes
estabelecidas no extinto regime concordatário do Império, a discriminação da extensão e
limites das circunscrições paroquiais ficava sempre ou quase sempre na dependência do
poder temporal”.

E nem mesmo naquela época, tão recuada, podia ser fácil ao Bispado do Rio
de Janeiro o determinar divisas de uma zona remota, quase ínvia e, até, infestada de
silvícolas bravios. Se da geografia do Rio Grande do Sul ainda até hoje é deficientemente
conhecida a de certas regiões, com muito mais forte razão o era naquele tempo, já distante
cerca de século e meio.

Era impossível, até mesmo ao governador do Continente (e a prova é que jamais


a procedeu), porque o território rio-grandense mal começava a povoar-se, contando
naquele ano apenas dezoito mil habitantes, e, deserto, inculto, inóspito, não podia ser o
que hoje é, numerando uma população superior a um milhão de habitantes, mas, não
obstante, ainda com a sua topografia mal reproduzida em cartas, plantas, mapas, etc.

A região em litígio, que deu origem ao presente pleito, diz o documento de


fls. 50, era, em 1796, vinte e três anos depois da criação da freguesia, de “sertões de matos
infestados de bugres entre a Serra que faz fundo à lagoa da Pinguela desta freguesia e a
Serra Geral, portanto, uma serrania agreste e ínvia”.

Pode-se afirmar, pois, convictamente: a provisão eclesiástica, consoante o uso


e as leis do tempo, deferiu ao governo temporal a tarefa de discriminar os limites da
freguesia, e ele jamais os discriminou, porque, se os tivesse assinado por qualquer ato, tê-
lo-ia mencionado a lei provincial de 1857, baseando-se de preferência nele e não no
decreto eclesiástico, como se baseou.

Conclui-se:

Que os limites entre Conceição do Arroio e Santo Antônio da Patrulha em


tempo algum foram estabelecidos.

Importa sobremodo esta conclusão para caracterizar a natureza da ação ora


pleiteada, que assim deixou de ser de reivindicação, como pretende Conceição do Arroio,
para ser pura e simplesmente de demarcação.
250

Em se tratando de constituir limites, só procede a reivindicação quando se


pede a restituição de parcela determinada e certa de terreno (Cf. BIANCHI, Corso di
Diritto Civile, v. 9, parte 1ª, § 85).

A ação é, como já se disse, de demarcação, da qual um dos fins é exatamente


o visado pelo atual litígio: um prédio (na espécie qualquer dos dois municípios
contendores) a pretender traçar uma linha separatória, assinalada de marcos, que a divisa
de outro prédio confinante, por se não ter jamais corrido rumo ou divisa entre ambos
(Cf. BRUGI, Istituzione di Diritto Civile § 4º; BIANCHI, op. cit.; PLANIOL, Droit Civil,
1002; CORREIA TELLES, Doutrina, 280; CAROATÁ, Vademecum, 733, etc.).

II

O município de Conceição do Arroio pretende, entre outros motivos, fundar


o seu direito à região ocupada pelo de Santo Antônio, numa referência feita pelo
Intendente deste e que aquele reputa como sendo uma confissão implicitamente exarada
em ofício. Nesse documento, entretanto, o Intendente de Santo Antônio nada confessa
a respeito de posse ou falta de posse sobre a zona contestada; apenas ele certifica a
circunstância de lhe ter, o Governo do Estado, solicitado as declarações dos limites
daquele município, e, como não pudesse satisfazer a solicitação, devido à falta de
elementos, pedia ao Intendente do município limítrofe os necessários esclarecimentos.
Não é, claro está, uma confissão revestida dos requisitos em Direito exigidos para valer
como tal.

Quanto à pretendida prova ministrada pelos dados geográficos e


cartográficos, há a objetar muitas considerações que, infelizmente, subtraem deles grande
parte da força probante que poderiam conter. Em primeiro lugar, nos mapas gerais, a
pequenez da escala se torna deficiente para reproduzir fielmente regiões tão vastas e
acidentadas. Assim é que os mapas do Visconde de São Leopoldo, de Cândido Mendes,
do coronel Jacques, do dr. Cunha Lopes e do Barão Homem de Mello, por essa razão,
não podem esclarecer a dúvida. E muito menos os mapas parciais e inéditos levantados
no século XVIII pelo Marechal Funck, pelo Brigadeiro Roscio e pelo Coronel Moniz
Barreto, que figuraram na Exposição da História do Brasil e se acham, agora, uns na
Biblioteca Nacional, outros no Arquivo Militar, além de que, naquele tempo, nem Santo
Antônio nem Conceição do Arroio eram municípios.

Outros, em escala maior, como o do Conselheiro Camargo e o do Marechal


Niemeyer, Werneck e Krause, porque datam de muitos decênios, quando ainda não se
tinham sido fundadas as colônias na área contestada, omitem esclarecimentos essenciais,
que hoje não seria perdoado omitirem.

Nas mesmas condições, para o caso, está o recente mapa oficial do Estado;
primeiro, porque não é uma edição definitiva, mas um ensaio destinado a correções;
segundo, porque a linha divisória por ele traçada entre os municípios contendores não se
baseia em títulos de domínio ou posse e, muito menos, em [rasgado] algum; é uma linha
arbitrariamente corrida.
251

Mais satisfatória, na espécie, que todas as cartas examinadas pelo juízo é a do


dr. Jannasch, consultada com relativo proveito.

Finalmente, compêndios ou obras geográficas só poderiam influir com a sua


autoridade se, assinalando lugares como pertencentes a este ou àquele município, o
fizessem baseados em documento idôneo. Mas, não o havendo, como não há no caso
concreto, o invocá-lo em ponto tão duvidoso nada vale, tanto mais que a contenda pode
ser dirimida sem esse concurso. O depoimento das testemunhas informantes, a fls. 128,
mostra como a nascente do rio dos Sinos não é na estância assinalada pelo Dicionário de
Araújo e Silva, invocado pelo município da Conceição. E é quanto basta para advertir da
cautela e prudência necessárias a todos quantos precisarem recorrer a tais livros.

De igual modo, sem autoridade é o concurso ministrado pelo documento de


fls. 30, oferecido pelo município de Conceição do Arroio, em que, descrevendo
absurdamente os seus limites, vai ao ponto de referir que pelo Sul confronta com o
município de S. Luiz de Mostardas. Ora, quem ignora que Mostardas não é município
não pode pesar em assunto desta monta.

E, também, não valem os documentos de fls. 34, 35, 56 e 58, porque, quanto
ao primeiro, o município de Santo Antônio não se arroga ter direito à Colônia Marquês
do Herval; quanto aos dois seguintes, igualmente Santo Antônio não reclama jurisdição
alguma sobre terras de João Enet. Por último, o lugar denominado Laranjeiras também
pertence à zona não reclamada por Santo Antônio e, portanto, fora de litígio.

A documentação com a qual o município de Santo Antônio instrui a sua


exposição também não é proveitosa no seu conjunto.

No que importa à prova de comodidade dos habitantes, não é de aproveitar


as declarações constantes em abaixo-assinados, espécie de manifestação geralmente
carecedora de espontaneidade e falha do cunho de sinceridade; nem certidões de
lançamentos para contribuições fiscais, do mesmo modo, constituem meios de prova
legitimadores do uti possidetis.

As justificações de fls. 76 e 89 incorrem em idêntica censura, porque delas não


teve ciência, nem audiência, a parte contrária.

III

Assentado que a presente ação é de demarcação, cujo objeto na espécie é


constituir limites jamais traçados, entre os contendores municípios, cumpre examinar por
que títulos haverão eles de ser constituídos.

A regra geral é que os limites constituir-se-ão segundo os títulos de domínio,


atendendo-se aos documentos, ainda mesmo que só incidentemente façam menção dos
confins, segundo Borges Carneiro (Direito Civil, v. 4, § 87, n. 15).
252

Todos os praxistas, porém, ensinam que à falta de domínio prevalece a posse,


em virtude do princípio “que a posse faz presumir o domínio”. E para isso basta prova
semiplena (BORGES CARNEIRO, cit., n. 14; RAMALHO, Praxe, § 288, nota b).

Ora, é incontestável que o município de Santo Antônio da Patrulha sempre


exerceu a posse sobre uma grande área da Colônia Vilanova, abrangendo as seções Fraga
e Bocó; como, do mesmo modo, não se pode negar posse exercida pelo município da
Conceição do Arroio sobre outra área, embora menor, da referida Colônia, em parte da
seção chamada Morro Agudo.

Há prova nestes autos de que aquela Colônia foi, em parte, estabelecida em


terras onde o município de Santo Antônio exercia posse antiga, pois já em 1864 a Câmara
Municipal dessa vila representava ao presidente da Província, mostrando-lhe a
conveniência de fundar colônias nas cabeceiras do Rio dos Sinos e Bocó (documento a
fls. 133 A); posteriormente, quando foi do estabelecimento da dita Colônia, o escritório
da respectiva comissão diretora teve sua sede naquela vila (doc. a fls. 106 e depoimentos
a fls. 128 e seguintes).

As testemunhas inquiridas (fls. 128 até 131) declararam uniformemente, de


modo conteste, que as seções Fraga e Bocó, mesmo antes da fundação da Colônia, já
faziam parte do município de Santo Antônio.

Mas já assim não se dá com relação à zona do Morro Agudo, sobre a qual
Conceição não só sempre exerceu jurisdição administrativa (documentos a fls. 53 e 59),
como posse ultracentenária, a qual indiciariamente provam o documento a fls. 50 e o
silêncio das testemunhas sobre este particular.

A um e outro município falecem elementos por onde se possa basear o regular


traçado de uma linha separatória acompanhando os acidentes naturais ao solo, critério
que leva primazia sobre todos os outros, uma vez que seja suscetível de praticar o que,
aliás, no caso concreto é impossível. O terreno não comporta semelhante aplicação, sob
pena de cometer-se uma clamorosa injustiça contra o município da Conceição do Arroio.

Rigorosamente, a observar como devia ser observado o preceito, Conceição


do Arroio deveria ocupar somente a região de campos, a baixa, serra abaixo entre a
cordilheira e o mar, e Santo Antônio, exclusivamente o terreno montanhoso. Isto, porém,
incidentemente referido, mas que exprime a orientação geográfica, está fora da questão.

Sendo, como é, impossível o estabelecimento da linha divisória a desenvolver-


se de acordo com os acidentes do solo, porque a mais simples inspeção ocular prova a
sua impraticabilidade nos termos reclamados pelo município da Conceição do Arroio,
faz-se necessário o estabelecimento de linhas arbitrárias, sem que, dessa arte, se incorra
na censura geográfica. Na acreditadíssima ENCICLOPEDIA BRITANNICA (1910,
Universidade de Cambridge, v. 11, p. 637, verbete Geography), encontra-se a confirmação
dessa doutrina no seguinte período: Arbitrary lines either traced from point to point and marked
by posts on the ground, or defined as portions of meridians and parallels, are now the most common type
of boundaries fixed by treaty (Linhas arbitrariamente traçadas, ou sejam de ponto a ponto
assinaladas por meio de marcos sobre o terreno, ou sejam definidas segundo meridianas
253

e paralelas, são atualmente o tipo mais usado, em convenções, para a determinação de


limites).

Expostas todas estas considerações, e de acordo com as declarações a fls. 3,


5, 6 e 7 destes autos,

Julgo, afinal:

A linha separatória dos municípios litigantes sairá do ponto de intersecção do


limite de ambos com o de S. Francisco de Paula de Cima da Serra e, dirigindo-se para o
Sul, correrá pelo dorso da cordilheira, que, na planta oferecida pelo município da
Conceição do Arroio, se denomina “Divisa das Águas da Bacia do Guaíba e do rio
Tramandaí”, e, na planta instrutiva da exposição de Santo Antônio, tem o nome de
“Limite das caídas fortes do contraforte principal da Serra Geral”, até alcançar a cabeceira
do arroio Bulcão; depois, subindo por este, tomará, ao aproximar-se da extremidade norte
da linha Godofredo, o rumo Leste, costeando os lotes nos 56 e 55; daí, em rumo Sul, por
toda extensão oriental da referida linha Godofredo. Ganhando, então, um pouco para
leste, até encontrar o ribeiro figurado como nascente do rio dos Sinos, descerá por este
até o começo da linha Doze de Janeiro; prosseguirá para o sul, ressalvando para o
município da Conceição a dita linha Doze de Janeiro, com os seus oito lotes figurados na
planta do município de Santo Antônio, até alcançar o extremo nordeste da linha Cinco
de Agosto e por ela abaixo, costeando-a, e mais as linhas Dois de Setembro e Primeiro
de Janeiro, até atingir a margem setentrional do arroio Bocó e, remontando-o, irá até o
lote n. 1 da linha Primeiro de Janeiro. Deste ponto, a linha dirigir-se-á à caída ocidental
do Morro Agudo, a encontrar a divisa das terras de Silvério Antônio Teixeira com a seção
Caraá. Fará, então, uma deflexão para o sul, até o extremo meridional da linha Caraá, que
fica à margem esquerda do arroio do mesmo nome, de forma que fiquem ressalvadas
para o município da Conceição do Arroio as terras que no mapa desse município se
assinalam como de João Enet, e no de Santo Antônio, como pertencentes a Felisberto
José Pires, Manoel Luiz Alves e Antônio Joaquim Machado, bem como o serro
conhecido por Morro Agudo.

Do citado extremo meridional da linha Caraá, que divide com Antônio


Joaquim Machado, a linha tomará a direção aproximadamente sudoeste até encontrar o
extremo oriental da linha Dinarte Ribeiro e, costeando-a pelo sul, terminará na cerca do
Pinho e, por ela abaixo até a Lagoa dos Barros e atravessando-a, alcançará na margem
meridional da Lagoa o sangradouro velho, que serve de divisa, prosseguindo até o arroio
Galinha e, por ele, ao Capivari, conforme há sido respeitado até agora.

Observo que, havendo uma divergência entre os mapas apresentados pelos


contendores quanto ao Arroio Caraá e o Arroio do Meio, segundo as diligências efetuadas
por este juízo, certo está, neste ponto, o que instrui a exposição feita pelo município da
Conceição do Arroio e, portanto, na de Santo Antônio, onde se lê Caraá, leia-se Arroio
do Meio, e vice-versa.

O juízo arbitral repele as insinuações, tão insólitas quanto descabidas, jogadas


pelo procurador do município da Conceição do Arroio, a respeito de se ter procedido à
inquirição das testemunhas em Santo Antônio da Patrulha, de cuja diligência teve prévia
ciência não só o mesmo representante, como também o respectivo Intendente, que
254

respondeu à intimação nos termos do telegrama a fls. 132. E o juízo observa que ele é
quem escolhe e determina o local onde deve efetuar as diligências, sem se subordinar às
preferências manifestadas por esta ou aquela parte, e muito pouco conhecedor das
normas peculiares ao juízo arbitral se mostra quem exige diligências a que semelhante
juízo não está adstrito, conforme se infere do espírito do próprio Código do Processo
Civil e Comercial do Estado.

O escrivão sele as folhas acrescidas e, intimadas as partes (o município da


Conceição do Arroio por carta ao respectivo Intendente, visto o procurador constituído
destes autos ter renunciado ao seu mandato), extraia cópia desta sentença e a envie ao sr.
dr. Secretário de Estado dos Negócios do Interior e Exterior e recolha estes autos ao
Arquivo Público.

Retardei esta sentença devido à demora em me ser fornecido o documento de


fls. 131 e aos afazeres inerentes à minha profissão. Porto Alegre, 4 de maio de 1912.
Alcides de Freitas Cruz.

Na edição de 1º de março de 1912 de A Federação, na Seção “Pelos Municípios”, deu-se a notícia


de Santo Antônio:
Chegou a esta vila, na noite de 10 do corrente [10 de fevereiro], o deputado
estadual dr. Alcides Cruz, árbitro do litígio de limites entre este município e
o da Conceição do Arroio, nosso estimado vizinho.
O conhecido jurista vinha acompanhado do diligente e ativo escrivão do juízo,
capitão Marcos Alencastro de Andrade Filho, também do foro de Porto
Alegre.
No dia seguinte, procedeu a diligências, tomando os depoimentos de várias
testemunhas, antigos moradores da zona de litígio e profundos conhecedores
dela. Explicou a um dos nossos amigos que o foram visitar que, estando Santo
Antônio de posse de toda a área disputada, era esse o povo competente para
as diligências, e que lamentava profundamente o não comparecimento do
honrado intendente da Conceição do Arroio, a quem fizera intimar
previamente.
A 12, depois de ter regressado o escrivão para a capital, o árbitro seguiu para
a vila da Conceição. Tendo, porém, vindo ao seu encontro na divisa meridional
da Lagoa dos Barros um grupo de conspícuos cidadãos do referido município
da Conceição do Arroio, aproveitou ele a oportunidade para colher informações
na presença de todos os interessados.
Na manhã de 13, achando-se naquela vila, realizou excursão à Serra,
colhendo novos esclarecimentos acerca da região contestada. Na tarde desse
dia, transportou-se para Tramandaí, distante 4 léguas da vila, no intuito de
obter condução para seu regresso a Porto Alegre. Foi acompanhado até aquela
aprazível estação balneária por vários e amáveis amigos moradores na
Conceição do Arroio, aos quais o dr. Alcides Cruz não deixou de fazer as
mais lisonjeiras referências aos ótimos campos de criação, que ali encontrara,
255

rivais dos melhores da fronteira, apenas lamentando que os criadores não


procurassem o melhoramento dos seus gados por meio da cruza selecionada.
Em Tramandaí, onde durante curta demora entreteve as melhores relações
com o coronel Reduzino Pacheco, influência política e delegado da Conceição,
advogado Maneca Bastos, futuro intendente, e outros (procurando sempre
novos esclarecimentos), não lhe foi fácil alcançar pronto meio de regresso a
Porto Alegre, pois só a 19 conseguiu voltar, passando novamente por esta vila,
em companhia do nosso ilustre intendente e chefe local, coronel José Maciel,
que tivera a fineza de ir a Tramandaí, em visita àquele cavalheiro.
Na tarde desse mesmo dia 19, deu entrada nesta vila, acompanhado do
simpático major Júlio de Andrade, os quais foram recebidos no lugar
denominado entrada do mato, por uma brilhante e luzida escolta de mais de
cinquenta cavaleiros. Recebidos ao som da banda de música da localidade e
ao estrugir de foguetes, foi-lhes oferecido lauto jantar na residência do coronel
José Maciel, onde se hospedaram.
Nessa noite, o partido republicano de Santo Antônio fez imponente
manifestação, da qual foi órgão o promotor público, nosso esforçado amigo,
que em nome do partido republicano local saudou o deputado dr. Alcides
Cruz. Depois de erguidas vivas ao dr. Borges de Medeiros e coronel José
Maciel, o itinerante dirigiu a palavra aos seus correligionários, declarando que
individualmente nada valia, e que naquela ruidosa prova de apreço ele
reconhecia dois motivos: um, a reconhecida generosidade e o cavalheirismo dos
filhos de Santo Antônio, que, como Conceição, Torres, Viamão e Quaraí,
constitui a zona rio-grandense onde mais puras se conservam as velhas
tradições patrícias, e outro – o fato de pertencer ele ao partido republicano, do
qual é um velho soldado cujo maior orgulho é o de ter tido como general o
inolvidável Júlio de Castilhos.
O partido, sim, como início de forças, vale muito, e esta união que o torna
invencível é devida ao prestígio de Borges de Medeiros, que tem como
representante imediato em Santo Antônio o coronel Maciel. Terminou
levantando vivas ao dr. Borges de Medeiros e ao partido republicano.
No outro dia, ambos os itinerantes partiram para Porto Alegre, tendo sido
acompanhados a uma légua fora da vila por muitos amigos.
Informaram-nos que o dr. Alcides Cruz foi agradavelmente impressionado
com o adiantamento desta vila e a riqueza de toda a região limítrofe, não lhe
escapando o rápido progresso de Tramandaí, que é o núcleo de uma futura e
bela cidade.
256

A CARESTIA DA VIDA
I

(A Federação, Porto Alegre, 8 mar. 1913)

Um assunto inteiramente novo no Brasil, e que pela sua gravidade assoberba


na hora presente o governo da União, impondo-lhe uma solução radical, eficaz e decisiva,
é o da carestia dos gêneros alimentícios na cidade do Rio de Janeiro, metrópole da
nacionalidade pátria.

Já circulam alarmantes toadas; agita-se a praça pública; secunda a imprensa o


movimento popular, e tudo faz crer que estamos em vésperas de uma crise desconhecida,
talvez fatal e de resolução difícil pelos meios comuns.

Em tão aflitiva emergência, é elementar dever da administração pública o


saber colocar-se, ele, na altura da situação e com a sua conduta, segura e resoluta, mostrar
para quanto serve e de que serve.

Confiamos que a obra do poder público será tutelar dos mais caros interesses
da multidão, ameaçados de subversiva crise.

Certamente, a questão é complexa, é delicadíssima, é transcendente e, ainda


assim, tem de ser resolvida quase que de plano.

Mas se, como ensinam os doutrinadores da chamada ciência da administração,


o principal dever do poder público é, quando provocada sua intervenção em casos dessa
natureza, próximos dos de salvação pública, atuar com prontidão e acerto, devemos
indagar se a sua prometida intervenção satisfará esses dois requisitos essenciais.

É preciso que a ação do governo seja sempre pronta, imediata e sem demora,
porque, não sendo assim, ela se verifica tardia e desnecessária as mais das vezes, visto
qualquer retardamento permitir a manifestação dos desastrados efeitos que se tinham em
mira abreviar.

São necessários segurança, acerto e eficácia, porque sem isto de nada valeria
aquela intervenção.

O velho publicista espanhol Manuel Colmeiro já ensinava, há quase meio


século, que a lentidão da ação administrativa de ordinário manifesta fraqueza e subtrai
das medidas administrativas o mérito da previdência e da oportunidade.

E, mais, recomendava ele a energia, pois uma administração amolentada


perde-se perante a opinião pública, já que, desprovida de força moral, ela não pode,
quando tiver de se fazer obedecer, empregar a linguagem persuasiva, e ver-se-á, assim,
257

obrigada ao uso de violentos meios coercivos, sempre prejudiciais e impróprios da boa


política.

Ora, as medidas, difundidas pela imprensa carioca e por órgãos diretamente


interessados na adoção delas, não deixam esperança de que sejam decisivas e certas.

A reforma tarifária, incontestavelmente o primeiro passo para ferir de morte


o exagerado protecionismo, não basta e, além de tudo, é de elaboração lenta, difícil, sujeita
a intermináveis discussões parlamentares. E a ser efetuada sem o devido estudo e certas
precauções reclamadas pelas circunstâncias de tempo e espaço, viria afetar
profundamente vários ramos da produção do país.

A arbitrária abolição de impostos a que estão sujeitas as mercadorias ditas de


primeira necessidade não resolve de forma alguma a situação e até, pelo contrário, pode
agravá-la sensivelmente e por vários motivos.

É um problema que se liga intimamente a outros, cada qual mais


transcendental e cuja resolução não consente seja feita de um dia para outro,
precipitadamente.

Admita-se, porém, que o governo ponha em prática a equiparação de


impostos ou mesmo a abolição deles, tanto para o charque nacional como para o platino,
e, ao lado desta supressão ou diminuição, também elimine os de consumo e os
municipais.

Primeira questão: tudo isto obrigaria o varejista à baixa de preços nas suas
vendas?

Se a carestia depende da existência de trustes, é evidente que tais favores não


ocasionariam a almejada diminuição de preços, porque eles persistiriam a afrontar o
governo e o povo, contanto que os lucros fabulosos fossem alcançados, sem nenhuma
interrupção, sofra quem sofrer. De sorte que o varejista, dependendo como depende do
truste, não poderia valer-se daquelas franquias.

Segunda questão: Abolidos os impostos de importação, a que ficaria reduzida,


em época tão precária como esta, a produção nacional dos similares estrangeiros que
passassem a ter livre entrada em todo o país?

Seria, pois, a tentativa de semelhante alvitre um desafio a novas calamidades.


258

A CARESTIA DA VIDA
II

(A Federação, Porto Alegre, 11 mar. 1913)

A alta tanto quanto a baixa dos preços obedecem à variada quantidade de


fatores, dos quais alguns parecem escapar ao economista, porque os há uns claros e
outros ocultos. E, se no número deles, as taxações onerosas exercem larga influência
entre os causais da agravação do custo, e, como móvel próximo e conhecido é um dos
que mais chamam a atenção do político ou do governante, há um outro elemento cuja
influência, embora negada por autoridades do maior abono, ainda assim reúne os
sufrágios da maioria dos economistas modernos, tão evidente se revela o princípio da
oferta e da procura.

Resulta, pois, que se o protecionismo absoluto e a descompassada tributação


exigem como preliminar da ação do poder público, diante da carestia da vida, uma nova
orientação, diferente da seguida até agora, que era muito próxima da quase inércia
governamental, também o aumento da produção como meio de satisfazer as imposições
da oferta e da procura é outra iniciativa a que se deve dirigir a atividade administrativa.

Neste assunto e, particularmente no tocante à alimentação, sendo certo que o


brasileiro consome de preferência substâncias azotadas, o governo não pode limitar-se à
proteção simples e exclusiva da lavoura.

Só a lavoura, primeiro a da cana de açúcar, depois a do café, e isto desde o


Império, há merecido o desvelo e as atenções do poder público. É tão recente o cuidado
com o trigo, e tão negativos os efeitos, que ainda não merece reparos.

Portanto, lícita é a pergunta: que tem ele feito a favor do crédito pastoril? E
em prol da pesca, o que de liberal, profícuo e prático existe?

Ainda, em relação ao gado, talvez já fosse tempo de se lhe regulamentar a


exploração, como em alguns países se procede quanto às matas, à caça e a pesca. Assim,
era de lembrar uma medida outrora imposta, aqui mesmo, ao Rio Grande do Sul colonial,
por um benemérito vice-rei, que obrigava, com penas graves, a que se não matassem
vitelas, nem vacas[...] e que também não se matassem touros, nem bois para as couramas,
senão de cinco anos para cima.

Em suma, esta questão de carestia de alimentos não é local, mas universal,


graças ao prodigioso aumento de consumo. Ainda agora, na própria Inglaterra, está se
discutindo a taxação aduaneira de gêneros alimentícios e, é sintomático, a questão tornou-
se bandeira partidária e ameaça cindir o partido conservador, de si já muito abalado na
confiança pública, inspirando os cuidados do seu apagado líder, Bonar Law.
259

Matéria que ninguém cogitava viesse impor-se imperiosamente como de um


momento para outro se impõe e ameaça quando, aliás, erros sobre erros, deploravelmente
repetidos, lhe preparavam o terreno, já não há tempo para o exame de teorias.

Mas o Estado moderno, verificadas essas energias, tem recursos


extraordinários de conjurá-las, sob pena de faltar à sua missão, como o antigo, que a
carência de meios idôneos tinha, ordinariamente e nos momentos mais críticos, paralisada
a sua ação.

Nas organizações políticas contemporâneas, um dos característicos essenciais


é o grande desenvolvimento da vida urbana, isto é, das cidades. Estas aumentam não só
em número de habitantes, mas também em faculdades governamentais, que lhes dão
considerável força de poderes.

É justa e necessária esta elevação de autoridade política, porque os incidentes


problemas da vida urbana não só cresceram de interesse, como a respectiva solução cada
vez é mais difícil e iminente. Mas um dos métodos conducentes a esse fim é o
alargamento da esfera da atividade municipal, que cada vez se estende a uma nova
exploração de certos públicos, na intenção de melhor servir o interesse dos munícipes,
porque a cidade foi politicamente organizada para governar e não para lucrar, segundo o
incisivo conceito de Oscar Pond, jurista americano que estudou proficientemente a
municipalização dos serviços públicos num livro que já não é novo (Municipal control of
public utilities, 1906).

A crise atual paira precisamente sobre a maior cidade brasileira, a sua


municipalidade tem competência para operar a obra reclamada de momento, enquanto o
governo da União acerta os meios definitivos.

O que para este é um serviço demorado, para aquele só depende de resolução


e energia.

Consentirão os edis da grande metrópole nacional que o flagelo da fome,


removido desde a Idade Média, volte a ser uma das calamidades públicas, no coração do
Brasil, rico e próspero?
260

A NOVA LEI ELEITORAL (I)


(A Federação, Porto Alegre, 10 jun. 1913)

O governo representativo, o único atualmente adotado por todas as nações


modernas civilizadas, incluída a Rússia (agosto de 1905), até então divergente; esse, no
qual ao povo incumbe a designação das pessoas a quem está confiado o encargo das
funções governativas, repousa no sufrágio ou voto popular.

O sufrágio universal é, portanto, o alimento imediato e a principal fonte de


vida dos governos contemporâneos, sem o que estes não poderiam representar a vontade
do povo.

Daí a absorvente preocupação dos estadistas de procurarem e descobrirem


um sistema eleitoral que permita, tanto quanto for possível, a participação de todos os
cidadãos na suprema direção dos negócios públicos do país.

Esta participação é, aliás, indireta e, na prática, se verifica por meio de


representantes, de onde resulta a denominação de governo representativo.

Para que essa representação traduza lealmente a sua origem popular, o direito
público, com fortuna vária, tem criado diversos métodos, diversos sistemas eleitorais,
amparados por publicistas e jurisconsultos eméritos, persuadidos de que cada qual deles
consulta melhor as aspirações populares, no tocante ao seu direito de coparticiparem na
direção dos negócios públicos.

E esta coparticipação é o ponto cardeal por onde se orientam as diferentes


agrupações conhecidas pelo nome de partidos políticos.

Presumem satisfazer o desideratum dos partidos políticos, que se agitam numa


nação, permitindo a todos eles, estejam ou não em maioria, os seguintes sistemas
eleitorais:

1º) Do voto limitado, o qual consiste em que numa dada circunscrição, onde
deverão ser eleitos cinco deputados, cada eleitor não poderá votar senão em quatro
nomes, de forma que o quinto forçosamente há de pertencer à minoria.

Usado pela primeira vez na Inglaterra em 1867, foi abolido em 1884. Vigora
na Espanha desde 1876 e na Itália desde 1889; vigorou no Brasil para as eleições federais,
depois da Constituinte da República, mas foi derrogado pela lei atual (n. 1.269, de 15 de
novembro de 1904).

Também a Itália ora discute uma nova lei eleitoral.

2º) Do voto cumulativo, pelo qual numa circunscrição que deverá dar quatro
deputados, por exemplo, o eleitor poderá inscrever na sua lista quatro nomes diferentes
261

ou quatro vezes o mesmo nome, dando, assim, de uma só vez, quatro votos ao seu
candidato.

É o atual método adotado pelo governo federal, na citada lei de 1904.

Ambos estes sistemas, cuja vantagem maior é a da simplicidade, não são


idôneos e permitem que o direito de representação da minoria seja fácil e licitamente
burlado.

Para que preencham os seus objetivos, é mister que as minorias constituam,


por sua vez, partidos numerosos e bem arregimentados; do contrário, dá-se o que todos
nós sabemos e ao que o sr. Assis Brasil deu a expressiva qualificação de fraude legal, em
virtude da qual é sofismado o direito da minoria, sem que ela possa legalmente reclamar,
porque, na verdade, a maioria procedeu em conformidade da lei.

Nos círculos eleitorais, onde se preparam as devidas combinações para


assegurarem a anulação dos esforços da minoria, o expediente é vário, e por dois métodos
diferentes o partido republicano conseguiu, na última eleição de deputados federais,
eleger licitamente todos os seus candidatos em dois distritos eleitorais, como se o fossem
no regime do escrutínio por lista completa ou naquele que em França se diz maioritário.

Exemplifiquemos o sugestivo caso da nossa história partidária-eleitoral de


1912.

O Partido Federalista concorreu oficialmente às urnas apresentando três


nomes: o do coronel Rafael Cabeda, pelo 1º Círculo; o do conselheiro Maciel, pelo 2º, e
o do dr. Pedro Moacyr, pelo 3º. O Partido Republicano, extraordinariamente aguerrido
em campanhas dessa natureza, ofereceu uma chapa incompleta, por onde, à primeira
vista, era de prever que, não pleiteando todas as cadeiras (seis no 1º Círculo e cinco em
cada um dos outros), fatalmente a minoria federalista lograria alcançar uma cadeira em
cada círculo. Todavia, desde cedo, o Partido Republicano havia deliberado que o dr.
Gomercindo Ribas, cujo nome não constaria da chapa publicada nos jornais, seria votado
por ocasião das eleições em circunstâncias idênticas aos demais candidatos constantes na
chapa dada à publicidade. Era, de antemão, garantida a sua elegibilidade: sendo muito
grande o eleitorado republicano do 1º Distrito Eleitoral, permitia a prática da engenhosa
repartição de votos segundo a maneira conhecida na gíria partidária pelo nome de rodízio.

À última hora, já na antevéspera da eleição, também o Partido Republicano,


cuja perspicaz direção não se enganava, resolveu disputar (não se pode dizer chapa
completa) todas as cadeiras do 2º Círculo, excluindo, assim, a obtenção de uma delas pelo
candidato federalista, sem embargo do valor dele, precisamente o chefe do Partido.

A sutileza e a habilidade dos agentes eleitorais, sempre férteis em expedientes


desse gênero, usaram processo diferente ao adotado no 1º Círculo; as circunstâncias
exigiam nova tática. E consistiu ela em mandar que o eleitorado republicano de três
municípios, apenas três, Santa Cruz, Cachoeira e Santa Maria, carregasse exclusivamente
no nome do sr. Victor de Britto, candidato que também não figurava na chapa oficial,
repetindo-o cinco vezes em cada lista.
262

Hoje não é novidade que só por inadvertência o Partido Republicano deixou


de disputar a cadeira do dr. Pedro Moacyr, para cuja empresa tinha todas as
probabilidades de êxito[...]

E estava no seu direito, porque, como disse um escritor platino, a dura verdade
é que na eleição um partido não visa respeitar os direitos do adversário quanto ao
preenchimento de lugares, mas, positivamente, excluir todos os direitos dele.

Tal é a absurda conclusão a que permitiram chegar os imperfeitos métodos


eleitorais em voga. É com estes que se tem pretendido amparar o direito das minorias e
passam como aceitáveis e preferíveis a outros, um dos quais requer exame especial, que
só noutro artigo o desenvolveremos. É o do escrutínio uninominal ou da divisão do país em
pequenas circunscrições eleitorais, outrora vigente no Brasil sob o nome de Lei Saraiva,
em honra do inolvidável estadista que o implantou entre nós.
263

A NOVA LEI ELEITORAL (II)


(A Federação, Porto Alegre, 11 jun. 1913)

Demonstrada com fatos, como ficou, a inocuidade dos diferentes sistemas


conhecidos e experimentados no Brasil, no tocante ao modo de se fazerem representar
na direção dos negócios públicos todas as agrupações partidárias, mesmo as menos
numerosas e por isto mesmo chamadas minorias, ainda convém assinalar os defeitos da
Lei Saraiva, tão saudosa dos monarquistas.

Ela consubstanciava o princípio do escrutínio uninominal por círculo,


condenado em França (onde ainda vigora) por eminentes professores e pela moderna
orientação política, se bem que vivamente defendido por vigorosos e experimentados
estadistas, como Caillaux, Combes, Monis e Clemenceau, e professores, como Esmein.

Não está esquecida a crise política que, vai para dois meses, chegou a ameaçar
a estabilidade do novo presidente, Poincaré, e acarretou a queda do insigne Briand,
apaixonando vivamente a opinião pública da grande nacionalidade dalém mar.

Desse regime eleitoral, lá conhecido vulgarmente por sistema majoritário, faz-


se uma bandeira de princípios e agitam-na mãos entusiásticas e convictas, tais como as
desse velho incomparável, Clemenceau, que não vacilou divorciar-se do seu fiel discípulo
e amigo Briand, por amor de um sistema falaz, porém ao qual ele empresta a virtude de
ter salvo a França da anarquia e do Império.

Na memorável sessão de 19 de março passado, sustentava o ardente senador


por Var8: “Hoje, as minorias, depois de terem sido muitas vezes violentadas por golpes
de Estado e pela intervenção da força armada, acabaram por instalar-se nos Parlamentos.
Pois bem, toda a iniciativa de reforma eleitoral, baseada na representação das minorias,
mesmo com uma fórmula matemática, que ainda não a conhecemos, é uma empresa
diante da qual nós, Câmara prudente e republicana, devemos guardar-nos, bradando: –
não passa!”

E depois de referir que é partidário do princípio da autoridade porque ama a


liberdade, proclama “que o estabelecimento da autoridade deve ser cercado de todas as
garantias e, uma vez constituído, é preciso imperar no seu domínio”; que foi isso que
consolidou a República, e isso é obra do princípio majoritário, graças ao qual a República
subsiste há quarenta anos; que o regime das maiorias foi que votou todas as leis de
liberdade, as leis secularizadoras e sociais, e diminuí-lo seria destruí-las.

E, perorando, por entre calorosos aplausos da esquerda: “Mais j’y mets cette
condition que será mis hors de conteste Le principe majoritaire qui a donné à La France
quarante ans de stabilité gouvernamentale. Je NE puis admettre em effet qu’um candidat

8 Trata-se de um departamento da região da Provence-Alpes-Côte d'Azur.


264

qui a moins de voix qu’um autre soit élu à as place. J’accepte toutes lês autres transactions,
mais, sur ce point, permettez-moi de vous Le dire, jê reste au drapeau!”.

Segundo se vê, o ardente e adestrado parlamentar, le tombeur de ministères, não


aduz princípio algum de ordem jurídica e fala como o político veemente, afeito a
combater todos os governos, preferindo ater-se a razões de ordem puramente histórica
que, para o caso concreto de outras nações, nada valem.

Mais sérias foram as razões emitidas pelo abade Lémire, que enfrentou com
vantagem a tribunos do tomo de Jaurès e Briand. Esse, porém, está no seu papel de
presbítero e conservador, temente às injunções da demagogia sindicalista.

No Brasil, por enquanto e ainda por muito tempo, não há a temer agitações
de tal natureza.

A única vantagem militante em favor do escrutínio uninominal seria a de o


eleitor travar conhecimento direto com o seu representante, e, deste modo,
estabelecerem-se relações de confiança recíproca.

A este argumento, de pouco peso, Duguit opõe categórica réplica que o


destrói cabalmente, que o deputado não é mandatário do eleitor e sim do país, e que não
há nenhum interesse, quer para o eleitor, quer para o deputado, que ambos se conheçam
pessoalmente, bastando, apenas, não haver equívoco acerca do programa político,
econômico e social do deputado.

As relações de intimidade criadas pelo escrutínio de círculo (d’arrondissement),


entre eleitor e deputado, fazem deste o comissionado dos seus eleitores, obrigando-o a
passar o tempo nas antecâmaras ministeriais. E aponta, entre outros defeitos capitais, o
de facilitar a corrupção eleitoral, visto que, de ordinário, o candidato eleitoral é quem faz
mais promessas, quem obtém ou finge obter a maior soma de favores, colocações,
mercês, melhoramentos materiais, etc., e, não raro, é simplesmente o que mais dinheiro
gasta com a sua eleição.

De todos estes males se queixavam os partidos constitucionais do Império,


que militavam sob a vigência da Lei Saraiva e, de certo, não conjurados se ainda
perdurasse ela.

O quarto sistema, outrora chamado preferencial, e hoje, da representação


proporcional, a que os jornais de França, país onde é presentemente objeto de ardentes e
apaixonadas discussões, simplesmente designam pelas iniciais R. P., acolheu sempre
sinceros adeptos. Estes estão convencidos, é certo, de que ele não faz desaparecer como
por encanto todos os defeitos e vícios inerentes ao sufrágio universal, mas têm verificado
que nos países onde a R. P. foi adotada, os vícios são em menor número que nos outros.

Tem intrépidos adversários, como Sidgwick, em Inglaterra, e Esmein, em


França.
265

A NOVA LEI ELEITORAL (III)


(A Federação, Porto Alegre, 13 jun. 1913)

Só a R. P. repara as injustiças de que têm sido vítima as minorias.

Seja ou não legítimo o regime majoritário, há nele, contudo, uma injustiça


flagrante, digna de pronto reparo – é que, com ele, só a metade mais um da população
vive para a política e faz a política, ao passo que o resto fica fora de tudo, como se não
existisse, privado de tudo quanto produz a política.

O resto, pois, que não pertence à maioria, parece “atingido por uma morte
cívica”, conforme a vibrante expressão de notável jurista.

É a R. P. que repara semelhante lesão e dá vida às minorias, trazendo-as ao


convívio dos vencedores, sem as atrelar ao seu carro triunfal, mas libertando-as dessa
condição de forçada subserviência às maiorias “como os antigos servos da gleba”.

O sistema, entretanto, comporta variados métodos, secundários e divergentes


quanto à forma, mas fixos quanto à essência. Todos eles se baseiam no princípio de Haro;
este princípio, contudo, só pode ser praticado depois de modificações introduzidas pelos
sectários e discípulos que o sucederam, e nem todas as modificações propostas têm tido
exequibilidade satisfatória, devido a lastimáveis complicações.

Um bom sistema eleitoral deve recomendar-se, acima de tudo, pela facilidade


da aplicação, isto é, pela simplicidade.

No Brasil, jamais foi usado, se bem que tenha havido uma ou outra isolada
tentativa para a substituição desses velhos moldes por outros mais compatíveis com as
aspirações da democracia moderna.

Bem haja pois o austero estadista rio-grandense que ousou romper com o
preconceito, procurando traduzir em realidade o que democratas de arraigada convicção,
como o ilustre sr. Assis Brasil, não conseguiram com todo o prestígio dos seus nomes.

Muitos são os projetos e padrões instituidores do escrutínio por listas com a


votação proporcional; mas todos oferecem defeitos na prática, devido às engrenagens e,
assim desse jeito, não convém a países de atrasada cultura intelectual. Na própria Europa
encontram dificuldade, e nem todas as experiências, exceto na Bélgica, hão sido
satisfatórias.

Estão neste caso os projetos de La Chapelle, de Benoist, de Androe,


(reformado pela Dinamarca em 1908), de Hondt (com modificações, adotado na Bélgica
desde 1899), de Assis Brasil, etc.
266

De todos estes que conhecemos, o mais singelo, prático e fácil é o que, de


futuro, no direito público brasileiro, será chamado de Borges de Medeiros, nome
abonado com que passará à história política do Brasil republicano.

Dada a devida proporção entre o Rio Grande do Sul e a Bélgica, este


portentoso país de civismo, riqueza e civilização setentrional que é a velha Flandres, quer-
nos parecer que o projeto Borges de Medeiros leva, em simplicidade e facilidade,
incontestada vantagem à lei belga, onde, não obstante a sua complexidade, Duguit
assinala que a experiência foi concludente. O mecanismo lá funciona perfeitamente, sem
surpresas, e o resultado foi aumentar a coesão dos partidos e atenuar a acrimônia das
lutas partidárias.

Vejamos em que consiste ele:

“Suponhamos um escrutínio para a eleição de cinco deputados, por um


eleitorado de 47.000 sufragistas. Estes 47.000 sufrágios se repartem por entre quatro
listas, as quais têm alcançado respectivamente 24.000, 11.000, 9.000 e 3.000 votos.

Já que há quatro listas, dividir-se-á, sucessivamente, por 1, 2, 3, 4 cada um


daqueles totais; se forem cinco as listas, é dividir sucessivamente por 1, 2, 3, 4 e 5, e assim
por diante. Com os algarismos dados, obtém-se:

Divisão:

Por 1 24000 11000 9000 3000

Por 2 12000 5500 4500 1500

Por 3 8000 etc.

Por 4 6000 etc.

Colocam-se, em seguida, os quocientes assim obtidos na ordem de sua


importância, até a concorrência do número de deputados que deverão ser eleitos, na
espécie 5. Tem-se, pois: 24.000, 12.000, 11.000, 9.000, 8.000. O último quociente (8.000
na espécie) será o divisor eleitoral. Cada lista terá tantos deputados nomeados quantas vezes
o número deles entrar no número de votos que ela tiver obtido. Ele entra oito vezes nos
24.000, a lista n. 1 terá pois três cadeiras; contem-se uma vez nos 11.000 votos, a lista n.
2 terá uma cadeira; entra uma vez nos 9.000, a lista n. 3 terá uma cadeira; como não entra
vez alguma nos 8.000, número de votos alcançados pela lista n. 4, esta não terá cadeira
alguma na deputação nacional.

Os demais estados onde domina a R. P. são, além da Dinamarca, já referida,


a Suíça (cantões de Neuchatel, Tessino, Genebra, Zug, Soleura, Friburgo, Berna, Basiléa,
Schvytz e Valais), Wittenberg, Cuba e Suécia. A Inglaterra, afirma um defensor do
sistema, só aguarda que a França o adote para também aceitá-lo.
267

No direito constitucional moderno, pode ser considerada questão resolvida,


cuja definitiva aceitação entre os povos regidos pelo regime representativo só depende
de ocasião.

Pouco importa não haver ele captado a universal adesão de políticos e juristas,
o que não é de admirar, descontentes há-os em toda a parte.

E, pois, também não é de estranhar que a reforma ora oferecida pelo governo
rio-grandense não tenha sido amparada pelos adversários com a satisfação merecida e a
que tem direito.

O único e principal partido adverso capaz de pleitear eleições pela nova lei é
o Partido Federalista, cuja intransigência e constância, durante vinte e três anos de
ostracismo, sem dúvida dignas de respeito, talvez um dia a História tomará em
consideração.

Mas os seus erros, muito grandes e reiterados, têm anulado quase todo esse
esforço, merecedor de melhor causa, e levaram o Partido a tamanha desarregimentação,
que chegou ao ponto de nem sequer cuidar da qualificação eleitoral de seus
companheiros, abdicando, espontaneamente, inviolável direito cívico, reconhecido por
todo o mundo.

Ora, partido que não vota abre mão de direitos e, ou se desorganiza,


enfraquece e decompõe-se, ou só conta com a revolução, ainda assim totalmente incerta,
à míngua de meios; em todo o caso, porém, fazendo apelo à desordem e a meios ilícitos,
agitando a pior das bandeiras e a menos idônea, até para congraçar a opinião dos seus
correligionários.

Repelir o ensejo que se lhe depara de pleitear a próxima eleição de deputados


estaduais, com seguras esperanças de êxito, é abrir mão da oportunidade
magnanimamente oferecida para readquirir grande parte do terreno perdido.

O que o governo propõe com a nova lei é que, de agora em diante, sendo o
Estado um só colégio eleitoral, quando fosse posto um voto na urna, ele não significasse
a vontade do eleitor deste ou daquele feudo eleitoral, mas a de um rio-grandense a votar
pelo Rio Grande.

Ouve-se, entretanto, dos arraiais contrários, o sinal da abstenção, que é a greve


eleitoral e significa o começo da anarquia.

Tudo querem perder, incluso o direito de queixa[...]


268

A NOVA LEI ELEITORAL (IV)


(A Federação, Porto Alegre, 24 jun. 1913)

O sistema representativo ao começar o século XX, se ainda não tem os seus


dias contados, pelo menos vai deixando entrever um enfraquecimento tal, que é
prenúncio certo de próximo declínio.

Oposto a ele há o chamado sistema do governo direto, que, a princípio e ainda


no século XIX, parecia uma visionária criação de juristas ideólogos, o qual, entretanto,
dia a dia, vai captando valiosas adesões e, amparado como há sido por circunspectos
estadistas, entre outros por lord Salisbury, não só se vai recomendando, como impondo-
se praticamente e criando instituições que já funcionam com toda a regularidade.

O grande legislador constitucional rio-grandense anteviu esse movimento e


chegou a ampará-lo. Júlio de Castilhos, que sabia prever para prover, segundo a máxima
do filósofo da indução, admitiu na Constituição de 14 de julho, se bem que indiretamente
e como que à maneira de ensaio, para assim educar-se o povo e prepará-lo para uma
consagração definitiva, o princípio do referendum numa das suas modalidades.

Diga-se de passagem que, embora de modo indireto, como o prescreve a


Constituição do Estado, no passo em que outorga aos conselhos municipais a
competência de desaprovarem as leis decretadas e promulgadas pelo chefe de Estado, o
método, tal qual o preconiza a nossa Constituição, e que em última análise é uma figura
do referendum popular, não é de todo novo no Brasil. Basta volver o olhar para noventa
anos atrás e verificar que o Primeiro Imperador também submeteu a Constituição de
1824 ao veredictum das câmaras municipais.

O referendum, ou direta participação do povo às resoluções governamentais,


significa uma restrição imposta ao direito das assembleias deliberantes e representativas;
daí os países que adotam esse princípio também admitirem o corolário consequente.

Se o povo se arroga o direito de fazer e, portanto, o de poder mais, também se


arroga o de desfazer e o de poder menos.

É o que na prática se traduz pela revogação ou cassação do mandato.

Aparece, pois, este instituto do direito público moderno, não como fator da
teoria do mandato imperativo, segundo as velhas doutrinas, mas em sequência lógica à
faculdade de participar diretamente das funções governativas. É a democracia levada às
últimas inspirações.

Não é uma mera concepção que aparece isolada no direito contemporâneo.

Está sendo admitida em larga escala num país longínquo, que prima por servir
de modelo às mais adiantadas instituições modernas – os Estados Unidos, país onde, é
269

certo, nem tudo se torna digno de imitação nem de aplauso, mas onde tudo, cheio de
interesse, chama a atenção do estrangeiro.

Nas suas revistas e periódicos, abundam monografias admiravelmente


escritas, em que é evidente a presunção de tratar de semelhantes assuntos, verdadeira
novidade para estranhos e estudiosos, que, lendo-as, podem avaliar de caminho o quão
surpreendente é o desenvolvimento do direito público entre aquele povo extraordinário.

Mas lá, como o referendum e a cassação têm ampla prática nos Estados do
Oeste, levam a estudos bem variados, porém sempre em torno da palpitante questão de
saber até que ponto isso influirá nas instituições do sistema representativo, criado pela
velha Constituição, que vigora há quase século e meio, ou enfraquecendo-as, ou dando-
lhes nova orientação.

Na verdade, as Constituições dos modernos Estados de Utah, Oregon,


Dakota, Montana, Wyoming, Nevada, Colorado, Oklahoma, Idaho, etc. inscreveram, ao
lado de um progressivo aumento de autoridade dos seus chefes de governo, quer
estaduais, quer municipais (presidente, governadores e mayors), uma limitação, que vários
autores qualificam de usurpação, ao funcionamento das legislaturas locais, expressa na
direta atividade legislativa do povo armado das duas originais faculdades – plebiscito e
cassação.

Não discutimos a conveniência ou inconveniência deste princípio, que a nova


lei eleitoral regulamenta e desenvolve: ele vem da própria Constituição do Estado e se
não contém na de nenhum outro.

Por isso, não obstante a sua relevante importância, parece que o direito
público brasileiro jamais o referiu. Em obrinha publicada em 1910 (a qual mereceu na
Revue du Droit Public benévola referência do notável professor da Faculdade de Direito de
Paris, Gaston Jèze, como não sendo simplesmente de direito administrativo, mas também
constitucional), consagramos em mais de um passo a devida atenção ao assunto. E
nenhum outro autor, a que nos conste.

Se nos propuséssemos a discuti-lo agora, o primeiro exame versaria sobre o


saber a quem compete o exercício de tal direito, se exclusivamente aos eleitores que
elegeram o representante, ou ainda mesmo àqueles que não votaram nele.

É uma indagação que, aliás, desde o começo perde o seu objeto, porque nos
Estados da União Americana, onde se tem verificado frequentemente a cassação, até do
cargo de juízes, o voto é secreto e, sendo assim, impossível se tornaria saber os que
votaram e os que deixaram de votar por ocasião da eleição do representante ou
funcionário.

A regra é, pois, a de poder usar do direito de cassação tanto os que votaram


como os que não votaram anteriormente.

De mais, aqui no Rio Grande do Sul é dificílimo tal exercício, porque o projeto
exige que só a proposta para a cassação do mandato seja feita pela quarta parte do
270

eleitorado do Estado. De sorte que, sendo ele de cerca de 120.000 eleitores, é necessário
que a iniciativa parta de 30.000 eleitores.

Depois, segue-se a consulta por meio do voto-escrutínio, no qual o


representante só perderá o mandato se não conseguir em seu favor metade mais um, pelo
menos, dos votos com que foi eleito.

Na América do Norte, basta, para ingresso do processo revocatório, uma


petição com os motivos determinantes da revogação do mandato, e os peticionários
ficam sujeitos ao juramento de que são verdadeiros aqueles motivos.

Em todo caso, e é o que pretendemos frisar, o princípio consagrado pela


cassação do mandato aparece como uma consequência natural do princípio de poder o
povo discutir diretamente uma lei e emendá-la e, indiretamente, não aceitá-la.

E, assim, fica traçada uma norma que, de futuro, será universalmente


praticada.
271

QUESTÃO DAS ÁGUAS DO RIBEIRO9


(A Federação, 3 jul. 1913)

O dr. Diogo Velho fora mais perspicaz e teria abandonado a liça depois que
pelo dr. Maurício Cardoso lhe foi imposta, à dura força, aquela fulgurante lição de Direito
que, tendo-o feito passar pelas forças caudinas, o obrigou a capitular em todos os pontos
da sua injurídica argumentação.

Que a lição foi de mestre é de ver a tibieza, o desânimo e a impertinência com


que o advogado dos Irmãos Porto voltou à carga, inteiramente combalido.

Vigorosamente repulsadas as inanes objeções, verdadeiramente ineptas, com


que simulou pompear o seu primeiro artigo, o dr. Diogo Velho, se não viesse obedecendo
aos subalternos intuitos de se pôr em evidência, exatamente por se tratar de uma causa
em que acidentalmente se acha envolvido o presidente do Estado, teria calado.

Nesse novo artigo, S.Sa. abriu mão de quase todos os argumentos,


vistosamente apresentados como uma clava hercúlea contra o processo pendente de
decisão final, para circunscrever-se a duas alegações, únicas e gastas – a incompetência
dos autores para o uso dos interditos possessórios e o suposto desforço por eles tomado.
Quanto à primeira, que aos liquidantes falece competência para defenderem a posse,
atenta à sua qualidade de locatários, o articulista desatrema e divaga incoerentemente, por
fim termina: “pouco importa que os parceiros arrendatários tenham ou não tenham
direito a interditos possessórios[...]” À vista desta afirmativa, de verdadeiro vencido,
desnecessária se tornaria a produção de novos argumentos em favor da interpretação
ampliativa universalmente dada a textos obsoletos, de ordinários obscuros, como são
muitos do antigo direito, cujos melhores intérpretes, Correa Telles, Borges Carneiro e
Coelho da Rocha, em boa hora lhe foram abrindo brecha por onde começou a penetrar
a fecunda luz nova. É assim que Ribas (Acç. Possessorias10, p. 262, nota 6ª) refuta o princípio
contrário, declarando que a ação de manutenção compete – “3º” – ao arrendatário.

Quanto ao desforço imediato, de que inscientemente se diz, foi usado pelos


liquidantes, é uma revoltante arguição que será, a seu tempo, completamente destruída.
Não se trata de águas particulares, mas de águas públicas cujo uso é condicionado pelo
alvará de 1819, destinado a regular tal uso em prol da lavoura.

No direito pátrio, a distinção entre uma e outra coisa foi lucidamente


estabelecida por Borges Carneiro nos seguintes termos e passos:

9 A Ação de Manutenção de Posse de Águas foi proposta em fevereiro de 1911, perante o juiz distrital, e depois
subiu à conclusão do juiz dr. Manuel Pereira de Escobar Junior, da 3ª Vara da Comarca de Porto Alegre,
uma vez que a Barra do Ribeiro pertencia à Comarca de Porto Alegre. Foram Autores – Medeiros & Borges
(Antônio Augusto Borges de Medeiros, Augusto Gonçalves Borges, Victorino Borges de Medeiros,
Manoel Inácio Evangelista e Luiz Alberto Matzembacher), representados pelos advogados Alcides de
Freitas Cruz, Joaquim Maurício Cardoso e Francisco Thompson Flores; Réus – Irmãos Porto (Vespúcio
de Souza Porto, Armando de Souza Porto e Ricardo de Souza Porto), representados pelo advogado Diogo
Velho Cavalcanti de Albuquerque.
10 Da posse e das acções possessórias (nota da revisão).
272

“Regularmente chama-se rio ou ribeiro público o que é perene ou perpétuo, sc.,


que não seca de verão, INDA QUE NÃO SEJA NAVEGÁVEL; PARTICULAR O
QUE É TEMPORÁRIO, ou que foi artificialmente estabelecido em terreno particular
(Ord. Livro II, t. 26 §8).”

Ora, o sr. Diogo Velho, zeloso adepto da restrita interpretação dos textos das
Ordenações, há de convir na boa procedência do critério distintivo das águas em públicas
e particulares, acima firmado.

Continuamos, porém, a ouvir Borges Carneiro (vol. 4, §§ 33), um dos


jurisconsultos pátrios que melhor tratou da matéria com indiscutida autoridade:

“Do rio público ou perene, que NÃO É NAVEGÁVEL, pode tirar-se água
para regas e mais usos dos prédios vizinhos sem dependência de licença Régia. Contanto:
III) que não prejudique a algum uso a que aquela água já esteve aplicada; IV) que não se faça dano ao
vizinho, v. c., a algum moinho já construído.”

Substanciosos os enunciados, os quais Coelho da Rocha, com a sua brilhante


concisão e em estilo menos difuso, assim repete: “As águas dos rios e ribeiros públicos não
navegáveis podem ocupar-se para as regas[...] contanto que 1º) não sejam prejudicados os
que estão na posse anterior de as aproveitar para o mesmo ou igual fim, ou seja, por lhes
diminuir a água ou por lhes arruinar os açudes já feitos (§ 413)”.

Ambos estes tratadistas, de muito grande autoridade no foro brasileiro, nada


mais fizeram que reduzir a regras, coordenadas na devida forma metodológica e
expositiva, os princípios contidos no alvará de 27 de novembro de 1804, extensivo ao
Brasil, então colônia portuguesa, pelo de 4 de março de 1819, que pode ser lido no Códice
Filipino, compilado por Cândido Mendes, cuja transcrição omitimos, por ser longa.

Incide em lastimável erro o patrono ex-adverso, em pensar que só são públicas


as águas navegáveis e de rios. Bem sabemos que o Ribeiro não é um rio propriamente dito, é
apenas uma ribeira, um arroio não navegável, mas, ainda assim, não deixa de ser público
pelas razões expostas à sociedade desde o início do pleito, e mesmo neste escrito, sob a
égide dos mais abalizados intérpretes da legislação pátria, das quais se verifica que águas
podem ser públicas tanto as de rios como as de arroios, sejam ou não navegáveis,
bastando serem perenes e não de curso artificial.

Aos contrários é que competia a destruição do argumento, porém com


material endossado por autoridade digna de nota. E, mesmo que fosse particular o
Ribeiro, dele os Irmãos Porto poderiam tirar água conjuntamente com Medeiros &
Borges, só mediante uma prévia medição delas, de acordo com o processo especial para
esse fim estabelecido e onde fosse justificado o condomínio daquelas.

Se são águas particulares, como infundadamente se objeta ex-adverso, e se os


Irmãos Porto, sabendo que Medeiros & Borges já se utilizavam delas, se julgavam
também com direito a hauri-las, é que reconheciam o estado de indivisão das mesmas e,
portanto, não lhes era lícito o aproveitarem-nas sem a prévia medição e partição, processo
muito velho e conhecido no direito pátrio, para que não turbassem a posse de quem já
tinha pública prioridade.
273

Não o tendo feito, incorreram na censura do direito e, daí, a condenação


sofrida.

Verificou-se, pois, a turbação feita pelos Irmãos Porto contra a posse exercida
por Medeiros & Borges, quer sejam públicas as águas do Ribeiro, como sustentamos,
quer sejam particulares, como desejam os liquidados, embora erroneamente e sem que
disso tivessem alegado jurídica doutrina.

O art. 899 da Consolidação das Leis Civis foi mal invocado, porque o seu
conteúdo não deve ser tomado isoladamente, mas em sentido relativo e em harmonia
dos subsequentes, assim aceito ir-se-ia chegar exatamente à medição das águas de que
falamos e a que se refere o art. 902.

A revoltante arguição de um suposto desforço praticado pelos liquidantes é o


cúmulo da impudência e da desfaçatez. Que outro qualificativo merece essa insidiosa
asserção quando, no decorrer do processo, não deram os liquidados prova alguma de que
os liquidantes o praticaram? Quando foi isso? Em que dia? Por que pessoas? Nada disso
consta nos autos.

Se alguém o intentou, fê-lo sem ciência nem consentimento dos liquidantes.


Mas não houve nada disso.

De passagem, diga-se, porém, que sendo o desforço um ato de conservar ou


remeter na posse a pessoa que nela foi perturbada ou dela esbulhada, isto não priva o
perturbado de alcançar indenização das perdas e danos que sofreu, porque, como
preceitua o art. 521 do Código de Processo Civil e Comercial, o desforço não impede que
o desforçador recorra depois aos meios judiciais; logo, ele não exclui a indenização.
Juridicamente, o desforçamento é um meio de o esbulhado se restituir à sua posse, mas
por si não o indeniza dos prejuízos sofridos como consequência da turbação, eis porque
pode o desforçador haver, depois e judicialmente, a importância devida pelo turbador da
posse. Assim, pois, ainda mesmo que se verificasse o desforçamento referido ex-adverso,
era lícito aos desforçadores o atual pedido judicial das perdas e danos liquidados.

Tal desforço não passa de uma invenção para armar efeito, o que,
oportunamente, provaremos com a publicação de várias peças do processo, inclusive
depoimento de testemunhas, logo que a causa seja decidida e os autos baixem a cartório;
presentemente, é-nos impossível, porque o julgamento do feito já está com dia marcado,
e os autos, conclusos à relação.

O móvel que impeliu o advogado dos Irmãos Porto a vir à imprensa,


assumindo essa atitude semigrotesca e indelicada, falhou o seu principal objetivo, que é
especialmente o de alvejar um único dos meus honrados constituintes[...]

Bem se sabe que, acima de tudo, o dr. Diogo Velho visou o escândalo para
blasonar que não trepidou investir contra pessoas da mais assinalada posição política e
social, dentre as quais se destacava o presidente do Estado e chefe político de prestígio
não comum.
274

Isto, porém, não era bastante. É que há a singular circunstância de que esse
homem, Borges de Medeiros, alia aos magníficos dotes de inteligência e caráter, de todos
conhecidos, uma pureza de costumes e um escrúpulo na maneira de proceder, que a
mínima alusão desairosa o punge e melindra profundamente.

Desta arte, quanto mais indigna fosse a agressão, mais intensa seria a
indignação do ofendido, e daí o gáudio, a alegria farisaica de quem, desaforadamente,
procurasse feri-lo perfidamente, uma vez que, à carência de outros meios aptos para o
empréstimo de passageira notoriedade, todos eles servem à satisfação de pessoas a quem
ela tem falecido por meios mais decentes.

Mas enganam-se redondamente esses que pensam que Borges de Medeiros


estacará em meio da rota a que se traçou só porque um Diogo Velho lhe saiu às pedradas.

Não teme a nenhuma das bravatas partidas de quem não possui títulos para
se ombrear com ele, e de quem se desconhece um só ato, um só feito, um só gesto
abonado de qualquer merecimento, quando, pelo contrário, tudo faz duvidar acerca da
correção do seu passado, já que no outono da vida, “ao cair da tarde em anos”, na
cadenciada frase de Bulhão Pato, emigrou de seus lares para longes terras à cata de novas
aventuras.

Borges de Medeiros, com a conduta pública e particular que tem, está a


cavaleiro de todas as insídias e a salvo da faca de ponta posta nas mãos de qualquer
salteador, como Cartouche, ou de qualquer velhaco sem entranhas, como Shylock,
quanto mais da de um pobre comediante[...]

Respeitado na sua vida particular pelos mais veementes adversários políticos,


dentre os quais afloram não poucos jornalistas. Nunca as penas de Wenceslau Escobar,
Maciel, Fanfa Ribas, Edmundo Bittencourt, Júlio de Magalhães e outros o julgaram capaz
de vir a juízo pedir aquilo a que não tivesse direito.

Esta triste e mesquinha tarefa estava reservada ao sr. Diogo Velho.

Saiba, porém, S.Sa. que ninguém se impressiona, nem com as protérvias


ocultas nas suas entrelinhas, nem com as suas tiradas melodramáticas, e iremos sem nos
deter até onde S.Sa. quiser, bradando-lhe por enquanto – Alto lá!

Alcides Cruz*

* Na edição de 8/7/1913 de A Federação, há comentários de iminente duelo entre Diogo Velho e Alcides
Cruz, em Porto Alegre, em razão das divergências na Questão das Águas do Ribeiro. O certo é que, em
9/7/1913, Alcides Cruz publicou o artigo TROCO MIÚDO, respondendo às injúrias raciais que lhe foram
impingidas por Diogo Velho, que também foi o advogado de Conceição do Arroio na Questão de Limites
entre Conceição do Arroio e Santo Antônio da Patrulha, em 1912.
275

DISCURSO NO GRÊMIO GAÚCHO


(A Federação, Porto Alegre, 22 set. 1914)

Alcides Cruz, orador oficial da solenidade comemorativa do dia 20 de


Setembro no Grêmio Gaúcho, proferiu o seguinte discurso:

Senhores.

O Grêmio Gaúcho é a expressão fiel, coletivamente agremiada, da cultura do


passado rio-grandense, sem que isso signifique outra coisa mais que a admiração e a
simpatia à grandeza cívica de outrora; mas nunca o testemunho de pesar ou um
melancólico protesto contra o presente; tampouco o desejo inepto e incrível de regressar
ao passado, como a um e outro espírito pedante se permite imaginar calculadamente.

Quereríamos, em hora tão solene como esta, esquecer tão pretensiosos


corifeus do modernismo, e não fora certo que toda a revolta contra a estultice conta de
antemão com a condescendência do auditório. É que, se a infalibilidade do Papa já vai
contando com tão pequeno número de adeptos, como querer substituí-la pela do
Conselheiro Acácio?

No desempenho do programa que se traçou, senhores, é que, em comício de


honra, o Grêmio Gaúcho se congrega hoje para desobrigar-se da grande dívida de
admiração, reconhecimento, veneração e preito aos imortais serviços, que, em épocas
diferentes, entretanto sucessivas, quatro extraordinárias figuras representativas de quatro
diferentes fases da evolução rio-grandense vieram prestando ao país.

Pinto Bandeira, como Bento Gonçalves, como Gaspar da Silveira Martins,


como Júlio de Castilhos, cada um por sua vez e em seu tempo, assinalam uma época
histórica na vida sulista; mas os seus feitos relevantes, embora destacados, se coordenam
e encadeiam numa ordem natural, sem sobressaltos nem hiatos, de modo a poder dizer-
se que culminam e se integram afinal, constituindo a verdadeira evolução política e social
do Rio Grande.

São fatos estes, verificados sob aspecto tão distinto, pela clareza e naturalidade
com que se manifestam num discurso de século e meio, que a qualquer espírito, mesmo
medianamente informado em filosofia elementar, não escapam à, já hoje clássica,
distinção em fase guerreira, metafísica e, por último, científica. Sem grande penetração,
vê-se facilmente que com Pinto Bandeira corresponde a época da conquista e
constituição geográfica; com Bento Gonçalves, a tentativa frustrada da definitiva
organização política, que, entretanto, por ser prematura, falhou; com Gaspar Martins, o
amadurecimento e o peso da influência rio-grandense nas deliberações da Coroa,
conjuntamente operados através da política monárquico-parlamentar, que serviu de
transição entre o passado colonial e o presente republicano; com Júlio de Castilhos, a
definitiva concretização da forma entrevista por Bento Gonçalves. Estas duas figuras,
por assim dizer, completam-se. Sendo então quatro vultos, representam e sintetizam,
276

aliás, três épocas, porque um, procurando adiantar-se e agir fora do seu tempo, não logrou
alcançar o êxito colimado, e isto, longe de o amesquinhar, pelo contrário, o engrandece,
fazendo-se admirar pelo seu arrojado descortino.

Rafael Pinto Bandeira é o herói dos obscuros tempos coloniais, em que o Rio
Grande do Sul, mal começando a povoar-se, era, sem dúvida, um deserto, mas teatro
adequado ao prosseguimento das aventuras gloriosamente iniciadas pelos seus valorosos
antepassados portugueses, de quem ele herdou aquele indômito ardor pelas conquistas
de terras desconhecidas. Se aqueles devassaram os mares, alargando o domínio colonial
marítimo até o surto de um império “onde o sol não tinha ocaso”, os seus descendentes
sul-americanos, possuidores por herança atávica da mesma curiosidade bravia e agressiva,
desbravaram florestas, remontaram invencíveis serranias, venceram rios ameaçadores,
dobraram a dura cerviz de tribos infiéis e desalojaram inimigos rancorosos, mesmo fiéis
e cristãos.

Por índole e por sangue, Pinto Bandeira, pertencente a este ciclo, foi o capitão
dos tempos idos que maiores serviços legou à posteridade rio-grandense, dilatando as
fronteiras da sua terra. Além de ter sido o destemido criador da cavalaria rio-grandense,
de prestigioso renome, foi a figura mais completa da aptidão guerreira de seu tempo, com
o ser simultaneamente o invicto cabo, quer na campanha rasa, como em Tabatingaí, quer
no assalto e rendição, como foi da famosa atalaia espanhola de Santa Tecla, quer na
atrevida escalada a montanhas, como em S. Martinho, jornada que, estabelecidas as
devidas proporções e descontos, não teme o confronto que um dia pudesse alçar-se, até
pedir meças com a entrepresa de Aníbal nos Alpes.

Altivo como um cruzado, ainda que rude como um bandeirante, o célebre


campanhista e sertanista rio-grandense, se tivesse vivido na atualidade, ao pressentir
extinguir-se-lhe a vida, podia orgulhosamente repetir com Coriolano:

“Vede, senhores, as minhas feridas; recebi-as estando ao serviço do meu país,


ao passo que muitos de entre vós outros soltáveis furiosos gritos e fugíeis espantados, só
do ruído dos nossos tambores.”

Naquele tempo, lembrem-se bem, a frase não saberia: passará na mente de


alguém que o rio-grandense se atemorizaria de fanfarras marciais?

O outro grande caudilho e guerreiro, que pela audácia e valor tentou a


realização de uma empresa imortal, que apesar de se ter achado mais de uma vez perto
do termo final, contudo falhou, à míngua de um meio ainda bem preparado para recebê-
la, como muito mais tarde, em 1889, já o estava, foi Bento Gonçalves, que, por ter
antecedido a verdadeira época em que devia ter existido, maior se torna à nossa
admiração.

Entretanto o largo e varonil decênio de 1835 a 45 bastou para definir de modo


imperecível a personalidade galharda desse abnegado, até os mais duros sacrifícios de
família, fortuna e saúde, em favor de um ideal que nenhuma recompensa lhe
proporcionou. É por isso que hoje, quando já passaram tantos lustros, o grande cidadão
se nos revela docemente velado pela aureola de um extraordinário mártir. Essa alma à
antiga, com a austeridade e o desinteresse de um Catão de Útica, a cavaleiresca bravura
277

de um Du Guesclin e a serena energia só empregada nos grandes lances da epopeia de


que foi a vida e o herói consagrado, logo mitigada e reduzida à mais humilde bondade,
da qual os sobreviventes chegados até nós foram incansáveis pregoeiros e cuja lembrança
souberam guardar com carinhosa e melancólica saudade até seus últimos dias, só é
comparável à dos apóstolos do cristianismo.

Tivesse triunfado a Revolução de 1835, e Bento Gonçalves teria sido incapaz


de, com a embriaguez da vitória, abusar dela. Dentre os muitos perigos de uma revolução,
um dos maiores está nos abusos sobrevindos com o triunfo. Tivesse sobrevivido
Hampden, e a Inglaterra, tradicionalmente liberal, não coraria até hoje com a página de
martirológio de Carlos I, com que foi sanguinosamente inaugurado o regime republicano
de Cromwell, e que é uma nódoa de sangue no alvacento manto de civilização que aquele
simpático povo desdobra sobre toda a humanidade contemporânea.

A Bento Gonçalves ajusta-se, como a bem poucos, a sentença de Macaulay, o


vivíssimo colorista da história moderna, a respeito de Hampden: “Só esse tinha a
faculdade e a tenção de restringir os excessos revolucionários na hora do triunfo. Outros
poderiam conquistar, só ele reconciliar.”

Moderação e firmeza, eis as qualidades que caracterizaram os estadistas do


Império, definiu-as o segundo Rio Branco. Que Silveira Martins era de uma firmeza
inalterável, todos o reconhecem. Moderado, porém isto escapou a todo o mundo, porque
o ímpeto do seu gesto, o arrojo do seu ataque, a veemência da sua linguagem e o fulgor
da sua eloquência tribunícia eram a antítese da moderação e indicavam o orador agressivo
e o político exaltado. Entretanto todos os seus atos se pautaram pela moderação, de que
deu mais de uma prova, até que, com o seu lance supremo, inesperado, quando foi da
Questão Militar, convidando e aconselhando o governo conservador do seu grande
êmulo e amigo, o inolvidável Cotegipe, a que retirasse o arrogante cartel de desafio jogado
ao Exército Nacional, paralisou, de súbito, as esperanças da democracia adiantada.

Os maiores serviços de Silveira Martins ao Rio Grande são de ordem material,


como a construção da rede ferroviária, a abertura da barra, a tarifa especial e outros de
não menor valia. De ordem moral, um sobrepujou os outros: a elegibilidade dos
acatólicos, que foi considerada então um passo arrojado, por importar numa franquia a
protestantes, outorgado num país de religião católica oficialmente reconhecida, que
permitia a estes, estrangeiros natos, a entrada na vida pública do país. A nosso ver, aliás,
o maior padrão de glória, que há de deixar para sempre vívido, na memória dos seus
patrícios, o nome de Silveira Martins, é o prestígio que soube conferir ao Rio Grande do
Sul, elevando-o até fazer sentir o peso do seu valor nos votos e resoluções proferidas no
próprio paço imperial. Data daí a influência que a nossa terra foi adquirindo junto do
governo do centro e logo pressentida pelas metrópoles, quer do Império, quer da
República, que em vão lhe têm querido abater, por mais de uma feita. Conforme entendia,
se “Cavour, querendo unificar a Itália, piemontizou-a; Bismarck prussianizou a
Alemanha; ele estava vendo que o Brasil precisava de se rio-grandensizar.”

O jornalista paulistano Leopoldo de Freitas, com seguro conhecimento


pessoal do eminente brasileiro, escreveu, algures, que Silveira Martins era agradável sempre,
sabendo tratar a todos com os seus gestos arrebatados e francos, vestígio talvez da sua primitiva natureza
de camponês. Realmente assim era o homem íntimo, no trato dos amigos, sempre chão e
278

despretensioso, embora o seu todo subjugante. Na tribuna, porém, a mutação era rápida
e completa: figura de imponente aspecto, parecia crescer; alto, corporatura de atleta, voz
retumbante e troante como nenhuma outra jamais foi ouvida no Senado ou na Câmara
ou na Assembleia Provincial, ou mesmo na praça pública, Silveira Martins engrandecia e
só com a sua palavra e porte parecia resgatar o Partido Liberal de todos os seus erros.
Era a personificação mais bem acabada do parlamentar moderno. Não tinha a eloquência
untuosa e persuasiva de José Bonifácio, o moço, nem a ironia candente de Ferreira
Vianna, nem o gesto amaneirado e estudado de Joaquim Nabuco, depois que assistira as
sessões do Parlamento da Grã Bretanha, nem a eloquência acadêmica de Fernandes da
Cunha e José do Patrocínio, puros discípulos da escola romântica. Diferia de todos e foi
caso único. Urbano Duarte, um céptico e um humorista, rendeu-se e o definiu em poucos
períodos de imoderada admiração: “Leão na tribuna, escreveu ele, só conheci o sr. Silveira
Martins. Possuía a facúndia, a inspiração, os reptos de Mirabeau. Tinha o direito de dizer
o que sentia e o que queria, sem atenuantes, sem anfibologias, sem perífrases, sem
branduras calculadas. O seu gênero de talento lhe permitia essas franquezas, como a um
grande poeta se concedem certas liberdades”.

Um erro, entretanto, que este grande homem cometeu, e que tantos outros
também igualmente cometeram e sobre o mesmo assunto, só para ele foi fatal,
fatalíssimo. Descurando da previsão do futuro, cuidado especial que todo o estadista deve
ter, um dia, quando estava no fastígio do poder, do prestígio e da glória, desconheceu a
natureza da corrente republicana que desbordando ameaçou o trono. Silveira Martins
combateu-a sem tréguas e, quando se precipitaram os acontecimentos, ele, que, por
temperamento e ideias, não devia ter dado aquele passo temerário, não podia deixar de
ser suspeito ao novo regime, quando outros, acentuadamente reacionários, por princípios
e obras, como Lucena, ascenderam ao pontificado, embora se avizinhassem
apressadamente da Rocha Tarpeia.

Quando mais tarde quis remediar o erro, a ocasião era profundamente crítica,
e a sua adesão, ainda assim condicional, porque propunha formas e moldes incompatíveis
com a nova ordem de cousas; viram os seus patrícios, com profundo pesar, que Silveira
Martins já era homem do passado[...] Tivesse tido ele a vidência de Saraiva, o mais
insinuante estadista do Império, depois do velho Rio Branco, e em vez de tentar reagir
contra a corrente da época, que o envolveu, tivesse vindo colocar-se à testa dela e
encaminhá-la, ou não hostilizá-la, como Saraiva, quantas decepções não teriam sido
poupadas?

Todavia, os seus desinteressados serviços à pátria, de molde a imporem-se


cada vez mais, a vibração da sua personalidade, o amor à terra natal, o talento pouco
comum – tudo isso foram qualidades que os seus patrícios levaram em conta para ser-lhe
descontado o erro. E o Rio Grande do Sul depressa se convenceu de que Silveira Martins,
o tipo modelar do regime monárquico parlamentar, foi o maior tribuno do Brasil
moderno, e isto é o quanto basta para ser orgulho de sua terra nativa, e esta, assim, poder
repetir com Shakespeare, em um passo do Júlio Cesar: “Ou vivo ou morto, só há um outro
igual a ele: é ele mesmo”.

Júlio de Castilhos saiu de uma geração cientificamente orientada, e, se não


fosse assim, nem a República se teria feito, nem o estadista teria logrado construir depois
de ter destruído: teria cambaleado às tontas, à mercê dos azares do voto, cuja inconstância
279

lembra a amarga chamada de Rosalinda: não vos apaixoneis de mim, porque os meus juramentos
são mais falsos que os protestos feitos durante a embriaguez.

Muito cedo conheceu as blandícias da glória, que jamais o desprezaram, até o


dia memorável em que findou a sua fecunda trajetória terrena. Entrando como um
vencedor na arena, a morte o colheu exatamente quando os louros da vitória se
convertiam em funerais dos seus adversários e novos cenários iam disputar-lhe novos
papéis, de maiores responsabilidades, mas também de brilho mais intenso. Quanto
maiores as responsabilidades, mais à vontade se sentia Júlio de Castilhos, fenômeno
inversamente notado entre os fracos e mesmo entre os fortes, verificado com exceções.
De longe já se lhe descobria a força. Sem que fosse dotado de palavra eletrizante, dessas
que lisonjeiam a turba, com os arroubos de uma eloquência acariciadora dos fracos e das
mulheres, é certo, entretanto, que, falando ou escrevendo, Júlio de Castilhos era caloroso
e empolgante. Dessa pena, à primeira vista despida de amenidade, mas enérgica,
fulgurante, cheia de vida e incisiva, como um dardo, a qual ninguém ousou nem pôde
jamais imitar, cujo feitio era próprio e por isso único, da sua atitude franca e definida em
frente de todas as contendas, do seu ardor sem esmorecimentos, vacilações e artifícios, e
da sua inexcedível integridade moral, brotaram as primeiras esperanças em torno de quem
então se revelava tão idôneo para atuar num terreno desconhecido, mas preparado por
ele e para ele. Assim conseguiu levantar, sob bases firmes e rigorosamente modernas, um
sistema novo do governo republicano, cuja verdadeira codificação aí está, para quem
quiser aprender, compendiada na Constituição de 14 de Julho. Se Silveira Martins
simboliza uma escola, um regime, enfim, a forma de certas instituições cuja prática se
baseia em coletividades e deixa de exercer-se regularmente se se despir do revestimento
de pomposas exterioridades, à semelhança, embora remota, de certos cultos, e nisso têm
elas de obsoleto, Júlio de Castilhos simboliza novas formas, novo regime, novas
instituições, onde a ação pessoal é de um só homem e não de uma corporação; mas, para
ser assim, esse homem deve ter muito de Júlio de Castilhos: “Os que têm o raciocínio
mais forte, dizia o filósofo da indução, são os que sempre e melhor podem persuadir a
respeito daquilo que pretendem, mesmo que não falem senão baixo bretão, embora
nunca tivessem aprendido retórica.”

Não vem agora o recordar, ainda que a largos traços, o quadro da vasta esfera
de atividade de Júlio de Castilhos.

Todavia, conceda-me, a tolerante assembleia, licença de intercalar uma


pequena nota pessoal, para dizer que, quanto a mim e aos membros do Partido
Republicano, que andam pela minha idade, anos mais, anos menos, assim como, em
Inglaterra, é suprema honra, de todo o liberal que milita na vida pública o poder, dizer
que serviu com Gladstone, nós, permitam os arrivistas, reivindicamos, como o nosso
maior padrão de orgulho republicano, o termos sido soldados de Júlio de Castilhos, sem
outra maior ambição.

Senhores.

O Grêmio Gaúcho não tem e não deve ter preferências de ordem política, a
cujas lutas é alheio, tanto que procurou irmanar os fiéis à memória de Gaspar Martins
aos que o são à de Júlio de Castilhos, para a glorificação cívica dos dois grandes patrícios,
cujas fisionomias insinuantes, e graficamente reproduzidas, vão permanecer de ora em
280

diante numa reconfortante vizindade, como vizinhos, embora diametralmente opostos,


foram os feitos de ambos, tendentes a um único fim – que importa fossem diferentes os
meios? – a grandeza do Rio Grande.

E, brevemente, quando as paixões, de todo esquecidas, como já o estão


quanto aos capitães que aí reverenciais, pertencerem ao domínio da história, saberão os
frequentadores do Grêmio Gaúcho que, a intervalos mais ou menos longes, houve um
Pinto Bandeira, um Bento Gonçalves, um Gaspar Martins e um Júlio de Castilhos, por
quem o povo rio-grandense teve uma tal veneração, que, se por ocasião dos respectivos
falecimentos, alguém lhe tivesse lembrado, ele, tal como o povo romano, se ouvisse ler o
testamento de César, segundo a previsão de Antônio, iria beijar-lhes as feridas do corpo, molhar
o lenço no seu sangue, mendigar um dos seus cabelos, para guardá-lo como a essas relíquias à hora da
morte se mencionam entre as últimas vontades, e que são transmitidas, qual precioso legado, à posteridade.
281

DISCURSO COMEMORATIVO AOS 25 ANOS


DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA NO
THEATRO SÃO PEDRO
(A Federação, Porto Alegre, 17 nov. 1914)

Senhores.

O Partido Republicano Rio-grandense promoveu a comemoração da data em


que o Brasil, de monárquico, que era, passou a governar-se como República, porque a
sua missão também é educadora.

Se partido político, como o vocabulário indica, é a parte de um todo, ainda


assim é uma coletividade considerável, que, em dados momentos, e mesmo normalmente,
como o Partido Republicano do Rio Grande, representa o sentimento da comunidade
inteira.

É uma verdade revelada, por fatos de todos nós sabidos, que, com o
desaparecimento do Império, se reproduziu o fenômeno, observado sempre, de que as
instituições de um povo sofrem violentos abalos.

Consiste, também, ele, na extinção dos grandes partidos constitucionais


existentes, que, do mesmo modo, passam, modificando-se radicalmente e renunciando
todo o seu passado, a identificar-se com a Pátria na sua profunda transformação.

E, então, com os bruscos movimentos que de ordinário se seguem a essas


ocasiões críticas da vida nacional, nota Léon Jacques, que há pouco escreveu
magistralmente sobre o assunto, o partido que tentou reagir, ou que não logrou
conformar-se com a nova ordem de coisas, jamais será o que dantes foi 11.

Inadaptado ao meio por ele mesmo hostilizado sem tréguas, perde a sua
preocupação com o bem público para só ater-se a considerações de ordem restrita,
visando individualidades, volvendo-se para fins meramente particulares e para ideais já
gastos e fora do tempo. Deixa, então, de ser partido político, que já foi, para,
desagregando-se, constituir facções, mais ou menos demolidoras, no seio das quais
tripudia o egoísmo, impera a abstenção das urnas e lavra o dissídio, e, como não tem
responsabilidades, não esconde o seu latente trabalho de subversão e revolta.

Ora, senhores, isto que é a negação completa do que sejam partidos políticos,
sobretudo no ostracismo, que é quando maior arregimentação, disciplina e altruísmo se
exigem, há alguém capaz de negar seja o deplorável estado das agrupações fora do Partido
Republicano?

11 Léon Jacques, Les partis politiques, p. 41. (N. A.)


282

Traduzindo sempre o esforço comum à conjugação de múltiplas atividades


submetidas a um ideal a que se propõe atingir, e que varia segundo as épocas e as
circunstâncias, um partido, sustentava o publicista acima referido, é um agrupamento de
cidadãos que solicitam a honra de gerir em conjunto, no interesse da totalidade do país e
em função tanto do passado como do seu futuro, as coisas públicas de harmonia com as
suas concepções e os seus métodos próprios.

Eis porque o Partido Republicano, fazendo causa comum com o sentir geral
do povo brasileiro, com a nação, cujas emoções, sejam tristes ou sejam festivas, ele
compartilha vivamente, sente-se radiante com o aniversário que assinala hoje o primeiro
quarto de século da era republicana.

É certo que essa conquista não traduz a só e exclusiva obra e graça de partidos,
antes, porém, a meta final e vitoriosa de esforços dolorosamente acumulados, sem temor
continuados e por muitas gerações sempre renovados, desde os incertos e mal seguros
passos aventurados em amargos dias do regime colonial.

Mas é que essa insaciável aspiração nacional, hoje convertida em exuberante


realidade, não logrou consumar-se, radicar-se e consolidar-se senão por instrumento e
por ação de partidos, dos quais ao Republicano Rio-grandense coube um papel
culminante, muito árduo e cada vez mais cheio de responsabilidades.

Eis porque o Partido Republicano, nascido para lutar e vencer, como também
para instruir e venerar tudo quanto representam as grandes causas brasileiras, procura
canalizar esses transportes de emoção cívica, excitando-os e fazendo-os fremir no grande
dia em que, na estrada da República, é colocado, expansivamente, mais um marco
comemorativo da sublime realidade alcançada pela maior e a mais remota das aspirações
nacionais.

De uma antiguidade inapreciável procede a forma republicana. E, mesmo,


nenhuma outra instituição remonta, como ela, tão alto e tão longe, através dos tempos, a
ponto de parecerem modernas todas as monarquias contemporâneas quando
comparadas aos dias milenários da Democracia Ateniense.

A República já era amada e praticada muito antes que a eloquência grega tivesse
florescido na Antioquia; muito antes que os ídolos maometanos fossem reverenciados na mesquita de
Meca; muito antes que os bárbaros do Norte, transpondo o Reno12, houvessem convulsionado o
Ocidente.

O próprio catolicismo, cuja vetustez supera tantos fatos da antiguidade, com


o decair do seu prestígio secular, já não exerce a mínima ascendência temporal, embora
o seu invencível prestígio espiritual de religião revelada; mas a República permaneceu
estável, ora com efêmera decadência, ora com esplendor, até que no século XVIII entrou
em novo período de expansão ascendente, como instituição futuramente universal.

É exato que, se valendo de uma autoridade, as mais das vezes ilegitimamente


adquirida, preclaros espíritos têm proclamado a falência da República, como criação

12 Lord Macauly. Critical and Historical Essays, vol. 7, p. 99. (N. A.)
283

defeituosa, à qual imputam vis imperfeições, irrisórios defeitos e sofísticas perversões,


figurando-a como uma espada de Dâmocles pendente sobre o povo, com um perigo
temido por todo o mundo – a demagogia.

Tudo isto tem sido, porém, em vão, baldadamente, como em vão têm sido
todos os esforços empregados no sentido de serem esquecidos os grandes feitos
históricos de onde têm emanado as mais fecundas consequências em benefício da
confraternização dos homens, quer sejam trágicos, como o da estaca simbólica que o
cristianismo incipiente deixou no Calvário, quer sejam singelos como o humilde gesto do
bom Samaritano.

Acontecimentos desse gênero contrastam entre si, mas que, por terem sido
evangelizadores e humanamente altruísticos, sobreviveram, triunfando já contra a força
armada das guardas pretorianas, já contra o motejo fino como o de Voltaire ou bestial
como o de Falstaff.

Bem se sabe que a República não faz impossíveis, nem contém princípios
infalíveis, nem opera com métodos impecáveis; porque virtudes sobrenaturais, como
seriam estas, não existem; basta entretanto que cada qual reconheça, como ensina o
admirável Scherer, que as liberdades políticas não são o fim da sociedade, mas apenas
garantias para que ela possa viver normalmente, segundo o seu curso natural, para ver
que a República, melhor que todas as outras criações governativas, é a única que pode
fazer tudo quanto politicamente promete.

E se não bastassem os exemplos dignificantes da vida normal das nações


republicanas, para porem em destaque a excelência da forma, aí está a triste atualidade,
onde, no seu foco de efervescência civilizadora, a humanidade sofre as mais dolorosas
convulsões e outros tantos dilaceramentos sem par, só suscetíveis de serem evocados por
uma pena Shakesperiana, por já terem ultrapassado os cenários do Inferno dantesco.

A responsabilidade desta impetuosa onda de sangue e de fogo, que perverte a


bela Europa, esterilizando todas as conquistas da civilização, vagarosamente acumuladas
durante séculos e séculos, e fazendo deter, senão retrogradar, a sua orgulhosa marcha
ascensional, cujo termo parecia quase alcançado e já deixava entrever o abençoado futuro
com que a paz universal acena, pode, sem restrições, ser atribuída ao militarismo
agressivo, insólito e perturbador, inteiramente deslocado do seu tempo, a rasgar
arrogantemente as melhores conquistas do Direito e da Justiça.

Devorando os espaços, numa só lufada de fogo e num só turbilhão de ferro,


pouco importa que o sangue ensope as terras dos sábios e dos artistas, sejam eles Leibnitz
ou Kant, Von Yhering ou Wagner; Catarina ou Tolstoi; Augusto Comte ou Gambeta;
Spencer ou Gladstone; pouco importa, contanto que a guerra vá seviciando nações livres,
profanando instituições, arrasando monumentos que foram o enlevo de gerações e
gerações, esquecida de que, no mundo moderno, fracos e fortes, grandes e pequenos,
todos devem ter as mesmas garantias, os mesmos destinos, as mesmas aspirações. A
guerra europeia servirá, entretanto, para deixar de pé, intacto no seu prestígio, o regime
repúblico-americano.
284

Oxalá seja o prenúncio de bonançosas manhãs do porvir este ocaso de


incêndio, de chacina e impiedade, assistido pela segunda década do século XX, que reduz
a um mero brinquedo a macabra pirâmide de noventa mil crânios, que Tamerlão elevara
sobre as ruínas de Bagdá.

Esse, porém, não é o quadro tétrico e terrivelmente normal que, orgulhosa do


presente e com segura confiança no futuro, a republicana América oferece, com um
cenário próspero, onde todas as nacionalidades florescem ao sol da paz. No regaço das
mesmas sorri o trabalho, campeiam as liberdades, vicejam as atividades individuais e
coletivas, em tanta maneira, que o comércio, a indústria, a navegação, a agricultura, a
pecuária, as letras e até as artes proliferam sem emulações ignóbeis, nem competências
ameaçadoras, sem embargo de alguma apatia peculiar a um ou outro povo, aliás, sempre
propenso à paz.

Há, senhores, numa peça de Shakespeare, notável pela doçura de algumas


cenas, “A Tempestade”13, um tocante trecho, no qual a personagem adverte o
interlocutor de que, devido a um casamento infeliz, fatal, os reinos de Milão e de Nápoles
passaram a contar mais viúvas do que esses países possuíam de homens para as consolar
e de cuja desgraça total o outro era o culpado.

Que este anátema caindo sobre a cabeça de todos quantos exaltam a guerra,
aplaudem a paz armada e menosprezam o princípio da aproximação entre os povos
concorra para lhes despertar a razão adormecida, ou – antes – entorpecida pelo fumo das
deflagrações, enchendo-os de terror da sua própria obra, e concorra para resgate dessas
abomináveis extorsões, que fazem absolver a Shylock, dessas espantosas injustiças,
capazes de reabilitar a Torquemada, e dessas incríveis violências, que atentam
sacrilegamente contra a religião, a liberdade, o amor e a família.

Sejam, pois, vibrantes e convictas as nossas homenagens aos fundadores da


pátria republicana e, especialmente, volvidas para Júlio de Castilhos, que, tendo sido o
maior propugnador da pureza dos princípios republicanos, foi o ardente guia do Partido
Republicano desde a sua fundação; para Júlio de Castilhos, que, quando descobriu que
fatalmente seria chamado a governar e na República assumir o papel que o seu
excepcional valor lhe destinava, também descobriu a necessidade de preparar um partido
de governo e, então, redobrou de zelos, na constituição deste partido, onde a par da força
numérica, material, deveria igualmente refletir as ideias próprias do seu organizador, que,
afinal de contas, de pouco valeriam se as não tivesse subordinado ao critério da mais
intransigente honorabilidade.

Foi Júlio de Castilhos o primeiro político, e, se não fora o mais fiel, capaz e
constante dos seus colaboradores o sr. Borges de Medeiros, muito seria de recear ter sido,
aquele, não o primeiro, mas o único estadista brasileiro contemporâneo, que, rompendo
com inveteradas normas imorais, proclamou como suprema diretriz de toda a complexa
ação do homem público a divisa, na aparência sem importância, mas de incalculável valia,
formulada há quase cem anos e, por isso mesmo, muito esquecida, senão relegada como

13 2º ato, cena 1.
285

um estorvo, pelo maior, pelo mais ilustre, pelo mais estoico e pelo mais perseguido e
desditoso brasileiro do seu tempo: “A sã política é filha da moral e da razão”.

Com Júlio de Castilhos educou-se a atual geração política rio-grandense, para


quem a submissão consciente aos seus chefes é uma verdade provada e reconhecida
necessidade, porque, só assim, sem a fatal dispersão nos momentos de crise, foi que o
Rio Grade conseguiu alcançar autoridade e impor-se na suprema direção da República.

Rigorosamente disciplinado por Júlio de Castilhos, quando os republicanos


vimos que Borges de Medeiros, investido da chefia, continuava sem o menor abalo,
inalteravelmente, sem soluções de continuidade, a rota amplamente aberta à sua fecunda
ação, tivemos incondicionais louvores para os métodos, as práticas, as lições e os
conselhos do fundador do partido, cuja impecável organização, se conhecida no exterior,
em todas as suas minúcias, seria aplaudida como de direito.

Esta é a nossa convicção, cada vez maior, à medida e à proporção que


ouvimos a voz decepcionada que nos vem do estrangeiro, de velhos políticos, cansados
das estéreis perturbações dissolventes nas suas efêmeras concentrações partidárias,
recomendarem a fidelidade aos chefes dirigentes, como princípio que deve ser
sacramental, não só indispensável aos fins que desejam, como à própria coexistência
partidária, e é quando se ouve Clemenceau, que sempre apareceu um rebelado, bradar
como o piloto incitando a tripulação do navio desarvorado: “A união de todos os
republicanos sob um estandarte é também uma das forças da defesa nacional”.

Tal é o motivo que a alguns, se bem que poucos, parecerá incompreensível,


pelo qual ninguém fazendo o menor sacrifício ao orgulho e ao amor próprio, reprimindo
ambições que não existem, circundamos com entusiasmo crescente a pessoa de Borges
de Medeiros, cujo pulso firme empunha a bandeira outrora desfraldada por Júlio de
Castilhos, como um vibrante aceno a todos quantos, desiludidos ou não, procurarem
retemperar as suas crenças, comungando na doutrina salvadora do republicanismo puro.

Tal é a fonte da nossa suprema dedicação a esse homem, que, sem


preocupações ao pontifício, aconselha desinteressadamente, com o acerto de um mestre
e a bondade de um ascendente, aos que, sem Cesar, o procuram ávidos por ouvir a suas
meditadas instruções.

Borges de Medeiros, à maneira dos paraninfos medievais, que na célebre noite


da vigília das armas instruíam ao noviço que se ia armar cavaleiro – é oportuno recordar,
agora sem comentário –, chegou, porque tem luzes, experiência e autoridade para tanto,
a aconselhar carinhosamente em ágape memorável, até mesmo a um presidente da
República, precisamente esse cujo ciclo hoje encerra, fazendo-lhe ver, com aquela sua
eloquência política, que é um modelo de persuasão e acariciativa oratória, que todo o
bom êxito da alta investidura dependia da rigorosa observância dos sãos princípios
republicanos, verdadeiramente republicanos, frisava ele.
286

Senhores.

Cumprida está a missão de todos quantos sentem reconfortante estímulo com


o cumprimento de atos de devotamento cívico, tanto mais que este é uma lição para a
juventude escolar e de quem a pátria espera amanhã a continuação dos mesmos esforços
e dos mesmos sacrifícios da geração atual, na guarda do legado sacro que lhe há de ser
confiado! Oh! Puerícia álacre! O de manter a nossa República com o mesmo território, a
mesma língua e as mesmas instituições!
287

O PICADEIRO DA BRIGADA MILITAR14


(A Federação, 1º dez. 1914)

“Exmo. sr. dr. Presidente do Estado.

Desvanecida, a Assembleia dos Representantes, com a gentileza de V.Exa.


oferecendo-lhe essa festa numa dependência da Brigada Militar, sente-se feliz por haver-
lhe V.Exa. proporcionado propício ensejo de verificar que as verbas por ela votadas para
a manutenção de nossa milícia estadual, e votadas sem vacilações e regateios, não podiam,
nem podem, ter aplicação mais fecunda e benéfica.

Uma força assim constituída e a serviço de homens como V.Exa. e seus


ilustres predecessores, incapazes de se servirem dela como meio de compressão das
liberdades públicas ou de atentados contra o direito, uma força nestas condições é um
dos elementos constitutivos de todo o Estado em geral, conforme a lição do direito
público moderno, que ensina serem três os referidos elementos: território, força pública
e um grupo de homens, a que chamam governantes, com o direito de disporem daquela
a fim de que o estado possa conseguir a prática de certos fins no interesse da sociedade.

Vê-se, pois, que a nossa força, concorrendo com a sua eficiência para a
manutenção da ordem pública, como concorre com elevada moralidade, certo não é uma
guarda cesariana, uma guarda palatina, uma guarda de janízaros, mas um elemento de
garantia daquelas liberdades.

Nós, da Assembleia dos representantes, com o encerramento dos trabalhos


da 2ª sessão da 7ª legislatura, retiramo-nos para nos dedicarmos a outros afazeres que,
certamente, deixam algum descanso, consoante a atividade de cada um de nós; mas o
mesmo não podemos dizer de V.Exa., porque V.Exa. desconhece o que seja ócio, pois
tem toda a sua atividade dirigida para os múltiplos negócios e encargos da alta investidura
que, em boa hora, lhe foi confiada.

Nós nos retiramos, repito, para atividades que deixam lazeres, mas V.Exa.,
que não dispõe nem mesmo de horas para o gozo de prazeres, ainda daqueles mais
comuns, de que se acham privados os mais obscuros concidadãos, todavia tem a grande

14 O picadeiro Brigada Militar foi inaugurado dia 28 de novembro de 1914 com uma grande festa oferecida
por Borges de Medeiros. Na edição de A Federação, de 1º dez.1914, em artigo de página inteira, é narrada
toda a solenidade. Inicia-se com a descrição física do local, projetado pelos instrutores da Brigada Militar,
tendo sido a construção supervisionada pelo tenente-coronel Claudino Pereira Nunes. Em seguida, são
mencionadas as atrações: prova prática de doma de animais cavalares, executada pelo tenente-coronel Assis
Brasil, e a demonstração de exercícios de equitação de alta escolta, pelo alferes Cassiano Vasques. A isso,
seguiu-se o “lunch”, acompanhado pela banda da Brigada, regida por Pedro Borges.
Na última parte do evento, são transcritos os diversos pronunciamentos. O primeiro a discursar foi o
deputado Alcides Cruz, que, em nome da Assembleia dos Representantes, agradeceu a Borges de Medeiros
a festa por ele oferecida (Trata-se deste discurso que aqui compilamos.).
Os demais a discursarem foram: coronel Cipriano Ferreira (comandante da Brigada Militar), dr. Cunha
Ramos (deputado estadual), coronel Riet, coronel Alfredo Moreira, dr. Protásio Alves (Secretário do
Interior), tenente-coronel Assis Brasil e, encerrando a solenidade, dr. Borges de Medeiros
288

satisfação só peculiar às almas à romana, como a de V.Exa., de rigoroso cumprimento


dos deveres. Essa é a grande recompensa que melhor o galardoará a serena satisfação
desse dever cumprido.

Fiel à sentença de Montesquieu, também V.Exa. sobrepõe os interesses da


Pátria aos da própria família. Por isso, sr. presidente, é que a Assembleia eleva a sua
estima e admiração para com as virtudes de V.Exa. e brinda-o com efusão.”
289

O CASO DO ESTADO DO RIO


_________________
INTERVENÇÃO ILEGAL
(A Federação, Porto Alegre, 5 jan. 1915)

Ao tempo que a Constituição da República está em vigor, cerca de vinte e


quatro anos, já não é para serem falseados tantos dos princípios nela contidos, em cujo
número se conta o da intervenção do governo federal nas contendas políticas agitadas no
seio dos Estados.

Não é mais da famosa regulamentação do art. 6º, de que se trata; mas da


legitimidade ou não dos meios por que se provoca aquela intervenção, cada dia mais
pervertidos, muito em parte graças à ilegal atitude assumida pelo Supremo Tribunal
Federal, com a sua facilidade em autorizar indiretamente referida intervenção.

E, assim, sem resguardo da sua autoridade e discrição, a que estava obrigado


a manter, vai acoroçoando esse desbordamento de politicagem impatriótica, cuja onda
dissolvente já chegou à barra do mesmo, e não parece alarmar a eminente corporação.

Faltarão, por acaso, regras práticas que regulem a espécie e, por isso, as
vacilações, as surpresas e as soluções ilegítimas como esta de, por meio de uma ordem
de habeas corpus, dar-se a intervenção federal? Não.

O exame dos fatos, melindre a quem melindrar, mostra entretanto duas


ordens de males causantes dessa situação, que, por intimamente associados, talvez não
sejam de fácil supressão.

A primeira delas provém da desmedida ambição pessoal de certos indivíduos,


que, insaciáveis por índole e buscando com sofreguidão a posse de cargos rendosos e a
de posições salientes, não se importam com os meios para atingi-las, contanto que
satisfaçam as suas deploráveis pretensões.

São sempre justas e dignas de respeito as aspirações que deve ter todo o
homem público, uma vez que sejam elas inspiradas na vontade de servir honestamente à
pátria e ao seu partido, e só se legitimam quando ao dispor de indivíduos capazes pelo
seu caráter, pela sua cultura e pela sua escrupulosa conduta. Quando, porém, elas
representam o egoísmo e superam esses nobres sentimentos inerentes a Júlio de Castilhos
– que, sem embargo do seu talento e das suas virtudes e da sua ascendência cívica, se
conservou por tanto tempo fora das posições oficiais – e a Borges de Medeiros – durante
um quinquênio arredado de cargos públicos, por um escrúpulo digno de todo o louvor –
, mas sem se alhearem jamais à desinteressada colaboração nas boas causas da pátria,
aqueles vícios, aquela lassidão de princípios e de honra antes deveriam ser o estigma a
290

gravar na fronte dos fariseus que fazem da política uma profissão mercenária, ainda
mesmo com sacrifício do crédito e da pureza da República.

Infelizmente não é assim que sucede e, longe de incidirem no ostracismo, tais


indivíduos encontram alento para a sua cobiça exatamente, e como que por uma fatal
perversão das coisas, onde tudo lhes devia ser negado. É triste confessá-lo; é, porém, nos
tribunais federais que eles vão haurir coragem e estímulo, achando mão forte para a
chicana e as arruaças!

Resulta, então, da rigorosa observação dos fatos, que, além da falta de


escrúpulos e da insaciável ambição de certos políticos, a outra fonte de males que por
vezes põe em violento jogo a ordem pública, agravando-a ainda mais, com uma indébita
intervenção do governo federal na política local dos Estados, é o acolhimento que os
erros dessas perigosas individualidades encontram nos tribunais, reduzidos, assim, a
dóceis instrumentos de subalternas pretensões.

Ainda agora as emocionantes cenas da atualidade política, desdobradas no


agitado proscênio da capital do Estado do Rio, como um triste presságio no início do
ano novo, revelaram a feição interessante que lhes vem emprestar o trinfo da chicana
perante o Colendo Tribunal da União.

Por certo, ninguém dotado de medíocre bom senso jurídico será capaz de
admitir, salvo motivo preconcebido, que o habeas corpus, extremo recurso de quem está
em iminente risco de ver tolhida a sua liberdade individual com algum constrangimento
ilegal, mas em casos assaz restritos, como de prisão ilegal ou de ameaça desta, substitua
o procedimento competente para a resolução de uma contenda entre dois ligantes que
por meio de eleição geral tenham disputado um cargo público, cujo processo eletivo
oferece vícios insanáveis e controvérsias que degeneraram em completa anormalidade,
sendo preciso apelar para um poder supremo que dirima o conflito.

Esse poder, entretanto, só deveria ser um tribunal judicial em processo


comum perante ele instaurado, porque sendo, como é, uma questão meramente política,
a órbita de ação do poder judiciário em assuntos de tal natureza é stricti juris; é determinada
por lei e não pode ser interpretada ampliativamente. A competência política dos tribunais
da União acha-se definida nos arts. 59, 1, a, b, c, d; §1º, b; art. 60, d, i, da Constituição da
República. Eis porque o habeas corpus é o menos lícito dos meios para tal fim, pois não é
processo comum.

Fora destes casos, ela é sempre ilícita e até mesmo constitui uma usurpação.
Já a Escola Virginiana e Jefferson entendiam “ser muito perigoso considerar os
magistrados como árbitros em última instância de todas as questões constitucionais,
porque seria colocar-nos sob o despotismo de uma oligarquia”.

Na própria Constituição de 24 de Fevereiro, encontram-se os meios de


resolver as demais questões políticas não previstas nos mencionados artigos e que não
podem ter figura e forma de juízo.
291

Voltando ao caso concreto.

Por que, se o sr. Nilo Peçanha desejava associar a justiça às suas tramoias
eleitorais, não intentou antes um pedido de manutenção, se se considerava legitimamente
eleito, ao menos para coonestar?

É inegável que a impetração de uma ordem de habeas corpus, processo sem


figura nem forma de juízo, para desse modo liquidar uma situação jurídica em que havia
controvérsia de parte à parte, traduz uma grande habilidade da parte do impetrante.

Assim, obtida a ordem, o eixo da questão mudava de lugar, e a coisa não podia
vir melhor ao encontro dos seus audaciosos desejos. Se alguém se opusesse ao
cumprimento do habeas corpus, aí estava a porta aberta pelo art. 6º, § 4º, que é aonde S.Exa.
queria chegar: a intervenção do Governo Federal para assegurar a execução de leis e
sentenças federais, mediante o emprego da força pública.

Três coisas concorreram para esse inglório desideratum: a artimanha e a audácia


do político, por um lado; a fraqueza do Supremo Tribunal Federal, por outro.
292

O CASO DO ESTADO DO RIO


_________________
A INTERVENÇÃO
(A Federação, Porto Alegre, 8 jan. 1915)

Reconhecem os constitucionalistas americanos que, em se agitando a questão


de garantir a forma republicana dos Estados, é ao Congresso que cabe conhecer da
matéria; ao passo que, quando se questiona acerca de comoção intestina (domestic violence)
ou de invasão, a competência é privativa do presidente da República, conforme o Ato de
28 de fevereiro de 1795.

Esta investidura encontrou sanção judicial em aresto da Suprema Corte, que


considerou a intervenção federal como assunto de ordem política, ratificando assim o ato
do Congresso que interpretou a Constituição neste particular e a citada lei de 28 de
fevereiro de 1795, dando ao presidente a faculdade de decidir se o Estado está ou não
em pé de rebelião, e daí o natural reconhecimento do verdadeiro e legítimo governo. A
resolução será livremente proferida por ele e, se não for acatada, declarará a lei marcial e
usará da força pública, se for necessário. “Os tribunais federais, acrescenta Woodburn,
não podem ocupar-se da ação do presidente, nem da sua conduta política”.

Este profundo escritor oferece as seguintes considerações à proposição


antecedente:

“Dizem que esta faculdade (power) é um perigo para a liberdade pública e pode
ser abusada. Todo o poder (power) pode ser abusado quando conferido a mãos indignas.
Onde, porém, estará mais seguro? Todo o poder para ser eficaz deve ser pronto. Para
todas estas emergências, a Constituição confere este poder ao presidente da República,
para que ele e não outro determine as condições em que se acha o Estado, bem como
apure a verdade sobre o governo do mesmo. Se o presidente caísse em erro e invadisse
os direitos do povo do Estado, ESTAVA NA COMPETÊNCIA (power) DO
CONGRESSO A APLICAÇÃO DO REMÉDIO CONVENIENTE”.

Aquela autoridade, contudo, não intervém contra a comoção local (domestic


violence) sem que preceda a necessária requisição da assembleia estadual ou do presidente
do Estado, se a assembleia não estiver reunida. Entretanto, quando um Estado
revolucionado viola as leis da União e interrompe o funcionamento dos serviços desta, o
presidente pode intervir espontaneamente, sem a prévia reclamação da parte do governo
ou do legislativo local. Foi o que fez o presidente Cleveland em 1894, por ocasião de
greves em Chicago, que embaraçaram de igual modo o serviço postal e o comércio
interestadual.
293

Em outra obra, também recente, The American Executive and Executive Methods,
por Finley & Sanderson (Nova York, 1908), encontram-se vários casos de intervenção
federal por motivo de querelas domésticas ocorridas em diferentes Estados, de cujas
páginas vai o seguinte resumo:

O general Grant, quando presidente da República, interveio duas vezes no


Estado da Carolina do Sul, em 1871 e em 1876, e uma no de Mississipi, em 1874; Hayes,
durante a greve das estradas de ferro, em 1877, correspondeu aos pedidos dos
governadores de Maryland, da Virgínia Ocidental e da Pensilvânia, intervindo nos
respectivos Estados. Ao presidente Harrison, pelo governador do Estado de Idaho, foi
solicitada, em 1892, a sua intervenção.

O seguinte caso é típico. Em 1872, várias pessoas se presumiam com direito


à governação do Estado de Luisiana e, do mesmo modo, vários agrupamentos se
julgavam constituir, cada qual, a legítima Assembleia Legislativa do Estado. Grant, então
presidente da República, cuja intervenção foi invocada, reconheceu, como governador, o
que melhores títulos possuía e o mesmo critério teve para com a Assembleia. Em 1874,
o governador assim proclamado foi, entretanto, deposto violentamente e teve de
abandonar o palácio e refugiar-se na alfândega federal. Novamente interveio o presidente
da República e o repôs naquele cargo, por considerar que era do seu dever sustentar o
governo que ele tinha reconhecido.

Todavia, em 1877, esse Estado (de Luisiana) outra vez foi presa de convulsão
intestina, mas o general Hayes, então presidente da República, nomeou um comissário
que previamente examinasse os motivos que davam lugar ao pedido de intervenção. O
comissário, depois de um atento estudo da anormalidade das condições em que se achava
a política estadual de Luisiana, entendeu que a ação da autoridade presidencial, para fim
de resolver pendências oriundas de eleições, devia ser cuidadosamente evitada e, assim,
se manifestou contra a intervenção. Conformando-se com o parecer, Hayes apenas se
limitou a aconselhar o que lhe pareceu o mais adequado meio de resolver a dificuldade:
a organização de uma simples casa legislativa competente para decidir a disputada eleição
de governador.

Também Mac Kenley, quando presidente dos Estados Unidos, declinou da


solicitação de intervir no estado de Kentucky, onde lavrava uma disputa entre dois órgãos
governamentais. Taylor, governador eleito pelo Partido Republicano, apelara para o
governo federal contra a assembleia democrática que lhe movia oposição. Mac Kinley
pretextou que o exército da República, fora dos casos mencionados e definidos na lei de
24 de julho de 1894, não podia operar contra querelas locais, e a espécie não estava
compreendida aí.

Em virtude desta lei, o governo da União usará do emprego das tropas federais
em questões peculiares aos Estados somente em casos de rebelião, violência, ajuste ou
conspiração em qualquer um deles, com o fim de dificultar ou impedir a execução de leis
dele ou da República; ou quando se procura privar alguém ou alguma classe de pessoas
desse Estado de qualquer dos direitos, privilégios ou imunidades ou proteção constantes
na Constituição Federal e garantidos por leis – como protetoras de tais direitos,
privilégios ou imunidades –, as quais as autoridades estaduais constituídas deixam de
294

manter ou não podem observar. Outro fato que autoriza o emprego da força pública
federal é o da sublevação contra o governo do Estado.

De toda esta longa enunciação resulta que naquele país, republicanamente


educado, cujas instituições, cujas praxes jurídicas, cujos métodos e cujas interpretações
constitucionais nós, brasileiros, frequentemente invocamos, as contendas políticas locais
se dirimem com o beneplácito tão somente dos poderes políticos por excelência, jamais,
porém, com o do poder judiciário.

É, entretanto, de ver que a maioria desses incidentes, muitos deles


complicados e de excepcional gravidade, se liquidam pelas próprias partes interessadas e
promotoras, sem o concurso da autoridade federal.

O retumbante acontecimento do Estado do Rio era dos que deviam ser


decididos por si próprio, como incidentes de aspecto idêntico têm sido em outros
Estados. Pelos tribunais, poder estranho, a situação só tinha de agravar-se, e
consideravelmente, como era de esperar; de sorte que os promoventes dessa subversiva
e reacionária solução, sem outro fim em mira que não o de agitar os espíritos, o de
ameaçar os tímidos e o de amedrontar os fracos, quando havia uns tantos meios que não
foram sequer tentados, merecem a mais enérgica censura, da qual participará o Supremo
Tribunal com a sua conivência em tão perigosos expedientes, que, oxalá, não se
reproduzam para o decoro e respeito da República.
295

Discursos
Parlamentares
296

16ª SESSÃO

Presidência do sr. dr. Carlos Barbosa

Aos sete dias do mês de novembro de 1906, na sala das sessões da Assembleia
dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, ao meio-dia, presentes os srs. deputados
Carlos Barbosa, Vasco Bandeira, Waldomiro Lima, Santos Filho, Luiz Englert, Olavo
Godoy, Arno Philipp, João Vespúcio, Domingos Martins, Barreto Vianna, Antônio
Caminha, João Simplício, Evaristo do Amaral, Gervásio Annes, Bráulio Oliveira,
Gonçalves de Almeida, Alcides Cruz, José Chaves e Avelino Paim, é aberta a sessão.

Por doente deixa de comparecer o sr. deputado Manoel Py.

É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

EXPEDIENTE

É lido o seguinte projeto de lei, assinado pelo deputado José Gonçalves


Chaves: “Suprimam-se no § 1º, do art. 1º da lei n. 31, de 30 de novembro de 1904, as
palavras a 20 de novembro e suprima-se, também, o § 2º do mesmo art. da citada lei”.

O projeto é apoiado e enviado à comissão de constituição e poderes para dar


parecer; declarando o sr. deputado Santos Filho negar-lhe apoio por não ser objeto de
deliberação nesta sessão.

Passando-se à

ORDEM DO DIA

Procede-se à eleição para o cargo vago de suplente do 1º secretário,


recolhendo-se dezenove cédulas, que, apuradas, dão o seguinte resultado: João Simplício,
dezesseis votos; Antônio Caminha, doze, e Luiz Englert, um; pelo que é proclamado
eleito o sr. deputado João Simplício.

É submetido à discussão o parecer da comissão de petições e reclamações


sobre o requerimento de Nicolau Teixeira Machado.

O sr. Alcides Cruz – Tendo assinado com restrições o parecer ora em


discussão, vejo-me na contingência de explicar à casa qual o motivo a que obedeci para
assim proceder. Discordei, sobretudo, dos 3º, 4º e 5º considerandos por me parecer que
a ocasião era inoportuna para tratar-se da qualidade, superior ou não, do carvão de pedra
rio-grandense ou mesmo do brasileiro em geral (muito bem).

Parecia-me também, como ainda me parece, que além de inoportunos eram


injustos, improcedentes, esses considerandos e, pois, como membro da comissão de
petições e reclamações, e sustentando doutrina contrária à que foi aí emitida, estava na
297

obrigação de sufragar a opinião esposada pelo meu ilustre colega e companheiro dr. José
Chaves.

Penso que o que determinou, na sessão passada, a criação do imposto sobre a


lenha não foi tanto, como salientou S.Exa. em seu parecer, a proteção à mineração, à
exploração da hulha nacional[...]

O sr. José Chaves – Indiretamente, por meio de um imposto proibitivo sobre


a lenha.

O sr. Alcides Cruz – [...]mas, sobretudo, a conservação das nossas matas, e,


nestas condições, não me parece justo nem procedente o aludido considerando, ou, pelo
menos, o modo por que foi redigido, tanto mais quando é certo que, depois da sessão do
ano passado, ocasião em que se discutiu proficientemente a questão do carvão nacional,
ficou plena e irrefutavelmente elucidada a sua superioridade.

Nessa ocasião, o meu ilustre colega dr. João Vespúcio pronunciou um


discurso substancioso, que, se não sou suspeito, direi, na minha incompetência (não
apoiados), foi a peça científica mais notável que tem aparecido aqui na Assembleia
(apoiados). Denotando um profundo estudo do assunto, o ilustre deputado desceu a uma
minuciosa história da exploração do carvão rio-grandense, referindo-lhe as experiências
realizadas, e, conquanto impugnados os seus argumentos por oradores e profissionais
distintos, como os drs. José Chaves e Luiz Englert, ainda assim não ficaram abalados os
fundamentos de sua argumentação cerrada. Porque, pouco depois, um complemento
necessário apareceu: foi a consagração que lhe trouxe o notável engenheiro White, que,
após os acurados estudos a que procedeu, chegou à conclusão de que o carvão rio-
grandense podia ser aproveitado proficuamente por todas as indústrias.

Posteriormente, a importante fábrica de locomotivas Baldwin emitiu sobre


esse carvão uma opinião valiosa e que foi publicada no Jornal do Commercio, do Rio, e no
Annuario do Rio Grande do Sul, declarando, por fim, que estava habilitada a construir
locomotivas de forma a poder ser aproveitado o carvão rio-grandense. Ainda
ultimamente, no exterior, fui informado de que um sindicato de capitalistas americanos
dispunha-se a constituir uma empresa com o capital necessário para empreender a
exploração das minas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Porventura serão visionários esses capitalistas? Estarão iludidos? Não creio.


Pelo contrário, parece-me que este movimento procede da confiança que lhes merecem
as informações de White e da fábrica Baldwin.

Convencido desta verdade, amigo que sou da grandeza, do desenvolvimento


e da prosperidade do meu Estado natal, assumiria uma grande responsabilidade moral se
sufragasse os conceitos emitidos pelo meu ilustre colega dr. José Chaves.

Eis ligeiramente explicado o motivo por que assinei com restrições o parecer
da comissão de petições e reclamações, estando de acordo, contudo, com os
considerandos 1º, 2º, 6º e 7º (muito bem, muito bem).
298

23ª SESSÃO

Presidência do sr. tenente-coronel Manoel Py

Aos vinte e dois dias do mês de novembro de 1906, na sala das sessões da
Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde,
presentes os srs. deputados Manoel Py, Vasco Bandeira, Waldomiro Lima, Simplício,
Santos Filho, Luiz Englert, José Gabriel, Olavo Godoy, Arno Philipp, Vespúcio,
Domingos Marins, Barreto Vianna, Antônio Caminha, Evaristo do Amaral, Gervásio
Annes, Bráulio de Oliveira, Gonçalves de Almeida, Antunes de Araújo, Alcides Cruz e
José Chaves, é aberta a sessão; faltando com causa participada os srs. deputados Carlos
Barbosa, Joaquim Osório e Avelino Paim.

É lida a ata da sessão anterior.

[...]

Fala o sr. deputado João Simplício, justificando sua emenda.

O sr. Alcides Cruz – Já estando suficientemente esclarecido o debate, peço


licença para ser breve. Suponho, antes de maior exame, que o meu ilustre colega dr. João
Simplício não apreendeu perfeitamente a questão que eu pretendo explicar-lhe, pedindo,
contudo, permissão para não entrar na questão da gratuidade ou não da justiça, porque
temo mesmo fazer conclusões a priori. Não sei, francamente, se o preconizado regime da
justiça gratuita é o que mais convém às partes; e, mesmo, acho fora de tempo o entrar no
assunto. É um princípio que país algum ainda se abalançou a incluir no seu corpo de leis,
segundo me consta, posso errar, e que receio nos vá custar uma experiência muito
dolorosa, que nos obrigue a voltar atrás.

Eu concordo que as custas, em geral, são elevadíssimas, e me parece que o


remédio, como já sustentei aqui, estaria numa redução do respectivo regimento, que foi
elaborado ao tempo do câmbio a 5, devendo levar-se em conta a pusilanimidade de
muitos juízes. Além deste inconveniente, ressente-se de outros.

Não é claro, é omisso, e eu na minha conhecida mediocridade (não apoiados)


entendo que o remédio estava, como disse, numa revisão, isto é, diminuindo as custas,
estabelecendo artigos claros, que se não prestassem a interpretações sofísticas, chicanas,
controvérsias (apoiados); mas coisa muito diversa disso é o que pretende, com a sua
emenda, o ilustre deputado dr. João Simplício.

O sr. João Simplício – V.Exa. não apreendeu o alcance da minha emenda.

O sr. Alcides Cruz – Apreendi, pois não. V.Exa. é que, não avaliando
devidamente o parecer da comissão especial sobre a indicação apresentada pelo meu
digno colega coronel Gervásio Annes, força-me a esclarecer um ponto do mesmo
parecer, sobre o qual S.Exa. labora em erro: as custas constantes da tabela que o parecer
propõe sejam restabelecidas, não vêm para os bolsos dos advogados, não.

O sr. João Simplício – Nem eu disse isso.


299

O sr. Alcides Cruz – O ilustre autor da indicação, o sr. coronel Gervásio,


abordou a questão muito bem, com proficiência mesmo, citando, como exemplo, o
indivíduo que, provocado a uma demanda, sai das suas comodidades, pretere interesses
de alta monta, gasta dinheiro, muitas vezes, em pura perda, por assim dizer, confirmando-
se assim o antigo ditado, que tem toda aplicação ao caso – quem vence fica em camisa e
quem perde fica nu. Que culpa, porém, têm nisso os advogados? Pedindo o
restabelecimento da antiga tabela, não legislamos para nós, advogados, mas para os
litigantes, para aqueles a quem a sentença é favorável. São eles que receberão esse
dinheiro, como uma pequena compensação dos gastos feitos, não os advogados que,
certamente, já terão recebido os seus honorários.

O sr. Luiz Englert – E quando as partes agem de má-fé?

O sr. Alcides Cruz – Todos nós, magistrados, advogados, homens do foro,


enfim, temos a obrigação de crer que os que comparecem em juízo fazem-no sempre em
boa-fé. Esta é a presunção de direito. Nem seriam admitidas as questões inquinadas
originariamente de má-fé. Enfim, o ponto que eu queria esclarecer, de preferência, em
abono da profissão nobre de advogado, nobre mas que, infelizmente, não tem sido bem
compreendida e, ao contrário, injustamente atacada, coberta até de baldões, era que essas
custas, até adotadas pelo Estado quando intervém a favor de miseráveis, menores e
ausentes, não são percebidas pelos advogados, mas pelos litigantes, autores ou réus, que
vençam o pleito. – 1240s r.J ; J240s r.Jo.

O sr. deputado João Simplício explica seu modo de pensar no assunto em


debate.

Encerrada a discussão e em votação, é o parecer, com o respectivo projeto de


lei, aprovado em primeira discussão; enviando o sr. deputado João Vespúcio, à mesa, a
seguinte declaração de voto: “Declaro que voto contra o parecer da comissão especial
sobre a indicação do sr. deputado Gervásio Annes por julgá-lo contrário ao § 17° do art.
71 da Constituição política do Estado e ao regime da gratuidade do serviço judiciário que
ora vamos iniciando.”

Esgotada a ordem do dia e nada mais havendo a tratar, o sr. presidente encerra
a sessão e lavra-se esta ata.

MANOEL PY

VASCO PINTO BANDEIRA

WALDOMIRO LIMA
300

31ª SESSÃO

Presidência do sr. tenente-coronel Manoel Py

Aos quatro dias do mês de dezembro de 1906, na sala das sessões da


Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde,
presentes os srs. deputados Manoel Py, Vasco Bandeira, Waldomiro Lima, João
Simplício, Luiz Englert, José Gabriel, Olavo Godoy, Arno Philipp, João Vespúcio,
Domingos Martins, Barreto Vianna, Antonio Caminha, Evaristo do Amaral, Gervásio
Annes, Gonçalves de Almeida, Antunes de Araújo e Alcides Cruz, é aberta a sessão;
faltando com causa participada os srs. deputados Carlos Barbosa, Joaquim Osório e
Avelino Paim, e sem ela os srs. deputados Santos Filho, Bráulio de Oliveira e José Chaves,

É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

EXPEDIENTE

Telegrama de S. Luiz de Missões, em que o sr. deputado Salvador Ayres


Pinheiro Machado comunica haver deixado de comparecer às sessões por motivo de
moléstia em pessoa de sua família.

Requerimento em que Manoel Antônio Pereira Botafogo, por seu procurador,


diz que, tendo requerido devolução dos documentos que instruíram a petição em a qual
solicitava licença para processar o então deputado dr. José Romaguera da Cunha Corrêa,
e como não tenha tido ainda solução, pede despacho que determine ou não aquela
devolução.

O sr. presidente observa que o regimento não provê o caso do requerimento


e, nestas condições, consulta a casa se deve mandar entregar os documentos ou conceder
as certidões que a parte pedir.

O sr. Gervásio Annes – Trata-se, a meu ver, de assunto perfeitamente


liquidado, uma vez que o deputado dr. Romaguera Corrêa resignou o mandato, e, nestas
condições, entendo que se deve fazer a entrega dos documentos que instruíram o pedido
de licença para processar aquele então deputado.

O sr. presidente – V.Exa. apresente, então, uma indicação nesse sentido.

O sr. Alcides Cruz – Acerca do assunto que se discute, ocorre-me o seguinte,


sr. presidente: logo no começo da atual sessão, o sr. coronel Manoel Pereira de Souza
Botafogo dirigiu um requerimento à Assembleia, solicitando licença para processar o dr.
José Romaguera da Cunha Corrêa, então deputado. Esse requerimento foi enviado à
comissão de petições e reclamações, que formulou um parecer cujos fundamentos foram
formulados de acordo com os documentos juntos ao pedido de licença, o qual não foi
lido, mas mandado arquivar. E não foi lido porque, se me não engano, se disse, na
ocasião, que tendo o dr. Romaguera resignado o mandato de deputado, devia ficar sem
efeito o referido parecer.
301

Baseando-se este, que está arquivado em virtude de resolução da mesa, nos


papéis cuja devolução pede o interessado, penso que estes só deverão voltar às mãos de
quem os enviou para esta casa mediante certidão, ficando arquivados os originais.

Todavia, a casa resolverá como entender, mas a mim, como relator daquele
arecer, cabia dar esta explicação. A propósito, requeiro à mesa que faça constar nos anais
esse parecer da comissão de petições e reclamações porque, se o dr. Romaguera for
processado (e, segundo infiro do pedido ora dirigido à Assembleia, vai sê-lo), isso não
deixa de ser matéria para a defesa.

O sr. presidente – Não tendo sido lido o parecer a que se refere o sr.
deputado Alcides Cruz, não podia ele constar das atas dos nossos trabalhos. Submeterei,
contudo, oportunamente, à deliberação da Assembleia o pedido referente à inserção do
mesmo parecer nos anais da casa.

O sr. Gervásio Annes – Depois das explicações que vem de dar o sr.
deputado Alcides Cruz, parece-me desnecessário apresentar qualquer indicação, tanto
mais quando a Assembleia está perfeitamente orientada.

O parecer a que se referiu S.Exa. é da Assembleia, está arquivado, e, nestas


condições, continuando a pensar, de encontro, embora, à opinião de S.Exa., que esses
papéis devem ser entregues ao requerente, julgo desnecessária uma indicação neste
sentido.

Submetidas à consideração da casa, não é aceita a indicação do sr. deputado


Gervásio e é aprovada a do sr. deputado Alcides, pela qual os referidos documentos serão
dados por certidão, se a parte o pedir.

Também é aprovada a indicação do sr. deputado Alcides para que conste dos
anais o parecer da comissão de petições e reclamações acima mencionado.
302
303

Figura 7 – Parecer da Comissão de Petições e Reclamações, em 20.10.1906

Fonte: Arquivo Memorial do Legislativo/ALRS


304

É o seguinte o

PARECER – Foi presente à comissão de petições e reclamações um


requerimento em que o notário de Uruguaiana, o coronel Manoel Antônio Pereira
Botafogo, impetra a esta Assembleia licença para processar o representante pelo 3º
distrito, o dr. José Romaguera da Cunha Corrêa, pelo crime previsto no art. 315 do código
penal da República. A petição é acompanhada de onze documentos devidamente selados.
A comissão,

considerando que, pelos casos julgados tanto no Congresso Federal como


nesta Assembleia (dos quais são mais recentes os processos do deputado Alfredo Varela,
sessão de 1904, e coronel Evaristo Amaral, sessão também de 1904), é doutrina firmada
o ter a Câmara direito de conhecer da legitimidade da ação e do mérito da prova para
conceder ou denegar a licença;

considerando que o delito capitulado no art. 315 do código penal da República


reveste-se das diferentes modalidades previstas nos arts. 316 §§ 1º e 2º, que ocasionam
diversidade de penas;

considerando que a petição do impetrante refere-se simplesmente ao art. 315,


sem especificar nenhum dos parágrafos do artigo subsequente, pelos quais se computa a
respectiva penalidade;

considerando que, embora essencialíssima essa circunstância, porque da


penalidade decorre o tempo pelo qual se julga prescrito ou não o delito, a petição omitiu-
a, dando lugar a que esta Assembleia procurasse suprir a lacuna, entrando em
investigações de que trata o pedido;

considerando que, admitida por hipótese a existência de algum delito, este não
seria o do art. 316, porque a calúnia não fora verificada por meio de publicação pela
imprensa, e menos ainda contra corporação que exerça autoridade pública, ou contra
agente ou depositário desta em razão do ofício, conforme se deduz dos documentos
instrutivos;

considerando que, excluída tal hipótese, ainda assim não pode aproveitar ao
impetrante a disposição contida no § 1º do citado artigo, pelo motivo exposto na primeira
parte do considerando anterior;

considerando que, provado o delito, só caberia ao paciente a aplicação da pena


prescrita no § 2º “se cometida (a calúnia) por outro qualquer meio que não algum dos
mencionados”; mas

considerando que a mencionada pena é “a metade das estabelecidas” no citado


art. 316 e seus §§, sucede que, tendo ocorrido o fato imputado de criminoso em 26 de
maio de 1902 (doc. n. 5), decorreu lapso de tempo suficiente para ter operado a prescrição
da ação que se pretende intentar contra o suposto delinquente;
305

Esta comissão, julgando extinto o direito de ação do peticionário contra o dr.


José Romaguera da Cunha Corrêa, é de parecer que esta Assembleia indefira o
requerimento do coronel Manoel Antônio Pereira Botafogo.

S. R. Sala das comissões, 16 de outubro de 1906. – ALCIDES DE F. CRUZ,


A. ANTUNES DE ARAÚJO, JOSÉ GONÇALVES CHAVES, vencido.

A requerimento do sr. deputado Olavo Godoy, aprovado pela casa, é


aprovada a restrição do interstício para ser incluído na ordem dos trabalhos da primeira
sessão o parecer da comissão especial sobre o projeto de lei do sr. deputado Antunes de
Araújo e já aprovado em primeira discussão.

Entra em terceira discussão o projeto de lei do orçamento da receita e despesa


do Estado para o futuro exercício financeiro de 1907.

[...]

VASCO PINTO BANDEIRA

JOÃO SIMPLÍCIO

WALDOMIRO LIMA
306

Parecer da Comissão de Constituição e poderes de 20 de janeiro de


1908, no qual reconhece e proclama Presidente do Estado (1908-
1913) ao Dr. Carlos Barbosa Gonçalves.*

[fl. 1]
A imprimir, em 20-1-1908
Manoel Py

Parecer15

A commissão de constituição e poderes tendo pre-


sentes 532 autenticas da eleição procedida em
todo o Estado a 25 de novembro de 1907 para preen-
chimento do cargo de Presidente do Rio Grande
do Sul, em virtude da terminação do mandato
do actual Presidente, o Exm.o Sr. Dr. Antonio Au-
gusto Borges de Medeiros, em 25 do corrente
Reconhece
Que o facto da eleição em si nada teria de
extraordinario, visto tratar-se da pratica de
um simples preceito constitucional, a não ser a
passagem da suprema investidura governamen=
tal das mãos de um integro e devotado servidor
da causa publica para as de outro digno e illus-
tre cidadão, como é o estimado patricio recem-
eleito.
Mas dadas as variadas circunstancias que
antecederam, cercaram e se seguiram ao pleito,
transformou-se elle num excepcional acon=
tecimento, que symboliza phase memoravel na
historia politica do país, e que o Rio Grande re=
publicano guardará com a intenda ufania de
haver cumprido mais uma vez o seu costuma=
do dever social.
Releve a Assembléa o passar a commissão a
recordar succintamente os factos de hontem.
Uma dissidencia sobrevinda inesperadamente,

*Transcrição paleográfica realizada por Vanessa Gomes de Campos, preservando a divisão paragráfica e a
ortografia do documento. Nas palavras e expressões entrelinhas utiliza-se a convenção: <----->. As
assinaturas estão sublinhadas. O documento é custodiado pelo Memorial da Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul (Pareceres, 1906 a 1908).
15 A caligrafia é do deputado Alcides Cruz, que redige o Parecer em seu papel timbrado, com os dizeres no
canto superior esquerdo: “Alcides Cruz Advogado”
307
308

Figura 8 – Parecer da Comissão de Constituição e Poderes, em 20.01.1908 – primeira e


última folha do original.

Fonte: Arquivo Memorial do Legislativo/ALRS


309

com surpresa, no seio do partido republicano,


cujos principios representa o actual governo, alar=
mara aquelle pujante agrupamento politico, rico
de idéas bem accentuadas, e unico na actualida=
de brasileira, que possue um programma defini=

[fl. 1v]

do e realizado com geral admiração.


Erguera o scisma um vistoso pendão, francamente
reaccionario, e onde a legenda – democracia – ins-
cripta mas jamais definida, encobria occultos
designios sob os promissores dizeres de varias re=
formas totalmente inadequadas, porque expri=
miam as medidas propostas as mesmas que já
estavam sendo satisfactoria e regularmente
cumpridas pelo escrupuloso governo cujo man=
dato ia ter fim.
Deixavam entrevêr os sectarios da nova fé, atravez
da violenta linguagem dos seus tribunos e do tom
demagogico das suas gazetas, que não era sim-
plesmente uma agitação eleitoral que explana-
vam; continha alguma cousa grave; inquietava
todos os espiritos e caliginosa athmosphera de
ameaças, que se sentia vagamente, fazendo
recear uma proxima subversão da ordem publica.
Diante o veemente desabafo dos ruidosos agi=
tadores de candidatura opposta, foi preciso que
o partido republicano guardasse posição. Nunca
o velho proverbio gaulês a quelque chose malheur
est bon16 encerrou verdade mais profunda. O par-
tido republicano, antevendo na pretendida
mudança de politica, sério e inconveniente
abalo, uniu fileiras em torno da prestigiosa
bandeira, tão cheia de nobilitantes tradicções des=
de o tempo que Julio de Castilhos a implantou,
e suffragou enthusiasmado, vibrante de convicções,
cheio de esperanças e orgulhoso do passado, o
nome do seu venerando candidato, seguro pe=
nhor da continuidade historica e politica.
Travado o pleito, para o qual a administração

16 Sublinhado original. Todas as palavras e expressões sublinhadas no texto são autógrafos.


310

[fl. 2]

publica fez questão capital que o presidisse a


mais ampla liberdade do voto, surgiu das ur-
nas, consagrado por enorme maioria absolu-
ta, o acatado nome do Dr. Carlos Barbosa
Gonçalves, como protesto solemne contra a insi-
diosa versão de que na Republica os chefes de
estado das varias circumscripções compo-
nentes da União (governadores ou presidentes)
são meras entidades designadas pelas oligar-17
chias regionaes, totalmente divorciadas da
<vontade>18 popular.
O eleito póde sentar-se de cabeça erguida
na cadeira antes occupada excepcionalmente
por Julio de Castilhos e Borges de Medeiros, como
um dos poucos governadores que haja con=
quistado a culminante investidura, no meio
de renhido prelo disputado contra uma col=
lectividade adversaria, que se presumia
forte, e [rasura] chefiada por popular cidadão,
illustrado e profissional emerito, como era
o candidato antagonico.
A victoia do Dr. Carlos Barbosa, representante do
partido republicano, deve ter <sobremodo> satisfeito os contem-
poraneos, conscios do modo por que souberam
cumprir tão bellos deveres civicos, e tambem
porque ella garante a continuidade e a esta=
bilidade da actual politica, dissipando defi-
nitivamente a perspectiva de qualquer alteração
repentina, sempre fatal ás fontes produtoras da
riqueza publica, e perturbadora das demais
relações sociaes.

Vistos e examinados os protestos eleitoraes

[fl. 2v]

adiante especificados:
No municipio de Porto Alegre – 5.ª 6.ª 7.ª 26.ª 30.ª e 34.ª
secções; no municipio de Itaquy – 1.ª secção; no
municipio de Pelotas – 3.ª 4.ª 6.ª 8.ª 9.ª 14.ª e 15.ª secções
e no municipio de S. Lourenço – 5.ª e 7.ª secções.

17 Há uma rasura na letra “i”, originalmente grafado “y” e corrigido pelo autor.
18 Há uma rasura, na qual se lê “opinião” e foi riscada pelo autor. A palavra “vontade” ficou entrelinhas.
311

Versam todos esses protestos sobre uma sup-


posta inconstitucionalidade da lei esta-
dual n.º 58 de 12 de março de 1907, que serviu de
base ao alistamento e processo da presente eleição.
Fundam-se <em>19 erronea apreciação da materia
contida nos arts. 1.º e 141 da lei n. 1269 de 15 de no-
vembro de 1904, que rege as eleições federaes e o
seu respectivo qualificamento.
Entretanto, se infracção existe contra a Cons-
tituição da Republica, é ella produzida evidente-
mente pela citada lei federal e não pela esta-
dual.
Aquelle decreto do poder legislativo da
União, e sanccionado pelo executivo, contraria
claramente o dispositivo do art. 34 n. 22 da
Constituição da Republica, que preceitúa como sendo
privativa competencia do Congresso Nacional – regular as
condições e o processo da eleição para os cargos fede-
raes em todo o país. Decorre, pois, da letra expressa
dessa alinea do art. 34 da Constituição Federal, que
a União reservando-se, como se reservou, a pri-
vativa competencia para legislar sobre o proces-
so da eleição para os cargos federaes:
I – Tolheu aos Estados a competencia de legislarem so=
bre assuntos eleitoraes para os cargos federaes
electivos de presidente e vice-presidente da Re-
publica, senadores e deputados ao Congresso Na-
cional; e

[fl. 3]

II – Reservando para si aquella privativa facul-


dade em materia eleitoral, ipso facto, se prohibiu
do mais, isto é, da competencia de regular eleições
para os cargos electivos estaduaes e munici-
paes;
III – Concedeu, em virtude dessa prohibição tacita
plena competencia aos Estados para em materia
eleitoral legislarem acerca dos cargos electivos
não federaes.
O acto emanado do Congresso Nacional, com
directa offensa aos poderes dos Estados, ajusta-
se nas chamadas implicitas restricções ou

19 Há uma rasura, na qual se lê “na” e foi riscada pelo autor. A palavra “em” ficou entrelinhas.
312

implicitas limitações dos americanos.


O Constitucionalista Cooley (Constitutional Law,
pag. 111), explicando ex-cathedra aquella these
juridica, escreve sob a epigraphe “Restricções im=
postas a competencia do Congresso”: “Primeiro,
elle não póde exercer os poderes, ou qualquer
porção delles, conferidos pela Constituição ao
executivo ou ao judiciario; segundo, elle não
deve usurpar a esphera de soberania que
pela Constituição haja sido deixada ou con=
ferida aos Estados”.
Mas, independentemente da invocação fei=
ta ao direito norte-americano, e de que pode=
riamos lançar mão definitivamente, nos te=
mos do art. 387 do Dec. n. 848 de 11 de <outubro>20
de 1890, que <o> considera subsidiario do nosso,
temos a insophismal disposição do art. 65 § 2.º
da Constituição Federal, que estabelece como regra de
direito: “É facultado aos Estados:[...] 2.º Em geral todo
e qualquer poder, ou direito que lhes não for nega=
do por clausula expressa ou implicitamente con=

[fl. 3v]

tida nas clausulas expressas da Constituição”. Mais


incisivo é o texto da Emenda X á Constituição dos
Estados Unidos, onde se inspirou o da nossa: “Os
poderes não delegados pela Constituição á União,
nem por ella prohibidos aos Estados são respecti-
vamente reservados aos Estados, ou ao povo”.
E foi com louvavel acerto que a luminosa ex-
posição de motivos da nova lei eleitoral do
Estado, defendendo a autonomia dos Estados,
posta em jogo e mesmo invadida por effeito
da increpada lei federal, invocou a organiza-
ção federal tal como existe nos países que
nos serviram de modelo. Assim, nos Estados Uni-
dos não obstante as sympathias de uma gan-
de corrente de juristas pela unificação do direito
privado, todavia no campo do direito publico o
principio da ampla autonomia dos Estados é
calorosamente sustentado pelos mais autoriza-
dos tratadistas, que defendem a competencia

20 Há uma rasura, na qual se lê “novembro” e foi riscada pelo autor. A palavra “outubro” ficou entrelinhas.
313

daquelles, para o caso de regerem as eleições


por leis locaes.
O juiz Cooley: “A Constituição da Republica
excepto em casos especiaes, não intervem de
fórma alguma nas eleições estaduaes ou mu-
nicipaes, que por conseguinte ficam, sob todos os
pontos de vista, exclusivamente debaixo da su-
perintendencia (control) e da regulamentação
dos Estados. Os Estados organizam para os seus
habitantes as regras para os suffragios, e é nas
constituições, e nas leis estaduaes e nas deci-
sões dos seus tribunaes, que se devem procurar as
regras e os principios que regem taes eleições” (Obr. cit.
p. 277. Pomery, Constitutional Law, p. 134).

[fl. 4]

O professor Goodnow (Principles of Administrative


Law, p. 234): “Exceptuando as restricções contidas
na Emenda XV, segundo os termos da qual não
será recusado ou supprimido o direito de nenhum
cidadão por motivo de raça, cor ou anterior con=
dição social, o direito do voto para as eleições tan-
to federaes como estaduaes é regulado pelos
Estados”
A União brasileira, portanto, pela doutrina cons-
titucional e pelo direito que lhe serviu de fonte,
sómente poderá intervir nas relações eleitoraes
dos Estados, nos termos do art. 70 § 1.º da Cons-
tituição Federal, porque é materia de capaci-
dade civil. E ainda assim incidiu na criti-
ca severa do <douto> João Barbalho (Commentarios, p.
291), que considera tal artigo uma invasão na
esphera dos direitos autonomicos dos Estados.
A todas estas, o prudente e sabio legislador
rio-grandense revelando um grande espi-
rito de concordia, e até mesmo de dignifica-
da submissão á supremacia das instituições fede-
raes, declarou acceitar varias alterações ao seu
primitivo projecto de lei, porque visavam uni=
formizar ainda mais a legislação federal e es=
tadual no que concerne ao regimen eleitoral.
O fim que teve em mira o lucido legislador,
ao decretar e promulgar a lei rio-grandense,
longe de ser o de crear um conflicto entre os
314

dous poderes, o federal e o estadual, foi o de


“resolver, dentro dos limites constitucionaes, o
conflito aberto entre a citada lei e a de n.º 1269 de
15 de novembro de 1904, que regula o processo do
alistamento e eleições federaes”, como define

[fl. 4v]

a citada exposição de motivos.


A commissão, a vista do exposto, é de parece que a As=
sembléa não tome conhecimento dos referidos pro=
testos.
Ainda com referencia ao protesto apresentado
pelo dr. Joaquim Tiburcio de Azevedo, pelo facto de
terem sido “admittidos a votar e até convidados
por edital para votarem cidadãos, uns cujos no-
mes não estão contemplados no alistamento
estadual e outros que não exhibiram os res-
pectivos titulos estaduaes”, conforme se lê na
acta da mesa da 5.ª secção do 1.º districto da
capital; a commissão tambem opina que seja
rejeitado.
Baixada a lei eleitoral do Estado, de 12 de mar-
ço de 1907, reformando a de 12 de janeiro de 1897,
com o intuito de uniformizar o processo elei=
toral do Estado com o da União, era comple=
mento logico o admittir os eleitores qualifica-
dos pela lei federal, e que por omissão os seus
nomes não tivessem sido transferidos para
o alistamento estadual.
Nesse sentido o Dr. Presidente do Estado publi-
cou um acto mandando que qualquer elei-
tor portado de um titulo federal poderia
votar, sendo tomado o seu voto em separado,
embora não constasse o seu nome no alista-
mento do Estado. Não se tratava, já se deixa
vêr, de uma lei ordinaria, que exigisse os
tramites e as formalidades do art. 32 e seus §§
da Constituição do Estado. Propriamente aquelle
acto tinha o verdadeiro caracter de Instruc-
ções, fomula de actos administrativos de

[fl. 5]

finida como “regras dadas ás autoridades


315

publicas, prescrevendo-lhes o modo por que


devem organizar e pôr em andamento certos
serviços, e quasi sempre se referem aos que
são de novo creados ou reformados, e vão
começar a funccionar”, segundo a lição de
Ribas (Direito Administrativo, p. 226). E demais
as instrucções, todavia conformam-se es=
trictamente com os intuitos da lei; porque
esta mandou incluir ex-officio no alistamen-
to estadual todos os eleitores federaes, e as instruc-
ções visaram apenas não tolher o exercicio do vo=
to áquelles que por qualquer circumstancia
fortuita ou não, deixaram de ser alistados.
E justamente para que a Assembléa pudesse
verificar os motivos da exclusão, determinou-
se que os votos fossem tomados em separado.
Perante a duodecima mesa do 2º. districto
da Capital protestou o Sr Ernesto Reihnold Lud-
wig contra a validez da eleição, fundando-se
na illegalidade do edital publicado pelo presi=
dente do conselho municipal de Porto Alegre.
Não póde prevalecer o protesto, porquanto a
materia <de nullidades>21 em direito publico é,
como em direito privado, stricti juris.Teria si=
do necessario que a lei houvesse considerado
como nullidade a ocorrencia apontada, e de
tal não cogita o art. 96 da lei nº. 18 de 1897.
Pelo fiscal Tiburcio de Tiburcio foi apresentado
um protesto perante a mesa da decima nona
secção do municipio de Porto Alegre, que a com-
missão, fundando-se nos mesmos motivos

[fl. 5v]

acima desenvolvidos, não toma em considera-


ção.
Perante a mesa da decima oitava secção de Por-
to Alegre, appareceu um protesto de José Pinto Barreto
contra “a validade dos eleitores Octavio Dutra e
Ottone Outeiral, cujos nomes figuram no alista-
mento como Octaviano Dutra e Otto Outeiral”. O
protesto nenhum effeito póde causar, por=

21 Há uma rasura, na qual se lê “contida” e foi riscada pelo autor. A expressão “de nullidades” ficou
entrelinhas
316

quanto a mesa mandou apurar em se-


parado os votos desses eleitores, como é de lei
em taes casos.
Protesto do fiscal do candidato Dr. Carlos Bar-
bosa Gonçalves, perante a mesa da 21.ª secção
do municipio de S. Leopoldo, com fundamento
em terem votado com titulos do alistamento
federal seis eleitores, cujos votos não foram
tomados em separado.
A mesa ao fazer a acta mencionar o protesto,
contra - protestou-o, declarando que esses
eleitores estavam qualificados no alistamen-
to estadual, e que os seus nomes constavam
da chamada. Sendo assim, e em falta de pro-
va em contrario, que na especie deveria ter
sido produzida pelo protestante, a commissão
resolve despresar o protesto. Se o individuo não quali-
ficado eleitor no alistamento estadual é admittido
a votar mediante a simples exhibição do titulo fe-
deral, não parece equitativo deixar de apurar o
voto àquelle que estando qualificado como elei-
tor estadual compareça com o titulo federal.
Protesto fiscal do candidato Dr. Carlos Barbosa
Gonçalves, perante a mesa da 5.ª secção de Caxias:
o sr. João von Brixen-Montzel protesta pela nulli-

[fl. 6]

dade da eleição procedida nessa mesa, com


fundamento no artº. 96 § III da lei de 12 de janeiro de
1897, que diz: “Serão declaradas nullas as eleições
nos seguintes casos: III. Quando se effectua=
rem em logar differente do previamente de=
signado pelo poder competente”.
Ora, constando na acta que a eleição de=
vendo proceder-se na casa de negocio do
cidadão Frederico Costamilan, conforme pre=
via designação, realizou-se aliás na aula
publica da professora Catharina Mezzomol,
incorreu evidentemente na censura legal,
por infracção do supracitado artigo, e portan=
to está nulla.
A commissão propõe, pois, que se abatam do
total da votação obtida pelo Dr. Carlos Barbosa
Gonçalves 38 votos dados na 5ª. mesa do 1º. districto
317

de Caxias, e do total da votação obtida pelo Dr. Fer=


nando Abbott, 116 votos.
Protesto do fiscal do candidato do Dr. Fernando Abbott,
o sr. deputado José Gabriel da Silva Lima, perante a
mesa da 1ª. secção de Cruz Alta. Apenas protesta con=
tra a admissão de dous eleitores, que o protes=
tante disse serem alistados noutra secção. Como
nenhuma prova fosse exhibida e nem tivesse ver-
sado o protesto sobre a nullidade da eleição, a
commissão sustenta a decisão da mesa, que o
julgou infundado.
Protesto do fiscal do Dr. Fernando Abbott perante
a mesa da 3ª. secção do 2º. districto de Julio de
Castilhos, sobre a sonegação de titulos de elei-
tores que votariam naquelle candidato; sobre
o facto da nomeação do fiscal do Dr. Carlos

[fl. 6v]

Barbosa ter sido feita por um grupo de 30 elei-


tores; e finalmente por <não> ter tomado assento na
mesa, nem parte nos trabalhos, o dito fis-
cal do Dr. Carlos Barbosa.
Quanto a primeira parte do protesto, a Assem-
bléa não tem attribuições para tomar conhe-
cimento. Ella procede unicamente a apura-
ção da eleição conforme os votos dados, e não
dos que deixaram de ser dados, sem poder ajui-
zar do motivo por que não usaram desse direito
os respectivos eleitores, quanto a segunda parte,
tambem não póde ser attendido, por força do dis-
positivo do art. 91 da lei eleitoral; quando a ter-
ceira parte, tambem não constitue nullidade
prevista em lei. Por todos estes motivos, a com-
missão é de parecer que não seja acceito.
Protesto perante a mesa da 2ª. secção do 1º. dis-
tricto de S. Borja, por ter sido tomado em separa-
do o voto de um eleitor não alistado, mas que
exhibiu titulo do alistamento federal. O motivo
segundo o qual os votos dados em taes condições
contam-se em separado, está explicado ante-
cedentemente, a proposito do protesto do Dr. Joaquim
Tiburcio de Azevedo, O protesto não deve, pois, pre-
valecer.
Protesto perante a mesa da 2ª. secção do 1º. dis-
318

tricto de Alegrete, por ter votado um sargento da


guarda municipal, que o protestante entende
ser praça de pret.
A commissão despreza o protesto, porque os guar-
das municipaes não constituem corporação
militar; os seus membros são meros agentes
da segurança publica, sem caracter mili=

[fl. 7]

tar. Decisões do governo do Estado, bem como a jurisprudencia


quer federal quer estadual, equiparam-os a funccio-
narios publicos.
Pelos fundamentos acima exarados, a commissão tam-
bem despresa o protesto feito perante a mesa da 1ª.
seccção do1º. districto de Cangussú, identico ao prece-
dente.
Protesto perante a mesa da 8ª. secção do 1º. districto
do Lageado, pelo fiscal do candidado Dr. Carlos Bar=
bosa Gonçalves, o cidadão Nicolau Petry. Resume-se
no seguinte: a) em ter sido installada a mesa
antes da hora marcada em lei, e em ter começa-
do a chamada mais tarde do que a hora regulamen-
tar; b) em irregularidades nas assignaturas lan-
çadas no livro de presença, onde, diz o protestante,
ha assignaturas incompreensiveis; c) em ter
sido apurada uma cedula com o nome do eli-
tor riscado e escripto de novo.
A commissão resolve: quanto a primeira parte
não tomar em consideração o allegado. Da acta
consta achar-se a mesa reunida as 10 horas
da manhã do dia 25 de novembro, tanto mais
que o protestante não precisou qual a hora
da installação, nem qual a da chamada, li-
mitando-se a uma accusação vaga. Na du-
vida a commissão prefere guiar-se pela acta.
Quanto a segunda parte, é certo que na relação
das assignaturas dos eleitores que votaram, e
que por copia for enviada a Assembléa, em=
bora escripta com pessima letra, e composta
de nomes muito difficeis, porque são de eleito-
res oriundos de ascendencia allemã, ainda as-
sim todas essas assignaturas são legiveis. Quan-
319

[fl. 7v]

to a terceira parte, trata-se de uma cedula que,


comquanto illegalmente recebida, agora não
póde ser annullada, porque o protestante não
declara a que candidato foi dada, para po-
der ser descontada. Alem de que, nos termos do
art. 96 § V da lei eleitoral um só voto nessas con-
dições não podia influir no resultado da
eleição. Nestes termos despresa o protesto.

Os srs. dr. José Joaquim de Andrade Neves Netto,


Celso Soveral e Lindolpho Weber enviaram de San-
ta Maria um officio acompanhado de dous
protestos feitos em notas publicas pelos dous
ultimos cidadãos. No dito officio pede-se a
annullação das eleições procedidas nas mesas
da decima setima e da decima oitava sec-
ções daquelle municipio.
Versam ambos sobre o facto de as mesas das
referidas secções se terem negado a admittir
que dous daquelles cidadãos desempenhas-
sem as suas funcções de fiscaes do candida-
to Dr. Fernando Abbott, sob o pretexto de não ter
sido reconhecida a firma do mesmo, no res-
pectivo documento de nomeação.
A lei eleitoral do Estado não prevê o caso
da recusa de fiscaes por parte da mesa. Mas
ainda assim o interessado não ficaria
cerceado do exercicio daquele direito, porque
o art. 94 da citada lei permitte que qualquer
eleitor possa offerecer protesto por escripto re-
lativamente ao processo da eleição, passando-
se recibo ao protestante.
Os questionados protestos versam simplesmente

[fl. 8]

sobre o não reconhecimento da qualidade dos pro-


testantes como fiscaes; nada referem sobre o pro-
cesso material da eleição e da votação, unicas
circumstancias que poderiam <ser> apreciadas pela
Assembléa.
Entende a commissão que, tendo em conta
o extposto, taes protestos não devem prevalecer.
320

___
Do exame de todas as autenticas presentes a
commissão, e feita a somma de votos, a com-
missão chegou ao seguinte resultado:
1º. circulo: Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, 16931 votos e
177 em separado. Dr. Fernando Abbott, 5322 votos e
206 em separado.
2º. circulo: Dr. Carlos Barbosa Gonçalves 15130 vo-
tos e 93 em separado. Dr. Fernando Abbott, 695 votos
e 91 em separado.
3º. circulo: Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, 8185 votos e
84 em separado. Dr. Fernando Abbott, 4138 votos e
352 em separado.
4º. circulo: Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, 9484 votos e
116 em separado. Dr. Fernando Abbott, 1245 votos e
143 em separado.
5º. circulo: Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, 11206 votos
e 80 em separado. Dr. Fernando Abbott, 4525 votos e
96 em separado.
Total geral:
Dr. Carlos Barbosa Gonçalves 60936 votos e 550 em sepa-
rado.
Dr. Fernando Abbott 15925 votos e 888 em separado.
Sommados os votos com os dados em separado,
o Dr. Carlos Barbosa Gonçalves obteve 61.486 votos e
o Dr. Fernando Abbott obteve 16.813 votos, compara=

[fl. 8v]

dos os dous resultados totaes, o Dr. Carlos Barbosa


Gonçalves accusa uma extraordinaria maio-
ria absoluta de 44.673 votos.
Obtiveram votos mais os seguintes cidadãos:
Dr. Joaquim Francisco de Assis Brasil, 2 votos; Drs.
José Montaury de Aguiar Leitão, Alexandre Cas-
siano do Nascimento e Francisco Antunes Ma-
ciel, 1 voto cada um; Rafael Cabeda e General
Firmino de Paula, 1 voto cada um.

Da apuração ficou evidenciado que o Dr.


Carlos Barbosa Gonçalves reuniu o suffragio
de 61486 votos contra 16820 dados ao seu <principal> anta-
gonista e a outros.
Assim pois, de accordo com o art. 17 da Cons-
tituição do Estado, com o qual combinam os
321

arts. 149 e 150 do Regimento interno desta Assem-


bléa, e o art. 78 da lei n. 18 de 12 de janeiro de
1897:
A commissão de constituição e poderes é de
parecer que seja reconhecido e proclamado Pre-
sidente do Estado do Rio Grande do Sul durante
o quinquennio de 1908 a 1913 o Exm.º Sr. Dr. Carlos
Barbosa Gonçalves.

Sala das sessões, 20 de janeiro de 1908


Alcides de F. Cruz
Gervasio Annes
Arno Phillip
322

18ª SESSÃO

A MOÇÃO PELA PRESERVAÇÃO DAS MATAS

Presidência do sr. coronel Marcos de Andrade, vice-presidente

Aos onze dias do mês de outubro de 1909, na sala das sessões da Assembleia
dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde, presentes os srs.
deputados Marcos de Andrade, Alcides Cruz, Firmino Paim, Octávio Rocha, Waldomiro
Lima, Soares de Barcellos, Luiz Englert, Arno Philipp, Domingos Martins, Gonçalves de
Almeida, Pereira Parobé, Armênio Jouvin, Soares de Barros, Getúlio Vargas, Arlindo
Leal, Emílio Guilayn, Galdino Santiago, José Octávio, Freitas Valle e Francisco Flores da
Cunha, é aberta a sessão; faltando com causa participada os srs. deputados Barreto
Vianna, Nicolau Vergueiro, José Antônio Flores da Cunha, Joaquim Osório e Salvador
Pinheiro.

É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

O sr. Alcides Cruz – Não é estranho o empenho que tem feito a Assembleia
dos Representantes, conforme se verifica dos seus anais, em auxiliar a administração
pública na resolução do magno problema da conservação das nossas matas.

E mesmo por meio da decretação de um imposto sobre a lenha, numa das


sessões passadas, procurou impedir a devastação que se vem fazendo, ao mesmo tempo
que dar impulso à indústria extrativa do carvão.

Todo aquele que compulsar os anais desta casa há de, com prazer, verificar
que esse problema tem sido objeto de estudo acurado da Assembleia e produzido
debates, por vezes calorosos.

Presentemente perdia a oportunidade qualquer discussão teórica a esse


respeito, pois não carecia de mais ampla explanação. O brado de alarme foi dado, de há
muito tempo, por um ilustre publicista, estrangeiro, é certo, mas que com todo
patriotismo exercia as funções de deputado no extinto regime –o emérito jornalista
Carlos von Koseritz, que não atirou a semente em terreno estéril.

Aí estão, para comprová-lo, as coleções de todos os jornais do Estado, onde,


ininterruptamente, por assim dizer, têm aparecido artigos doutrinários nesse sentido,
testemunho inconcusso de que o problema tem preocupado a atenção dos que se
interessam pelo bem público, ressaltando daí as medidas tomadas pelo governo do
Estado, em diferentes épocas, como a promulgação do seu orientado código florestal.
Infelizmente, porém, como todos nós sabemos, a ação do Estado, que é restrita, apenas
pode ser extensiva às matas do domínio público, às que constituem o patrimônio do
Estado.

A esse propósito, o meu nobre amigo dr. Parobé, em conversa comigo, há


dias passados, sugeriu a ideia de dirigir-se a Assembleia à representação rio-grandense no
323

Congresso Nacional, solicitando-lhe a iniciativa de uma medida nesse sentido, porque,


como S.Exa., penso que qualquer disposição desta Assembleia sobre esse assunto implica
uma restrição ao direito de propriedade e, como se sabe, esse é um direito substantivo e,
portanto, está fora da ação do governo estadual, ao passo que, partindo a iniciativa do
Congresso Nacional, será por aquele amparada, tomando disposições com caráter
policial, o que não dará lugar a reclamações contra a invasão do governo do Estado na
órbita do federal.

Disse uma vez o meu ilustre colega dr. Englert, em aparte ao talentoso ex-
membro desta casa dr. João Vespúcio, que, restringida a exploração do corte da lenha,
nada mais restava aos industriais do que fecharem as portas de suas usinas e irem para
debaixo das árvores fazer versos.

O sr. Luiz Englert – Foi, mais ou menos, isso.

O sr. Alcides Cruz[...] mas respondo a S.Exa. com o pensamento de um


publicista oriundo do povo mais prático que conheço, o povo inglês: a coisa mais bela
do mundo é uma inglesa debaixo de uma árvore.

Em seguida, envia à mesa, é lida e entra em discussão a seguinte moção,


dirigida à representação rio-grandense no Congresso Nacional e assinada pelo mesmo sr.
representante e srs. deputados Pereira Parobé, Freitas Valle, Galdino Santiago, Getúlio
Vargas, Emílio Guilayn, José Octávio e Firmino Paim:

“A Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, no


intento de secundar os patrióticos esforços do governo estadual, no tocante às medidas
necessárias à conservação das suas matas, tendo em vista que o referido governo não tem
competência legislativa para estender a ação até as florestas de propriedade privada,
impedindo a devastação delas, pede a V.Ex.as tomarem a iniciativa de um projeto de lei
no sentido de ser regulada aquela exploração.”

O sr. Arlindo Leal – sr. presidente, meus distintos colegas. De inteiro acordo
com a moção que acaba de ser apresentada à consideração da Assembleia pelo ilustre
deputado dr. Alcides Cruz, permito-me, contudo, algumas ligeiras observações. Não acho
lógico nem razoável que o governo do Estado vá arrancar do Congresso Nacional[...]

O sr. Pereira Parobé – Não é o governo do Estado, mas a Assembleia que


vai se dirigir à representação rio-grandense na câmara federal.

O sr. Arlindo Leal[...] por meio da moção apresentada a esta Assembleia,


medidas repressoras sobre a exploração das matas particulares, quando é o mesmo
governo de Estado que, possuindo-as em quantidade, não tem, até hoje, adotado medidas
efetivas no sentido de impedir a devastação das mesmas[...]

O sr. Pereira Parobé e outros deputados – Não apoiado.

O sr. Arlindo Leal[...] dirigindo para elas os imigrantes que aqui aportam.

O sr. Alcides Cruz – Porque não tem campos devolutos.


324

O sr. Arlindo Leal – Se é intenção do governo do Estado evitar a devastação


das matas de domínio privado, por que não começa por poupar as suas, de área suficiente
para manter o estado climatológico atual?

Um sr. deputado – Porque não dispõe de campo para as grandes lavouras.

O sr. Arlindo Leal – Que importa? Eu entendo que o desenvolvimento


material do Estado não repousa somente nas grandes culturas, ele se operará com o
contingente das grandes como das pequenas, bastando para a consecução desse objetivo
o emprego e o aperfeiçoamento dos instrumentos agrários, que só podem ser manejados
com resultado em terras de campo.

Assim, a tomar-se medidas repressivas contra a derrubada das matas, o


exemplo deve partir de cima, deve partir do Estado, que as possui em grande quantidade,
35.500 quilômetros quadrados, de preferência a começar pelas de domínio privado.

Demais, sr. presidente, nós ainda não sabemos, ao certo, qual é a área do
Estado, nem estão discriminadas as suas florestas, quando o que é exato é que países da
Europa, como a França e outros, que zelam extraordinariamente a posse de suas florestas,
ainda se não lembraram de proibir o corte dos matos de domínio particular.

O sr. Pereira Parobé – Não apoiado. Todas elas possuem códigos florestais.
A França, por exemplo.

O sr. Arlindo Leal – Mas, com certeza, o governo deu o exemplo,


regulamentando a exploração.

O sr. Pereira Parobé – Porque possui florestas, que explora.

O sr. Arlindo Leal – Porque estão sujeitas a incêndios. O que é verdade é


que um Estado como o nosso, cuja terça parte de sua área é coberta de florestas, não
precisa adotar medidas repressivas, e muito menos o nosso Estado, onde as secas não se
fazem sentir tão intensamente[...]

O sr. Flores da Cunha – Como não? São extraordinárias.

O sr. Arlindo Leal[...] que possam produzir grandes mundos. Enfim, sr.
presidente, estou de acordo, em parte, com a moção apresentada pelo ilustre deputado
dr. Alcides Cruz. Acho conveniente a adoção de medidas tendentes a acautelar os
interesses gerais, entendendo, também, que o exemplo deve partir de cima, do governo
do Estado, que deve começar por proibir a devastação das suas matas. Para corroborar
esta minha opinião, bastará ler o último relatório do sr. secretário das obras públicas
presente à Assembleia, pelo qual também se depreende que a indústria extrativa da erva-
mate tem sido feita em grande escala nos ervais do Estado com devastamento dos
mesmos, o que prova que não foi ainda organizada a precisa fiscalização por parte do
governo, e, pois, pretender-se fiscalizar o domínio particular antes da fiscalização do
governo do Estado não é razoável, mas, ao contrário, uma medida contraproducente
(muito bem, muito bem).
325

O sr. Alcides Cruz – Penso que o governo do Estado não se surpreenderá


com a moção, porquanto já a anunciou A FEDERAÇÃO, sob a forma de consta, e todos
nós, sabendo o critério com que ela redige as suas notícias, é bem de ver que não
publicaria uma local contrária ao pensamento dominante na administração pública.
Demais, patriótico como é o governo do Estado, certo não se magoará com uma medida
que nada mais é do que a secundação dos seus esforços, se bem que solicitada em caráter,
por assim dizer, particular.

O sr. Pereira Parobé – sr. presidente, tendo o nosso jovem colega dr. Arlindo
Leal feito uma acusação à administração do Estado, julguei-me na necessidade de tomar
a palavra para defendê-la, visto ter sido auxiliar da mesma durante algum tempo.

As administrações republicanas têm, quanto possível, procurado impedir a


devastação das matas do Estado, não só promulgando o código florestal, como
expedindo circulares às diversas autoridades, a fim de que exerçam fiscalização no sentido
de impedir esse abuso.

A sua ação, porém, difícil quanto às matas do domínio do Estado, tornara-se


impossível em relação às do domínio privado, o que foi reconhecido por ocasião da
confecção do código florestal, pela falta absoluta de meios coercitivos, pois qualquer
disposição nesse sentido seria ilegal, porquanto importaria em restrições ao uso da
propriedade, que é matéria de direito substantivo e escapa, por isso, à competência do
Estado.

Foi atendendo a isso e tendo em vista a impotência do Estado para resolver o


caso, que o nosso colega dr. Alcides Cruz redigiu a moção que submeteu à apreciação da
casa, propondo que esta se dirija à representação do Estado no Congresso Federal a fim
de que seja apresentado um projeto de lei que regule o assunto e habilite o Estado a
exercer a sua ação no sentido de impedir a continuação do abuso da devastação das matas
do domínio privado e regule a sua exploração, porque não é a exploração que é
censurável, mas como se a faz, destruindo sem piedade.

Quanto à proposição do meu ilustre colega dr. Arlindo Leal, que o governo
do Estado antes de intervir e procurar meios de restringir o corte das matas de domínio
privado devia cuidar da conservação das suas, impedindo que a devastação se faça,
cumpre-me dizer-lhe que ele o tem feito, quer agindo diretamente, quer por meio de
reiteradas recomendações às autoridades, às quais cabe esse dever, segundo dispõe o
regulamento em vigor.

O sr. Arlindo Leal – Mas estabelece núcleos coloniais nas matas cuja
conservação devia zelar.

O sr. Pereira Parobé – É engano do nobre deputado. O governo do Estado


não fundou colônia alguma. As que existem no território do Rio Grande foram criadas
pelo governo geral, no antigo regime, e pelo governo da União, antes de passar o serviço
para o Estado, entre as quais as de Ijuí, Uruguai e Comandaí.

O sr. Arlindo Leal – Mas canaliza a imigração para as suas matas.


326

O sr. Pereira Parobé[...] núcleos esses que, tendo recebido como herança, o
Estado procura manter e desenvolver.

O sr. Arlindo Leal – Pronunciando-me do modo por que o fiz não foi meu
intuito acusar o governo do Estado.

O sr. Pereira Parobé – Não foi propriamente uma acusação, mas foi, pelo
menos, uma censura. Certo, e neste ponto estou de acordo com o meu ilustre colega, o
Estado precisa cuidar das matas e o que ele quer, de que cogita, é precisamente impedir
a devastação dessas matas, fato que acarreta enormes prejuízos e inconvenientes, que
recaem, uns e outros, sobre a nossa indústria agrícola, pela modificação do clima,
prejuízos e inconvenientes que ele tem se esforçado por atenuar. Entretanto, como não
tem ação sobre as matas do domínio privado, não pode impedir que os proprietários das
mesmas as destruam vandalicamente. Daí a apresentação da moção, com a qual, de
acordo com o governo da União e em virtude de uma lei por ele promulgada, secundando
a ação do Estado, conseguir-se-á reprimir o abuso.

O sr. Arlindo Leal – Quer V.Exa. dizer que a ação do governo incidirá sobre
as terras particulares, como sobre as do domínio público?

O sr. Pereira Parobé – Sim, senhor, pois que em relação às do Estado ele
tem feito quanto lhe era possível fazer. Quanto à colonização, cabe-me informar ao meu
ilustre colega que não foi feita pelo governo estadual, mas pelo governo geral, no antigo
regime, e pelo governo da União, na República, tendo o Estado mantido o serviço por
não dever nem convir fazer cessá-lo.

Sem embargo, estou de acordo com o ilustre deputado dr. Arlindo Leal. Como
S.Exa., penso que não mais se deve colonizar terras de matos, julgando ainda com S.Exa.
que é tempo de experimentar-se a cultura dos campos, onde se pode fazer a cultura
extensiva com grande vantagem, o que não se dá na mata, onde só é possível a cultura
intensiva.

E dos resultados a auferir dessa experiência temos sobejas provas na cultura


do arroz, que se tem desenvolvido de modo assaz considerável, o que, infelizmente, não
tem sucedido em relação a outras.

O trigo, por exemplo, apesar de ter sido o Rio Grande, outrora, o celeiro do
Brasil, está hoje limitado à produção insignificante das colônias, que mal chega para o
consumo local.

É difícil, presentemente, encaminhar-se a colonização para os campos,


acostumada, como está, a trabalhar em terras de matos.

O sr. Arlindo Leal – O governo não fornece terras de campos.

O sr. Pereira Parobé – Mas, como disse a princípio, tomei a palavra


simplesmente para defender a administração do Estado da injusta increpação que lhe fez
o nobre deputado. Auxiliar que fui, durante alguns anos, dessa administração, e signatário,
além disso, da moção apresentada, corria-me o dever de mostrar que o Estado, na esfera
327

de suas atribuições, tem feito quanto possível para evitar a brutal devastação das matas.
Se mais não fez foi porque não tinha, como não tem, competência para legislar sobre
direito substantivo. E é precisamente isso o que vai pedir à representação rio-grandense.
Se a Assembleia dos Representantes pudesse legislar sobre o assunto, desde o primeiro
dia em que voltei a esta casa teria apresentado um projeto de lei providenciando a
respeito. Uma vez, porém, que isso não está em nossa alçada, façamos o que nos cabe, o
que nos compete, que é dirigirmo-nos à representação rio-grandense no Congresso
Nacional para que este promova, pelos meios ao seu alcance, a promulgação de uma lei
nesse sentido (muito bem, muito bem).

O sr. Armênio Jouvin – Se bem que de pleno acordo com as considerações


que vem de aduzir o ilustre deputado dr. Parobé, peço, contudo, a palavra por ter de
votar contra a moção e desejar explicar as razões do meu voto contrário a ela.

É certo que Assembleia dos Representantes tem, ininterruptamente, timbrado


em secundar os esforços do benemérito governo do Estado, colaborando, dedicada e
patrioticamente, em todos os seus atos; é certo, ainda, como afirmou o ilustre colega a
quem me referi, que o governo estadual tem envidado todos os meios ao seu alcance para
tornar efetiva a sua proteção às matas, e, pois, entendo que a Assembleia não tem
necessidade de votar a moção apresentada, recorrendo, assim, à intervenção dos nossos
representantes no Congresso Federal, porque, quando porventura fossem necessários os
esforços do governo estadual para consecução daquele objetivo, este já o teria feito sem
necessidade desta intervenção da Assembleia. Por estes fundamentos voto contra a
moção.

O sr. Alcides Cruz – Não pretendo fatigar a atenção da Assembleia[...]

O sr. Pereira Parobé – V.Exa. é sempre ouvido com prazer.

O sr. Alcides Cruz – [...]entretanto, responderei ao nobre deputado. O ilustre


membro desta Assembleia, dr. Parobé, quando exercia o cargo de secretário de Obras
Públicas, expediu uma circular, que classificarei de notável, às diversas intendências do
Estado, recomendando-lhes empregassem os precisos meios repressivos contra a
devastação das matas e proibindo o corte de madeiras às margens dos rios, em extensão
de certo número de metros.

Foi uma medida protetora, e prova robusta de que o governo do Estado já


providenciou a esse respeito consigna o relatório do sr. secretário de Obras Públicas,
distribuído este ano, dizendo terem sido apreendidas balsas de madeiras extraídas de
matas nas nascentes do rio Jacuí.

Assim, o que ora se pretende não é mais do que secundar a ação do Estado
nesse sentido. Se esta tem sido limitada, sem grandes resultados, todavia tem feito jus ao
apoio que solicitamos dos poderes da União. Não procede, tampouco, o argumento
aduzido pelo muito digno sr. dr. Arlindo Leal, de não possuirmos um cadastro florestal,
porque não é preciso para o caso.

O sr. Arlindo Leal – De fato, não possuímos. Demais, a regulamentação


pedida importa, como disse, numa nova restrição ao direito de propriedade.
328

O sr. Alcides Cruz – E porventura será uma aspiração o colocarmo-nos


aquém de Portugal de século e meio?! O nobre deputado, que é fazendeiro, deve possuir
um título de sesmaria concedido pelo governo da metrópole onde vem consignadas
cláusulas regulamentando o corte das matas e proibindo o de madeiras necessárias à
construção de navios.

Será, porventura, cercear a liberdade do proprietário de matas pugnarmos por


aquilo que pugnavam, há quase dois séculos, países atrasados, como Portugal e Espanha?
Responda-me o nobre deputado pela afirmativa e eu retirarei a minha assinatura da
moção.

O sr. Arlindo Leal – sr. presidente, há muitos anos que sou adepto fervoroso
da conservação das nossas matas e de um racional regime florestal, tendo mesmo, muitas
vezes, recorrido à imprensa para a defesa desse meu modo de pensar a respeito.

Assim sendo, não posso deixar de apoiar com todo entusiasmo e sinceridade
a moção apresentada pelos srs. Alcides Cruz, Pereira Parobé e outros ilustres colegas.

Certo que é coisa difícil ajuizar-se das qualidades de uma criança antes dela
nascida, e, assim, é impossível prever-se os termos da lei que porventura votar o
Congresso Nacional.

Por isso mesmo, porém, não me parece de todo descabido salientar-se um


ponto especial do assunto, chamando sobre ele a atenção dos legisladores.

Assim, o que me trouxe à tribuna foi o desejo de indagar, desde já, e no intuito
de precaver futuros inconvenientes, se a moção em discussão envolve a tendência de
cercear, e até que ponto, os direitos de propriedade dos pequenos agricultores no tocante
às derrubadas que necessariamente têm de efetuar nos seus lotes para poderem fazer as
suas plantações.

Desde que, de há tempos que já vão longe, se adotou o sistema de se localizar


o colono imigrante na região das florestas virgens, este não teve outro meio senão arrasar
parte do mato existente no seu terreno, aliás de acanhadas dimensões, na maioria dos
casos.

Os nossos colonos, como não ignoram os meus dignos colegas, estão


labutando sob a pressão de condições de todo especiais, que, por isso, me parece, devem
também reclamar providências especiais.

Eles não derrubam as madeiras pelo gosto de destruir, mas por absoluta
necessidade e na proporção crescente que têm de prever à subsistência de suas famílias.

Se essas derrubadas se compreendem também no termo DEVASTAÇÃO


DAS MATAS, têm elas para si a atenuante do inevitável. Como agir de outro modo?
Desejo, pois, saber se a moção apresentada tem por fim determinar uma ação coercitiva
à propriedade dos colonos.
329

Um sr. deputado – O que se pretende com a moção é regularizar o corte das


madeiras, impedindo, assim, a destruição das matas.

Outro sr. deputado – O Estado nada terá que ver senão com as matas que
constituem as florestas protetoras.

O sr. Pereira Parobé – O que pretendemos é impedir a devastação bárbara


das nossas matas.

Um sr. deputado – Determinando-se, por exemplo, o replantio.

O sr. Arno Philipp – Tem se tentado, por vezes, em pequena escala, porém,
sem encontrar emulação por parte de maior número de lavradores, devido às inúmeras
dificuldades que a isso se opõem.

O sr. Pereira Parobé – Mas nós não podemos fazer leis especiais para os
colonos. A propriedade é uma, sabe-o o ilustre colega, e o caráter da lei, geral.

O sr. Arno Philipp – Mas, para corresponder a exigências dadas, de natureza


peculiar, a lei poderá especializar. Repito que, ao pedir a palavra, foi meu intento, apenas,
apontar a dúvida acima mencionada, a título de um ligeiro alvitre preciso que talvez
pudesse sugerir aos competentes uma ideia de solução definitiva. Quanto ao mais, votarei
pela moção, que aplaudo e subscrevo, em princípio (muito bem, muito bem).

Encerrada a discussão e em votação, é a moção aprovada, o sr. presidente


nomeia os srs. deputados Arlindo Leal, Freitas Valle, Emílio Guilayn, José Octavio e
Francisco Flores da Cunha para, em comissão, representarem a Assembleia, amanhã, na
festa das árvores e encerra a sessão, lavrando-se esta ata.

MARCOS ALENCASTRO DE ANDRADE,


vice-presidente

ALCIDES DE F. CRUZ

OCTAVIO ROCHA, suplente do 2º


secretário
330

20ª SESSÃO

AINDA A PRESERVAÇÃO DAS MATAS

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos quatorze dias do mês de outubro de 1909, na sala das sessões da


Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde,
presentes os srs. deputados Barreto Vianna, Marcos de Andrade, Alcides Cruz, Firmino
Paim, Waldomiro Lima, Soares de Barcellos, Luiz Englert, Arno Philipp, Domingos
Martins, Gonçalves de Almeida, Pereira Parobé, Armênio Jouvin, Soares de Barros,
Getúlio Vargas, Nicolau Vergueiro, Arlindo Leal, Emilio Guilayn, Galdino Santiago, José
Octavio, Freitas Valle e Francisco Flores da Cunha, é aberta a sessão; faltando com causa
participada os srs. deputados Octavio Rocha, José Antonio Flores da Cunha, Joaquim
Osório e Salvador Pinheiro.

É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

Achando-se na sala de recepção o sr. deputado José Penna de Moraes, já


reconhecido pela Assembleia, o sr. presidente nomeia os srs. deputados Englert, Arno
Philipp e Domingos Martins para, em comissão, introduzi-lo no recinto das sessões, o
que, feito, aquele sr. deputado presta o respectivo compromisso e toma posse do lugar
de 2º secretário, para que já havia sido eleito e que estava sendo ocupado na sessão, a
convite do sr. presidente, pelo sr. deputado Firmino Paim.

EXPEDIENTE

Carta do marechal Hermes R. da Fonseca, dirigida ao sr. dr. presidente,


agradecendo a comunicação que este lhe fizera, em telegrama de 24 do mês próximo
passado, de haver esta Assembleia votado uma moção de apoio às candidaturas da
convenção de 22 de maio, e pedindo a S.Exa. para ser o intérprete da sua profunda
gratidão junto aos srs. deputados.

Memorial da Faculdade Livre de Medicina solicitando ser incluída nas leis do


orçamento, com um auxílio anual de cinquenta contos de réis, destinados ao custeio e
desenvolvimento de seus laboratórios.

Petição das irmãs da ordem de Santa Catharina pedindo um auxílio de dois


contos de réis anuais, pelo tempo preciso para as suplicantes poderem manter-se.

Idem do major Bento Olinto de Carvalho, ex-porteiro desta Assembleia,


pedindo melhoria da sua aposentadoria.
331

Idem da Empresa Industrial do Moinho Pedritense solicitando a isenção do


imposto correspondente ao selo da carta de autorização.

O primeiro foi à comissão de orçamento, e as outras, à comissão de petições


e reclamações, para dar os respectivos pareceres.

O sr. Armênio Jouvin – sr. presidente, quando, há dias, discutiu-se nesta casa
a moção apresentada pelo meu ilustre colega sr. dr. Alcides Cruz e outros srs. deputados,
dirigida à bancada rio-grandense no Congresso Nacional, tive ocasião de opor-me à sua
passagem, justificando, ao mesmo tempo, os motivos por que o fazia.

Felizmente – o que me desvanece – a minha opinião não ficou isolada;


secundou-a, amparando-a, o ilustre colega sr. coronel Antônio Soares de Barcellos.

Dirigido o telegrama a S.Exa. o sr. senador Pinheiro Machado, a ele


manifestou a Assembleia o desejo de que a representação rio-grandense tomasse a
iniciativa em um projeto de lei que tivesse por fim impedir a devastação das matas.

Respondendo a esse telegrama, anunciou-nos esse eminente senador que a


iniciativa solicitada já tinha sido tomada pelo operoso deputado sr. José Carlos de
Carvalho.

É claro, pois, que se a opinião que emiti não tivesse sido vencida, isto é, se a
Assembleia, adotando-a, tivesse seguido a trilha percorrida, de agir sempre
harmonicamente com o governo do Estado, certo ter-se-ia poupado a desnecessidade
dessa solicitação.

O sr. Pereira Parobé – Em que se afastou a Assembleia dessa norma de


conduta, se até o próprio chefe da bancada rio-grandense no Congresso Nacional
ignorava a existência desse projeto de iniciativa do deputado José Carlos?

O sr. Armênio Jovin – Como ignorava, se no-la anunciou em sua resposta?

O sr. Pereira Parobé – Mas em aditamento ao seu primitivo telegrama. Ao


tempo em que este foi transmitido, S.Exa. ignorava, como a Assembleia, a existência
desse projeto, como se verifica dos termos desse seu primeiro telegrama.

O sr. Armênio Jouvin – Era natural que S.Exa. assim se manifestasse,


porquanto, se a Assembleia dos Representantes, que tem a obrigação de conhecer das
necessidades do Rio Grande, não tinha notícia dessa iniciativa, indo reclamá-la da
bancada rio-grandense, muito menos S.Exa., colhido de surpresa, podia tê-la presente, e,
daí, os termos de sua resposta.

O sr. Pereira Parobé – Então a ignorância não foi somente da Assembleia,


foi geral[...]

O sr. Armênio Jouvin – Geral ou não, pouco importa.


332

O sr. Pereira Parobé[...] o próprio chefe da bancada, como disse, ignorava a


existência desse projeto, não tinha ciência dessa iniciativa.

O sr. Armênio Jouvin – Ainda mesmo quando S.Exa. tivesse dela uma ideia
vaga, não podia, de pronto, responder senão como o fez; o contrário seria infringir a
delicadeza, a cortesia com que sói corresponder a todas as manifestações que lhe são
feitas. Verificando, porém, posteriormente que já existia um projeto de iniciativa do
representante deste Estado, sr. José Carlos de Carvalho, apressou-se a dar ciência disso à
Assembleia.

O sr. Firmino Paim – Donde a conclusão que a Assembleia errou votando


essa moção, mas, se errou, errou igualmente o senador Pinheiro Machado, dando
aquiescência a essa moção.

O sr. Armênio Jouvin – Se a Assembleia errou, não deve persistir no erro,


na injustiça feita àquele nosso operoso representante (apartes simultâneos). Ainda é tempo
de repará-la, manifestando o seu aplauso e hipotecando o seu apoio ao sr. José Carlos de
Carvalho na iniciativa da apresentação do aludido projeto, com o quê, quando menos,
fará desaparecer a suposição de que não lê os anais do Congresso (continuam os apartes).

Se os iniciadores da moção, que impugnei, tivessem, recorrendo a esses anais,


verificado se existia ou não algum projeto no sentido da mesma moção, certo não a teriam
apresentado.

O sr. Pereira Parobé – Seria necessário ler os anais do Congresso Nacional,


o que seria tarefa por demais trabalhosa.

O sr. Armênio Jouvin – Não tendo feito essa verificação, e, em


consequência, solicitando do Congresso uma providência já tomada por ele, andou
erradamente (continuam os apartes).

Eis aqui o DIÁRIO OFFICIAL de 12 do passado, que insere o discurso do


sr. J. C. de Carvalho, no qual, referindo-se à conferência que teve com o eminente dr.
Borges de Medeiros, historia a apresentação do seu projeto, que, conquanto não satisfaça
a todas as necessidades do Rio Grande, evidencia, contudo, a boa vontade desse
deputado, sendo, portanto, uma superfluidade pedir à Assembleia a iniciativa do que já
está iniciado. Por assim pensar, tomei a palavra, roubando o tempo aos meus ilustres
colegas, para propor que se dirija um telegrama ao sr. José Carlos de Carvalho, aplaudindo
a sua iniciativa e manifestando as seguranças de que empregará todos os esforços no
sentido de ser convertido em lei o projeto por S.Exa. apresentado. É este o objetivo do
telegrama que vou enviar à mesa:

“Deputado José Carlos Carvalho–Rio–Assembleia Estado aplaude iniciativa


tomou apresentando projeto contra devastação das matas e faz ardentes votos para que
não se façam demorar vossos esforços sentido ampliar referido projeto de acordo
necessidades Rio Grande. – ARMÊNIO JOUVIN.”
333

O sr. Alcides Cruz – Parece-me, sr. presidente, que não constitui uma grave
infração do regimento o falar-se da mesa, tanto mais quanto é certo que essa tem sido
sempre a praxe seguida.

O sr. Luiz Englert – Contra a qual, aliás, ninguém reclamou até hoje.

O sr. Pereira Parobé – Em todo o caso, o regimento deve ser observado


nessa como nas demais disposições.

O sr. Alcides Cruz – De parte, porém, esta questão de caráter secundário,


passo a tratar do incidente que me obrigou a tomar a palavra. Chamado à tribuna, a
princípio velada e depois claramente, vou responder ao sr. deputado Jouvin dizendo,
quanto à sua primeira increpação, isto é, que a Assembleia dos Representantes, votando
a moção, não procedera de acordo com o governo do Estado, que não sou um aderente
do partido republicano.

O sr. Armênio Jouvin – Nem eu tampouco.

O sr. Alcides Cruz – Tenho um passado obscuro, é certo, mas coerente,


prestando-lhe os meus serviços quase desde a sua criação. Conhecedor, portanto, das
normas e praxes do partido republicano, a que sempre estive filiado, não viria apresentar
à Assembleia um projeto ou uma proposta qualquer, se suspeitasse sequer que assim
procedendo iria melindrar a orientação do governo do Estado.

O sr. Flores da Cunha – Todos nós, conhecedores do passado de V.Exa.,


fazemos-lhe inteira justiça (apoiados).

O sr. Armênio Jouvin – Não aceito a insinuação, que não me atinge.

O sr. Alcides Cruz – Não atirei insinuação a quem quer que seja; entretanto,
se alguém há a quem ela possa caber, que a tome a si.

O sr. Armênio Jouvin – Eu já lavrei o meu protesto.

O sr. Alcides Cruz – Relativamente à segunda increpação, feita, não


exclusivamente a mim, mas à Assembleia, isto é, à obrigação que tem a mesma
Assembleia, no entender do nobre deputado, de conhecer todos os projetos submetidos
à apreciação do Congresso Nacional, devo observar que a nossa obrigação é conhecer as
leis depois de promulgadas e não tantos quantos os projetos formulados.

O sr. Armênio Jouvin – Pelo menos do que foi apresentado pelo deputado
José Carlos de Carvalho devia ter conhecimento a Assembleia ou, quando menos, os
promotores da moção.

O sr. Alcides Cruz – Pois eu confesso, com toda a franqueza e sinceridade,


que não o conhecia nem o conheço.

O sr. Armênio Jouvin – Vem publicado no Diário Official.


334

O sr. Alcides Cruz – O Diário Official não é jornal de grande circulação,


acrescendo que a sua remessa para os Estados é feita com demora, tardiamente. Estou
informado, contudo, de que o projeto em questão se refere tão somente a providências
a tomar sobre a exploração da lenha para consumo nas estradas de ferro, quando o que
nós pretendemos é uma lei que regulamente o corte das matas de domínio privado,
pretensão essa patrocinada pelo concurso direto do nobre senador Pinheiro Machado,
claramente manifestado em o seu primeiro telegrama.

O sr. Armênio Jouvin – Mas é o próprio senador Pinheiro Machado quem


diz que essas providências já foram tomadas com a apresentação do projeto do deputado
José Carlos de Carvalho.

O sr. Alcides Cruz – Esse projeto não resolve a questão (apoiados). O próprio
telegrama, o segundo, o constata. Enfim, a Assembleia resolverá sobre a moção
apresentada pelo nobre deputado. Quanto a mim, declaro que votarei contra ela por
julgá-la desnecessária (muito bem, muito bem).

O sr. deputado Getúlio Vargas pede vista do telegrama.

O sr. Getúlio Vargas – sr. presidente, o nosso ilustrado colega dr. Jouvin
veio aqui apenas repisar o mesmo assunto, pretendendo chamar a atenção sobre a
ignorância da Assembleia a respeito do projeto apresentado na Câmara Federal pelo
deputado José Carlos de Carvalho e mostrar que, no naufrágio geral das inteligências, ele
sobrepunha a sua opinião como a tábua salvadora para a qual deviam bracejar os que não
tiveram a fortuna de segui-lo na sessão anterior. Entretanto, S.Exa. também ignorava a
existência desse projeto, pois aprovou em tese a ideia da moção, discordando somente
quanto à iniciativa a tomar, que, a seu juízo, deveria caber ao presidente do Estado. Além
disso, como muito bem acentuou o nosso ilustre colega dr. Alcides Cruz, nesse projeto
não tratou o sr. José Carlos da regulamentação do corte das matas, mas, apenas, do corte
da lenha para consumo. Acresce que os termos do telegrama que propõe o nosso colega
seja transmitido àquele deputado não estão de acordo com o referido projeto. Atendendo
a isso, e mais, por julgar inoportuno o telegrama, voto contra a proposta do dr. Jouvin
(muito bem, muito bem).

O sr. Armênio Jouvin – O meu ilustre colega dr. Getúlio Vargas certamente
não leu o projeto apresentado pelo sr. José Carlos de Carvalho. Dentre os diversos
considerandos com que S.Exa. justificou a apresentação desse projeto, bastará citar
aquele que vou ler para que a Assembleia convença-se de que o aludido projeto está de
pleno acordo com as necessidades que ela procura prover. Diz esse considerando: (lendo)
“Considerando que a devastação brutal das nossas matas arrasta consigo a pobreza para
muitos e desperta a cobiça dinheirosa para aqueles que só visam o interesse próprio
embora com sacrifício de regiões inteiras do país”. Eis aí a intenção do deputado José
Carlos em proibir a devastação brutal das nossas matas. Isto está de acordo com o pedido
da Assembleia.

O sr. Pereira Parobé – O projeto difere muito do que pretende a Assembleia.


Refere-se, por assim dizer, apenas à exploração da lenha para consumo.
335

O sr. Armênio Jouvin – Não, senhor, providencia sobre isso, mas,


igualmente, sobre a devastação das matas, e, pois, satisfaz perfeitamente as intenções da
Assembleia. Foi por assim entender que propôs se telegrafasse ao autor do projeto,
aplaudindo a sua iniciativa e manifestando o desejo de que ele o amplie de modo a atender
a todas as nossas necessidades.

O sr. Pereira Parobé – O projeto não regulamenta a exploração das matas,


e o que nós precisamos é de uma lei nesse sentido.

O sr. Armênio Jouvin – Mas é precisamente esse o fim que visa o projeto.

O sr. Pereira Parobé – Não, senhor. O que a Assembleia pretende é coisa


muito diferente do que consigna o projeto.

O sr. Armênio Jouvin – Em todo o caso, o que a Assembleia não pode negar
– e devo acentuar – é que a iniciativa partiu do dr. José Carlos de Carvalho, e,
conseguintemente, será absurdo negá-lo, e maior absurdo insistir a Assembleia no seu
pedido.

O sr. Pereira Parobé – Não há absurdo, uma vez que o que consigna o
projeto e o que pretende a Assembleia são coisas diferentes.

O sr. Marcos de Andrade – Demais, tendo a Assembleia a promessa formal


do concurso do senador Pinheiro Machado, acho desnecessário dirigir-se a outrem.

O sr. Armênio Jouvin – Mas o telegrama que proponho é consequência do


que a Assembleia dirigiu à bancada rio-grandense, uma vez que ao deputado José Carlos
de Carvalho coube a iniciativa da apresentação do projeto.

O sr. Pereira Parobé – O deputado José Carlos nada mais fez do que
secundar a ação da Assembleia relativamente ao consumo da lenha. O que a Assembleia
pretende, como já disse, é coisa muito diferente. O projeto desse deputado nada satisfaz.

O sr. Armênio Jouvin – Melhor seria, então, que a Assembleia enviasse o


projeto ao Congresso.

O sr. Pereira Parobé – Para dar a mesma rata que está dando? Não pode
fazê-lo.

O sr. Armênio Jouvin – Sei que não pode enviar o projeto; porém, se só a
Assembleia pode delineá-lo, não haverá projeto que a satisfaça, desde que não parta
daqui. O que não se deve é pedir a iniciativa duma coisa começada só porque não satisfaz.
ISSO É QUE É RATA.

O sr. Pereira Parobé – E, de fato, não satisfaz, porque o nosso intuito é


regulamentar a exploração das matas de domínio privado, coisa que o projeto não cogita
(apoiados).
336

O sr. Armênio Jouvin – Mas ampliado conseguirá esse objetivo. Enfim, foi
para esclarecer a minha opinião a respeito do assunto, o que penso ter conseguido, que
tomei a palavra mais uma vez.

O sr. Getúlio Vargas – Penso poder dizer que a Assembleia está de alvíssaras
com a opinião do ilustrado dr. Jouvin, porquanto, discordando da emitida
primitivamente, vem, agora, batendo ao peito penitenciar-se da discordância anterior,
propondo que a Assembleia tomasse a iniciativa de telegrafar ao deputado José Carlos.

O sr. Armênio Jouvin – Não apoiado. Não modifiquei o meu modo de


pensar.

O sr. Getúlio Vargas – De fato, quando se pretendia telegrafar ao exmo. sr.


senador Pinheiro Machado, solicitando a iniciativa dos representantes rio-grandenses no
Congresso Nacional para a promulgação de uma lei repressora da devastação das matas,
S.Exa. declarou que votava contra a moção apresentada, não porque conhecesse, então,
o projeto do deputado José Carlos, ou dele tivesse notícia sequer, mas por entender que
não era da competência da Assembleia tal intervenção.

O sr. Armênio Jouvin – Não neguei a competência da Assembleia. Dissenti,


apenas, da forma por que intervinha, discordante das normas estabelecidas, dos estilos
até então observados, de proceder sempre de acordo com o governo do Estado.

O sr. Freitas Valle – Toda a Assembleia apoia o governo do Estado e jamais


procede em desacordo com ele.

O sr. Getúlio Vargas – De duas uma: ou o nosso ilustre colega entendia que
a Assembleia não tinha competência para votar aquela moção e, consequentemente, não
se devia dirigir à representação rio-grandense no Congresso Nacional, ou, então,
alarmava-se com a possibilidade de a Assembleia agir em desacordo com o governo do
Estado. Compreendo que S.Exa. temia irritar a película das suscetibilidades
governamentais, o que só não se poderia dar, pois esta Assembleia exercita uma
atribuição própria e vem até secundar a opinião do governo neste sentido.

O sr. Armênio Jouvin – Discordei apenas da forma, como já disse.

O sr. Getúlio Vargas – Pois bem, façamos tábua rasa dos motivos
determinantes da opugnação do nobre deputado, mas, fazendo-o, embora, o que é
indiscutível é que S.Exa. declarou que a iniciativa tomada pela Assembleia devia partir do
governo do Estado.

O sr. Armênio Jouvin – Que os deputados que subscreveram a moção


andariam mais acertados se a apresentassem de acordo com o governo do Estado, isto é,
por intermédio do dr. presidente de Estado.

O sr. Getúlio Vargas – Acentuado, como ficou, que o desacordo do ilustre


deputado tendia a evitar que a nossa iniciativa melindrasse o dr. presidente do Estado
337

por uma, no seu entender, indébita intervenção da Assembleia nas atribuições de S.Exa.,
de todo antagônica com esse receio é a atitude do nobre deputado, vindo reconhecer a
competência da Assembleia para a apresentação daquela moção e propondo, por sua vez,
que a mesma Assembleia telegrafe ao deputado José Carlos aplaudindo a sua iniciativa na
apresentação de um projeto que, aliás, não satisfaz aos desejos dos signatários da referida
moção. Nessas condições, nem mesmo nessa parte, que S.Exa. havia ressalvado para
castigar a descaída da Assembleia, nem mesmo nessa parte, digo, S.Exa. foi coerente, pois
incidiu nessa mesma censura com a proposta que vem de fazer. Repetindo o que disse
ao começar, isto é, que a Assembleia está de parabéns pela adesão do nobre deputado à
sua atitude, pois a tanto importa a sua proposta, sento-me sem mais considerações (muito
bem, muito bem).

Encerrada a discussão e posta a votos, foi a proposta reprovada.

Não havendo matéria para ordem do dia e nem mais nada a tratar, o sr.
presidente levanta a sessão e lavra-se esta ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA

ALCIDES DE F. CRUZ

J. PENNA DE MORAES

21ª SESSÃO

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos quinze dias do mês de outubro de 1909, na sala das sessões da Assembleia
dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde, presentes os srs.
deputados Barreto Vianna, Marcos de Andrade, Alcides Cruz, Penna de Moraes, Firmino
Paim, Octavio Rocha, Waldomiro Lima, Luiz Englert, Arno Philipp, Domingos Martins,
Gonçalves de Almeida, Pereira Parobé, Armênio Jouvin, Soares de Barros, Getúlio
Vargas, Nicolau Vergueiro, Arlindo Leal, Emílio Guilayn, Galdino Santiago, José
Octavio, Freitas Valle, e Francisco Flores da Cunha, é aberta a sessão; faltando com causa
participada os srs. deputados José Antonio Flores da Cunha, Joaquim Osório e Salvador
Pinheiro e sem ela o sr. deputado Soares de Barcellos. É lida e aprovada a ata da sessão
anterior.
338

EXPEDIENTE

[...]

ORDEM DO DIA

[...]

O sr. Alcides Cruz (pela ordem) – sr. presidente, a minha vida pública, como a
privada, está sujeita à crítica. Embora esta se exerça, muitas vezes, com palpável injustiça,
não me assiste razão alguma para insurgir-me contra isso.

Entretanto, em se tratando da enunciação do meu pensamento, o caso é


diferente, e, em consequência, outra a minha atitude, porque é a minha conduta, porque
são as minhas ideias que estão em jogo. E, como um pensamento desvirtuado por ter
sido mal apreendido, intencionalmente ou não, pode determinar increpações injustas, que
não desejo pairem sobre a minha pessoa, apresso-me a vir à tribuna retificar o modo pelo
qual O JORNAL DO COMMERCIO de hoje publicou uma frase que se diz ter sido por
mim aqui proferida.

Diz o JORNAL DO COMMERCIO na notícia sobre a sessão de ontem: (lê)

Eu não me pronunciei do modo por que consigna o JORNAL. Admoestado


pelo sr. dr. Jouvin [...].

O sr. Armênio Jouvin – Não apoiado. Não pretendi admoestá-lo; não foi
essa a minha intenção.

O sr. Alcides Cruz[...] de que tinha tomado a iniciativa na apresentação de


uma moção sem ter ouvido, previamente, o governo do Estado, isto é, procurado
informar-me deste se seria ou não conveniente a apresentação dessa moção (S.Exa.
entendia que era inconveniente, que estava em desacordo com a orientação do mesmo
governo) [...].

O sr. Armênio Jouvin – E mantenho essa opinião.

O sr. Alcides Cruz[...] apressei-me a dizer que não era um aderente do


partido republicano, no qual sempre militara, para, desconhecendo as normas e as
práticas desse partido, tomar a iniciativa de qualquer medida que porventura melindrasse
a orientação do governo do Estado. Verdade é que S.Exa. me deu um aparte que me
obrigou a dizer que, empregando a palavra “aderente”, não dirigia uma insinuação a quem
quer que fosse, mas com o intuito, apenas, de significar que, militando, de há muito, no
partido republicano, seria incapaz de infringir as normas por ele sempre observadas; mas
que, entretanto, se alguém julgasse que ela lhe podia caber, atingindo-o, esse que a
tomasse a si. Tinha, como vê a Assembleia, estabelecido a questão em termos gerais, não
pessoais.

Se o meu alistamento nas fileiras do partido republicano datasse de ontem, era


possível que eu desconhecesse as normas por ele adotadas; mas não. Não sendo um
339

novato, porque sempre pertenci a um só partido, em cujo seio tenho recebido lições de
todos os seus grandes mestres, seria um mau discípulo, digno, por sem dúvida, de
censura, se, esquecendo essas lições, me insurgisse contra os seus ensinamentos. Era o
que tinha a dizer (muito bem, muito bem).

O sr. Armênio Jouvin – O ilustre colega dr. Alcides Cruz não andou
acertadamente vindo referir-se, neste recinto, a uma notícia que deu o JORNAL DO
COMMERCIO de hoje, acerca da sessão de ontem. Se a notícia ressente-se de exatidão
absoluta quanto aos detalhes, isto é, no que concerne à forma por que pronunciou-se o
nobre deputado, não era a tribuna da Assembleia o local apropriado para a retificação
que vem de fazer S.Exa.

O JORNAL DO COMMERCIO tem o seu escritório de redação à rua da


Ladeira, n. 16, onde certo o colega encontraria quem o recebesse condignamente e
atendesse à pretendida retificação[...]

O sr. Pereira Parobé – Não tinha que ir ao JORNAL. Fazendo-o da tribuna


da Assembleia não infringiu o nosso regimento, usou de um direito.

O sr. Flores da Cunha – É praxe parlamentar fazer-se tais retificações da


tribuna da Assembleia.

O sr. Armênio Jouvin [...] porque a Assembleia não tem competência para
retificar essa como qualquer outra notícia de jornais.

O sr. Flores da Cunha – Mas é praxe.

O sr. Armênio Jouvin – Pode sê-lo, mas é uma praxe absurda. Dos anais da
Assembleia não constam as notícias dos jornais e, por isso, como se explica a retificação
duma cousa que não existe?

O sr. Pereira Parobé – Como não, desde que, feitas as retificações, estas
sejam consignadas.

O sr. Armênio Jouvin – Se o ilustre deputado dr. Alcides Cruz queria uma
retificação, devia, como disse, dirigir-se, de preferência, à redação do JORNAL.

O sr. Flores da Cunha – Que a faria ou não.

O sr. Pereira Parobé – Ao passo que, feita da tribuna da Assembleia,


constará dos Anais.

O sr. Armênio Jouvin – Se efetivamente difere um tanto da forma, o fundo


da notícia é, contudo, verdadeiro, e, por isso, extemporânea a retificação feita por S.Exa.
Vejamos, agora, a outra parte do discurso do dr. Alcides Cruz, em que se referiu a
aderentes do partido republicano. Esta referência, numa Assembleia onde todos militam
nas mesmas normas partidárias, onde todos dedicam-se, com ardor, em defesa de uma
ideia, conquanto não atinja a mim, é uma alusão impolida que merece a nossa
recriminação. Como o sr. dr. Alcides Cruz, fui sempre um partidário entusiasta, sem
340

jamais afastar-me por um momento das fileiras do partido chefiado pelo benemérito dr.
Borges de Medeiros e, pois, se queria dirigir-se à minha obscura pessoa errou o alvo. Por
outro lado, não havia necessidade de o colega pronunciar-se dessa forma, melindrando,
quiçá, algum dos membros desta casa.

O sr. Alcides Cruz – Não foi essa a minha intenção, mas apenas ressaltar que
não era aderente para desconhecer as normas do partido republicano e, assim, agir em
desacordo com o governo do Estado. Se, com essa frase, tivesse melindrado alguém, esse,
por certo, teria reclamado.

O sr. Armênio Jouvin – Mas eu contestei, não por ter me melindrado, mas
porque, tendo V.Exa. respondido ao meu discurso, não poderia consentir que desse lugar
a comentários a sua referência. Achei necessário ventilar este assunto.

O sr. Pereira Parobé – Não podia ser intenção do nosso colega dr. Alcides
Cruz melindrar a quem quer que fosse, mesmo porque há, entre nós, colegas que, tendo
pertencido aos antigos partidos monárquicos, servem ao atual regime com toda a
dedicação e lealdade.

O sr. Freitas Valle – A maioria do partido republicano é composta de


aderentes, isto é, de membros dos antigos partidos.

O sr. Pereira Parobé – O nobre deputado devia apreciar a frase em seu


conjunto, completo.

O sr. Armênio Jouvin – Em todo o caso, a expressão “aderente” é imprópria


no recinto desta Assembleia, reveste-se de um caráter odioso.

Um sr. deputado – Os aderentes são em grande número.

O sr. Armênio Jouvin – Mais um motivo para não se vir fazer, aqui, essa
distinção de que não havia necessidade.

O sr. Luiz Englert – Muitos pertenceram ao partido conservador.

O sr. Alcides Cruz – E fiz eu essa distinção?

O sr. Armênio Jouvin – Fez ontem, como ainda agora, senão positiva,
indiretamente, e foi a isso que deu curso o JORNAL DO COMMERCIO na notícia que
mereceu os reparos do nobre deputado.

O sr. Octavio Rocha – Não havia necessidade dessa distinção.

O sr. Armênio Jouvin – Intencionalmente embora, como creio, tão delicado


é o nobre deputado, ofendeu, melindrou os seus colegas. Por último, sr. presidente,
aparte a forma, a notícia do JORNAL DO COMMERCIO consigna, no fundo, com toda
a verdade, o incidente ocorrido. Era o que tinha a dizer.
341

Ninguém mais pedindo a palavra e nada mais havendo a tratar, o sr. presidente
encerra a sessão e lavra-se esta ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA

ALCIDES DE F. CRUZ

J. PENNA DE MORAES

33ª SESSÃO

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos vinte e nove dias do mês de outubro de 1909, na sala das sessões da
Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde,
presentes os srs. deputados Barreto Vianna, Marcos de Andrade, Alcides Cruz, Firmino
Paim, Octavio Rocha, Waldomiro Lima, Soares de Barcellos, Luiz Englert, Arno Philipp,
Domingos Martins, Gonçalves de Almeida, Pereira Parobé, Armênio Jouvin, Soares de
Barros, Getúlio Vargas, Nicolau Vergueiro, Arlindo Leal, Joaquim Osório, Emílio
Guilayn, José Octavio, Freitas Valle, Francisco Flores da Cunha, Sergio de Oliveira e
Trajano Lopes, é aberta a sessão; faltando com causa participada os srs. deputados Penna
de Moraes, José Antonio Flores da Cunha, Galdino Santiago e Salvador Pinheiro. É lida
e aprovada a ata da sessão anterior.

EXPEDIENTE

[...]

ORDEM DO DIA

[...]

Entra em discussão o parecer da comissão de petições e reclamações no


requerimento de Germano Gustavo Rörecke.

O sr. Alcides Cruz – Senhor presidente, senhores. A ilustre comissão de


petições e reclamações entendeu muito acertadamente dar parecer contrário ao que pede
Germano Gustavo Rörecke; entretanto, discordando desse parecer, alguns srs. deputados
ou, mais precisamente, os signatários da emenda que vou ter a honra de apresentar,
discordando, digo, dos fundamentos desse parecer, não se veja nessa discordância o
intuito de melindrar aquela ilustre comissão, porquanto essa se baseou numa maneira de
342

ver própria, mas maneira de ver que pode, sem desaire, ser modificada, segundo algumas
ideias que vou expender.

O ensino de belas artes no Brasil, sobretudo no Rio Grande, sabem-no os srs.


deputados, está atrasadíssimo, sendo que em Porto Alegre, por assim dizer, não existe.

No centro, na capital da República, existe, é certo, uma escola de belas artes


fundada há mais de sessenta anos, mas, a despeito disso, ainda não pode atingir ao grau
de prosperidade, prestígio e perfeição a que atingiram os institutos congêneres da Europa,
tanto assim que o próprio governo da União tem mantido e mantém no estrangeiro
alunos daquela escola. No Rio falta, até mesmo, o que é imprescindível – um museu de
pintura. A própria França, dispondo de recursos de que não dispõe o Brasil, não se limita
a diplomar os seus alunos de méritos, mantém institutos de pintura e escultura em Roma,
para onde os envia, a fim de se aperfeiçoarem.

Um Instituto de Belas-Artes como o de Porto Alegre pode, de futuro,


preencher, até certo ponto, as necessidades que aconselharam a sua criação, mas,
presentemente, dada a escassez dos elementos precisos, entre os quais a falta de uma
galeria de pintura antiga e moderna, não pode corresponder a essas necessidades, tanto
mais que, me parece, o regulamento não estabelece o complemento da viagem à Europa
ou mesmo ao Rio.

O sr. Armênio Jouvin – O que, entretanto, não se poderá negar é que à


Assembleia falece competência para conceder o auxílio pedido.

O sr. Pereira Parobé – Mas não concede. Deixa ao arbítrio do governo do


Estado conceder ou não.

O sr. Alcides Cruz – De fato, os signatários da emenda não cogitam sequer


de uma imposição; deixam, ao contrário, ao critério do governo conceder a pensão “se
ele em seu juízo entender que a impetrante merece tal deferimento”.

Dos termos em que é concedida a emenda evidencia-se, clara e


insofismavelmente, que não se trata de uma obrigação; ao contrário, fica salva ao governo
do Estado plena liberdade de agir e resolver, e só mediante a exibição de atestados ou
trabalhos comprobatórios da aptidão da requerente, resolverá ele, em sua sabedoria, se
deve ou não utilizar-se da autorização que lhe é concedida. Supunha, antes da pequena
viagem que fiz ao exterior, que nada nos faltava[...]

O sr. Pereira Parobé – Pensava que tínhamos de tudo.

O sr. Armênio Jouvin – Mas, com certeza, não se esqueceu de que tínhamos
uma Constituição.

O sr. Alcides Cruz[...] mas, diante do que lá vi, me convenci de que, em


assuntos das belas-artes, tudo nos faltava, éramos meros principiantes.

O sr. Armênio Jouvin – O caso é que a Constituição do Estado veda-nos


concessão que pretendem fazer os signatários da emenda.
343

O sr. Alcides Cruz – Não veda tal, tanto que, indiretamente, temos auxiliado
os institutos de ensino superior existentes no Estado.

O sr. Luiz Englert – A nossa Constituição não é um fantasma (muito bem,


muito bem).

Vem à mesa e é lida a seguinte emenda substitutiva, pelo mesmo assinada e


pelos srs. deputados Parobé, Englert, Barreto Vianna, Freitas Valle, Trajano, Guilayn,
José Octavio, Barcellos, Martins, Arno, Marcos e Francisco Flores da Cunha:

“Fica autorizado o governo do Estado a despender a quantia anual de


2:400$000 com a educação artística, na Europa ou no Rio de Janeiro, da menina Anna
Rörecke, se em seu juízo entender ele que a impetrante merece tal deferência.”

A emenda entra em discussão com o parecer.

O sr. Armênio Jouvin – sr. presidente, a comissão de petições e reclamações,


emitindo o parecer que tive a honra de relatar, contrário ao pedido de Germano Rörecke,
no sentido de ser concedida uma pensão à sua filha Anna Rörecke para aperfeiçoar-se no
estudo de pintura na Europa, foi imperada, principalmente, pelo dever de zelar pela
Constituição do Estado.

Esta, como não ignoram os srs. deputados, não confere à Assembleia dos
Representantes nem ao governo do Estado a faculdade de conceder favores nas
condições do requerido.

O sr. Pereira Parobé – Como não? Não é este o primeiro pedido que a
Assembleia atende sem infringir as suas atribuições.

O sr. Luiz Englert – Autorizando, por exemplo, o governo do Estado a


conceder um auxílio à menina Olga Fossati.

O sr. Armênio Jouvin – Foi um mau precedente[...]

O sr. Freitas Valle – Único ou não, já concedeu auxílio.

O sr. Armênio Jouvin[...] e, a meu ver, irregular. Procedeu ilegalmente.

Um sr. deputado – Muito legalmente, no uso de suas atribuições.

O sr. Pereira Parobé – A Assembleia, autorizando o governo do Estado


mandar o auxílio solicitado pela menina Olga Fossati, não exorbitou de suas atribuições.

O sr. Freitas Valle – Nem o governo do Estado.

O sr. Luiz Englert – Como vê, há exemplos.

O sr. Armênio Jouvin – Mas o fato de a Assembleia ter feito uma concessão
ilegal não justifica a benevolência com que pretendem agir os signatários da emenda,
344

benevolência até certo ponto criminosa, porque vai atentar contra a Constituição do
Estado. No pacto constitucional são taxativas todas as atribuições dos poderes públicos,
e o que não é previsto nela não tem força constitucional: é ilegal.

O sr. Pereira Parobé – Ilegal no ponto de vista do ilustre colega. O vertente


não o é no ponto de vista da maioria.

O sr. Armênio Jouvin – Pouco me importa com a opinião da maioria. Prefiro


ser vencido do que estar amparado pela maioria, que no caso vertente está exorbitando
das suas funções e votará pela concessão porque já deu o seu beneplácito à emenda, que
andou correndo como subscrição entre os membros desta casa. Convencido, asseguro
que a Assembleia não deve e não pode fazer desses favores.

O sr. Pereira Parobé – Como não pode, se já o fez, por vezes?

O sr. Armênio Jouvin – Mas abusivamente, e a existência de um abuso não


deve justificar a sua reprodução (cruzam-se apartes simultâneos entre os srs. Firmino Paim, Alcides
Cruz, Luiz Englert, Marcos de Andrade e Pereira Parobé). Respondo aos nobres deputados
com a opinião da própria comissão de petições e reclamações, na sessão do ano passado.

O sr. Luiz Englert – Mas a opinião da casa prevalece.

O sr. Armênio Jouvin – O ilustre colega dr. Luiz Englert adiantou-se, vindo
ao meu encontro, logo que falei na opinião da comissão de petições e reclamações do
ano anterior, porque ele fazia parte dela e então deu parecer negando a subvenção pedida
por Olga Fossati. Entretanto, ele em pessoa foi quem agitou a emenda em discussão,
pensando hoje de forma diversa.

O sr. Luiz Englert – No seu entender.

O sr. Armênio Jouvin – O ilustre colega não deve confessar que errou, isto
é uma desculpa. Formulado o caso, deve antes afirmar que reconhece a ilegalidade da
emenda.

O sr. Pereira Parobé – No caso da menina Olga Fossati, a Assembleia


procedeu ilegalmente, como não procederá neste.

O sr. Armênio Jouvin – Em face da Constituição, é insubsistente a opinião


do nobre deputado, e bom é que não confundamos a nossa função orçamentária com
concessões da natureza da que se pretende fazer e para as quais falece-nos competência
(continuam os apartes). Quanto à importância a despender com o aperfeiçoamento da
requerente, é uma insignificância, dizem os ilustres colegas, mas não se discute se é
insignificância ou não, o que aliás sempre será uma parcela que irá pesar no orçamento;
o que se discute é que com este ato consolida-se o precedente perigoso, aberto com a
concessão de idêntico favor a Olga Fossati, e age a Assembleia em assunto a respeito do
qual aliás não há dispositivo constitucional que o justifique.

O sr. Pereira Parobé – Há, pois não.


345

O sr. Armênio Jouvin – Qual?

O sr. Pereira Parobé – As nossas funções. Tudo quanto entende com a


receita e a despesa do Estado é da nossa competência (há outros apartes dos srs. Firmino Paim,
Marcos de Andrade, Alcides Cruz e Freitas Valle).

O sr. Armênio Jouvin – O ilustre colega mostre, cite pelo menos um texto
da Constituição em que nos dê atribuições para concessões desses favores. Mas, como
disse em começo, a intenção da comissão de petições e reclamações, ao interpor parecer
sobre o pedido de Germano Rörecke, foi evitar uma flagrante violação da nossa
Constituição.

O sr. Luiz Englert – A prevalecer a opinião de V.Exa., então ela já foi violada
com a subvenção, que a Assembleia autorizou, à menina Olga Fossati.

O sr. Armênio Jouvin – Contra o voto de V.Exa. e opinião discordante da


que ora enuncia.

O sr. Luiz Englert – Já respondi a isso. Demais, a casa resolveu.

O sr. Armênio Jouvin – V.Exa. não respondeu cousa alguma. Às


considerações, de si valiosas, que venho emitindo, acresce a não menos preponderante
de já ter a Assembleia consignado uma verba de auxílio ao Instituto de Belas Artes, sob
a condição de este obrigar-se a dar instrução gratuita em suas aulas, ou nas de outro
estabelecimento congênere, a pessoas que revelem vocação artística e não tenham meios
para cultivá-la.

O sr. Alcides Cruz – Este não preenche o desejo do requerente, por não
estar em condições de aperfeiçoar os seus conhecimentos.

O sr. Armênio Jouvin – Se não preenche o fim para que foi criado e não
pode satisfazer as condições impostas pela Assembleia não merece o auxílio, não se o dê.

O sr. Pereira Parobé – Preencherá com o tempo, pois está em início e nada
pode começar pelo fim.

Um sr. deputado – Não tem, sequer, um professor de pintura.

O sr. Armênio Jouvin – Se não tem professores, para quê dá a Assembleia


vinte contos anuais? Era o caso justo de ser cassada esta subvenção improdutiva. Além
da incompetência, que acentuei, de a Assembleia fazer a concessão de que cogita a
emenda, contraria-a, ainda, o fato de já ter ela votado uma verba para o Instituto de Belas
Artes, que está obrigado a dar matrícula em estabelecimentos congêneres aos alunos a
cujo cultivo não possam atender as suas condições.

Um sr. deputado – Não dispõe de elementos para o desenvolvimento da


cultura artística da requerente.

O sr. Alcides Cruz – Não tem uma seção de pintura.


346

O sr. Armênio Jouvin – Se, como afirmam os srs. deputados, o Instituto não
preenche o fim para que foi criado, não deve receber a subvenção; no caso contrário, que
a requerente ali se matricule.

O sr. Pereira Parobé dá um aparte.

O sr. Armênio Jouvin – Neste caso, poderia, dentro da verba que lhe foi
concedida e nos termos da concessão, determinar a matrícula da requerente na escola do
Rio de Janeiro.

O sr. Pereira Parobé – A escola do Rio manda os seus alunos à Europa para
se aperfeiçoarem.

O sr. Armênio Jouvin – O fato de o Instituto de Belas Artes do Rio mandar


à Europa os alunos que se distinguem é um prêmio e estímulo para os mesmos alunos e
não significa que ele não tenha elementos para aperfeiçoar os seus discípulos.
Respondendo à observação, em aparte, do sr. dr. Alcides Cruz, de que o Instituto de
Belas Artes do Rio de Janeiro não está em condições de aperfeiçoar os conhecimentos
da requerente, devo dizer que S.Exa. labora em equívoco. Completo ou não, está,
contudo, em condições de oferecer margem ao estudo a que ela pretende dedicar-se,
proporcionando-lhe elementos para a aprendizagem de que carece, porque o que é exato
é que os quadros que exibiu numa das salas da Assembleia nada têm de notável que se
imponham como a revelação de um gênio que não possa ser educado no Rio de Janeiro,
onde, certo, aprenderá o muito que ainda lhe falta para impor-se como artista.

O sr. Freitas Valle – Sendo pobre não poderá manter-se no Rio de Janeiro.

Um sr. deputado – S.Exa. está se contradizendo.

O sr. Luiz Englert – Já está conosco porque, mesmo para seguir para o Rio
de Janeiro, precisa de subvenção, porque é pobre.

O sr. Armênio Jouvin – Acho que ela deve ir para o Rio, porém sem
subvenção. Se efetivamente é pobre, conseguirá, com facilidade, obter matrícula gratuita.

O sr. Freitas Valle – E as despesas de viagem? E a permanência ali?

O sr. Armênio Jouvin – Nada temos com isso. As despesas de viagem que
ela obtenha por favor ou as paguem seus pais; quanto à permanência no Rio, quem a
sustenta aqui que faça o mesmo lá. Terminando, tenho a dizer que reputando ilegal,
caracteristicamente ilegal, a comissão de petições e reclamações, dando parecer contrário
ao pedido de Germano Rörecke, nada mais fez do que propugnar pela observância do
que estabelece a Constituição do Estado e, pois, não só votará contra a emenda, como
lavrará, com o seu voto, solene protesto contra semelhante infração.

O sr. Alcides Cruz – O orador diz não ter a pretensão de presumir-se


profundo conhecedor de matérias constitucionais. A um aparte do sr. Pereira Parobé –
de que não é exato, tanto que é professor – o orador responde que não, mas sim de
filosofia do direito. Continuando, diz que, entretanto, pela prática em assuntos de
347

interpretação constitucional, pelo seu tirocínio na Assembleia durante os governos dos


presidentes Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, os mais eméritos constitucionalistas
das instituições rio-grandenses, chegou à conclusão de que realmente o Estado não pode
subvencionar estabelecimentos de instrução superior. Esta é a doutrina da Constituição
de 14 de julho. Mas, como governo algum jamais se pôde conservar indiferente ao
complexo problema do ensino, com aqueles dois chefes de Estado aprendeu que,
indiretamente, oficiosamente, esse auxílio é admissível.

Em sucessivas legislaturas, a Assembleia tem votado frequentes auxílios a tais


estabelecimentos, e os governos do Estado, que também se sucederam, jamais
discordaram dessa norma. O orador repete que, oficialmente, diretamente, o Estado é
alheio à fundação e ao funcionamento de tais institutos, mas que os socorre quando eles
apelam para o seu concurso pecuniário. E, no caso sujeito ao debate, é um simples favor
pessoal que concede, não é uma medida de ordem geral em que o Estado é chamado a
amparar as belas artes. A um aparte do sr. Armênio Jouvin, de que é inconstitucional, o
orador contesta, dizendo que o que se pede, como já fez ver, é uma medida de exceção,
sem exemplo, e que para executá-la o governo tem pleno arbítrio. Não determina, não é
imperiosa, mas, pelo contrário, simplesmente autoriza, arma o presidente do Estado dos
meios precisos, caso lhe pareça oportuno pô-la em vigor. O orador entende não ser
inconstitucional. A outro aparte do sr. Armênio Jouvin sobre a competência da
Assembleia para conhecer da inconstitucionalidade dos seus atos, o orador responde que
tal atribuição não cabe às assembleias deliberantes, mas aos juízes.

O sr. deputado Joaquim Osório expende o seu modo de ver contrário ao


mesmo substitutivo. Em votação, é este aprovado.

[...]

Nada mais havendo a tratar, o sr. presidente designa para ordem do dia de
amanhã a discussão única do parecer e primeira do projeto de lei relativos ao Centro
Econômico do Rio Grande do Sul e encerra a sessão, lavrando-se esta ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA

ALCIDES DE F. CRUZ

OCTAVIO ROCHA, suplente do 2º


secretário
348

43ª SESSÃO*

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos dezesseis dias do mês de novembro de 1909, na sala das sessões da


Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde,
presentes os srs. deputados Barreto Vianna, Marcos de Andrade, Alcides Cruz, Penna de
Moraes, Octavio Rocha, Waldomiro Lima, Soares de Barcellos, Luiz Englert, Arno
Philipp, Domingos Martins, Gonçalves de Almeida, Pereira Parobé, Armênio Jouvin,
Soares de Barros, Getúlio Vargas, José Antonio Flores da Cunha, Arlindo Leal, Joaquim
Osório, Emílio Guilayn, Galdino Santiago, Salvador Pinheiro e Francisco Flores da
Cunha, é aberta a sessão; faltando com causa participada os srs. deputados Firmino Paim,
Nicolau Vergueiro, José Octavio, Freitas Valle, Sergio de Oliveira e Trajano Lopes. É lida
e aprovada a ata da sessão anterior.

EXPEDIENTE

[...]

ORDEM DO DIA

[...]

O sr. deputado Joaquim Osório, que ficara com a palavra na última sessão,
prossegue na defesa da emenda que apresentara ao n. 29 e referente à isenção dos
vencimentos dos magistrados.

O sr. Alcides Cruz (movimento de atenção) – O orador começa fazendo dele as


palavras de um sermão do padre Antônio Vieira, em que dizia “quem se escusa de falar
em público porque não pode, ainda que saiba, aceita Deus a escusa; e a quem se escusa,
porque não pode, nem sabe, talvez a não aceitem os que estão em lugar de Deus. Mas
nem a Deus, nem aos que estão em seu lugar, se pode perguntar os porquês: obedecê-los
sim, muda e cegamente.”

Pareceu-lhe ter deixado a Assembleia, após a sessão de 13, sob o peso de um


opróbrio imenso, se bem que uma voz interna lhe bradasse, conforme sentia, “clama, ne
cesses”. Amigos a quem preza sobremodo julgaram tamanho o dislate ao qualificativo
por ele dado ao “imposto”, de que este representa uma limitação, que chegou a duvidar
de ter desaprendido o que presumia saber. O próprio dr. Osório, tão delicado, de tal

* Juntamente a essa Sessão, foi transcrito o artigo de Alcides Cruz publicado no jornal A Federação de 18
de novembro de 1909, por considerá-lo importante e complementar às ideias do parlamentar, assim como
ser uma demonstração do zelo com a vida pública.
349

forma alarmou-se com o emprego daquele termo, e tão insistentes reptos lhe dirigia, que
foi preciso o ilustre sr. Almeida incumbir-se de repetir a palavra “limitação”, e, então, o
orador temeu e desconfiou ter dito alguma grande asneira. E no correr da tarde,
refletindo, e sob aquela cruel impressão, resolvera consigo próprio, se não pudesse
reabilitar-se, resignar ou o cargo de lente que ocupa na Faculdade de Direito ou a cadeira
de deputado, dada por imerecida distinção do partido, para que outro, melhor que ele e
com mais saber, o substituísse em qualquer desses lugares. À noite, porém, tomando ao
acaso um desses excelentes livros da literatura inglesa clássica, sucedeu que fosse a obra
prima de Smollett – Roderick Random, que abre com essa engenhosa parábola: um pintor,
jovem e ainda não consagrado pelo público, lançara numa tela um urso, uma coruja, um
asno e um macaco, a conversarem em grupo, e para dar-lhes maior solenidade, distinguiu
cada interlocutor com um emblema próprio da vida humana.

O urso era exibido com o garbo e a atitude de um velho, bêbado e desdentado


soldado; a coruja, encarapitada na asa de uma cafeteira, de óculos ao bico, a fingir que lia
uma gazeta, e o asno, ornado com um grande tope de compridas pontas, preso à crina, e
idêntico ao que usavam os médicos da época, na ponta da cabeleira, defrontava o macaco,
que empunhava uma palheta e pincéis. Mal concluíra o quadro, foi exposto à porta do
“atelier” e, entre os curiosos que o aplaudiam, espalhou-se que esses animais tinham por
fim cobrir de ridículo várias classes de profissionais. Não tardou que um valente oficial
reformado enveredasse pela oficina, rubro de cólera, a apostrofar que não estava tão
bêbado que não percebesse a intenção maldosa do pintor em querer ridicularizá-lo na
figura do urso e, se este já não tinha dentes, tomasse cuidado com as garras de que ainda
dispunha, para com elas tomar um desforço. Ainda não tinha dado todas as desculpas, já
o pobre artista era interrompido pela interpelação de um estudante de medicina, de
furioso aspecto e violentos impropérios; e ainda o jovem pintor não pudera desculpar-se
convenientemente, um venerando senador reclamava contra a caricatura, exatamente a
ler a gazeta da predileção dele.

Em vão o aflito pintor repetia a sua nenhuma intenção de ofender ou


particularizar quem quer que fosse: contudo as reclamações não cessavam, e, como os
clamores chegaram até os ouvidos do povo, que acudira numeroso, daí em diante o
capitão passou a ser apelidado de urso, o médico de asno e o senador de coruja.

A moralidade do apólogo lê-se logo em seguida: Leitor cristão, pelas cinco


chagas de Cristo, não te esqueças desse exemplo, enquanto te empregares na leitura das
páginas que seguem, e procura não te apropriares daquilo que é igualmente apanágio de
quinhentas pessoas diferentes. Se topares com algum característico que te reproduza
nalguma desgraciosa particularidade tua, guarda contigo a tua suspeita; lembra-te que a
feição não faz a cara e que, se bem, talvez, te distingas por um nariz garrafa, vinte e cinco
dos teus vizinhos podem ter o mesmo predicado.

De sorte que, se ele proferiu alguma asneira, muita gente também a há


proferido, e está certo que, não sendo único ignorante na sua vizinhança, na capital, no
Estado e no Brasil, consolava-se por andar em tão numerosa companhia. Podia pois ser
acusado de ignorante sem que fosse necessário praticar o alvitre que projetara. Pede ainda
licença para recordar em poucos períodos uma brilhante página do grande Eça e cita
aquela em que, num dia tórrido, o elegante Fradique aludia ao calor de agosto, o
350

estouvado companheiro, compondo a rosa da botoeira, deixou irrefletidamente escapar


a hedionda frase: – Está d’escachar.

E ainda o eco da chulice não morrera, já a aflição o lacerava, conceitua o


insigne estilista, porque fora como um pingo de sebo lançado sobre o poeta das
Lapidárias.

O orador declara que está a lhe parecer que os conceitos emitidos por ele no
decorrer da última sessão tivessem operado o efeito de um limão espremido sobre a
sabedoria da Assembleia.

Está convencido de que andou acertado e não disse asneiras. Qualificando de


“limitação” o imposto, equivalia a dizer que é uma limitação à propriedade do indivíduo,
o que não é invenção sua, mas lição que lê no mais recente jurisconsulto italiano que
estudou o assunto, Presutti, professor na Universidade de Nápoles. É o que se pode ler
da p. 354 em diante do seu livro Istituzioni di Diritto Amministrativo Italiano, e lê alguns
trechos e pede ao senhor presidente o obséquio de mandar entregar o livro ao sr. Osório,
para que S.Exa. verifique a procedência dos princípios que o orador sustenta.

Passando a outra ordem de considerações, começa dizendo que o ilustre


deputado dr. Joaquim Osório, como todos aqueles que estudam as nossas instituições e
procuram a interpretação exata de algum texto constitucional, recorrem logo à
Constituição dos Estados Unidos, procurando derivar dela os princípios do nosso direito.
E daí a grande supremacia que se procura dar à jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. O douto sr. Osório quis seguir a corrente, mas foi infeliz; procurando reforçar
os seus argumentos, invocou o nome de Taney, presidente da Suprema Corte, o que ao
orador causou surpresa. Disse anteriormente, e é ocasião de novamente lembrar, que os
fatos políticos e sobretudo da história política não podem ser encarados em absoluto,
mas só relativamente. A questão da constitucionalidade de impostos, envolvendo ou não
uma diminuição de vencimentos a ser estudada nos Estados Unidos, não deve
circunscrever-se somente ao fato, em si, mas ter em vista a história do país.

Saiba-se desde já que os impostos diretos lá têm sido estabelecidos com


grande parcimônia. A república norte-americana é assaz rica, as arcas do seu tesouro
regurgitam de dinheiro, de forma que o povo anda muito aliviado de impostos; só em
ocasiões excepcionais é que se tem lançado mão dos impostos de indústrias e profissões
e de renda. Os impostos mais comuns lá são o territorial e o de capitação, subentende-se
que este é cobrado em forma de pedágios, carruagens, animais e portas e janelas.

Cooley, invocado pelo sr. dr. Osório, e que efetivamente é um mestre,


exprime-se do modo seguinte: “A União tira a maior parte de suas rendas dos impostos
sobre a importação, mas em ocasiões excepcionais tem estabelecido taxas sobre terrenos,
profissões, indústrias, entradas, atos, contratos e sobre muitos outros objetos.” Em duas
ocasiões gravíssimas, e, portanto excepcionais, viu-se o governo dos Estados Unidos
obrigado a taxar a renda, as indústrias e as profissões, tendo sido numa delas atingidos os
magistrados.

Vem a propósito o orador impugnar a citação a respeito de Bryce, ao lado da


de Hamilton e Stony, feita pelo dr. Osório. Bryce é propriamente um crítico, à maneira
351

de Tocqueville, o célebre autor da DEMOCRACIA NA AMÉRICA, e não um jurista na


rigorosa acepção de vocábulo. Depois, os autores invocados pelo ilustre deputado
escreveram, não sobre impostos em vencimentos de magistrados, mas sobre diminuição
de vencimentos. Barbalho, a que se socorreu S.Exa., não cita Stony como partidário da
doutrina que sustenta; como também foi infeliz falando em Taney, com largo gesto de
verdadeira comoção. É, porém, preciso ver o que ocorreu em relação a Taney, que era
escravocrata, e como magistrado a sua recordação é das mais ignominiosas. É de lamentar
que o terceiro neto do coronel Thomaz Osório, o infeliz herói que a geração
contemporânea começa a compreender a sua memória cercada com o nimbo de
verdadeiro martírio, que esse, em cujas veias corre sangue tão liberal, como até mesmo
atestam as causas por que se tem batido, tenha vindo invocar Taney, magistrado pouco
escrupuloso. Quem o afirma é a história americana, pela pena de Goldwin Smith, no seu
livro ESBOÇO DE HISTÓRIA POLÍTICA DOS ESTADOS UNIDOS, obra
notabilíssima, da qual o orador fez uma versão portuguesa e que, tendo-a entregue à
LIVRARIA CLÁSSICA EDITORA, de Lisboa, contudo mandou sustar a publicação,
porque hoje não lhe agrada o trabalho e entende ser preciso uma alteração geral, que por
falta de tempo ainda não a efetuou. De um rascunho que conserva, lê os seguintes
trechos: “O princípio da squater sovereignty foi então aplicado, por induções de Douglas,
pelo Kansas Nebraska Act ao Território do Kansas, parcela da Luisiana, que tinha sido
comprada”. Como se obrasse de acordo com Douglas, Taney, que havia sido
recompensado de seus serviços prestados a A. Jackson na destruição do banco, com a
presidência (chier justice) da Suprema Corte, desviou-se das funções que lhe competiam,
por ocasião do pedido de liberdade por parte do preto Dred Scott, que comparecera
perante a Suprema Corte, e declarou que o Congresso não podia proibir a escravidão nos
territórios, reconhecendo, ao mesmo tempo, que o negro não fora pelos redatores da
Constituição reconhecido como “homem” ou como titular de qualquer direito contra o
branco, se bem que na época da elaboração da Constituição tivessem aparecido alguns
pretos libertos gozando da capacidade civil em Massachusetts e que haviam pegado em
armas por ocasião da independência[...] Com esse pronunciamento iníquo, do mais
repulsivo aspecto, Taney não conseguiu aquecer senão em insignificante grau o espírito
do partido que tencionava proteger[...] “o julgamento proferido por Taney foi uma
gratuita agressão e ao mesmo tempo um insulto à face da humanidade.” Eis a
individualidade modelo apresentada pelo dr. Osório, como padrão do magistrado brioso!
Taney era um escravocrata.

E quando, em 1862, Lincoln, a braços com a tremenda guerra civil, teve


necessidade de lançar mão de rendas, fosse de onde fossem, criou impostos que atingiram
indistintamente a todos, inclusive os vencimentos da magistratura. Foi aí que o “chief
justice” Taney, adversário do previdente Lincoln, teve ocasião de insurgir-se e de lavrar
o protesto referido por João Barbalho. É que Taney era o representante direto dos
escravagistas na Suprema Corte. Se o ilustre colega tivesse citado o nome de Jay, primeiro
presidente daquele tribunal na ordem cronológica; o segundo – Ellsworth, a grande
cabeça jurídica dos Estados Unidos, primeira no seu tempo; ou Marshall, o quarto poder
do Estado ou o 2º redator da Constituição, como foi apelidado, ou os seus sucessores
Chase, o famoso financeiro, ou Waite, ou Fuller, ou Clark, nada havia a dizer, mas o
nome de Taney não pode passar sem protesto, porque foi um magistrado parcial.

O sr. Joaquim Osório – Não nego a autoridade desses homens.


352

O sr. Alcides Cruz diz que nem ele a capacidade científica de Taney, mas a
moral. Ignora outra notabilidade americana que se tivesse ocupado da matéria.

O sr. Joaquim Osório – Hamilton e Stony.

O sr. Alcides Cruz contesta: esses apenas sustentam que os vencimentos dos
magistrados uma vez estabelecidos não podem sofrer diminuição, de acordo com a
Constituição; nenhum, porém, declara não poderem ser taxados.

O sr. Joaquim Osório dá um aparte.

O sr. Alcides Cruz diz que, quando a questão de impostos se agitou, foi por
ocasião da guerra entre o norte e o sul, e passa a ler trechos de obra recentíssima, James
Woodburn. Como vê a Assembleia, as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos
não têm e não devem exercer sobre nós a autoridade que se lhes pretende atribuir, e
mormente o ilustre colega, e para corroborar a sua afirmativa, lê novos trechos,
mostrando que a infalibilidade daquele tribunal afigura-se muito grande só no estrangeiro,
onde não chega o eco da ruidosa politicagem que lá reina.

Quanto ao de cá, a vacilação da sua jurisprudência é causa de não poder


também serem acatadas as suas decisões com passiva credulidade. Demais, dos luminares
do direito não é que se compõe o nosso Supremo Tribunal; aqueles onde se encontram
é nas cátedras das faculdades de direito, na advocacia e na magistratura dos Estados, ao
passo que, afirmando o contrário, o seu nobre colega disse que é no Supremo Tribunal
que se encontram os mestres do direito.

O imposto não é o que S.Exa. pretende. O imposto é um instrumento da ação


e do progresso social.

O sr. Joaquim Osório – Aí é que está o erro do nobre deputado.

O sr. Alcides Cruz – Vai ler então alguns trechos da obra de De Greef.

O sr. Joaquim Osório – Quem?

O sr. Alcides Cruz repete: De Greef, professor da Universidade Nova de


Bruxelas: “O imposto, forma histórica e particular da economia pública, participa, pois,
de todas as funções não somente econômicas, mas também sociais; ele não é
exclusivamente nem um fenômeno da circulação e da permuta nem um fenômeno do
consumo nem um fenômeno da produção; ele participa simultaneamente de tudo isso e
mais ainda com caracteres morais, jurídicos e políticos que fazem dele um órgão cuja
função social se prende a todo o sistema integral da sociedade”.

O sr. Joaquim Osório – Isso que ele diz são apenas ideias gerais sobre o
imposto e não destrói os meus argumentos, quando acentuei as exceções feitas pela nossa
lei sobre o imposto de vencimentos, entre os quais os que nos dizem respeito.

O sr. Alcides Cruz – Já refutou esse argumento sustentando que o subsídio


que percebem os deputados é antes a título de representação que a qualquer outro, sem
353

caráter ou de alimentação ou de remuneração; bem se presume que ninguém possa viver


da profissão de deputado ou outra semelhante.

O sr. Joaquim Osório – Então nós não percebemos ordenado?

O sr. Alcides Cruz – Não, senhor. Mas, se a Assembleia entendesse taxar os


subsídios dos deputados e mesmo os do presidente e dos secretários de Estado, o orador
votaria com muito gosto (muito bem), porque no regime republicano não há lugar para os
privilégios e exceções que levaram a França à revolução de 89.

O sr. Gonçalves de Almeida – Em 1893 e 1894 pagamos impostos sobre o


nosso subsídio.

O sr. Alcides Cruz – E de boa vontade hoje os pagaríamos.

O sr. Joaquim Osório – Donde a conclusão que, isentando-nos, a


Constituição de 14 de julho estabeleceu um privilégio.

O sr. Alcides Cruz – Na Constituição do Estado não há tal isenção. Logo,


não estabeleceu o privilégio. Chegará a esse ponto; e peço ao nobre deputado a mesma
paciência que o orador tem tido em ouvi-lo quando fala.

O sr. Joaquim Osório – Desejo ver S.Exa. justificar uma exceção e mais os
fundamentos da rebeldia da Assembleia em acatar as decisões do Supremo Tribunal
Federal contrárias, por inconstitucional, à taxação dos vencimentos dos magistrados;
decisões reiteradas.

O sr. Alcides Cruz – As manifestações do poder judiciário federal a respeito


da inconstitucionalidade dos impostos sobre vencimentos de magistrados são muitas, é
certo, mas não têm sido proferidas por unanimidade de votos, como V.Exa.
temerariamente afirmou.

O sr. Joaquim Osório – Não disse que essas decisões tenham sido proferidas
por unanimidade, mas por maioria de votos.

O sr. Alcides Cruz – Por unanimidade de votos, disse V.Exa. Disse e foi
ouvido por todos. Aqui, porém, está uma das mais recentes decisões (lê). É O DIREITO,
vol. 107, p. 206. Recurso extraordinário, n. 431, de Pernambuco (e também O DIREITO,
vol. 109, p. 237). Recorrentes, os drs. Luiz da Silva Gusmão e José Mariano Carneiro
Bezerra Cavalcanti; recorrido, o Estado de Pernambuco. Havendo as leis orçamentárias
de Pernambuco, votadas para os exercícios de 1902 a 1903 e 1903 a 1904, criado o
imposto de 15% sobre todos os vencimentos maiores de 4:200$000 por ano, os
recorrentes, juízes de direito no Estado de Pernambuco, com vencimentos superiores
àquela quantia, “ex-vi” da lei n. 329 de 8 de junho de 1898, reclamam perante a justiça
local a restituição das somas que lhes foram descontadas, fundando o seu pedido em que
as leis que reduzem, ainda que por meio de impostos, os vencimentos dos magistrados
devem ser todas como contrárias à Constituição da República.
354

O Superior Tribunal de Pernambuco, confirmando a sentença do juiz de


direito de 1ª entrância, considerou válidas as leis impugnadas e, por consequência,
improcedente a ação. Os prejudicados recorreram desta sentença para o Supremo
Tribunal Federal, que na verdade considerou procedentes aquelas reclamações e ordenou
que o Estado de Pernambuco restituísse àqueles magistrados as quantias correspondentes
aos impostos que pagaram em virtude de leis inconstitucionais, como as em que se
fundou a respectiva cobrança. Entretanto, esse julgado teve a seguinte votação:
“Pindahiba de Mattos, presidente. – Epitácio Pessoa, relator. – João Pedro. – A. do
Espírito Santo. – André Cavalcanti, vencido, porquanto podem os Estados lançar
impostos sobre os vencimentos dos funcionários estaduais, sem ofensa do artigo 57 § 1º
da Constituição da República, que expressamente se refere aos juízes federais. – Ribeiro
de Almeida, vencido, de acordo com o sr. André Cavalcanti. – Manoel Murtinho, vencido
nos termos do voto do sr. ministro André Cavalcanti. – Amaro Cavalcanti, vencido de
acordo com o voto sr. ministro André Cavalcanti. – A. A. Cardoso de Castro. – G. Natal.
– Pedro Lessa. Fui presente, Oliveira Ribeiro”.

Seis votos contra quatro; a pequena, insignificante maioria de dois!

O sr. Joaquim Osório – Em todo o caso maioria.

O sr. Alcides Cruz – Em questões científicas, os votos devem ser pesados e


não contados. Entre a minoria bastava só o voto de Amaro Cavalcanti, que em matéria
de impostos e de direito constitucional é o de mais saber naquele tribunal. É um mestre,
como prova com os seus livros; além de ser profundo conhecedor das instituições norte-
americanas, no meio das quais foi educado. Ele, que entende que a Constituição Federal
não se refere a magistrados estaduais, o seu voto é de grande peso.

O sr. Joaquim Osório – Mas a maioria?

O sr. Alcides Cruz – Que importa a maioria, se a sabedoria do Supremo


Tribunal, com franqueza, é escassa, porque os luzeiros do direito, excetuando Pedro
Lessa, Oliveira Ribeiro e Amaro Cavalcanti, lá não estão.

O sr. J. A. Flores da Cunha – Pode acrescentar – e Epitácio Pessoa.

Um sr. deputado – E o sr. Espírito Santo?

O sr. Alcides Cruz – Repete não ter assento no Supremo Tribunal.

O sr. Joaquim Osório dá um aparte.

O sr. Alcides Cruz – Mas todos os magistrados, pergunta-lhe o orador,


podem ser da estatura política e moral de um Ribeiro Dantas, de um André da Rocha, de
um Epaminondas, de um Melchisedech, de um Mibielli ou dessas duas risonhas
esperanças Mello Guimarães e Caio Cavalcanti? Porque V.Exa. não faz parte da
magistratura? Ou jovens como Maurício Cardoso? Infelizmente o escol das letras
jurídicas não está nos tribunais, por isso as suas decisões em muitos casos perdem a
autoridade que deviam ter.
355

O sr. Joaquim Osório – A presunção não é essa.

O sr. Alcides Cruz – Também ele tem a coragem de dizer que o saber jurídico
não está com a magistratura federal, mas com os professores das faculdades de direito,
os advogados notáveis e vários membros das magistraturas dos Estados, sem contudo
querer dizer que na magistratura estadual não seja muito regular o número dos
incompetentes. A prova está nos julgados do Supremo Tribunal, que constituem um
acervo de contradições (apoiados, muito bem!). Voltando ao caso debatido, não pode
considerar a opinião de Barbalho um dogma. A ela contrapõe a de Milton, assim
formulada na sua análise à Constituição da República: “Quanto a mim, creio que o
legislador constituinte não quis aqui referir-se a impostos, que são devidos para as
urgências do país por todos os cidadãos, indistintamente, e que, figurando nas leis de
orçamento, só vigentes em cada exercício, têm, por isso mesmo, caráter transitório.
Entendo, portanto, que a diminuição vedada é só a que se fizesse por modo direto e
positivo, em lei especial, de natureza permanente.”

Tal e qual o orador sustentou, no último dia de sessão, que o imposto, sendo
uma medida de ordem geral atingindo a todos os cidadãos, tinha, entretanto, a duração
por um ano, prazo restrito, e não tendo o caráter permanente, não era essa a natureza de
diminuição de vencimentos a que a Constituição queria referir-se.

Igualmente infeliz foi o douto sr. Osório, quando referiu que Barbalho citava
em abono das suas doutrinas a autoridade de Story, o sábio comentador da Constituição
dos Estados Unidos.

É exato que João Barbalho, analisando o art. 57 § 1º da Constituição Federal,


cita aquele constitucionalista para dizer (lê): “A Constituição, como lei fundamental de
governo, deve ser razoavelmente compreendida, interpretando-se suas palavras e seus
poderes de conformidade com os fins e o objeto para os quais foram conferidos esses
poderes”. Vê-se isto à p. 232 do livro de Barbalho. E tem alguma relação com os impostos
sobre vencimentos?

Pode assegurar que nem Hamilton nem Story tratam desse assunto, e muito
menos aquele jurisconsulto brasileiro os invoca para ratificar os seus argumentos sobre
tal questão.

O sr. Joaquim Osório –É Ruy Barbosa quem diz.

O sr. Alcides Cruz – Faz justiça à boa-fé do sr. Osório e provavelmente


S.Exa. foi mistificado com alguma citação falsa de opiniões daqueles jurisconsultos
americanos. Nem Ruy Barbosa diria aquilo, invocando-os de boa-fé. Ouvir-se-á agora a
opinião do Tribunal de Contas, grande autoridade em questões constitucionais,
principalmente de impostos, manifestada numa reclamação do ministro Amaro
Cavalcanti, não sobre imposto em vencimentos, mas selo de nomeação. No O DIREITO
vol. 104, outubro de 1907, p. 313, dá-se a verdadeira e jurídica interpretação ao art. 57 §
1º da Constituição. O Tribunal de Contas, em 6 de setembro desse ano, proferiu um
notabilíssimo acórdão onde constam trechos que resolvem definitivamente o incidente,
tais como no voto do diretor Viveiros de Castro, incontestável autoridade, como
magistrado, professor e autor de várias obras:
356

Desde que a comissão de finanças da Câmara (parecer relatado pelo sr. Carlos
Peixoto e assinado nesta parte sem restrições pelos deputados Francisco Veiga, Homero
Baptista, Galvão Baptista, Galeão Carvalhal, Paula Ramos, Cornélio da Fonseca, José
Euzébio, Serzedello Corrêa e Ignacio Tosta) admitiu a possibilidade de não existir a
isenção pretendida pelos juízes federais, é claro que ela não aceitou como axioma que a
taxação dos vencimentos dos mesmos juízes viole o preceito do art. 57 § 1º da
Constituição Federal[...] Preceitua a citada disposição constitucional que os vencimentos
dos juízes federais serão determinados por lei e “não poderão ser diminuídos”. Este
preceito, porém, estabeleceu apenas mais uma garantia da independência do poder
judiciário, procurou acautelá-lo contra os despeitos do governo e a condescendência dos
parlamentos partidários; não consagrou, não podia consagrar uma isenção absoluta de
qualquer tributo, porque nos regimes livres não há classes privilegiadas. Concorrer na
medida das suas forças para a manutenção do bem-estar coletivo, para assegurar o regular
funcionamento do mecanismo público-administrativo, é um dever cívico por tal forma
elevado que a isenção que outrora nobilitava as chamadas classes superiores seria hoje
considerada uma degradação, uma modalidade do que poderia chamar-se uma capitis
diminutio social.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A generalidade da taxação é, atualmente, um dogma da ciência financeira; não


se taxam indivíduos isolados, nem mesmo classes restritas, e sim agrupamentos sociais
que, apesar de aparentemente distintos, têm um característico comum. Assim, por
exemplo, o imposto contra o qual reclamam os juízes federais não recai exclusivamente
sobre a magistratura e sim sobre todos os subsídios e vencimentos, isto é, sobre todos os
que são remunerados pela prestação de um serviço público.

Ora, nestas condições, não seria absurda a hipótese de o legislador taxar


desarrazoadamente todos os servidores do país, no intuito de, por um original sistema de
ricochete, castigar algum ato de independência do Poder Judiciário? Mas admita-se,
unicamente para argumentar, que possa haver um legislador tão desorientado pela paixão
partidária que, violando os princípios básicos da ciência financeira, saltando por cima
mesmo do bom senso, estabelecesse uma taxa, elevadíssima, recaindo exclusivamente
sobre os vencimentos dos juízes federais.

Neste caso, e somente neste, o imposto seria inconstitucional, porque não


teria o característico que legitima a taxação ser determinada unicamente pela necessidade
de habilitar o poder público com os recursos indispensáveis para o regular desempenho
de suas múltiplas funções, não iria recair sobre os contribuintes “na razão das suas
respectivas faculdades”, seria um ato de força, de franca hostilidade.

Esta é a interpretação do texto constitucional que ressalta da supracitada


declaração do voto do ilustre sr. Francisco Veiga, há tantos anos presidente da comissão
de orçamento (hoje finanças) da Câmara dos Deputados[...] S.Exa., já em 1897, declarava
não considerar inconstitucional a taxação dos vencimentos dos juízes federais, porque o
imposto impugnado “não era especial nem particular à classe dos magistrados.”

Da leitura que acabo de fazer, vê a maioria da Assembleia e a ilustrada


comissão de orçamento que têm, em abono aos princípios que professa em impostos
357

sobre vencimentos, a minoria do Supremo Tribunal Federal, é certo, mas a lição de


Milton, a jurisprudência do Tribunal de Contas e a opinião da erudita e sábia comissão
de finanças da Câmara Federal[...]

O sr. Joaquim Osório – Em relação a magistrados federais.

O sr. Alcides Cruz – Com mais forte razão quanto aos estaduais, de que a
Constituição Federal não cogita. Donde pode concluir que o que vem afirmando desde
a última sessão, exuberantemente confirmado pelas doutrinas autorizadas que invocou, a
criação de imposto em vencimentos do funcionalismo público (e o magistrado é um
verdadeiro funcionário público) não implica nenhuma redução de vencimentos. Outro
erro do sr. Osório é supor que a passiva obediência à jurisprudência do Supremo Tribunal
constitui um dos princípios constitucionais da União.

Os princípios constitucionais da União ou princípios republicanos federativos


são outros. São a elegibilidade, a temporariedade, a igualdade perante a lei e outros. Nem
pode haver conflito nem desrespeito em manter o Estado o referido imposto; caso o
Supremo Tribunal dê ganho de causa a alguma reclamação nesse sentido, a decisão será
em espécie, só aproveitará ao reclamante, e o Estado acatará o aresto, como vencido, mas
não convencido, sobretudo quando está defendendo uma causa justa. A hora vai
adiantada, já se lhe fez o favor de prorrogá-la, e o orador sente a necessidade de terminar
as suas considerações. Não pretendeu nunca discursar sobre este tema.

Apenas, quando anunciado o encerramento da 2ª discussão da emenda


Osório, tomou a palavra para justificar o seu voto contra aquela, expendendo no
momento ligeiras, muito breves e despretensiosas ponderações sobre a questão agora
largamente tratada. Como a casa deve estar lembrada, veio novamente à tribuna o digno
autor da emenda, e, diante dos seus veementes discursos daquele dia e de hoje, a seu ver
completamente improcedentes, o orador não se pôde conter.

O sr. Joaquim Osório – Tudo, aqui afirmo, é procedente do que estudo.

O sr. Alcides Cruz – Em conclusão, entende que a Assembleia procede


muito lícita e regularmente, não isentando os magistrados do pagamento de impostos
sobre vencimentos, porque não vê razão por que eles procuram eximir-se à contribuição
que devem fazer para os encargos do Estado, na proporção e na medida das suas forças.
Mas, pronunciando-se desta forma, o orador afirma que empregará todos os seus
melhores esforços no sentido de serem aumentados os vencimentos dessa ilustre classe
de representantes do Estado (muito bem), a mais digna de todas e precisamente a que pior
é paga (apoiados).

Se for necessário, virá outra vez à tribuna, mas em defesa do projeto que o
ilustre colega Flores da Cunha pretende submeter à consideração da casa, no sentido de
consignar-se um pequeno aumento aos vencimentos dos juízes. Só lamenta, e
sinceramente, que esse acréscimo seja tão exíguo, tão insignificante; desejava que fosse
de cinquenta por cento.

Quanto, porém, a criar-se-lhes o regime de exceção, pretendido pela emenda


Osório, é contrário; considera os magistrados funcionários públicos do Estado, como os
358

demais, ainda que saiba haver opiniões erroneamente contrárias, e entende que, se têm
direito ao estipêndio, devem ter, ipso facto, o dever de concorrer por meio de tributações
para o custeio dos serviços a cargo do Estado. Se a administração pública é o conjunto
dos serviços públicos, o funcionamento da justiça é um deles; logo os seus representantes
não podem deixar de ser funcionários públicos e, deste modo, estão sujeitos às mesmas
obrigações que todos os demais funcionários.

Tais são os motivos por que, sustentando o parecer da comissão de


orçamento, com ela vota. E finaliza desejando que o mesmo espírito divino que do céu
baixou a Saul, quando às portas de Damasco, também converta o nobre dr. Osório em
campeão de melhor causa (muito bem, muito bem – o orador é vivamente felicitado pelos seus colegas
presentes).

Encerrada a discussão e em votação, é rejeitada a emenda, sendo aprovados o


parecer da comissão, o n. 29 da tabela e o art. 1º do projeto de lei que orça a receita do
Estado para o futuro exercício financeiro de 1910. O sr. presidente designa para ordem
do dia da seguinte a aprovação da redação da lei n. 71, concedendo isenção de impostos
à carteira hipotecária do Banco da Província, discussão única do parecer da comissão de
petições e reclamações no requerimento do dr. Antônio Moraes Fernandes, pedindo
licença para processar o sr. deputado major José Gonçalves de Almeida, primeira do
projeto de lei do sr. deputado Penna de Moraes sobre imposto de indústrias e profissões
e continuação da segunda do orçamento, entrando na parte relativa à despesa, e encerra
a sessão, lavrando-se esta ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA

ALCIDES DE F. CRUZ

J. PENNA DE MORAES
359

A MAGISTRATURA
(A Federação, 18 dez. 1909)

Escreve-nos o nosso amigo dr. Alcides Cruz:

“Prezados amigos e ilustres redatores d’A Federação:

Na impossibilidade de publicar em toda a sua íntegra o discurso por mim


proferido na sessão de 16 do passado mês de novembro, perante a Assembleia dos
Representantes, porque, como me declarou o sr. estenógrafo Leopoldo Teixeira, deixara
de apanhar grande parte do mesmo, por ter ele pensado que estava eu a ler e não a orar
– resolvi publicá-lo em resumo. E conforme vem ele n’A Federação de 13, não pode ser
revisto por mim, depois de composto, o que foi causa de relevantes incorreções
facilmente verificáveis, circunstância que, adicionada à deficiência do apanhado
taquigráfico, justifica a presente retificação.

Há, sobretudo, alguns períodos que exigem explicações, a fim de dissipar


interpretação diferente do meu modo de pensar.

Não tenho em mente qual foi o aparte do nosso ilustre amigo, dr. Joaquim
Osório, a que eu respondi da forma lida no final da quarta coluna, porque o apanhado
estenográfico apenas dizia – O sr. Joaquim Osório dá um aparte, tanto mais quando já mês
e dia são decorridos.

O que posso afirmar, sob palavra, é que o segundo período do começo da


quinta coluna nada mais tem com o aludido aparte. E, repetindo aquilo que fora
enunciado antes do aparte, deve ser lido e entendido do seguinte modo:

“Infelizmente o escol das letras jurídicas não está no Supremo Tribunal, por
isso as suas decisões, em muitos casos, perdem a autoridade que deviam ter”.

Seguem-se os apartes dos drs. Osório e Flores da Cunha, naturalmente com


relação ao Supremo Tribunal (porque a validade das suas decisões é que se debatia) e
depois:

“Sem dúvida, também o orador tem a coragem de dizer que o saber jurídico
não está com a magistratura federal, mas com os professores das faculdades de Direito,
os advogados notáveis e vários membros das magistraturas dos estados, sem contudo
querer dizer que na magistratura estadual não seja muito regular o número de
incompetentes. A prova do que acima afirmou está nos julgados do SUPREMO
TRIBUNAL, que constituem um acervo de contradições (apoiados, muito bem!)”.

Que a jurisprudência da Suprema Corte Federal não tem guardada a


indispensável uniformidade e, daí, manifesta vacilação e incoerência, confrontem-se entre
si as suas decisões acerca da responsabilidade civil do Estado em razão das faltas
360

cometidas por seus agentes, da vitaliciedade de funcionários públicos, da delegação de


funções do poder legislativo (verdadeiro absurdo), etc., que a justificação do que afirmei
não é novidade ressaltará copiosamente.

As minhas palavras foram ouvidas por todos os senhores deputados


presentes, a quem até hoje sou profundamente reconhecido pelas imerecidas felicitações
com que me honraram e, por muitas pessoas gradas, como, entre outras, o senhor
desembargador Mibielli, os drs. Ramiro Barcellos, Piratinino de Almeida, Maurício
Cardoso, Eurico Santos, o bacharelando João Neves da Fontoura, os estudantes de
direito Maciel Moreira, Odon Cavalcanti, etc.

Parece que, se apelasse para eles, não deixariam de concordar que os conceitos
expendidos por nós todos, naquele dia, não podiam visar senão a magistratura federal;
tais foram as claríssimas referências feitas. E basta considerar que só ela é que se tem
manifestado sobre o assunto debatido, impostos sobre vencimentos de magistrados, e os arestos
dela emanados é que o meu eloquente e honrado antagonista, o dr. Joaquim Osório
procurava fazer prevalecessem na resolução do caso. Eis tudo.

Se os distintos amigos quiserem publicar este recado, será mais um favor que
vos ficarei a dever.

17-XII-09

Alcides Cruz
361

Ana Silvia Volpi Scott


Departamento de Demografia/ IFCH
Núcleo de Estudos de População
Unicamp

O século XIX para Portugal e para os portugueses pode ser dividido em duas
partes. A primeira metade dos anos oitocentos foi marcada por uma grande instabilidade,
até que a perda do Brasil (1822) fosse “absorvida” e a monarquia constitucional, regida
pela carta constitucional de 1826, se consolidasse. A segunda metade foi marcada pela
chamada Regeneração, que manteve uma alternância dos partidos políticos até a
instalação da República em 1910.

Os tempos foram de dificuldades, divisões e tensões políticas, acompanhados


de dificuldades econômicas e sociais, já que a população era composta, em sua maioria,
por camponeses que enfrentavam uma vida difícil, estimulando muitos a buscar
alternativas fora da terra natal.

Os gabinetes de governo que se sucederam na monarquia constitucional lusa


tiveram imensa dificuldade em ultrapassar a situação de instabilidade que culminou, na
década de 1840, com a eclosão de várias revoltas, especialmente a Maria da Fonte (1846)
e a Patuléia (1847).

A superação das dificuldades e a entrada numa fase de relativa estabilidade


ocorreram a partir da década de 1850 e, não por acaso, ficou conhecido como período
da “Regeneração”. Uma das principais personagens foi Fontes Pereira de Melo, que
procurou estimular o desenvolvimento econômico e a modernização de Portugal.
Manteve-se como figura proeminente entre as décadas de 1850 e 1880.

Paralelamente a isso, é importante lembrar que, diante da conjuntura da perda


do Brasil (1822), a monarquia volta sua atenção para o espaço africano, especialmente
Angola, chegando inclusive a reinstalar o Conselho Ultramarino, em 1852, que havia sido
extinto quase vinte anos antes (1833).

Os esforços dos portugueses para ocupar os territórios africanos não tinham


apenas o apoio oficial da coroa, eram fortemente endossados pelas elites políticas, pois
se enxergava a possibilidade de se reeditar na África, os novos “Brasis”. Mas, em que
pese o fato do projeto ter esse duplo apoio, a população em geral continuava a ter o Brasil
como destino preferencial, atraindo mais e mais emigrantes portugueses.
362

Por outro lado, a África, ao longo do XIX, passou a ser alvo, cada vez mais
disputado pelas potências europeias, que estavam pouco interessadas ou inclinadas a
reconhecer os eventuais direitos invocados pelos portugueses sobre aqueles territórios.

A monarquia portuguesa assumia como ponto de honra assegurar a soberania


histórica que estava ameaçada pelo avanço, sobretudo, de ingleses e franceses, que tinham
como projeto comum interligar as suas respectivas colônias (ingleses no sentido norte/
sul; franceses, no sentido leste/ oeste).

Além desses países, Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália, Espanha, tinham


olhos cobiçosos sobre o continente africano. Essa disputa culminou com a chamada
“partilha da África”, realizada na conferência de Berlim (1884-1885). Ali os direitos lusos
foram reconhecidos, com apoio dos ingleses. Afinal era cômodo para os britânicos não
ter uma potência militar forte (como a França), instalada nos territórios em cobiçados.

Os acontecimentos que se seguiram, na corrida pela África e depois da


Conferência de Berlim, foram decisivos para que a monarquia lusa ficasse em posição
delicada e, para alguns, desmoralizada, diante daquilo que ficou conhecido como o
episódio do “mapa cor de rosa”.

Com base no reconhecimento do domínio de Angola e Moçambique,


sustentados no congresso de Berlim, circulou um mapa que representava a pretensão de
Portugal em estabelecer a hegemonia nos territórios (que hoje correspondem ao
Zimbábue, Zâmbia, grosso modo) e que interligavam as possessões lusas de Angola e
Moçambique (o tal mapa coloria em rosa aqueles territórios).

As pretensões lusas foram prontamente repudiadas pelos britânicos, deixando


claro que não aceitariam intromissão dos portugueses nos seus planos de estender seus
domínios da cidade do Cairo à Cidade do Cabo. Portugal não arredou pé de sua posição
que, finalmente, foi pressionado, através de um ultimato (11/01/1890), para que os
portugueses declinassem de suas pretensões. A não aceitação do ultimato poderia
desembocar em conflito a ser resolvido, através de força militar, que era absolutamente
desproporcional entre portugueses e ingleses. Por fim, sem contar com o apoio, e nem
mesmo a arbitragem de outros países europeus nas suas pretensões, Portugal teve que se
submeter à ameaça e evacuar os territórios.

Isso foi um rude golpe. Desgastou a monarquia, feriu o orgulho e o


patriotismo dos portugueses. Para piorar, o país estava novamente em situação difícil, já
que os governos da Regeneração, com sua política de desenvolvimento, haviam levado
Portugal a um enorme déficit na balança comercial, e a uma situação que penalizava cada
vez mais a população camponesa e pobre.

Nesse quadro, como seria de esperar, a emigração não cessou de crescer,


registrando na década de 1850 (início da Regeneração) uma média de 10.000 emigrantes
ao ano, que no final do século XIX alcançava cerca de 27.000 saídas anuais em média.
Foram milhares e milhares de portugueses que deixaram o país, seduzidos pela imagem
do “eldorado brasileiro” e dos “brasileiros de torna viagem”, isto é, os portugueses, que
bem-sucedidos no Brasil, voltavam às suas aldeias e vilas, ostentando riquezas, atuando
363

como beneméritos e construindo palacetes que marcaram a memória coletiva e o


patrimônio arquitetônico de algumas regiões de Portugal continental.

Tudo somado, no final do século XIX, Portugal e os portugueses assistiam,


mais uma vez ao agravamento da agitação política e social, que se iniciou com a
“humilhação” imposta através do ultimato inglês.

Foi nesse período que o Partido Republicano começou a se consolidar como


força política em Portugal, ainda que estivesse à margem do poder, embora desde a
década de 1820 as ideias republicanas tenham ganhado mais espaço que, contudo foi
freado, a partir da estabilidade alcançada pelos governos da Regeneração.

A retomada desse influxo republicano foi ganhando força a partir das décadas
de 1860 e 1870, penetrando em grupos ligados ao exército e entre os intelectuais. Pregava
o cientificismo, o positivismo e o anticlericalismo. Em 1876 formou-se o primeiro
diretório republicano, em detrimento das ideias de cunho socialista, que não tiveram
maior adesão. Não se pode deixar de mencionar, o próprio impacto da proclamação da
república no Brasil, que pode ter inspirado e, até ter servido de exemplo para o
crescimento e o estímulo dessa corrente política em terras lusas.

A situação de Portugal nas décadas finais do XIX e primeira do século XX,


que se deteriorava, a partir das mudanças imposta pelos governos da Regeneração, cada
vez mais desgastado, permitiu a afirmação do partido republicano como uma alternativa
de poder.

Mais um fato virá colocar Portugal e os portugueses na rota para a mudança


de regime. Como se não bastassem crises sucessivas que atingiam a população e o país, a
monarquia sofreu um golpe fatal que fez o país, definitivamente, guinar numa “rota
republicana”. Em primeiro de fevereiro de 1908 o rei D. Carlos e o herdeiro, o príncipe
D. Luís Filipe foram assassinados. O regicídio, que teve lugar na Praça do Comércio,
Lisboa, para muitos marcou o efetivo fim do regime monárquico, que culminou com o
golpe de 5 de outubro de 1910. Esse golpe pôs fim ao governo de D. Carlos II, que com
apenas 18 anos havia subido ao trono, depois do assassinato do pai e de seu irmão mais
velho.

Diante dos problemas que se acumulavam a República colocava-se como


alternativa para uma pátria que se livraria da corrupção, do escândalo, do compadrio.
Essas eram as bandeiras defendidas pelos políticos republicanos.

Procuravam passar uma imagem que a o regime republicano viabilizaria o fim


da crise econômica, política e social que se agravava dia após dia.

Além desse discurso, é importante frisar que o novo regime trouxe alterações
importantes no país, como o processo de laicização, buscando limitar o papel de peso
que a igreja Católica tinha na sociedade portuguesa, introduzindo a separação do Estado
e da igreja, a introdução do divórcio, entre outras medidas.

Embora saudada com esperança, inclusive no Brasil e no Rio Grande do Sul,


como se vê pela fala do Deputado Alcides Cruz na Assembleia, associada ao Congresso
364

Nacional, em 10 de outubro de 1910, o desafio era grande, pois essas medidas e outras
que caracterizavam uma legislação de vanguarda que se queria implantar em Portugal,
deveria ser aplicada a uma sociedade com estruturas demasiadamente arcaicas e
solidamente implantadas havia séculos.

Como seria de esperar, tais mudanças não seriam absorvidas com facilidade e
rapidez pelos distintos setores da população.

A Constituição de 1911, primeira republicana que entrou em vigor, deu


margem a muita instabilidade política, conflitos e confrontos entre os diversos grupos
políticos que se digladiavam pelo poder, levando a momentos muito conturbados, que se
deterioraram ainda mais com a deflagração da Grande Guerra, em 1914.

Os primeiros anos da República em Portugal foram difíceis e, certamente,


acompanhados, na medida do possível pela enorme colônia de imigrantes portugueses
instalados pelo Brasil afora e, sobretudo concentrados no Rio de Janeiro.

Na verdade os desafios postos aparecem inclusive na fala dos deputados


brasileiros, incluindo aí, Getúlio Vargas, por ocasião da saudação e apreço à não
portuguesa, pelo estabelecimento do regime republicano. A declaração do deputado Luiz
Englert, que votara a favor da manifestação, esperava que a república portuguesa
respeitasse todas as crenças religiosas, quando uma das principais lutas dos ideais
republicanos era pela laicização e pela separação do Estado e da Igreja. Sem dúvida, um
grande desafio seria o de equacionar a forte e tradicional influência da Igreja Católica,
diante do novo regime republicano.
365

ASSEMBLEIA DOS REPRESENTANTES22


(A Federação, 10 out. 1910)

À 10ª sessão, hoje, presidida pelo dr. Barreto Vianna [...].

Foi lida e aprovada a ata da sessão anterior.

No expediente foi lida a seguinte mensagem do dr. Carlos Barbosa Gonçalves,


presidente do Estado [...].

Esgotada a ordem do dia, fez uso da palavra o deputado Alcides Cruz,


justificando, em alevantadas frases, o seguinte requerimento que fez à Assembleia:

“A Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul associa-se


cordialmente ao Congresso Nacional na sua manifestação de apreço à gloriosa nação
portuguesa pelo estabelecimento do regime republicano naquela casa pátria.”

Posta em discussão, fez uso da palavra, pronunciando eloquente discurso,


apoiando o requerimento acima o deputado Getúlio Vargas.

Pediu a palavra depois o deputado Luiz Englert, que declarou apoiar a


indicação do deputado Alcides Cruz, mas na esperança que Portugal respeite todas as
crenças religiosas.

Foi aprovada unanimemente e passada em telegrama ao Congresso Nacional.

Ninguém mais fazendo uso da palavra, passou-se à ordem do dia [...].

22 A proposição repercutiu no Rio de Janeiro, centro político da nação, através de notícias sobre ela, no
âmbito de comentários sobre a revolução em Portugal e a proclamação da república, publicadas nos
principais órgãos da imprensa, como em O Século (11/10/1910); O Paiz (12/10/1910, p. 2); o Correio da
Manhã (12/10/1910); a Gazeta de Notícias (12/10/1910, primeira página).
O Jornal do Brasil (12/10/1910, primeira página) informava que o telegrama que transmitiu a moção,
assinado pelos deputados Barreto Vianna, Alcides Cruz e Octavio Rocha, foi lido no expediente da sessão
do Senado, do dia anterior; e na página 6, noticiou a apresentação da proposta na Assembleia do Rio
Grande do Sul. Na edição de 14/10/1910, o Jornal do Brasil reiterou a informação sobre a leitura da moção
em sessão do Senado Federal.
A Imprensa, veículo de Alcindo Guanabara, edição de 12/10/1910, na primeira página, destacado em
negrito, e A Notícia, edições de 11 e 12/10, na primeira página, mencionaram a Moção do deputado A.
Cruz.
366

ASSEMBLEIA DOS REPRESENTANTES


(A Federação, 14 out. 1910)

10ª Sessão

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos dez dias do mês de outubro de 1910, na sala das sessões da Assembleia
dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, à uma hora da tarde, presentes os srs.
deputados Barreto Vianna, Marcos da Andrade, Alcides Cruz, Firmino Paim, Octavio
Rocha, Soares de Barcellos, Arno Philipp, Luiz Englert, Waldomiro Lima, Emílio
Guilayn, Pereira Parobé, Gonçalves de Almeida, Nicolau Vergueiro, José Antônio Flores
da Cunha, Arlindo Leal, Getúlio Vargas e Freitas Valle, é aberta a sessão, faltando com
causa participada os srs. deputados Penna de Moraes, Armênio Jouvin, Soares de Barros
e Salvador Pinheiro.

É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

[...]
O sr. deputado Alcides Cruz, 1º secretário, fazendo uso da palavra, apresenta
e pede para ser submetida à apreciação da casa, quanto à sua oportunidade, a seguinte
proposta:

“A Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul associa-se


cordialmente ao Congresso Nacional na sua manifestação de apreço à gloriosa nação
portuguesa pelo estabelecimento do regime republicano naquela casa pátria.”

Vindo à tribuna, o sr. deputado Getúlio Vargas entende que a proposta vem
ao encontro dos desejos e aspirações dos republicanos rio-grandenses, porque a república
em Portugal já está vitoriosa.

Em discussão e em votação é a proposta aprovada; declarando o sr. deputado


Luiz Englert que votara a favor, esperando, porém, que, a exemplo da brasileira, a
república portuguesa venha a respeitar todas as crenças religiosas.

[...]
Esgotada a ordem do dia e nada mais havendo a tratar, o sr. presidente encerra
a sessão e lavra-se esta ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA, presidente

ALCIDES de F. CRUZ, 1º secretário

OCTAVIO ROCHA, suplente do 2º secretário


367

24ª SESSÃO

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos quatorze dias do mês de novembro de 1911, na sala das sessões da


Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, às quatro horas da tarde,
presentes os srs. deputados Barreto Vianna, Marcos de Andrade, Alcides Cruz, Penna de
Moraes, Firmino Paim, Octavio Rocha, Soares de Barcellos, Arno Philipp, Luiz Englert,
Trajano Lopes, Pereira Parobé, Galdino Santiago, Soares de Barros, Nicolau Vergueiro,
Francisco Flores, Joaquim Osório, Freitas Valle, José Octavio e João Benicio, é aberta a
sessão, faltando com causa participada os srs. deputados Waldomiro Lima, Salvador
Pinheiro, Arlindo Leal e Getúlio Vargas. É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

EXPEDIENTE

PARECER – A comissão de orçamento, no uso da atribuição que lhe confere


o regimento interno, vem interpor o seu parecer às emendas apresentadas, em segunda
discussão, ao orçamento da receita.

A comissão aceita a emenda do deputado Luiz Englert, especificando que a


taxa da exportação sobre fumo recaia apenas sobre o fumo não manufaturado, visando
com isso auxiliar a indústria manufatureira rio-grandense, a fabricação dos charutos,
posto que traga tal emenda um decréscimo de renda de 15:000$000 para o Estado.

Aceita a emenda do deputado Alcides Cruz, mandando que se continue a


cobrar 6% de taxa sobre o fumo exportado, sob o fundamento de que um truste
monopolizou esse comércio para a exportação, não havendo, portanto, necessidade de
proteção.

Rejeita a emenda do deputado Osório sobre as isenções, pois as que estão


consignadas na tabela n. 2 são requeridas pelos interessados com prazo, e não vê razão
para dar-se mais do que o almejado pelos exportadores.

Rejeita a emenda do deputado Alcides Cruz, aumentando o imposto de


consumo sobre a cerveja, que acha deve ser mantida, para não onerar mais esse produto.

Rejeita também a emenda do deputado Alcides Cruz sobre o imposto de


consumo sobre fumo, pois a qualidade do imposto fa-lo-á recair proporcionalmente
sobre quem fizer negócio, pagando o consumidor o selo respectivo.

Demais a tabela é feita para iniciar a cobrança do imposto, podendo-se, no


ano vindouro, corrigir quaisquer defeitos que o governo encontre na sua execução.

Sala das comissões, em Porto Alegre, 14 de novembro de 1911. – João José


Pereira Parobé, Octavio Rocha, Firmino Paim Filho, Nicolau Araújo Vergueiro, Luiz Englert.

[...]
368

ORDEM DO DIA

Continua a segunda discussão da tabela do orçamento da despesa do Estado


para 1912, sendo aprovados os títulos 5º e 6º e os arts. 2º, 3º e 4º do respectivo projeto
de lei.

Continua a segunda discussão da matéria adiada na sessão anterior, a começar


pelo n. 1 da tabela da receita, que é aprovado com o parecer da comissão de orçamento,
aceitando a emenda apresentada pelo sr. deputado Englert. São aprovados os n. 13, com
o parecer da comissão rejeitando a emenda do sr. deputado Alcides Cruz, e 14, com o
parecer da comissão aceitando a emenda do sr. deputado Alcides Cruz à tabela 1ª,
elevando a 6 % a taxa do fumo, e rejeitando a emenda do mesmo deputado à tabela 3ª.

O sr. Alcides Cruz – sr. presidente, quase que invariavelmente tenho


acompanhado a douta comissão de orçamento nos seus luminosos pareceres.

Excepcionalmente – e com pesar o digo – desta vez me afastei da trilha


seguida e não tenho acanhamento em confessá-lo, porque nessas questões de impostos,
que entendem com a economia geral do Estado, têm interesses tanto os governantes
como os governados; e quer me parecer que não há um só deputado que divirja do meu
modo de ver: devemos usar de toda a franqueza e discutir conforme as ideias mais
consentâneas, por um lado, com as necessidades do governo e, por outro lado, com as
forças dos contribuintes.

Apresentei várias emendas, mas só tomadas em conjunto poderiam ser


devidamente apreciadas. Rejeitada uma – a principal – que dizia respeito à tabela 3ª,
pouco importa que tivessem sido rejeitadas as outras e, assim entendendo, eu mesmo
votei, no atinente à elevação do imposto de consumo de cerveja, de acordo com a
comissão, porque, como disse, rejeitada a que eu propusera à tabela 3ª, ficavam sem
objetivo as que não considero principais.

O meu fim apresentando essa emenda à tabela 3ª foi, a termos de gravar um


dos dois grandes produtos da indústria rio-grandense – a cerveja e o fumo manufaturado
–, gravar, de preferência, a cerveja.

O ponto de vista a que me subordinei é tanto moral como físico, porque vejo
que nos Estados Unidos não se taxam as bebidas alcoólicas, mas proíbe-se-as por
completo, não em dois ou três Estados da grande república, mas em muitos, em quase
todos os do oeste e do sul da União, porque os americanos, povo prático por excelência,
entendem que o álcool é nocivo, aniquila o indivíduo, produzindo, ao mesmo tempo,
efeitos morais de uma consequência deplorável.

Há quem diga que a cerveja até debilita raças; não tenho elementos para
discutir questões práticas desta natureza, mas conforta-me o que disse o Kaiser que,
assistindo a um torneio olímpico internacional, em Atenas, com pesar viu que os
americanos e os ingleses venceram facilmente os alemães...

O sr. Luiz Englert – Porque os americanos e os ingleses tomam uísque.


369

O sr. Alcides Cruz – ...e atribuiu essa inferioridade alemã ao abuso da cerveja,
que não se verifica nos Estados Unidos.

Os Estados têm necessidade de aumentar as suas fontes de renda, é um fato


comum, porque não há Estado que, de ano a ano, não tenha necessidade de aumentar a
sua receita, porquanto de ano a ano também a despesa cresce igualmente; e se é mister
aumentar a nossa receita, eu preferia que esse aumento proviesse de imposto do fumo e,
sobretudo, da cerveja, do álcool, cuja exploração eu proibiria se em mim estivesse fazê-
lo (apartes simultâneos).

Considero o fumo desfiado ou migado como um produto genuinamente rio-


grandense, como também considera a ilustre comissão de orçamento.

Não considero como tal a cerveja, cuja indústria cifra-se numa mera
transformação: a cevada e o lúpulo, que a compõem, são importados e,
conseguintemente, a nossa produção agrícola nada lucra com essa transformação, ao
passo que a matéria prima do fumo desfiado ou picado é de produção estadual,
acrescendo considerar que essa indústria assegura meios de vida a um grande número de
famílias pobres, que se ocupam no fabrico dos cigarros.

Não indago se essas famílias são bem remuneradas ou exploradas pelos


negociantes, mas estou informado que há casas que pagam 1$800 por milheiro de
cigarros, sendo, entretanto, a média do preço 1$000.

Desta forma, o fumo, que é um artigo nocivo à saúde, ainda não podemos, no
entanto, prescindir dele e, sendo nocivo, por um lado, ao mesmo tempo que produzindo
benefícios, por outro, como pede a ilustre comissão de orçamento uma enorme taxação,
que equivale a 400 rs. por quilograma, a qual, adicionada à tributação de 800 rs., que paga,
de imposto federal, eleva esse ônus a 1$200 rs., gravando assim extraordinariamente essa
pequena indústria?

Tive, há pouco, em meu poder, uma relação de despesas pagas pela firma
sucessora do saudoso companheiro que teve assento nesta casa, o coronel Domingos
Martins-Pereira e Souza, pelo qual pude avaliar o gravame que pesa sobre essa indústria.

A Casa Negra, que pertence a essa firma, está tributada em cerca de 30 contos
de réis de impostos, anualmente![...]

A prevalecer o imposto proposto pela comissão de orçamento, haverá para


essa casa um aumento de despesa na importância de quase 10 contos de réis, por ano![...]

É possível que, em tais condições, um estabelecimento assim gravado deixe


lucros aos interessados, os juros, sequer, do capital empregado? É uma pergunta de difícil
resposta.

O sr. Octavio Rocha – Não é tal. Responderei. Peço a palavra.

O sr. Alcides Cruz – Folgarei com isso.


370

Um sr. deputado – O negócio dá para tudo isso. Quem paga o imposto é o


consumidor.

O sr. Alcides Cruz – Não é próspera a situação das casas produtoras[...]

O sr. Octavio Rocha – Não (apoiados). É tão próspera, que até dão prêmios
de automóveis, chalés, etc.

O sr. Alcides Cruz – Não se julgue por aparências. Nada significa uma firma
ter automóvel, dar prêmios aos consumidores dos seus produtos, manter pomposos
anúncios, para assegurar que o negócio seja ótimo.

Não estou habilitado para balancear as condições dessa firma, mas, a julgar
pelas outras, se estas não o acompanham nesse terreno, é porque a situação delas não é
lisonjeira.

O imposto de consumo é pago, pode-se dizer, não pelo consumidor


unicamente; o negociante tem de adiantar dinheiro para ter selos em casa para selar o seu
estoque, o que representa, muitas vezes, um grande capital empatado, acrescendo
considerar que a produção que não tenha saída e fique deteriorada acarreta-lhe, ipso facto,
não pequenos prejuízos, pelo fato de estar selada.

Sou partidário dos impostos de consumo, como do de exportação, porque


todos os impostos indiretos são mais liberais e de mais fácil arrecadação, mas, no caso de
termos necessidade de tributar a produção estadual, tributemos de preferência a cerveja,
porque, como ninguém ignora, a situação dos fabricantes desse produto não deixa
dúvida, é prospera.

Não quero, de forma alguma, fazer oposição aos desígnios da ilustrada


comissão de orçamento, tanto mais quanto é certo que todos nós, aqui, nos mantemos
numa mesma comunhão de ideias, mas – que me releve nos seus dignos membros – é
injusta a tributação que propõem para o fumo.

Penso ter justificado a minha emenda e o voto que pretendo dar.

Não o fiz bem, é certo (não apoiados), mas quer me parecer que com os ligeiros
argumentos que aduzi fundamentei uma e outro (muito bem, muito bem).

O sr. Octavio Rocha – sr. presidente, a comissão de orçamento, estudando


as fontes de renda do Estado, procurou, como lhe cumpria, compensar o desequilíbrio
orçamentário que vem acarretar, para a receita do ano vindouro, o desaparecimento do
imposto de 2% sobre os vencimentos dos funcionários públicos, estabelecendo uma
outra fonte de renda que fizesse face àquela supressão.

Estudando o assunto, como disse, e de inteiro acordo, na perfeita harmonia


de vistas em que vivemos com a presidência do Estado, a comissão de orçamento chegou
à conclusão de que, sem inconveniente algum, podia criar um imposto de consumo sobre
o fumo, sem com isso trazer maior ônus para a indústria.
371

Como V.Exa. sabe, sr. presidente, o imposto de consumo é uma taxa que não
recai propriamente sobre a indústria; mas, como o nome indica, é pago pelo consumidor;
e, se como disse o nosso ilustre colega dr. Alcides Cruz[...]

O sr. Alcides Cruz – Não são todos os economistas que assim pensam.

O sr. Octavio Rocha[...] o fabricante é obrigado a comprar selos para fazer


a selagem da mercadoria, além de praticar, com isso, um simples adiantamento, aumenta,
desproporcionalmente, o preço da mesma mercadoria, isto é, cobra em virtude do
imposto uma importância muito superior à que paga pelo selo.

O imposto que propusemos é, aliás, muito módico.

A comissão de orçamento deixou bem patente que, ao passo que no Rio da


Prata um maço de cigarros paga 14 centavos de imposto, o que corresponde, mais ou
menos, a 98 rs. da nossa moeda, o imposto federal é de 25 réis e de 15 réis o proposto
pela comissão, perfazendo, por conseguinte, a soma de 40 réis as duas taxas.

O argumento do meu ilustre colega, de que não é lisonjeira a situação dos


fabricantes de cigarros, não procede, porque, entre outros, os irmãos Noll, por exemplo,
gastam uma fortuna com anúncios e reclamos, dando ainda prêmios constantes de
dinheiro, automóveis, chalés, etc. Não devemos trazer para este recinto argumentos
pessoais, que são perigosos.

Que é tudo isso senão o lucro direto da indústria do fumo?

Não é demais, portanto, que a Assembleia dos Representantes, com o intuito


de compensar a diminuição de renda advinda da supressão do imposto sobre
vencimentos, estabeleça a taxa sobre fumo, taxa insignificantíssima, aliás.

O Estado precisa de renda para atender aos seus encargos e, taxando o vício,
taxando o consumo do fumo, certo não cria uma fonte de renda ilícita ou imoral.

O sr. Alcides Cruz – Devia, de preferência, taxar a cerveja.

O sr. Octavio Rocha – Esta já paga o imposto de 30 réis.

Não podemos dispensar o imposto que propomos, não só por aquele


fundamento, como porque ainda nesta sessão a Assembleia criou avultadas despesas
novas. Entre outras, citaremos o crédito extraordinário de 500 contos para a construção
do edifício da Assembleia, as propostas pelo ilustre colega dr. Osório, destinadas às
cooperativas, etc., etc.

Taxemos, portanto, o fumo e aproveitemos o produto desse imposto sobre o


vício no auxílio da indústria agrícola.

Penso, senhor presidente, com estas poucas palavras, ter justificado o parecer
da comissão de orçamento.
372

São aprovados a tabela 1ª, na parte referente a isenções, e o parecer da


comissão rejeitando a emenda do sr. deputado Osório. É aprovado o art. 1º do projeto
de lei relativo à receita. São aprovados o projeto de orçamento da despesa extraordinária
e respectiva tabela única; ficando encerrada a segunda discussão do orçamento do Estado
para 1912 e indo à respectiva comissão para redigi-lo de acordo com o vencido. São
aprovadas as redações das leis n. 100, autorizando o presidente a despender até
500:000$000 para a construção de um edifício para a Assembleia, e 101, isentando de
impostos os imóveis rurais ou urbanos adquiridos pelos institutos de ensino superior ou
técnico.

Nada mais havendo a tratar, o sr. presidente encerra a sessão, designando para
ordem do dia da seguinte a terceira discussão do projeto isentando do imposto sobre
lenha a empregada pelos vapores da navegação interior do Estado e da resolução
aprovando as despesas feitas pelo Estado no exercício de 1910, única do parecer da
comissão de orçamento e primeira do projeto, que o acompanha, relativo a cooperativas,
e lavra-se esta ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA,


presidente

FIRMINO PAIM FILHO, suplente do 1º


secretário

J. PENNA DE MORAES, 2º secretário.


373

26ª SESSÃO

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos dezessete dias do mês de novembro de 1911, na sala das sessões da


Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, às quatro horas da tarde,
presentes os srs. deputados Barreto Vianna, Marcos de Andrade, Alcides Cruz, Penna de
Moraes, Firmino Paim, Octavio Rocha, Soares de Barcellos, Arno Philipp, Luiz Englert,
Trajano Lopes, Pereira Parobé, Galdino Santiago, Soares de Barros, Nicolau Vergueiro,
Francisco Flores, Joaquim Osório, Freitas Valle, José Octavio e João Benicio, é aberta a
sessão, faltando com causa participada os srs. deputados Waldomiro Lima, Salvador
Pinheiro, Arlindo Leal e Getúlio Vargas. É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

EXPEDIENTE

[...]

ORDEM DO DIA

[...]

Vem à mesa, são lidas, apoiadas e voltam à comissão de orçamento as


seguintes emendas: “Na tabela 3ª da receita, onde se diz fumo desfiado, picado ou migado, de
procedência nacional, suprima-se de procedência nacional; onde se diz fica isenta a palha nacional,
suprima-se.”

[...]

O sr. Alcides Cruz – sr. presidente, hão de relevar-me os meus ilustres


colegas a insistência, a tenacidade com que volto a discutir a tabela 3ª do orçamento da
receita do Estado.

Posso estar em erro insistindo talvez impertinentemente (não apoiado), mas, se


o estou, sou animado pela convicção de que, quando um indivíduo esposa uma causa que
lhe parece justa, ipso facto está obrigado a, por todos os meios legais, fazer com que ela
possa triunfar, só abandonando a luta quando vencido de todo.

São atribuições exclusivas da Assembleia dos Representantes as matérias


orçamentárias, portanto, noutros termos, tudo quanto implica com a tributação de
impostos.

Ora, alargar-se a esfera do imposto de consumo – matéria delicada e complexa


de que divergem os próprios economistas – é, a meu ver, assunto de alta relevância, e por
assim entender é que, não obstante já ter emitido a minha opinião ao fundamentar as
374

emendas que apresentei por ocasião da 2ª discussão deste projeto, novamente venho
esforçar-me para que logrem a aprovação da casa.

Devo confessar, com franqueza, que não estou esperançado de que triunfem
as medidas que proponho, ao menos ficarei com a minha consciência tranquila por haver
concorrido, na medida de minhas forças, com o meu esforço, embora desvalioso (não
apoiados) para que a ilustre comissão de orçamento tivesse tido o esclarecimento, o
cuidado, a atenção, enfim, que merecem todos os assuntos que implicam com a taxação
e com a criação de novos impostos.

Devo, preliminarmente, responder a um reparo do ilustre relator da comissão


de orçamento, dr. Octávio Rocha.

Eu não pedi, como se afigurou a S.Exa., a supressão do imposto de consumo


sobre fumo, mas apenas uma redução, aliás compensada pela elevação de outra tributação
que recairia num produto que, sem dúvida, melhor comporta a taxação – a cerveja.

A questão de impostos, sr. presidente, é de excepcional gravidade.

O imposto de consumo apareceu, no Brasil, por uma circunstância muito


diferente daquela a que muita gente atribui o seu fundamento.

Segundo li em um parecer, se me não engano do relator da comissão de


finanças da Câmara Federal, sr. Anísio de Abreu, o imposto de consumo originou-se do
fato de terem as tarifas alfandegárias, no atinente à produção estrangeira, determinado
uma diminuição tal na receita geral da República, que era preciso compensar, fosse de
que maneira fosse, e, então, dizia ele, o meio mais aceitável, mais expedito, era criar-se,
para a indústria nacional, o imposto de consumo, que viria até certo ponto reparar ou,
antes, compensar o desequilíbrio verificado por efeito da aplicação daquelas tarifas.

Era, como veem os meus ilustres colegas, uma simples compensação,


porquanto, tendo, por um lado, diminuído a receita pública, era necessário, por outro
lado, suprir a decorrente deficiência de rendas (apartes dos srs. Octavio Rocha e Luiz Englert).

Já disse aqui – e não é de hoje que assim penso – sou partidário dos impostos
de consumo, por serem impostos indiretos, porque, de acordo com a escola antiga dos
economistas, o imposto indireto é o que menos grava o contribuinte e, até certo ponto,
o de mais fácil arrecadação; entretanto, não desconheço que a escola moderna proclama
que o imposto direto é preferível porque é mais sólido e o que melhor resiste às crises
econômicas.

Um sr. deputado – Propõe, então, a extinção do imposto?

O sr. Alcides Cruz – Não, senhor, tanto que venho apresentar novas
emendas gravando mais ainda a produção do fumo em bruto (cruzam-se apartes).

O sr. Octavio Rocha – Parece que os apartes contrariam o nobre colega.


375

O sr. Alcides Cruz – Não, senhor, pelo contrário, honram-me muito. Eu é


que nem sempre tenho a presença de espírito precisa para corresponder a essa gentileza,
dando respostas a todos os apartes.

Queira desculpar-me quando os não atendo.

Mas, prosseguindo, a orientação seguida até o fim do século passado era que
todos os cidadãos deviam contribuir com a sua quota de imposto para que o Estado, por
sua vez, atendesse aos seus múltiplos encargos. Predominava a teoria de que se devia
arrancar as penas da galinha sem dar atenção aos gritos dela.

Hoje se vai modificando e dois economistas modernos – De Greef, professor


da Universidade Nova de Bruxelas, e com ele Jèze, professor na Universidade de Paris,
tentam, em doutrina recentíssima, explicar por outro modo o fundamento do imposto.

Diz De Greef: “Todo o imposto é no fim de contas uma antecipação sobre a


riqueza produzida pelo concurso de fatores combinados: agentes naturais, trabalho e
capital, todos têm a sua repercussão sobre os produtores, em graus que variam segundo
a natureza e as circunstâncias sociais”.

É que todo o imposto e, mormente, o de consumo, deve consultar


circunstâncias de lugar, tempo e usos e costumes. Tudo é relativo: produtos que, em um
dado país, são gêneros de primeira necessidade noutros não o são.

Gastão Jèze diz que atualmente há um certo número de princípios que dão ao
imposto moderno uma fisionomia especial, que antes não tinha, nem mesmo no século
XIX, a saber: “1° – O imposto, sendo o cumprimento de um dever social, todos os
indivíduos devem pagá-lo. 2º – Sendo o cumprimento de um dever social, cada um deve
pagar o imposto na medida de suas forças. 3º – Devendo ser pago segundo as forças de cada
qual, há uma tendência a concluir que, para cobrar equitativamente o imposto, é preciso
conhecer exatamente as forças de cada qual. Deve-se ter em conta a situação pessoal de
cada indivíduo, indagar se ele tem dívidas ou não. Por outras palavras, os impostos devem
ser, tanto quanto possível, pessoais e não reais: os impostos reais, aqueles que não levam
em conta a situação pessoal do contribuinte, de suas dívidas, do seu encargo de família,
parecem injustos. Tal é, em particular, o caso dos impostos de consumo. 4º – Pela mesma
razão, o imposto deve ter em consideração a origem das rendas e da fortuna do
contribuinte. Aquele que aufere os seus rendimentos do seu trabalho deve ser menos
tributado que os que os tiram do seu capital (terras, prédios, valores mobiliários[...]);
outrora os governos se dirigiam, de preferência, aos impostos de consumo porque, se dizia, o
consumidor os paga sem sentir.

Hoje, porém, há uma tendência em fazê-los passar para o segundo plano, visto
que tais impostos não levam em conta alguma as forças contribuidoras dos indivíduos,
porque eles não se fazem pagar segundo suas forças por pobres e ricos; porque aqueles
que têm maior encargo de família são precisamente aqueles que maior número de
impostos de consumo pagam, e, enfim, porque os contraefeitos do imposto de consumo
sobre a indústria ou o comércio não podem ser facilmente determinados.”
376

Vê-se, senhores, quão complexa e relativa é toda esta matéria de impostos e


como é preciso ser estudada, já que a sua orientação atual diversifica da de outrora.

Todavia eu me afasto de De Greef e Jèze quanto ao chamado[...]

O sr. Luiz Englert – Jèze é partidário do imposto de consumo sobre o café,


o fumo e o álcool.

O sr. Alcides Cruz – Mas por que aconselha ele o imposto de consumo sobre
o fumo?

Exatamente porque esse imposto é o começo do monopólio pelo Estado, o


primeiro passo dado nesse sentido, e, como não ignora o nobre deputado, na França o
tabaco é monopolizado pelo Estado.

As nações modernas tendem a estabelecer vários monopólios e, num país cuja


administração o nobre deputado conhece melhor do que eu – a Alemanha –, as estradas
de ferro são exploradas pelo Estado, o que se explica perfeitamente, porque nos Estados
modernos, onde os orçamentos de despesa cada vez aumentam mais, se as rendas
crescem, paralelamente crescem as despesas, donde a necessidade de procurar outras
fontes de renda que não em novos impostos, porque os contribuintes não são
inesgotáveis.

O sr. Luiz Englert – Mas isso não prova que o imposto de consumo é um
imposto antieconômico.

O sr. Alcides Cruz – O aparte do nobre deputado vem ao encontro da minha


opinião.

Um erro donde muitos economistas partem é que o imposto de consumo não


recai sobre as classes produtoras, e daí a sua denominação.

Essa teoria, porém, é batida por De Greef e Jèze, como demonstrei, e foi por
isso que eu disse, há dias, por ocasião da 2ª discussão, que o imposto não recai
exclusivamente sobre o consumidor, mas sobre o produtor, sobre o intermediário, que é
o negociante, sobre o consumidor, enfim, verificando-se esses fenômenos: primeiro pelos
adiantamentos que o intermediário é obrigado a fazer com a aquisição de selos a fim de
selar os seus estoques[...]

O sr. Octavio Rocha – Permite um aparte?

O sr. Alcides Cruz – Pois não.

O sr. Octavio Rocha – Os impostos de consumo, no Brasil, foram criados


para atender à situação apremiante do governo do dr. Prudente de Moraes.

Desde então, foram elevados os preços de todas as mercadorias sobre as quais


recaem os impostos e, a despeito de terem cessado as causas, não cessaram os efeitos;
377

estes perduram, e nós continuamos a pagar o que consumimos pelos mesmos preços de
então![...]

Em relação ao fumo, a Argentina cobra um imposto muito mais alto, como


demonstrarei.

O sr. Alcides Cruz – Foi um dos argumentos de que se socorreu a comissão


de orçamento como justificativa da sua proposta. Entretanto, a situação da República
Argentina é mais folgada do que a nossa, pelo menos para os contribuintes (apartes
simultâneos). Além disso, a sua organização política não comporta, como a nossa, a
multiplicidade de impostos. Lá é um governo central e um municipal. Entre nós, a
tripartição governamental e administrativa da União, Estado e Município, permite aos
contribuintes pagarem impostos federais, estaduais e municipais, em que facilmente
incidem com a maior sem cerimônia (continuam os apartes, pró e contra).

Falo em tese, e não há como negar que o imposto de consumo sobre o fumo
manufaturado, tal qual propõe a comissão de orçamento, vem ferir a pequena indústria,
porque, como não ignoram os meus ilustres colegas, a manufatura do fumo é praticada
pelas pequenas fábricas, que, pobres como são, em sua maioria, dispondo de capitais
limitadíssimos[...]

O sr. Octavio Rocha – Em parte. Algumas há que dispõem de largos


recursos.

O sr. Alcides Cruz – [...]lutam com dificuldades.

O sr. Octavio Rocha – Há fábricas cujos proprietários dispõem de grandes


capitais e estão enriquecendo.

O sr. Alcides Cruz – Tal qual como outrora, na idade média, em que o fervor
religioso compelia os fiéis a erguerem templos com torres que pareciam escalar o céu, a
indústria moderna eleva fábricas com chaminés que procuram rivalizar com as torres
medievais.

O sr. Octavio Rocha – É bonita a figura.

O sr. Alcides Cruz – Corresponde, na civilização industrial, a elevação das


chaminés à antiga elevação de torres; mas a indústria da transformação de tabacos, feita
em pequenas oficinas, não se compara à da produção da cerveja, explorada em poderosas
usinas; portanto, sobre a cerveja é que, de preferência, deve recair o imposto (continuam
os apartes).

A indústria da cerveja está sendo explorada por grandes industrialistas e


atingiu à lisonjeira situação em que se acha, mas o mesmo não se dá com o fumo; a sua
manufatura está confiada à pequena indústria e, conseguintemente, a taxar-se o fumo,
será mais justo, mais consentâneo com a equidade, que o imposto incida sobre o fumo
em folha, reduzindo-o em relação à pequena indústria, isto é, ao manufaturado.
378

O sr. Octavio Rocha – Não queira o colega estabelecer um paralelo entre a


instalação de uma fábrica de cerveja e uma de preparar fumos. Não há comparação entre
uma e outra.

O sr. Alcides Cruz – Não há paralelo, estou de perfeito acordo com V.Exa.
Efetivamente, o capital empregado na instalação de uma fábrica de cerveja é muito maior
do que o preciso para uma de preparar fumos[...]

O sr. Octavio Rocha – Logo[...]

O sr. Alcides Cruz – [...]mas, por isso mesmo que é empregado um maior
capital com probabilidades de maiores lucros, maior também deve ser a tributação.

Penso, portanto, que não sou desarrazoado, propugnando pela diminuição do


imposto sobre o fumo manufaturado e carregando-o sobre o fumo em folha.

Desvaneço-me declarando que tenho comigo a opinião de competentíssima,


entendidíssima autoridade na matéria, com a qual troquei ideias neste sentido.

Proponho, portanto, que suprimam-se as seguintes contribuições e se


acrescentem também as seguintes: (lê as emendas que oferece à mesa)

Em relação ao primeiro ponto, tive o prazer de ver que a ilustre comissão de


orçamento se me antecipara, propondo uma emenda a respeito.

E é até doutrina desenvolvida pelo dr. Nilo Peçanha, no laudo que proferiu
como árbitro na questão suscitada entre os Estados do Rio Grande do Sul e Pernambuco,
esta da taxação em mercadorias que fazem o intercâmbio entre Estados da União, e, pois,
não se faz mister eu examinar mais demoradamente o assunto, uma vez que a douta
comissão de orçamento, com a apresentação de sua emenda, já aceitou esta parte da
minha proposta.

O sr. Octavio Rocha – Aliás inspirada em observação sua.

O sr. Alcides Cruz – Como vê a Assembleia, proponho a redução de uns


impostos e o estabelecimento de outros, devendo assinalar que a providência que
proponho em relação ao fumo em corda atende à consideração de entrarem no Rio
Grande, anualmente, mais de 20.000 arrobas de fumo em corda sem que o Estado possa
taxá-lo antes de tributar, com a mesma taxação, o produto similar de sua produção.
Contornaremos, no entanto, essa dificuldade, estabelecendo que pagará o imposto de 200
réis por arroba o fumo em corda proveniente do fumo em folha que não houver pago ao
Estado imposto referido. Pois que o fumo em corda confeccionado no Estado fica livre,
e o de fora, tributado.

O sr. Luiz Englert – A emenda cogita de assunto que escapa à competência


da Assembleia.

A regulamentação do imposto cabe à Secretaria da Fazenda.


379

O sr. Alcides Cruz – Bem sei que cabem ao Tesouro do Estado as instruções
para a execução da lei do orçamento, mas não é de mais que a indicação parta daqui,
porque, se somos nós que criamos o imposto, ninguém mais competente do que nós para
interpretar o modo por que ele deve ser cobrado.

Eram estas, sr. presidente, as considerações que tinha a fazer (muito bem, muito
bem).

Manda à mesa as seguintes emendas: “Tabela 3ª, imposto de consumo sobre


tabaco, requeiro que se suprimam as seguintes tributações: a) de 20 rs. por 25 gramas de
fumo estrangeiro; b) de 20 rs. por maço de palha estrangeira. E substituam-se as
seguintes: a) de 15 rs. imposta aos cigarros, por maço de vinte ou menos, pela de 10 rs.;
b) de 10 rs. por 25 gramas de fumo desfiado, picado ou migado de qualquer procedência,
inclusive do Estado, pela de cinco rs. Acrescente-se: a) fumo em folha, 300 rs. por 15
quilos; b) fumo em corda, 200 rs. por 15 quilos. Ficam isentos do imposto de consumo:
1°, o fumo de toda e qualquer natureza, isto é, ou em folha ou manufaturado, que for
exportado para o estrangeiro, a exemplo da maneira por que procede a União na cobrança
deste imposto; 2º, o fumo em corda proveniente de fumo em folha que já houver pago
o respectivo imposto. Os impostos, de 10 e 5 rs., constantes da substituição acima
proposta, deverão ser cobrados dos varejistas, quando estes expuserem a mercadoria à
venda.”

[...]

Nada mais havendo a tratar, o sr. presidente encerra a sessão, designando para
ordem do dia da seguinte a continuação da terceira discussão do orçamento; segunda do
projeto sobre as cooperativas agrícolas e dos projetos aprovados em primeira na ordem
do dia de hoje e aprovação das redações também hoje lidas no expediente, e lavra-se esta
ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA,


presidente

ALCIDES DE F. CRUZ, 1º secretário

J. PENNA DE MORAES, 2º
secretário
380

50ª SESSÃO

Presidência do sr. dr. Barreto Vianna

Aos vinte e nove dias do mês de novembro de 1913, na sala das sessões da
Assembleia dos Representantes do Estado, em Porto Alegre, às quatro horas da tarde,
presentes os srs. deputados Barreto Vianna, Alcides Cruz, Cunha Ramos, Ildefonso
Pinto, Soares de Barcellos, Arno Philipp, Álvaro Baptista, Possidônio da Cunha,
Edmundo Bastian, Eurípedes Mostardeiro, Frederico Linck, Jorge Pinto, Eurybiades
Villa, Flores da Cunha, Fredolino Prunes, Virgilino Porciúncula, Eurico Lustosa, Pelágio
de Almeida e Carlos Mangabeira, é aberta a sessão; faltando com causa participada os srs.
deputados Marcos de Andrade, Octavio de Ávila, Carlos Penafiel, Timotheo da Rosa,
Nicolau Vergueiro, Sergio de Oliveira e Alberto Rosa e, sem ela, o sr. deputado Maurício
Cardoso.

É lida e aprovada a ata da sessão anterior.

[...]

ORDEM DO DIA

São aprovados em discussão única o parecer da comissão de orçamento no


requerimento de Guilherme Fuchs e, em primeira, o respectivo projeto de lei isentando
produtos fabricados com minerais do Estado; em primeira, o projeto instituindo a
Biblioteca da Assembleia e, em segunda, o projeto relevando Vicente Mastrotti e o que
concede auxílio à sociedade agrícola municipal de Teresópolis.

Entra em segunda discussão o projeto criando impostos sobre a exportação


de gado vacum e sobre vacas abatidas em estado de gestação, sendo aprovado o art. 1°.

Entra em discussão o art. 2º, que estabelece o imposto de cinco mil réis por
cabeça sobre vacas abatidas nas charqueadas e matadouros públicos, em estado de
gestação, pelo prazo de quatro anos, a contar, de lº de junho a 30 de novembro.

O sr. Jorge Pinto – Entendo, sr. presidente, que, como disse o meu nobre
colega dr. Ildefonso Pinto, o imposto criado pelo projeto não vem prejudicar a criação,
antes é uma medida que vem concorrer para o povoamento dos nossos campos. Votaria,
por isso, a favor dela noutra ocasião que não esta, que é inoportuna, atendendo-se às
razões que já tive ocasião de mencionar, mas que vou repetir agora.

Nós, fazendeiros, temos necessidade, muitas vezes, de vender vacas para


atender a compromissos ou selecionar os nossos gados, a fim de povoar os nossos
campos com melhores raças.

O sr. Ildefonso Pinto – Não são de invernar.


381

O sr. Eurybiades Villa dá um aparte.

O sr. Jorge Pinto – V.Exa. está enganado. Inverna-se tirando-se os terneiros


das vacas e pondo-as nas invernadas para engordarem e, uma vez ali, ficam à disposição
de tropeiro, desde janeiro até maio; mas nem todas as vacas engordam nesse período, por
não estarem, por uma causa qualquer, predispostas para isso (apartes simultâneos).

As vacas velhas não têm o mesmo peso das novas; estas são sempre mais
pesadas e, daí, a preferência que lhes dão os tropeiros, que deixam as velhas nas
invernadas, onde os açougueiros vão buscá-las nos meses atingidos pela lei.

O sr. Ildefonso Pinto – Que não proíbe.

O sr. Jorge Pinto – Nisso importa o imposto, porque, muitas vezes, não se
pode dar mais 5$000 por uma vaca.

O sr. Eurybiades Villa – Mas quem paga é o consumidor.

O sr. Jorge Pinto – Acresce que no campo há gado de diversas idades, donde,
como consequência, o embaraço que vem fazer esta lei aos fazendeiros, na venda de suas
vacas velhas.

O sr. Ildefonso Pinto – V.Exa. está discutindo com a exceção e não com a
regra.

O sr. Jorge Pinto – Eu tinha uma emenda a apresentar a esse respeito, mas
desisto de tal propósito porque sei, d’antemão, que será rejeitada.

O sr. Ildefonso Pinto – Não, senhor. Nós não podemos ter pensamentos
preconcebidos, V.Exa. apresente a emenda, justifique-a, e a Assembleia apreciará.

O sr. Jorge Pinto – Não pretendo, com a minha atitude, fazer oposição
sistemática a tudo; não. Estou externando a minha opinião de conhecedor que sou do
assunto.

O sr. Ildefonso Pinto – E nós folgamos em reconhecer que o procedimento


de V.Exa. não é de oposicionista sistemático, mas de quem estuda e interessa-se pelos
problemas do Estado.

O sr. Jorge Pinto – V.Exa. disse, em seu discurso, que as reclamações dos
criadores vem ferir os interesses do Estado e não são justas, isso a propósito da falta de
um banco de crédito real. Não há tal. São justas essas reclamações, porque, quando
precisamos de dinheiro e retiramos dos bancos, fazemo-lo a juros elevadíssimos – 12 e
13 % – capitalizados de 6 em 6 meses.

O sr. Ildefonso Pinto – V.Exa. deve apresentar a emenda.


382

O sr. Jorge Pinto – Para atenuar um tanto os efeitos da lei e para facilitar aos
fazendeiros um meio de não terem um prejuízo tão grande, vou apresentar uma emenda
ao projeto em discussão.

O sr. Alcides Cruz – sr. presidente. Devo, começando, felicitar pelo conciso
e claro discurso do nosso nobre colega Jorge Pinto, por ser a opinião de quem, como
criador que é, conhece perfeitamente o assunto de que se trata.

Foi, sem dúvida, o seu discurso uma vitória para aqueles que, como eu,
entendem que o projeto é perfeitamente constitucional e de fins altamente econômicos,
porque, como viu a Assembleia, S.Exa. chegou a elogiar a comissão de orçamento pelo
patriotismo com que redigiu o mesmo.

Eu não devia tomar parte neste debate; não devia, embora tivesse ouvido no
interior do Estado, onde me demorei ultimamente, a opinião de pessoas entendidas,
quando ali circulou a notícia de que o governo pretendia lançar um imposto desta
natureza, porque, não sendo criador (há como que o preconceito de só entenderem de
certas matérias os profissionais), não saberei discutir com acerto. E esse preconceito
infelizmente está muito arraigado.

Vejo, porém, no projeto em discussão, o alargamento de uma medida que se


relaciona de perto com outras pelas quais, há cerca de vinte anos, me venho
pronunciando pela imprensa. Como colaborador de alguns jornais, bati-me por questões
atinentes à indústria extrativa e, por isso, pela conservação de várias forças vivas da
natureza, tais como preservação de matas, pesca, caça, etc., sustentando a necessidade da
intervenção dos governos nessa ordem de coisas e sustentando a necessidade de curar-se
dessas riquezas que a natureza nos prodigalizou e que têm sido, até agora, não
encaminhadas convenientemente pelos governos sul-americanos.

A indústria pecuária, segundo o modo por que é explorada entre nós – ouve-
se de pessoas competentes –, está, por assim dizer, entregue à lei da natureza. Em tais
condições, é dever do governo regulamentar-lhe a exploração, mesmo sendo uma riqueza
particular, mas que está em conexão com a riqueza pública.

Vou mais longe: vou ao ponto de entender, embora não tenha advogado o
princípio, porque pertence ao direito substantivo da União, à qual cabe legislar a respeito,
que os governos até podiam tomar a iniciativa dessa proteção em forma de verdadeira
regulamentação direta.

No caso concreto, porém, não é de regulamentação que se trata, não é de


regular uma indústria e muito menos de proibir-lhe a exploração por meio de taxação
pesada.

Se volvermos ao passado, veremos que no Rio Grande do Sul colonial,


quando ainda possessão portuguesa, como o Estado Oriental era possessão espanhola,
os governos de ambas as metrópoles firmaram acordo proibindo, sob penas severas –
consta na legislação e nos historiadores Southey e Casal –, a matança de vacas e de vitelas
e também de bois e touros para courama, senão de cinco anos para cima. Eram
383

imposições legislativas, cuja infração não era punida com impostos e sim, note-se bem,
com penas graves.

O sr. Virgilino Porciúncula – Posso afirmar que há municípios cujas


posturas estabelecem essa proibição.

O sr. Alcides Cruz – Sim, conforme vimos quando a Assembleia se


correspondeu com as municipalidades a respeito deste assunto.

Era naquela época governador de Montevidéu d. Joaquim Vianna, e vice-rei


do Brasil o marquês do Lavradio, estadista que se recomendou pelas diversas obras
reveladoras de sua sabedoria.

É de perguntar: tomou-se, então, irrefletidamente, tão enérgica medida? Foi


uma arbitrariedade do estadista?

Absolutamente não, pois que assim se atendia contra a devastação que de


modo assustador ameaçava destruir a riqueza das colônias.

Posteriormente àqueles, ainda outros governantes, ou Veiga Cabral ou Paulo


da Gama, barão de Bagé, restabeleceram aquelas medidas, de ordem restrita, não sob a
forma de impostos, mas sob a forma proibitiva.

Não sigo certas doutrinas pregadas por economistas de autoridade, porém


hoje considerados retardatários que baseiam o seu programa na inflexibilidade da fórmula
– laissez faire, laissez aller. Segundo a orientação desses economistas, a missão única do
Estado é zelar pela ordem, no interior, e, no exterior, pela segurança das fronteiras. O
direito público moderno, no entanto, não se satisfaz apenas com a manutenção da força
armada, com a aplicação da justiça e o policiamento.

A política contemporânea, o desdobramento econômico e industrial sempre


novo criam outros deveres para o Estado, sob múltiplos aspectos, que o obrigam a
intervir em assuntos de outra ordem, por interessarem de perto essa interdependência
em que na sociedade se acham os indivíduos uns para com os outros.

É isso que provoca essa nova missão dos governos modernos, sob uma forma
não expressa em leis, mas tácita, no sentido de serem tomadas umas tantas resoluções
que, parecendo estranhas, dão lugar, como a atual, a que se diga que estamos indo de
encontro à Constituição.

É errôneo este juízo, porque, se, por um lado, a nossa Constituição proíbe que
o governo regulamente profissões, por outro lado ela não proíbe que se tomem, em dados
casos, medidas de ordem policial ou tributária para melhor garantir o exercício das
mesmas.

Não cogita o projeto de uma regulamentação de comércio, como dizem os


seus antagonistas. Só regulamentaria o comércio se consignasse dispositivos dessa ordem
e que em tal importassem sob o critério de sua exploração, propondo normas de
exercício. O imposto jamais pode ser considerado uma regulamentação; demais, ele é
384

sempre transitório, nunca permanente. O modo de cobrá-lo, sim, é que pode ser
regulamentado. Mas não há economista que confunda imposto com regulamento.
Acresce que o imposto criado pelo projeto não pode, sequer de leve, embaraçar, como
se diz, a livre circulação das operações de venda, porque ele não recai tanto sobre o
vendedor, o produtor, como sobre o consumidor.

Achando-me ultimamente no interior, como já disse, durante algum tempo,


ouvi queixas profundas de fazendeiros sobre o despovoamento dos campos, sendo quase
voz geral que o remédio contra o mal estava na proibição da venda e da matança das
vacas. De alguns, cujos nomes podia citar, ouvi que tinham recomendado aos seus
capatazes não venderem vacas, fosse em que estado fosse.

O sr. Jorge Pinto dá um aparte.

O sr. Alcides Cruz – Não estou autorizado a declinar nomes; entretanto,


particularmente eu os confiarei a V.Exa.

Aproveitando o aparte, responderei a um tópico do discurso do nobre


deputado, de que me ia esquecendo.

Se é verdade, como disse o nobre colega, que os criadores, devido à seca,


epizootias e outras calamidades, se veem, muitas vezes, em sérias dificuldades pecuniárias,
senão na impossibilidade de atender aos seus compromissos, a braços com uma situação
apremiante, não é certo que a sua insolvência só possa ser dirimida com a venda de vacas,
porquanto, como S.Exa. não ignora, as grandes transações que se fazem com gado de
corte são quase que ordinariamente destinadas à aquisição de gados para criar, povoar o
campo. Não lhes aproveitaria, pois, a venda das vacas que porventura fizessem agora,
porque, se eles tiverem avultados compromissos a atender, e são, desse modo, obrigados
a dispor do pouco gado que possuem, essa operação redundaria no seu completo
prejuízo, acabariam de arruinar-se totalmente, impossibilitados como se veriam de
repovoar os seus campos, que ficariam desertos de gados[...] (apoiados e não apoiados, trocam-
se apartes entre os deputados Álvaro Baptista, Ildefonso Pinto, Virgilino Porciúncula e Jorge Pinto).

Permita-me a Assembleia que eu retome o fio de minhas despretensiosas e,


quiçá, inaproveitáveis considerações (não apoiados), a que não posso dar o nome e o caráter
de argumentação, tanto mais que, além de não ter tido tempo de fazer um estudo
completo, poderia ter várias pretensões, menos a de orador.

Vozes – Mas está discutindo muito bem.

O sr. Alcides Cruz – Cingindo-me propriamente ao projeto, deixo de discutir


o art. 1º porque não foi impugnado; passou unanimemente. Quanto ao art. 2º, que diz:
“Ficam gravadas do imposto de 5$000 por cabeça as vacas abatidas nas charqueadas,
etc.”, bem deixa ver desde logo que o imposto não vai recair sobre o criador, porém
sobre o consumidor de fora, e, assim sendo, pergunto aos srs. criadores que têm assento
nesta casa: o charque produzido pela indústria rio-grandense é consumido no Rio
Grande? (trocam-se vários apartes)
385

O sacrifício decorrente do disposto do art. 2º do projeto vai pesar sobre os


nossos patrícios? Todo esse charque é vendido nos Estados do norte do Brasil (continuam
os apartes).

Além de que essa é uma lei antiquíssima, a que proíbe a matança de vacas em
período de gestação. Não é novidade alguma. Não posso afirmar, não asseguro; creio,
entretanto, que a mais antiga das nossas leis municipais, a de lº de outubro de 1828, a
fonte do direito municipal brasileiro, já dispunha nesse sentido. Mas, como disse, não
afirmo.

O sr. Jorge Pinto – Mas presentemente é inoportuna a sua aplicação.

Um sr. representante – Ao contrário, é inadiável.

O sr. Álvaro Baptista – Se não contesta a sua utilidade, reconhece


implicitamente a sua constitucionalidade.

O sr. Ildefonso Pinto – Demais, não se trata de uma inovação.

O sr. Alcides Cruz – Não é uma inovação, como acertadamente diz o nobre
deputado dr. Ildefonso Pinto, nem também se trata de um imposto com caráter de
definitivo, mas apenas transitório. Por que, então, essa grita, esse alarme?

Isso não se justifica. Acredito que os criadores, classe das que mais considero
e que lamento não fazer parte dela, ficou alarmada mais pela falta de esclarecimentos
completos, que ainda não lhe foram dados, que pelas consequências do imposto em si.

Termino, sr. presidente, pedindo licença à casa para, dando o meu voto
inteiramente favorável ao projeto, declarar que assim procedendo poderei errar, mas
errarei convencido de sua oportunidade e porque, se errar, erro de boa-fé. Não tenho
receio de assumir a responsabilidade que possa decorrer daí. Julgar-me-ia indigno do
exercício do mandato do povo rio-grandense, que me tem sido confiado bondosamente
por várias legislaturas, se não fosse este o meu procedimento. Também acredito na boa-
fé dos srs. criadores e empenho a minha palavra de honra que eles procedem de boa-fé,
mas, com a mesma sinceridade com que digo isto, hão de permitir que, ao lado da ótima
intenção da classe, tão extemporaneamente alarmada, entreveja os pescadores de águas
turvas, que surgem sempre que se trata de novos impostos, os quais, não tendo estudado
as causas e as circunstâncias complexas que exigem o seu estabelecimento, acusam logo
o governo do propósito de querer oprimir os contribuintes, sem nenhuma consideração.

Mas haverá Estado que tenha podido dispensar tais contribuições? Se há


algum, confessar-me-ei vencido, ter incorrido em censura e me penitenciarei (muito bem,
muito bem – o orador é vivamente felicitado).

O sr. Ildefonso Pinto – Penso, sr. presidente, que o assunto não está
propriamente em debate, porquanto a única opinião que se manifestou contrária ao
imposto tal qual estabelece o projeto foi a do nosso ilustre colega dr. Jorge Pinto.
386

Nos termos, porém, em que S.Exa. discutiu a questão, com assinalada e


patriótica elevação de vistas, mostrou que não o fez obedecendo a pensamentos
preconcebidos, tampouco de hostilização, por exigências políticas, ao patriótico
movimento da Assembleia instituindo esse imposto.

O sr. Jorge Pinto – Estou de acordo com a medida. Acho-a, porém,


inoportuna.

O sr. Ildefonso Pinto – Perfeitamente. S.Exa. não é infenso à lei, apenas


discorda, quanto à sua oportunidade, por um modo de ver diferente do nosso, mas isso
porque encerra o problema da indústria pecuária e o repovoamento dos nossos campos
por um prisma diverso.

Sobre o objeto do projeto em discussão, isto é, em relação ao imposto sobre


exportação de gado e sobre a matança de vacas em período de prenhez, estou plenamente
autorizado a declarar que o governo do Estado é de todo em todo solidário com ele, e,
oportunamente, na próxima sessão, ocupar-me-ei do assunto, não para estabelecer
debate, perfeitamente dispensável em face do pronunciamento do ilustre deputado dr.
Jorge Pinto, mas tão somente para acentuar ainda mais, se possível, que a Assembleia não
está agindo de encontro aos interesses do Rio Grande, como se procura insinuar.

O projeto, como está redigido, tem despertado alguns protestos. Ainda hoje
chegaram à mesa telegramas dos intendentes de dois municípios, convindo, portanto, que
a Assembleia se manifeste, isto é, que declare ao Rio Grande do Sul que não tem o intuito
de prejudicar os seus interesses, mas que, ao contrário, o seu desejo, o seu objetivo é
puramente antepor-se a prejuízos que vão se acentuando, assustadoramente, na sua
principal indústria.

Para isso, como satisfação à opinião pública, tão extemporaneamente


alarmada, na próxima sessão tratarei do assunto para reduzi-lo aos seus verdadeiros
termos.

Encerrada a discussão e em votação, é aprovado o art. 2°. A segunda discussão


do projeto fica encerrada com a aprovação do art. 3º.

Nada mais havendo a tratar, o sr. presidente encerra a sessão, designando para
ordem do dia da seguinte a redação da lei lida no expediente, a segunda discussão dos
projetos de lei que hoje passaram em primeira e terceira do que foi votado em segunda,
e lavra-se esta ata.

MANOEL THEOPHILO BARRETO VIANNA, presidente

ALCIDES DE F. CRUZ, lº secretário

FRANCISCO DA CUNHA RAMOS, 2º secretário


387

Depoimentos
Pós-Mortem
388

ALCIDES CRUZ, POR ANDRADE NEVES


NETO

DR. ALCIDES CRUZ23

A vida do Dr. Alcides Cruz foi um edificante exemplo de esforço próprio.

Tendo sido empregado da antiga Estrada de Ferro de Porto Alegre a


Uruguaiana, ainda muito jovem, passou a funcionário do Tesouro do Estado, dedicando
as horas vagas ao estudo, nunca malgastando, desde o começo, o seu tempo. Ao
contrário, trabalhando aturadamente, logrou, por si mesmo, se formar em direito pela
Faculdade de São Paulo, onde ia prestar exames vagos na época própria, não podendo
então, durante os cursos escolares, dispensar nem se alheiar das funções aqui de
empregado público.

Nele madrugando assim tão prematuramente o gosto de estudo e o interesse


por uma leitura tanto quanto possível enciclopédica, se deu apaixonadamente a uma
existência recolhida e tenaz de estudioso, o que lhe estava valendo, em plena maturidade
do espírito, única cultura vantajosa e variada que, além de útil aos seus interesses
profissionais de advogado laborioso, lhe conferiram autoridade suficiente para se tornar
um dos mais valiosos auxiliares, de reconhecida confiança da suprema direção do Partido
Republicano Rio-grandense.

Na intimidade, na sua vida particular, era de um temperamento bondoso e


generoso, desbordando simpatias gerais, por entre seus amigos, alunos e admiradores.

A sua extensa ilustração, quer como advogado e professor, quer literária e


científica, tornaram-no bastante aproveitável, na vida pública, a múltiplos encargos.

Lente substituto, depois catedrático da cadeira de Ciência da Administração e


Direito Administrativo, na Faculdade de Direito desta Capital, escreveu duas obras
didáticas, de larga extração no meio acadêmico brasileiro, sobretudo em S. Paulo e Rio,
onde uma delas já anda na 2ª edição.

Livro nacional que no Brasil chega à 2ª edição, é obra consagrada quase de


modo definitivo. A 2ª edição de 1914, como a 1ª do seu Direito Administrativo Brasileiro, é
feita na casa Francisco Alves & Cia., do Rio de Janeiro, que adquiriu a propriedade desse
livro.

Publicou, antes disso, a única versão autorizada dos Princípios Gerais de Direito
Constitucional dos Estados Unidos, por Thomaz Cooley. A tradução dessa obra, que foi

23 Publicado no Almanack Litterario e Estatistico do Rio Grande do Sul, Rio Grande: Pintos & Cia., Livraria
Americana, 1917.
389

editada na Livraria Echenique, desta Capital, é, também, muito procurada nos mercados
do Rio e São Paulo.

Além dessas obras, está no prelo, em via de sair à luz, outro notável volume,
Demarcação e divisão de terras, comprado ao autor pelos mesmos livreiros cariocas Francisco
Alves & Cia.

Além dessas obras de maior fôlego, escreveu muitos outros livretos e


opúsculos, salientando-se entre estes – O Jogador, tradução esgotada, de Th. Dostoiewsky
(1892); A propósito da questão das Missões: Barão do Rio Branco (1895); Vida de Raphael Pinto
Bandeira, impressos todos pela firma Pintos & Cia, desta praça.

Escreveu também traduções da obra científica de Martius quanto às partes


que se referem à passagem deste naturalista pelo nosso Estado e muitos outros escritos
deste gênero.

Mantinha com alguns estrangeiros em evidência, entre eles o sábio professor


Bramer, Stanford University, correspondência mais ou menos assídua.

Os três últimos números do Annuario do Estado do Rio Grande do Sul estiveram


sob sua direção, publicação que lhe fora confiada pelo ilustre patrício Dr. Graciano de
Azambuja, ainda em vida deste. Tanto sob a direção do Dr. Alcides Cruz, como deste, o
Annuario é um dos melhores repositórios, no seu gênero, que tem aparecido no país. Em
todos os seus números figuram diversos escritos de valor, do nosso infatigável
correligionário.

O Dr. Alcides Cruz foi, há tempos, nomeado representante do Patrimônio


Nacional, nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cargo federal logo
em seguida suprimido.

Ultimamente, granjeava em sua profissão nomeada de advogado hábil e


brilhante, tendo vasta clientela.

Na política, onde militou, desde acadêmico, no nosso partido, constituía, com


o nosso amigo Antônio Soares de Barcellos, os dois deputados estaduais mais antigos,
tendo sido reeleitos sucessivamente em diversas legislaturas.

Serviu na campanha, durante a revolução de 1893, com as forças legais


castilhistas. Era, então, capitão do 7º batalhão da Guarda Nacional.

Devido aos seus trabalhos de caráter histórico, que eram uma de suas
predileções, foi eleito membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

As colunas d’A Federação sempre tiveram sua colaboração intelectual de


primeira ordem, quer pelas questões abordadas, quer pela profundidade e ilustração que
revelava ao discuti-las, e assim como outras folhas e revistas desta capital, de algumas das
quais ocupou o primeiro ou os primeiros lugares no corpo redatorial.
390

Na tribuna do júri, foi, como promotor público desta Capital, funcionário do


Estado zeloso, ativo e de assinalada competência jurídica.

Advogou, outrora, durante uma parte da sua carreira, no foro da Encruzilhada,


em cujo meio deixou grande círculo de amigos.

Um parecer, notável pela sua meticulosidade e segurança de varões, na questão


de limites entre dois municípios deste Estado, Santo Antônio da Patrulha e Conceição
do Arroio, firmou seus dotes como árbitro exímio e criterioso.

Longe iríamos se pretendêssemos, numa notícia necrológica, esmiuçar todos


os pontos biográficos de sua laboriosidade e de sua excelente e limpa folha corrida de
serviços partidários.

O Dr. Alcides de Freitas Cruz enfermara há cerca de dez meses, de pertinaz


doença que veio agora vitimá-lo, com 49 anos apenas de idade. (Faleceu na madrugada
de 14 de Março de 1916).

Era natural de Porto Alegre, onde tinha dilatadas relações devido ao seu
caráter prestimoso e à sua têmpera de cidadão bondoso e culto. Era irmão do professor
Dr. Leopoldo de Freitas, da Faculdade de Direito de São Paulo, jornalista, escritor
também distinto.

Deixa viúva a Exma. Sra. D. Severina Pereira da Cruz e uma filha menor, Zoé
Pereira da Cruz. (De A Federação, Porto Alegre)

Com a morte de Alcides Cruz apaga-se para a vida terrena uma das mais belas
organizações morais e intelectuais do Rio Grande do Sul contemporâneo.

Alcides de Freitas Cruz, que conhecemos desde os bancos acadêmicos,


mesmo em verdes anos era um tipo antigo pelos seus modos, pela sua conduta social,
pela maneira ponderada, calma, de ver as coisas, pelo seu modo de viver e pelos seus
métodos de estudo.

Alcides fora um bom estudante.

Nunca estivemos em condições de bem avaliar um bom estudante; não se


perde, porém, com isso o direito de admirar os passos e a vida de um estudioso, como
Alcides Cruz, pelas consequências práticas desse lado fundamental do seu forte talento.

A sua inteligência desde cedo se disciplinara no estudo das matemáticas,


conseguindo ele, ainda muito jovem, carta de agrimensor. Talvez assim se expliquem os
seus severos métodos de indagação e de estudo de várias ciências, entre as quais a
História, principalmente no que respeita à vida nacional, que teve as preferências da sua
indiscutível capacidade.

Neste particular, entre os seus melhores trabalhos publicados, notam-se


Raphael Pinto Bandeira e Marquês de Barbacena.
391

Naquele, a figura do ilustre rio-grandense é estudada à luz de um critério


histórico superior, amparada por larga e minuciosa pesquisa em que a documentação dos
fatos positivos põe em relevo, bem desenhada e esculpida, a personalidade do general.

O outro é, também, serviço de alta monta às letras pátrias. Sua primeira parte
constituiu o objeto de uma erudita conferência na sala do Grêmio Gaúcho, em Porto Alegre.
Nela é estudada a fisionomia moral e política do marquês, cujos serviços públicos foram
esquecidos pelos contemporâneos e mal julgados pelos pósteros, que nele só viam um
soldado imprevidente ou criminoso, envolvido na poeira de Ituzaingo.

Tudo o que se referia à nossa crônica, às nossas tradições, aos nossos


costumes interessava ao ilustre mestre; episódios da vida rio-grandense da idade militar e
guerreira, estudo de individualidades do passado, ele os palpou, observou e fê-los, afinal,
reviver das cinzas do esquecimento,

A nossa pequena arte de construções navais mereceu sua atenção, tendo ele,
sobre o assunto, feito uma curiosa publicação, salvo engano, na extinta Folha da Tarde, de
João José Cezar.

Lente da Academia de Direito de Porto Alegre, deixa um livro de Direito


Administrativo, estimado igualmente por estudantes e professores.

Alcides militou na política, porém sem ambições. Parece mesmo que a bem
de ser deputado estadual foi muito instado. A sua dedicação a um programa político
datava mais de sua índole ordeira que de uma convicção na excelência de dados
princípios. A política é a ordem.

Foi essa a política de Alcides.

Nem mesmo o eminente Castilhos despertou-lhe entusiasmo. Ele admirava


mais no estadista o defensor da ordem que o político e o filósofo. Assim é que, sendo
um escritor, um jornalista e um orador, são nenhumas as manifestações da sua
inteligência em tal caráter.

Nesse sentido teria mais afeição que convicção.

Vemos mesmo como, em relação aos homens públicos, o escritor manifestava


sempre mais admiração pelos homens do Império e da Colônia que pelos homens da
República.

Cabe ainda dizer nestas linhas que Alcides Cruz foi um filho exemplar que
teve pela bondosa mãe uma dedicação sem igual, dedicação de todas as horas e de todos
os seus pensamentos.

A lealdade e a pureza com que cultivava as suas relações de amizade, unidas


às suas maneiras simples, dos tipos verdadeiramente superiores, conquistavam o respeito
de todos.
392

Estas palavras de homenagem do amigo nem por o serem são suspeitas. Não
seria decerto airoso fazer lisonja à memória de um homem que amava sobretudo a
verdade.

Andrade Neves

Do Diário do Interior (Santa Maria)


393

DR. ALCIDES CRUZ24

A morte riscou hoje, à 0 hora, da nossa lista republicana de correligionários


convictos e disciplinados, o nome do dr. Alcides de Freitas Cruz.

Esse claro que se acaba de abrir nas nossas fileiras partidárias, rouba-nos um
dos mais dedicados servidores, a quem nos prendiam estreitos vínculos de ardor e
confiança política mútua.

Vale a pena, a traços breves, referir que a vida do dr. Alcides Cruz foi um
edificante exemplo de esforço próprio.

Tendo sido empregado da antiga Estrada de Ferro de Porto Alegre a


Uruguaiana, ainda muito jovem, passou a funcionário do Tesouro do Estado, dedicando
as horas vagas ao estudo, nunca malgastando, desde o começo, o seu tempo. Ao
contrário, trabalhando aturadamente, logrou, por si mesmo, se formar em direito pela
Faculdade de S. Paulo, onde ia prestar exames vagos, na época própria, não podendo,
então, durante os exercícios escolares, dispensar nem se alhear das suas funções aqui de
empregado público.

Nele madrugando assim tão prematuramente o gosto do estudo e o interesse


por uma leitura tanto quanto possível enciclopédica, se deu apaixonadamente a uma
existência recolhida e tenaz de estudioso, o que lhe estava valendo, em plena maturidade
de espírito, uma cultura vantajosa e variada, que, além de útil aos seus interesses
profissionais de advogado laborioso, conferiram-lhe autoridade suficiente para se tornar
um dos mais valiosos e modestos auxiliares e de reconhecida confiança da suprema
direção do partido republicano rio-grandense.

Na intimidade, na sua vida particular, era de um temperamento bondoso e


generoso, desbordando simpatias gerais por entre seus amigos, alunos e admiradores.

A sua extensa ilustração, quer como advogado e professor, quer literária e


científica, tornaram-no bastante aproveitável a vida pública a múltiplos encargos.

Lente substituto, depois catedrático da cadeira de Ciência da Administração e


Direito Administrativo da Faculdade Livre de Direito desta capital, escreveu duas obras
didáticas de larga extração no meio acadêmico brasileiro, sobretudo em S. Paulo e Rio,
onde uma delas já está na 2ª edição.

Livro nacional que no Brasil chega à 2ª edição é obra consagrada quase de


modo definitivo. A 2ª edição, de 1914, como a primeira, de seu Direito Administrativo
Brasileiro, é feita na casa Francisco Alves & Cia., do Rio de Janeiro, que adquiriu a
propriedade desse livro.

24 Na 2ª Sessão, datada de 29 de setembro de 1916, presidida pelo dr. Barreto Vianna, os deputados
homenageiam três parlamentares falecidos: dr. Alcides de Freitas Cruz, coronel Antônio Soares de
Barcellos e dr. João José Pereira Parobé. A homenagem se estende com a leitura dos obituários publicados
em A Federação. Na sequência, transcreveu-se o obituário de Alcides Cruz extraído da edição original do
jornal, de 14 de março de 1916, intitulado “DR. ALCIDES CRUZ”.
394

Figura 9 – Jornal A Federação, 14 mar. 1916.


395

Escreveu antes a única versão autorizada dos Princípios Gerais de Direito


Constitucional dos Estados Unidos por Thomas Cooley. A tradução dessa obra pelo dr.
Alcides Cruz, que foi editada na “Livraria Echenique”, desta capital, é também muito
procurada nos mercados do Rio e S. Paulo.

Além dessas obras, está no prelo, em via de sair à luz, outro notável volume
de grande utilidade, da lavra do ilustrado morto – Demarcação e divisão de terras, comprada
ao autor pelos mesmos livreiros cariocas Francisco Alves & Cia.

Além dessas obras de maior fôlego, escreveu muitos outros livretos e


opúsculos, salientando-se entre esses últimos – “O Jogador”, tradução, esgotada, do Le
Joueur de Th. Dostoiewsky, (1892); “A propósito da questão das Missões”; “Barão do Rio Branco”
(1895); “Vida de Rafael Pinto Bandeira”, com estampas, impressos todos pela antiga firma
Pintos & Cia., desta praça, escreveu também traduções da obra científica de Martius,
quanto às partes que se referem à passagem deste naturalista pelo nosso Estado e muitos
outros escritos desse gênero. Mantinha com alguns estrangeiros em evidência, entre eles
o prof. Branner da “Stanford University”, correspondência mais ou menos assídua. Os
três últimos números do Annuario do Estado do Rio Grande do Sul estiveram sob sua direção,
publicação da casa Krahe & Cia., que lhe foi confiada pelo ilustre patrício dr. Graciano
de Azambuja, ainda em vida deste. Tanto sob a direção do dr. Alcides Cruz, como deste,
o “Annuario” é um dos melhores repositórios no seu gênero, que tem aparecido no país.
Em todos os seus números, figuram diversos escritos de valor do nosso infatigável
correligionário.

O dr. Alcides Cruz foi, há tempos, nomeado representante do Patrimônio


Nacional, nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande, cargo federal logo em
seguida suprimido.

Ultimamente granjeara em sua profissão nomeada de advogado hábil e


brilhante, tendo vasta clientela.

Na política, onde militou desde acadêmico, no nosso partido, constituía, hoje,


com o nosso amigo coronel Antônio Soares de Barcellos, os dois deputados estaduais
mais antigos, tendo sido reeleitos, sucessivamente, em diversas legislaturas.

Era, também, de há muito, membro da mesa da Assembleia dos


Representantes, como 1º secretário.

Serviu na campanha, durante a revolução de 1893, com as forças legais


castilhistas. Era, então, capitão do 7º Batalhão da Guarda Nacional.

Devido aos seus trabalhos de caráter histórico, que eram uma de suas
predileções, eleito membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro.

As colunas de “A Federação” sempre tiveram sua colaboração intelectual de


primeira ordem, quer pelas questões abordadas, quer pela profundidade e ilustração que
revelava ao discuti-las, assim como outras folhas e revistas desta capital, de algumas das
quais ocupou os primeiros lugares no corpo redatorial.
396

Na tribuna do júri, foi, como promotor público desta capital, funcionário do


Estado zeloso, ativo e de assinalada competência jurídica.

Advogou, outrora, durante uma parte de sua carreira, no foro de


Encruzilhadas, em cujo meio deixou grande círculo de amigos.

Um parecer notável pela sua meticulosidade e segurança de razões, na questão


de limites entre dois municípios deste Estado, Santo Antônio da Patrulha e Conceição
do Arroio, firmou seus dotes como árbitro exímio e criterioso.

Longe iríamos se pretendêssemos, numa notícia necrológica, esmiudar todos


os pontos biográficos de sua laboriosidade e de sua excelente e limpa folha corrida de
serviços partidários.

O dr. Alcides de Freitas Cruz enfermara há cerca de dez meses de pertinaz


doença, que veio, agora, vitimá-lo, com 49 anos apenas de idade. Era natural de Porto
Alegre, onde tinha dilatadas relações devido ao seu caráter prestimoso e à sua têmpera de
cidadão bondoso e culto. Era irmão do prof. dr. Leopoldo de Freitas, da Faculdade de
Direito de S. Paulo, jornalista e escritor também distinto.

Deixa viúva a Exma. sra. d. Severina Pereira da Cruz e uma filha menor, Zoé
Pereira da Cruz.

O seu enterro realiza-se esta tarde, às 16 horas, saindo o féretro da rua Coronel
Fernando Machado n. 1 (Alto da Bronze) para a Igreja do Nosso Senhor dos Passos,
onde se fará a encomendação.

Apenas teve conhecimento da triste ocorrência, o presidente Barreto Vianna


mandou içar à meia-haste, à frente do edifício, o pavilhão rio-grandense; suspender o
expediente da secretaria e colocar sobre o féretro uma coroa com a inscrição – Homenagem
da Assembleia dos Representantes.

O coronel Marcos nomeou os srs. coronel Luiz da Rocha Faria, dr. Oswaldo
Vergara e capitão Fernando Miranda para representar o Centro Republicano Júlio de
Castilhos nas cerimônias do sepultamento do dr. Alcides Cruz.
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SÉRIE PERFIS PARLAMENTARES
1 João Neves da Fontoura: discursos (1921-1928)
2 Getúlio Vargas: discursos (1903-1929)
3 José Antônio Flores da Cunha: discursos (1909-1930)
4 Oswaldo Aranha: discursos (1916-1931)
5 A.J. Renner: perfil, discursos e artigos (1931-1952)
6 João Goulart: perfil, discursos e depoimentos (1919-1976)
7 Carlos Santos: trajetória biográfica
8 Leonel Brizola: perfil, discursos e depoimentos (1922-2004)
9 Bento Gonçalves da Silva: atas, propostas e resoluções da Primeira Legislatura da
Assembléia Provincial (1835-1836)
10 Joaquim Francisco de Assis Brasil: perfil biográfico e discursos (1857-1938)
11 Suely de Oliveira: perfil biográfico, depoimentos e discursos (1915-1994)
12 Fernando Ferrari: perfil biográfico, discursos no Parlamento Gaúcho e imagens
(1947-1951)
13 Gaspar Silveira Martins: perfil biográfico, discursos e atuação política na
Assembleia Provincial

Fontes utilizadas na editoração desta obra:


Nos textos: Garamond, 10pt. Constantia. Book Old Style.
Capa: UpperEastSide

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