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RELEITURAS DA HISTÓRIA

DO RIO GRANDE DO SUL

- 2011 -
CORAG – Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas

Diretor-presidente:
Homero Alves Paim

Diretor Administrativo-financeiro:
Dorvalino Santana Alvarez

Diretor Industrial:
Antônio Alexis Trescastro da Silva

DIREITOS RESERVADOS DESTA EDIÇÃO:


Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore
1ª edição: Porto Alegre

Revisão:
Greice Zenker Peixoto

Diagramação:
Lilian Lopes Martins - Corag

Dados Técnicos:
Maria Helena Bueno Gargioni

Impressão:
CORAG - Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas
Tiragem: 1000 exemplares
2011

R362 Releituras da História do Rio Grande do Sul. Fundação


Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Organizadores: Sandra da Silva Careli,
Luiz Claudio Knierim. Porto Alegre, CORAG, 2011.

282p. ISBN: 978-85-7770-149-0 (Corag)

1.História. 2. Rio Grande do Sul. I. Sandra da Silva Careli. II. Cláu-


dio Knierim.
III. Título. Releituras da História do Rio Grande do Sul.

CDU 94(816.5)
Governador do Estado do Rio Grande do Sul
Tarso Genro
Secretário de Estado da Cultura
Luiz Antonio de Assis Brasil
Presidente da Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore
Rodi Pedro Borghetti
Diretor da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA)
Darci Sanfelici

Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore


Av. Borges Medeiros, 1501 - Praia de Belas Porto Alegre – RS
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Correio Eletrônico: presidencia.igtf@via-rs.net
Sitio: www.igtf.rs.gov.br

Organizadores
Sandra da Silva Careli
Luiz Claudio Knierim

Autores
Ana Regina Falkembach Simão
Arthur Lima de Avila
Edison Bisso Cruxen
Jorge Euzébio Assumpção
Luís Fernando da Silva Laroque
Marcia Eckert Miranda
Paulo Roberto de Fraga Cirne
Raul Rebello Vital Junior
René E. Gertz
Ricardo Arthur Fitz
Sérgio Roberto Rocha da Silva
Véra Lucia Maciel Barroso
APRESENTAÇÃO

A riqueza da História do Rio Grande do Sul foi regis-


trada ao longo dos tempos em diferentes suportes de texto,
sob as mãos de diferentes atores, movimentos sociais e insti-
tuições. Os segmentos responsáveis pelo registro, ao lerem o
processo vivido pela sociedade, traduziram um pouco de si
nessa sistematização.
Ter a consciência da ausência de imparcialidade nesses
escritos permite ao leitor certa visibilidade dos atores sociais
que povoaram e povoam a constituição da história regional.
Nesse sentido, optamos por uma perspectiva afinada com o
pensamento de Thompson (2001, p. 263), que afirma:
A transformação histórica acontece [...] pelo fato
de as alterações nas relações produtivas serem vi-
venciadas na vida social e cultural, de repercutirem
nas ideias e valores humanos e de serem questiona-
das nas ações, escolhas e crenças humanas.

Uma nova interpretação histórica deve incluir os atores


sociais até então esquecidos ou desprezados. Precisa, ainda,
trabalhar com abordagens novas que promovam a visibilidade
de processos tanto de curta quanto de longa duração. O reco-
nhecimento da multiplicidade de caminhos que nos consti-
tuem como sociedade possibilita que nos percebamos como
uma diversidade de identidades – de etnia, de classe, de gêne-
ro, de idade...
Desse modo, a identidade, em uma perspectiva so-
cial, é realizada no espaço das relações, tratando-se
de um processo dinâmico, ou seja, [...] um processo
contínuo de construção e desconstrução, na ambi-
güidade presente e inevitável que a compõe, impli-
cando um trabalho de unificação de diversidade,
incorporando a diferença” (MAHEIRIE, 1994, p.
65 apud CROMACK, 2004).
A obra que apresentamos ao público foi operacionalizada
a partir de uma parceria entre o Instituto Gaúcho de Tradição
e Folclore (IGTF) e a Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), duas
instituições comprometidas com o resgate da riqueza histórica
regional e com a reflexão em torno dos processos econômicos,
políticos, sociais e culturais vividos nesse estado. Desse traba-
lho, que busca traduzir e atualizar as discussões que se apresen-
tam com relação à História do Rio Grande do Sul, resultou o
livro Releituras da História do Rio Grande do Sul.
Coube ao IGTF a responsabilidade de edição do livro.
Enquanto representante da Comissão Organizadora da Sema-
na Farroupilha, o Instituto colocou-se como órgão aberto ao
debate e à discussão de temas históricos e culturais caros à
historiografia do Rio Grande do Sul. Profissionais de diversas
áreas do conhecimento, indicados pela FAPA, contribuíram
com pesquisas, levantamentos e questionamentos que forne-
cem ao livro o peso de uma reflexão honesta e ponderada.
Nessa perspectiva, com ênfase em aspectos que eviden-
ciassem a problematização crítica, priorizamos a abordagem
de temas clássicos na História regional. Com base nos tra-
balhos de pesquisa atuais, os quais ensejam novos conceitos
e categorias – formulando e incorporando, entre outras, uma
abordagem étnica a esse tipo de temática –, os artigos trazem
perspectivas inovadoras. Para abranger diversas questões e li-
nhas de pensamento, a obra está organizada em 12 capítulos.
No primeiro capítulo, Luís Fernando da Silva Laroque
desvela o protagonismo dos povos ameríndios na formação do
estado, em “Os nativos Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang:
o protagonismo indígena e as relações interculturais em terri-
tórios de planície, serra e planalto do Rio Grande do Sul”. Seu
texto rompe com a lógica perversa da “terra sem dono”, de um
Rio Grande surgido, unicamente, da ação das populações euro-
peias que disputaram o controle do território. Tomando como
baliza temporal o século XVI até a contemporaneidade, o autor
sistematiza os conhecimentos existentes sobre importantes so-
ciedades nativas que habitavam – e ainda habitam – a região,
além de explorar as características sociais das relações entre os
diferentes grupos étnicos no processo de formação do estado.
Ricardo Arthur Fitz, por sua vez, desenvolve o tema
“Os jesuítas no território gaúcho”. O trabalho analítico inicia
com a contextualização da Companhia de Jesus e sua relação
com o Estado espanhol, passando pela avaliação dos instru-
mentos empregados na ação missionária até o extermínio
das reduções. O artigo questiona a “autonomia” das redu-
ções no contexto da exploração colonial, administrada pela
Coroa espanhola.
O capítulo redigido por Edison Bisso Cruxen, inti-
tulado “A ocupação ibérica do território e as disputas pelas
fronteiras do continente de Rio Grande”, trata dos meandros
envolvidos na colonização europeia do Rio Grande do Sul e
retoma a discussão a respeito do conceito de fronteira – tão
importante para a compreensão do processo de constituição
do atual território de nosso estado, originalmente envolto na
lógica das contendas entre Portugal e Espanha. O autor de-
monstra que, muito além das relações belicosas entre as co-
roas ibéricas, na Região do Prata, houve um intenso contato
cultural, comercial e social entre os habitantes luso-brasileiros
e hispano-americanos. A fronteira, nessa perspectiva, carac-
teriza-se por ser contraditória e por apresentar mobilidade
dinâmica, caracterizando-se, muito mais, como um meio de
contato que um simples instrumento de separação entre terri-
tórios e populações.
Marcia Eckert Miranda explora a complexidade que
envolveu a posse do território pelos portugueses no capítulo
“De comandância militar à província: a administração do Rio
Grande de São Pedro (1737-1824)”. A autora aborda a adminis-
tração do Rio Grande de São Pedro no período que se esten-
de do início da ocupação portuguesa, com a criação do Forte
Jesus Maria José, em 1737, à posse do primeiro Presidente da
Província, José Feliciano Fernandes, em 1824. Ela analisa a es-
trutura máxima de governo da região, seus limites e poderes e
as transformações ocorridas nesse sistema, ao longo do tempo,
qual seja: a Comandância Militar, o Governo da Capitania Su-
balterna, o Governo da Capitania Geral, a Junta Governativa
Provisória e a Presidência da Província.
O quinto capítulo, de autoria de Véra Lucia Maciel
Barroso,“Os açorianos no Rio Grande do Sul: uma presença
desconhecida”, tem a marca do desvendamento daqueles que,
forçados à diáspora no século XVIII, encontraram na nova ter-
ra sul-americana, que imaginavam ser a da promissão, muitos
reveses e não poucos desafios. O texto critica a pouca valoriza-
ção da história e da cultura açoriana na historiografia regional.
Jorge Euzébio Assumpção, autor do capítulo “Época
das charqueadas (1780-1888)”, aprofunda o olhar sobre as et-
nias negras, advogando a importância do trabalho dos cativos
negros na estruturação do estado. Defende a necessidade de
uma leitura crítica em torno do mito da “democracia racial
sulina”, consolidado por vertentes da historiografia brasileira.
O texto de Raul Rebello Vital Júnior, “Caminhos da
colonização alemã no Rio Grande do Sul: políticas de Estado,
etnicidade e transição”, analisa os objetivos do Estado brasi-
leiro ao inaugurar a política colonizatória no Brasil, ao longo
do século XIX. Aborda questões ligadas a políticas de Estado,
condições de vida dos colonos e etnicidade.
Arthur Lima de Avila, no oitavo capítulo, “Caudilhos
e fronteiriços: a Revolução Farroupilha e seus vínculos rio-
-platenses”, discute criticamente a ligação do Rio Grande do
Sul com o seu entorno territorial. No capítulo, o autor insere o
conflito farroupilha no cenário das lutas associadas aos proces-
sos de formação dos Estados Nacionais latino-americanos e,
ainda, explicita os vínculos das elites farroupilhas com os cau-
dilhos platinos. O texto rediscute o conceito de fronteira em
bases mais complexas, a exemplo do texto de Edison Cruxen.
Ana Regina Falkembach Simão, no capítulo “Da co-
lônia ao Império: uma análise da política externa brasileira”,
situa o Rio Grande do Sul em relação ao Prata no que se refere
à dinâmica política externa inicialmente portuguesa, e, poste-
riormente, brasileira. A autora esclarece o papel do nacionalis-
mo nas contendas do período.
No capítulo “Aspectos da Revolução Federalista no con-
texto político de Júlio de Castilhos”, Sérgio Roberto Rocha
da Silva, focaliza o regime republicano e a Revolução Federa-
lista no Rio Grande do Sul, no período entre 1893-1895, dis-
secando os fatos que compuseram o cenário da luta armada
e também os processos de mitificação que envolvem Júlio de
Castilhos. O autor convida-nos a refletir sobre as diferentes
memórias produzidas em torno de dois importantes eventos
na história gaúcha: a “Revolução Federalista” e a “Revolução
Farroupilha”.
René E. Gertz, no capítulo “A colonização no período
republicano – segunda fase”, oferece continuidade à reflexão,
vista em outras unidades do livro, referente à atuação de dife-
rentes etnias na constituição do Rio Grande do Sul. O autor
mostra-nos que, somente nos anos de 1870, italianos e polo-
neses juntaram-se a então já cinquentenária imigração ale-
mã. Esses imigrantes foram, mais tarde, seguidos por outros
grupos e, no final desse processo, em torno de 40% da popu-
lação gaúcha era considerada de origem centro-europeia. A
presença dos imigrantes e de seus descendentes foi promovida
e encorajada por muitos, mas também criticada por outros. O
texto trata das alegrias, mas também dos dissabores resultan-
tes desse projeto de imigração e colonização.
Fechando a obra, encontra-se o capítulo de Paulo Ro-
berto de Fraga Cirne, “O começo do tradicionalismo gaúcho”.
O autor sintetiza a história do tradicionalismo gaúcho desde
as primeiras tentativas de fundação do movimento até a sua
decadência e o ressurgimento em 1947, como movimento
organizado. No capítulo, são destacados: a fundação do “35
CTG”, Centro de Tradições Gaúchas, que inaugurou uma nova
era do tradicionalismo, a rápida expansão deste movimento e
a criação da Federação MTG, que tem como objetivo a pre-
servação do núcleo da formação gaúcha e a filosofia do mo-
vimento, decorrente da sua Carta de Princípios. O autor tam-
bém destaca o surgimento de outras federações similares em
todo País; juntas, elas integram uma Confederação Brasileira
da Tradição Gaúcha, fundada em 1987.
Esperamos que os textos aqui veiculados e socializados
nos formatos impresso e eletrônico colaborem para dar vi-
sibilidade a esses importantes eventos e atores do processo
social e histórico de construção da História do Rio Grande
do Sul. Que o livro contemple a diversidade e que, cotidiana-
mente, se atualize frente às novas problemáticas socialmente
demandadas.

Claudio Knierim
Sandra da Silva Careli
SUMÁRIO

Os nativos charrua/minuano, guarani e kaingang: O protagonismo indígena


e as relações interculturais em territórios de planície, serra e planalto do Rio
Grande do Sul – Luís Fernando da Silva Laroque .............................................15

Os jesuítas no território gaúcho – Ricardo Arthur Fitz.....................................43

A ocupação ibérica do território e as disputas pelas fronteiras do continen-


te de Rio Grande – Edison Bisso Cruxen...................................................... 65

De comandância militar à Província: A administração do Rio Grande de São Pe-


dro(1737-1824) – Márcia Eckert Miranda..................................................................89

Açorianos no Rio Grande do Sul: uma presença desconhecida – Vera Lúcia


Maciel Barroso.................................................................................................. 115

Época das Charqueadas (1780-1888) – Jorge Euzébio Assumpção.........139

Caminhos da colonização alemã no Rio Grande do Sul: Políticas de Estado,


etnicidade e transição – Raul Rebello Vital Junior...........................................159

Caudilhos e fronteiriços: A Revolução Farroupilha e seus vínculos rio-


-platenses – Arthur Lima de Ávila.............................................................181

Da Colônia ao Império: Uma análise da política externa Brasileira –


Ana Regina Falkembach Simão.............................................................203

Aspectos da Revolução Federalista no contexto político de Júlio de Castilhos –


Sergio Roberto Rocha da Silva.............................................................................223

A colonização no período Republicano – segunda fase - René E. Gertz..........243

O começo do Tradicionalismo Gaúcho – Paulo Roberto de Fraga Cirne.........265


Releituras da História do Rio Grande do Sul

OS NATIVOS CHARRUA/MINUANO, GUARANI E


KAINGANG: O PROTAGONISMO INDÍGENA
E AS RELAÇÕES INTERCULTURAIS
EM TERRITÓRIOS DE PLANÍCIE, SERRA E
PLANALTO DO RIO GRANDE DO SUL
* Luís Fernando da Silva Laroque

Os indígenas Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang


são populações que também fazem parte do território que pas-
sou a chamar-se Rio Grande do Sul. O objetivo deste capítulo
é promover uma breve reflexão sobre algumas historicidades
indígenas, considerando estes povos também como protago-
nistas de eventos ocorridos no período que se estende desde o
século XVI até as três primeiras décadas do século XX.
A historiografia tradicional costuma priorizar a versão
dos conquistadores e governantes representados por militares,
viajantes, religiosos, engenheiros, diretores de aldeamentos,
entre outros, os quais são encontrados nos documentos e re-
lembrados na literatura. As vozes indígenas, na maior parte
das vezes, estão demasiadamente silenciadas nas fontes, me-
recendo um exercício hermenêutico e uma abordagem in-
terdisciplinar entre arqueologia, história e antropologia, por
exemplo, para captar os sentidos e a interpretação de histo-
ricidades. Tendo em vista tais limitações, a opção condutora
para as reflexões é considerar a atuação de algumas lideranças
Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang.
Recorrendo a trabalhos como de Sahlins (1970) e Service
(1984), é importante ressaltar que, nas sociedades tradicionais,
o poder não está separado do corpo social, conforme ocorre
com sociedades com a presença do Estado, portanto, as lide-
ranças em questão somente mantinham-se na função quando

* Doutor em História. Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e


Desenvolvimento do Centro Universitário UNIVATES, em Lajeado/RS.

15
representavam os interesses das famílias dos nativos.1 Nos as-
pectos relacionados a situações envolvendo distintos grupos
étnicos, bem como alianças, guerra e reatualizações culturais,
tem-se os estudos de Barth ([1969] 2000), Clastres (1987),
Sahlins (1990) Vainfas (1995) e Viveiros de Castro (2002).
O presente capítulo procura considerar as categorias ter-
ritoriais que faziam parte da historicidade geográfica dos Char-
rua/Minuano, Guarani e Kaingang, os quais respectivamente
envolvem territórios mesopotâmios, guarás e bacias hidrográfi-
cas. Fundamentação para isto são os trabalhos de Seeger e Cas-
tro (1979) e Ramos (1988). Este autor enfatiza que a concepção
de limite territorial não é estranha às sociedades nativas, mas
sim “o sentido de exclusividade e de policiamento de um ter-
ritório” nos moldes concebidos pela Sociedade Colonial e Na-
cional brasileira (RAMOS, 1988, p.14). Frente a isso, situações
envolvendo territorialidades das populações indígenas, por um
lado, extrapolam ao longe a geografia do Rio Grande do Sul e,
por outro, suas concepções de fronteiras eram bastante fluidas,
porque, embora guerreando entre si, esses grupos conviveram
em um mesmo território antes mesmo da chegada dos ibéricos.

1 Os Charrua/Minuano em territórios mesopotâ-


mios dos rios Salado, Prata, Uruguai, Negro e Ibicuí
Os Charrua e Minuano são duas populações que apresen-
tam características diferentes no plano físico e no social, embo-
ra os colonizadores, muitas vezes, as juntassem e confundissem
como uma só (LAROQUE, 2002). Em decorrência disto, serão
tratados em conjunto os aspectos abordados as ambas etnias.
No Rio Grande do Sul, Charrua/Minuano ocupavam
áreas de campos do sudoeste, até aproximadamente a altura
dos rios Ibicuí e Camaquã, mas também se estendiam para o
pampa uruguaio e as pequenas porções do território argentino.
1
O termo “nativo” refere-se a povos em seu ambiente tradicional. Procura-se evitar sempre que possível a
designação “índio”, pois, conforme Caleffi (1997), trata-se de uma identidade atribuída pela historiografia
brasileira e que nunca deu conta da diversidade destas populações.

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Releituras da História do Rio Grande do Sul

Ilustração 1 – Mapa de áreas indígenas no Rio Grande do Sul (séc. XVIII)

Fonte: Riograndino Silva (1968).

Cada uma delas, entretanto, ocupava áreas bem-definidas.


Os Charrua “moravam mais para o oeste, ocupando ambas
as margens do Rio Uruguai e tiveram maior contato com o
colonizador espanhol”, enquanto que os Minuano “se loca-
lizavam mais para leste, nas áreas irrigadas pelas lagoas dos
Patos, Mirim e Mangueira, com extensão até as proximidades
de Montevidéu; tiveram maior contato com os portugueses”
(BECKER, 1991, p. 145).
Os Charrua/Minuano praticavam a caça, a pesca e a cole-
ta. Alguns arqueólogos cogitam a possibilidade da cultural ma-
téria produzida pelos antepassados destes indígenas pertencer à

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Tradição Arqueológica Vieira, construtora dos “cerritos”. Per-
tenciam a um mesmo tronco linguístico, mas não está claro se
falavam a mesma língua ou dialetos diferentes.
Nas primeiras décadas do século XVI, as expedições
sobre os territórios Charrua/Minuano foram esporádicas.
Entretanto, a partir de meados deste mesmo século e primei-
ras décadas do século XVII, os interesses das Coroas Ibéricas
crescem na região e alianças com lideranças Charrua, como
Zapicán, Miní, Guaytán, e lideranças Minuanas, como Cloyan
e Lumillan, passam a ser efetivadas. Possivelmente pela lógica
nativa, essas alianças possibilitaram vantagens das parcialida-
des lideradas por estes caciques para lutarem contra os grupos
indígenas inimigos que também ocupavam o território.
No que se refere à utilização da aliança e à guerra nas
sociedades nativas, Pierre Clastres, no trabalho Investigaciones
em antropología política, enfatiza:
Ya hemos indicado que, por la voluntad de indepen-
dencia política y el dominio exclusivo de su territorio
manifestado por cada comunidad, la posibilidad de la
guerra está inmediatamente inscrito en el funciona-
miento de estas sociedades: la sociedad primitiva es el
lugar del estado de guerra permanente. Vemos aho-
ra que la búsqueda de alianzas depende de la guerra
efectiva, que hay una prioridad sociológica de la guer-
ra sobre la alianza. Aquí se anuda la verdadera relaci-
ón entre el intercambio y la guerra. (...) Precisamente
a los grupos implicados en las redes de alianza, los so-
cios del intercambio son los aliados, la esfera del inter-
cambio recubre exactamente la de la alianza. Esto no
significa, claro está, que de no haber alianza no habría
intercambio: éste se encontraría circunscrito al espa-
cio de la comunidad en el seno de la cual no deja de
operar nunca, sería estrictamente intra-comunitario.
(CLASTRES, 1987, p.207, grifos do autor)

Segundo Reichel e Gutfreind (1996), na porção Oeste,


começa a fundação das primeiras cidades espanholas (1527-
1577); na parte Leste, as portuguesas (1680-1737), as quais
foram acompanhadas de grandes batalhas, em que uma boa

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Releituras da História do Rio Grande do Sul

parte dos Charrua/Minuano foram atingidos. Isso, gradativa-


mente, haveria de produzir uma mudança fundamental em
todo o território indígena, pois essas populações neste primei-
ro momento não se submeteram à “encomienda”,2 à “mita”3 e
às “reduções/missões”,4 sendo que esta última fora utilizada
principalmente com os indígenas Guarani.
Nos séculos XVII e XVIII, as frentes expansionistas nos
tradicionais territórios Charrua e Minuano continuavam de
forma lenta e cada vez mais efetiva. No final do século XVIII e
nas primeiras décadas do século XIX, os tradicionais territórios
Charrua/Minuano da bacia hidrográfica do Rio da Prata são efe-
tivamente ocupados pelos colonizadores português e espanhol.
Ilustração 2 – Mapa de areas indígenas no Sul do Brasil

Fonte: Curt Nimuendajú, 1987.


2
A “encomienda” consistia na concessão de nativos que a Coroa espanhola dava ao colonizador para tra-
balharem em serviços forçados das minas e/ou agricultura. Em troca dessa concessão, o colonizador tinha
o compromisso de cristianizá-los (MAHN-LOT, 1990, p. 69,83).
3
“Mita” era uma forma de trabalho desenvolvido pelos índios nas minas de prata e ouro. Como pagamento,
recebiam uma remuneração insuficiente para sua sobrevivência (MAHN-LOT, 1990, p. 76).
4
As “reduções” foram também conhecidas como Missões. Consistiam em aldeamentos, nos quais os índios
eram reunidos para receberem ensinamentos sobre a religião católica e para trabalharem sob a direção dos
padres (CAMPOS; MOHLNNIKOFF, 1993, p. 16).

19
As cidades multiplicaram-se e a exploração econômica,
produzindo carne e couro para o mercado interno e europeu,
aumentou significativamente.
Neste contexto, é possível apontar o protagonismo Char-
rua/Minuano a partir das lógicas nativas, como é o exemplo da
atuação de lideranças Naigualvé, Gleubilbé e Doimalnaejé, lu-
tando ao lado de Don Francisco de Vera Mujica em territórios
próximos a Santa Fé contra indígenas inimigos (BECKER, 1991).
Por outro lado, quando os interesses nativos não mais estavam
sendo atendidos, rompiam as alianças e recorriam à guerra, con-
forme ilustra a situação envolvendo o cacique Campusano.
Este cacique Charrua entrerriano, pasado el pri-
mer Tércio del siglo XVIII tênia sus tolderías em lãs
márgenes del arroyo Feliciciano. Presume A. y Lara
que es el mismo Campusano que, a fines de abril
de 1749, com um grupo de índios hurtó caballadas
de lãs estâncias del Pueblo Reducción de Santo Do-
mingo Soriano. Habiendo salido en su persecución
el Teniente de Dragones Francisco Bruno de Zava-
la con un escuadrón en un potrero del Queguay.
(BARRIOS PINTOS, 1981, p.87-88)

Gradativamente, as populações indígenas são empurra-


das para o interior, local onde suas possibilidades de sobrevi-
vência são cada vez mais difíceis, principalmente pela dispu-
ta com grupos inimigos, como Araucanos, Tehuelches, entre
outros, que também estavam em movimentação pelo territó-
rio, devido às frentes expansionistas (SARASOLA, 1996). Em
decorrência de não terem desenvolvido sua sustentabilidade
nos moldes do capitalismo, bem como insistiam em continuar
com seus padrões culturais um capítulo da história Charrua/
Minuano no século XIX, resume-se pelos dois combates feitos
à traição – o de Salsipuedes (1831) e o de Mataojos (1832)
– nos quais os indígenas destas duas etnias foram extermina-
dos em grande maioria ou retirados de seu tradicional terri-
tório, como, por exemplo, Vaimaca-Peru, Senaqué, Tacuabé e
Guyunusa, que foram levados pelo comerciante François de
Curel para Paris, lugar de onde não mais retornaram (HIL-
BERT, 2009). A partir desses dois conflitos, equivocadamente

20
Releituras da História do Rio Grande do Sul

propagou-se um discurso que os poucos Charrua/Minuano


sobreviventes teriam forçadamente se integrado na sociedade
da Banda Oriental do Uruguai.

2 Os Guarani em territórios de Guará


Os Guarani, pertencentes à Família Linguística Tupi-
-Guarani e Tradição Ceramista Tupiguarani, eram também
chamados de Carijós, Arachanes, Tapes, Patos, entre outras
nominações. Informações produzidas por cronistas, expedi-
cionários, viajantes e padres jesuítas indicam que os Guarani
representavam, no período colonial, a maior parte da popula-
ção indígena no Rio Grande do Sul. Eram horticultores, óti-
mos ceramistas e, além de dedicarem-se à caça e à pesca, pra-
ticavam a antropofagia. Segundo Laroque (2002), ocupavam
territórios localizados em várzeas de rios como o Uruguai, o
Jacuí, a Laguna dos Patos e o Lago Guaíba, mas estendiam-se
também para outras áreas da América do Sul localizadas entre
Rio Paraguai e o Oceano Atlântico (ver Ilustração 2, p. 19).
É importante enfatizar que, pela lógica Guarani, a re-
lação com o espaço, bem como as categorias que atribuem a
estes são totalmente distintas da forma como os ibéricos se
relacionavam com estes espaços. Francisco Noelli (1993), fun-
damentado em registros dos cronistas, etnógrafos e, muitas
vezes, testadas em modelos etnoecológicos e arqueológicos,
apresentou, como se vê na Ilustração 3, três categorias espa-
ciais da geografia Guarani: guará, tekohá e teiî.
Ilustração 3 – Categorias espaciais Guarani

Fonte: Noelli, 1993, p.250.

21
O guará, segundo a definição de Montoya, significa
tudo aquilo que está contido dentro de uma região qualquer.
Francisco Noelli (1983), utilizando-se de estudos de Branis-
lava Susnik, informa que, para esta autora, o guará é enten-
dido como um conceito sociopolítico que determinava o do-
mínio exclusivo de uma região pelos seus habitantes, onde
lhes era assegurado o pleno direito da roça, caça e pesca para
sua subsistência.
De acordo com informes de vários jesuítas do Guairá,
Itatim, Tape e Uruguai, o guará estaria sob a liderança de uma
pessoa de grande prestígio político e espiritual, ressaltando
também que “alguns guará seriam compostos por até 40 al-
deias unidas por laços de parentesco e reciprocidade, com vida
material e simbólica comum” (NOELLI, 1993, p.248-249).
O guará, por sua vez, seria subdividido em unidades ter-
ritoriais socioeconômicas denominadas de tekohá, onde esta-
riam os sítios arqueológicos e as aldeias históricas. O tekohá
dividia-se em três níveis integrados: físico-geográfico, econô-
mico e simbólico. Sua área estava geralmente bem-definida
por colinas, arroios ou rios, onde estranhos só poderiam en-
trar com permissão.
Era o espaço onde se produziam as relações econô-
micas, sociais e político-religiosas essenciais a vida
Guarani [...]. Por fim, como dizem os Guarani, se
tekó era o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei
e os costumes, o tekohá era o lugar, o meio em que
se davam as condições que possibilitavam a subsis-
tência e o modo de ser dos Guarani. (MELIÁ apud
NOELLI, 1993, p.249-250)

O tekohá, por sua vez, era formado por teiî isolados


ou agrupados em função das condições locais e políticas.
Teiî, na linguagem antropológica, significa “família extensa”,
onde vivia a linhagem que poderia contar com até 60 famí-
lias nucleares.

22
Releituras da História do Rio Grande do Sul

A seguir, na Ilustração 4, será apresentado um mode-


lo hierárquico hipotético da construção territorial (NOELLI,
1993, p. 250), o qual mostra, aproximadamente, uma sequên-
cia desde a família nuclear até o guará.

Ilustração 4 – Modelo hierárquico hipotético da construção territorial

Fonte: Noelli, 1993, p.250.

A captação de recursos pelos Guarani, de uma forma ge-


ral, foi setorizada por Noelli em horticultura (roças), coleta,
caça e pesca. Suas roças, nas quais geralmente cultivavam o
milho, a mandioca, o amendoim, o feijão, entre outros, pro-
vavelmente instalavam-se em zonas de transição entre a Pla-
nície Costeira e a Depressão Central, ou, então, em lugares de
vegetação similar. É importante ressaltar que a roça, entre os
muitos outros domínios da aldeia, era apenas um dos espaços
de inserção de alimentos.
A região do tekohá está caracterizada por zonas de vege-
tação campestre (tapete de gramíneas), vegetação silvática (ma-
tas de galeria, matas arbustivas, capões) e vegetação palustre
(áreas inundáveis), onde aparece concentrada uma variedade
muito grande de espécies das quais destacam-se os butiás, ara-
çás, ananás, ingás e também os pinhões, recursos de coleta. Es-
sas atividades de coleta, muitas vezes, também eram realizadas
em áreas de plantas cultivadas nas antigas roças abandonadas.
Quanto à caça, a partir das informações de Becker
(1992), é possível constatar que, excluindo os períodos que

23
cercam a época dos ritos de passagem, da menstruação, da
gravidez, dos jejuns ligados à prática religiosa individual ou
coletiva e os gostos pessoais, os Guarani comiam todos os se-
res vertebrados e muitos invertebrados.
As frentes de expansão ibéricas, no decorrer do sécu-
lo XVI, a fundação de cidades espanholas e, posteriormente,
lusitanas, nos tradicionais territórios Guarani, e a exploração
econômica, serão responsáveis por um violento decréscimo
populacional desses nativos e um acirramento de conflitos bé-
licos entre os Guarani e os não índios pela América do Sul.
No início do século XVII, os administradores espanhóis
resolveram chamar primeiramente os franciscanos e depois os
padres da Companhia de Jesus para que, por meio do aten-
dimento religioso, pudessem acalmar os indígenas encomen-
dados ou não. Os jesuítas, em um primeiro momento, opuse-
ram-se, mas acabaram por obedecer as orientações da Coroa
espanhola. Inicialmente trabalharam junto ao Guarambaré,
Ipané e Guayrá, onde perceberam a inadequação do modelo
missionário até então empregado.
Em contraposição, os padres jesuítas propuseram o sis-
tema de Missão/Redução, no qual os índios a serem catequi-
zados deveriam ser organizados em povoações concentradas,
livres dos fazendeiros espanhóis, e que só dependessem do
Rei. Nasciam, assim, as cinco Frentes Missionárias da Anti-
ga Província Jesuítica do Paraguai, denominadas de Guayrá
(Paraná), Paraguay (Paraguai), Itatim (Mato Grosso do Sul),
Uruguay (Brasil-Uruguai) e Tape (Rio Grande do Sul), sob a
responsabilidade geral do Padre Juan Ruiz de Montoya.
Como o recorte espacial deste capítulo se atém princi-
palmente a territórios do Rio Grande do Sul, serão tratados
aqui, especificamente, alguns aspectos da Frente Missionária
do Tape, mas que não se diferenciou muito das outras quatro.
A Frente Missionária do Tape localizava-se na região
Centro-oeste do Rio Grande do Sul. Iniciou em 1626, quan-
do o Pe. Roque González, em decorrência de alianças que o

24
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Cacique Ñeenguirú, liderança geral possivelmente de um dos


guará localizado na Província do Uruguai e do Tape, conse-
guiu atravessar o rio Uruguai na altura da confluência com
o rio Ibicuí. Inicialmente, chegou à aldeia do cacique Taba-
cá, com o qual também contraiu aliança, o que possibilitou a
fundação da Redução Nossa Senhora de Candelária. Entre-
tanto, os Guarani contrários ao estabelecimento de alianças
com os jesuítas e utilizando-se da guerra atacavam os padres
e os Guarani que com eles se encontravam, como foi o caso
do Pe. Cristóbal de Mendoza, morto pelo cacique Tayubay e
seus seguidores (BECKER, 1992).
As outras missões/reduções, ao que parece, somente fo-
ram fundadas devido às lideranças Guarani, como Guaymi-
ca, Cuniambí, Arazay, Guiracurú, Tayaobá, Ayerobiá, Aruyá,
Cuñambó, Carayuchuré, entre tantas outras, terem avaliado
positivamente e em termos de alianças indígenas a presença
dos padres em seu território, decisão posteriormente reforça-
da pelas notícias que passaram a ter dos ataques bandeirantes
em territórios Guarani do Norte. Assim é que, em 1626, foram
fundadas as Missões de São Nicolau e São Francisco Xavier;
em 1627, Candelária do Ibicuy; em 1628, Candelária do Pira-
tini, Assunção do Ijuí e Caaró; em 1631, São Carlos e Apósto-
los; em 1632, São Tomás, São José, São Miguel, São Cosme e
Damião, Santa Teresa, Jesus Maria, Santa Ana e Natividad; em
1634, São Joaquim e São Cristóvão (PORTO, 1954).
A título de ilustração destas alianças pode-se apontar
Arazay (chamado também de Roque, Quiraque e Caguiraí),
que, segundo a Carta Ânua de 1633, tratava-se de um grande
cacique que teria se batizado e aceitado o Cristianismo. Em
decorrência do cargo que representava entre os Guarani, in-
terviu em termos nativos para os padres fundarem a Missão
de São Tomás e São Miguel. Não são encontradas na docu-
mentação maiores informações sobre essa liderança, mas uti-
lizando-se o estudo de Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios
(1995), sobre a Santidade do Jaguaribe com os Tupi, os quais

25
orquestravam os eventos por sua própria lógica, bem como
a obra de Viveiro de Castro, A incostância da alma selvagem
(2002), é possível constatar que os indígenas, frente aos pro-
pósitos das missões, comportavam-se como estátuas de murta
e não de pedra. Ou seja, reatualizavam algumas ações, mas
os significados continuavam sendo nativos, portanto quando
não mais era de seu interesse, o que provavelmente também
deve ter ocorrido com os teiî (famílias), que o cacique Arazay
representava, tanto em termos de alianças como de prática de
batismo ou adoção ao Cristianismo.
Neste contexto, onde os espanhóis avançavam com sua
frente expansionista missionária, os portugueses, em contra-
partida, faziam o mesmo, mas com a frente expansionista ban-
deirante e passavam a invadir as missões localizadas mais a
Leste do território em busca de mão de obra indígena Guarani
para o trabalho escravo nas lavouras de cana-de-açúcar. No
período compreendido entre 1612 e 1638, foram capturados
aproximadamente 300.000 índios, dos quais mais da metade
morreram no caminho para o cativeiro, por doenças ou re-
pressão às fugas.
Especificamente no Tape, os ataques mais intensos ocor-
reram entre 1635 e 1639, quando os bandeirantes Antônio Ra-
poso Tavares e Fernão Dias Paes destruíram várias das redu-
ções. Os milhares de índios que restaram tiveram, mesmo com
relutância, de abandonar suas terras e migrar para a margem
direita do Rio Uruguai. Em consequência disso, o gado trazido
pelos jesuítas ficou solto, passando a viver e a procriar-se livre-
mente pelos campos da Depressão Central e da Campanha.
Desta forma, os povoados missioneiros, denominados
muitas vezes de Trinta Povos Jesuítico-Guarani, tiveram uma
controvertida experiência histórica, na Bacia do Rio da Prata
e na fronteira móvel existente entre os impérios português e
espanhol. Quando os jesuítas voltaram à região, meio século
depois, encontraram grande quantidade de animais vivendo
de modo selvagem na Vacaria del Mar.

26
Releituras da História do Rio Grande do Sul

A partir de 1682, foram reerguidas as reduções de São


Nicolau e São Miguel, assim como foram criadas cinco outras:
São Francisco de Borja (1682), São Luiz Gonzaga (1687), São
Lourenço Mártir (1690), São João Batista (1697) e Santo Ânge-
lo Custódio (1707), as quais constituíram o que ficou conhe-
cido como os Sete Povos das Missões (ver Ilustração 1, p. 17).
Os Sete Povos, contando também com o protagonismo
Guarani, prestavam serviços à Coroa espanhola e à Roma, e
adquiriam autonomia política e econômica. Essa autonomia,
por sua vez, em termos de relações internacionais europeias,
acarretou-lhes antipatias e animosidades; motivos que escla-
recem porque, em 1750, com a assinatura do Tratado de Ma-
drid, a Espanha pretendeu entregá-los aos portugueses, em
troca da Colônia do Sacramento.
Os indígenas Guarani, mesmo com a aliança com os
espanhóis em curso avaliando a situação, decidiram que não
deixariam o território. Isto automaticamente significava o
rompimento da aliança e a deflagração de guerra aos espa-
nhóis e portugueses. O conflito passou a ser conhecido como
“Guerra Guaranítica” (1753-1756), mas, apesar do protagonis-
mo Guarani, como bem ilustra a conhecida frase “esta terra já
tem dono”, do cacique Sepé Tiaraju, os indígenas, pela desvan-
tagem bélica, perderam a guerra e a maior parte dos que não
morreram precisaram abandonar seus territórios.
Uma boa parte dos Guarani que ainda não havia aban-
donado o território, aproximadamente 700 famílias, foi distri-
buída pelo General Gomes Freire de Andrade, para o interior
da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, constituindo
a Aldeia de São Nicolau (Rio Pardo), a Aldeia de São Nicolau
(Cachoeira do Sul) e a Aldeia Nossa Senhora dos Anjos (Gra-
vataí). Muitos descentes dessas famílias deram origem à matriz
genética indígena de muitas pessoas do Rio Grande do Sul.
Outros, porém, conforme Schmitz (1994, p.112), disper-
saram-se pelas fazendas da Bacia do Prata, “servindo de peão,
tipicamente sem família e sem chão, como o Pedro Missio-

27
neiro do romance, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo”. É
possível, ainda, mesmo que não se tenha conhecimento sobre
fontes documentais, que os Guarani tenham continuado a cir-
cular pelo território. Neste sentido, somente a partir de mea-
dos do século XX as fontes passam novamente a dar visibili-
dade à presença Guarani no Rio Grande do Sul denominados
então de Mbyá Guarani, os quais retornaram para seus tradi-
cionais territórios em busca do Yrovaigua (Terra sem Males).

3 Os Kaingang em territórios de Bacias Hidrográfi-


cas dos rios Uruguai e Jacuí

Os nativos Kaingang, no Rio Grande do Sul, quando


iniciou a conquista europeia, ocupavam o território localiza-
do entre o Rio Piratini (afluente da margem esquerda do Rio
Uruguai) e as cabeceiras do Rio Pelotas, tendo como limite
meridional os últimos contrafortes do Planalto junto à mar-
gem esquerda da bacia hidrográfica do Rio Jacuí (ver Ilustra-
ção 1, p. 17). Entretanto, é importante ressaltar que o “gran-
de território Kaingang” estendia-se também pelos estados de
Santa Catarina, Paraná, São Paulo e em Missiones, na Argen-
tina (LAROQUE, 2007).
No entender de alguns estudiosos, os antepassados dos
Kaingang foram os prováveis responsáveis pela cultural mate-
rial denominada de Tradição Arqueológica Taquara e teriam
ocupado territórios de planalto conhecidos como “buracos de
bugre”. Os Kaingang dedicavam-se também à caça, à pesca,
à pequena horticultura e, principalmente, à coleta do pinhão
(SCHMITZ; BECKER, 1991).
O nome Kaingang,5 na verdade, foi introduzido na li-
teratura etnográfica por Telêmaco Borba, em 1882, para de-

5
Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, estes nativos tinham a denominação geral de “Guayná”. Na maior
parte do século XIX, foram conhecidos pelo nome de “coroado”. Entretanto, no século XX, convencionou-se
chamá-los de “Kaingang” (SCHMITZ apud BECKER, 1976, p. 7).

28
Releituras da História do Rio Grande do Sul

signar os indígenas não Guarani que ocupavam territórios de


planalto no sul do Brasil. Pertencem ao grande tronco linguís-
tico Jê e aparecem na documentação e na bibliografia com as
nominações de Ibiraiáras, Caáguas, Guananáses, Coroado,
Guayaná, Bugre, Gualacho, Botocudo, Xokleng, Bate, Chova,
Pinaré, Cabelludo, Kaigua, Kaaguá, Aweikoma, entre outros
(LAROQUE, 2000).
As informações iniciais sobre os Kaingang são poucas
e retrocedem ao século XVI, quando ocorreram os primeiros
contatos com o colonizador. No século XVII, o Pe. Luiz de
Montoya e Dias Taño tentaram reduzi-los, mas não tiveram
sucesso. Segundo eles, estes índios eram totalmente diferen-
tes dos Guarani, com os quais tinham tido experiência. Única
exceção a salientar foi o Pe. Cristovão de Mendonça, que, em
1630, teria fundado a Redução da Conceição (no território
de Guandaná - alto curso do Rio Uruguai), na qual, segun-
do os cronistas, teria aldeado aproximadamente 3.000 índios
(SCHADEN, 1963).
Do contato inicial até o século XVIII, apesar do bandei-
rismo paulista rumo ao Sul, a procura de terras, ouro e mão
de obra escrava, os Kaingang continuavam a manter sua cul-
tura original. Na primeira década do século XIX, as fazendas
de colonização luso-brasileira somente ocupavam as áreas de
campo, deixando, com isso, a maior parte do planalto e da
mata aos Kaingang (ver Ilustração 2, p. 19).
Entretanto, a partir de 1824, teve início a primeira fase da
imigração alemã, que se estendeu até 1889 (ROCHE, 1969). O
governo imperial, aproveitando-se dessa situação, distribuiu a
esses colonos, segundo Ítala Basile Becker (1991), muitos dos
territórios Kaingang, que se estendiam desde o Rio dos Sinos
até a borda do planalto, propiciando, com isso, o aparecimen-
to de colônias como São Leopoldo, Feliz, Mundo Novo, Bom
Princípio, São Pedro de Alcântara de Torres, Três Forquilhas,
entre outras.

29
Frente a essa situação, os alemães, para chegarem e/ou
ocuparem muitos dos lotes distribuídos, precisavam enfrentar
a reação nativa, o que gerava, consequentemente, uma situação
bastante tensa entre ambas as etnias “porque enquanto os colo-
nos tentavam se estabelecer nas terras que lhes cabiam por de-
terminação imperial, o Kaingang via a penetração efetiva nas
terras onde havia nascido” (BECKER, 1991, p.138).
A título de ilustração destas reações Kaingang, que,
possivelmente, foram realizadas sob o comando de lideran-
ças como Braga, Yotoahê (Doble), Nicué, Condurá, entre ou-
tras, tem-se os ataques à localidade de Dois Irmãos, em 26 de
fevereiro de 1829, nos quais foram assassinados dois colonos
alemães e um foi ferido, e, em 08 de abril de 1831, o ataque
à família Harras, quando foram vitimados três colonos, dos
quais dois ficaram feridos e uma criança foi raptada (F.W.,
1913, p.87-88; PETRY, 1931, p.3; BECKER, 1976a, p.67,70).
O governo provincial, aproveitando-se da passagem dos
jesuítas espanhóis pelo Sul do Brasil,6 recorreu, a partir de
1845, ao Projeto de Catequese Kaingang. Entretanto, para a
mentalidade da época, a “catequese” e a “civilização” dos nati-
vos significavam a sua redução em aldeamentos. O Pe. Antônio
de Almeida Leite Penteado é quem, inicialmente, se ofereceu
para levar as primeiras luzes do Cristianismo aos Kaingang nas
imediações de Passo Fundo. Posteriormente, sob o comando
do superior distrital Pe. Bernardo Parés, estabeleceram-se em
Guarita os jesuítas Aloysio Cots e Ignacio Gurri; em Nonoai,
Luís Santiago Villarrubia e Juliano Solanellas; e no Campo do
Meio, os Pes. Pedro Saderra e Miguel Cabeza. Essa ação mis-
sionária, por sua vez, não conseguiu reduzir os Kaingang nos
moldes feitos com os Guarani. Neste sentido, o Pe. Villarrubia

6
Os jesuítas, depois da expulsão pombalina de 1759, tiveram uma passagem pelo Brasil durante o período
de 1842 a 1867. O contexto desta nova fase em que atuaram principalmente nas Províncias de São Pedro do
Rio Grande do Sul e de Santa Catarina ocorreu em decorrência de sua expulsão da Argentina pelo ditador
Rosas (AZEVEDO, 1984).

30
Releituras da História do Rio Grande do Sul

destacou, entre as dificuldades para o ensino da doutrina Cris-


tã, a indiferença religiosa que acreditavam que os Kaingang
tinham, a falta de meios para os padres aprenderem a língua
Kaingang, o mau exemplo de outros cristãos, a falta de respei-
to humano e a preguiça dos índios (AZEVEDO, 1984).
De concreto, o governo, por coação e/ou medida pre-
ventiva, reduziu o espaço vital Kaingang e, para tirá-los dos
seus territórios, iniciou, a partir de 1846, a Política Oficial
dos Aldeamentos em áreas como Guarita, Nonoai e Campo
do Meio, nas quais se encontram, muitas vezes, caciques prin-
cipais e chefes subordinados, como, por exemplo, Fongue,
Votouro, Nonohay, Condá, Nicafim, Braga, Yotoahê (Doble),
Nicué (João Grande), entre muitos outros que, de acordo com
os seus interesses, negociavam ou não a estadia de suas hordas
nessas áreas (LAROQUE, 2009).
A política governamental para aumentar o povoamento
e propiciar melhores formas para o escoamento da produção
econômica parte, entre 1848 e 1850, para a abertura de mais
estradas, como, por exemplo, a de Mundo Novo-São Leopoldo
e Pontão-Caí-Porto Alegre. Conforme Ítala Becker (1976a),
boa parte dessa segunda estrada já havia sido delineada pelo
engenheiro agrimensor das colônias Alphonse Mabilde des-
de 1835, quando percorreu a região. Seu traçado tinha como
ponto de partida o Passo do Pontão no Rio Uruguai (mais
precisamente na confluência do Rio Pelotas com o Canoas), e
terminava na Picada Feliz, que se localizava no Caí.
Reagindo a esta situação, ao longo da década de 1850,
as correrias Kaingang continuaram tanto em algumas áreas de
colonização alemã quanto em regiões luso-brasileiras, como
Cruz Alta, Passo Fundo, Vacaria, entre outras.
Apesar dos aldeamentos, os ataques e estragos con-
tinuavam, como bem mostra um relatório de Homem de
Mello ao passar a administração da Província, em 1868, ao
Vice-presidente, Sr. Joaquim Vieira da Cunha.
No dia 14 daquele mês assaltaram os bugres a casa
do colono Lambertus Werteg, da colonia de santa
Maria da Soledade, sita no 5º distrito do termo de

31
S. Leopoldo, levando para as matas a família do
mesmo colono, composta de mulher e filhos. (RE-
LATÓRIO de 13/04/1868, p.30)

Durante a primeira metade da década de 1870, na Pro-


víncia de São Pedro do Rio Grande do Sul, alguns registros
sobre os aldeamentos de Nonoai e Campo do Meio mostram
claramente que a legislação respaldada pela Lei de 1850 pos-
sibilitava a tomada das terras indígenas, isto é, inicialmente
demarcavam-se as áreas e depois passava-se a reduzi-las, re-
correndo ao discurso de que estavam improdutivas (RELA-
TÓRIO de 14/03/1871, p.31; FALLA de 1872, p.33-34; FALLA
de 1874, p.41-42).
As lideranças, por sua vez, continuavam a atuar inten-
samente frente a toda esta trama, como bem demonstra a fala
do Presidente Conselheiro, Jeronimo Martiniano Figueira de
Mello, dirigida, em 1872, à Assembleia Legislativa da Provín-
cia, ao informar que os nativos, sob a direção dos caciques e
chefes, saíam do Aldeamento de Nonoai e se espalhavam pelos
municípios de Passo Fundo e Cruz Alta.
Tratando-se da segunda metade da década em questão,
é importante ressaltar que, a partir de 1875, os italianos co-
meçaram a chegar na Província e estabelecerem-se em áreas
como Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Garibaldi, entre outras,
mas que, segundo Basile Becker (1991, p.138), estes não tive-
ram maiores problemas com os Kaingang, porque, nesta épo-
ca, eles já haviam migrado para outras regiões.
Também na última década do século XIX, os ataques às
fazendas, as desavenças entre as facções e as estratégias utiliza-
das pelos diretores para reduzir as terras indígenas ainda con-
tinuavam. Relativo à primeira situação, um relatório do Presi-
dente Carlos Thompson Flores discorre que, constantemente,
os fazendeiros estabelecidos nas vizinhanças dos aldeamentos
de Guarita, Nonoai e Campo do Meio reclamavam das correrias
e ameaças Kaingang às suas propriedades. Quanto às desaven-
ças entre as parcialidades, nesse mesmo relatório, referindo-se
possivelmente a guerreiros do grupo do Cacique Nhancuiá,
ocupantes de território da margem direita do Rio Uruguai,

32
Releituras da História do Rio Grande do Sul

[...] havendo aparecido à margem direita do Rio


Uruguai, nas proximidades de Nonoai, uma tribu
de indios bravos, fôra batida pelos indigenas do al-
deamento daquela denominação, que lhes sairam ao
encontro e em poder de quem ficaram 4 mulheres e
7 crianças. (RELATÓRIO de 15/04/1880, p.39-40)

No decorrer da década de 1880 até a Proclamação da


República, percebe-se que as coisas não foram diferentes, ou
seja, os Kaingang e suas lideranças, agindo de acordo com os
seus próprios termos, mantiveram, até onde lhes interessava,
alianças com os não índios e, consequentemente, a permanên-
cia ou não dos integrantes de suas parcialidades nos aldea-
mentos. O presidente Carlos Thompson Flores, por exemplo,
descreve, no relatório de 15 de abril de 1880 (p.39-40), que os
fazendeiros estabelecidos nas vizinhanças dos aldeamentos de
Guarita, Nonoai e Campo do Meio frequentemente reclama-
vam das correrias e ameaças Kaingang em suas propriedades.
Tratando sobre continuidade da identidade dos grupos
étnicos em contato, Fredrick Barth destaca:
Se um grupo mantém sua identidade quando seus
membros interagem com outros, disso decorre a
existência de critérios para a determinação do per-
tencimento, assim como as maneiras de assimilar
este pertencimento ou exclusão [...] Além disso, a
fronteira étnica canaliza a vida social. Ela implica
uma organização, na maior parte das vezes bas-
tante complexa, do comportamento e das relações
sociais. A identificação de uma outra pessoa como
membro de um mesmo grupo étnico implica um
compartilhamento de critérios de avaliação e de
julgamento. (BARTH, 2000, p.34)

Nos primeiros anos do século XX, a situação Kaingang é


praticamente a mesma do período anterior, pois a penetração
e a cobiça em suas terras continuaram. A partir de 1903, no
entanto, na região de Lagoa Vermelha, tem-se a presença da
catequese dos capuchinhos:

33
Nas florestas do Norte do Estado existem ainda
algumas tribos dos grupos que ocupavam o Brasil
quando de sua descoberta. Um dos nossos missio-
nários, Frei Alfredo de Saint Jean-d’Arves, numa
de suas inúmeras excursões apostólicas, havia
conseguido chegar até esses infelizes. Em vista do
relatório que me apresentou, resolvi visitá-los eu
mesmo com o objetivo de verificar se haveria pos-
sibilidade de empreender algo para lhes proporcio-
nar os benefícios da civilização. [...]. Para chegar a
seus toldos é preciso viajar vários dias pela flores-
ta, transpor árvores arrancadas, atravessar a vau
cursos d’água, que se tornam instransponíveis à
menor chuva; cavalgar por atalhos obstruídos, por
banhados, barrancos, etc. Conversei com os chefes,
falei com as autoridades civis e ficou estabelecido
que se tentaria junto ao Governo do Rio Grande do
Sul obter uma área de terreno, no município de La-
goa Vermelha, às margens do Rio Forquilha, para
aí reunir os diversos toldos e que, em seguida, um
missionário, ou dois, ocupar-se-iam de sua instru-
ção religiosa e civil. (GILLONNAY apud COSTA E
DE BONI, 1996, p. 355-357)

Paralelo à catequese capuchinha com os indígenas, o


engenheiro Carlos Torres Gonçalves, confrade de Rondon na
Igreja Positivista brasileira, foi cogitado e aceitou, a partir de
1908, a Diretoria de Terras e Colonização do estado. No desem-
penho dessa função, antecipou-se ao Governo Federal no enca-
minhamento de uma política indigenista para o Rio Grande do
Sul que estivesse em sintonia com os pressupostos positivistas.
No Rio Grande, o trabalho de demarcação de terras foi
realizado basicamente pela Diretoria de Terras e Colonização.
No período de 1911 até 1920, conforme o relatório do Dire-
tor Torres Gonçalves, são encontradas, no estado, 12 áreas
de aldeamento Kaingang denominadas de Inhacorá, Guarita,
Nonoai (duas aldeias), Fachinal, Caseros, Ligeiro, Carretei-
ro, Ventarra, Erechim, Votouro e Lagoão (RELATÓRIO de
09/06/1910 in: LAYTANO, 1957). Os caciques e chefes que
apareciam nesses aldeamentos são Candinho, Faustino, For-
tunato, Santos, Vito Supriano, Titi Fongue e muitos outros.

34
Releituras da História do Rio Grande do Sul

No decorrer da década de 1930, avançando inclusive


para os anos de 1940, além da frente colonizadora da Socie-
dade Nacional efetivada principalmente pelas fazendas e pela
exploração de riquezas vegetais que retrocedem ao início do
século, tem-se, também, uma segunda frente que se caracteri-
za pela criação de reservas florestais em territórios indígenas.
Neste sentido, então, grande parte das áreas indígenas foram
ocupadas por posse ou arrendamento, seja de colonos imigran-
tes (principalmente descendentes de alemães e italianos) ou de
caboclos, resultando, muitas vezes, na perda de controle dos
Kaingang sobre seus tradicionais territórios (ver Ilustração 3).

Ilustração 3 – Mapa de áreas indígenas no Sul do Brasil na República Velha

Legenda
1. Mangueirinha
2. Palma
3. Chapecó
4. Inhacorá
5. Guarita
6. Pary
7. Nonoai
8. Serrinha
9. Votouro
10. Erechim
11. Ventarra
12. Ligeiro
13. Carreteiro
14. Faxinal
15. Cacique Doble
16. Caseiros
17. Lagoão

Fonte: Luís Fernando Laroque (2011).

35
A título de ilustração dessa questão, tem-se o caso da
Área Indígena de Serrinha, que, pelo Decreto nº 658, de 10 de
março de 1949, Walter Jobim reduziu o território Kaingang
para criação de uma reserva florestal. O argumento utiliza-
do, segundo José Antônio Nascimento (2001, p.56), era o de
evitar que os funcionários do Serviço de Proteção aos Índios
devastassem a área. Entretanto, o governo não fez nada “para
criar áreas de preservação ambiental em áreas não indígenas,
como, por exemplo, em propriedades particulares com vasta
extensão devoluta, expondo, com isso, o caráter protetor das
elites, que o Estado brasileiro sempre teve”.

4 Conclusão

Nessas primeiras décadas do século XXI, observou-se


que os povos indígenas no Rio Grande do Sul, semelhante-
mente ao passado, continuam a viver seu protagonismo, a lu-
tar por seus tradicionais territórios e a vivenciar sua história
e cultura.
Ilustra a questão a situação Charrua, que a historiogra-
fia considerou que, enquanto grupo, desapareceu. Porém, na
primeira metade do século XIX, passado pouco mais que o
período de um século, em plena capital gaúcha, um grupo de
Charrua, liderado pela cacique Acuab, rompeu a invisibidade
imposta e testemunhou que sempre esteve presente, percor-
rendo os territórios no Rio Grande do Sul.
Para os Mbyá Guarani no Rio Grande do Sul, que oficial-
mente retornaram para o estado a partir da década de 1960,
totalizam, aproximadamente, 3.000 indivíduos, as questões
não são diferentes. Falam a língua guarani, além do espanhol
e do português. Elementos culturais, como, por exemplo, a
cestaria, o artesanato, os cantos, o parentesco, o deslocamento
pelo território e, principalmente, o universo religioso, conti-
nuam sendo vivenciados e mantidos no seu dia a dia.

36
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Os Kaingang, com um contingente atual em torno de 10


mil indivíduos no Rio Grande do Sul, também continuam a
vivenciar seu protagonismo. Ressalta-se ser o grupo que, mes-
mo tendo o território bruscamente reduzido após a década de
1930, esteve oficialmente presente como etnia, embora as esti-
mativas governamentais e demográfica insistissem em prever
seu desaparecimento ou sua “aculturação”. Dentre os vários
elementos culturais desses nativos, são apontadas as pinturas
corporais, o respeito ao universo simbólico das duas metades
que se encontram divididas, os cantos, as danças, o apego aos
seus territórios tradicionais, a continuação da língua e, prin-
cipalmente, sua natureza guerreira manifestada recentemente
quando bloquearam várias rodovias gaúchas como forma de
reivindicar melhorias na área da saúde.
Para finalizar, chama-se a atenção para o fato de que as
populações indígenas, durante o contato com a Sociedade Co-
lonial e Nacional brasileira, não deixaram de ter sua própria
ordenação histórica dos eventos que vivenciaram, uma vez
que a história é ordenada culturalmente, mas a recíproca tam-
bém acontece (SALHINS, 1990). Neste sentido, ainda é preci-
so romper com a concepção estática de cultura fundamentada
no paradigma estrutural-funcionalista e difundida pelo Evo-
lucionismo e Positivismo, as quais concebem que as socieda-
des passam por estágios de “evolução” ou de “perda cultural”.
Infelizmente, esta visão ainda continua presente na atualidade
e a dificultar relações interculturais entre a sociedade Ociden-
tal e as sociedades indígenas.

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veira este ao Exm. Sr. Dr. Henrique D’Avila a 19 do mesmo mês e Fala com
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Releituras da História do Rio Grande do Sul

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42
Releituras da História do Rio Grande do Sul

OS JESUÍTAS NO TERRITÓRIO GAÚCHO


* Ricardo Arthur Fitz

1 A Companhia de Jesus e sua contextualização his-


tórica

O século XVI foi, sem dúvida, um divisor de águas na


História do mundo ocidental. A inserção de vastas áreas da
América, África e Ásia na economia mercantil europeia al-
terou significativamente os horizontes europeus. Não havia
mais limites ou barreiras intransponíveis. Evidentemente, tais
circunstâncias não são geradas de forma abrupta no período,
mas, sim, resultado de longa maturação, cujas raízes podem
ser vislumbradas no incremento das atividades comerciais na
Baixa Idade Média. No bojo desse processo, desenvolveu-se o
que se convencionou denominar Renascimento e que alcan-
çou sua culminância justamente no século XVI.
Segundo Heller (1982), o Renascimento representou a
primeira onda no processo de transição do feudalismo ao ca-
pitalismo. As atividades capitalistas, na medida em que têm
permanentemente metas a serem atingidas – a produção de
riquezas –, tornam as várias circunstâncias previamente exis-
tentes em fatores restritivos. “O homem não deseja continuar a
ser aquilo em que se transformou, antes vivendo um processo
constante de devir”, uma constante transposição de barreiras,
rompimento de limites e hierarquias (MARX, GRUNDISSE
apud HELLER, 1982, p. 11).
Consequentemente, os limites também são rompidos
nas consciências humanas. Agnes Heller demonstra que a
consciência da historicidade do homem é produto do desen-
volvimento burguês. O Renascimento propicia, portanto, o

* Professor da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA) e do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA).

43
surgimento de um conceito dinâmico de homem – em opo-
sição a um conceito estático dominante na Antiguidade –, se-
gundo o qual o mesmo homem passa a ter uma história de
desenvolvimento pessoal e a sociedade também adquire seu
sentido de desenvolvimento (HELLER, 1982).
Heller comenta que, durante a Antiguidade, prevale-
ceu um conceito estático de homem, cujas potencialidades
eram limitadas. Tais limites acabaram sendo dissolvidos pela
ideologia cristã medieval na medida em que tanto a perfec-
tibilidade quanto a perversão podem constituir um processo
ilimitado. Ainda assim, limites se impunham, determinados
pela transcendência do início e do fim: o pecado original e o
Juízo Final.
Portanto, ao passo que o comportamento intelectual do
homem medieval era orientado fundamentalmente pela exe-
gese da revelação – tanto das autoridades religiosas, quanto
das autoridades da Antiguidade – o comportamento intelec-
tual do homem do Renascimento, influenciado pelo Huma-
nismo, voltava-se para suas próprias potencialidades e pos-
sibilidades.
De outro lado, a expansão das atividades comerciais de-
finiu a superação das estruturas feudais nos níveis econômico
e socioculturais. Decorre disso uma profunda mudança nas
consciências acerca de tempo e de espaço.
No que se refere ao tempo, Agnes Heller afirma que:
Surgia com a dissolução do quadro limitado das or-
dens sociais feudais, a possibilidade de o indivíduo
‘subir’ ou ‘descer’, ‘aderir’ ao dinamismo objetivo da
sociedade; devia ‘aprender-se’ o ‘momento certo’, de
tal modo que o indivíduo pudesse movimentar-se
juntamente com a corrente histórica. O ‘ritmo’ e
o ‘momento’ tornaram-se essenciais e totalmente
compreensíveis no interior do ‘processo’. (HELLER,
1982, p. 143)

44
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Ainda, segundo a autora, “esses conceitos de tempo não


ultrapassaram (...) as generalizações da experiência quotidia-
na” (HELLER, 1982, p. 143). Surgia, assim, uma nova concep-
ção de tempo vinculada a uma nova ordem social – burguesia,
por excelência – que se afirmava. Esse tempo é colocado ao
lado de um tempo religioso herdado da Idade Média. Assim,
“desde o final do século XV dois tempos passaram a convi-
ver paralelamente: o tempo da Igreja, regido pelo sino e pela
oração e o tempo laico, organizado matematicamente pelo
relógio e pelos marcadores.” (DECKMAN, 1991, p. 43). Este
último, ainda que voltado fundamentalmente para uma fun-
cionalidade econômica objetiva, a saber, gerar riquezas, passa
gradativamente a balizar o quotidiano ocidental e as concep-
ções modernas de organização temporal.
No que tange ao espaço, tais alterações nas consciências
constituíam-se, antes de tudo, em uma consequência direta
das grandes descobertas. Comenta a autora:
A mudança das idéias de ‘grande’ e ‘pequeno’ trans-
formou-se num tema da experiência quotidiana:
tornou-se um lugar-comum, o ‘mundo’ até então
conhecido ser apenas uma pequena parte da terra.
Essa experiência – pelo menos durante o período
clássico do Renascimento – tinha um efeito mobi-
lizador; deu um impulso no sentido da descoberta
de novos mundos. O vasto e desconhecido atraíam,
em vez de repelir; sua conquista era um desafio
para a individualidade recém-desenvolvida, uma
aventura. (HELLER, 1982, p. 142)

Estas novas condições foram também determinantes


na mudança de perspectivas de apreensão da realidade. Até
então, “por partirem da ideia de que a definição do universo
vinha de Deus, [...] a fidelidade e a objetividade (dos relatos de
viagem) eram suplantadas por imagens fantásticas” (DECK-
MAN, 1991, p. 47).

45
Na medida em que as navegações atlânticas se desenvol-
veram, novas fantasias destruíram parcialmente o imaginário
medieval. Este processo de transição “volatizou muitas das
certezas do homem e o capacitou para dominar o mundo e
devassar os mistérios da Natureza.” (DECKMAN, 1991, p. 1).
Os reflexos de tal atitude se fazem sentir em todas as
esferas da vida europeia. Assim é na arte, na cultura, no pen-
samento e na religião. Os movimentos reformistas da religião
são parte integrante deste contexto, criando-se um profundo
abismo na cristandade. Os reformadores protestantes têm
como alvo principal a teologia escolástica.
Evidentemente, esta ruptura não significava um rompi-
mento completo com os princípios determinantes da fase an-
terior. Esses princípios vinham, agora, orientados em direção
à nova realidade dada. Assim, esta dinamicidade do homem se
refletia, também, nas concepções religiosas que vão se definin-
do no período. Lutero – sem dúvida um dos marcos mais sig-
nificativos desta ruptura – proclamava que “a fé está sempre,
e incessantemente em acção; caso contrário não é fé.” (apud
DICKENS, 1971, p.89). A fé não é passiva, é ativa. Esta postu-
ra radical, inclinadamente moderna, subordina a condição de
existência da fé à dinamicidade própria da época.
É significativo o fato de que o centro de educação teo-
lógica da Igreja Católica Romana deixava de ser Paris; outros
centros, como Salamanca e Coimbra, menos atingidos pelas
novas correntes de pensamento, tomaram seu lugar.
É dentro desse contexto que é convocado o Concílio de
Trento (1545-1563) e surge a Companhia de Jesus – além do
reavivamento da Inquisição. A Companhia, aprovada pela bula
Regimini Militantis Ecclesiae do papa Paulo III, cinco anos an-
tes da convocação do Concílio, incorpora, todavia, o espírito
tridentino no que se refere ao combate às heresias e aos movi-
mentos reformistas. Contudo, nenhuma outra ordem religio-
sa foi mais receptiva ao humanismo, em particular ao estudo
renovado do Aristotelismo, que a Companhia de Jesus, esta-

46
Releituras da História do Rio Grande do Sul

belecendo-se inclusive longas controvérsias entre jesuítas e to-


mistas. No dizer do teólogo sueco (luterano) Bengt Hägglund
(1981), a nova ordem jesuítica foi de natureza eclética.
Jean Lacouture (1994, p. 89) afirma que:
É, ao mesmo tempo antes e depois da adoção do
humanismo renascentista que devemos buscar e
avaliar o tesouro conquistado ao longo dos anos
parisienses pelos alunos de Santa Bárbara: uma
nova concepção da transmissão do saber, e numa
abertura para o mundo que só se manifestará
mais tarde, mas que o debate dos sete pais funda-
dores, no momento do pronunciamento dos votos
de Montmartre, permitiu antever.1 (grifos do autor)

De fato, os jesuítas não ficaram de todo imunes às mu-


danças ocorridas no período. Se, de um lado, era-lhes muito
presente o espírito cruzadista medieval – talvez por influên-
cia das experiências diretas [pessoais] de Loyola – e os seus
princípios norteadores, também deve-se considerar o espírito
investigativo, presente na visão de mundo do homem da época,
e que de certa forma se manifestava nos componentes da So-
ciedade de Jesus. O espírito cruzadista, traduzido à fórmula da
evangelização do oriente e das populações nativas da América,
constituiu na versão inaciana do binômio fé/ação de Lutero.
Por outro lado, o individualismo nascente é tipicamen-
te renascentista e, também ele, de alguma forma, se faz pre-
sente entre os jesuítas. A posição de Santo Inácio, expressa
principalmente nos Exercícios Espirituais, privilegia a cons-
ciência, forma do individualismo inaciano, como ponto onde
se decide a bondade ou a maldade da vida humana. Neste
aspecto, há uma aproximação com Lutero: o cuidado com
sua própria salvação.

1
Ao utilizar as expressões “alunos de Santa Bárbara”, o autor está se referindo a Inácio de Loyola, que
havia estudado no Colégio de Santa Bárbara, em Paris; ao se referir” aos “sete pais fundadores”, tratados
primeiros seguidores de Inácio.

47
2 Os jesuítas e sua relação com o Estado espanhol

Politicamente, o Concílio de Trento aproximava-se do Ab-


solutismo Monárquico então instalado na Europa, tendo a Igreja
colocado-se lado a lado ao Estado. Para que tivesse seu poder
reconhecido, o rei deveria demonstrar estar imbuído de pensa-
mento cristão. É essa a base do Absolutismo de direito divino.
Do ponto de vista das conquistas territoriais dos séculos XV e
XVI, exige-se dele compromisso cristão com as regiões conquis-
tadas. Essa é a base da expansão religiosa do período colonial.
Na Península Ibérica, não há muito tempo, o último
bastião de resistência muçulmana havia sido dobrado, com
a conquista de Granada, em 1492. O espírito cruzadista que
acompanhou a Reconquista vai marcar intensamente a Espa-
nha recém-unificada pelos “Reis Católicos”, Fernando de Ara-
gão e Isabel de Castela. Isto evidencia que
não foi o pensamento jesuítico que orientou a con-
versão do gentio à fé católica ou o que estimulou o
espírito cruzadista dos colonizadores, pois já havia
uma estrutura mental global, totalizadora e ante-
rior aos jesuítas (QUEVEDO, 2000, p. 21).

Desde a primeira viagem de Colombo à América (1492)


ficara clara a proximidade do Estado espanhol com a Igreja.
O papa Alexandre VI, nascido na Espanha, garantiria a esta
os territórios conquistados ou a serem conquistados através
das bulas Inter Coetera, adiante substituídas pelo Tratado de
Tordesilhas. Ao sancionar estes documentos, o papa exigia
dos espanhóis que levassem missionários a esses territórios.
Dava-se, assim, continuidade a um antigo projeto medieval
de constituição de um Império Universal,2 no qual o gládio
material atuaria em favor do gládio espiritual.

2
A este respeito, veja-se o interessante trabalho de Marcos del Roio: O Império Universal e seus antípodas.

48
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Esta relação próxima entre Igreja e Estado se materiali-


zava mediante alguns mecanismos (FLORES, 1986, p. 6):
Através do Régio Padroado, da Teoria do Vica-
riato e da Propriedade da Mão Morta, a Igreja
hispânica fazia parte integrante do Estado Espa-
nhol. O Padroado real era o direito que o monar-
ca tinha de nomear os sacerdotes para as igrejas
vagas. A Teoria do Vicariato permitia que o rei
examinasse qualquer resolução do papa, a qual
só teria valor em território do vasto império com
a assinatura do monarca. Os bens imóveis da
Igreja espanhola faziam parte da Propriedade da
Mão Morta, isto é, só podiam ser alienados com
o consentimento da coroa. Portanto o Estado do-
minava a Igreja espanhola.

Acompanhando a expansão ibérica, diversas ordens


do clero regular vão ocupando novos espaços. Já em 1500 os
Franciscanos se estabeleram no México; dez anos depois, foi
a vez dos Dominicanos, que trouxeram consigo a máquina da
Inquisição. Sucedem-se várias outras ordens religiosas, uma
vez que o clero secular vinha bastante enfraquecido.
De todos, os jesuítas foram os mais ativos. Após o re-
conhecimento da Companhia de Jesus (1540), eles, ato contí-
nuo, acompanhando as expansões portuguesa e espanhola, se
lançam à tarefa missionária. Em 1548, estavam no Ceilão; em
1549, no Brasil; em 1552, na China; em 1580, no Japão. Os je-
suítas sediados em São Paulo, tendo à frente o Pe. Manoel da
Nóbrega, propõem a Inácio de Loyola a evangelização de áreas
da América espanhola. Em 1568, Francisco de Borja3 envia um
grupo de jesuítas para o Peru. Em 1607, é criada a Província
Jesuítica do Paraguai, abrangendo o Paraguai, parte da Bolívia,
a Argentina, o Uruguai e o Sudoeste do Brasil. A região dos

3
Francisco de Borja, neto do papa Alexandre VI (Rodrigo Borgia), era o Duque de Gandia, influente nobre
espanhol. Na ocasião, era o superior da Companhia de Jesus.

49
chamados “Sete Povos das Missões”, no Rio Grande do Sul,
corresponde a uma parte do território sob jurisdição da Pro-
víncia Jesuítica do Paraguai.
Cumpre lembrar que a atividade jesuítica se encontra
subordinada a toda uma legislação, já existente por ocasião
da fundação da Companhia de Jesus, promulgada pela Co-
roa hispânica ao longo do século XVI, as Leyes de Índias. “Os
missionários tinham a obrigação de observá-las, sob pena de
não poderem trabalhar no meio indígena. E eles não apenas
zelavam por sua fiel observância, mas procuravam, por meios
legais, aperfeiçoá-las em muitos pontos.” (BRUXEL, 1978, p.
19-20). Portanto, sua atuação não era completamente autôno-
ma e se vinculava às formas de relação política da Igreja com
o Estado espanhol.

3 A ação missionária na região da Província Jesuítica


do Paraguai

Inicialmente, a ação missionária dos jesuítas era do


tipo “missão”, que consistia em incursões de missionários
aos aldeamentos indígenas que, no caso do Rio Grande do Sul,
eram da etnia Guarani. De tempos em tempos, os jesuítas visita-
vam as aldeias onde então era exercido o proselitismo religioso
com fins de conversão. Os indígenas, portanto, permaneciam
em seus locais de origem onde, senhores do território, man-
tinham seus hábitos e costumes seculares, seu modo de vida,
sua organização socioeconômica, seu sistema familiar, etc. Do
ponto de vista da ação missionária, o método se mostrou inefi-
caz: o proselitismo não perdura; a mensagem dos jesuítas não
se incorporara solidamente no universo indígena. O modo de
vida indígena era obviamente associado à sua cosmovisão e esta
tinha sua fundamentação em seu sistema religioso. O sucesso
da doutrinação religiosa só poderia ocorrer se, simultaneamen-
te, fosse desarticulado seu modo de vida tradicional.

50
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Outro problema enfrentado pelos jesuítas diz respeito


ao fato de que os índios eram caçados tanto por portugueses
como por espanhóis para submetê-los a trabalhos forçados e,
não raro, os padres eram associados aos apresadores de índios.
Alguns deles sendo, inclusive, mortos pelos índios, como foi o
caso dos “três mártires de Caaró”.
Diante do fracasso de tal sistema, os jesuítas passaram
a adotar o sistema “reducional”. As populações indígenas fo-
ram chamadas a abandonar seus tradicionais aldeamentos e
ocupar novos espaços, as “reduções”, as quais eram pensadas
de forma a se constituírem longe das áreas povoadas por por-
tugueses ou espanhóis, evitando, assim, as “más influências”
destes. Por este processo, os indígenas seriam “reducidos”, isto
é, estabelecidos coletivamente em aldeamentos, nos quais,
além da doutrinação religiosa, seriam submetidos a um pro-
cesso “civilizatório”, isto é, europeizados. A primeira experiên-
cia reducional foi em Juli, às margens do Titicaca, atualmente
território do Peru junto à fronteira boliviana.
Weber (2002, p. 116) procura demonstrar a nova postu-
ra do protestantismo diante do mundo, comentando que
[...] o ascetismo cristão, que de início se retirava do
mundo para a solidão, já tinha regrado o mundo
ao qual renunciara a partir do mosteiro e por meio
da Igreja. Mas no geral, havia deixado intacto o
caráter naturalmente espontâneo da vida laica no
mundo. Agora avança para o mercado da vida, fe-
chando atrás de si a porta do mosteiro; tentou pe-
netrar justamente naquela rotina de vida diária,
com sua metodicidade, para amoldá-la a uma vida
laica, embora não para nem deste mundo.

Em certo sentido, este foi, salvaguardadas as óbvias dife-


renças, o caminho traçado pelos jesuítas. Melhor seria, talvez,
dizer que os jesuítas ampliaram o mosteiro para o mundo com
a sensibilidade de compreender o mundo enquanto seculum.

51
Os jesuítas tiveram a clareza necessária para perceber
que a vida e a atitude cristãs não estão identificadas com o
isolamento e o afastamento do mundo. Compreenderam que
o combate por Cristo implicava uma atividade plena. Assim,
a obra evangelizadora dos padres da Companhia de Jesus as-
sumiu um sentido prático: vinha acompanhada de preocupa-
ções de se fazer presente na vida e no cotidiano das pessoas.
A atitude contemplativa é substituída [ou acompanhada de]
intervenções concretas no mundo secular.
No caso das reduções americanas, não se tratava de, ex-
clusivamente, converter os indígenas ao Cristianismo, ainda
que fosse o fim a ser alcançado. Compreendiam os jesuítas que
a conversão só seria possível na medida em que a ação evan-
gelizadora viesse acompanhada de ações que representassem
concretamente mudanças radicais, ou, ao menos, significati-
vas, no modo de vida dos futuros catecúmenos.
Ficava claro para os padres que a nova religião a ser
trazida para os índios somente vingaria caso o modo de vida
dos mesmos sofresse radical transformação. O Cristianismo é
também um modo de vida. Isso significa a exigência de certos
tipos de comportamento que não eram observados entre os
indígenas. Isto é particularmente verdadeiro no que se refere
a certas formas de comportamento presentes nas tradições in-
dígenas que contrariavam frontalmente os princípios do Cris-
tianismo. Áreas particularmente sensíveis são a poligamia e a
antropofagia.
O sucesso da doutrinação religiosa só poderia ocorrer se
simultaneamente à evangelização fosse desarticulado o modo
de vida tradicional dos indígenas. Neste sentido, segundo
Kern (1994, p.17), “a atuação dos jesuítas junto aos guaranis é
francamente modernizadora e tem como objetivo a mudança
em todos os sentidos: transformar os guaranis em homens po-
líticos que ultrapassem o estágio selvagem e se transformem
em habitantes da Polis”.

52
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Isto implicava a necessidade de romper com as velhas


tradições culturais das populações indígenas. Normalmente,
os porta-vozes destas tradições culturais eram os caciques e os
“feiticeiros” (pajés) e com eles frequentemente se estabeleciam
relações de conflito. O Padre Antonio Ruiz de Montoya (1997,
p. 61), em texto originalmente publicado em 1639, fala de um
cacique que “começou a perturbar e rebelar os ânimos contra
nós”, dizendo que “foram os demônios que nos trouxeram es-
tes homens, pois querem, com novas doutrinas, privar-nos do
que é antigo e do bom modo de viver de nossos antepassados.”.
Porém, em um trabalho paciencioso, os jesuítas vão aos
poucos conquistando os Guarani. O próprio Montoya (1997,
p. 61) comenta que por dois anos os jesuítas toleraram os há-
bitos poligâmicos de um determinado chefe Guarani.
Aos poucos, porém, a conversão do indígena vai se tor-
nando mais sólida. É possível que um dos fatores que mais
tenha contribuído para isso tenha sido o trabalho feito junto
às crianças, que parecem ter sido muito mais suscetíveis que
os adultos.
José de Anchieta (1998, p.107) comentava, sobre o tra-
balho missionário no planalto de Piratininga, em São Paulo
que “porque como dos pais nenhuma ou mui pequena espe-
rança haja (...), tudo se converte em os filhos”. Nas reduções,
as crianças eram retiradas do convívio com os pais todas as
manhãs e doutrinadas. Mais tarde, elas tratavam de repassar o
que haviam aprendido aos adultos.
À medida que o processo de conversão avançava, os
Guarani iam sendo instalados nas reduções que eles próprios,
sob supervisão dos padres, iam construindo. Aos poucos,
“nos povoados guaranis um complexo processo de acultura-
ção mescla as normas e a tradição indígena com novos hábitos
e instituições europeias que são assimilados parcialmente ao
longo do tempo.” (KERN, 1994, p.18).
Na Província do Paraguai, a instalação das reduções
tem início em 1610, quando os padres José Cataldino e Simão

53
Masseta organizam os indígenas nos povoados missioneiros
de Nossa Senhora de Loreto e Santo Inácio Mini. Em 1626, o
padre Roque Gonzalez de Santa Cruz funda São Nicolau, ini-
ciando o processo em territórios do atual Rio Grande do Sul.
Conforme o Padre Arnaldo Bruxel (1978, p. 22), “em menos de
25 anos foram fundadas mais de 30 reduções”. É por essa época
que começam a aparecer as primeiras cabeças de gado: “desde
1628, há referências sobre gado nas reduções, em pequeno nú-
mero e destinado à alimentação do padre e de doentes.
Em 1634, os Padres Pedro Romero, superior das missões,
e Cristóvão de Mendoza compraram 1.500 vacas ao português
Manoel Cabral Alpoim” (FLORES, 1986, p.12). Esse gado vai
alcançar, a partir de 1637, a chamada Vacaria do Mar.
O período vai assistir às incursões dos bandeirantes
paulistas à região em busca de mão de obra escrava. Segundo
Bruxel (1978, p 25), “foram cativados mais de 300.000 índios,
entre 1612 e 1638, sendo vendidos em mercado brasileiro uns
60.000 escravos indígenas, entre 1628 e 1631”. As frequen-
tes incursões dos paulistas levaram os padres a transladar as
missões para a outra margem do rio Uruguai, retornando em
1687. Das antigas reduções, muitas se extinguiram, umas so-
breviveram parcialmente e outras foram, com o decorrer do
tempo, reocupadas. Novas reduções também surgiram. Com
a fundação de Santo Ângelo, em 1707, completava-se o ciclo
de fundações de povos missioneiros que agora contava com 30
reduções, sendo que 7 delas no atual território gaúcho.

4 O plano urbanístico das reduções jesuíticas e


organização econômico-social

As reduções apresentavam uma regularidade e simetria


do plano urbanístico. Obedeciam a um modelo-padrão com
pequenas variantes individuais. Ao centro ficava uma grande
praça quadrada com cerca de 150m de lado, para a qual con-
vergiam as ruas principais. Em um dos lados da praça, ao nor-

54
Releituras da História do Rio Grande do Sul

te ou sul, ficava a igreja, dominando a paisagem em frente a


ela, no lado oposto da praça, o cabildo. Junto à igreja ficavam,
de um lado o cemitério e a casa das viúvas (cotiguaçu), e de
outro a casa dos padres, escola, dois pátios internos, oficinas,
etc.; nos fundos deste conjunto ficavam a horta e o pomar dos
padres. Cercando a praça por três lados, encontravam-se as
habitações dos índios. Kern (1994, p 33-36) chama a atenção
para o fato de que a origem do conjunto que compõe a igreja, o
cemitério e os outros equipamentos, se encontra em mosteiros
beneditinos da Idade Média. Quanto ao traçado regular das
ruas onde se encontram as casas, seria uma retomada Renas-
centista do antigo projeto Helenístico de cidades planejadas.
O modelo era especificado pelas “Leyes de Indias” e deveria
ser aplicado nas várias povoações espanholas que vinham se
constituindo na América.
Nas oficinas, produzia-se toda a sorte de utensílios ne-
cessários. Faziam-se trabalhos em olaria, cantaria, marcenaria,
produziam-se instrumentos musicais. Em algumas reduções,
até mesmo fundições (como em São João Batista) e tipografias
foram instaladas.
Nas estâncias, o gado era criado livremente, mas pro-
curava-se separar o gado equino, vacum e lanígero. A deli-
mitação aproveitava barreiras naturais, como rios, banhados,
matos intransponíveis. Haviam, ainda, os posteiros, famílias
de indígenas encarregados de amansar o gado e fazer os neces-
sários rodeios. A carne abastecia as reduções, constituindo-se
em seu alimento principal.
As reduções também se caracterizaram pela produção
em larga escala de erva-mate. A “Ilex Paraguariensis”, por
estar associada às atividades xamânicas dos pajés, foi inicial-
mente proibida pelo governo espanhol e seu uso punido com
excomunhão pela Igreja. Ainda assim, seu uso se tornava cada
vez mais difundido a ponto de a proibição ser revogada e as
reduções jesuíticas tornarem-se os principais produtores de

55
erva-mate. Mais do que isto, a erva-mate tornou-se o princi-
pal produto de exportação das reduções e sua principal fonte
de recursos.
Os jesuítas instituíram um sistema caracterizado por um
acentuado dirigismo econômico. Este modelo condizia com
o que se poderia considerar uma síntese entre as concepções
europeia, orientada por uma perspectiva jesuítica, e indígena,
esta última, que vinha sofrendo brutais transformações com a
chegada dos europeus. Imbuídos, do ponto de vista econômi-
co, de uma lógica mercantilista, os jesuítas procuram integrar
os indígenas em um novo contexto produtivo. Assim, os indí-
genas são submetidos a uma nova realidade econômica. Seu
modo de vida tradicional é quebrado; as formas e os processos
produtivos e os tempos necessários para garantir a sobrevi-
vência são profundamente alterados.
Godelier (1988, p.78), ao se referir a sociedades coleto-
ras/caçadoras, comenta que:
Constatou-se, por meio de observações quantitati-
vas precisas e prolongadas em sociedades de caça-
dores e de colectores, que aos membros produtores
dessas sociedades bastavam pouco mais ou menos
quatro horas de trabalho por dia para cobrirem to-
das as necessidades de pequenos grupos humanos
e, mesmo perante estes factos, cai rapidamente por
terra a visão dos primitivos esmagados pela natu-
reza e vivendo exclusivamente para subsistir. Mui-
to pelo contrário, parece que o desenvolvimento da
agricultura resultou no alongamento do dia de tra-
balho e quantidade de trabalho anual necessário à
produção e à reprodução das condições materiais
da sociedade.

É essa organização original que é rompida. O ritmo de


trabalho não é mais ditado pelas necessidades naturais, mas
por novas imposições sociais. O tempo não é mais o tempo
da natureza, mas o do relógio. O cotidiano indígena, agora, é

56
Releituras da História do Rio Grande do Sul

ditado pelo jesuíta. Ora, a inserção dos indígenas em um novo


modo de produção representa uma ruptura que nem sempre
era facilmente assimilada. Daí acontecer de os indígenas apre-
sentarem frequentemente “resistências” ao novo modelo, ou
apenas não seguirem as regras com o rigor que os jesuítas es-
peravam. Por isso, não raro eram taxados de “imprevidentes”
ou “indolentes”.
Os jesuítas procuraram adaptar o modo de vida indí-
gena à nova realidade. O sistema de propriedade ou posse da
terra procurava, por exemplo, fazer um casamento entre duas
culturas distintas.
Kern (1994, p. 17) demonstra que
[...] a propriedade familiar ou clânica (“Abama-
baé”) está relacionada à horticultura de origem
neolítica, enquanto que muitas das tradições cultu-
rais européias introduzidas, tais como a agricultu-
ra do arado, a pecuária e o artesanato com tecno-
logia mais avançada, passam a ser uma atividade
comunitária (“Tupambaé”).

A organização social também reflete esta síntese. Nova-


mente, com Kern (1994, p. 17), pode-se perceber que
Nas missões jeusítico-guaranis não existiam “clas-
ses” sociais, mas uma divisão de trabalho por sexo
e por idade, onde duas categorias sociais se distin-
guem pela função: os caciques escolhidos dentre os
guaranis e uma “casta” de padres imposta pela so-
ciedade global espanhola.

A divisão natural do trabalho (por sexo e por idade)


pressupõe a inexistência de mecanismos de acumulação como
os constituídos na Europa. “Toda a população missioneira tra-
balhava para o bem comum da redução, sem receber remune-
ração alguma.” (NEUMANN, 1996, p. 60). Daí não existirem
“classes” sociais, como diz Kern.

57
Neumann (1996, p. 61) comenta, a esse propósito, que
nas oficinas das reduções
A organização do trabalho (...) guarda grande
semelhança com a organização das similares no
medievo europeu, apresentando uma estrutura
hierárquica de aprendizes, oficiais e mestres (al-
caide), e a propriedade comunal das ferramentas
de trabalho. A transposição do modelo europeu re-
sulta do fato de que a estruturação do modelo de
trabalho nas reduções é fruto de uma sociedade de
contato e fortemente influenciado pelo sistema de
trabalho mais organizado. No entanto, mesmo as-
sim criavam-se moldes de trabalho próprio, corres-
pondendo a outras estruturas sociais provenientes
da experiência guarani.

Já os mecanismos políticos constituem uma imposição


da “sociedade global espanhola”. A direção das reduções cabe
a dois padres em cada povo – um com funções religiosas e
outro com funções administrativas – apoiados por um con-
selho de caciques reunidos em um cabildo à moda espanhola.
Os caciques são escolhidos pelos padres dentre as lideranças
indígenas originais que pudessem colaborar com a tarefa je-
suítica. Os cabildos “governam em nome dos governadores de
Assunção ou Buenos Aires” (KERN, 1994, p. 22).
As casas dos índios também são uma demonstração des-
sa síntese. Dispostas segundo o traçado definido pelas “Leyes
de Indias”, como já comentado, elas se constituem de constru-
ções retangulares com alpendres que a cercavam nos quatro la-
dos. A casa era uma forma revista da grande habitação coletiva
indígena (oka) em que viviam famílias extensas, onde, porém,
devido aos necessários escrúpulos religiosos, se fez introduzir
divisórias internas que separassem as famílias nucleares.

58
Releituras da História do Rio Grande do Sul

5 As reduções e suas relações com a sociedade


espanhola
Os objetivos dos padres são, antes e acima de tudo, reli-
giosos e, portanto, comprometidos com a conversão ao cristia-
nismo. Porém, há o mundo concreto da colonização espanho-
la, com o qual os jesuítas vão procurar integrar suas ambições
evangelizadoras. Neste sentido, se defrontam com problemas
de toda ordem, resultantes de uma realidade multifacetada. De
um lado, a obediência devida ao Estado espanhol e às Leyes
de Índias; de outro, os princípios doutrinários da Ordem e o
respeito à hierarquia religiosa. À sua frente, uma multidão de
indígenas a ser retirada de seu modo de vida e introduzida no
mundo cristão; por trás, o poderoso Império espanhol que os
usa nas regiões fronteiriças para deter o avanço português.
Por outro lado, os jesuítas se defrontavam com a neces-
sidade de “proteger” os indígenas do contato com a socieda-
de espanhola. Visitantes espanhóis em geral não eram muito
bem-vindos (excetuando-se, evidentemente, as autoridades),
tanto que o local de abrigo para viajantes – o “tambo” – ficava
nas áreas periféricas do aglomerado urbano.
Os indígenas reduzidos são súditos do rei da Espanha e,
como tal, eram, quando necessário, recrutados para o serviço
de sua majestade. Kern (1994, p. 25) comenta que eram cons-
tantes as “atividades bélicas das milícias Guarani a serviço dos
reis da Espanha contra portugueses, contra tribos nômades do
Pampa e do Chaco (Charruas, Minuanos e Guaicurus) e mes-
mo contra brancos revoltados em Assunção (Revolta do Bispo
Cárdenas e Revolta dos Comuneros”. As atividades bélicas não
eram as únicas. Na região do Rio da Prata, os indígenas são
convocados com frequência.
Neumann (1996, p. 76) sintetiza as convocações de
trabalho em três grupos: facções de guerra, obras públicas
e transporte e construção naval. Desta forma, os Guarani
das reduções deixaram uma marca bem-definida no cenário
econômico-social da América espanhola.

59
6 A Guerra Guaranítica e a decadência das reduções

Em 1750, o Tratado de Madri vai regularizar os limites


das áreas que cabiam a Portugal e Espanha na região. Portugal
entrega à Espanha a Colônia de Sacramento e, em troca, rece-
be a região dos Sete Povos. Os missionários jesuítas procuram
atuar junto à Coroa espanhola no sentido de anular a decisão
do Tratado. Não o conseguindo, e, por estarem ligados politi-
camente ao Estado, os missionários iniciam um processo de
transferência para a outra margem do Rio Uruguai. O Tratado
definia o prazo de um ano para a retirada das reduções. Por-
tugal e Espanha organizam uma comissão de demarcação de
limites a cargo de Gomes Freire de Andrade e do Marquês de
Valdelírios.
A comissão inicia suas atividades em 1752. Os jesuítas
solicitam a ampliação do prazo, pois consideravam necessário
pelo menos três anos para deslocar mais de 30 mil pessoas e
700 mil cabeças de gado. Além disso, ainda não havia espaço
nos povoados missionários da Argentina que pudesse ser ocu-
pado por eles. Valdelírios não admite alteração nos prazos e
os padres não têm alternativa, a não ser tentar convencer os
Guarani a se retirarem.
Um número muito grande de indígenas não acata tais
decisões, particularmente nas reduções de São Nicolau e São
Miguel, e vai se armar. Em 1753, iniciou o conflito. Em 1756,
Sepé Tiaraju, principal liderança indígena, cai morto e, três
dias depois, 1.500 Guarani são mortos em Caibaté. Aos pou-
cos, a resistência se desfez, as reduções foram ocupadas e a
população, deportada para a outra margem do Uruguai.
Pouco tempo depois, em 1761, Carlos III, da Espanha,
rescinde o Tratado de 1750 e os Guarani voltam ao território
dos Sete Povos, ocupando as povoações semidestruídas.
Os anos 1700 se caracterizam, ainda, pela ascensão, na
Europa, do despotismo esclarecido.

60
Releituras da História do Rio Grande do Sul

As palavras de ordem agora seriam ‘seculariza-


ção’ e ‘modernização’, e seu significado, amplo na
conjuntura reformista do século XVIII, viria a ser
a abolição da influência e dos controles ideológi-
cos de natureza eclesiástica, para efetivar o plano
político, qual seja, a visão do Estado como procu-
rador dos interesses do bem comum. (QUEVEDO,
1998, p. 53)

O Marquês de Pombal, ministro de D. José I, inicia o


processo de reforma política em Portugal, tendo como alvo
a Companhia de Jesus. Em 1759, os jesuítas são expulsos de
Portugal e, em seguida, do Brasil, da França, da Espanha.
Pressionando o papado, as monarquias europeias consegui-
ram que o papa Clemente XIV extinguisse a Companhia em
1773. Somente na Rússia dos czares, os jesuítas sobreviveram
no período. A Companhia só veio a ser restaurada em 1805.
Nesse período, as reduções entraram em declínio acen-
tuado. Inicialmente, as reduções foram entregues a outros
grupos religiosos. Porém, pouco foi feito. Os Sete Povos não
chegaram a ser reconstituídos plenamente após a Guerra Gua-
ranítica e as demais reduções, entregues à própria sorte, aos
poucos foram definhando. Nos inícios dos anos 1800, os rela-
tos dos viajantes mostram as reduções em ruínas.

7 Conclusão

Inseridas em um contexto de exploração colonial, as


reduções acompanharam o processo de ocupação de terras
americanas levada a cabo pela Coroa espanhola. Sua atuação
implicou não apenas a conversão religiosa dos indígenas, mas
sua inserção em modo de vida “europeizado”. O modo de pro-
dução foi radicalmente alterado, com a introdução de novas
técnicas, de uma reorganização do tempo produtivo em mol-
des europeus, e de novas formas de trabalho. As novas tecno-
logias são apenas um adendo a essas mudanças.

61
As relações familiares também se alteraram à medida
que novos padrões de casamento e organização familiar fo-
ram instituídos nas reduções. Da mesma forma, diversos ou-
tros padrões culturais e, naturalmente, religiosos presentes na
sociedade Guarani foram alterados ou simplesmente extintos.
As populações indígenas missioneiras, que haviam sido
preparadas pelos jesuítas para viver nas reduções segundo os
padrões cristãos europeus, viram-se após a Guerra Guaraníti-
ca em uma situação peculiar. Oscilando entre os interesses es-
panhóis e portugueses, os Guarani não chegaram a constituir
uma força suficientemente capaz de se impor de forma autô-
noma. E não poderia ser de outra forma. As reduções foram
constituídas no sentido de enquadrar-se no projeto coloniza-
dor europeu. A autonomia missioneira tinha limitações e a ca-
pacidade de se diferenciar dos estados colonizadores também.
A derrota na guerra guaranítica é a comprovação disso.
Retirados de seu hábitat original, com seu sistema so-
ciocultural e econômico desorganizado para que pudessem
viver uma nova vida nas reduções, os indígenas viram tam-
bém estas serem destruídas. O resultado é que acabaram por
ser relegados a segundo plano tanto por espanhóis quanto por
portugueses. Após a derrota na guerra, impossibilitados de
uma atuação autônoma e sem apoio dos jesuítas após a expul-
são destes do território colonial, os indígenas passam a viver à
margem da sociedade colonial e pós-colonial.

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64
Releituras da História do Rio Grande do Sul

A OCUPAÇÃO IBÉRICA DO TERRITÓRIO


E AS DISPUTAS PELAS FRONTEIRAS DO
CONTINENTE DE RIO GRANDE
* Edison Bisso Cruxen

1 Introdução

A fundação do presídio (guarnição) de Jesus-Maria-José,


pelos portugueses, em 1737, serve como ponto de referência
para iniciar, “oficialmente”, a historiografia do Rio Grande do
Sul. Este assentamento funcionou como base da colonização
europeia efetiva do litoral e para criação da cidade de Rio
Grande. Mas as terras situadas junto às fronteiras Oeste e Sul
do atual Rio Grande do Sul já se integravam na chamada Re-
gião Platina, que, muito antes de 1737, era ocupada e explo-
rada por grupos de portugueses, espanhóis, luso-brasileiros e
hispano-americanos.
Estancieiros, contrabandistas, missionários religiosos,
caçadores de gado selvagem, militares, tropeiros e etc. transi-
tavam entre os territórios divididos por tratados entre as duas
Coroas Ibéricas, no “Além-mar”, sem grande respeito pelas
possíveis fronteiras, que se caracterizavam por serem extre-
mamente difusas e móveis. Esta situação passou a mudar no
momento em que assentamentos cada vez melhor estrutura-
dos passaram a fazer parte da paisagem. Com o tempo, a fun-
dação e o desenvolvimento do que podem ser definidos como
“centros urbanos”, ligados ao manejo do comércio, à caça do
gado, à exploração dos recursos naturais, ao controle de rotas
e bases para o avanço seguro no território, acirraram a tenta-
tiva de divisão entre os “espaços” de domínio luso e hispânico
na parte meridional americana.

* Professor. Mestre do Curso de Licenciatura em História da FAPA.

65
Embora essas fronteiras jamais tenham se configura-
do enquanto limes1 ostensivo e intransponível, configurando
muito mais um dinâmico espaço de contato, troca e intera-
ção, durante séculos Portugal e Espanha disputaram, através
da diplomacia e das armas, o território que viria a constituir
o atual estado do Rio Grande do Sul. A complexa contradição
do funcionamento da região fronteiriça rio-grandense, o pro-
cesso de ocupação do território e a constituição dos primeiros
assentamentos, que viriam a dar origem aos futuros núcleos
urbanos, na região então conhecida como “Continente de Rio
Grande”, será revisitada neste capítulo.

2 A fronteira

Para Kühn (2007, p. 23), a historiografia tradicional


desenvolveu uma concepção de fronteira sul-rio-grandense
onde se privilegiam, em excesso, as disputas e exclusões entre
os povoados hispânicos e lusitanos, e na constituição de uma
imagem heróica e idealizada do conquistador e colonizador
dos “novos” territórios em disputa. Seguindo a lógica tradi-
cional, o território do Rio Grande do Sul desde sempre seria
português, passando posteriormente a ser brasileiro, obede-
cendo ao “fluxo natural” da história, negando a presença ou
influência castelhana. “O Rio Grande sempre foi, desde sua
origem, um pedaço do Brasil, o Brasil que cresceu de si mes-
mo” (VELLINHO, 1975, p. 207).
Moysés Velinho construiu uma narrativa que tinha
como idéia subjacente a noção da lusitanidade da

1
Conforme Nunes (2005, p.140-141), pode-se definir como limes “... um sistema que consistia em construir
uma estrada estratégica ao longo da fronteira ou da linha a defender, apoiada, espaçadamente, por fortes,
muralhas e campos fortificados. Destinava-se a constituir uma barreira à entrada das forças inimigas numa
vasta região ou país, em conjugação com o dispositivo e atuação das tropas amigas. O conceito de limes
foi utilizado em Portugal nos primórdios da nacionalidade, quando a defesa do território se fez, de norte
para sul, apoiada nos rios, ou, posteriormente, em concentrações de fortificações ao longo da fronteira, que
passou a constituir uma linha fortificada”.

66
Releituras da História do Rio Grande do Sul

formação do Rio Grande. Em Fronteira... os per-


sonagens escolhidos são altamente significativos e
estão encadeados em uma seqüência que não per-
mite contestações. Ela se inicia com o fundador de
Rio Grande, o brigadeiro Silva Pais, que simboliza
a conquista do território; na seqüência, vem An-
dré Ribeiro Coutinho, uma figura notável por sua
experiência a serviço do Império português, que
consolidou o povoamento do território. O terceiro
personagem é Gomes Freire, o todo poderoso go-
vernador do Sul do Brasil, que com sua atuação
in loco, assegurou os interesses lusitanos no Con-
tinente; em seguida, vem a dupla Francisco e Ra-
fael Pinto Bandeira, pai e filho, que se destacaram
como militares e fazendeiros a serviço de uma úni-
ca causa: a posse do Rio Grande. O último elo des-
sa cadeia de grandes personagens é José Marcelino,
governador do Rio Grande durante o período em
que os espanhóis estavam ocupando militarmente
metade do Continente. (KÜHN, 2007, p. 23)

A sequência de personagens relevantes, que respeita


uma lógica altamente encadeada, termina por constituir uma
história unicamente lusitana e brasileira do Rio Grande do
Sul. Esta ótica de grandes fazendeiros e oficiais militares, que
tomam o destino do Continente em suas mãos, praticamente
não deixa espaço para a aceitação da presença e participação
de espanhóis ou hispano-americanos na constituição e no
funcionamento da fronteira meridional portuguesa, durante o
período colonial e imperial.
A perspectiva assumida pela tradicional historiografia
sul-rio-grandense foi da fronteira intransponível, onde eram
deixadas de lado as aproximações e trocas que ocorreram en-
tre os dois lados da fronteira. A partir deste ponto de vista,
o território do atual Rio Grande do Sul era definido como
“espaço vazio”, “terra de ninguém”, ocupado tardiamente. Tal
proposta minimizava ou negava a presença e intervenção

67
constante de espanhóis e hispano-americanos no Continente2
(REICHEL, 2006, p.61).
Em entrevista a uma escritora nordestina, que conside-
rava os gaúchos acastelhanados, o romancista Erico Verissimo
definiu, de forma pungente, dentro dos cânones tradicionais, a
situação da fronteira e o processo de ocupação do território do
Rio Grande do Sul, confirmando a “raiz lusitana” e a inegável
“nacionalidade brasileira” da região desde tempos imemoráveis.
Somos uma fronteira. No século XVIII, quando sol-
dados de Portugal e Espanha disputavam a posse
definitiva deste então “imenso deserto”, tivemos
de fazer nossa opção: ficar com os portugueses ou
com os castelhanos. Pagamos um pesado tributo
de sofrimento e sangue para continuar deste lado
da fronteira meridional do Brasil. Como pode você
acusar-nos de espanholismo? Fomos desde os tem-
pos coloniais até o fim do século um território cro-
nicamente conflagrado. (VERISSIMO apud OLI-
VEN, 2006, p. 63-64)

Durante o século XVIII, as Coroas espanhola e portu-


guesa disputaram as fronteiras da Região Platina em diversos
conflitos armados. Essa noção de fronteira, como espaço de
constante separação e belicosidade, não leva em conta a ine-
xistência de estados nacionais unificados e territorialmente
definidos, bem como a falta da noção de nacionalidade, tal
como existe atualmente. Os embates não estavam fundamen-
tados no nacionalismo, que surge somente com a criação dos
Estados Nacionais latino-americanos no século XIX. A noção
de “Pátria”, para um homem do século XVIII, significava o
pertencimento a uma cidade ou região e não a uma nação ter-
ritorialmente constituída (KÜHN, 2004, p.52).

2
“A expressão Continente ou Continente de Rio Grande referia-se, segundo Guilherme Cesar, a uma vasta
porção de terra contínua situada entre a capitania de Pero Lopes de Sousa (que abrangia o território cata-
rinense até a altura de Laguna) e o estuário do Prata.” (KÜHN, 2007, p.50)

68
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Ruben Oliven (2006) apresenta interessante exemplo


que vem ao encontro das questões de nacionalismo e patrio-
tismo tratados de forma anacrônica. Em 1955, a Comissão de
História e Geografia do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul emitiu um parecer negativo à construção
de um monumento, em Porto Alegre, em homenagem a Sepé
Tiaraju (na comemoração do bicentenário de sua morte). O
historiador Moysés Vellinho foi um dos signatários a vetar a
homenagem. O argumento se apoiava no fato de que Sepé “se
bateu e morreu por uma causa que não era nossa, que era, pelo
contrário, abertamente oposta à causa que teve como efeito
histórico a integração do Brasil meridional em suas divisas
atuais” (VELLINHO apud OLIVEN, 2006, p.72). Na medida
em que as ações de Sepé Tiaraju eram contrárias à integração
das terras dos Guarani às posses portuguesas, ele não poderia
ser aceito como um herói brasileiro, muito menos gaúcho.
Nos registros paroquiais da freguesia de Viamão, está
registrada uma expressiva presença de espanhóis e hispano-
-americanos. O livro de batismo utilizado entre 1747 a 1759
conta com mais de 10% de indivíduos de origem hispânica.
“Eram castelhanos, galegos, andaluzes e valencianos, além de
indivíduos de diversas procedências sul-americanas”. Cerca
de 40 indivíduos de origem hispânica habitavam os Campos
de Viamão nas primeiras duas décadas de existência da fre-
guesia. A fronteira, que a priori deveria separar, ao mesmo
tempo permitia a passagem, o contato, o “contágio”. Em vez
de exclusão, havia a situação de convivência e articulação en-
tre zonas produtoras e mercados consumidores. “Uma intensa
circulação de homens e mercadorias, em um contexto demo-
gráfico heterogêneo e numa conjuntura de instabilidade po-
lítica” (KÜHN, 2007, p. 24). Isso possibilitou o estreitamento
de laços comerciais, culturais e matrimoniais entre espanhóis
e lusitanos na América Meridional.
O conceito de limite, linha político-territorial extrema,
que define parte da natureza de um Estado-nação de forma

69
objetiva, não pode ser utilizado quando se trata de fronteiras,
as quais devem ser compreendidas como faixas (ou zonas),
em um determinado território. A linha divisória, formulada
e prevista em mapas e acordos diplomáticos, estaria inserida
nessa zona de difícil precisão (GOLIN, 2002, p.14).
Os riscos de viver nessa instável região eram compen-
sados com as possibilidades de acesso a terras, cargos e negó-
cios. Possivelmente, as pessoas que habitavam a divisa entre o
Rio Grande do Sul, o Uruguai e a Argentina, durante o perío-
do colonial, percebiam a fronteira enquanto “linha divisória”,
zona de aproximação e alternativa de sustento e prosperidade.
A primeira constatação que aparece relacionada
com a definição das fronteiras no interior da Re-
gião Platina é a de que, ali, os conflitos foram uma
constante durante quase todo o período colonial.
Entretanto, os avanços e recuos dos limites divisó-
rios dos Impérios português e espanhol na América
meridional afetaram os seus habitantes não só em
tempo de guerra, mas nos de paz. A indefinição das
linhas demarcatórias levava-os a perceber a fron-
teira como uma possibilidade de estabelecer redes
de trocas, contatos, de concretizar desejos, de reagir
a dificuldades. Com isso, a fronteira atuava não só
como uma linha que define até onde um território
se estende e outro inicia, mas como uma zona de
intercâmbios, em que predominam interações entre
grupos sociais. (REICHEL, 2006, p. 48)

As fronteiras, na América Meridional colonial, existiram


e foram importantes, mas estavam no interior de um espaço
maior, a região Platina. Essas fronteiras internas se caracteri-
zavam pela mobilidade e indefinição e atuaram muito mais
como “zona” de estímulo de contatos e intercâmbios entre os
indivíduos, do que limes separando sociedades e culturas.
Para Fábio Kühn (2007, p. 27), a emancipação política
das colônias ibéricas e a estruturação dos estados nacionais la-

70
Releituras da História do Rio Grande do Sul

tino-americanos, no século XIX, deterioraram o panorama de


“tolerância”, a convivência e a articulação existente nas fron-
teiras do século XVIII. O estado de guerra que se instaurou
entre as novas nações (Argentina, Uruguai, Paraguai e Bra-
sil) deu origem a uma representação historiográfica que pri-
vilegiou o conflito e a tensão permanente na região raiana. O
pesquisador Tau Golin (2002, p. 15) define que, atualmente, o
conceito abrangente para definir o espaço limítrofe entre o Rio
Grande do Sul e seus vizinhos “castelhanos” é de “uma área
compartilhada, moldada por uma história comum”. Mas tal se
trata de um compartilhamento onde historicamente ocorre-
ram “crises, conflitos e ódios mútuos”. O imaginário do com-
partilhamento teria sido construído ao longo do século XX,
depois de definidas as fronteiras e terminados os conflitos de
estruturação dos novos estados nacionais. Nesse período, as
relações de boa vizinhança se fizeram sentir com mais força.
A ideia de “formação de um espaço transfronteiriço” seria o
fruto de uma imagem histórica depurada dos conflitos trans-
nacionais decorridos ao longo do século XIX.
A fronteira compreendida apenas como divisão geopo-
lítica impossibilita uma compreensão ampla de seu complexo
funcionamento e dos diversos processos que nela se desenvol-
vem. A fronteira, como resultado de relações de poder, tanto
existe de forma tangível, visível e concreta, marcada por rios,
montanhas, campos, florestas, muros, cercas, postos de vigi-
lância, guardas, fortificações, quanto em pensamento, como
um símbolo, um conceito, estando carregada de ambiguidade.
Um claro exemplo se encontra no princípio do utis possidetis,
segundo o qual o estipulado pelos tratados das Coroas de Por-
tugal e Espanha nem sempre foi seguido pelos habitantes da
colônia, ou seja, a prática não obedecia a teoria.
A noção que prevaleceu para constituição dos espaços
na Região do Prata não foi do direito natural sobre um territó-
rio. A construção do território colonial obedeceu ao princípio

71
do uti possidetis, que postulava ações concretas na ocupação
de terras, criando direitos sobre as mesmas. No caso do Rio
Grande do Sul, a fronteira foi um produto desse princípio, um
processo paulatino de conquista e ocupação, transcendendo o
estipulado pelo direito natural e pelos tratados diplomáticos.
A raia rio-grandense foi fruto da “criação humana, interven-
ção do Estado e grupos regionais” durante o período colonial
e imperial (GOLIN, 2002, p. 50).
Conforme Rui Cunha Martins (2000), “a fronteira é
um espaço em incorporação ao espaço global que é o espaço
urbanizado, e sua incorporação se efetua através do núcleo
urbano, condição chave da ordenação do espaço territorial e
social” (p. 141-142). Desde o período medieval, na Península
Ibérica, a legitimidade da ocupação e posse de um território
fronteiriço estava diretamente relacionada à criação de povo-
ados, devidamente estruturados. A grande maioria desses as-
sentamentos fronteiriços tinha por base a construção de uma
fortificação ou de uma povoação amuralhada. A partir deste
“ponto de proteção” e vigilância passavam a se constituir os
futuros centros urbanos, com a principal função de organizar
a exploração dos recursos naturais da região.
Durante os séculos XIII e XIV se percebe, junto à fron-
teira luso-castelhana Ibérica, uma verdadeira explosão urba-
na. A construção, reocupação ou reforma de fortificações nes-
ses espaços limítrofes atraíam novos povoadores, a segurança
possibilitava o aumento demográfico. Desde o final do século
XIII desenvolveu-se um “jogo”, como em um tabuleiro de xa-
drez, tanto do lado português como no castelhano, na busca
por lugares estratégicos para construção de fortalezas, visando
à futura constituição de centros urbanos, que viriam a legiti-
mar a posse do território. Iniciar um povoado de um lado da
fronteira tinha como reflexo, tão rápido quanto fosse possível,
a constituição de um novo povoado também do outro lado
(ANDRADE, 2001).

72
Releituras da História do Rio Grande do Sul

3 Os Campos de Viamão

A ocupação dos Campos de Viamão era mais antiga do


que a criação do presídio de Rio Grande, mas tratava-se de um
empreendimento particular, no qual os habitantes estavam
mais preocupados com o lucro do comércio e a criação de gado,
sem assumirem o papel de defensores dos interesses lusitanos
na região. Os Campos de Viamão, nas décadas iniciais (1730
e 1750), ocupavam praticamente todo o Continente, exceto a
povoação de Rio Grande, onde se estabeleceram os primeiros
povoadores portugueses. Com a ocupação espanhola da vila
de Rio Grande em 1763, a freguesia de Viamão passou a ser a
sede do poder lusitano, com o estabelecimento do Governa-
dor e da Câmara na povoação. Entre 1763 e 1772, o povoado
serviria como centro da política expansionista portuguesa no
extremo sul da América. Somente com a transferência da ca-
pital para Porto Alegre, em 1773, e com a reconquista de Rio
Grande, em 1776, Viamão perdeu sua centralidade. Conforme
Künh (2007, p.47), os Campos de Viamão
[...] abrangiam uma imensa área no nordeste do
atual Rio Grande do Sul. Os tais campos corres-
pondiam às terras situadas ao sul do rio Mampi-
tuba, tendo ao leste o oceano Atlântico e a oeste
e a sul a baliza fluvial do Guaíba e da lagoa dos
Patos. Para os paulistas e lagunistas que explora-
vam o Rio Grande a partir do “Caminho da Praia”,
os campos eram todas as planícies despovoadas à
margem esquerda do Rio de São Pedro. Nessa re-
gião se estabeleceram os mais antigos povoadores
do Continente. Posteriormente, com o desenvolvi-
mento populacional, foi criada a freguesia de Via-
mão (1747), desmembrada de Laguna. A freguesia
de Viamão deu origem, nas décadas seguintes, a
diversas outras freguesias, como Triunfo (1756),
Santo Antônio da Patrulha (1763) e Porto Alegre
(1772), entre outras.

73
Em 1738, foram doadas 11 sesmarias para constitui-
ção de fazendas de criação de gado e mulas. A princípio, para
constituição dos rebanhos, o gado foi pilhado na Vacaria do
Mar e nas estâncias missioneiras. A península ao norte do ca-
nal até Mostardas foi reservada para organizar a estância Real
do Bojuru, que forneceria carne e montarias à guarnição da
comandância. Mas necessidades de abastecimento de alimen-
tos e animais de carga na região de exploração das Minas Ge-
rais geraram a integração do Sul ao mercado interno colonial.
Os Campos de Viamão continham uma gigantesca reserva de
gado que podia ser adquirida e posteriormente comercializa-
da no Centro do Brasil. Na primeira metade do século XVIII,
por meio dos tropeiros, iniciava-se a integração, dos Campos
de Viamão, com as regiões mineradas coloniais (FLORES,
1997, p. 50 - 51).
As terras eram concedidas aos povoadores por meio das
sesmarias (em média 3 x 1 léguas)3 e datas (1/4 de légua qua-
drada), doadas às famílias chamadas de “casais de número”,
que voluntariamente povoaram o Continente de Rio Grande.
As primeiras sesmarias foram concedidas na região dos Cam-
pos de Viamão, antes da ocupação oficial do Continente pelos
portugueses, em 1732. Em 1750, ocorreu uma intensificação
das concessões de sesmarias, quando se iniciou a apropriação
das terras da bacia do Jacuí, obtidas por Portugal no Tratado
de Madri e protegidas pela fortificação de Rio Pardo (tran-
queira invicta).4 Em 1764, assumiu o governo do Continente
o coronel José Custódio de Sá e Faria. Em seu “Regimento”,
constaram as principais preocupações da Metrópole e, dentre

3
Aproximadamente 6.600 metros. Uma légua de frente por três de fundo.
4
Segundo Moacyr Flores (1997, p.60) “Vertiz y Salcedo chegou à margem direita do Jacuí e intimou a ren-
dição do forte de Rio Pardo em 1775. Pinto Bandeira não aceitou e fingiu que recebia um grande exército
e o governador, disparando salvas com os pequenos canhões de diversos pontos, desfraldando bandeiras,
ordenando que os soldados disparassem para o ar, enquanto a banda tocava. Uma nuvem de poeira se
levantou por trás das árvores, como se fosse produzida por um grande exército. Eram apenas soldados que
arrastavam galhos galopando em várias direções. Enganado, Vertiz y Salcedo retrocedeu para Rio Grande,
sofrendo ataque de guerrilhas ao durante a longa marcha.”.

74
Releituras da História do Rio Grande do Sul

elas, a necessidade de defesas mais capacitadas, com a cons-


trução de fortins no rio Taquari para a manutenção dos Cam-
pos de Viamão (CESAR, 1970).
Conforme explica Mônica Diniz (2005), as sesmarias5
eram terrenos incultos e abandonados, entregues pela Monar-
quia portuguesa, desde o século XII, às pessoas que se com-
prometiam a colonizá-los dentro de um prazo previamente es-
tabelecido. Esse sistema de aquisição de terras era apropriado
em regiões e épocas em que prevalecia o estado de guerra e
uma baixa densidade populacional, originando terras ociosas e
com possibilidade de serem invadidas pelos inimigos. No con-
texto das descobertas marítimas portuguesas, a obra política e
comercial da colonização tinha como ponto de apoio a distri-
buição de terras. A Monarquia portuguesa, na tarefa de povo-
ar o imenso território americano, encontrou, nas bases de sua
tradição medieval, um modelo: as sesmarias. A orientação da
distribuição das sesmarias pregava o retorno das terras que não
eram devidamente aproveitadas para as mãos da Coroa, fican-
do claro o sentido de ocupação, povoação, cultivo e exploração
dos devidos recursos oferecidos pelo território cedido.
Um dos principais efeitos da invasão espanhola de Rio
Grande, em 1763, foi a aceleração do processo de militariza-
ção da sociedade rio-grandense, que levou ao impedimento
do desenvolvimento da agricultura e a dificuldades nas demais
atividades produtivas, devido à mobilização de mão de obra e
à expropriação da produção agrícola, em função do abasteci-
mento do Exército. Como fatores complicadores das preten-
sões da Coroa, pode-se citar, ainda, o aumento da deserção,
em função do recrutamento compulsório, o que fez crescer
o contingente de vagabundos e vadios, e o fortalecimento do
poder local dos estancieiros-militares. O poder do grupo de
soldados-estancieiros se consolidou a partir de 1764, justa-
mente com a invasão espanhola (KÜHN, 2007).

5
O vocábulo “sesmaria” é derivado do termo medieval português “sesma”, que significava 1/6 do valor
estipulado para compra de um terreno; o verbo “sesmar” significava, ainda, estimar, calcular, avaliar.

75
As sesmarias dadas aos militares que vinham viver na
zona fronteiriça serviam como prêmio ou estímulo, mas tam-
bém como ponto de partida para outras apropriações por parte
de seus beneficiários, dando origem a grandes propriedades.
Os soldados de profissão convocados para servir junto à fron-
teira, que recebiam sesmarias e datas como recompensa, geral-
mente não tinham interesse nem condições econômicas para
explorar os campos recebidos. Desta forma, criou-se o costu-
me de vendê-las a outros proprietários, contribuindo para a
concentração e o aumento do tamanho das propriedades.
Na fronteira, ao mesmo tempo em que militares se tor-
navam estancieiros, civis, buscando defender suas proprieda-
des, terminavam envolvidos nas atividades de defesa do ter-
ritório. Como recompensa pelos serviços prestados à Coroa
portuguesa, passaram a ser condecorados com patentes mili-
tares. O estancieiros-militares constituíram o grupo dominan-
te da zona fronteiriça, “aproveitaram-se da distância em que se
encontravam dos órgãos do poder para mesclar o público com
o privado e submeter terras e trabalhadores ao seu domínio”
(REICHEL, 2006, p. 54). Quase sem controle estenderam suas
propriedades, transformando-as em grandes estâncias, difi-
cultando a sobrevivência da população comum.
A partir dos dados demográficos tornou-se possível
entrever uma sociedade típica do Antigo Regime
Português nos trópicos, baseada na existência de
uma nítida hierarquia social e marcada pela pre-
sença expressiva da escravidão. Longe do cenário
que enxerga o passado colonial como terra de gaú-
chos, vivendo envoltos em lides guerreiras, o que
se descortina é uma sociedade extremamente ex-
cludente, onde uma pequena minoria de famílias
detém uma grande parte da riqueza existente, fos-
se na forma de terras, gados ou homens. (KÜHN,
2004, p. 48)

76
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Fabio Kühn (2004, p. 53-54), utilizando como fonte de


pesquisa os róis de confessado (recenseamentos paroquiais),
indica que, em 1751, a freguesia de Viamão apresentava 42%
de sua população composta por cativos de origem africana.
Os cativos indígenas perfaziam somente 3%, o que indica o
pleno declínio da “administração particular” do “trabalho” in-
dígena entre os povoadores. O número de escravos africanos
demonstra ser muito elevado, tanto para o um período tão re-
cuado no processo de colonização quanto para uma economia
totalmente voltada ao mercado interno. Dentre as unidades
domésticas analisadas, 62% apresentavam posse de escravos,
uma média de quatro cativos africanos por casa. Outro dado
infere que os 12 maiores senhores da freguesia detinham, con-
juntamente, 132 escravos, ou seja, 46% do total.
Os grandes estancieiros mantinham uma posse média
de 11 escravos; os lavradores, maioria da população, manti-
nham entre dois a três escravos em suas propriedades, perfa-
zendo 56% de cativos. A extensa freguesia foi dividida em dez
“distritos” ou “bairros rurais”, que compunham os Campos de
Viamão. A localidade mais populosa era a “Guarda de Via-
mão”, com 31 unidades domésticas, local de concentração dos
maiores plantéis de escravos, com de 104 cativos, correspon-
dendo a 36% do total da freguesia. Os três maiores “bairros
rurais”, Guarda de Viamão, Morro Santa Anna e Estâncias de
Fora, concentravam 51% dos fogos, possuindo 202 escravos,
mais da metade do total de cativos computados na freguesia.
Apenas em 1750, após a celebração do Tratado de Madri,
passou a existir, efetivamente, certa definição sobre as posses
meridionais portuguesas. Esta “estabilidade” possibilitou que
a Coroa portuguesa consolidasse seus interesses políticos e
econômicos na região do atual Rio Grande do Sul. Entre fi-
nais da década de 1740 e princípios de 1750, o povoamento de
Viamão passou por sensível aumento de habitantes. Povoado-
res enviados por determinação da Coroa portuguesa ou novos

77
habitantes provindos de migração espontânea, em busca das
possibilidades oferecidas pela fronteira, mudaram, em pouco
tempo, a demografia da capela e, posteriormente, a freguesia
de Viamão.

4 A disputa pela Colônia do Sacramento e a criação


de Rio Grande

A fundação de Buenos Aires, pela Coroa de Espanha,


em 1580, fez crescer o interesse dos portugueses pelo extre-
mo sul do continente americano. Durante o período da União
Ibérica (1580-1640), a cidade passa a receber comerciantes
lusitanos, que percebem a importância da região como entre-
posto comercial.
O fim da União Ibérica, em 1640, levou à expulsão dos
portugueses de Buenos Aires e os comerciantes lusitanos,
acostumados com os lucros provindos da região, pressiona-
ram a Coroa para fundação de um posto avançado português,
uma colônia no Prata.
Em 1680, com o patrocínio dos grandes comerciantes
do Rio de Janeiro e sob a liderança de seu governador, Manuel
Lobo, foi fundada, pela primeira vez, a Colônia do Santíssimo
Sacramento, em frente a Buenos Aires, do outro lado do rio
da Prata. Desta forma, os portugueses marcavam nitidamen-
te sua presença e se mantinham nesta região de intenso fluxo
comercial. O Rio da Prata era o limite natural entre os domí-
nios de Portugal e Espanha. Uma vez fundada a Colônia do
Sacramento, existia um grande espaço entre a nova cidadela
portuguesa e São Paulo, região que o governo de Portugal se
esforçou para promover a ocupação (KÜHN, 2007).
A Coroa espanhola reagiu imediatamente, enviando
uma grande força militar que expulsou os portugueses. Mas,
em 1681, após a celebração do Tratado de Lisboa, Portu-
gal conseguia reaver a Colônia. Pelo Tratado de Tordesilhas
(1494), o território pertencia à Espanha, mas Portugal apli-

78
Releituras da História do Rio Grande do Sul

cou o princípio de uti possidetis, que previa o direito às terras


a quem as ocupasse, construísse e povoasse, um direito que
não se encontrava na divisão prevista pelos tratados, mas no
uso efetivo do espaço. Os portugueses, usando deste princípio,
concederam sesmarias a civis com a intenção de forçar o avan-
ço da linha demarcatória para o Oeste (REICHEL, 2006, p.50).
Em 1683, as fortificações da Colônia são reabilitadas a
mando do governador do Rio de Janeiro, novas tropas, arma-
mentos e povoadores. Mas, entre 1707-1705, Sacramento é
sitiada pelos espanhóis, que expulsam novamente os portu-
gueses, os quais se mantêm por uma década fora da região. Em
1715, com o Tratado de Utrecht, a fortificação volta para mãos
lusitanas, mas a povoação fica circunscrita ao território ocu-
pado pela cidadela. Nesta fase, a Colônia desenvolve-se muito
economicamente, atraindo novos habitantes. Em 1722, sob o
governo de Antônio Pedro de Vasconcelos, a fortaleza contava
com aproximadamente 1.800 habitantes, sendo 400 militares.
Buscando limitar a expansão portuguesa na Banda Oriental,
em 1726 os espanhóis fundaram a cidade de Montevidéu.
Após um longo cerco espanhol, entre 1735 e 1737, muitos dos
2.600 habitantes da Colônia fugiram da cidadela sitiada. Na
busca por abrigo, viriam a se tornar os primeiros povoadores
da vila do Rio Grande, fundada em 1737, pela expedição do
Brigadeiro Silva Paes, que procurava criar um ponto de apoio
para tentar salvar a Colônia (KÜHN, 2007).
Em 18 de Junho de 1736, o governador do Rio de
janeiro, Gomes Freire de Andrada, deu instruções
ao brigadeiro José da Silva Paes para tomar posse
do território rio-grandense, defender a colônia do
Sacramento, expulsar os espanhóis das ilhas de São
Gabriel, ocupar e fortificar Montevidéu, examinar
a posição de Maldonado e promover a ocupação e
fortificação do porto do Rio Grande de São Pedro.
(SANTOS, 2006, p.66)

79
O Brigadeiro José da Silva Paes, governador do Rio de
janeiro, recebeu instruções da Coroa portuguesa para fundar
uma povoação que pudesse dar apoio à constantemente ata-
cada Colônia do Sacramento. Para justificar juridicamente a
posse do território, em 06 de agosto de 1736 foi criada a fre-
guesia de S. Pedro de Rio Grande. Os portugueses aproveita-
ram justamente o momento em que os espanhóis mantinham
o cerco à Colônia do Santíssimo Sacramento e protegiam
Montevidéu e Buenos Aires. Silva Paes rumou para o canal de
Rio Grande, onde desembarcou, em fevereiro de 1737, com
254 soldados, armamentos e todas as ferramentas para cons-
trução de uma fortaleza. Encontrou, à sua espera, 160 homens
do coronel de ordenanças Cristovão Pereira de Abreu e uma
tropa de gado. Abreu havia se adiantado, por terra, e reunido
alimentos, além de constituir as bases estruturais para a recep-
ção do contingente, enquanto os navios eram equipados nos
portos de Rio de Janeiro e Santos. No mesmo ano de 1737, o
engenheiro militar Silva Paes começou a construção do Forte
Jesus Maria José, na margem direita da Barra do Rio Grande
(atual Lagoa dos Patos), junto ao povoado do Porto (futura
Vila do Rio Grande).
A Comandância Militar do Continente de Rio Grande
de São Pedro tinha como objetivos auxiliar a Colônia do Sa-
cramento, povoar a região e regular as relações entre os dife-
rentes elementos povoadores. O novo povoado de Rio Grande
recebeu reforços de habitantes vindos da região do Minho,
Açores e Madeira (Portugal), mas também de Laguna (Santa
Catarina). Uma década após sua fundação, em razão de seu
desenvolvimento e sua prosperidade, em 17 de julho de 1747,
Rio Grande foi elevado à Vila, com instalação da Câmara em
16 de dezembro de 1751. A fundação do presídio (guarnição)
e da povoação de Rio Grande foi situada estrategicamente no
canal de entrada da Lagoa dos Patos, cujo controle dava acesso
ao interior do Continente (FLORES, 1997, p.48-49).

80
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Em carta a Gomes Freire, em 20 de agosto de 1737, o


Brigadeiro Silva Paes enfatizava a importância do povoamen-
to e a fortificação de Rio Grande, destacando que este pon-
to estratégico oferecia mais vantagens e era mais interessante
do que a própria Colônia do Sacramento ou Montevidéu. De
qualquer forma, em sua carta, percebe-se que a fortificação e o
povoado de Rio Grande continuavam sendo encarados como
bases para a mais ampla ocupação do território na direção do
Prata, principalmente no que concerne a tomada da cobiçada
Montevidéu e a manutenção sobre a Colônia do Sacramento.
E estou tão firme que o Rio Grande é tanto melhor
para se conservar que Montevidéu, e ainda a Colô-
nia (por ficar místico [anexo] ao nosso continente)
que, se pusesse em questão, e fosse preciso largar
este ou aquele presídio, votara se devia largar aque-
le por conservar e adiantar este, pois daqui se po-
dem tirar os mesmos interesses que do outro, e para
se conservar não necessita das enormes despesas
que agora temos visto se fizeram para a Colônia,
e ainda para a socorrer só daqui se pode formar o
corpo que possa fazer e ainda inquietar os inimi-
gos, fazendo-lhe tal diversão que os obrigue a le-
vantar o bloqueio ou perderem Montevidéu. (PAES
apud FORTES, 1980, p. 61)

Em Carta Régia de 1742, o governo do Continente do


Rio Grande de São Pedro do Sul, juntamente com o de Santa
Catarina, foi reunido administrativamente ao da capitania do
Rio de Janeiro. Somente em 1760 seria criada a capitania de
Rio Grande de São Pedro, tendo a vila de Rio Grande como
capital. As capitanias6 eram grandes extensões de terras distri-
buídas entre indivíduos da pequena nobreza, grandes homens
de negócios, altos funcionários burocratas e militares de altas
patentes. A capitania desenvolvia a função de defesa militar

6
Constituídas nas bases político-administrativas do reino, assentavam-se sobre as cartas de doações e foral.

81
e estímulo de atividades econômicas em regiões de expansão
territorial. O capitão-mor podia fundar vilas e desenvolver o
comércio. O governador tinha funções jurídicas e administra-
tivas. D. João III, o Colonizador, adotou no Brasil, o sistema
de capitanias, tratando de promover a ocupação da terra sem
onerar a Coroa, uma vez que todos os gastos ficavam a cargo
do donatário.
A sesmaria era uma subdivisão da capitania com o ob-
jetivo de que essa terra fosse aproveitada. A proposta buscava
incentivar a ocupação das terras e estimular a vinda de colo-
nos. As sesmarias não eram de domínio total dos donatários
ricos, mas apenas lhes tocavam as partes de terras especifi-
cadas nas cartas de doações. Os donatários se constituíram
em administradores, achando-se investidos de mandatos da
Coroa para doar as terras e, tendo recebido a capitania com
a finalidade colonizadora, cabia-lhes cumprir as ordens de
Portugal. A terra continuava a ser patrimônio do Estado por-
tuguês. Os donatários possuíam apenas o direito de usufruir
a propriedade, mas não eram donos. Os capitães-donatários
detinham efetivamente apenas uma pequena porcentagem
de sua capitania, sendo obrigados a distribuir o restante, na
forma de sesmarias. Nesse momento, perdia qualquer tipo de
poder ou direito sobre as mesmas (DINIZ, 2005).
Segundo Moacyr Flores (1997, p. 72-73), a divisão ad-
ministrativa do Continente do Rio Grande, durante o século
XVIII, correspondia a estâncias e fazendas de cunho familiar,
comunal, mas com espírito/função militar. Estas eram conce-
didas e constituídas além da linha divisória do Tratado de Tor-
desilhas (1494), empurrando pouco a pouco a fronteira com
a Espanha, mais a Sul e mais a Oeste, tendo como principal
atividade a caça e a criação de gado.
Desde o início ficou claro para os povoadores a impor-
tância dos rebanhos para abastecimento dos núcleos habita-
cionais iniciais e do contingente militar. O gado vacum, para a
alimentação, e o cavalar e muar, para a montaria e transporte.

82
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Buscando preencher as necessidades das tropas e da popula-


ção, com menor custo para a Fazenda Real, em 1737 foram
constituídas as Estâncias Reais de Capão Comprido e Boju-
ru, ao norte do Rio Grande. Bojuru prosperou ao receber o
grande rebanho selvagem existente entre a lagoa Mirim e o
oceano, calculado por Silva Pais em mais de 8 mil cabeças.
O gado faltante era comprado de particulares ou confiscado
dos espanhóis, desde que os animais “invadissem” o território
português (SANTOS, 2006).
Retornando à divisão administrativa definida por Flo-
res (1997), as chácaras se caracterizavam por serem pequenas
propriedades produtivas rurais, próximas a povoações, onde
moravam pessoas ricas. As capelas correspondiam a povoa-
dos, que se organizavam ao redor de uma praça e de um pe-
queno templo. A capela curada tinha padre permanente com
missa aos domingos e dias santos, enquanto a capela filial só
tinha missas quando recebia o padre da Igreja Matriz. As ca-
pelas estavam integradas ao território de uma freguesia.
As freguesias (paróquias), além de servirem como sub-
divisão administrativa de um município, tinham como princi-
pal característica possuir um povoado com praça e Igreja Ma-
triz, nesta se registravam os casamentos, batizados e óbitos.
Os fregueses estavam registrados por fogos (moradias, casas,
habitações). O registro de fogos tinha fins administrativos,
por meio dos quais a administração da capitania cobrava os
impostos e realizava o recrutamento militar.
O município era a divisão administrativa da capitania e
em sua sede funcionava a Câmara Municipal com funções ad-
ministrativas e de se fazer cumprir a justiça. Aos finais do sécu-
lo XVIII existiam três vilas na capitania (as demais povoações
eram sede de freguesia): N. Sra. Madre de Deus de Porto Alegre,
onde funcionava a sede do governo e a única câmara municipal;
N. Sra. do Rosário de Rio Pardo e S. Pedro de Rio Grande.
Concluindo, os trabalhos de Corcino Santos (2006),
Moacyr Flores (1997) e Fábio Kühn (2007) podem auxiliar na

83
produção de uma síntese sobre o complexo enredo, diplomático
e bélico, em que o atual estado do Rio Grande do Sul esteve en-
volvido, desde meados do século XVIII até princípios do XIX.
O Tratado de Madri (1750) assegurava aos portugueses
a posse da vila de Rio Grande (pelo menos até 1763), os Cam-
pos de Viamão e as Terras do Vale do Jacuí. Por meio deste
mesmo acordo diplomático realizava-se a troca dos Sete Povos
das Missões (até então espanhol) pela Colônia do Santíssimo
Sacramento (portuguesa), afastando o perigo da presença lu-
sitana na região do Prata. A capitania do Rio Grande de São
Pedro foi criada em 1760, tendo a vila de Rio Grande como
capital. Em 1761, o Tratado de Madri foi anulado pelo de El
Pardo, uma vez que as relações entre Portugal e Espanha es-
tavam se deteriorando, tendo em vista o estado de guerra que
perdurava na Europa. Inglaterra e França se enfrentavam, ten-
do como aliados, respectivamente, Portugal e Espanha.
Em 1763, Rio Grande foi invadida pelos espanhóis, fa-
zendo o governador e grande parte da população fugir para
os Campos de Viamão e a capital ser transferida para a vila
de Viamão. O tratado de Paris (1763) suspendeu as hostilida-
des e a Colônia de Sacramento foi devolvida aos portugueses.
Em 1773, a sede da capitania do Rio Grande de São Pedro foi,
novamente, transferida – desta vez, para a freguesia de São
Francisco do Porto dos Casais (Porto Alegre). Três anos de-
pois (1776), os lusitanos reuniram uma grande força militar e
reocuparam a vila de Rio Grande, ato que levou a uma imedia-
ta retaliação dos espanhóis, que reconquistaram a Colônia de
Sacramento e invadiram a ilha de Santa Catarina.
Em 1777, o Tratado de Santo Ildefonso determinava a
entrega definitiva da Colônia aos espanhóis, recebendo a acei-
tação de Portugal, que, em desvantagem bélica, temia perder
bem mais do que a cidadela de Colônia, sempre percebida
como riquíssimo entreposto comercial e base de expansão
territorial. A principal intenção seria garantir a posse do Con-
tinente do Rio Grande.

84
Releituras da História do Rio Grande do Sul

A subordinação da capitania do Rio Grande de São Pe-


dro à capitania do Rio de Janeiro perdurou até 1807, quando
aquela foi elevada à Capitania-Geral, com o nome de São Pe-
dro do Rio Grande do Sul. A nova Capitania-Geral compre-
endia todo o território ao Sul de São Paulo, ficando, a partir de
então, administrativamente independente.

5 Conclusão

A constituição e o funcionamento das fronteiras do atu-


al estado do Rio Grande do Sul, ao longo dos séculos XVII e
XVIII, constituem um processo complexo que abre a possi-
bilidade para diversas reflexões. A multiplicidade de fatores
que configuram esta trama que abrange política, diplomacia,
conflito e economia fez a fronteira do Continente avançar e
recuar incontáveis vezes, respeitando e desrespeitando trata-
dos. Esta zona ou faixa de complicada determinação se carac-
teriza por sua contraditoriedade. Existe de forma tangível e
visível, encontra-se registrada e detalhadamente descrita em
documentos oficiais e estudos da geopolítica, mas também é
um conceito, apresenta valor simbólico.
A fronteira sul-rio-grandense dos séculos XVII e XVIII,
tal como um conceito, podia ser adaptada e reinterpretada, atu-
ando como uma força divisória e, ao mesmo tempo, possibili-
tando, de diferentes formas, o “contágio” humano, político e co-
mercial (permitido ou não). Obviamente, com o exposto não se
pretende diminuir ou esquecer o quanto a raia luso-castelhana
americana foi verdadeiramente conturbada e belicosa. Como
exemplo, tem-se a recorrente presença da arquitetura militar
(fortificações), indicando uma forma de garantir o assentamen-
to e assegurar a posse do território e a formação de uma socie-
dade militarizada, representada pelos estancieiros-militares.
Se, por um lado, a fronteira poderia significar, tanto
para a população militar quanto para a civil, um risco, em tro-
ca eram oferecidas possibilidades de prosperidade através de

85
terras, promoções e comércio. Por meio da contraditoriedade
de funcionamento da fronteira do Continente, passaram (e
passam), desprezando as linhas traçadas em mapas e defini-
das em acordos diplomáticos, pessoas, animais, mercadorias,
informações e histórias que, combinadas, auxiliaram na cons-
tituição do que hoje é conhecido como o território, a tradição
e a cultura do Rio Grande do Sul.

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87
Releituras da História do Rio Grande do Sul

DE COMANDÂNCIA MILITAR À PROVÍNCIA:


A ADMINISTRAÇÃO DO RIO GRANDE
DE SÃO PEDRO (1737-1824)
* Marcia Eckert Miranda

O sistema de governo por capitanias até aqui ado-


tado no Brasil é conforme o despotismo, homo-
gêneo à tirania e incompatível com um sistema
constitucional, e por conseqüência deve ser abolido
imediatamente; e nem pode dignamente o Brasil
ser representado em Cortes antes desta medida,
que se deve ter no Brasil por necessidade pública.
(CHAVES, 2004, p.44)

Esta avaliação era a apresentada pelo charqueador José


Gonçalves Chaves em suas Memórias ecônomo-políticas so-
bre a administração pública do Brasil, publicadas no Rio de
Janeiro a partir de 1822 e destinadas aos representantes bra-
sileiros nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portu-
guesa. Vivia-se um período de agitação: a política ganhava as
ruas de diversas capitanias. O mesmo acontecia no Rio Gran-
de de São Pedro, onde as tropas e o “povo” tomaram as ruas e
a câmara de Porto Alegre, expondo projetos políticos distintos
sobre as formas de governo a serem adotadas pelo Governo
central brasileiro e pela Província. Era um momento de infle-
xão, no qual as ideias e as revoluções liberais abriram espaço
para o questionamento das estruturas associadas ao absolutis-
mo, dentre elas o poder dos governadores e capitães-generais.
Como nas demais capitanias do Brasil, a administração
do Rio Grande de São Pedro, desde seu início, seguiu as dire-
trizes traçadas pelas Ordenações Filipinas (1603). No entanto,

* Doutora em Economia Aplicada (IE/Unicamp). Professora Adjunta do Departamento de História da


Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

89
sua condição de fronteira em disputa conferiu-lhe algumas es-
pecificidades. A passagem de posto militar avançado à Capita-
nia Subalterna e, mais tarde, à Capitania Geral foi concedendo
maior poder de decisão aos governantes locais e diversifican-
do a estrutura administrativa por meio da criação de órgãos
específicos, como a Junta da Fazenda e a Junta da Justiça. Por
outro lado, a Revolução do Porto e o processo de Independên-
cia do Brasil abriram espaço para a maior participação da elite
no governo da Província.
O presente capítulo busca analisar o governo da região,
seus limites, seus poderes e suas transformações entre 1737 e
1824, ou seja, do início da ocupação formal portuguesa, quan-
do a região era apenas uma Comandância Militar, à posse do
primeiro Presidente da Província, em 1824.
A ocupação do território do que é hoje o estado brasilei-
ro do Rio Grande do Sul foi iniciada pela necessidade de a Co-
roa portuguesa socorrer, com recursos humanos e materiais,
a sua praça meridional às margens do Rio da Prata, ou seja, a
Colônia do Sacramento, fundada em 1680 e que enfrentava
seguidas investidas e invasões das tropas espanholas.
Entre 1735 e 1737, a Colônia de Sacramento sofreu o
“grande sítio”; a destruição das plantações e de benfeitorias
fora da fortificação impôs a fome à população confinada na
fortaleza. Com o objetivo de socorrer Sacramento, foi orga-
nizada uma expedição pelo Governador e Capitão-general do
Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, em atendimento à
ordem do Conselho Ultramarino. Essa expedição também ti-
nha por incumbência tomar a Ilha de São Gabriel, retomar
Montevidéu e fundar uma fortaleza no Rio Grande.
Frustrado no intento de acudir a praça meridional, o
Comandante da expedição, Brigadeiro José da Silva Paes,
fundou o Forte Jesus-Maria-José, em Rio Grande, em 19 de
fevereiro de 1737. Poucos meses após, em 11 de dezembro do
mesmo ano, Silva Paes retornou ao Rio de Janeiro, ficando
o comando militar do Rio Grande de São Pedro a cargo do

90
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho. Coube a este mi-


litar promover a construção das benfeitorias essenciais para
viabilizar a segurança da possessão e o estabelecimento dos
primeiros moradores, casais enviados da Colônia do Sacra-
mento e alguns procedentes de Laguna, que, a partir de 1738,
dariam forma à nova povoação. O relato do Comandante
Militar permite perceber como eram amplas suas atribuições
nesses primeiros anos de colonização:
[...] levantei cazas á maior parte dos Povoado-
res; dei aos lavradores terras, sementes e instru-
mentos de agricultura. A alguns ajudei com gado
proporcionado ás suas familias; a todos sustentei
com mantimentos de farinha e carne e dei mate-
riaes para casas. Assisti com justiça natural a seus
muitos letigios; ajustei muitas diferenças, para não
chegarem a ser contenciosas; tratei os Povoadores
com benevolência; protegi os mais pobres e cuidei
na conservação de todos, e para pôr na ordem e
socego das povoações antigas, que formei no porto
e Estreito daquele Dominio que em breve tempo se
fizeram consideraveis; expedi muitas ordens e pu-
bliquei vários bandos, para observância dos quaes
fui inflexível, o que pareceria duro só aquelles, que
para dissolução de seus costumes, não couberão
nas diferentes terras, donde sahirão. (MEMÓRIA,
1936, p. 238)

Assim, observa-se que o início do povoamento portu-


guês e o estabelecimento da administração colonial estiveram
intimamente vinculados à ocupação militar da região. Cabia
ao Comandante, auxiliado por um conselho de oficiais, a ad-
ministração da justiça, as decisões relativas à distribuição de
terrenos, a gestão dos recursos da Fazenda Régia, a criação
e manutenção de estruturas necessárias para a segurança do
enclave e a expansão do território, além das negociações com
os indígenas.

91
Entre 1737 e 1740, Ribeiro Coutinho estabeleceu uma
série de regimentos que normatizavam os procedimentos a
serem observados por vários militares e civis encarregados da
defesa, da arrecadação dos direitos régios, entre outras fun-
ções; homens que trabalhavam nas diversas estruturas criadas
para viabilizar a manutenção e a segurança do povoado (ME-
MÓRIA, 1936).1
A partir do Presídio Jesus-Maria-José e da povoação que
se formava, André Ribeiro Coutinho ocupou-se em criar guar-
das, fortes e registros, estabelecendo o controle sobre o trânsi-
to de animais, mercadorias e homens na região, demarcando o
avanço lusitano.2 Estas estruturas, ao lado das sesmarias, for-
mavam um sistema de defesa e de consolidação da ocupação.
A doação de terras privilegiou militares, comerciantes
de animais e pessoas ligadas à administração colonial, ori-
ginando as grandes estâncias controladas por homens que
consideravam a manutenção e a expansão do território não
apenas sua obrigação para com a Coroa, mas uma imposição
para a segurança de sua propriedade e para a expansão de sua
riqueza e influência.3
Assim, entre 1737 e 1761, período da Comandância Mi-
litar, o forte e o território sobre o qual era estendido o do-
mínio português foram governados por quatro comandantes
militares subordinados ao Governo da Capitania do Rio de
Janeiro pela Provisão de 11 de agosto de 1738 (SILVA, 1968, p.
215; SALGADO, 1985, p. 430). Os membros da administração

1
Sobre os regimentos das guardas, fortes e outros, ver MIRANDA, 2000.
2
Foi criado, nos primeiros anos, um sistema de defesa compreendido pelo Forte de São Miguel, pelas
guardas do Taim, do Chuí, do Albardão, do Passo da Mangueira, do Capão Comprido, do Norte e de
Tramandaí; além da formação das estâncias régias do Torotama e do Bojuru, cuja função era fornecer
animais para o abastecimento do presídio e da Vila de Rio Grande e para a remonta das tropas regulares.
O Registro de Viamão teria sido instalado aproximadamente em 1737 e localizava-se próximo à margem
esquerda do Rio dos Sinos, na localidade de Guarda Velha, para o controle o pagamento dos direitos régios
(MIRANDA, 2000, p. 32-33; MIRANDA, 2011).
3
Cabe observar que parte expressiva das terras apropriadas não teve por instrumento de concessão a carta de
sesmaria. Sobre a apropriação de terras e a formação das estâncias no Rio Grande do Sul, ver OSÓRIO, 1990.

92
Releituras da História do Rio Grande do Sul

da região eram, em sua maioria, aqueles que associavam às


suas atribuições militares funções civis, como o Comissário de
Mostras, responsável pela distribuição de mantimentos (fari-
nha e carne) às pessoas que se encontravam a serviço de S.M.
e aos povoadores, mas também tinha a seu cargo o registro da
morte de animais reiunos que estavam sendo usados a servi-
ço das guardas. Além dessas obrigações, devia ainda fazer a
escrituração do livro de receitas dos quintos dos couros e das
ordens e portarias no Livro de Registro Geral da Vedoria do
Rio Grande (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul [AHRS]
– Fundo Fazenda, códice F1197, fls. 31v-32r).
Os Comandantes Militares tinham grande poder de de-
cisão; suas ordens e portarias diziam respeito à distribuição de
terras, à arrecadação de direitos reais e execução de despesas
públicas, ao policiamento e à aplicação de penas (QUEIRÓZ,
1987, p. 53). No entanto, suas competências foram limitadas
com a progressiva criação local dos ramos específicos da ad-
ministração, como a Provedoria da Fazenda Real e a Câmara
da Vila do Rio Grande.
O primeiro Provedor da Fazenda Real no Rio Grande
de São Pedro foi nomeado pelo Decreto de S. M., de 19 de no-
vembro de 1749, por meio da Provisão Régia de 21 de novem-
bro (AHRS – Fundo Fazenda, códice F1197, fls.132r-132v).
A ele cabia a administração da Fazenda Real, ou seja, era o
responsável pela arrecadação dos direitos régios e pela execu-
ção de despesas. Também servia como Vedor das Tropas da
Capitania, sendo o responsável pelo pagamento da folha mili-
tar e por outras despesas, como o munício de carne e farinha,
a aquisição de armamentos, munições e montaria. Tinha sob
suas ordens os almoxarifes, os administradores das estâncias
régias e o escrivão da Fazenda Real. Formalmente subordina-
do ao Provedor-mor do Brasil,4 passou, a partir da década de

4
Alvará de 03 de março de 1770.

93
1770, a responder diretamente à Junta da Fazenda Real do Rio
de Janeiro (SALGADO, 1995, p. 367).
A primeira Câmara estabelecida no território do Rio
Grande de São Pedro foi instalada em 1751, conforme as or-
dens da Provisão, de 17 de julho de 1747, que determinava a
elevação do povoado do Rio Grande à categoria de vila. As
câmaras eram, ao mesmo tempo, os agentes de repressão e
de manutenção da ordem, de fiscalização e veículos das rei-
vindicações da população. Exerciam funções administrativas,
judiciais, policiais e fazendárias. Ainda que as câmaras fos-
sem subordinadas às autoridades régias na colônia, podiam
representar-se diretamente ao rei quando considerassem que
sua jurisdição estivesse sendo invadida (BANDECCHI, 1992,
p. 217-219).
Em 1760, por meio da carta régia de 09 de setembro, o Rio
Grande de São Pedro tornou-se uma capitania, formando um
governo independente do governo da capitania de Santa Cata-
rina, mas subalterno à Capitania Geral do Rio de Janeiro (SAL-
GADO, 1985, p.434; CESAR, 1980, p. 165-166). A partir deste
momento, o Rio Grande de São Pedro passou a ter governadores.
O governador era nomeado por carta régia e tomava
posse na câmara da capital da capitania. Suas funções asse-
melhavam-se às dos governadores capitães-generais, mas seus
poderes tinham algumas restrições. Era subordinado a um go-
vernador de uma Capitania Geral, que tinha inclusive o poder
de destituí-lo.5
A relação entre os governadores e as autoridades que
lhe eram superiores nem sempre foram pacíficas. Os atritos
e a invasão de competências eram corriqueiros. Em 1809, o
governador da capitania do Rio Grande, Paulo José da Silva
Gama, foi alertado pelo governo da capitania do Rio de Ja-
neiro para que se abstivesse de fazer concessões de sesmarias,

5
Para os regimentos dos capitães-generais e capitães-mores, ver POMBO (1905, p. 402-406).

94
Releituras da História do Rio Grande do Sul

uma vez que o governo do Rio Grande era subalterno àquela


capitania a quem competia privativamente a jurisdição sobre
a concessão de terras (AHRS – Fundo Documentação dos Go-
vernantes, maço 2).6
Internamente ao governo da capitania, a inexistência
de delimitações precisas das competências e a possibilidade
dos servidores régios apelarem à Corte criavam novos confli-
tos. Foi o que aconteceu em 1780, quando, por meio de vários
ofícios, o provedor da Fazenda Real da capitania encaminhou
ao vice-rei diversas denúncias sobre a interferência do Gover-
nador José Marcelino de Figueiredo nas questões fazendárias,
usurpando a jurisdição camarária e determinando a execução
de despesas não autorizadas (ARQUIVO NACIONAL [AN],
1907, p.185-191). Em 1809, segundo Alcides Lima, os cons-
tantes atritos e o autoritarismo do Governador Paulo José da
Silva Gama, levara:
[...] a tal estado de desgosto e de aborrecimento,
que de todos os ângulos da capitania concorreram
assignaturas para um abaixo-assinado, que contra
as violências do governador foi redigido e posto
na presença do vice-rei do Brasil. Nesse abaixo-
-assignado não se firmavam somente indivíduos
estranhos á administração, mas lá appareciam até
os nomes de auctoridades subordinadas ao próprio
governador. (LIMA, 1935, p. 143)

O governador de uma capitania subalterna tinha funções


gerais, que abrangiam questões como a ocupação do território,
a distribuição de terras, o relacionamento com os indígenas, a
arrecadação das receitas e a execução das despesas, bem como o
governo das tropas. Em linhas gerais, os governadores seguiam
as determinações dos regimentos dos governadores gerais, as
ordens e provisões emitidas por eles ou por órgãos metropo-

6
Ordem Régia de 08 de março de 1809.

95
litanos (AHRS – Fundo Fazenda, códice F1243, fls.167r-173r).
Era comum que o mesmo documento que nomeava o governa-
dor apresentasse também o regimento específico que delimita-
va as competências e os limites do seu poder.
O regimento do Governador José Custódio de Sá e Fa-
ria, de 23 de fevereiro de 1764, afirmava ser sua atribuição
estabelecer castigos aos “vagabundos” e, quando necessário,
determinar o envio desses ao Rio de Janeiro; zelar para que os
índios não perturbassem os moradores e, se necessário, “mu-
dar os ditos índios para alguma situação que lhe seja mais
cômoda”; nomear responsáveis pelo governo dos índios; re-
partir as terras entre os açorianos, verificando as distribui-
ções anteriores e providenciando a criação de povoações; ze-
lar para o abastecimento de alimentos, vestuário, ferramentas
e sementes aos açorianos; determinar a arrecadação a parti-
culares pela Fazenda Real dos couros do gado que mandar
abater para a alimentação dos açorianos; efetuar o pagamento
de capatazes e peões que trabalhavam nas estâncias reais; fo-
mentar a cultura do trigo; enviar à Corte demonstrativo de
despesas e mapa dos pagamentos feitos; ordenar despesas a
serem efetuadas pela Fazenda Real por meio de portarias,
com intervenção do Vedor Geral; conceder patentes militares
de milícias e ordenanças, e determinar promoções; governar
as tropas da capitania formadas por um Regimento de Dra-
gões e duas Companhias de Artilheiros (AHRS – Fundo Fa-
zenda, códice F1250, fls. 36v, 37r-37v).7
Apesar da instabilidade característica dessa região,
onde se dava o choque entre os movimentos expansionistas
português e espanhol, os anos de 1780 marcaram o início de
um período de paz armada, inaugurado pelo Tratado de San-
to Ildefonso (1777). A relativa paz consolidou a expansão da

7
Cabe observar que, apesar de datado de 1764, registrado na Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande
de São Pedro em 2 de janeiro de 1769, conforme a ordem de registro dada pelo Provedor da Fazenda Real
de 8 de novembro de 1768.

96
Releituras da História do Rio Grande do Sul

triticultura açoriana e o estabelecimento das primeiras char-


queadas, estimulando o crescimento econômico, com o au-
mento das relações comerciais com outras praças brasileiras
(OSÓRIO, 1999; CHAVES, 2004).
Este cenário e, possivelmente, os atritos que tivera com a
Câmara da Capital levaram ao último governador da capitania
subalterna, Paulo José da Silva Gama, a propor à Corte a cria-
ção de quatro vilas (LIMA, 1935, p. 141). Em decorrência da
invasão espanhola à Vila de Rio Grande, em 1763, nos primei-
ros anos do século XIX, a única Câmara existente funcionava
em Porto Alegre, desde 1773, com jurisdição sobre a totalida-
de da capitania nos assuntos que lhe eram pertinentes (AHRS,
1998).8 A criação de novas vilas implicava uma melhora na
distribuição da justiça e de outros serviços já que as autori-
dades e os oficiais camarários (vereadores, juízes ordinários,
almotacés, tabeliães do público judicial e notas, juízes de De-
funtos e Ausentes, Capelas e Resíduos, etc.) estariam mais
próximos dos moradores. Ao mesmo tempo, a instalação das
câmaras ampliaria os espaços de participação dos “homens
bons” no governo local (MIRANDA, 2000).9
Mas, somente em 1809, o alvará de 27 de abril determi-
nou a criação dos municípios de Porto Alegre, Rio Grande,
Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha. Apesar de já se en-
contrar em funcionamento, a instalação formal da Câmara da
Vila de Porto Alegre deu-se em 11 de dezembro de 1810. Este
município passava a ser formado pelas freguesias de Nossa Se-
nhora Madre de Deus de Porto Alegre, de Nossa Senhora da
Conceição de Viamão, do Senhor Jesus do Triunfo e de Nossa
Senhora dos Anjos (AHRS – Fundo Justiça, códice J.016, fls.3-
-4v).10 A Vila de Rio Grande passava a abranger as freguesias

8
Cabe observar que, após a invasão da Vila do Rio Grande, a Câmara reuniu-se novamente em Viamão em
1766, onde foram realizadas suas sessões até sua transferência para a nova capital, em 1773.
9
Sobre as câmaras no Sul do Brasil, ver KHÜN (2006) e COMISSOLLI (2006).
10
Auto de criação da Vila de Porto Alegre de 11 de dezembro de 1810; Auto de demarcação dos limites da
Vila de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, em 13 de dezembro de 1810; e Auto de reconheci-
mento das justiças em Porto Alegre, de 03 de dezembro de 1810.

97
do Rio Grande de São Pedro, da Capela da Conceição do Es-
treito e da Capela de São Luiz de Mostardas, sendo instalada
a Câmara em 12 de fevereiro de 1811 (AHRS– Fundo Justiça,
códice J.017, fls.4v-5v).11 A Vila de Santo Antônio da Patru-
lha, formada pelas freguesias de Santo Antônio da Patrulha,
de Nossa Senhora da Oliveira de Cima da Serra e da Senhora
da Conceição do Arroio, teve sua Câmara eleita e instalada em
03 de abril de 1811 (AHRS– Fundo Justiça, códice J.019, fls.4r-
-5r).12 A Vila do Rio Pardo, formada pelas freguesias de Nossa
Senhora do Rosário, de Nossa Senhora da Cachoeira, de Santo
Amaro e de São José de Taquari, teve sua Câmara instalada
em 20 de maio do mesmo ano (AHRS– Fundo Justiça, códice
J.018, fls.4r-6r).13
Considerando a consolidação do domínio português e o
aumento da importância econômica da região, foi determina-
do pelo Aviso de Sua Majestade, de 09 de dezembro de 1796,
o estabelecimento de um governo independentemente no Rio
Grande do Sul, nomeando um governador (AHRS – Fundo Do-
cumentação dos Governantes, códice B.1.002, fl.52 e anexo).
No entanto, a decisão da elevação à Capitania Geral só
foi formalizada pela Carta Patente de 19 de setembro 1807 e a
sua efetiva execução só ocorreu em 1809, quando tomou posse
como seu primeiro Governador e Capitão-General, d. Diogo
de Sousa. Formalmente autônomo em relação à Capitania do
Rio de Janeiro, esse Governador era subordinado ao Vice-Rei
do Brasil. Nesta Carta Patente, apresentavam-se os fatores que
haviam sido determinantes para a decisão:
[...] atendendo à grande distância em que fica do
Rio de Janeiro a Capitania do Rio Grande de São

11
Auto de Criação e o Auto de Demarcação dos seus limites da Vila do Rio Grande datam de 12 de fevereiro
de 1811.
12
Auto de Criação e levantamento dos piloros e Auto de Demarcação dos limites da Vila de Santo Antônio
da Patrulha.
13
Auto de Criação e levantamento dos piloros e Auto de Demarcação dos limites da Vila do Rio Pardo.

98
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Pedro do Sul e o aumento que tem tido há anos


em população, cultura e comércios, exigem pela
sua importância que possa vigiar de perto sobre os
interesses dos seus habitantes e da Minha Real Fa-
zenda. Sou servido desanexar este governo da capi-
tania do Rio de Janeiro a que até agora era sujeito e
erigi-lo em capitania geral com a denominação da
capitania de São Pedro, a qual compreenderá todo
o Continente ao Sul da Capitania de São Paulo e as
ilhas adjacentes e lhe ficará subordinado o governo
da Ilha de Santa Catarina. (AHRS – Fundo Fazen-
da, códice B.2.001, fls. 79v-80v)

As funções do governador e capitão-general mesclavam


a jurisdição militar, fazendária, judiciária e administrativa, sen-
do o chefe supremo das tropas da capitania (SALGADO, 1985,
p.301-302).14 Com a criação da Junta da Fazenda Real e da Junta
da Justiça Criminal, os governadores e capitães-generais tiveram
seus poderes acrescidos, pois eram regimentalmente presidentes
destes órgãos colegiados.
A Junta da Fazenda fora criada pela Carta Régia de 14
de junho de 1802 (AHRS – Fundo Fazenda, códice B. 2.001,
fls. s.n.). Subordinava-se diretamente ao Erário Régio em Lis-
boa; era responsável pelo pagamento das folhas civil, militar e
eclesiástica, pela realização e controle das despesas, pela ad-
ministração das rendas régias da capitania, deliberando sobre
a arrematação dos contratos e sobre as propriedades régias.15
A Junta da Justiça Criminal foi criada em 1816, pela Car-
ta Régia de 19 de julho (AHRS – Fundo Documentação dos

14
Obedecendo ao Regimento dos Governadores das Armas, de 1o de junho de 1678.
15
Em 1774, por meio de ordem da Junta da Fazenda Real do Rio de Janeiro, de 02 de dezembro, fora criada
uma Junta da Fazenda Real no Rio Grande de São Pedro visando atender às necessidades impostas pela
Guerra para expulsão das tropas espanholas. Terminado o conflito, essa Junta foi extinta a partir de 1º
de janeiro de 1780, subsistindo apenas a Provedoria da Fazenda (AHRS – Fundo Fazenda, códice F1244,
fls.121r-121v; 171r-171v). A Junta novamente criada em 1802 era presidida pelo Governador e Capitão-
-General, pelo Ouvidor da Comarca, por um procurador da Fazenda; por um tesoureiro-geral e por um
escrivão.

99
Governantes, maço 4, códice B.2.02, fls.72-73v.; Fundo Justiça,
códice J. 05, fls.56v.-58.). A essa Junta cabia julgar os crimes
cometidos na capitania, exceto os crimes de lesa-majestade e
aqueles que envolvessem militares e eclesiásticos.16
O crescimento da economia e o alargamento da ocupa-
ção portuguesa para além dos limites estabelecidos pelo Trata-
do de Santo Ildefonso e decorrentes da intervenção na Banda
Oriental (1811, 1816) também contribuíram para a criação de
outra vila na capitania. Em 1819, pelo alvará de 26 de abril,
foi criada a Vila de São João da Cachoeira. Segundo o docu-
mento, este ato atendia a um pleito dos moradores da região,
que afirmavam serem grandes “os incômodos e prejuízos que
sofriam em irem repetidas vezes à dita vila” e por ter de “dei-
xar por muito tempo ao desamparo as suas casas e negócios.”
(AHRS – Fundo Justiça, códice J.015, fls.1v-4v.)
Em 1808, a instalação da Corte portuguesa no Rio de Ja-
neiro provocou grandes alterações na administração do Impé-
rio luso-brasileiro. No entanto, os poderes e a organização dos
governos das capitanias praticamente não foram alterados. O
Rio de Janeiro, transformado em centro político do Império
luso-brasileiro, passava a sediar as instâncias administrativas
máximas. Assim, o governador e capitão-general do Rio Gran-
de de São Pedro passou a se dirigir diretamente a cada uma das
novas secretarias criadas no Brasil de acordo com a natureza
do assunto a ser tratado: à Repartição dos Negócios do Con-
tinente e Erário; à Repartição dos Negócios Estrangeiros e da
Guerra; à Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Do-
mínios Ultramarinos, ou à Secretaria do Estado (desanexada

16
Também era um órgão colegiado, tendo o governador e capitão-general por presidente, por um juiz re-
lator, pelo Juiz de Fora e dois vereadores da Câmara de Porto Alegre, pelo juiz da Alfândega e um membro
nomeado. A mesma Carta Régia que criou esse órgão nomeou Luiz Teixeira de Bragança para compor a
Junta de Justiça Criminal. Tratava-se de um dos homens mais influentes do período, tendo exercido os
cargos de Ouvidor da Comarca, de Juiz de Fora e Provedor dos Defuntos e Ausentes, Capela e Resíduos da
Vila de Porto Alegre, além de esposo da viúva de Rafael Pinto Bandeira, possuidora de uma das maiores
fortunas da capitania.

100
Releituras da História do Rio Grande do Sul

de Secretaria dos Negócios de Marinha e Domínios Ultrama-


rinos pelo Decreto de 11 de março de 1808) (AHRS – Fundo
Documentação dos Governantes, códice B.1.005, fls. s.n.).17
A década de 1820 começou com grande instabilidade
no governo central e na capitania. O movimento do Porto em
24 de agosto de 1820 e a organização das Cortes Gerais e Ex-
traordinárias da Nação Portuguesa em Lisboa, convocando a
eleição de representantes de todas as províncias, obrigavam os
portugueses nascidos no Brasil a tomarem posição e a D. João
VI a aceitar a soberania daquela assembleia, jurando as bases
da constituição a ser elaborada.
Nesse ano, tendo obtido uma licença para ir à Corte,
o governador e capitão-general da capitania de São Pedro, o
Conde da Figueira, ordenou à Câmara de Porto Alegre que
fosse organizado um Governo Provisório (AHRS – Fundo
Autoridades Militares, maço AM 119).18 Esta Junta Provisória
foi instalada em 22 de setembro de 1820 e era composta por
três membros: pelo Ouvidor Joaquim Bernardino de Sena Ri-
beiro da Costa, pelo vereador mais velho da Câmara da Vila
de Porto Alegre, Antônio José Rodrigues Ferreira, e pelo Te-
nente-general Manuel Marques de Sousa, que exercia a função
de Presidente do Governo Interino (CÉSAR, 1980). Foi esse
triunvirato que enfrentou as primeiras manifestações que plei-
teavam a aceleração das mudanças políticas e administrativas,
estimuladas pelas ideias de cidadania e direitos.
A primeira grande manifestação deu-se em torno da
questão do juramento da constituição. Apesar de D. João VI já
haver jurado as bases da constituição portuguesa e ordenado
que o mesmo fosse feito por todos os governos das províncias,19
a Junta Governativa do Rio Grande de São Pedro procrastinava

17
Aviso do Governo, de 22 de junho de 1808.
18
Conforme previa o Alvará de 12 de dezembro de 1770 (Ofício de 18 de setembro de 1820, segundo ofício
da Câmara de Porto Alegre aos membros do Governo Provisório em 30 de setembro de 1820).
19
Conforme o Decreto de 21 de fevereiro de 1821.

101
este ato. Atitude que motivou a rebelião de tropas de primeira
linha em Porto Alegre e em Rio Grande, pleiteando a imedia-
ta obediência às ordens do monarca (PICCOLO, 2005, p. 571-
613). Em Porto Alegre, as tropas amotinadas desfilaram pelas
ruas e coagiram a reunirem-se em praça pública diversas auto-
ridades: os membros do Governo Provisório, o ouvidor-geral,
quatro deputados da Junta da Fazenda, o intendente da Mari-
nha, o escrivão da mesma intendência, o almoxarife da Real
Fazenda, o cônego da Capela Real e o Vigário-geral Antônio
Vieira da Soledade e os demais membros da Câmara de Porto
Alegre. As tropas só dispersaram depois de obrigá-los a prestar
o juramento.
A Junta Provisória foi mantida no poder até 20 de agosto
de 1821,20 quando João Carlos de Saldanha e Daun, último go-
vernador e capitão-general do Rio Grande, nomeado pela Or-
dem Régia de 13 de abril de 1821, chegou a Porto Alegre (AHRS
– Fundo Documentação dos Governantes, maço 5, códice B.
2.002, fls.370- 370v.). O novo governador e capitão-general se
declarava adepto da causa constitucional e fiel a D. João VI. O
retorno do Rei para Portugal e as decisões da Corte agitaram
ainda mais o cenário político da Capitania.
Em 29 de setembro de 1821, um decreto das Cortes de-
terminou a criação de juntas provisórias de governo nas pro-
víncias ainda governadas por capitães-generais. O Rio Grande
de São Pedro voltou a se agitar. A eleição das juntas gover-
nativas provisórias estabelecia a constituição de unidades po-
líticas, transformando as antigas capitanias em “províncias”.
As juntas a serem eleitas pelos eleitores paroquiais de cada
província deviam subordinar-se diretamente a Lisboa, o que
reduziria o poder do Príncipe Regente e dos órgãos centrais
estabelecidos no Rio de Janeiro.

20
Segundo ofício da Câmara de Porto Alegre ao Governo Provisório da Capitania em 18 de agosto de
1821 (AHRS – Fundo Autoridades Militares, maço AM. 119). De acordo com Aviso do Governo de 1º de
outubro de 1821, a data da posse seria o dia 20 (AHRS – Fundo Documentação dos Governantes, códice
B. 1.017).

102
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Pelo decreto, a Junta da Província do Rio Grande de São


Pedro deveria ser formada por um presidente, um secretário e
outros cinco membros. Estavam sob sua jurisdição as questões
civis, econômicas, administrativas e de polícia. Dissociava-se
o poder civil e militar, pois este último passava a ser da al-
çada de um governador das armas, o qual era independente
da Junta Provisória de Governo e diretamente subordinado ao
Governo do Reino e às Cortes (CARREIRA, 1980, p. 20-23).
Em Porto Alegre, as posições eram contraditórias e
ocorreram debates na Câmara em torno de qual a melhor
composição do novo governo.21 Poucos dias após haver che-
gado à Província a notícia de que D. Pedro decidira permane-
cer no Brasil, contrariando as ordens das Cortes, a Câmara de
Porto Alegre, novamente reunida, recebeu cerca de 53 pessoas
representadas pelo cidadão Antônio Bernardes Machado. Este
grupo se declarava contrário à composição de cargos determi-
nada pelo decreto das Cortes, afirmando que “quer este povo
ser governado por uma Junta Administrativa e Representativa
com atribuições mais amplas e uma Superintendência-Geral
sobre todas as Repartições da Província”.22
Dessa forma, a Junta Provisória eleita em 22 de fevereiro
de 1822 não seguia as diretrizes do Decreto das Cortes. Era
o Governo composto por nove membros: um Presidente, o
Brigadeiro João Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun; um
Vice-presidente, o Marechal-de-campo João de Deus Mena
Barreto; um Secretário dos Negócios Políticos, Manuel Ma-
ria Ricalde Marques, um Secretário dos Negócios da Guerra,
o Brigadeiro José Inácio da Silva; e outros cinco membros: o
Brigadeiro José Félix de Matos Pereira de Castro, o comercian-
te Manuel Alves dos Reis Louzada, o Padre Fernando José de
Mascarenhas Castelo Branco e o Desembargador José Teixei-

21
Ata da Câmara de Porto Alegre de 30 de janeiro de 1822 (CORUJA FILHO, 1962, p. 63-64); ata da Câ-
mara de Porto Alegre de 23 de janeiro de 1822 (CORUJA FILHO, 1962).
22
Ata da Câmara de Porto Alegre, de 30 de janeiro de 1822 (CORUJA FILHO, 1962, p. 63-64).

103
ra da Mata Bacelar. A associação entre o poder civil e militar
fora mantida, pois o Presidente acumulava a função de Go-
vernador das Armas, além dos cargos de Presidente da Junta
da Fazenda e da Junta de Justiça. Ao novo governo estavam
sujeitas estas juntas, as tropas de primeira e segunda linha,
todas as mais autoridades civis e eclesiásticas. Na mesma ses-
são, fora determinado que o membro do Governo Francisco
Xavier Ferreira fosse envido à Corte do Rio de Janeiro para
prestar a D. Pedro a admiração e o respeito do novo Gover-
no (ARCHIVO PUBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7,
set. 1922, p. 41-42; CARREIRA, 1980, p. 38-40 e 43). Assim, a
Junta reconhecia e colocava-se diretamente sob a autoridade
do Príncipe Regente.
A Junta Governativa eleita caracterizava-se por uma
ruptura com o modelo das Cortes, mas, ao mesmo tempo,
esse era um rompimento parcial, que restringia as mudanças
propostas por aquela assembleia. Contraditoriamente, a elei-
ção de Daun mantinha o forte vínculo com D. João VI, que
o nomeara. Ao mesmo tempo, a concentração de poderes na
figura do Presidente da Junta, acumulando diversas funções,
inclusive o Governo das Armas, preservava as características
dos governos das antigas capitanias-gerais. Atendia-se às aspi-
rações do “povo”, mas também eram pacificadas as tropas de
linha, fiéis às Cortes.
Mas, a crescente oposição entre as ordens das Cortes e
as medidas tomadas pelo Regente no Brasil refletia-se na ad-
ministração da Capitania. Visando estabelecer a subordina-
ção dos poderes provinciais ao Governo do Rio de Janeiro,
o Príncipe Regente determinou que o Governo Provisório da
Província do Rio Grande de São Pedro do Sul não aceitasse ou
desse posse a empregados civis, eclesiásticos ou militares que
tivessem sido despachados de Portugal. Afirmava que essas
nomeações eram-lhe privativas (AHRS – Fundo Documenta-
ção dos Governantes, códice B. 1.018).23

23
Decreto de 22 de abril de 1822.

104
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Tais embates tinham outros reflexos sobre a Junta Go-


vernativa da Província. O Presidente do Governo Saldanha e
Daun e o Ouvidor José Antônio de Miranda eram contrários
à ruptura entre Brasil e Portugal e discordavam da decisão do
Príncipe Regente de convocar uma assembleia constituinte
para o Brasil pelo Decreto de 03 de junho de 1822. Por isso,
requereram a demissão dos seus cargos (ARCHIVO PUBLI-
CO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7, 1922, p. 59-60, 63-65,
147.).24 A Junta aceitou a demissão do Ouvidor, mas negou-a a
Daun, alegando que a sua presença era requisito para a manu-
tenção da ordem. Sendo Daun eleito Governador das Armas,
os membros da Junta afirmavam temer que seu afastamento
provocasse um levante dos seus partidários, especialmente
nas tropas de primeira linha (ARCHIVO PUBLICO DO RIO
GRANDE DO SUL, n. 7, 1922, p. 68-73).
Após vários pedidos encaminhados por Daun, que ha-
via manifestado seu apoio a D. João e às Cortes, e contrário
à causa do Príncipe Regente, sua demissão foi aceita em 27
de agosto de 1822 (ARCHIVO PUBLICO DO RIO GRANDE
DO SUL, n. 7, 1922, p. 227-255). Com o afastamento de Daun,
assumiu a presidência da Junta o Marechal João de Deus Mena
Barreto, que exercia também os cargos de Comandante das
Armas e de Presidente da Junta da Fazenda.
O acúmulo desses cargos foi alvo de desacordo logo
após a Independência brasileira. No início de 1822, um mem-
bro do Governo Provisório da Província, Antônio Bernardes
Machado, defendeu, por meio de ofício a D. Pedro I, a sepa-
ração entre o poder civil e militar, algo instituído pelo decreto
das Cortes, mas que ainda não acontecera na Província de São
Pedro. Machado defendia a nomeação interina de um militar
para exercer o Governo das Armas, enquanto fosse aguardada
uma decisão do Príncipe Regente. Alegava que:

24
O primeiro pedido de demissão de Daun foi encaminhado em 13 de julho de 1822. Negada, esta repre-
sentação foi reiterada em 16 de julho, 23, 25 e 28 de agosto daquele ano.

105
[...] sendo da atribuição do chefe do Poder Execu-
tivo a direção da força armada, e por conseguinte a
nomeação de generais, ou governadores de armas
seria absurdo, e até usurpação inconstitucional su-
por que o governo popular podia dar essa comissão
a quem o mesmo Governo quisesse, e menos ainda
reunir em um só indivíduo a presidência civil e o
comando das armas. (Arquivo Visconde de São
Leopoldo, n. 0163, p. 4)25

Perseguido pela Junta Governativa, Machado foi demi-


tido de seu cargo e enviado à Corte (REVISTA DO ARCHI-
VO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7, 1922, p. 98;
IHGRGS – Arquivo Visconde de São Leopoldo, n. 0163).26
Apesar disso e independente da representação enviada pelo
ex-membro do Governo Provisório, a decisão do Imperador
de nomear o Marechal José de Abreu para o exercício interino
do Governo das Armas já havia sido tomada pala Carta Régia
de 08 de agosto de 1822. Pouco tempo depois de o novo Co-
mandante das Armas entrar em exercício, foi encaminhada à
Junta Governativa a Instrução estabelecendo limites entre o
governo civil e o militar, atendendo reclamações da Provín-
cia do Rio Grande do Sul, datada de abril de 1823. Segundo
essa Instrução, o Governador das Armas era subordinado ao
Governo Civil da Província, mas era da sua alçada tudo o que
dissesse respeito às tropas (baixas, disciplina, arranjos econô-
micos, destacamentos, guardas de fronteiras, etc.), além da
escolha dos comandantes das fronteiras e distritos, a defesa
do território, a ereção de fortes e outras estruturas defensivas,
além da administração do Trem de Guerra (Biblioteca Nacio-
nal [BN] – Seção de Manuscritos, II – 35,36,9).
Apesar de formalmente ter seus poderes diminuídos na
esfera militar, o Presidente do Governo, o Marechal-de-campo

25
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS).
26
Ofício de 28 de setembro de 1822.

106
Releituras da História do Rio Grande do Sul

João de Deus Mena Barreto indiretamente mantinha um gran-


de poder sobre as tropas da Província. O que ficou evidente na
liderança exercida pelos seus filhos, o Tenente-coronel Gaspar
Francisco Mena Barreto e o Major José Luís Mena Barreto, no
levante das tropas em Porto Alegre a 19 de junho de 1823 – o
que motivou nova modificação do Governo Provisório. Na-
quela data, as tropas sediadas em Porto Alegre reuniram-se
para jurar fidelidade ao Imperador, demonstrando apoiar seu
poder de veto absoluto (PICCOLO, 1985, p. 36). Para a Assem-
bleia Constituinte, tratou-se de um “ato atentatório e formal
usurpação das atribuições do Poder Legislativo”, daí determi-
nar que o Imperador expressasse seu desacordo com esses atos,
suspendesse o exercício dos cargos e enviasse ao Rio de Janeiro
os dois chefes militares, o Presidente e o Secretário da Junta de
Governo (BN – Setor de Manuscritos, II – 36,1,9).27
Assim, afastados João de Deus Mena Barreto e Bernardo
Avelino Ferreira de Sousa, assumiu a presidência do Governo
Provisório do Rio Grande de São Pedro o Brigadeiro José Iná-
cio da Silva e, como Secretário Militar, o Major José Joaquim
Machado de Oliveira (VARELA, 1935, v. 1, p. 311-312). O
novo Governo assumiu em 29 de novembro de 1823, contan-
do ainda com Francisco Xavier Ferreira e os padres Fernando
José de Mascarenhas Castelo Branco e Tomé Luís de Sousa.
Mas esta Junta governou por pouco tempo, já que a Car-
ta de Lei de 20 de outubro de 1823 aboliu os governos pro-
visórios, substituídos por presidentes provinciais escolhidos
pelo Imperador. A mesma Carta criou os conselhos admi-
nistrativos provinciais com seis membros eleitos, cabendo ao
membro mais votado o cargo de vice-presidente (PICCOLO,
1998, v. 1, p. 19-23).28 Limitava-se, assim, a participação polí-
tica, uma vez que era negada àqueles que poderiam ser con-

27
Parecer sobre os acontecimentos ocorridos no Rio Grande do Sul, da Proclamação de opinião pública
feita pelas Forças Armadas submetendo o governo da Província.
28
Eram elegíveis homens maiores de 30 anos e que residissem na Província há pelo menos seis anos.

107
siderados eleitores a possibilidade de escolha do presidente
da Província. O exercício eletivo na esfera local se resumia à
escolha dos membros do Conselho Administrativo, um órgão
consultivo; era um primeiro movimento de centralização de
poderes em relação à abertura propiciada pelas Cortes portu-
guesas (PICCOLO, 1985, p. 38).
Conforme a lei, eram atribuições dos presidentes das
províncias:
[...] fomento da agricultura, educação, estabeleci-
mento de câmaras, proposições de obras, censos,
fiscalização das contas e receitas das comarcas,
decisão sobre os conflitos de jurisdição dos distri-
tos, vigia sobre a infração das leis, cuidados com os
escravos, determinação de receitas extraordinárias,
sendo também responsáveis pelas Juntas da Fazen-
da Pública. Dessa forma, a lei dotava os mesmos
presidentes de amplos poderes, ainda que estabele-
cesse limites para sua atuação mediante a institui-
ção do Conselho. (SLEMIAN, 2007, p. 27)

Mas, antes que essas mudanças fossem implementa-


das, a decretação da dissolução da Assembleia Constituinte,
a criação do Conselho de Estado e a suspensão da liberdade
de imprensa29 mudaram os rumos da distribuição do poder
no novo estado, centrado na pessoa do Imperador, por meio
do Poder Moderador (CARREIRA, 1980, p. 119). Ainda que o
projeto de Constituição, elaborado pelo Conselho de Estado,
tenha sido concluído em dezembro de 1823, somente em 25
de março do ano seguinte a Carta foi outorgada e jurada pelo
Imperador. Em Porto Alegre, o juramento deu-se na Igreja
Matriz em 10 de abril de 1824, sem a ocorrência de manifes-
tações contrárias.

29
Decreto de 12 de novembro de 1823.

108
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Pela Constituição, consagrava-se a centralização de


poder político e a redução da autonomia administrativa das
províncias como estabelecida na Carta de Lei de outubro de
1823, mas também criava os conselhos gerais das províncias,
enquanto órgãos representativos, com poder de propor, dis-
cutir e deliberar sobre os negócios provinciais, sendo suas re-
soluções encaminhadas ao Executivo central por intermédio
do Presidente da Província. Essas resoluções poderiam vir a
converter-se em projeto de lei a ser votado pela Assembleia
Geral (PICCOLO, 1998, v. 1, p. 19-23). Buscava-se institu-
cionalizar os vínculos administrativos entre as províncias e o
centro político no Rio de Janeiro por meio da centralização
do poder. Assim, apesar da extinção das juntas governativas
eleitas, criavam-se outros canais de representatividade, como
o Conselho Administrativo e o Conselho Geral da Província.
O Conselho Administrativo da Província de São Pedro
reuniu-se pela primeira vez em 1º de setembro de 1824, qua-
tro meses após a posse de José Feliciano Fernandes Pinhei-
ro, que foi nomeado seu primeiro presidente. Por se tratar de
um órgão consultivo, realizava uma sessão ordinária por ano,
debatendo questões relativas a tributos, arrematação de con-
tratos, questões de fronteira, contas das câmaras municipais,
entre outros temas (PICCOLO, 1998, v. 1, p. 19-23).30 Sendo
seus membros eleitos, a composição do grupo que primeiro
formou o Conselho Administrativo era bastante heterogênea,
integrado pelo comerciante Manuel Alves dos Reis Louzada,
pelo Cônego Antônio Vieira da Soledade, pelo Desembarga-
dor Luís Correa Teixeira de Bragança, pelo Brigadeiro José
Inácio da Silva, pelo Capitão José Antônio Machado e pelo Dr.
Américo Cabral de Melo (AHRS – Fundo Documentação dos
Governantes, códice A.9.001, fls. 1-3). O Conselho Geral da
Província, criado pela Constituição, só viria a reunir-se pela

30
Também denominado “Conselho da Presidência” ou “Conselho do Governo da Província”.

109
primeira vez em 29 de novembro de 1828, já que só foi regu-
lamentado pela Lei de 27 de agosto daquele ano (Biblioteca da
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul [ALRS]. Livro de
atas do Conselho Geral da Província, volume 1 [1828-1831]).
Apesar do limitado poder formal desses conselhos, deve-se
observar que, no Rio Grande do Sul, essas instâncias permi-
tiram uma crescente articulação de grupos que manifestavam
seu descontentamento, questionando as medidas emanadas
do governo central e apresentando propostas alternativas e
muitas vezes conflitantes àquelas.
No longo do período analisado, as estruturas adminis-
trativas e os governantes do Rio Grande de São Pedro transi-
taram de poderes eminentemente militares para aqueles ca-
racterísticos da administração colonial portuguesa: capitania
subalterna e seus governadores, capitania geral e seus gover-
nadores e capitães-generais. Mas, na década de 1820, a antiga
capitania, transformada em Província, deixou de ser apenas
uma divisão administrativa, tornando-se entidade política,
elegendo representantes para as Cortes em Lisboa, para a sua
Junta Governativa, para a Assembleia Constituinte no Rio de
Janeiro e para a Câmara do Império. As experiências da eleição
do Governo Representativo e as juntas de governo provisório
criaram um espaço para a interferência direta da elite local no
governo provincial. No entanto, a Constituição brasileira de
1824 implicou um movimento de centralização, por meio dos
presidentes nomeados, mas, ao mesmo tempo, criou outros
órgãos pelos quais esses homens poderiam expressar suas po-
sições e participar do governo. Foram esses os espaços utiliza-
dos durante o Primeiro Reinado para fazer frente às decisões
da Corte e para expressar as aspirações da elite rio-grandense.

110
Releituras da História do Rio Grande do Sul

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113
Releituras da História do Rio Grande do Sul

OS AÇORIANOS NO RIO GRANDE DO SUL:


UMA PRESENÇA DESCONHECIDA
* Véra Lucia Maciel Barroso

O exame da historiografia regional, especialmente a


produzida nas três últimas décadas, permite constatar que,
dos grupos formadores da sociedade gaúcha, os dos alemães
e dos italianos, sobretudo, foram especialmente os estudados.
Os alemães, quando das comemorações do sesquicen-
tenário (l974) de sua chegada, receberam, por parte dos pes-
quisadores, grande atenção, do que resultaram importantes
trabalhos publicados, naquele momento, e que muito contri-
buíram para clarear a atuação dos teutos na construção do es-
tado do Rio Grande do Sul.
Diferente não foi com relação aos italianos. Inúmeros
trabalhos foram trazidos à luz em l975, quando do centená-
rio da sua presença no Rio Grande do Sul, estimulados por
concursos ou, mesmo, pela “onda de comemorações” que
se vivia, então. Posteriormente, somando a estes esforços, a
Academia deu a sua contribuição. Acadêmicos de cursos de
pós-graduação, por meio das suas dissertações de mestrado
e teses de doutoramento, também, a partir da década de l970,
muitos deles escolheram, como seu objeto de pesquisa, os
alemães e os italianos. Uma impressionante produção resul-
tou nesta conjuntura, que esquadrinhou detalhes e recortes
da imigração e colonização destes dois grupos, e, na sua es-
teira, outros europeus ganharam igualmente estudos, como
os poloneses, por exemplo.
Importa destacar, para melhor entendimento, sobre o
lugar dos açorianos na historiografia regional, que na “onda
comemorativa” da década de 1970 e, na seguinte, por conse-

* Doutora em História pela PUCRS e Professora em Cursos de Graduação e Pós-graduação da FAPA.

115
quência, também vieram à lume muitas publicações conten-
do fontes documentais, acerca não só dos alemães e italianos,
mas de outros tantos europeus que migraram para o extremo-
-sul do Brasil, publicadas especialmente pela EST Edições,
acessando aos historiadores o seu instrumental por excelên-
cia, que são as fontes documentais. Com elas identificadas e
transcritas, o pesquisador avança caminho, e ele foi transita-
do por muitos, fora e dentro da Academia. O que é visível –
desencadeou-se um processo de construção de identidade e
de pertença às raízes, às origens familiares, nunca visto, sem
esquecer-se da possibilidade de oficialização da dupla cida-
dania, o que não é possível aos descendentes de açorianos no
Rio Grande do Sul; o distanciamento de gerações promoveu
rupturas com vários significados.
O cenário descortinado aos alemães e aos italianos che-
gados ao Rio Grande do Sul no século XIX, respectivamente a
partir de l824 e l875, é de um tempo posterior à incorporação
do Rio Grande do Sul ao seio brasileiro, depois de um século
de conflitos bélicos e tratativas diplomáticas intermitentes. E,
mais: o Brasil já estava emancipado de Portugal. O terreno,
portanto, estava sedimentado, quando chegaram diferentes
europeus em muitas levas e em diferentes etapas, que atraves-
saram o século XIX ao XX. É sabido que passaram por muitas
dificuldades, desde a viagem à sua acomodação e organização
de suas vidas, em meio às promessas, em grande parte não
cumpridas, para com os imigrantes, que a partir delas foram
estimulados a partir para a América. Quer-se pontuar, aqui,
as circunstâncias históricas vividas pelos açorianos trazidos à
Capitania no século XVIII. A conjuntura setecentista é a da
adversidade, pois os ilhéus foram deixados, de fato, ao aban-
dono. E sem assistência foram feitos soldados em defesa do
território em conquista. É nessa direção que se começa a justi-
ficar e arrazoar o título em epígrafe.
Assim, introduzido o tema, é de se esperar que pouco se
saiba sobre os açorianos neste meio, cujas fontes, ao contrário

116
Releituras da História do Rio Grande do Sul

das demais,1 estão esparsas. Afinal, em área palco de guerras


contínuas, as dificuldades de registro deste tempo, sua guar-
da e preservação, seriam grandes. Somando os limites, o que
é fato, a própria documentação gerada pelos órgãos na nas-
cente capitania foi gestada e catalogada de tal forma que os
pesquisadores têm que realizar uma tarefa do tipo: “encontrar
agulha no palheiro”.2
Consequentemente, a produção do conhecimento acer-
ca dos ilhéus é pobre, tanto é que existem mais perguntas/in-
terrogações do que respostas acerca da dimensão da presença
açoriana na formação do Rio Grande do Sul. Trabalhar, pois,
sobre a sua participação na construção da sociedade regional,
constitui um instigante desafio, especialmente na atual con-
juntura, quando o olhar dos brasileiros se volta para Portu-
gal, na tentativa de demarcar a dimensão de sua lusitanidade,
onde os açorianos se encontram. Ou seja, o tempo da falta de
autoestima por ser descendente de portugueses já é passado.
Na atualidade, é visível o interesse pela comprovação genealó-
gica, de matriz açoriana, sobretudo.
Para balizar a construção identitária de grupos sociais,
importa ter o conhecimento sobre seus fundamentos. Afinal,
ninguém ama o que não conhece, e ninguém reconhece o que
não conhece. Assim, em seguimento, são apresentados os ali-
cerces da inserção dos açorianos na história do Rio Grande do
Sul, baliza de pertença e autoestima aos que deles descendem,
e deixa-se o convite para sobre eles alargar a investigação.3

1
Sobre alemães e italianos, no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul há uma farta documentação,
identificada e de fácil procura.
2
A documentação avulsa referente aos açorianos está espalhada em diversos maços, esparsos em diferentes
origens ou proveniências, em meio a tantos outros documentos, o que dificulta a procura, pois há que
se fazer a leitura paleográfica, de um a um, sobretudo dos Requerimentos da Provedoria e Junta da Real
Fazenda, nos quais se pinçam ou se depreendem informes sobre os portugueses insulares. No Arquivo da
Cúria Metropolitana, igualmente se encontram fontes, cuja pesquisa também requer paciência e persis-
tência para decifrá-las.
3
Ajudará aos interessados, inicialmente, saber o que se tem publicado sobre os açorianos no Rio Grande
do Sul. Fez-se um inventário, a respeito, que está publicado no sítio do GT Estudos Étnicos da ANPUH/RS.

117
1 Açorianos – os portugueses ilhéus na formação do
Rio Grande do Sul

Localizado no extremo meridional do Brasil, o estado


do Rio Grande do Sul tem uma história marcada por especi-
ficidades e uma singularidade que o diferencia sobremaneira
dos demais estados brasileiros.
Conquistado tardiamente dos espanhóis (eis a sua sin-
gularidade), os portugueses empreenderam a ocupação do es-
paço sul-rio-grandense com empenho, especialmente a partir
do século XVIII, por meio de uma disputa militar com suces-
sivos confrontos, contracenados por tratados que objetivavam
conciliar os interesses dos dois estados europeus na América.
A arrancada deste processo se deu, sobretudo, com a fundação
da Colônia do Santíssimo Sacramento, por D. Manoel Lobo,
em 20 de janeiro de 1680, um verdadeiro posto avançado por-
tuguês em frente a Buenos Aires. Tratava-se de um ousado
sonho, que se punha em prática, o de romper a fronteira bali-
zada pelo Tratado de Tordesilhas (1494).4 A intenção lusa era
fazer do Rio da Prata o limite natural de sua possessão frente à
de Espanha, na América Meridional.
Contestado de imediato pelos espanhóis, as lutas e os
tratados se sucederam até a definição do Tratado de Madrid
de l750, que parecia acomodar as coroas ibéricas em litígio.
Ele determinava a entrega da área das Missões a Portugal e,
em contrapartida, legitimava, à Espanha, a Colônia do Sacra-
mento (Ilustração 1). Por consequência, os jesuítas a serviço
dos espanhóis, com os índios missionados, deveriam liberar a
área, para entregá-la aos portugueses. Esta determinação aca-
bou por cumprir um papel de álibi gerador de confrontos que
se sucederam e que respondem por dificuldades que os ilhéus
irão vivenciar no espaço sulino.

4
Recordando, por este tratado, a linha imaginária terminaria em Laguna, Santa Catarina. Por consequên-
cia, o território do Rio Grande do Sul era posse espanhola na América Meridional.

118
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Ilustração 1 – Localização da Colônia do Sacramento, atual cidade de Colônia/Uruguai.

Fonte: POLETTI, 2004, p. 44.

Antes de vislumbrar a etapa seguinte, deve ser reconhe-


cido que era um avanço para Portugal a definição do Tratado
de Madrid, pois, ficando-lhe grande parte do território do Rio
Grande do Sul, a ampliação da conquista pretendida seria feita
com um passo mais curto. É o que vislumbrou Alexandre de
Gusmão (natural de Santos/SP), representando a diplomacia
portuguesa nas negociações, ao constatar que o Rio Uruguai
seria um divisor natural de fronteiras, que tanto podia pro-
mover a acomodação entre as partes, como seria uma ponta
de lança rumo à foz do Rio da Prata, que mais facilmente en-
feixaria a tomada de Colônia de Sacramento e seu entorno,
território da futura Cisplatina, atual Uruguai.
Assim, avançando na configuração do cenário anterior à
chegada dos açorianos, a partir de então Portugal deveria cui-
dar do espaço conquistado, e sem demora, pois se tratava de
fronteira viva, passível de movimentações e ameaças de reto-
mada. E foi o que fez. De imediato, projetou garantir as novas
terras conquistadas com povoadores a seu serviço. Conforme
sua percepção e política de povoamento, a área missioneira até

119
então reunia jesuítas a serviço da Espanha, por meio de aldea-
mentos indígenas – os Sete Povos das Missões, que sendo libe-
rada conforme tratado, para ali seriam alojados os açorianos,
desempenhando um papel defensivo, ou seja, de retaguarda
portuguesa na região. É o que planejou a Coroa Portuguesa.
Aliás, do Arquipélago dos Açores (Ilustração 2), ilhas por-
tuguesas situadas no Atlântico Norte, a Noroeste da África, já
vinham chegando açorianos, desde a década de 1740, para ali-
mentar a lógica defensiva que Portugal procurava desenvolver
na área sulina. Igualmente, ilhéus já estavam localizados na Co-
lônia do Sacramento e imediações, cumprindo o papel de po-
voadores e defensores dos interesses lusos, na área em disputa.

Ilustração 2 – Arquipélago dos Açores.

Fonte: Açores, Portugal. Cartão Postal, s/d.

Conforme a Provisão Real de 09 de agosto de 1747, lu-


gares deveriam ser fundados para cada grupo de 60 casais, e
dado um quarto de légua em quadro a cada cabeça de casal,
em áreas de terras que não fossem concedidas sesmarias.

120
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Assim, para garantir o Tratado de Madrid, foi dada a


ordem para virem casais de número (famílias) à Capitania do
Rio Grande de São Pedro, correspondendo à necessidade de
aliviarem as ilhas dos Açores superpovoadas, cuja carência de
alimentos era uma realidade. Não poucos reveses enfrentavam
os açorianos, para além dos abalos sísmicos, com terremotos
e maremotos; situados em ilhas vulcânicas, sua história é mar-
cada por esta realidade.5 Acresce na conjuntura de meados
do século XVIII, uma pressão demográfica de vulto diante do
fraco desempenho econômico das ilhas. Por consequência, a
carência de alimentos agudizava a grave situação que motivou
muitos açorianos a emigrarem.
Eis que o edital de D. João V, de 31 de agosto de 1746,
acrescido da Carta precatória do Corregedor das Ilhas dos
Açores e outras providências, vai desencadear um importan-
te movimento de saída de açorianos rumo ao Sul do Brasil.6
Segundo o historiador açoriano e reitor da Universidade do
Açores, Avelino Meneses, em trabalho publicado na Revista
da FAPA, no ano de 2007, a par das dificuldades das ilhas,
presentes em sua trajetória, o fator preponderante foi o da ex-
pansão portuguesa até ao R io da Prata, “[...] movida pela
riqueza da pecuária, pela crise do açúcar, pela miragem do
ouro e, sobretudo, pelo intento do estabelecimento de corres-
pondência com o império espanhol, em virtude da ‘febre’ de
prata.” (MENESES, 2007, p. 20).

5
Duas observações aqui são necessárias: a) os resultados da erupção de Capelinhos na Ilha do Faial entre
1957 e 1958, e seus efeitos em cadeia, provocaram um êxodo de grandes proporções para a América. Tanto
no Canadá como nos Estados Unidos, nas costas Leste e Oeste, os açorianos se instalaram, com números de
monta, a tal ponto que a comunidade açoriana é maior fora das ilhas, na atualidade; b) a diáspora é para os
açorianos um fenômeno demarcador de sua identidade. Portanto, faz parte da história açoriana, a partida,
no passado e no presente.
6
Outros documentos demonstram as providências para essa fase da emigração açoriana em direção ao sul
do Brasil: a) Carta Régia de D. João V, de 5 de setembro de 1746, e o despacho do Conselho Ultramarino,
da mesma data; b) Regimento para o transporte dos casais das ilhas da Madeira e dos Açores para o Brasil,
de 05 de agosto de 1747; c) Provisão Régia de D. João V, ordenando o transporte e o estabelecimento dos
açorianos das Ilhas para a Ilha de Santa Catarina e o Continente do Rio Grande de São Pedro, datada de
09 de agosto de 1747; d) condições com que foi arrematado, por Feliciano Velho de Oldemberg, o assen-
to do transporte dos casais da Corte e das Ilhas para o Brasil, em 07 de agosto de 1747. Ver ESPÍRITO
SANTO, 1993, p. 21.

121
Do outro lado do Atlântico, em território também por-
tuguês, no Sul do Brasil, havia falta de braços e de “defensores”.
Em busca dessa solução, Avelino Meneses, a propósito desta-
ca: “[...] o soberano converte a restrição dos rumos da emigra-
ção em meio de fortalecimento da ocupação das áreas mais
necessitadas, concretamente as regiões brasileiras mais sujei-
tas à pressão militar estrangeira.” (MENESES, 2007, p. 28).
Foi, portanto, nesse quadro de interesses, que a Coroa
lusa decidiu, de um lado, liberar açorianos em sérias dificulda-
des e, de outro, acomodá-los em outra parte do Reino que pre-
cisava de segurança para ser resguardada. Dada essa definição,
começaram a chegar pelo porto de Rio Grande, em 1752, os
açorianos “de número” ao Rio Grande do Sul.7
Segundo dados estatísticos até agora não bem-esclarecidos,
porque contraditórios, cerca de 350, para uns, ou 585 casais
açorianos, para outros, entraram, então, na Capitania, número
distante do projeto real de enviar 4 mil casais, inicialmente.8 O
que as pesquisas recentes demonstram é que bem mais de 600
famílias ingressaram no território, na primeira leva. Muitos
outros migraram, não só por água, via Rio Grande, como por
terra, vindos de Santa Catarina, pelo corredor norte-litorâneo,
ou de Colônia e cercanias.
Em se tratando da primeira leva, o alvo era o Oeste da
Capitania, como já destacado. A ordem era transportar os
açorianos, para além de Rio Pardo, base militar portuguesa
para a demarcação dos limites, situando-os na área missionei-
ra, com o fim de ali exercerem o papel de cunha garantidora
do domínio português na região. Portanto, esta era a real fun-
ção que então lhes era imposta – a de serem soldados a serviço
de Portugal, cumprindo, assim, o princípio do uti possidetis.

7
Sobre a penosa viagem, há relatos, como o de ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 21.
8
Esses são os números repetidos na historiografia produzida até os anos 1980 sobre o tema, a partir da
obra precursora: FORTES, 1978.

122
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Entretanto, para as demarcações do Tratado de Madrid,


a demora nos trâmites não só levados a frente por Gomes Frei-
re de Andrade, do lado português, como os do lado espanhol
foram arrastando o projetado, acabando por impedir o trans-
porte dos açorianos ao destino programado pela Coroa.9 As-
sim, em compasso de espera, os ilhéus tiveram que “se situar
por sua conta e risco”. Alguns foram se arranchando nas Ban-
das Oriental e Ocidental da Lagoa dos Patos; outros vieram
para o Porto do Dornelles e a calha do Jacuí. Sem ferramentas,
sementes ou cabeças de gado para arar a terra, e desfeito o
sonho da terra prometida, o cotidiano destes migrantes foi se
transformando em desafio desmesurado. Mais que plantar o
alimento para sobreviverem, a realidade enfrentada foi a de
entrar em cena no palco de guerras, como defensores da Ca-
pitania para a Coroa portuguesa. Nesse sentido, já se destacou
o papel importante dos açorianos como “resguardadores” da
fronteira sul-brasileira, o que a historiografia colonial do Rio
Grande do Sul ainda não reconheceu devidamente; as razões,
em parte, já foram apontadas.
Em meio a essa acomodação improvisada dos açorianos,
as resistências ao tratado aconteceram. A confirmar a Guerra
Guaranítica, iniciada em 1754. Na atualidade, é reconhecido que
esse movimento foi um verdadeiro manifesto indígena de que
essa terra era deles, acima da disputa colonialista que os subme-
tia. A guerra movimentou a área. Não poucos foram desaloja-
dos, outros perderam a vida, o que impôs uma nova migração a
muitos açorianos; o desassossego é a marca deste tempo.
O que vem pela frente é a anulação do Tratado de Ma-
drid, em 1761, com o Tratado de El Pardo. Caía por terra o
projeto de colonização açoriana no Oeste missioneiro. Mas,
uma fase mais difícil estava por vir.
9
Segundo Espírito Santo: “Os trabalhos de demarcação tiveram início em 9 de outubro de 1752, mas, em 27
de fevereiro de 1753, a partida demarcadora, nas cercanias de Santa Tecla, foi intimada por índios missio-
neiros a não penetrarem em suas aldeias. A intimação foi reiterada em 1º de março de 1753. Os trabalhos
foram suspensos [...].” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 23).

123
Em 1763, ocorreu a invasão espanhola sobre a Vila de
Rio Grande, comandada por Ceballos, governador de Buenos
Aires. Ela foi devastadora para todos, pois forçou o processo
de fuga das imediações, inclusive do Governador da Capitania
do Rio Grande de São Pedro, que rumou para Viamão, lá se-
diando a capital por 10 anos.
Os açorianos, em nova e forçada diáspora, se espalha-
ram em várias direções, reassentando-se, nesta circunstância
de conflito, onde pudessem recomeçar suas vidas. Como de-
fensores de “sua nova terra”, acabaram por ajudar na preserva-
ção do domínio português pretendido na região. Em deban-
dada (Ilustração 3), muitos se fixaram em núcleos portugueses
já existentes, como em Santo Antônio da Patrulha e Conceição
do Arroio (Osório), somando-se aos ilhéus, já instalados, mi-
grados via Litoral Norte, de núcleos açoritas de Santa Catari-
na. Outros deram origem a novos núcleos povoadores como
Encruzilhada, Triunfo e Taquari, esta última projetada pelo
Governador da Capitania, Custódio de Sá e Faria, em 1764.

Ilustração 3 – Localidades açorianas a partir da concessão de terras entre


1780 e 1800.

Fonte: Arquivo de da autora.

124
Releituras da História do Rio Grande do Sul

É desse período, também, o envio de casais pelo gover-


nador da Capitania para fixação em determinadas áreas. Dois
exemplos: a localização de 28 famílias açorianas em Santo An-
tônio da Patrulha e, de outras tantas, em Conceição do Arroio,
na década de 1770.10
No Porto do Dorneles (atual Porto Alegre), vértice do
ângulo que unia as duas fronteiras, a do mar (Rio Grande) e a
da terra (Rio Pardo), já havia povoadores antes da chegada dos
açorianos. Na área aproximada do atual município de Porto
Alegre, já estavam com posse de terras três sesmeiros: Jerony-
mo D’Ornellas Menezes e Vasconcelos, com sede no Morro
Santana (sesmaria concedida em 1740); Sebastião Francisco
Chaves, no Morro São José, e Dionísio Rodrigues Mendes, com
área que ia do Arroio da Cavalhada até o Arroio do Salso. Por-
tanto, os fundadores de Porto Alegre não são os açorianos. Eles
se somam no povoamento, movidos pela migração forçada
pela invasão espanhola de 1763, de um lado, e pela motivação
estratégica, de outro: a de ocupar a calha do Jacuí com núcleos
que pudessem ser apoio ao avanço dos açorianos no interior
da Capitania em conquista, desempenhando papel estratégico
para resistir e impedir o avanço espanhol. Foi neste contexto
que o Governador da Capitania, José Marcelino de Figueiredo,
criou a freguesia de São Francisco dos Casais (Porto Alegre) em
26 de março de 1772, além das de Bom Jesus de Triunfo e Santo
Amaro. Assim, os açorianos que “estavam à deriva” na penín-
sula sobre o Guaíba, chegados em 1752, viviam em ranchos de
pau-a-pique cobertos de palha e nas imediações construíram
uma capela pequena em devoção a São Francisco. O núcleo,
inicialmente chamado de Porto de Viamão, passou a ser de-
nominado de Porto dos Casais, onde, aliás, estavam até mais
de 60 casais. Os açorianos ali situados ajudaram a constituir o

10
Sobre o destino destes casais, o Monsenhor Ruben Neis abordou em pesquisa, mostrando que a maio-
ria deles se dispersou. Na conjuntura desenhada, ao pesquisador resta perscrutar um longo caminho de
pesquisa. Foi o que realizou o Genealogista Moacyr Domingues, que por mais de 20 anos levantou dados
nos arquivos dos Açores, do Rio Grande do Sul e do Uruguai para acompanhar as constantes migrações e
fixações dos açorianos na região em estudo. Examinar: DOMINGUES, 1993; DOMINGUES, 1994.

125
núcleo que foi medido pelo Capitão Alexandre José Montanha.
Ele demarcou os lotes e fez o traçado das ruas. No ano seguin-
te, em 1773, a freguesia passou a ter Nossa Senhora Madre de
Deus como a padroeira do povoado em crescimento, a ponto
de José Marcelino trasladar para ele a capital de Viamão.
Cultivando as chácaras com trigais e outros cereais, os
açorianos foram dando uma fisionomia animada ao Porto. Si-
tuados em datas de 272 ha, a pequena propriedade foi implan-
tada na Capitania, contrastando com o latifúndio, com cera
de 13.000 ha, já lastreado em grande parte do Leste sulino.
Neste cenário, despontou o Porto dos Casais como importante
centro abastecedor de alimentos da região, então configurada
como uma sociedade que se estruturava pela diferença e que,
paulatinamente, foi sendo consolidada.
Em meio a essa movimentação que apresentava momen-
tos de distensão, a agricultura praticada pelos açorianos pas-
sou, não só, a fornecer alimentos para o mercado local, como
a render lucros à Coroa portuguesa com a crescente exporta-
ção da produção tritícola. Eis em Porto Alegre, os moinhos
de vento (Ilustração 4) e as azenhas (Ilustração 5) a moerem
o grão, fruto da faina açoriana, cuja toponímia demarca os
nomes de dois bairros da cidade.

Ilustração 4 – Moinho de vento.

Fonte: Açores, Portugal. Horta/Faial: Direcção Regional de Turismo dos Açores, s/d.

126
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Ilustração 5 – Azenha d’água.

Fonte: www. fotosearch.com/photos- images/water-mill.html

Não se deve esquecer de outro lado, que alguns açoria-


nos feitos soldados, na defesa das terras portuguesas ao Sul do
Brasil, pelos serviços militares prestados, receberam da Coroa,
como pagamento, a doação de uma ou mais sesmarias. Surgia,
então, o açoriano-estancieiro, em contraposição àqueles que
vieram a receber apenas um quarto de légua em quadro.11 Se,
de um lado, tal ascensão acontecia, muitos outros açorianos
tiveram, ao contrário, suas pequenas propriedades tomadas e
incorporadas à já grande propriedade de muitos estancieiros.
É neste clima de tensão que chegou o ano de 1777, quan-
do foi assinado o Tratado de Santo Ildefonso, reduzindo, em
menos da metade, o território da Capitania. Com ele, Portugal
perdia a área missioneira e a Colônia do Sacramento. Entre-
tanto, o Tratado definiu um espaço neutral entre os banha-
dos do Taim e o Arroio Chuí, para evitar o confronto entre
as Coroas. Nela, nem Portugal nem Espanha teriam assento.
Encarando a área neutral como uma brecha, a Coroa portu-
guesa, apesar do Tratado, desencadeou um alargado processo

A propósito, o romance: ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Um quarto de légua em quadro. Porto Alegre:
11

Movimento, 1976.

127
de concessão de terras sem precedentes.12 Entre 1780 e 1800,
os açorianos passaram, enfim, oficialmente, a receber terras,
após longo tempo de espera e de conflitos bélicos.13
O alvo português era avançar os seus domínios na dire-
ção Oeste. A saída, para tanto, viável, era pelo menos incorpo-
rar, por meio da política de concessão de sesmarias, o amplo
território missioneiro, cenário projetado para os açorianos
quando do Tratado de Madrid. Sem dúvida, a doação de terras
era uma estratégia eficaz e sem ônus para a Coroa, na medida
em que o sesmeiro, ao ganhar a propriedade, tratava logo de
transformar sua posse em uma verdadeira fortaleza. Assim,
ao resguardar seus bens, estava também garantindo a posse
lusa na área em conquista, sem ônus, prática que se mostrou
exitosa aos portugueses.14
Com esta estratégia, Portugal, sem descanso, foi conce-
dendo terras, em especial na direção Oeste. Ao iniciar o sé-
culo XIX, em maio de 1801, um servidor da Coroa espanhola
no Rio Grande do Sul, Félix de Azara, fundador da primitiva
povoação de São Gabriel, percebeu o perigo a que seu país
estava exposto. Escreveu ele, ao rei, a Memória Rural do Rio
da Prata,15 na qual destaca que estabelecimentos portugueses16
estavam sendo espalhados em seus domínios. E alertava ele
– se não forem tomadas providências urgentes, estabelecen-
do ali núcleos espanhóis, em menos de 4 anos terá a Espanha
perdido a posse do referido território.

12
Quer sesmarias (que variava entre 10 e 13 mil ha), quer datas (272 ha, como já indicado), configurando
assim uma estrutura fundiária de dois polos: de latifundiários e minifundiários. Os açorianos se inserem
na condição dos pequenos proprietários, em sua maioria.
13
A transcrição de todas as propriedades concedidas aos açorianos, resultado de projeto da autora, aprova-
do pela FAPERGS, e levando o nome da FAPA e do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, está publicada
na obra de 1.152 páginas: BARROSO, 2002b.
14
A conduta espanhola, ao contrário, era a de centrar seu poder com o fortalecimento das cidades portuá-
rias. Eis Buenos Aires, na embocadura do Rio da Prata, por exemplo.
15
Ver sua publicação na obra: AZARA, Félix de. Memória Rual do Rio da Prata. In: FREITAS, 1980.
16
Significam “propriedades de terras”.

128
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Todavia, o alerta de Azara fora tardio. Não 4 anos, mas


4 meses após, as Missões eram conquistadas definitivamente
por Portugal, para o seio brasileiro. A partir daí, o território
do Rio Grande do Sul passou a domínio luso e, como tal in-
corporado, consolidou raízes que vinham sendo cultivadas ao
longo do processo de conquista.
No século XIX, na condição de avulsos, também chega-
ram açorianos esparsos, que se somaram a tantos outros euro-
peus que configuraram um mosaico étnico diversificado e rico
para a população sul-rio-grandense.17
Um deles merece destaque, como dono de grande nú-
mero de escravos e como contratante desta mão de obra para
importantes obras que foram edificadas em Porto Alegre. Seu
nome: João Baptista Soares da Silveira e Souza. Nascido na
ilha de São Jorge, ele viveu em Porto Alegre no século XIX,
mas construiu casa na Aldeia dos Anjos – Gravataí, que se
mantém conservada. A ele estão ligadas as obras: o Theatro
São Pedro (os alicerces); a Cadeia Pública (situada no gasôme-
tro; demolida); a Bailante (casa de baile, situada na baixada,
atrás da Assembleia Legislativa; demolida); a ponte de pedra
(próxima ao monumento alusivo aos açorianos na Av. Peri-
metral); e o primeiro edifício da Capital, o Malakoff (situado
próximo ao Mercado Público; também demolido).18
Raros são aqueles que, ainda, por desconhecimento, si-
lenciam ou sonegam a influência açoriana na história e na cul-
tura do Rio Grande do Sul.
Os números indicativos dos açorianos e seus descenden-
tes, originários de diferentes ilhas presentes na população do

17
Em levantamento realizado pela autora nos livros de Matrícula de Enfermos e nos de óbitos de “livres”
relativos ao século XIX, foram inventariados os nomes de açorianos que passaram pela Santa Casa ou
foram sepultados em seu cemitério. Verificar a obra: BARROSO, 2002b.
18
Nos registros de óbitos de escravos sepultados no Cemitério da Santa Casa de Porto Alegre, encontram-
-se muitos indicados como de sua propriedade. Na maioria dos casos, a causa da morte refere-se à queda
do escravo em obra de construção. Acervo do Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre. E
importante trabalho de pesquisa sobre este personagem, realizado por Miguel Duarte, está publicado na
obra BARROSO, 2002b.

129
Rio Grande do Sul, até o final do século XVIII, comprovam que
eles eram mais de 50%. Isso já demonstrara Moacyr Domin-
gues em suas pesquisas. Inclusive, chamando a atenção para
a fundação de São Carlos de Maldonado, no Uruguai, com os
açorianos para lá migrados, em virtude da invasão espanhola
de 1763. Nesse sentido, ele consegue mostrar os percursos de
muitos migrados para a nova povoação uruguaia, que acabam,
depois em tempo de paz, por retornar ao Rio Grande do Sul.19
Ampliando e consolidando esta tese, o Genealogista
Luiz Antônio Alves, autor do Memorial Açoriano, coleção
de 58 volumes, em tamanho A4, com aproximadamente 500
páginas cada um, constituiu, com sua obra, uma espécie de
veredictum de comprovação de que os açorianos não foram
exterminados e nem varridos definitivamente do território
português, a ponto de se afirmar que há muito de açoriani-
dade na formação do estado mais meridional do Brasil. Ele
aponta percentuais de origem por ilha, a partir da lista por ele
levantada e apresentada (Quadro 1).20

Quadro 1 – Procedência dos açorianos no Rio Grande do Sul

ILHAS DOS AÇORES ORIGEM AÇORIANA NO RS (%)


São Jorge 29,71%
Faial 26,20%
Terceira 15,37%
Pico 11,18%
São Miguel 4,11%
Graciosa 3,75%
Santa Maria 2,80%
Flores 0,55%
Corvo 0,08%
Açores 4,41%

Fonte: ALVES, 2005, p.16.

19
Verificar sua obra: DOMINGUES, 1994.
20
Examinar: ALVES, 2005. Na obra, ele informa os critérios de análise e as fontes compulsadas.

130
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Como a história deita traços culturais nas práticas e


crenças da sociedade por ela formada, em sequência, o exame
de alguns deles evocados consolidam o reconhecimento da in-
fluência açoriana na fisionomia social do Rio Grande do Sul.

2 Marcas culturais luso-açorianas

Importa, a seguir, demarcar traços herdados dessa pre-


sença, porque desconhecida, acaba-se por confundir e identi-
ficar-se erroneamente a origem de elementos identitários da
cultura regional. Em seguimento, o alvo é apontá-los.
A estrutura fundiária que deu base à organização da
sociedade de classes, com grandes proprietários (os estanciei-
ros – lusos do Continente, especialmente), e pequenos pro-
prietários (os ilhéus dos Açores) no Rio Grande do Sul, foi
configurada no processo histórico do século XVIII, como já
apresentado. Na verdade, a realidade da luta pela terra no es-
paço sulino começou com os primeiros colonizadores: os lu-
sos continentais e os das ilhas açorianas. Vale lembrar e repetir
que o latifúndio (de 10 a 13.000 ha – a sesmaria) que dominou
a formação social do Rio Grande do Sul foi o recurso do avan-
ço da terra e de sua conquista; e o minifúndio (de 272 ha – a
data) foi o mantenedor da posse com a ocupação intensiva.
O sesmeiro, que fazia de sua sesmaria um verdadeiro quartel
militar, teve com o colono açorita, o abastecedor de alimentos,
e também, o soldado/agregado, que, a seu serviço, lutou na
defesa de sua posse. Em outros casos, atuou em defesa da sua
pequena propriedade.
A língua, por outro lado, é um legado vivo por meio de
expressões e falares lusos (do Continente e transplantado para
as ilhas dos Açores). Palavras do vocabulário sul-rio-grandense
exemplificam: riba ou arriba (acima), samear (semear), despois
(depois), saluçu (soluço), premeter (prometer), folgo (fôlego),
amenhã (amanhã), alumiar (iluminar), alevantar (levantar),
alembrar (lembrar), arreceio (receio), milhor (melhor), varar

131
(cruzar o rio), escuitar (escutar). Destacam-se as denomina-
ções: dona (senhora) e peão (empregado), no rol da contribui-
ção linguística.
A literatura oral gestada nos Açores também visibiliza-
da no cotidiano em diversos lugares do estado, mostra a rique-
za de adágios (provérbios ou ditados populares), de adivinhas,
parlendas, lendas e poesia popular, comum e similar nos dois
espaços, até o presente. Para exemplificar, “Água mole, em pe-
dra dura, tanto bate até que fura” e suas variantes, são comuns
aos dois lados do Atlântico. Destacam-se, também, as cantigas
de roda, passadas de geração a geração, os ditos das benzedu-
ras para os vários males e os falórios, nos diversos ritos reli-
giosos (do batizado ao rito fúnebre).21
Os brinquedos e as brincadeiras infantis são de he-
rança portuguesa, na sua maioria. Quem não brincou de
“gato e rato”, “sapata”, “cabra” ou “gata cega”, ou andou com
pernas de pau, lançou pandorgas (as pipas ou papagaios) no
céu e jogou dominó?
A religiosidade manifesta no catolicismo arraigado é
visível nos nomes de muitos povoados estabelecidos no Rio
Grande do Sul durante o século XVIII. Logo que assentados/
arranchados, os continentais ou ilhéus tratavam de edificar
uma capelinha ao santo devoto. A comprovar, os nomes dos
primeiros núcleos populacionais como: SANTO ANTÔNIO
da Patrulha, NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO do Ar-
roio, SÃO FRANCISCO DE PAULA de Cima da Serra, NOS-
SA SENHORA DO ROSÁRIO de Rio Pardo e tantos outros.
Dentre as devoções destacam-se a de São Miguel e Al-
mas e a de Nosso Senhor dos Passos, com suas solenes pro-
cissões. Estas e outras devoções estão ligadas a irmandades,

21
A folclorista Sonia Siqueira Campos fez estudo minucioso e detalhado das manifestações de literatura
oral, presentes no Rio Grande do Sul e as comparou com as variantes das diferentes ilhas dos Açores, ve-
rificando suas similitudes e aproximações, tendo a clareza de que cada lugar imprime sua marca e traços
próprios. Examinar: CAMPOS, 1992, p.61-69.

132
Releituras da História do Rio Grande do Sul

muitas delas vinculadas às Santas Casas, um legado português


que tomou forma no seu vasto Império colonial, com inúme-
ras delas criadas. Muitas se mantêm até o presente, cumprin-
do sua missão. Para as festas de Corpus Christi, a arte orna o
casario com suas janelas enfeitadas, ou fazendo das ruas um
verdadeiro tapete, em que até hoje os ilhéus, com destaque os
da ilha Terceira, se orgulham de fazer.
De outro lado, a religiosidade popular é visível nas ben-
zeduras da medicina caseira.
Nas festas juninas, Santo Antônio e São João, especial-
mente, quer nas ilhas, como em alguns municípios do Rio
Grande do Sul, são festejados com muitas brincadeiras, espe-
cialmente de sorte, e folguedos que fazem a alegria dos seus
participantes. As “Joaninas” mobilizam grande parte da popu-
lação nas ilhas, para uma festa que toma conta das ruas, a cada
ano; é o que ocorre até hoje.
As festas natalinas com presépio e reisado é outra he-
rança transplantada. As cavalhadas, revividas no Império por-
tuguês, celebram a luta entre os mouros e cristãos no processo
de preservação e reconquista do território lusitano, e que, na
contemporaneidade, ainda em alguns lugares são preservadas,
especialmente quando dos festejos do Divino. Originário do
Continente, onde atualmente não é festejado, como no pas-
sado, o Espírito Santo é, ainda hoje, o culto mais tradicional
dos Açores, notadamente na ilha Terceira. Trata-se de uma
marca identitária açoriana, a mais viva, consagrada e festejada
de todas. Os açorianos transformam seus impérios do Divino
(pequenas capelas), a cada ano, em palco animado das suas
tradições religiosas, vivamente celebradas em seus cortejos.
No Rio Grande do Sul, a folia com visitação da bandeira às
casas, a coroação e as procissões estão sendo reintroduzidas
nas festas do Divino, em alguns lugares, prática que, tempo-
rariamente, esteve abolida diante da modernidade dos anos
1970-90. É deste período, sobretudo, a perda dos Impérios,

133
construções dedicadas ao Divino, que existiam em municípios
com presença açoriana. O único existente, mas em ruínas, é o
de Triunfo, que, se preservado fosse, seria o exemplar rema-
nescente desta tradição religiosa de base açoriana no estado.
Dentre as danças gauchescas, com influência açoriana,
nas suas variantes destacam-se: o pezinho, a chimarrita, a ti-
rana do lenço, a quero-mana, o anu e o balaio. Nas ilhas, é
interessante observar as variantes do pezinho e da chimarrita,
em cada uma, por exemplo.
A arquitetura portuguesa, depois adaptada pelos ilhéus
às suas necessidades e condições insulares, também está pre-
sente no Rio Grande do Sul, por meio de exemplares ainda
preservados em alguns municípios, como Rio Pardo, Triunfo,
Santo Amaro, Santo Antônio da Patrulha e outros. Neles, o
casario luso-açoriano, os sobrados com as telhas portuguesas
e, no seu interior, os oratórios aos seus santos devotos se so-
bressaem diante das construções modernas.
A freguesia, a vila e o município – herança que os
romanos deixaram em Portugal – foram igualmente trans-
plantados para os Açores, como ao Brasil, constituindo-se as
células eclesiásticas e político-administrativas dos povoados
pioneiros do Rio Grande do Sul.
E a culinária? Pratos do cotidiano reafirmam a herança
lusa (dos continentais e ilhéus), como os cozidos e fervidos. A
açorda é apreciada por muitos que repassam às novas gerações
o gosto por este prato, ainda preservado.22
A doçaria é riquíssima, preparada de várias formas que
resultam em apreciadas guloseimas, disputadas nos cafés. A
lista é grande. A exemplificar: pão-de-ló, arroz-doce, ovos-
-moles, suspiros, rosquetes e rosquinhas, sonhos, doces com
frutas etc., além de pães variados, sovados e batidos, em for-
matos diversos. Para as festas do Divino, nos Açores, são fei-

22
Sopa feita com migas de pão. Diante das restrições de alimentos, tudo se aproveita.

134
Releituras da História do Rio Grande do Sul

tos, expostos e servidos pães sovados, todos decorados e colo-


ridos, que são admirados em todos os Impérios.
No artesanato, a tecelagem se destaca, especialmente a
feita com fibras vegetais, trançadas ou tramadas, resultando
em utensílios, como cestos, à venda nas barracas à beira da
estrada no litoral gaúcho. Além do cipó e da taquara, já tradi-
cionais, o emprego da folha da bananeira vem resultando em
belos trabalhos, com destaque no interior de Santo Antônio
da Patrulha, na localidade do Evaristo. Vale destacar as flo-
res de papel, variadas e de muitas cores, confeccionadas para
adornar as festas, como para louvar os mortos, em belas coro-
as depositadas nos cemitérios.
Estas são algumas das marcas culturais de origem luso-
-açoriana, algumas mais vivas, outras menos, mas que teste-
munham, no presente, a afirmação de uma identidade que não
silencia o processo histórico que lhes dá sustentação.

3 Conclusão

É inquestionável que, na formação da sociedade sul-rio-


-grandense, estejam presentes marcas da açorianidade, para
além das lusas do continente. Fincadas ao longo do seu pro-
cesso histórico, em meio ao embate militar intermitente, elas
não desapareceram. Ao contrário, se pode afirmar que a cultu-
ra luso-açoriana transmigrada desempenhou um papel de re-
sistência, ao mesmo tempo agregador, em meio às vicissitudes
que tiveram de enfrentar.
Ao contrário dos açorianos que se instalaram no litoral
catarinense, situados à beira-mar, como nos Açores, e pró-
ximos uns aos outros, lá se organizaram, com condições fa-
voráveis à preservação de sua cultura e de sua identidade de
origem, até hoje evidentes. Ainda que fosse uma área de fron-
teira, ao Sul da colônia, a Ilha de Santa Catarina e as cercanias
não se constituíram em espaço emblemático de beligerância
como o Rio Grande do Sul, no século XVIII.

135
O que é fato, na Capitania de São Pedro, os açorianos
acabaram por ficar ilhados, em meio a terra, por todos os la-
dos. Tinham tudo para esquecer suas origens, suas raízes, suas
ilhas. A realidade, aqui, lhes aprontou “um outro mundo” e
uma outra vida, muito distante, e em nada similar daquela que
lhes era familiar. Isso precisa ser dito e frisado, para que nun-
ca mais se repita que os açorianos não fazem parte de “nossa
identidade”, como às vezes se escuta. Reconhecer sua contri-
buição na história do Rio Grande do Sul é, no mínimo, um
sinal de respeito. Por isso, é indispensável conhecer as circuns-
tâncias, o meio e a política vigente no tempo da transmigra-
ção açoriana para a estremadura meridional do Brasil. E este
trabalho se coloca com esta perspectiva e com este propósito:
o de fundamentar o reconhecimento da marca identitária aço-
riana na formação social do Rio Grande do Sul.

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138
Releituras da História do Rio Grande do Sul

ÉPOCA DAS CHARQUEADAS (1780-1888)


* Jorge Euzébio Assumpção

1 A contribuição dos trabalhadores negros


escravizados na formação do Rio Grande do Sul

A participação dos africanos e seus descendentes na


história sul-rio-grandense é fecunda; mas, ao mesmo tem-
po, ocultada por parte da historiografia tradicional, que, de
maneira geral, aderiu à ideologia da democracia étnica sulina
– uma província com baixa participação de descendentes de
africanos e sem conflitos étnicos.
A forte presença dos africanos e de seus descendentes
no extremo Sul do Brasil é comprovada antes mesmo da fun-
dação do Rio Grande lusitano, em 1737.
Africanos escravizados já atuavam nas lutas por territó-
rio entre portugueses e espanhóis, em 1680, quando da criação,
pelos lusitanos, da Colônia de Sacramento, na margem do Rio
da Plata, que serviu como cabeça de ponte a Portugal. Este feito
permitiu um atraente contrabando de prata peruana trazida de
Buenos Aires, assim como a venda de escravos aos espanhóis.
Segundo Maestri (2006, p. 39-40):
Em 1680, com a fundação da Colônia do Sacra-
mento pelos lusitanos, no extremo Sul do atual
Uruguai, o trabalhador escravizado africano e
afro-descendente desempenhou papel determi-
nante na economia regional e no relacionamento
luso-espanhol da América Meridional. Uma das
principais razões da fundação de Sacramento foi a
venda de cativos para os espanhóis.

* Mestre em História pela PUC/RS. Professor nos cursos de Pós-graduação e Graduação da FAPA e da
UNIASSELVI.

139
Já em Sacramento, começou a ser usada a estratégia,
mais tarde empregada pelos farroupilhas, de aumentar o con-
tingente armado através de cativos negros que pegassem em
armas ou desertassem das tropas inimigas, com a promessa
de liberdade.
Os africanos e seus descendentes já haviam transitado
em terras sul-rio-grandenses, através das bandeiras: “É de
afirmar-se que a presença do negro no Rio Grande do Sul te-
nha se verificado por volta de 1635, há mais de três séculos, na
bandeira de Raposo Tavares” (BENTO, 1976, p. 266). Como
também estiveram presentes na expedição que estabeleceu a
criação do presídio Jesus-Maria-José, em 19 de fevereiro de
1737 dando início oficial ao povoamento português em Rio
Grande. Sobre a presença negra, afirma o Coronel Cláudio
Moreira Bento (1976, p.269):
Segundo Paula Cidade, a partir desta época, “uma
onda de negros e mulatos desceu sobre as campinas
do Sul. Em menos de um século já equivalem, em
número, à metade dos habitantes brancos. Cru-
zam-se as três raças e uma delas, a indígena, entra
logo a ser absorvida...”

Sendo os cativos numerosos em Laguna, São José do


Norte e na frota de João de Magalhães, e tendo atuado como
tropeiros entre São Paulo e o atual Uruguai, é crível que seu
número fosse também elevado nas primeiras fazendas em tor-
no de Viamão, Capivari e Gravataí, antes mesmo de 1737.
De acordo com Maestri (2010, p. 90),
Ainda que trabalhadores livres tenham participado
dessas primeiras atividades – colonos, espanhóis,
indígenas aculturados, etc. –, foi importante a par-
ticipação de cativos, em virtude da impossibilidade
da constituição no Sul, como no resto do Brasil, de
um significativo mercado de trabalho livre. Os ho-
mens livres pobres exigiam salários altos para não

140
Releituras da História do Rio Grande do Sul

se estabelecer, mesmo em caráter precário, como


produtores livres em região onde abundavam as
terras e os gados.

Outro aspecto pouco ressaltado pela historiografia, que


tendeu a silenciar sobre a importância dos africanos e seus
descendentes na história, é a presença de escravos e forros nas
guerras guaraníticas (1752-1756), pelas disputas do território
meridional entre espanhóis e portugueses. Os afrodescenden-
tes marcaram sua presença no Exército Demarcador de Portu-
gal; este, composto por 1.633 homens, contava com 180 escra-
vos, além de vários forros ou livres. A participação negra nos
conflitos bélicos, envolvendo ibéricos, como já ocorrera em
Sacramento, foi uma constante enquanto durou a disputa por
terras americanas. Devido à escassez de homens, nenhum dos
lados titubeou em armar os nativos ou africanos para a defe-
sa de seus interesses. Sobre a participação negra nos conflitos
militares, assim se refere o Coronel Bento (1976, p. 265):
Segundo Artur Ramos, “No Rio Grande do Sul, em
fins do século XVIII e início do XIX, o africano
negro foi um dos arquitetos da sociedade rural e
militar criada nessa região através de prolonga-
das lutas, nas quais deu mais do que a sua simples
participação”.
De fato isto verificou-se, mas além e aquém dos limi-
tes mencionados pelo brilhante pesquisador citado.
A contribuição militar da imigração africana ne-
gra para a penetração, exploração, conquista, re-
conquista e manutenção do Rio Grande do Sul, foi
expressiva e caracterizada por um esforço como-
vente, de numerosa e valiosa equipe anônima, mas
decisivo como se verá.
O africano negro foi o primeiro imigrante não lu-
sitano a penetrar, explorar, guardar e se fixar no
território do Rio Grande do Sul, ao lado do con-
quistador luso-brasileiro.

141
Na necessidade de fortalecer suas posições militares
para a defesa do território, assim como abastecer a região mi-
neradora, os portugueses começaram a fornecer sesmarias no
extremo Sul brasileiro, onde a peonada era constituída por ne-
gros e índios.
Conforme Maestri (2006, p. 47), “a posse de cativos era
quase imprescindível para obter sesmaria.” Em tempos difíceis
e de conflitos, eram raras mulheres brancas que aceitavam vir
a essas terras sem lei. Tal fato fez com que se tornasse comum
a união de soldados com índias e negras, o que proporcionou
um caldeamento étnico entre os habitantes do Brasil Meri-
dional, para o desespero de muitos, que se orgulham de suas
raízes europeias e sonegam os laços sanguíneos de africanos
e indígenas com a população lusa. A província de São Pedro
passou a ser cenário de uma grande mestiçagem populacional.
Porém, devido aos frequentes conflitos, aos deslocamen-
tos dos ameríndios e ao reduzido número de cativas negras
resultante do fato de que os escravistas preferiam trabalha-
dores homens, o governo português promoveu uma “limpa”
na sociedade colonial, e enviou, para o extremo Sul, mulheres
oriundas de bordéis, para casarem-se no novo território. Ali,
transformar-se-iam em “respeitáveis senhoras”, tratadas com
todo respeito, constituindo parte da elite dominante da socie-
dade sul-rio-grandense. Sobre a população do Rio Grande, es-
creveu Flores (2003, p. 49):
Formavam a população e a guarnição de Rio Gran-
de pessoas das mais variadas procedências: portu-
gueses, brasileiros de S. Paulo, Bahia, Minas Gerais,
Pernambuco e Rio de Janeiro; índios tupis de S.
Paulo, guaranis fugidos das reduções, negros livres
e escravos. Havia também espanhóis oriundos de
Montevidéu, Santa Fé, Corrientes, Entre Rios e Pa-
raguai que se empregam como peões e domadores.
Por falta de mulheres brancas, os soldados se uniam
com índias e com escravas. O governo colonial en-

142
Releituras da História do Rio Grande do Sul

viou mozuelas (donzelas), retiradas de bordéis das


vilas e cidades de outras capitanias e transforma-
das em noivas, que desembarcaram em Rio Grande
onde casaram e constituíram famílias.

Todavia, a contribuição dos negros e mestiços não se


aplica apenas à área militar, mas principalmente à produção,
fato ainda menosprezado por alguns pesquisadores. A pre-
sença dos trabalhadores escravizados nas fazendas está sa-
cramentada em dados recolhidos nas estâncias de Alegrete,
referentes ao ano de 1859, que demonstram ter à região 124
capatazes, 159 peões livres (não se sabe sua origem étnica) e
527 cativos. Tais números confirmam a presença de escravos e
trabalhadores negros livres também nas estâncias, quebrando
um mito da historiografia sulina de que a formação do povo
gaúcho teria sido forjada na liberdade e no espírito aventu-
reiro de seus habitantes, sem a necessidade do braço escravo,
diferente nisso das outras províncias.

2 A consolidação da presença escrava no Rio Grande


do Sul

Se, mesmo antes da formação do Rio Grande do Sul lu-


sitano, este território já contava com a presença de negros
cativos ou livres, ganhando maior força quando da criação
do polo charqueador pelotense, que proporcionou a entrada,
em grande quantidade, de trabalhadores negros escravizados
na região.
O primeiro levantamento populacional que se conhece é
o Relatório de Córdoba, realizado em 1780, no mesmo ano em
que foi fundada a primeira grande charqueada, por José Pin-
to Martins, em Pelotas. Os estabelecimentos saladeris foram
os responsáveis pelo desenvolvimento singular econômico e
cultural da região, como a introdução sistemática de trabalha-
dores escravizados.

143
Segundo Assumpção (1995, p.39-40),
Com o crescimento da cidade, aumentou também a
vida social. O refinamento e a riqueza dos habitantes
de Pelotas, cujas famílias mais abastadas mandavam
seus filhos estudar fora da província, se refletiram
também em títulos de nobreza, como salienta Alva-
rino Marques:
Nos últimos anos da monarquia, dentre os 58 titu-
lados da nobreza provinciana, nada menos de 13
eram de Pelotas, e poucos tinham conquistado seus
títulos em feitos militantes. Os títulos nobiliárquicos
recebiam nomes pitorescos da nossa rica toponímia:
- Barão de Arroio Grande – Francisco A. Gomes da
Costa;
- Barão de Butui – José Antônio Moreira (português);
- Barão de Correntes – Felisberto Inácio da Cunha;
- Barão do Cerro Alegre – João Alves de Bittencourt;
- Barão de Itapitocaí – Dr. Miguel R. Barcelos;
- Barão de Jaguari – Domingos da Costa Antiqueira,
mais tarde visconde;
- Barão do Jarau – Dr. Joaquim Augusto Assumpção;
- Barão de Santa Tecla – Joaquim da Silva Tavares;
- Barão dos Três Cerros – Aníbal Antunes Maciel;
- Barão de São Luís – Leopoldo Antunes Maciel;
- Conde de Piratini – João Francisco Vieira Braga;
- Visconde da Graça – João Simões Lopes;
- Viscondes de Pelotas (militares) 1º e 2º – carreira
da câmara.
Pela quantidade de títulos concedidos, percebe-se o
prestígio dos senhores pelotenses dentro do cenário
nacional. E o consequente ciúmes dos senhores das
outras cidades, menos importantes, que tentaram
menosprezar a Princesinha do Sul, atribuindo carac-
terísticas e adjetivos desabonadores a seus habitan-
tes, principalmente aos homens, que eram ridiculari-
zados devido a seus gestos “finos e educados”. Ao se
referir ao aspecto cultural pelotense, assim se mani-
festou Alvarino, reforçando o já tradicional ufanismo
dos historiadores pelotenses:
Pelotas, como se sabe, teve origem diversa da
maioria das cidades gaúchas. Aqui se formou des-

144
Releituras da História do Rio Grande do Sul

de cedo uma civilização caracteristicamente urba-


na. Nada mais natural que, numa sociedade desse
tipo, os valores predominantes fossem os relacio-
nados com as artes, as letras, as ciências. Natural,
por outro lado, que a cidade se convertesse em cen-
tro intelectual e mais, em núcleo coordenador das
tradições rurais do Estado.

Os dados obtidos no levantamento, realizado apenas 43


anos após a fundação da província de São Pedro, apesar da
imprecisão das informações, sobretudo no que diz respeito à
população indígena que vivia de modo mais disperso, demons-
tram a notável influência de não brancos na constituição do
novo território. Vê-se, na Tabela 1, que os euro-descendentes
pouco ultrapassavam os 50%, enquanto que os não brancos
somavam 47,4%. Quanto à população afrodescendente, esta já
ultrapassava a população indígena.

Tabela 1: POPULAÇÃO RS – 1780

FREGUESIAS BRANCOS ÍNDIOS PRETOS TOTAL


Madre de Deus 871 96 545 1.512
Rio Grande 1.643 182 596 2.421
Estreito 880 97 277 1.254
Mostardas 360 40 291 591
Viamão 1.028 114 749 1.891
Santo Antônio 828 91 270 1.189
Conceição do Arroio 234 25 158 417
Aldeia dos Anjos 210 1.890 255 2.355
Vacaria 291 32 248 571
Triunfo 637 - 640 1.277
Taquari 580 - 109 689
Santo Amaro 512 - 208 720
Rio Pardo 1.317 438 619 2.374
Cachoeira 42 383 237 662
Totais 9.433 3.388 5.102 17.923

Fonte: ASSUMPÇÃO, 1995.

145
Embora o levantamento não discriminasse os habitantes
por sexo, o número de mulheres brancas era pequeno, como já
assinalado, fazendo do cruzamento inter-étnico algo inevitável.
A propósito, convém especificar que, ao se falar em brancos,
talvez a referência seja a um mestiço de pele clara. O fato de
ter a aparência ou de assumir-se como negro, índio ou mestiço
seria motivo para ser vítima de discriminação em uma socie-
dade classista, escravista e racista. Quanto mais branco fosse o
indivíduo, menos preconceito sofreria. O viajante Lucook des-
creveu o tratamento aos não brancos: “Parece por toda parte
bastante que uma pessoa tenha a tez de um preto para que se
designe como objeto sobre o qual a tirania se pode exercer”
(LUCCOCK, 1975, p.135).
Tomando por base a tabela anterior , é fácil perceber que
o Rio Grande do Sul nunca foi tão branco quanto alguns gosta-
riam. Em três freguesias, Aldeia dos Anjos, Triunfo e Cachoeira,
a população negra ultrapassava a dos brancos. De modo indireto,
o levantamento de 1780 demonstrou, igualmente, a importância
dos trabalhadores escravizados na economia e na povoação do
extremo Sul do Brasil, já que, em todas as freguesias, estiveram
presentes africanos e seus descendentes; e tudo autoriza a crer
que a imensa maioria deles fosse de trabalhadores escravizados.
Contudo, foi com a consolidação das grandes charqueadas
como principal atividade econômica da província que ocorreu
a entrada em grande número de trabalhadores escravizados.
Uma das razões para o aumento foi o fato de que os homens
livres se negaram a labutar nesses estabelecimentos, devido as
suas péssimas condições de trabalho e higiene. Como descre-
veu o viajante Herbert Smith (1922, p. 140):
Há um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo
cativador nestes grandes matadores; os trabalhado-
res negros, semi-nus, escorrendo sangue; os animais
que lutam os soalhos e sarjetas correndo rubros, os
feitores estalidos, vigiando imóveis sessenta mortos
por hora, os montes de carne fresca dessorando,
o vapor assobiando das caldeiras, a confusão que

146
Releituras da História do Rio Grande do Sul

entretanto é ordem: tudo isto combina-se para for-


mar uma pintura tão peregrina e hórrida quanto
pode caber na imaginação. De toda esta carnificina
derivou a riqueza de Pelotas, uma das mais próspe-
ras entre as cidades menores do Brasil.

Os homens livres preferiam a vadiagem ou o roubo a ter


de trabalhar em ambiente tão insalubre, ficando a tarefa entregue
aos cativos africanos, que sob o comando do bacalhau, realiza-
vam todas as tarefas relativas às atividades saladeris, com exceção
das administrativas. A importância dos trabalhadores escraviza-
dos pode ser percebida em face do aumento de cativos, 34 anos
após a fundação do polo charqueador, segundo o censo de 1814.
O censo Tabela 2, nos apresenta alguns dados significa-
tivos que reforçam a certeza da importância dos trabalhadores
gaúchos escravizados em relação ao relatório Córdoba.

Tabela 2: CENSO DA POPULAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL, POR ZONAS,


SEGUNDO A CONDIÇÃO DA POPULAÇÃO PRESENTE EM 1814
Freguesia Brancos Indígenas Livres Escravos R.nascido Total

Viamão 1.545 11 188 908 160 2.812

Sto. Ant. da Patrulha 1.706 08 330 961 98 3.103

Conceição do Arroio 837 19 180 538 74 1.648

S.Luiz de Mostarda 723 05 68 281 74 1.151

N. S. dos Anjos (aldeia) 1.292 256 233 716 156 2.653

Porto Alegre (cidade) 2.746 34 588 2.312 431 6.111

S.Bom Jesus de Triunfo (vila) 1.760 55 240 1.208 193 3.450

Santo Amaro 953 27 66 773 65 1.884

S. José de Taquari (faz.) 1.092 42 67 433 80 1.714

Rio Pardo (cidade) 5.931 818 969 2.429 298 10.445

Cachoeira (vila) 4.576 425 398 2.622 204 8.225

Piratini (vila) 1.439 182 335 1.535 182 3.673

Pelotas 712 105 232 1.226 144 2.419

Rio Grande (cidade) 2.047 38 160 1.119 226 3.590

Missões (povos) 824 6.395 77 252 403 7.951

Total das Províncias 32.300 8.655 5.399 20.611 3.691 70.656

Fonte: ASSUMPÇÃO, 1995.

147
Em 1814, a maior parte da população era constituída de
não brancos (Tabela 3). Em nenhuma das freguesias o núme-
ro de cativos era inferior a duas centenas. Porém, é Pelotas a
mais importante cidade do século XIX no Rio Grande do Sul,
onde se situava o polo charqueador, que apresentava a maior
concentração de africanos e descendentes, superando os 60%.
O charque era o principal produto produzido nas charquea-
das, assim como o de maior importância nas exportações da
província. Eram esses estabelecimentos os impulsionadores
da economia do Brasil Meridional.

Tabela 3: PERCENTUAL DE HABITANTES EM 1780 E 1814


1780 % 1814 %
Brancos 9.433 52,5 32.300 45,6
Índios 3.888 18,9 8.655 12,1
Pretos 5.102 28,5 5.399 - Livres 36,8
20.611 - Escravos

* Se, à percentagem de 36,8% de “pretos”, fossem acrescentados os recém-nascidos, provavelmente


filhos de escravos, que somam 5,2%, ter-se-ia um total de 42% de africanos e afrodescendentes.

Fonte: ASSUMPÇÃO, 1995

Ainda de acordo com Assumpção (1995, p. 99): 


Antes da independência o valor do charque sozinho
representava 57% do valor total das nossas expor-
tações provinciais. Junto com os demais produtos
animais derivados da indústria saladeril, couros,
sebos e chifres, representavam 85% de tudo o que
se vendia para fora. A julgar correto os dados apre-
sentados, podemos afirmar que as charqueadas
chegaram a ser responsáveis por, no mínimo 85%
das exportações gaúchas; ou seja, as exportações
sulinas, no período estudado, dependiam dos esta-
belecimentos charqueadores e, por consequência,
da mão-de-obra escrava.

148
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Como se percebe, a economia do extremo sul brasileiro


estava calcada em três pilares básicos: os estabelecimentos sa-
laderis que produziam a riqueza da província; a mão de obra
escrava negra que labutavam nesses estabelecimentos; e a atual
cidade de Pelotas, onde se localizava o maior polo charqueador,
o que a tornava mais próspera e importante freguesia do século
XIX. Importância que lhe concedeu a alcunha de Princesinha
do Sul, o que pode ser percebida através dos títulos de nobreza
destinados aos habitantes locais.
Já em Porto Alegre, capital da então província, chega a
quase 47% a proporção de negros livres ou cativos. Em face
desses dados, percebe-se a importância do elemento servil
para a economia sulina, em geral, principalmente nos grandes
centros. Os números apresentados anteriormente mostram
igualmente que a influência socioeconômica e sociocultural
dos africanos e afrodescendentes não se deu apenas nas char-
queadas; mas, sim, em toda a província.
Levantamento realizado nos centros urbanos da pro-
víncia demonstrou que os trabalhadores escravizados desem-
penhavam os mais diversos ofícios. Os homens eram açou-
gueiros, tanoeiros, telheiros, alfaiates, barbeiros, dentistas,
canoeiros, carpinteiros, carregadores, carroceiros, oleiros,
ourives, pajens, pintores, marceneiros, mascates, sapateiros,
padeiros, farinheiro, ferradores, podadores, etc. As mulheres
eram amas secas, penteadeiras, amas-de-leite, bordadeiras,
costureiras, cozinheiras, criadeiras, doceiras, domésticas, fian-
deiras, rendeiras, mucamas, lavadeiras, rendeiras, dentre ou-
tras atividades. Os trabalhadores escravizados faziam sabão,
crivo, massa, picado, queijos, velas, etc. (WEIMER, 1991).

3 Modalidades de escravidão e tratamento dos


escravos no Rio Grande do Sul

Não sendo a escravidão algo linear, não se pode cair na


tentação de amenizar ou romantizar as condições dispensadas

149
aos trabalhadores escravizados, tomando por base situações
singulares de escravos ou famílias escravizadas que tiveram
um tratamento diferenciado da grande maioria. Se não se tra-
tasse de exceções, não se teria o altíssimo número de fugas,
de quilombos e de vários tipos de justiçamento, nos quais os
trabalhadores escravizados se envolviam, como relata Maes-
tri, em seu livro de excepcional título Deus é grande, o mato é
maior!, onde trata da resistência servil no Rio Grande do Sul.
Nas charqueadas, que tinham uma média de 60 a 80 ca-
tivos, as condições de trabalho eram duríssimas; o tratamen-
to, impiedoso e a vigilância, rígida. Sobre o assunto descreve
Alvarino Marques (1990, p. 105): “As relações entre negros e
senhor eram iguais, senão piores que as verificadas no resto
do Brasil escravocrata....”, diz, ainda, o autor, citando Nicolau
Dreys:“Uma charqueada bem administrada é um estabeleci-
mento penitenciário”.
No mesmo sentido, em depoimento de excepcional va-
lor, tem-se a descrição de Saint-Hilaire, que se torna indispen-
sável, devido à posição nada favorável do mesmo em relação
aos afrodescendentes.
Nas charqueadas os negros são tratados com dure-
za. O Sr. Chaves, tido como um dos charqueadores
mais humanos só fala aos seus escravos com exage-
rada severidade, no que é imitado por sua mulher;
os escravos parecem tremer diante de seus donos.
Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12
anos, cuja função é ir chamar os outros escravos,
servir água e prestar pequenos serviços caseiros.
Não conheço criatura mais infeliz que essa criança.
Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum
brinca! Passa a vida tristemente encostado à pa-
rede e é frequentemente maltratado pelos filhos do
dono. À noite chega-lhe o sono e quando não há
ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir.
Não é esta casa a única que usa esse impiedoso sis-
tema: ele é frequente em outras. Afirmei que nesta

150
Releituras da História do Rio Grande do Sul

capitania os negros são tratados com bondade e


que os brancos com eles se familiarizam, mais que
em outros pontos do país. Referia-me aos escravos
das estâncias, que são em pequeno número; nas
xarqueadas a coisa muda de figura, porque sendo
os negros em grande número e cheios de vícios, tra-
zidos da capital, torna-se necessário tratá-los com
mais energia. (ASSUMPÇÃO, 1995, p. 240)

Em decorrência, houve um indeterminado número de


fugas, gerando quilombos na província em geral e em particu-
lar na região de Pelotas, onde se localizava o polo charqueador
e que apresentava as piores condições de tratamento da escra-
varia gaúcha.
Também não se pode pensar que as charqueadas cons-
tituíssem uma exceção, e que os outros cativos possuíam uma
vida prazerosa. Mesmo que, em algumas atividades, as con-
dições de vida e de trabalho dos escravizados não fossem tão
desumanas quanto nos estabelecimentos saladeris, não quer
dizer que não fossem igualmente duras e violentas. Mesmo os
escravos urbanos, que desfrutavam de uma relativa mobilida-
de, também sofreram com os maus-tratos e os castigos, que, é
bom lembrar, foram próprios e inerentes ao sistema escravista.
Nas cidades, desenvolveu-se uma modalidade de escra-
vidão que, salvo engano, foi desconhecida no mundo rural:
trata-se do escravo ao ganho, com uma mobilidade maior que
a dos outros cativos. Tal condição oportunizava que proves-
sem seu próprio sustento, devendo, contudo, pagar ao seu se-
nhor certa quantia em dinheiro de tempos em tempos. Con-
tudo, não se pode ter a ilusão de terem esses escravos uma vida
idílica, pois as quantias cobradas pelos senhores costumavam
ser altíssimas, fazendo com que muitos recorressem ao roubo
para cumprir seus acordos; e, assim, manter sua condição di-
ferenciada. O regime “ao ganho”, embora típico, não impediu
que um número indeterminado desses escravos se refugiasse
nos quilombos e estados vizinhos, objetivando escapar dos

151
pagamentos escorchantes, como também dos maus-tratos de-
correntes da discriminação étnica.
Nas cidades, também foram frequentes os escravos de
aluguel; modalidade em que os senhores viviam do arrenda-
mento de seus cativos a terceiros. Não foram raros os senhores
e as senhoras que sujeitaram suas belas escravas à prostituição,
de cujos rendimentos passaram a viver.

4 Resistência escrava
A escravidão trouxe consigo algo intrínseco a si própria,
a resistência e a busca da liberdade dos seres humanos reduzi-
dos à servidão. O que não foi diferente no Brasil Meridional,
apesar da mistificação de uma escravidão mais branda do que
no restante do território, como apregoaram alguns românticos
ufanistas gauchescos.
Julgamos que o nosso espírito democrático já se
formara antes da grande introdução do elemento
negro. Esse ponto de vista explica o fato de serem,
como relatam os historiadores, os escravos me-
lhor tratados aqui do que nas demais províncias
do Brasil. O espírito de fraternidade que o tempo
depositou na alma de nossa gente foi tão grande
que numa das poucas lendas criadas pela alma
gaúcha (a do Negrinho do Pastoreio) estigmatiza
a execranda memória de um senhor perverso. A
democracia rio-grandense, por conseguinte, ado-
ça, humaniza entre nós a nefanda instituição que
outros povos ambiciosos criaram e exploraram.
(GOULART, 1985, p.48)

A afirmação de Goulart, de cunho eminentemente


ideológico, longe está da verdade histórica. Não é preciso
muito esforço para refutar ao autor, basta recorrer aos via-
jantes que frequentaram a província no século XIX, para
desmistificar as alusões de uma escravidão diferenciada no
atual estado do Rio Grande do Sul.

152
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Sabeis como esses senhores, tão superiores tratam


seus escravos? Como tratamos nossos cães! Come-
çam por insultá-los. Se não vêm imediatamente,
recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de
sua senhora, metamorfoseada em harpia ou ainda
um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro
amo. Se resmungar são ligados ao primeiro poste e
então o senhor e a senhora vêm, com grande ale-
gria no coração, para ver como são flagelados até
verterem sangue aqueles que não têm, muitas ve-
zes, outro erro que a inocência de não ter sabido
adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões!
[...] Feliz ainda o desgraçado negro, se seu senhor
ou sua senhora não tomam eles mesmos, uma cor-
da, relho, pau ou barra de ferro e não batem, com
furor brutal, no corpo do escravo, até que pedaços
soltos de pele deixem correr sangue, sobre seu corpo
inanimado. Porque geralmente se carrega o negro
sem sentidos para curar seus ferimentos; sabeis
com quê? Com sal e pimenta, sem dar-lhes mais
cuidado do que o que se presta a um animal, ata-
cado de feridas, e que se quer preservar dos vermes.
(ISABELLE, 1963, p. 68)

A reação dos trabalhadores escravizados sul-rio-grandenses


deu-se de várias formas, desde o corpo mole até o crime de
senhores e capatazes. Salvo engano, foi a fuga uma das mais
usadas e temidas formas de resistência utilizadas pela escra-
varia. Ela causava perdas financeiras ao senhor, afrontava o
regime, estimulava a rebeldia e poderia proporcionar a criação
dos temidos quilombos ou a fuga para os estados vizinhos,
onde poderiam se incorporar a seus exércitos e também de
onde poderiam voltar e combater seus antigos senhores.
Salvo engano, foi na região saladeril, mais precisamente
na Serra dos Tapes, que se teve a formação do mais importante
quilombo meridional – o quilombo de Manoel Padeiro – que
levou pânico e pavor à aristocracia pelotense, com sua violên-
cia, sua agressividade e seu plano insurrecional.

153
A relação do escravo rebelado com os estados vizinhos
sempre foi uma preocupação por parte da elite sulina. Haja
vista o quilombo de Manoel Padeiro, salvo melhor juízo, foi o
mais violento refúgio de negros que se tem registro. O quilom-
bo de Padeiro impôs um verdadeiro pânico na região onde se
localizava o polo charqueador gaúcho, com seus atos de aten-
tado contra a propriedade. O medo gerado pelo quilombola
fez com que as autoridades oferecessem uma elevada soma
pela sua captura:
(...) Aberta a sessão às dez horas da manhã, de-
pois de se haver conferenciado com o juiz de paz
do terceiro distrito, Boaventura Inácio Barcelos,
sobre as providências que se precisarão dar para
a extinção dos quilombos da Serra dos Tapes, foi
deliberado por unanimidade de votos, que o dito
juiz de paz determinaria haver efetivamente uma
partida de sete homens e um comandante na di-
ligência de prenderem ou extinguirem, na forma
da Lei, os ditos criminosos quilombolas, vencendo,
diariamente o comandante, 1.280/000 réis e os ca-
maradas a 640/000 réis cada um, além da gratifi-
cação que terá a partida para prender ou extinguir
os quilombolas, a saber pelo cabeça, dos ditos mal-
feitores Manoel Padeiro 400/000 réis, e de cada um
dos seis companheiros do dito cabeça, 100/000 réis;
que finalmente, se ordenasse ao procurador desta
câmara, a entrega de quantia de 300/000 réis ao re-
ferido juiz de paz, para as despesas da dita partida,
dando ele conta final para se fazerem os competen-
tes assentos. (ASSUMPÇÃO, 1995, p. 232)

Digno de registro neste mundo senhorial machista é a


postura da mulata Rosa, exemplo das mulheres negras opri-
midas que lutaram por sua liberdade e emancipação.
Quando do primeiro ataque registrado, o grupo
quilombola da serra dos Tapes compunha-se de

154
Releituras da História do Rio Grande do Sul

11 homens e apenas uma mulher. A mulata Rosa


– a única amazona do grupo, de propriedade do
comendador Barcellos, seria, ao contrário, uma de-
cidida quilombola. Vestida de homem, carregando
duas facas na cintura, participava ativamente dos
ataques calhambolas. Segundo parece, ela não pos-
suía um companheiro fixo. Rosa morreu, resistindo
ao primeiro ataque reescraviador; em 16 de abril
de 185, junto com João Juiz de Paz. (MAESTRI,
2002, p. 56-57)

Os temores não eram sem fundamento, como ficou de-


monstrado. Manoel Padeiro arquitetava e seus quilombolas
além de atuarem na região das charqueadas, onde se localizava
a maior concentração de trabalhadores escravizados, arquite-
tavam um plano, de atacar a vila, começando pela costa e li-
bertando toda a escravaria. Tal empreendimento contava com
a colaboração de um castelhano que fornecia armas de fogo e
pólvora a Padeiro.
Que o dito castelhano mandou chamar, uma vez,
ao padeiro, que fosse escondido a falar com ele e
este chamado pelo quilombola Francisco, de Dona
Maria Theodora, que na casa da viúva Joaquina o
Padeiro deu uma arma de fogo, ao dito castelha-
no, e este lhe promete de comprar meia arroba de
pólvora, para qual o padeiro quiz dar dinheiro, e o
castelhano não quiz receber, prometendo que daí a
três semanas lhe entregaria a pólvora e seguirão da
casa da viúva Joaquina, onde quiseram degolar ao
capataz de João Antonio Ferreira... que já estava
baleado pelos mesmos quilombolas.

E mais
(...) que depois logo entrarão uma porção de gente
com o José Ignácio e se [...] de tudo quanto havia
no lugar do preso dos quilombolas de maneira que
houve alterações de palavras com os que haviam

155
entrado primeiramente que a dita gente de José
Ignácio não perseguiu os quilombolas e nem fize-
ram serviço algum. Disse mais que os quilombolas
diziam que haviam de vir a esta vila, principiando
pela Costa de Pelotas e trazerem mais negros para
o assalto da vila. (ASSUMPÇÃO, 1995, p. 234)

As tentativas de insurreições também fizeram parte da


resistência escravista por parte da população afrodescenden-
te. Várias foram as tentativas e insubordinações no extremo
Sul do País, dentre outras as dos escravos minas em 1835. A
revolta deveria abranger toda a região e contava com o apoio
também de estrangeiros. O plano deveria ser executado no dia
06 de fevereiro de 1848. Porém foi abortado, devido à delação
do escravo Procópio, também mina, que denunciou o plano
às autoridades e em troca recebeu sua carta de alforria. Já os
conspiradores foram vítimas da repressão, causada pela in-
confidência de Procópio.
Fugas, assassinatos, rebeldias, insurreições e quilombos
fizeram parte do cotidiano da escravidão sulina em geral e da
Pelotense em particular, por possui esta a maior concentra-
ção de trabalhadores escravizados no Brasil Meridional até
os últimos dias do regime escravista em maio de 1888. Pois,
ao contrário do que apregoam alguns, o regime escravista no
atual estado do Rio Grande do sul sobreviveu até os últimos
dias da escravidão.

5 Conclusão

Por fim, pode-se afirmar que os africanos e seus des-


cendentes estiveram e participaram na formação da socie-
dade sulina de forma decisiva. Defendendo suas fronteiras,
trabalhando na criação de gado e na produção de charque,
que foram as bases da economia gaúcha no século XIX; ou
exercendo as mais diversas atividades nas áreas urbanas. Sem
exagero nenhum, pode-se dizer que foram os responsáveis

156
Releituras da História do Rio Grande do Sul

pela prosperidade da província no século XIX. Trazidos que


foram de forma coercitiva para executar as tarefas mais peno-
sas da sociedade, até o fim da escravidão, os afrodescendentes
lutaram por sua liberdade – fugindo, formando quilombos ou
justiçando seus algozes.
A escravidão nada teve de romântica, como querem al-
guns. Ela significou um período de luta pela liberdade, por
parte dos trabalhadores negros escravizados. Luta que levou à
morte e a castigos cruéis, inerentes ao sistema escravista, que
fez dos africanos e seus descendentes os párias da sociedade
brasileira, trazendo seus reflexos negativos a esta etnia até os
dias atuais.

Referências

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158
Releituras da História do Rio Grande do Sul

CAMINHOS DA COLONIZAÇÃO ALEMÃ NO


RIO GRANDE DO SUL:
POLÍTICAS DE ESTADO, ETNICIDADE E
TRANSIÇÃO
* Raul Rebello Vital Junior

1 Introdução

A camada dominante da sociedade brasileira que vai


ancorar o movimento de independência política do País irá
identificar-se como integrante de um Estado profundamente
hierarquizado e escravista.
D. Pedro era visto pelas elites que apoiaram a indepen-
dência política do Brasil como a saída para um processo sem
traumas. Preservar o sistema monárquico foi a fórmula pen-
sada para evitar movimentos republicanos, abolicionistas e a
participação das camadas populares no processo separatista.
Evitar radicalismos e manter a escravidão eram desafios que
se impunham ao estado recém-formado.
A Monarquia brasileira que se constituiu a partir de
1822 trouxe consigo um formato social herdado das antigas
estruturas coloniais. Latifúndio, monocultura e mão de obra
escrava integraram o tripé que perpetuou a herança colonial
para a base econômica do Brasil. Formou-se um Estado aris-
tocrático, voltado para os interesses de uma elite escravocrata.
Pode-se perguntar: que espaço existiria diante dessa di-
nâmica para uma política imigratória? Se dependesse da men-
talidade das elites agrárias do País, essa resposta poderia ser
dada de forma simples e objetiva: nenhum.

* Mestre em História. Professor da FAPA e da rede municipal de ensino de Porto Alegre.

159
A escravidão brasileira encontrava-se de tal forma in-
corporada ao ethos das elites nacionais que seguramente não
cogitariam alternativas a ela. O sistema escravista fazia parte
da “ordem natural da economia brasileira”. O trabalho, para
a Sociedade Imperial, não se apresentava como um valor. O
destino da aristocracia com ascendência europeia era usufruir
das benesses do trabalho servil.
Neste sentido, percebe-se uma aparente contradição en-
tre os interesses do Império e os dos setores escravocratas no
Brasil. Convém lembrar que as pressões internacionais cres-
ciam de forma considerável para a abolição do tráfico interna-
cional de escravos. Desde a fase Joanina, a Inglaterra tentava
impor ao Estado português o fim do comércio escravista des-
de o ano de 1810, por conta do Tratado de Aliança e Amizade.
Em 1827, novo tratado foi firmado entre Brasil e Inglaterra. O
compromisso do governo brasileiro em extinguir o tráfico até
o ano de 1830 não se efetivou. A tentativa de decretar o fim
do tráfico em 1831, por Feijó, também não foi colocada em
prática. A culminância dessas pressões resultou na Bill Aber-
deen (1845). Com esta lei, a Inglaterra se outorgava o direito
de capturar qualquer navio negreiro, independente de sua na-
cionalidade, e julgar os traficantes.
Mesmo com o contexto desfavorável para a manuten-
ção do sistema escravista, mexer no sistema de mão de obra
no Brasil não foi algo simples. Houve um longo período de
transição. Logo, volta-se à questão anterior: qual a função da
imigração em um País com uma estrutura escravocrata tão
consolidada? Estaria o Estado brasileiro à frente dos próprios
grupos que o mantinham? Certamente, não. Nem tampou-
co pode-se considerar a questão servil como fator único nas
ações do Estado brasileiro diante da política imigratória na
primeira metade do século XIX.
Já na segunda metade do século XIX, essa situação mu-
dou, e a questão servil ganhou corpo principalmente a partir
da lei Eusébio de Queiroz (1850).

160
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Para as questões apresentadas, encontra-se parte da res-


posta na necessidade de formação de um grande exército, vol-
tado para a defesa do território, principalmente em áreas de
fronteira. O recém-formado Estado brasileiro dava continui-
dade à pretensão portuguesa do século XVIII por intermédio
do Conselho Ultramarino, que entendia a colonização como
forma de firmar soberania. A mesma intenção foi reafirmada
na fase Joanina. Em 1808, foram promulgados dois decretos
por D. João, dando início à política de estabelecimento de co-
lônias agrícolas na Brasil, sendo determinada a vinda de 1.500
famílias trazidas dos Açores para a Capitania do Rio Grande
do Sul e permitida a concessão de sesmarias a estrangeiros,
buscando aumentar a lavoura e a população. No ano de 1818,
foi fundada a colônia de Nova Friburgo, na então província do
Rio de Janeiro.
Junto com essa demanda, existia a necessidade de ocu-
pação dos espaços vazios, conjugando-os ao desenvolvimento
da agricultura e de outras áreas da economia.
Os séculos que marcaram as práticas escravistas no Bra-
sil naturalizaram a crença na incapacidade para o trabalho por
parte do caboclo e do negro. Entre os séculos XIX e XX, essa
crença passou a ser incorporada como verdade por parte da
intelectualidade brasileira. No entanto, não era só a suposta
incapacidade que estava em jogo. A ideia de branqueamento
da sociedade brasileira vinha perpassando as iniciativas go-
vernamentais pelo menos desde 1818, quando o Brasil ainda
era uma colônia portuguesa. A independência do Haiti e as
agitações decorrentes nas primeiras décadas do século XIX
criaram nas elites brasileiras um verdadeiro pavor em tor-
no da expectativa de uma superioridade negra num País que
iniciava sua história com uma população em que dois terços
apresentavam-se como negros e mestiços. Branquear o recém-
-formado Estado brasileiro era fundamental. O imigrante ale-
mão enquadrava-se nas necessidades de uma ação eugênica de
um Estado europeizado e escravista.

161
2 As expectativas diante da política imigratória

Diferentes expectativas apresentavam-se diante da colo-


nização europeia durante o I Reinado (1824-1831). O impera-
dor tinha como pretensão maior o recrutamento de soldados
mercenários. A imperatriz, de forma idealista, buscava, por
intermédio dos colonos, trazer para o Brasil a cultura euro-
peia como forma de “civilizar” a recém-formada nação. José
Bonifácio defendia a colonização como forma de pôr fim ao
sistema escravista. Alguns intelectuais, como, por exemplo,
Hypolito José da Costa, defendiam a colonização europeia
enquanto possibilidade de qualificação cultural, povoamento,
qualificação “física e moral”, bem como preparar o caminho
da abolição (LEMOS, 1993, p.13).
No Correio Brasiliense, em 1810, Hypolito da Costa, ao
discutir o Tratado de Comércio entre Brasil e Inglaterra, chamou
atenção para o perigo de ruína do comércio externo brasileiro.
Pensou como alternativa no aumento da população e do comér-
cio interno (PETRONE, 1982, p. 18). A saída era a imigração.
Independente das posições não consensuais por parte
dos representantes do Estado acerca da imigração, durante o I
Reinado, foi assumido um projeto institucionalmente organi-
zado que se voltava não só para questões militares, mas para a
constituição da pequena propriedade rural.
O imigrante europeu alemão no Rio Grande do Sul, se-
gundo o discurso oficial, deveria superar as deficiências da
produção nacional para abastecer os núcleos urbanos. Nas
regiões não ligadas diretamente à cultura de produtos para o
mercado externo, os imigrantes utilizariam sua própria força
de trabalho, e assim deveriam diminuir os efeitos da crise de
mão de obra na produção de alimentos, povoando as áreas de-
volutas. O projeto não incluía posseiros e indígenas presentes
nas áreas coloniais.
Cabe ressaltar que os interesses de ocupação das terras
devolutas no Nordeste do Rio Grande do Sul não ficaram res-

162
Releituras da História do Rio Grande do Sul

tritos apenas à questão da produção e do abastecimento. Exis-


tiu forte interesse em promover um processo de valorização
fundiária decorrente do processo de povoamento de terras,
que passaram a constituir-se como um elemento de grande
importância nesse cenário. Esse processo de valorização fun-
diária esteve diretamente ligado à Lei de Terras, de 1850, que,
além de gerar uma diminuição da oferta de terras, contrastaria
com o aumento da demanda decorrente da política migratória.
É possível encontrar estas práticas especulativas mesmo
antes de 1850. No período da fundação de São Leopoldo, ob-
jetivando o povoamento da área das antigas Missões, foi feita
a transferência para São João das Missões. Além da questão
do povoamento, foi buscada a valorização fundiária da área.
O isolamento da região acabou inviabilizando o projeto (PE-
TRONE, 1982, p. 17).
A política migratória trouxe para a então província a ex-
pectativa do desenvolvimento de outros setores da economia,
bem como a possibilidade de implementar serviços de infra-
estrutura na região.
Por meio do agenciamento, o Governo Imperial recru-
tou, em vários estados germânicos, simultaneamente, colonos
e soldados, buscando definir, inclusive, questões de soberania
nacional.
Pensar na criação de classes sociais intermediárias no
Sul do País como forma de atenuar o poder das elites latifun-
diárias e escravocratas era outra preocupação existente.
Enfim, a pequena propriedade, o mercado interno, a
ocupação do território e a constituição de efetivos militares
são algumas das razões que levaram a uma política coloniza-
tória por parte do Império brasileiro.

3 O cenário europeu diante da política imigratória


A menor influência, se comparado com a Inglaterra e
a França, diante do cenário brasileiro, não impediu que, no
século XIX, o País recebesse uma quantidade significativa de

163
imigrantes alemães. A imigração alemã deu início a uma polí-
tica intencional do governo de atrair contingentes populacio-
nais europeus não portugueses para o Brasil. A intensificação
do contato se deu a partir do casamento da princesa Dona
Leopoldina, da casa de Habsburgo, com o Imperador Pedro I.
Até o início do século XIX, a Alemanha manteve-se
como uma região essencialmente agrária. Os 38 estados ale-
mães integrantes da Confederação Germânica mantinham
forte oposição à unificação. A hegemonia austríaca sobre esses
estados só conseguiria ser mantida mediante a permanência
da fragmentação do território. Nestas condições, o desenvol-
vimento capitalista esteve travado.
A exceção a esse cenário é a região da renana. A influência
da Prússia provocou uma relativa expansão industrial e co-
mercial. A criação do Zollverein (união aduaneira dos esta-
dos alemães), no ano de 1830, colaborou para esse processo.
A Unificação da Alemanha, que só se consumou em 1871, foi
influenciada por uma Europa em constante transformação. A
Europa, nesse período, atravessou ondas revolucionárias das
mais diversas ordens. Os movimentos liberais de 1830 e 1848,
e a aceleração econômica decorrente das revoluções indus-
triais mudaram a feição do continente. Trabalhadores agrí-
colas e outros contingentes populacionais foram duramente
atingidos por essas transformações.
Em um período de uma Alemanha ainda não unificada,
a velocidade das transformações econômicas trouxe sequelas
sociais que estimularam o processo migratório em suas dife-
rentes fases. O desenvolvimento industrial, a partir de 1850,
acelerou a passagem de uma sociedade rural para urbana e
abriu caminho para grandes deslocamentos populacionais.
Junto com as transformações econômicas, cabe a lem-
brança das ondas nacionalistas despertadas na Europa durante
a era napoleônica. A derrota de Napoleão, a reação conserva-
dora legitimada pelo Congresso de Viena (1815) e pela Santa
Aliança, não foram suficientes para abrandar o ímpeto revolu-
cionário. Este cenário mais amplo refletiu de maneira incisiva

164
Releituras da História do Rio Grande do Sul

sobre a unificação da Alemanha. Tensões sociais, políticas e


fortes mudanças econômicas constituíram um quadro favorá-
vel para que representantes do governo brasileiro buscassem
a mão de obra excedente no continente. Neste contexto, havia
uma equação possível entre a carência de trabalhadores que
existia no Brasil com a necessidade de espaço e trabalho das
populações europeias.

4 Colonização alemã no Rio Grande do Sul (1824-1840)

Georg Schaeffer aportou no Rio de Janeiro no ano de


1818. Amparado pelo título de “navegador mundial” e dono de
uma indiscutível cultura, aproximou-se da princesa Leopoldi-
na. As portas da Corte lhes foram abertas em um curto espaço
de tempo. As facilidades oferecidas na fase Joanina renderam
dividendos ao major com o futuro imperador do Brasil, D. Pe-
dro I. O militar embarcou em missão oficial e sigilosa para
Europa em setembro de 1822 (LEMOS, 1993, p. 32-33).
O embarque para a Europa, em 1822, do agenciador Ma-
jor Schaeffer, pouco antes da independência, deixaram claras
as intenções da Corte em obter a aprovação dos governos da
Santa Aliança para a causa brasileira, assim como de atrair
mercenários para a guerra iminente contra Portugal.
Além da questão portuguesa, as constantes tensões no
Prata, no período pós-independência, criavam necessidades
do aumento do contingente militar na região. No ano de 1825,
lideranças separatistas da Cisplatina, sob o comando de Laval-
leja e cientes da adesão de Frutuoso Rivera, proclamaram a in-
dependência da província em relação ao Brasil. A declaração
de guerra do Brasil foi imediata. O conflito durou até 1828.
A intervenção diplomática da Inglaterra fez com que o Brasil
aceitasse o Uruguai como um estado independente.
Os encaminhamentos feitos na Europa para os recruta-
mentos em questão descreditaram o projeto do governo de D.
Pedro I diante das elites brasileiras e de grande parte dos go-
vernos europeus (CUNHA, 2010, p. 282).

165
O objetivo maior de recrutamento militar para formar
os batalhões estrangeiros denunciados por jornais contribuiu
muito para o descrédito da missão. Era evidente a existência
de uma lógica geopolítica presente nas intenções do estado
brasileiro durante o I Reinado.
Cabe ressaltar que o processo de ocupação das terras de-
volutas não trouxe consigo qualquer princípio de respeito com
as populações autóctones das regiões distribuídas aos colonos.
Os conflitos gerados entre colonos e índios levaram a um pro-
cesso acentuado de extermínio étnico. A figura dos bugreiros
ganhou importância nas áreas coloniais para dirimir conflitos
entre o colonizador europeu e os índios.
Quanto à tentativa de recrutamento na Europa, o resul-
tado não foi o esperado. As críticas foram duras, pois desa-
gradou muito o fato de o governo ter confiado tão importante
missão a alguém que não estaria à altura de tal empreitada
(LANDO; BARROS, 1981, p. 35).
Entre 1824 e 1828, conseguiram embarcar para o Brasil
cerca de 4.500 imigrantes, entre soldados e colonos em 21 expe-
dições. Se considerado o período de 1824 a 1830, tem-se o nú-
mero aproximado de 5.350 imigrantes. Na Ilustração 1, tem-se a
reprodução de um bilhete de viagem utilizado por um dos milha-
res de imigrantes alemães que vieram para o Brasil no período.

Ilustração 1 – Passagem de imigrante para o Brasil: século XIX

Fonte: Disponível em <http://aepan.blogspot.com>. Acesso em: 31 jul 2011.

166
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Como não se fala, neste período, de um Estado unifi-


cado, os imigrantes alemães que para cá vieram integravam
grupos étnicos distintos e com dialetos próprios. Os primeiros
colonos vieram de Hunsrück, Saxônia, Württeerg, Saxônia-
-Coburg. Diante da nova realidade, confrontados com uma
cultura estranha, desenvolveram entre eles um sentimento de
pertencimento étnico.
As promessas do governo brasileiro foram muitas. Dispu-
nha-se a pagar as passagens e os custos da viagem para os que
quisessem vir como colonos. Os que se dispusessem a vir como
soldados receberiam, a partir do embarque, um soldo em di-
nheiro. Ao chegar ao Brasil, o colono teria o direito de escolher
a função a desempenhar (soldado, colono, artesão, etc.). Para os
colonos, ficaria garantido um lote gratuito, com a infraestrutura
adequada para sua manutenção e a da sua família. É sabido que
as promessas feitas foram cumpridas de forma parcial.
A primeira fase caracterizou-se como um período de
intensas dificuldades. Os colonos enfrentaram um forte isola-
mento, agravado pela ausência de infraestrutura. A Ilustração
2, abaixo, retrata as precárias condições de vida dos primeiros
colonos, bem como sua situação de isolamento.

Ilustração 2 – Imigrantes alemães instalando-se em São Leopoldo/RS: século XIX

Fonte: Disponível em: <http://cc25dejulho.blogspot.com>. Acesso em: 31 jul 2011.

167
As ameaças “naturais” levavam a epidemias. Os enfren-
tamentos com índios foram constantes nessa fase. A demarca-
ção de linhas e lotes nas colônias era feita pelo imigrante, bem
como a construção de pontes e estradas, a edificação de alo-
jamentos públicos, etc. Havia demora na obtenção dos títulos
definitivos de propriedade.
O isolamento a que os colonos foram submetidos re-
forçou a criação de um sentimento étnico, cultural e religioso
próprio. O reforço desse sentimento está vinculado à ausência
de direitos políticos por parte dos colonos que aqui chegaram
durante o século XIX. Essa situação de isolamento era mais
agravada entre colonos luteranos do que entre católicos.
O Estado mostrava-se ausente nas áreas coloniais. A
carência de políticas públicas para a região denunciava uma
mentalidade que se estendia aos demais setores da sociedade
brasileira. A governabilidade do Império não se dava pela sua
relação com os mais diversos segmentos sociais. O que impor-
tava era que se estivesse atento às demandas das elites agrárias.
Logo, desenvolver políticas públicas em áreas coloniais não fa-
zia nenhum sentido. O resultado foi a produção de “quistos
étnicos” que, em parte, dissociavam a realidade colonial do
restante da província, forjando uma aproximação identitária
que se sobrepôs às diferenças entre os grupos germânicos que
colonizaram a região.
Escola, igreja e família se configuraram como institui-
ções que passaram a exercer um papel determinante na afir-
mação da identidade coletiva entre os alemães. As escolas, nas
colônias, ganharam contornos étnicos, sendo orientadas por
princípios germânicos, que reforçavam a consciência étnica
dos filhos dos imigrantes. Essa identidade também seria forta-
lecida por outros elementos, como existência de uma impren-
sa local de língua alemã, bem como de produções literárias,
entre outras publicações que circulavam junto às comunida-
des. Os primeiros jornais voltados para a comunidade alemã,
escritos em alemão, surgiram, em Porto Alegre e no Rio de
Janeiro, em 1852 e 1853, respectivamente.

168
Releituras da História do Rio Grande do Sul

A síntese desse processo relacionado à constituição de


uma identidade étnica foi a composição de um campesinato
com características próprias, apesar da diversidade existente
entre os grupos que vieram para o Brasil. Afirmar o reforço
do sentimento étnico do grupo não significa desconsiderar a
diversidade daqueles que para cá vieram.
Essa diversidade se encontra em decorrência das regiões de
origem dos imigrantes, como bem apresenta o Quadro 1, a seguir.

Quadro 1 – Procedência de alguns grupos alemães para o Sul do Brasil

Localidade Fundação Origem


Hunsrück, Saxônia, Württeerg,
São Leopoldo/RS 1824
Saxônia-Coburg
Sta. Cruz/RS 1849 Renânia, Pomerânia, Silésia
Sto. Angelo/RS 1857 Renânia, Saxônia, Pomerânia
Nova Petrópolis/RS 1859 Pomerânia, Saxônia, Boêmia
Teutônia/RS 1868 Westfália
São Lourenço/RS 1857 Pomerânia, Renânia
Pomerânia, Holstein, Hannover,
Blumenau/SC 1850
Braunschweig, Saxônia
Bade, Oldenburgo, Renânia, Pomerânia,
Busque/SC 1860
Schleswig-Holstein, Braunschweig
Prússia, Oldenburgo, Schleswig-Holstein,
Joinville/SC 1851
Hannover, Suíça
Curitiba/PR 1878 Teutos do Volga
Hunsrück, Pomerânia, Renânia, Prússia,
Sta. Isabel/ES 1847
Saxônia
Sta. Leopoldina/ES 1857 Pomerânia, Renânia, Prússia, Saxônia

Fonte: WILLEMS, 1980, p.38-39.

A diversidade também se manifestou em torno de inte-


resses divergentes que se configuraram na dinâmica econômi-
ca do mundo colonial. Essas diferenças são manifestas tam-
bém em decorrência da orientação religiosa.
Os primeiros colonos chegaram ao Rio Grande do Sul
no ano de 1824. O Presidente da Província, José Feliciano Fer-

169
nandes Pinheiro, encaminhou os imigrantes para a Feitoria do
Linho Cânhamo. A partir de abril de 1824, a feitoria passou a
se chamar “Colônia Alemã de São Leopoldo”. O município de
São Leopoldo foi o berço da colonização alemã no sul do Bra-
sil, juntamente com Três Forquilhas (RS, alemães protestantes)
e São Pedro de Alcântara das Torres (RS, alemães católicos).
São Leopoldo se constituiu como o primeiro empre-
endimento de sucesso. Tal sucesso foi atribuído à fertilidade
das terras e à privilegiada posição geográfica do município. A
Ilustração 3, a seguir, retrata a abrangência do recém-criado
município de São Leopoldo.

Ilustração 3 – Carta da Colônia de São Leopoldo

Fonte: Disponível em: <www.rootsweb.ancestry.com>. Acesso em: 30 jul 2011.

Esgotadas as terras da região do Vale dos Sinos, dadas


aos primeiros imigrantes, os próximos colonos passaram a re-
ceber terras mais distantes, próximas a outros rios, como os do
Vale do Caí, os do Vale do Rio Taquari e os do Vale do Jacuí.

170
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Todas essas regiões receberam grande influência germânica na


construção da sua cultura. No Vale dos Sinos, surgiram as co-
lônias de Campo Bom, em 1825; Dois Irmãos, em 1824; e Ivoti,
em 1828.
Inúmeras são as defesas feitas em torno do sucesso do
empreendimento colonizador em decorrência do fator étni-
co como essencial ao sucesso colonial. Maestri (2010, p. 129)
contradiz essa tese ao afirmar que
[...] colônias de Três Forquilhas e de São Pedro ve-
getaram na pobreza, em razão da baixa qualidade
das terras e, principalmente da distância dos mer-
cados consumidores provinciais. Isolados e esque-
cidos, os colonos germânicos terminaram semiaca-
boclados, quase se confundindo com as populações
brasileiras que ali viviam.

Os alemães do Rio Grande do Sul buscavam a posse de


terras. A partir de 1824, constituiu-se um sistema de coloniza-
ção fundamentado na pequena propriedade familiar.
Além da agricultura, que ocupou espaços significativos
na dinâmica econômica das colônias alemãs no Rio Grande
do Sul, merece destaque que, na fase inicial da colonização
ainda voltada para a subsistência, o artesanato doméstico de-
senvolveu um papel fundamental. Eram produzidos tecidos
de linho e algodão. A produção artesanal disseminou-se em
vários ofícios como o de alfaiate, sapateiro, etc. A importân-
cia de produzir artigos para a vida local era grande. Com o
desenvolvimento dos transportes e com o surgimento do co-
merciante no mundo colonial, a atividade artesanal tendeu a
desaparecer (MOURE, 1992, p. 97-98).
A imigração no Rio Grande do Sul foi interrompida entre
1830 e 1844 em parte em decorrência do movimento Farroupi-
lha (1835-1845). O Estado brasileiro, a partir da abdicação de
D. Pedro I, teve sua instabilidade política agravada. Além do
movimento Farroupilha, outras rebeliões se espalharam pelo

171
País. O governo acabou por cortar recursos destinados à imi-
gração, e só retomou a partir de 1846. Nesse período, a repre-
sentação diplomática brasileira em Berlim deixava clara a in-
tenção do governo brasileiro em investir na colonização alemã.
Possíveis relações que possam ser feitas entre imigração,
colonização e leis restritivas ao tráfico negreiro devem conside-
rar que o fato de a imigração ser percebida como alternativa à
diminuição de mão de obra escrava não se dá em decorrência
de pensar o escravismo como uma instituição imoral. O siste-
ma é percebido como arcaico. Nestes termos, a África não é co-
gitada como continente que pudesse servir como base imigra-
tória, mas percebida como um continente bárbaro; os negros,
como inaptos para o trabalho. Trazê-los em outra situação, que
não a de escravos, terminantemente desqualificaria uma socie-
dade em formação como a brasileira. Logo, não se rompe com
uma percepção “naturalizada” no Brasil do século XIX sobre a
inferioridade do negro diante do imigrante europeu (SEYFER-
TH, 2002, p.202).
Apesar de os colonos terem sido fixados em áreas que
não interessavam ao latifúndio, a forte oposição dos grandes
proprietários rurais à política de colonização também reforçou
o corte de recursos na Lei do Orçamento, aprovada em dezem-
bro de 1830. A luta dos grandes proprietários rurais era em
torno da manutenção do sistema escravista. O trabalho escra-
vo no Brasil praticamente deixou homens livres fora do siste-
ma produtivo. No Brasil do século XIX, o trabalho manual era
considerado coisa de escravo, visto como propriedade do fa-
zendeiro. As pressões inglesas e a distribuição gratuita de terra
aos colonos (77 ha em 1824) não eram vistas como compatí-
veis com os interesses da grande lavoura. O descaso com uma
política oficial de imigração entre 1830 e 1850 demonstrou, de
forma clara, a força política dos grandes proprietários rurais.
Neste quadro apresentado pode-se pensar o espaço rio-
-grandense como diferenciado. Cabe questionar se, compa-
rativamente a São Paulo, os colonos alemães no Rio Grande
do Sul apresentavam uma ameaça maior aos grandes pro-

172
Releituras da História do Rio Grande do Sul

prietários rurais quanto à quebra da hegemonia latifundiária.


Acredita-se que não, na medida em que estavam distantes das
áreas de grande propriedade, e sua produção econômica era
diversa do latifúndio. Além do mais, as terras designadas para
colonização no Rio Grande do Sul não eram de interesse dos
grandes proprietários rurais. Vale lembrar que o latifúndio no
Rio Grande do Sul configurou-se economicamente por inter-
médio da pecuária destinada ao mercado interno. Por conta
disso, a demanda de mão de obra, se comparada com a de São
Paulo, não era tão grande. Consequentemente, o imigrante
não seria visto com o mesmo peso para a resolução de proble-
mas ligados à crise da mão de obra. Vale lembrar que as elites
gaúchas apresentaram-se fortemente apegadas ao sistema es-
cravista praticamente durante todo o Império.
Logo, os conflitos de interesses encontravam-se diluídos
em duas realidades que permaneceram como paralelas duran-
te o período do Império.

5 Colonização alemã no Rio Grande do Sul (1840-1870)

A política de imigração nas mãos das províncias não


prosperou. Ainda que, no ano de 1848, o Governo Geral, por
meio da Lei Geral nº 514, tenha cedido, a cada uma de suas pro-
víncias, 36 léguas quadradas de terras devolutas para coloniza-
ção. O Governo Imperial, ainda no período do Primeiro Reina-
do, já havia extinto o regime de sesmarias, dotando as áreas de
colonização com dimensões menores. No ano de 1848, os lotes,
que antes eram de 77 hectares, foram reduzidos para 48.
O setor privado, ao fazer investimentos nos contratos
de parceria na região de São Paulo, não conseguiu encontrar
o equilíbrio entre a utilização de mão de obra livre e uma eco-
nomia amparada no latifúndio escravista. Uma das primeiras
experiências privadas com o sistema de parceria ocorreu por
intermédio do Senador Nicolau Vergueiro, proprietário da Fa-
zenda Ibicaba, que trouxe imigrantes para trabalhar no Brasil,

173
na fazenda de sua propriedade. O imigrante tinha o valor do
transporte adiantado, e o colono devolveria o valor em parcelas.
A empreitada foi malsucedida, na medida em que os ga-
nhos finais dos imigrantes mal davam para pagar as despesas
com alimentação, ocasionando dívidas impagáveis. Além disso,
os fazendeiros não faziam distinção clara entre os limites do tra-
balho livre, para o escravo, o que dificultava o relacionamento
com os colonos. Os contratos também não eram respeitados.
Tal cenário só iria modificar-se de forma mais incisiva a par-
tir de 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, e com a ampliação da
produção de café, fazendo com que o Brasil recebesse maior fluxo
migratório. Fatores externos ligados à crise econômica e à política
na Europa também vão contribuir para alterar esse quadro.
Observem-se os dados da Tabela 1, abaixo:

Tabela 1 – Imigração alemã no Brasil


Período Total
1824-47 8.176
1848-72 19.523
1872-79 14.325
1880-89 18.901
1890-99 17.084
1900-090 13.848
1910-19 25.902
1920-29 75.801
1930-39 27.497
1940-49 6.807
1950-59 16.643
1960-69 5.659
Fonte: MAUCH e VASCONCELOS, 1994, p. 165.

Essa tabela confirma os efeitos da expansão cafeeira e da


Lei Eusébio de Queiroz sobre a entrada de imigrantes no Brasil.
Tal cenário acabou atingindo a vinda de alemães. No período
de 1848-1872, a imigração alemã atingiu índices muitos mais
elevados do que no período de 1824-1847. As razões já eviden-
ciadas passaram a ser a garantia de um processo irreversível de
transição da mão de obra de escrava para livre no Brasil.

174
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Mesmo com a necessidade de braços livres ampliada, o


sistema de parceria não conseguiu pôr fim a uma mentalidade
escravista fortemente presente. Denúncias de abusos por parte
de grandes produtores rurais fizeram com que países europeus
restringissem o envio de colonos para o Brasil. Este cenário
levou o Governo Imperial a reassumir o controle do proces-
so de colonização, mesmo que de forma lenta e com políticas
oficiais duvidosas diante da perspectiva futura dos colonos no
País. Ainda em 1870 podem ser encontradas inúmeras dificul-
dades diante do quadro colonizatório.
A imigração foi retomada no Rio Grande do Sul a partir
de 1845, atingindo a região do Vale do Taquari e do Rio Pardo.
O governo provincial, a partir de quatro de dezembro de 1851,
por meio da Lei nº 229, assumiu a incumbência de instituir
agentes para atuar na Europa com a finalidade de promover
a imigração alemã para o Rio Grande do Sul. Nesse período
de colonização provincial, vale destacar a fundação de Santa
Cruz (1849), Santo Ângelo (1857), Nova Petrópolis (1858) e
Monte Alverne (1859).
Santa Cruz foi a primeira colônia provincial. Foi fun-
dada em terras devolutas por intermédio da Lei nº 514, de 28
de outubro de 1848. A primeira Lei Provincial remete à Lei nº
229, já citada. Essa lei autorizava a Província a medir, demar-
car, designar valor em terras de colônias existentes ou por se-
rem estabelecidas. No entanto, o início efetivo da colonização
provincial se fez por intermédio da Lei nº 304, de 1854, que se
constituiu como uma adaptação do Rio Grande do Sul à Lei de
Terras (IOTTI, 2001, p. 30-31).
Cabe lembrar que todas as colônias alemãs que alcan-
çaram destaque, com exceção da colônia de São Leopoldo, fo-
ram fundadas na segunda metade do século XIX.
Ao contrário do que ocorreu na fase inicial do processo
colonizatório (1824) − quando a busca por mercenários orien-
tava as ações do governo brasileiro na Europa −, no ano de
1850, a prioridade foi a busca por agricultores e artesãos.

175
O Decreto nº 537 dizia que, para os colonos desembar-
carem no Brasil, deveriam ter na bagagem instrumentos de
ofício, sementes e outros utensílios destinados ao trabalho
agrícola. É curiosa a preferência existente pelo colono ale-
mão por parte das elites e do Estado brasileiro. Experiências
anteriores eram utilizadas como exemplo do sucesso empre-
endedor trazido pela colonização germânica (SEYFERTH,
2002, p.122).
O interesse manifesto do governo provincial pelas terras
da região para o estabelecimento de colônias no Vale do Ta-
quari não foi suficiente para sua participação efetiva. Esse pro-
cesso, a partir de 1850, foi desenvolvido por empresas particu-
lares que tiveram empreendimentos maiores que os do Estado.
Apesar da participação de empresas particulares, o Estado não
abriu mão de buscar o controle sobre o processo de imigração.
Nesses empreendimentos, se havia uma participação reduzida
por parte do Império, menor seria ainda a da Província, que fi-
cava em torno de 1% dos empreendimentos entre 1850 e 1889.
Apesar dessa pouca participação da Província, existia
uma previsão legal quanto às condições de chegada dos co-
lonos: alojamento, sustento e deslocamento dos imigrantes
do desembarque ao destino final. Centros como Rio Grande,
Porto Alegre e Rio Pardo eram importantes locais de desem-
barque. A concentração geográfica do processo colonizatório
no período em questão fez-se nos vales dos Rios Jacuí, Taquari
e em seu entorno (KARAM, 1992, p. 43).
Esta etapa caracterizou-se por um processo em expan-
são (1845-1870) decorrente da produção de excedentes agrí-
colas. Os colonos praticavam a policultura e criavam animais.
A essas atividades estava associada a produção artesanal de
derivados. Dependiam de relações comerciais com os estabe-
lecimentos existentes na região (Ilustração 4).

176
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Ilustração 4 – Casa de comércio na região de São Leopoldo

Fonte: Disponível em: <http://imigracaoalemanosuldobrasil.blogspot.com>. Acesso


em: 29 jul. 2011.

As trocas comerciais decorrentes desse processo deram


origem ao comerciante alemão que acumularia capitais ad-
vindos da produção colonial. O isolamento das colônias criou
condições adequadas para que um grupo de comerciantes pu-
desse deslocar os excedentes para a capital da Província, tiran-
do proveito da situação por possuírem meios adequados de
transporte (KUHN, 2002, p. 91).
Os lucros obtidos pelos comerciantes eram grandes.
Também obtinham lucros no transporte de mercadorias e em
empréstimos. Com os ganhos, obtinham o capital de giro ne-
cessário para novos investimentos, que se ampliaram para a
indústria, as empresas de navegação, os bancos, etc. (PESA-
VENTO, 1985, p. 49).
A ideia de comerciantes alemães explorando colonos
coloca em xeque a tão apregoada “solidariedade” étnica na
região. O fato de São Leopoldo estar às margens do Rio dos
Sinos criou condições favoráveis para o fluxo comercial com
Porto Alegre.
Esse fluxo comercial, ao intensificar-se, trouxe consigo
o crescimento populacional de São Leopoldo. Entre 1852 e
1854, quando houve o implemento de embarcações a vapor,
deu-se o favorecimento da posição de entreposto e interme-

177
diário da região. Essa situação se estendeu até o ano de 1874,
quando se estabeleceu a via férrea, ligando Porto Alegre a São
Leopoldo e criando novos e diferentes vínculos de comércio
(ROCHE, 1969, p. 429-430).
Com a expansão do capital comercial, os comerciantes
alemães dominaram não só o comércio de suas colônias. No
período pós-1875, com a chegada dos italianos, eles iriam do-
minar comercialmente também essas colônias.
A progressiva hegemonia do capital comercial em São
Leopoldo criou um fluxo econômico que, se por um lado
acentuou as desigualdades sociais na região, por outro criou
condições para que ocorresse um crescimento populacional
que impulsionasse a ocupação de novas áreas. Mesmo sen-
do percebido nessa segunda fase um empreendedorismo que
ampliava os espaços econômicos dos imigrantes para a esfera
comercial, e a partir de 1870, para a industrial, os problemas
não cessaram. Havia precários recursos para a promoção de
serviços públicos. Assistência médica, educação e segurança
pública passavam longe das áreas coloniais. As demarcações
de terras eram imprecisas; os transportes, precários; e as vias
de comunicação, mesmo com alguns avanços, ainda deixavam
muito a desejar.

6 Conclusão
O Rio Grande do Sul passou, durante o século XIX, pelo
processo de imigração e colonização, com a consequente for-
mação de pequenas e médias propriedades voltadas para o
mercado interno. Viu-se que tal experiência propiciou a for-
mação de uma produção destinada ao mercado interno, opor-
tunizando uma diversidade produtiva não encontrada no lati-
fúndio pecuarista. As diferentes etapas da colonização alemã
manifestaram distintos interesses que envolveram o processo
colonizatório ao longo do século XIX. Enquanto no Primei-
ro Reinado constataram-se interesses na arregimentação de
mercenários na Europa, no Segundo Reinado, por conta da
proibição do tráfico negreiro, a vinda do imigrante progressi-

178
Releituras da História do Rio Grande do Sul

vamente passou a cumprir a função na substituição de braços


na lavoura. Viu-se também que, no contexto econômico rio-
-grandense dominado pelo latifúndio pecuarista, tal impacto
não se fez sentir de forma tão rápida, e que o conflito entre la-
tifúndio e imigração foi menos intenso por ocuparem espaços
e interesses distintos.
A questão da branquidade foi outro elemento importan-
te destacado. Ao se colocar em evidência esse ponto, obser-
va-se que ele perpassou a questão colonizatória ao longo de
todo o século XIX, evidenciando o caráter racista das elites
brasileiras. Quando foi abordado o isolamento a que foram
submetidas as colônias alemãs, foi chamada atenção para a
formação de um “quisto étnico” que forjou uma identidade
teuto-brasileira, apesar das diferenças internas existentes nos
grupos de imigrantes que vieram para o Brasil.
A ocupação de terras devolutas por colonos e artesãos, a
formação de quadros militares, a dinamização de mercado in-
terno e outras dinâmicas envolvidas no processo colonizatório
alemão no Rio Grande do Sul trouxeram para o estado novas
dinâmicas econômicas relacionadas à agricultura, ao comér-
cio e à indústria, que romperam com uma cultura latifundiá-
ria no estado, mas que não foram suficientes para dirimir as
mazelas decorrentes do processo de transição da mão de obra
escrava para a livre tanto em nível nacional como regional.

Referências

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179
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(1824-1930). São Paulo: Brasiliense, 1982.

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pológico dos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil. 2 ed. São
Paulo: Ed. Nacional, 1980, p.38-39.

180
Releituras da História do Rio Grande do Sul

CAUDILHOS E FRONTEIRIÇOS:
A REVOLUÇÃO FARROUPILHA E SEUS
VÍNCULOS RIO-PLATENSES
* Arthur Lima de Avila

A cada 20 de setembro, os sul-rio-grandenses testemu-


nham inúmeros desfiles e homenagens aos vultos da Revo-
lução Farroupilha. Nas loas ao chamado “decênio heroico”,
costuma-se lembrar de como o Rio Grande do Sul, explorado
por um Império autoritário e insensível às suas demandas,
levantou-se em armas contra a tirania opressora. Neste épico,
repetido todo ano de forma relativamente invariável, a luta
dos farrapos adquire contornos dramáticos e a sua derrota
diante das forças legalistas é o prenúncio de uma dependên-
cia indesejada e de um pertencimento forçado ao corpo da
nação brasileira.
Em outras palavras, a cada 20 de setembro, os gaúchos
lembram de suas diferenças em relação ao resto do País e re-
afirmam sua identidade regional, sempre antagônica à sua
pertença ao Brasil. Dos escombros de uma derrota honrada
em uma ímpia e injusta guerra, surgiu o Rio Grande do Sul,
sempre guerreiro, sempre lutador.
Uma das características fundamentais dos mitos não é
sua inerente falsidade, mas a sua simplicidade. Um mito, em
sua leitura de determinado evento, o reduz às suas partes mais
simples, reafirmando dicotomias e transformando algo com-
plexo em uma história capaz de ser apreendida rapidamente
por aqueles que a recebem. É sob a forma de um mito moder-
no, portanto, que os sul-rio-grandenses consomem a história
da Revolução Farroupilha.

* Doutor em História pela UFRGS. Professor Adjunto de História da América na FAPA.

181
Uma das maneiras de se resgatar a historicidade da maior
revolta da História regional é tentar recuperar sua complexida-
de e o seu contexto mais amplo, fugindo tanto de dicotomias
que celebram acriticamente os feitos dos farrapos quanto de
leituras que, em suas próprias tentativas de reestabelecer uma
perspectiva crítica sobre a Revolução, acabam elas próprias ali-
mentando dicotomias e reducionismos que pouco contribuem
para um entendimento mais amplo da Guerra dos Farrapos.1
Por isso, a intenção deste capítulo é inserir a insurreição far-
roupilha no contexto mais amplo das guerras civis do Rio da
Prata do começo do século XIX, almejando recuperar, assim,
os intricados emaranhados que ligavam sul-rio-grandenses,
orientales e argentinos em um quadro político mais amplo.
Não se trata, entretanto, de recuperar a velha polêmica entre
as vertentes “lusitana” e “platina” do debate historiográfico so-
bre a Revolução Farroupilha (GUTFREIND, 1992), ele pró-
prio reducionista, mas sim de resgatar uma parte da história
da Guerra, isto é, sua vinculação com os conflitos platinos,
que não é necessariamente explorada de forma mais atenta.
Este conflito esteve tanto inserido nas lutas do Brasil do Pe-
ríodo Regencial, dizendo respeito à conturbada formação do
próprio Estado Nacional brasileiro, mas também às lutas fede-
ralistas e às peleias civis do Rio da Prata. Minimizar um des-
tes elementos em prol do outro é, assim, minimizar a própria
história da Revolução.
O capítulo está, assim, dividido em quatro partes, além
da presente introdução e da conclusão. Na primeira, estão de-
finidos o conceito de “caudilhismo” e o papel dos caudilhos
na formação dos estados nacionais da região do Rio da Pra-
ta. Na seguinte, faz-se uma breve recapitulação do atribulado
processo de independência do Vice-Reinado do Rio da Prata.
No terceiro ponto, foca-se o contexto imediatamente anterior

1
Para o primeiro caso, ver Gutfreind, 1992. Para uma perspectiva crítica bastante reducionista, ver o mais
recente trabalho de Juremir Machado da Silva (2010), Uma história regional da infâmia.

182
Releituras da História do Rio Grande do Sul

à eclosão da Guerra dos Farrapos. Por fim, a quarta parte está


centrada na evolução da Guerra e na relação entre os farrapos
e os caudilhos do Prata.

1 Caudilhos e caudilhismos: algumas definições


O contexto platino da primeira metade do século XIX
é extremamente atribulado, dadas, principalmente, as extre-
mas dificuldades de construção do Estado Nacional pós-inde-
pendência nos antigos territórios do Vice-Reinado do Rio da
Prata e da escolha de um determinado projeto político para
nortear essa mesma construção.
O mote maior destes conflitos foi a luta entre projetos
unitários, representados pelos interesses de Buenos Aires e
Montevidéu, e federalistas, advogados pelas províncias do in-
terior. Em geral, os unitários defendiam a subordinação das
províncias a um governo central forte, enquanto que os fe-
deralistas, por sua vez, pregavam a ampla autonomia provin-
cial e a formação de uma federação fundamentada no modelo
norte-americano. Em termos econômicos, os unitários eram
favoráveis ao livre-comércio e aos interesses comerciais de
Buenos Aires e Montevidéu, enquanto que os federalistas pe-
leavam em prol da proteção ao artesanato e às propriedades
voltadas ao abastecimento do mercado interno. Não se pode,
contudo, simplificar a questão a um mero embate entre “libe-
rais” e “conservadores”; tanto no seio dos unitários quanto no
dos federales2 existiam tendências radicais e reacionárias.
De qualquer forma, Agustín Cueva (1983, p. 44-45), em
seu clássico estudo sobre o desenvolvimento do capitalismo
na América Latina, definiu esta clivagem nestes termos:
A oposição entre “interior” e “litoral” não faz mais
do que remeter a molduras espaciais em que se
assentam ou vão se configurando modos de pro-

2
No texto, usa-se “federales” e “federalistas” como sinônimos.

183
dução distintos, cujo desenvolvimento conflitivo
se expressa, embora com inúmeras sinuosidades e
reviravoltas na encarniçada luta política de “uni-
tários” e “federais”.

Esses conflitos também deram origem a um fenômeno


tipicamente latino-americano, o chamado “caudilhismo”, que,
de acordo com Ariel de La Fuente (2007, p. 19), foi a forma
mais significativa de liderança política na América Latina,
principalmente na região do Rio da Prata. Tal fenômeno social
já foi amplamente investigado pela historiografia rio-platense,
desde, pelo menos, a clássica análise de Domingos Sarmien-
to em seu “Facundo”. Publicada originalmente em 1845, tal
obra era muito mais um manifesto político do que uma análise
desinteressada de uma determinada realidade social, no qual
Sarmiento atacava os caudilhos platinos como representando a
mais profunda “barbárie” e “selvageria” dos “mestiços” latino-
-americanos (SARMIENTO, 1996).3
Mais recentemente, outros autores tentaram explicar
o caudilhismo como sendo um sistema social no qual gru-
pos usavam a violência para competir por poder e riquezas
(WOLF; HANSEN, 1967). Outros historiadores, ainda, argu-
mentaram que os caudilhos representavam uma reação tradi-
cionalista contra o avanço da modernidade capitalista e em
prol da manutenção de formas de vida tradicionais e da heran-
ça hispânica da maior parte das populações rurais, ameaçadas
pela intensa imigração europeia à Argentina do século XIX
(BURNS, 1980).4

3
A obra de Sarmiento deve ser compreendida como uma intervenção do autor nos embates políticos de
seu tempo, na medida em que este destacado intelectual argentino era uma das principais lideranças do
Partido Unitário. Neste caso, “Facundo” é um manifesto antirossista e antifederal.
4
Os debates historiográficos sobre o caudilhismo tomaram uma dimensão política bem-acentuada na
Argentina e no Uruguai das décadas de 1950 e 1960. Para os chamados “revisionistas”, os caudilhos repre-
sentavam as grandes primeiras manifestações da “nação” contra as tendências “europeizantes” das elites ur-
banas de Montevidéo e Buenos Aires. Sob este ponto de vista, os caudilhos representariam os verdadeiros
sentimentos nacionais e populares, enquanto que o liberalismo das elites urbanas era entendido como uma
“venda” da pátria aos interesses estrangeiros, especialmente os britânicos. Tal interpretação, levada a cabo
por toda uma sorte de intelectuais nacionalistas, tanto à direita, quanto à esquerda do espectro político, vi-
sava, evidentemente, dar sustentação às políticas nacionalistas daquele presente – em especial, àquelas de-
fendidas pelo peronismo argentino. Ver CATTARUZZA; EUJANIAN, 2003 e DEVOTO; PAGANO, 2004.

184
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Finalmente, John Lynch (1992) considerou os caudilhos


como sendo representantes de setores antagônicos da elite rio-
-platense, com a principal função de distribuir os despojos de
guerra entre essa mesma elite.
O historiador argentino Tulio Halperin Donghi (1972)
oferece uma explicação bastante persuasiva para o fenômeno
do caudilhismo. Segundo ele, os caudilhos emergiram no ce-
nário platino a partir do vácuo político causado pela desinte-
gração do antigo Império Espanhol e da dificuldade dos novos
Estados nacionais de se consolidar. Nesta condição de ano-
mia, a política ruralizou-se e líderes carismáticos conseguiram
arregimentar tropas de seguidores, as chamadas montoneras,
para servirem aos seus próprios interesses. Isto, segundo o
historiador, teria sido a causa fundamental das guerras civis
rio-platenses da primeira metade do século XIX. Embora bem
plausível, a análise do historiador argentino deve ser matizada
com outras mais recentes.
Ariel de la Fuente (2007, p. 20-21), em análise recente,
concorda com Halperin Donghi quanto à anomia que permi-
tiu a emergência dos caudilhos, mas contesta a ideia de que
seus seguidores formavam uma massa ignara e passiva ou a
de que os caudilhos eram movidos única e exclusivamente por
seus interesses pessoais. Segundo ele, os motivos que levavam
os gauchos do interior a seguirem um caudilho eram variados,
abarcando desde seu compromisso com as formas cotidianas
e tradicionais das relações patrão-cliente, que incluíam a troca
de assistência e proteção por lealdade política, até a expectativa
de ganhos materiais imediatos. No entanto, como lembra o his-
toriador, essas motivações não operavam em um vazio cultural
ou político, muito pelo contrário: as relações entre os caudi-
lhos e seus seguidores se estabeleceram à luz das lutas políticas
em que se desenvolveram as identidades partidárias e políticas
mais amplas. Em outras palavras, “las relaciones caudillo-segui-
dor generaron asi un espacio para la consciencia política de los

185
seguidores y, eventualmente, para la identificación política entre
lideres e liderados” (DE LA FUENTE, 2007, p. 21).
Assim como a relação entre os caudilhos e seus segui-
dores não pode ser reduzida ao mero efeito de um carisma
hipnótico, as relações entre os próprios caudilhos também
não devem ser reduzidas a uma simples troca de favores en-
tre membros da elite. Como se verá mais adiante, as relações
dos caudilhos argentinos e orientais com os caudilhos sul-
-rio-grandenses também é bastante complexa, operando para
além de ideologias políticas e dentro do quadro das estraté-
gias necessárias à afirmação do poder regional desses caudi-
lhos. Sendo assim, estas vinculações obedeciam tanto às ló-
gicas político-ideológicas mais amplas, quanto aos contextos
sociais e políticos mais imediatos dos conflitos rio-platenses
e sul-rio-grandenses.

2 Unitários X Federalistas: uma definição de rumos

A origem do conflito entre unitários e federales está no


próprio tumultuado processo de emancipação do Vice-Reinado
do Rio da Prata. Já em princípios do Movimento de Maio, de
1810, que declarou a independência de fato da antiga colônia
espanhola, ocorreu um embate entre posições centralizadoras
e outras que se opunham a esta tendência, formando um con-
texto político virulento que não tardou em se transformar em
conflito aberto.
Enquanto que Buenos Aires e, em menor escala, Montevi-
déu tentavam, cada uma a seu modo, liderar e subjugar o interior
aos seus próprios interesses, os federalistas resistiam arduamen-
te às tendências centralizadoras, defendendo arranjos políticos
que permitissem ampla autonomia às províncias internas.
Um dos maiores representantes, se não o maior, do fe-
deralismo foi o caudilho uruguaio José Gervasio Artigas. Ao
contrário de outras lideranças do movimento independentis-
ta, Artigas não tivera uma formação intelectual apurada, tam-

186
Releituras da História do Rio Grande do Sul

pouco pertencia à elite local. Durante sua juventude, fora peão


de estância e contrabandista na fronteira com o Continente
de São Pedro. Graças a esta experiência fronteiriça, ele acaba-
ria, paradoxalmente, sendo alçado ao cargo de chefe do Cor-
po de Blandengues, milícia que se destinava à repressão do
contrabando e à perseguição dos “vagos” da campanha. Ten-
do resistido às invasões inglesas de 1806, Artigas juntou-se às
lutas pela independência do Vice-Reinado em 1811, lideran-
do as tropas da Banda Oriental e tornando-se, assim, um dos
principais personagens na luta contra os espanhóis. Contudo,
para além de seu valor militar, Artigas terá uma importância
ideológica e política bastante pronunciada durante as lutas no
Prata, na medida em que se tornará arquiteto e porta-voz do
federalismo local, sempre em oposição aos impulsos centralis-
tas de Buenos Aires e Montevidéu.
A gênese do conflito entre Artigas e os unitários está,
em parte, relacionada ao turbulento processo de organização
política do novo Estado, representado pela recusa dos cons-
tituintes unitários de 1812 em aceitar os representantes de
Artigas durante o processo de elaboração de uma Carta Mag-
na que pudesse ordenar as tumultuadas Províncias Unidas.
Como colocou Sala de Touron (1978, p. 58), esta manobra era
uma tentativa de impor a ditadura do capital comercial e dos
terratenentes bonaerenses e, assim, garantir a acumulação pri-
vilegiada dos setores políticos dominantes.
Isto refletiu em seu papel na criação da Liga dos Povos
Livres, em 1814. Esta Liga compreendia os territórios federa-
dos do chamado “Litoral” argentino (Entre Ríos, Corrientes e
Misiones) e a Banda Oriental. Em 1815, durante o Congresso
dos Povos Livres, Artigas e seus aliados do interior estabelece-
ram não só a federação como forma de governo da Liga, com
as províncias mantendo ampla autonomia, mas também apro-
varam os planos artiguistas de uma ampla reforma agrária na
região. Assim, o federalismo de Artigas tinha uma coloração
radical, especialmente se comparado com as tendências con-
servadoras emanadas por portenhos e montevideanos.

187
Os planos reformistas de Artigas, especialmente os
agrários, causaram um formidável temor não só no conser-
vador Diretório geral das Províncias Unidas, sediado em Bue-
nos Aires, e que respondia, ou tentava responder, pelo poder
executivo das Províncias Unidas, mas também entre os es-
tancieiros do Continente de São Pedro, temerosos de que as
ideias “subversivas” de Artigas pudessem encontrar respaldo
entre a população desfavorecida local. De acordo com o pla-
no de Artigas, as enormes propriedades locais deveriam ser
parceladas em pequenos lotes e divididas entre índios, negros
libertos e brancos pobres, com o intuito de se criarem peque-
nas propriedades diversificadas e produtivamente superiores
aos imensos latifúndios locais. Além disso, Artigas também
buscava fortalecer o mercado interno, limitando a ação de co-
merciantes estrangeiros aos portos e proibindo sua atuação no
interior (GUAZZELLI, 2003, p. 162). Desta forma,
(...) o programa agrário de Artigas, (...), provocou
tremores em Buenos Aires e no Rio Grande, áreas
vizinhas de economia pecuária baseada na grande
estância, nos comerciantes de Montevidéu, muitos
dos quais proprietários e já sujeitos a contribuições
forçadas, e terminaria por afastar de suas hostes
diversos “terratenientes” que o tinham seguido
para evitar a dominação dos unitários portenhos.
(GUAZZELLI, 2003, p. 163)

Como Artigas possuía o apoio da maior parte dos pobres


do campo, simbolizado no formidável episódio do “Êxodo do
Povo Oriental”,5 existia o temor de que as reformas almejadas
por ele pudessem ser de fato efetivadas. Por outro lado, não só
os abastados de Buenos Aires temiam Artigas: o governo por-
tuguês temia que o federalismo republicano radical de Artigas

5
O “Êxodo” foi a emigração coletiva dos Orientais em 1811. A grande maioria da população da campanha,
liderada por Artigas, fugiu para a Província de Entre Ríos, na Argentina. É considerado o nascedouro do
sentimento nacionalista uruguaio.

188
Releituras da História do Rio Grande do Sul

pudesse se espalhar pelo Continente de São Pedro e estimular


uma rebelião cujas consequências poderiam ser inimaginá-
veis. Deste modo, como uma reação à “anarquia” defendida
pelos artiguistas, 4 mil soldados luso-brasileiros invadiram a
Banda Oriental primeiramente em 1811, intervindo contra as
hostes artiguistas. Isto se repetiria em 1816, com o implícito
apoio de Buenos Aires e sob o júbilo da elite montevideana,
quando a região acabou sendo incorporada ao Império Portu-
guês sob o nome de “Província Cisplatina”.
Como colocou Guazzelli (2003, p. 163), “os rio-gran-
denses com suas milícias irregulares penetravam pela campa-
nha, forçando os artiguistas a uma guerra defensiva”. É a partir
deste momento histórico que o Rio Grande do Sul entra no
conturbado cenário das lutas rio-platenses – o que, como se
verá, ajudaria na eclosão da Guerra dos Farrapos.
O governo português tinha razão em temer o avanço dos
ideais artiguistas federalistas pelo Continente. Da primeira in-
tervenção luso-brasileira na Banda Oriental, fez parte o futuro
chefe farrapo Bento Gonçalves, que anos antes havia se esta-
belecido em Cerro Largo, onde adquiriu terras e exerceu fun-
ções administrativas. Segundo Guazzelli (2004, p. 91), existem
evidências suficientes de que o jovem Bento teria aderido às
forças artiguistas, simpatizando com suas ideias federalistas,
só abandonando-as depois da conquista luso-brasileira.
Além de Bento, outras futuras lideranças farrapas tam-
bém teriam participado da intervenção ou militado pela causa
de los federales: “mesmo sem influências mais radicalizadas,
a presença de Bento Gonçalves e de outros tantos chefes da
fronteira em território oriental permitiu-lhes o convívio com
as propostas federalistas que circulavam amplamente pelo Pra-
ta” (GUAZZELLI, 2004, p. 92). Aqui, é preciso lembrar-se da
tumultuada relação que historicamente os sul-rio-grandenses
tinham com o poder central. Se por um lado, o governo cen-
tral necessitava da sua força militar para manter a fronteira em

189
paz, por outro, lhe custava extremamente cara a manutenção
da fidelidade dos “senhores da guerra” fronteiriços, na medida
em que certos comportamentos e práticas, como o contraban-
do, por exemplo, minavam esta mesma autoridade central.
Segundo Guazzelli (2004, p. 93), o contato com as ideias
federalistas do Prata resultou em uma sustentação ideológica
para as diversas reclamações dos fronteiriços contra o Rio de Ja-
neiro e, de forma mais extrema, forneceu-lhes com um exemplo
prático de luta contra uma pretendida centralização política.
No entanto, a tomada da Banda Oriental inicialmente
representou uma situação de conjugação dos interesses tanto
dos estancieiros do Sul quanto do poder central:
A política bragantina, por um lado, ampliava as
possessões portuguesas na América, ao mesmo
tempo em que refreava os ímpetos republicanos
que vinham do Prata; os rio-grandenses, por outro,
viam a possibilidade de ampliarem suas estâncias e
rebanhos. (GUAZZELLI, 2004, p. 93)

Ademais, espantavam-se os temores das reformas ar-


tiguistas e tranquilizavam-se os estancieiros orientais.6 O
governador Lecor restabeleceu os direitos de propriedade
daqueles que haviam sido expropriados e anulou as doações
compulsórias de terras, revertendo, assim, o projeto artiguis-
ta e sedimentando o poder daqueles que se opuseram a Ar-
tigas e suas montoneras. Não é de se espantar, portanto, que
os luso-brasileiros tenham sido recebidos com júbilos pelos
habitantes de Montevidéu, e que, nas novas circunstâncias,
antigos aliados de Artigas, como Fructuoso Rivera, acabaram
aliando-se às forças invasoras – muitas vezes com o intuito de
fazer valer seus próprios projetos pessoais.

6
Artigas foi definitivamente derrotado pelas forças luso-brasileiras em 1820. Mais tarde, o “general dos
simples” e, segundo Eduardo Galeano (2004, p. 174), “o homem que não queria que a independência
das Américas fosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres”, partiu para o exílio no Paraguai, não
retornando jamais à sua terra natal. Com a derrota de Artigas, fracassou o único projeto emancipacionista
realmente progressista na região platina.

190
Releituras da História do Rio Grande do Sul

A principal consequência da anexação da Cisplatina


foi, segundo Fábio Kühn (2002, p. 79), o benefício econômi-
co da elite sul-rio-grandense. Ocorreu progressiva ocupação
dos campos do norte da Banda Oriental por parte dos luso-
-brasileiros (o que desagradou significativamente parte dos
estancieiros orientais) e os comerciantes do Rio Grande do
Sul se instalaram em Montevidéu, ajudando, assim, no estí-
mulo às charqueadas sul-rio-grandenses, que se beneficiavam
do fluxo de gado vindo dos campos da Cisplatina.

3 Rumo à Guerra

A presença luso-brasileira na Banda Oriental também


serviu para sedimentar os laços entre os diversos caudilhos
fronteiriços, com o estabelecimento de alianças políticas e vín-
culos pessoais. Bento Gonçalves e o antigo líder artiguista Juan
Antonio Lavalleja, e futuro líder da sublevação que declararia
a independência unilateral da Banda Oriental em 1825, pos-
suíam uma forte ligação pessoal, assim como Bento Manoel
Ribeiro e Fructuoso Rivera, o inconteste caudilho oriental das
décadas de 1830 e 1840. Essas alianças seriam fundamentais
durante a condução da Guerra dos Farrapos.
Por outro lado, a presença massiva dos estancieiros
luso-brasileiros no norte da Cisplatina gerou uma enorme
insatisfação entre os terratenentes orientais. Estima-se que
cerca de 15 milhões de reses foram levadas da Cisplatina ao
Rio Grande do Sul, causando um esvaziamento dos campos e
prejudicando a recuperação econômica da província, já bas-
tante desgastada pelos anos de guerra. Além disso, Montevi-
déu progressivamente passou a perder importância para Rio
Grande, como o principal porto de escoamento da produção
pecuária local.
Lentamente, os mesmos que apoiaram a intervenção
brasileira passaram a questioná-la, na medida em que passa-
ram a considerar os brasileiros como parceiros indesejáveis.

191
Igualmente, os porteños, que nunca desistiram da total incor-
poração da Banda Oriental às Províncias Unidas, passaram a
reivindicar a saída das tropas invasoras, sob o argumento de
que existia uma “comunhão histórica” entre as partes do anti-
go Vice-Reinado do Rio da Prata (GUAZZELLI, 2003, p. 94).
Estas tensões foram acumulando-se até 1825, quando
estourou a Guerra da Cisplatina, que envolveu o Brasil recém-
-independente, a Confederação Argentina e as tropas rebeldes
Orientais. Essa guerra, extremamente penosa para os estan-
cieiros sul-rio-grandenses, culminou com a independência da
Banda Oriental em 1828, sob o nome de República Oriental
do Uruguai, mesmo que os limites entre o Império e o novo
Estado ainda não estivessem bem-estabelecidos.
Ao mesmo tempo em que o conflito armado estourava
em suas fronteiras meridionais, o Império Brasileiro passava
por um período de intensa turbulência política. Isto era con-
sequência, principalmente, do antagonismo entre os setores
políticos que defendiam uma centralização política e aqueles
que peleavam em prol de um sistema federativo de governo.
Em 1824, Dom Pedro I havia outorgado uma Constitui-
ção excessivamente centralizadora ao jovem País. Entre outras
coisas, o documento previa a nomeação dos presidentes das
províncias – o que desagradava bastante as elites locais, espe-
cialmente no Rio Grande do Sul.
A relação entre o poder central e as elites sul-rio-grandenses
tornou-se ainda pior, na medida em que os estancieiros do sul
perderam seus campos no Uruguai e não haviam sido com-
pensados pelas suas perdas materiais. Em outras palavras, o
Império não só retirava dos terratenentes a possibilidade de
expansão de seus campos e da atividade pecuária, como tam-
bém se recusava a pagar por suas perdas e, para completar o
quadro de tensões, diminuía consideravelmente sua autono-
mia política. Apesar da abdicação de Dom Pedro I e o cha-
mado “Avanço Liberal” do princípio da década de 1830, esta
situação não melhoraria.

192
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Entre outras coisas, as medidas do chamado “Avanço Li-


beral” incluíam a criação da Guarda Nacional (1831), braço
armado das elites locais; a aprovação do Código de Processo
Criminal (1832), que criava o cargo de Juiz de Paz eleito lo-
calmente; e o Ato Adicional (1834), que criava as Assembleias
Legislativas estaduais com representantes localmente eleitos.
Todas essas medidas previam uma descentralização do poder,
nas suas diferentes esferas, conferindo às elites certa autono-
mia e o controle dos poderes policial, judicial e legislativo. O
que deu errado, então? Por que os sul-rio-grandenses, apesar
dos avanços liberais, mantiveram-se em estado beligerante
contra o governo central, agitando a bandeira do federalismo?
O que, enfim, levou à eclosão da Guerra dos Farrapos?
É neste ponto que os contextos platino e brasileiro con-
vergem. Como colocou Guazzelli (2004, p. 94-95), a invasão
da Banda Oriental possibilitou um grande incremento no
estoque de terras de qualidade superior aos campos do Rio
Grande, o que justificou a pronta adesão dos estancieiros ao
projeto expansionista, mesmo entre aqueles que simpatizaram
com a causa artiguista. As terras ao norte do Rio Negro atraí-
ram uma grande quantidade de sul-rio-grandenses, mas tam-
bém geraram intensos conflitos com os orientais – o que não
interessava ao poder central. Continua Guazzelli (2004, p. 95):
Se a produção de charque, subsidiária da econo-
mia escravista do centro, fosse viabilizada por
orientais ou rio-grandenses, isso tinha menor im-
portância, mas não podiam ser admitidos trans-
tornos à reorganização produtiva e atritos com no-
vos súditos, e foi justamente isto que promoveram
os rio-grandenses.

A criação do Estado uruguaio e o combate ao contra-


bando de gado promovido por ambos os governos limitava a
possibilidade de expansão dos campos dos estancieiros sul-
-rio-grandenses, privando-os daquilo que um dia fora uma

193
rica aquisição econômica. Ademais, outros dois elementos
desagradavam profundamente os senhores da guerra do Sul:
em primeiro lugar, a derrota militar de 1828 era atribuída à
inépcia das lideranças militares enviadas pelo poder central.
Na visão dos fronteiriços, o Império não só havia causado a
derrota, mas se recusava a pagar por ela. Em segundo lugar,
esta mesma elite estava perfeitamente consciente de seu papel
subalterno dentro do esquema político e econômico do Impé-
rio. Sua importância dependia de seu papel de guardiões da
fronteira meridional, na medida em que sua produção econô-
mica era apenas subsidiária do centro do País – o mesmo cen-
tro que também causava problemas na definição dos limites
com o Uruguai. Isto potencializou a dissidência com o Impé-
rio, independente das medidas liberais tomadas após a abdi-
cação de Dom Pedro I. De acordo com Guazzelli (2004, p. 96),
Derrotados econômica e militarmente, desconside-
rados em relação aos assuntos fronteiriços, os che-
fes do Rio Grande não podiam pensar-se integrados
a uma grande e poderosa unidade política. Por ou-
tro lado, assistiam a uma província vizinha, (...),
constituir-se num Estado.

Para completar a situação desfavorável, a recupera-


ção econômica da Banda Oriental causava uma indesejável
competição com o Rio Grande, na medida em que o poder
central recusava-se a proteger a pecuária sul-rio-grandense.
Mas a perda da Cisplatina não atingiu todos os grupos de
forma igualitária: os produtores, muito mais do que os char-
queadores, foram os reais prejudicados pela política econô-
mica do Império.
Os criadores sofreram com a proibição do trânsito de
reses do Rio Grande para o Estado Oriental e com a criação
de postos aduaneiros para a coleta das taxas de exportação.
Considerando que os impostos de importação eram muito
mais baixos, os produtores eram prejudicados, enquanto que

194
Releituras da História do Rio Grande do Sul

os charqueadores tinham garantido seu abastecimento. Além


disso, os charqueadores eram sócios minoritários de grandes
atacadistas do Rio de Janeiro, em sua maioria portugueses, o
que levava os fronteiriços a acusarem o Império de favorecer o
partido português e seus “interesses estrangeiros”. Assim, o li-
beralismo do Império privilegiava os exportadores do centro,
que preferiam o charque uruguaio, mais barato do que o do
Rio Grande, enquanto que os criadores do Sul demandavam a
proteção de seus produtos.
A política imperial era justificada, em parte, pela ne-
cessidade de se manter uma Banda Oriental economicamen-
te viável e impedir, assim, sua incorporação à vizinha Con-
federação Argentina. Tais medos eram justificáveis, uma vez
que tanto unitários quanto federalistas tinham a pretensão
de reincorporar o Uruguai à Confederação – o que gerava in-
tervenções constantes na política interior do fragilizado país.
Aliás, a perda da Banda Oriental não havia sido aceita pelos
unitários portenhos, que, liderados por Juan de Lavalle, pro-
moveram uma insurreição que acabou com a morte do Pre-
sidente da Confederação, Manoel Dorrego, em 1829. Foi esta
rebelião unitária, fracassada, que possibilitou a ascensão de
Juan Manoel de Rosas, que, por quase três décadas, governaria
como o líder de fato da Confederação Argentina e cuja políti-
ca externa teria reflexos profundos na sul da América. Como
coloca Guazzelli (2004, p. 98), “a partir de então, Rosas lutaria
pela reconstituição do antigo Vice-Reinado, tentando reincor-
porar o Estado Oriental”.
A política interna do Uruguai também tinha reflexos
imediatos no Rio Grande: Dom Fructuoso Rivera havia ascen-
dido ao cargo de presidente do recém-criado país, eleito pela
Assembleia de 1830. No entanto, a ascensão de Rivera deixava
em segundo plano outro importante caudilho uruguaio, Juan
Antonio Lavalleja, antigo militante artiguista e um dos 33 uru-
guaios que declararam a independência unilateral de 1825. La-
valleja, como se viu, era próximo de Bento Gonçalves, então

195
comandante das tropas da fronteira, e não tardou a buscar uma
articulação com o líder sul-rio-grandense. Por sua vez, os se-
nhores da guerra do Rio Grande também desgostavam tanto
do Império, quanto de Rivera – este último estava se engajan-
do no combate ao contrabando e recusava-se, assim como o
Império, a ressarcir os produtores brasileiros por suas perdas.
Desta forma, Lavalleja buscou auxílio e refúgio no Rio Grande,
gerando intermináveis dores de cabeça para a diplomacia de
ambos os países.
Tanto os representantes do Estado Oriental quanto os
do Império brasileiro vigiavam atentamente os movimentos
dos caudilhos Lavalleja e Gonçalves. A proteção dada por este
àquele era motivo de inúmeras reclamações por parte dos uru-
guaios, que acusavam Bento Gonçalves de estar dando guarida
a um anarquista e de estar envolvido em um plano para der-
rubar Rivera e, do mesmo modo, para separar o Rio Grande
do Império. Temerosa de que uma insurreição aberta pudesse
se degenerar em uma nova guerra na Banda Oriental, a Cor-
te exigiu providências do Presidente da Província, Antonio
Rodrigues Fernandes Braga, contra Bento Gonçalves e outros
senhores da guerra que agiam por conta própria e em contra-
riedade da política imperial de “neutralidade” em relação ao
Prata. Quando Fernandes Braga propôs trocar os comandantes
da fronteira, a reação foi a sua deposição no dia 20 de setembro
de 1835. Iniciava a Revolução (GUAZZELLI, 2004, p. 104-105).

4 Farrapos e caudilhos
A principal bandeira dos farrapos era, para além de suas
questões pessoais e de seus interesses materiais, a do velho fe-
deralismo platino, sem, contudo, os contornos mais radicais
da vertente artiguista. Em seus primeiros momentos, este fe-
deralismo ainda não tinha os contornos separatistas que ad-
quiriria mais tarde. As próprias justificativas de Bento Gon-
çalves para a rebelião demonstram isto:

196
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Conheça o Brasil que o dia vinte de setembro de


1835 foi a consequência inevitável de uma má e
odiosa administração; e que não tivemos outro
objeto, e não nos propusemos a outro fim que res-
taurar o império da lei, afastando de nós um ad-
ministrador inepto e faccioso sustentando o trono
constitucional do nosso jovem monarca e a inte-
gridade do Império. (ARQUIVO HISTÓRICO DO
RIO GRANDE DO SUL, 1985, p. 268)

Nos documentos seguintes, Bento Gonçalves sempre


afirmava que a rebelião era, acima de tudo, um ato “patriótico”,
destinado a substituir um governo “inepto” e “antinacional”
por um “ilustrado” e “liberal”, que respeitasse as autonomias
provinciais (ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO
SUL, 1985, p. 274-275). Por que, então, houve a separação e
a proclamação da República Rio-grandense? Mais uma vez,
tem-se de trazer à tona os vínculos com a região do Prata.
Em 1835, Manoel Oribe, antigo aliado de Lavalleja e pró-
ximo de Rosas, havia ascendido à Presidência da República do
Uruguai. O recém-empossado presidente era inimigo de Rive-
ra e uma das primeiras medidas de seu governo foi justamente
nomear uma comissão para investigar as contas da administra-
ção de seu antecessor. Rivera, que ainda mantinha o cargo de
Comandante da Campanha, rebelou-se contra Oribe em julho
de 1836.7 Rivera, derrotado, buscou refúgio no Rio Grande;
isto, segundo Guazzelli (2004, p. 106), teria deixado Oribe em
uma situação complicada e este teria condicionado seu apoio
aos rebeldes brasileiros à sua separação definitiva do Império.
Em 11 de setembro de 1836, após a estrondosa vitória
contra as tropas legalistas no Seival, Antonio de Souza Netto
declarou a independência da República Rio-grandense.

7
Os conflitos entre Oribe e Rivera foram a gênese do surgimento dos dois tradicionais partidos uruguaios:
o partido Colorado, fundado por Rivera e, durante o século XIX, defensor do liberalismo econômico e
próximo dos unitários portenhos, e o partido Nacional (blanco), fundado pelos oribistas, que defendia o
protecionismo e estava vinculado à produção primária e aos federalistas argentinos.

197
À medida em que se vinculavam ao apoio de Oribe, os
republicanos do Rio Grande logo estabeleceram relações com
os blancos uruguaios e os federalistas argentinos. Oribe per-
mitiu o livre trânsito de reses, cavalos, homens e munição pela
fronteira e, ainda, o acesso ao porto de Montevidéu aos re-
voltosos (Rio Grande estava em mãos legalistas). Da mesma
forma, os representantes diplomáticos da República buscaram
obter apoio material de Rosas. Este, por sua vez, condicionou
seu apoio ao empenho dos chefes farroupilhas em capturar
Rivera, inimigo dos rosistas e aliado aos unitários. Isto esta-
va, evidentemente, fora da capacidade militar e material dos
farrapos. Ademais, tanto Rosas quanto Oribe temiam fornecer
um apoio explícito aos insurretos, o que poderia ser entendido
como um ato de guerra contra o Império.
Isto causou uma mudança de rumos na diplomacia
republicana, afastando-a dos federalistas e blancos e aproxi-
mando-a dos colorados e unitários. Com o retorno de Bento
Manuel Ribeiro às tropas farroupilhas veio o apoio de Rivera.
O caudilho uruguaio citava, entre outras coisas, o seu esforço
comum contra “governos tirânicos” e, antevendo seu retorno
ao cargo máximo de seu país, se dispunha a fornecer arma-
mentos e cavalos para os farrapos. Disponibilizava-se, tam-
bém, a devolver os escravos fugidos à Banda Oriental aos seus
legítimos donos e a perseguir legalistas refugiados no Uruguai
(GUAZZELLI, 2004, p. 109).
As relações com Rivera, que voltaria à presidência uru-
guaia em 1839, se mantiveram em boas condições, culminan-
do com o Tratado de San Fructuoso, de dezembro de 1841, que
simbolizava o apoio efetivo de Rivera e dos unitários argenti-
nos da província de Corrientes aos republicanos. Isto acabou
significando o afastamento definitivo dos farrapos em relação
a blancos e a rosistas, mesmo que, na prática, seu federalismo
estivesse muito mais próximo destes do que do liberalismo
centralizador de unitários e colorados.

198
Releituras da História do Rio Grande do Sul

No entanto, a derrota de Rivera contra as forças combi-


nadas de federales e blancos, em dezembro de 1842,8 reduziu as
possibilidades de apoio material efetivo do caudilho uruguaio
à República, já combalida por sucessivas derrotas militares e
pela perda constante de territórios. Além disso, Bento Manuel,
o fiel da balança do conflito, havia uma vez mais voltado a
lutar pelo Império. Finalmente, dentro da Assembleia Farrou-
pilha, os conflitos entre a maioria, aliada de Bento Gonçalves,
e a minoria, oposicionista, tomava contornos extremamente
virulentos, culminando com a renúncia de Bento Gonçalves,
presidente da República Rio-grandense, em agosto de 1843.
Na Banda Oriental, o domínio que os blancos impuse-
ram à campanha, isolando Montevidéu (bastião Colorado),
também impediu que os farrapos pudessem escoar sua pro-
dução e comercializar com outras praças. Como Rio Grande
continuava em mãos legalistas, era uma questão de tempo para
que a enfraquecida república se tornasse inviável economica-
mente. A paz tornava, assim, uma condição possível, já que o
Império também desejava a pacificação da fronteira, temeroso
de que um Rio Grande fragilizado pudesse servir de ponta de
lança para uma invasão argentina.
Em março de 1845, enfim, foi assinado o Tratado de
Ponche Verde, que encerrava a guerra em condições honro-
sas para os farrapos. Como demonstra Fábio Kühn (2002, p.
85-86), foram inúmeras as concessões feitas pelo Império aos
farrapos: foi permitida, aos sul-rio-grandenses, a escolha do
novo presidente da província; os oficiais militares farroupi-
lhas foram anistiados e reincorporados ao Exército imperial;
as dívidas farroupilhas foram assumidas pelo governo impe-
rial; e, finalmente, decretou-se um imposto de 25% sobre o
charque platino.

8
Isto daria início a mais um ciclo de guerras civis no Prata, a chamada “Guerra Grande”, que só se encer-
raria em 1851.

199
A “paz sem vencedores nem vencidos”, preconizada em
Ponche Verde, se explica por uma série de fatores. Em primei-
ro lugar, os farrapos pertenciam à elite local e sua revolta não
significava uma ameaça à ordem social do Império. Em se-
gundo, o governo imperial necessitava da experiência militar
dos sul-rio-grandenses enquanto guardiões da fronteira me-
ridional. Por fim, avizinhava-se mais uma guerra no Prata, já
que Rosas intervia cada vez mais na política interna uruguaia,
ameaçando os interesses estratégicos brasileiros na região. Um
Rio Grande do Sul forte era, deste modo, uma condição essen-
cial para luta contra as forças rosistas.

5 Conclusão

Este capítulo se propôs a explicar o contexto “platino”,


por assim dizer, da Revolução Farroupilha, seguidamente ne-
gligenciado pela mitificação dos heróis do “decênio heroico”.
Isto não significa, entretanto, minimizar o papel da insurreição
na formação do Estado Nacional brasileiro e sua vinculação
com diversas outras rebeliões contra o poder central ocorridas
no mesmo período – algumas, aliás, com um corte muito mais
radical do que a dos farrapos. Significa, apenas, complexificar
a narrativa sobre a Guerra, tornando-a algo muito mais com-
plicado do que uma simples revolta dos sul-rio-grandenses
contra um Império tirânico e cruel, aquela “ímpia e injusta”
guerra mencionada no hino rio-grandense. Ao recuperar as
peças deste quebra-cabeça, pode-se ajudar na reconstrução de
um passado novo e desmistificado para o Rio Grande, sem os
excessos ideológicos que parecem pulular à simples menção
do termo “Revolução Farroupilha”.

200
Releituras da História do Rio Grande do Sul

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202
Releituras da História do Rio Grande do Sul

DA COLÔNIA AO IMPÉRIO: UMA ANÁLISE DA


POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
* Ana Regina Falkembach Simão

1 O Brasil colonial e a política externa lusa

Refletir sobre a história da política externa significa ob-


servar as questões que envolvem diretamente a condução e a
relação que o governo de determinado estado tem para com
outros governos e estados.1 Essa relação entre governos/esta-
dos se dá em distintas áreas: geossociais, geoculturais, geopo-
líticas e geoeconômicas. Desta forma, os contenciosos, as pos-
sibilidades de cooperação, assim como os distintos processos
de inserção ocorrem dentro de um sistema que é internacional.
Portanto, é no sistema internacional que se configura o locos da
política internacional que, em última instância, acolhe a com-
posição das distintas políticas externas.
Especificamente no que diz respeito à história da políti-
ca externa do Brasil, se observa que, durante o período colo-
nial, não houve nenhum traço de inflexão em relação à políti-
ca externa lusa. Os valores e os interesses da Coroa portuguesa
estiveram presentes e conduziram a política externa da colô-
nia por mais de dois séculos. Dentre os interesses de Portugal,
a região do Prata e as questões políticas e econômicas com
o Reino de Espanha sempre tiveram destaque. Portanto, em
virtude da importância que a região platina exerceu na agenda
lusa, sobretudo durante os séculos XVII, XVIII e XIX, o Rio
Grande do Sul se tornou o cenário e o protagonista de muitos
tratados promovidos pelas duas Coroas.

* Doutora em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de Relações Interna-
cionais, na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Sul) e na Universidade Luterana do Brasil.
1
Embora a política externa expresse interesses de estado, a sua formulação conta com a participação de
atores não estatais, a exemplo de empresários, acadêmicos, partidos políticos.

203
Para a análise da relação conflituosa entre portugueses e
espanhóis na Região Platina, torna-se importante considerar
alguns aspectos significativos da história dessa região. Primei-
ramente, observa-se que a defesa e a demarcação das fronteiras
do Brasil meridional em nenhum momento foram movidas
por nacionalismos. A ideia de Estado, de pátria e da própria
importância de defesa do território nacional não fazia parte
do desiderato luso e espanhol. Os interesses eram absoluta-
mente localizados e regionalizados, e não envolviam a ideia de
nação. Em segundo lugar e como consequência direta do as-
pecto anteriormente citado, os representantes das distintas co-
roas, assim como os proprietários de terras e os comerciantes,
que inclusive se envolviam pessoalmente nestes conflitos, não
foram motivados por sentimentos nacionalistas. Diante desta
percepção, a ocupação da região Sul do Brasil e os conturba-
dos tratados que Portugal e Espanha firmaram entre o século
XVI e a primeira metade do século XIX não foram frutos de
heroísmos, capazes de inspirar cenas dignas de filmes épicos,
mas sim resultados da dinâmica política e econômica própria
da época, na qual o Brasil, mesmo considerando os significati-
vos momentos de autonomia, se inseriu de forma dependente
ao capitalismo norte-atlântico-mediterrâneo.

2 O Rio Grande do Sul no contexto colonial

A ocupação luso-brasileira do Rio Grande do Sul foi


um processo histórico complexo e profundamente condi-
cionado pelas necessidades e pela realidade política e social
da época. De fato, no processo de exploração colonial, o Rio
Grande do Sul não se enquadrava exatamente em nenhum
dos dois modelos clássicos de produção da época: exploração
de riquezas naturais e produção agrícola.2 É crível que esta
região não participara do projeto plantacionista, que marcou

2
Sobre o modelo de colonização brasileira fundamentado na “plantation”, cabe a análise da obra de Caio
Prado Júnior, A Formação do Brasil Contemporâneo.

204
Releituras da História do Rio Grande do Sul

a produção do açúcar, e nem da exploração do ouro.3 Nes-


te contexto, portanto, o Rio Grande do Sul integrou-se tar-
diamente ao restante do Brasil colonial. Somente no século
XVII, quando a economia açucareira do Nordeste começara
a entrar em crise e Portugal perdera parte de suas possessões
no Extremo Oriente, a Coroa portuguesa resolveu estender
seus negócios para a região do Prata. Uma importante contri-
buição para o aumento do interesse na região foi a fundação
de Buenos Aires, em 1580.
De fato, com a fundação de Buenos Aires, os comercian-
tes lusos se lançaram no mercado colonial espanhol, alterando
a dinâmica do comércio do platino. Estes pioneiros introdu-
ziram “os produtos ingleses na cidade, furando, deste modo,
o exclusivo comércio colonial espanhol e captando para si a
prata peruana” (KÜHN, 2004, p.30). Outro motivo que impul-
sionou a entrada dos comerciantes lusos no mercado espanhol
na Região Platina foi o longo período de “União Ibérica”, na
qual Portugal ficou sob dominação espanhola, durante os anos
de 1580 a 1640.4 Por vários anos, os comerciantes iriam soli-
citar inutilmente à Coroa portuguesa a fundação de um posto
de domínio português na região do Prata. Mas isso só aconte-
ceria após a chegada dos Bragança ao trono de Portugal, colo-
cando fim à União Ibérica, e com a expulsão dos comerciantes
portugueses de Buenos Aires. Nascia, assim, o primeiro posto
luso na região, denominado Colônia de Sacramento.
Comandada por Manuel Lobo, governador do Rio de Ja-
neiro, a expedição que fundou a Colônia de Sacramento, em
1680, em terras espanholas, trouxe consigo além do ethos do

3
Cabe ressaltar que, segundo alguns historiadores, como Francisco Carlos Teixeira da Silva e Ciro Flama-
rion Cardoso, esse modelo fundamentado no “plantation” é reducionista, na medida em que aponta fun-
damentalmente para a existência os dois polos da estrutura social – senhores e escravos – e não observa a
importância do pequeno proprietário rural, assim como não considera a própria complexidade da realida-
de econômica-social da Colônia e da relevância das áreas periféricas do Brasil no processo de colonização.
4
Após a crise da Coroa portuguesa dos anos de 1578 a 1580, e com a morte do cardeal D. Henrique, não
apenas o trono de Portugal ficou vago como a Coroa lusa passou para as mãos de Felipe II, Rei de Espanha,
dando início ao período denominado de União Ibérica.

205
expansionismo luso da época, a possibilidade de ampliação do
comércio e do contrabando de escravos e de gado (SIMÃO,
2002, p. 33). Portanto, o golfão do Prata se constituía em uma
região estrategicamente importante por várias razões: tanto
pela quantidade de gado vacum selvagem existente nas pro-
ximidades, como pelo “gigantesco mercado de mão de obra
servil. Buenos Aires, Colônia de Sacramento e Montevidéu,
mercê de sua situação geográfica, tanto recebiam facilmente
a carga dos navios negreiros como a distribuíram pela região”
(CESAR, 1978, p.19).
Para além destes aspectos econômicos, a fundação da
Colônia de Sacramento pelos portugueses, na margem norte
do Rio da Prata, em frente a Buenos Aires, marcou também
um novo momento na história dos contenciosos protagoni-
zados pelas duas Coroas europeias. Portugal perderia a posse
da Colônia de Sacramento por duas vezes: a primeira, já em
1680, logo após sua fundação; e novamente em 1705, ambas
as vezes pela força e pelas armas de Espanha. Em 1715, por
meio do Tratado de Utrecht, a Colônia de Sacramento retor-
naria para Portugal. Como observa Fábio Kühn (2004, p.33),
“aquilo que Portugal perdia no campo de batalha, conseguia
reaver pela atuação bem conduzida de sua diplomacia”. Com a
refundação da Colônia de Sacramento, em 1716, um período
de aquecimento econômico se inicia na região. No entanto,
mesmo com a consolidação do poder luso em Sacramento, a
Coroa espanhola buscaria preservar o controle sobre a área,
fundando Montevidéu, em 1726.
Com Montevidéu de um lado e Buenos Aires de outro da
margem do Prata, a coroa espanhola comandava o comércio
na região e, sobretudo, as possíveis pretensões expansionistas
portuguesas. Diante do frágil e pouco estável controle sobre a
região de Sacramento, Portugal se empenharia em “tomar ofi-
cialmente posse da terra compreendida entre Laguna e o Pra-
ta”, enviando “[...] a expedição de Brigadeiro José Maria Pais,

206
Releituras da História do Rio Grande do Sul

que, em 1737, fundou a fortaleza-presídio de Jesus-José-Maria


em Rio Grande” (PESAVENTO, 1990, p.20). Desta forma, o
Rio Grande do Sul surge definitivamente no contexto colonial
brasileiro, configurando-se em um posto militar importante
na manutenção do domínio luso na região.
Evidentemente não desconsiderando a relevância eco-
nômica da região, em especial no que tange à expressiva im-
portância no comércio de gado, o Rio Grande do Sul passaria
a ter forte expressão militar durante a segunda metade do pe-
ríodo colonial. Ao assumir um projeto de concretizar no Sul
do Brasil um espaço de defesa militar, a Coroa lusa criou, em
1738, a Comandância Militar do Rio Grande de São Pedro,
com sede em Santa Catarina. A partir dessa Comandância, foi
estabelecido um regimento de Dragões que teria como missão
a defesa da região. Conforme observado pelos historiadores, a
partir de Rio Grande, o processo de distribuição das sesmarias
teve continuidade, incrementando o povoamento regional.
Para garantir a defesa da terra e, sobretudo, o avanço castelha-
no, foram destacadas guardas avançadas no Taim e no Chuí.
Os desentendimentos entre as duas monarquias ibéricas
prosseguiam. Com o Tratado de Madrid,5 em 1750, as Coroas
Portuguesa e Espanhola estabeleceram um primeiro passo no
sentido de buscar uma solução para as disputas que se trava-
vam na região. Assim, decidiu-se que Sacramento ficaria com
a Espanha; em troca, Portugal ficaria com as Missões. Embora
este Tratado possa ser considerado um dos mais importantes
acordos ultramarinos realizados entre as duas Coroas, desde
Tordesilhas (1494), a complexidade desta região, que pressu-
punha acordos entre três atores – lusos, castelhanos e índios
– acabou fazendo com que a demarcação estabelecida pelo
Tratado de Madrid fosse interrompida. Seguiram-se inúmeros

5
Conforme observa Paulo Roberto Almeida, o Tratado de Madri, em que pese a sua não efetivação, “deu a
Portugal a soberania sobre vastas áreas (cerca da metade) da América do Sul e ao Brasil a conformação que
em larga medida ele manteve até a atualidade” (ALMEIDA, 1998, p. 119).

207
acordos afinal não concretizados. A anulação do Tratado de
Madrid (1750) ocorreu através do Tratado de El Pardo (1761),
que poucos anos depois seria substituído pelo Tratado de San-
to Ildefonso (1777), no qual Portugal perde Sacramento e as
Missões, recuperando, em troca, Santa Catarina.
Cabe, aqui, um breve detalhamento sobre esses Trata-
dos: o Tratado de Madrid postulava acerca do princípio da
posse; ou seja, as terras pertenceriam a quem as ocupasse.
Diante deste Tratado, a Coroa portuguesa acabou ganhando,
ainda que renunciasse à Colônia de Sacramento em troca das
Sete Missões. No entanto, mesmo com o acordo aparentemen-
te bem-construído, as controvérsias na região não foram de-
beladas. Seguiu-se o Tratado de Santo Ildefonso, implacável
com Portugal, pois, por meio do mesmo, a Coroa de Espa-
nha retomaria o território das Sete Missões. Mas, em que pese
as perdas diplomáticas e os sucessivos conflitos entre as duas
Coroas, Portugal nunca desistiria da Colônia de Sacramento,
pois esta se configurava em uma região estratégica para o con-
trabando de prata da Bolívia e do Peru através do Rio Paraná.
Portanto, na esteira destes conflitos, a região do Prata se
constituiu na mais importante entre todas as questões inter-
nacionais que ocuparam a política do período colonial. Com
efeito, desde a fundação de Colônia de Sacramento, em 1680,
até a política externa orquestrada por D. João e a infanta D.
Carlota Joaquina, em meados do século XIX, a Região Platina
se configurou em um centro nevrálgico e de disputas entre as
Coroas lusa e espanhola.
A importância da região fez com que o Rio Grande do
Sul fosse um espaço singular e adequado para o investimento
militar por parte da Coroa portuguesa. Conforme assinala o
historiador Guilhermino Cesar (1993, p.13):
O sistema militar defensivo, traçado por Silva Pais,
compreendia o estabelecimento de guardas, nos
passos, na Angustura de Castilhos, no porto de

208
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Viamão, nas cercanias do Porto de Rio Grande. A


subseqüente construção de fortins de campanha,
associados as fortalezas do litoral e de Rio pardo,
na confluência do Jacuí, impôs respeito aos platinos
e evitou a infiltração de tropas espanholas, espe-
cialmente de índios missioneiros, que, se pudessem,
teriam barrado a lenta penetração portuguesa em
direção ao Rio Uruguai.

A obra clássica de Fernando Henrique Cardoso, Capi-


talismo e Escravidão no Brasil Meridional, em que pesem os
vários aspectos superados pela historiografia que se dedicou
profundamente ao estudo da escravidão no Rio Grande do
Sul, já trazia para o debate acadêmico dois pontos importantes
sobre a militarização da região meridional do Brasil. Segundo
o sociólogo, a influência militar naquele território e um co-
tidiano marcado pela beligerância, própria de uma região de
fronteira, contribuiria para a formação de lideranças fortes,
dotadas de “coragem e audácia pessoal”. Tais fatores, somados
à ausência de uma ordem militar burocratizada, possibilita-
ram a centralização do poder em “caudilhos fortes e persona-
lísticos”. Outra característica que marcaria a região e que seria
resultado da inexistência de uma administração burocrática
no Brasil colonial foi a “privatização das atividades militares”.
Como se sabe, vários caudilhos tinham suas próprias tropas e
as usavam para ataques com fins absolutamente privados.
A vocação militarista que caracterizou o Brasil Meri-
dional influenciou o próprio desenvolvimento da região. A
economia das estâncias, dedicada à criação de gado, e a opu-
lenta indústria charqueadora, que se desenvolveu fundamen-
talmente pela mão de obra escrava, teve influência direta desta
militarização. Conforme aborda Guilhermino Cesar, a
[...] distribuição de terra a antigos militares, leais à
coroa, ou a colonos descendentes ou protegidos do
pessoal integrante do estamento régio, foi em cer-
to momento, em especial no período de ocupação

209
espanhola do Rio Grande (1763-1776), a medida
de que se serviram os vice-reis para formar uma
fronteira viva no Brasil Meridional. De fato as ses-
marias, doadas a pessoas de posses ou prestígio,
serviam de base à implantação de estâncias, em
cujos campos o gado, sob o custeio antes ignorado,
prosperou grandemente (1993, p. 13).

Desta forma, a participação do Rio Grande do Sul no


período colonial constituiu-se fundamentalmente em uma du-
pla missão: dar à Coroa o suporte militar e o esteio político,
mesmo que para isso tais elites tenham lançado mão das práti-
cas clientelistas e patrimonialistas herdadas do próprio Estado
português. Sobre este aspecto em particular, Simon Schwart-
zman, na brilhante obra As Bases do Autoritarismo Brasileiro,
auxilia a refletir acerca da realidade do Rio Grande do Sul neste
momento de ocupação da região meridional. Segundo o autor:
À medida que cresce o domínio patrimonial, tam-
bém cresce a necessidade de se delegar poderes e
autoridade, ao mesmo tempo que se reduz a fac-
tibilidade do controle central. Além disso, os man-
tenedores da delegação patrimonial tendem a rece-
ber seus postos como prebendas políticas e a usá-los
como propriedade particular. Quando o estado
patrimonial se baseia na conquista e na ocupação
militares, tal padrão leva ao desenvolvimento de
corporações militares particulares ou pretorianas,
as quais guardam mais lealdade aos seus próprios
capitães do que ao governante. Quando o estado
patrimonial se baseia na agricultura, ocorre uma
automatização regional, como o surgimento de sá-
trapas semi-autônomas (SCHWARTZMAN, 1988,
p. 65).

De fato, o papel das elites estancieiras, dos produtores


de charque, dos comerciantes, entre outros atores políticos e
sociais – que à luz da narrativa tradicional do Rio Grande do

210
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Sul foram intitulados os responsáveis pelo desenvolvimento e


por guardar corajosamente a região e as fronteiras do Brasil
– não resiste à crítica histórica. Tais personagens são fruto da
conjuntura política, econômica e social da época, e, portanto,
contribuíram de forma indelével para a edificação da estrutura
patrimonialista e corporativista que caracterizou e ainda carac-
teriza o Estado brasileiro.6 Há que se notar que uma das carac-
terísticas funestas deste modelo de Estado é a formação de uma
sociedade “civil frágil, pouco articulada” e, sobretudo, onde “os
ricos geralmente dependeram dos favores do Estado e os po-
bres, de sua magnanimidade” (SCHWARTZMAN, 1988, p.14).
Na esteira destas questões, cabe ainda observar que os li-
mites das terras lusas na América, registrados e definidos pelo
Tratado de Tordesilhas, de 1494, representavam apenas um
quinto do território brasileiro atual. Portanto, os quatro quin-
tos anexados ao primeiro mapa foram resultados da expan-
são lusa, que se deu por meio de conquistas, de apropriações,
da ocupação econômica e também de processos diplomáticos
na qual os interesses da Coroa portuguesa se materializavam
através desta complexa relação entre Estado português e so-
ciedade colonial brasileira.

3 O Império e a política externa brasileira

Para alguns analistas, a política externa do Império


brasileiro pode ser compreendida em duas dimensões: uma
relacionada propriamente ao sistema internacional e outra
ao subsistema regional.7 No que diz respeito ao subsistema

6
Segundo Max Weber, o termo “patrimonialismo” refere-se a formas de dominação política, na qual não
existem divisões nítidas entre as esferas de atividade pública e privada. A partir das reflexões weberianas,
Simon Schwartzman aponta que “este patrimonialismo moderno, ou neopatrimonialismo, não é simples-
mente uma forma de sobrevivência de estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas”, mas uma
forma bastante atual de dominação política por um “estrato social sem propriedades que não tem honra
social por mérito próprio, ou seja: pela burocracia e a chamada classe política” (1986, p. 59-61).
7
Aconselha-se ver as obras de Celso Lafer (1967) e de Henrique Altemani de Oliveira (2005) para refletir
acerca das duas dimensões da política externa do período imperial.

211
regional, a região da Bacia do Prata ganha expressão signifi-
cava, pois é nessa região que a barganha de poder e a disputa
pelas terras, sobretudo para evitar a supremacia Argentina,
se tornam vetores da política externa brasileira durante o
século XIX. Do ponto de vista internacional, considerando
a conjuntura política e o sistema de poder daquela época, o
Brasil inseriu-se de forma dependente das grandes potências,
mesmo que tenha buscado, ao longo do século XIX, a prática
do isolacionismo, no sentido de minimizar a influência eu-
ropeia, que priorizava a conquista de áreas de influências em
toda a América (OLIVEIRA, 2004, p.30-31).
Conforme observou Amado Cervo (1992, p.24), a polí-
tica internacional no período da independência “foi um ins-
trumento com que o Brasil e as potências ocidentais forjaram
uma integração condicionante, aceitando, cada uma das par-
tes, sua função própria na divisão internacional do trabalho”, o
que produziu uma situação de dominação e dependência. No
entanto, o autor não se filia às interpretações advindas da Teo-
ria da Dependência, a qual observa a existência de dois atores
– o produtor primário (países na condição de ex-colônia) e
o produtor industrial (no caso, a metrópole inglesa) – que se
agregam por interesses mútuos, por meio de acordos não es-
critos. Para Amado Cervo, tais interpretações ignoram o papel
da “decisão política”.
O caso brasileiro demonstra que o compromis-
so não foi tácito, mas sim explícito e escrito, ne-
gociado e arduamente consentido por decisão de
vontade. Vale dizer que os destinos do Brasil, da
América Latina e de outras unidades agregadas
dependentes estiveram sempre, como estão, sob
a responsabilidade de seus homens de Estado. É
inútil historicamente toda teoria que se reduz à
psicanálise da opressão, sem detectar as condições

212
Releituras da História do Rio Grande do Sul

de superá-la, mesmo no quadro da evolução capi-


talista, em que foram desastradamente inseridas
as áreas periféricas.8 (CERVO, 1992, p.24)

Com a constituição da Monarquia no Brasil, um novo


momento nas políticas interna e externa começaria a ser cunha-
do. A obra de José Luiz Werneck da Silva (1990) contribuiu
fortemente para este debate, ao observar que a política externa
do período monárquico deve ser compreendida como sendo
“duas faces da mesma moeda”. Ou seja: a face da dependência,
submetendo-se, sobretudo, à Inglaterra e a face da posição he-
gemônica, que o Brasil adotara perante as questões do Prata. Se-
gundo o autor, estas duas faces são absolutamente integradas, e,
portanto, a análise da política externa do período imperial para
a Região Platina necessita obrigatoriamente da observância da
relação do Brasil com as metrópoles europeias, sobretudo com
a Inglaterra. Ressalta-se que, em vários episódios históricos da
época, as políticas externas do Brasil e da Inglaterra foram unís-
sonas, a exemplo da Guerra do Paraguai.9 No entanto, em ou-
tros momentos, as duas nações ocuparam posturas divergentes,
como no caso da Questão Christie (1862-1865).
Veja-se como se institui esse movimento pendular entre
dependência/submissão e a posição hegemônica do Brasil nes-
tes dois eventos marcos. Como bem notaria Boris Fausto (2000,
p. 212), o Governo Imperial do início da década de 1860, longe
de agir como “um instrumento dos interesses ingleses”, envol-

8
Fundamentando-se na premissa do equilíbrio possível entre determinações causais e finalidades políticas,
Cervo defende a existência de três fases para compreender o “enquadramento” brasileiro no sistema capita-
lista realizado à época da independência: a portuguesa, a inglesa e a ocidental. Na primeira, “criaram-se as
precondições, com o rompimento da independência, a conquista interna da soberania política, o fracasso
das tentativas portuguesas em promover o retorno à situação colonial e a escolha bilateral da Grã-Bretanha
como potência mediadora”. A segunda fase é marcada “pela natureza das relações de dependência resultan-
tes das negociações entre Brasil e Grã-Bretanha” e a terceira, finalmente, será caracterizada “pela extensão
desse sistema de relações às outras nações capitalistas emergentes e ao universo” (CERVO, 1992, p. 25).
9
Note-se que uma das consequências da Guerra do Paraguai foi o aprofundamento da dívida do Brasil com
a Inglaterra, “com a qual tinha restaurado as relações diplomáticas, no início das hostilidades” (FAUSTO,
2000, p. 216).

213
veu-se em uma série de incidentes com a metrópole hegemôni-
ca, conhecidos como “Questão Christie”, nome do embaixador
britânico no País.
Após a apreensão de navios mercantes brasileiros
pela Marinha britânica estacionada no Rio de Ja-
neiro, o Brasil rompeu relações diplomáticas com a
Inglaterra no início de 1863. Criou-se no país um
clima de exaltação patriótica, incentivado também
pelas notícias de que cidadãos brasileiros estavam
sofrendo violências no Uruguai, onde os blancos10
se encontravam no poder. O governo do Império
invadiu o Uruguai, em setembro de 1864, com o
objetivo de ajudar a colocar os colorados no poder.
(FAUSTO, 2000, p. 212)

Enquanto as relações diplomáticas anglo-brasileiras


estavam rompidas, entretanto, Francisco Solano López – El
Supremo –, tomaria a iniciativa para barrar o expansionis-
mo argentino e brasileiro que ameaçava sufocar o Paraguai,
lançando uma ofensiva contra o Mato Grosso, em dezembro
de 1864. Contrariando os conselhos de seu pai, Carlos López,
de usar a “pena” e não a “espada” contra o Império brasileiro,
Solano investe na ideia política da busca por um “Paraguai
maior”, rompendo com um isolamento que vinha especial-
mente de empecilhos orquestrados por Buenos Aires e que
não lhe deixavam usar regularmente o Rio Paraná, fato que
servia, diga-se de passagem, aos interesses brasileiros, como
bem lembrou Werneck da Silva (2009).
O Paraguai sairia arrasado do conflito contra a Tríplice
Aliança, formada em 1865 por Brasil, Argentina e Uruguai.
Metade de sua população foi dizimada: de 406 mil habitantes
em 1864 para 232 mil em 1872, tendo entre os sobreviventes

Nesta época, lembra o historiador, o líder paraguaio Francisco Solano López, buscando romper o isola-
10

mento do Paraguai, estava aliado aos blancos, então no poder no Uruguai (FAUSTO, 2000, p. 211).

214
Releituras da História do Rio Grande do Sul

uma maioria de mulheres, crianças e idosos (FAUSTO, 2000).


Como observou Werneck da Silva, neste momento a relação
entre Brasil e Inglaterra se recompõe já que a “pacata” e a libra
tinham agora um objetivo comum. Ocorre que a Inglaterra
não poderia “deixar que o Império brasileiro usufruísse sozi-
nho dos eventuais benefícios econômicos da guerra grande”,
enquanto o Brasil não tinha como dispensar os empréstimos
ingleses para bancar “os esgotantes encargos das campanhas
terrestre e fluvial, e para ajudar o esforço da guerra dos por-
tenhos da Argentina e do Uruguai, seus aliados necessários”
(SILVA, 2009, p.57).
Para além da “dupla face da mesma moeda”, outro aspecto
significativo considerado por Werneck da Silva é a periodização
da política externa imperial. Em que pese o Brasil ter se in-
dependizado em 1822, isso não significou que tenha havido,
desde então, uma política externa efetivamente brasileira. Se-
gundo o historiador, ela continuaria pertencendo à “História
de Portugal e não à História do Brasil, pois esteve ligada aos
interesses fundamentalmente dos Bragança e dos segmentos
sociais a eles acoplados” (SILVA, 2009, p. 40).
Somente após a crise de 07 de abril de 1831, que resultou
na abdicação de D. Pedro I e a aclamação de D. Pedro II – um
príncipe nascido e educado no País –, a política externa do Bra-
sil passou a ter um caráter brasileiro, pois até então não passara
de um reflexo dos interesses da Coroa portuguesa. No entanto,
mesmo que se registre o fim do reinado de D. Pedro I como
o início da política externa brasileira, são exatamente os inte-
resses do passado bragantino, ironicamente, que irão nortear
sua condução ao longo do segundo Império. Ou seja: como no
período de sua proto-história, a incipiente política externa bra-
sileira continuaria pautada pela situação de “dependência em
relação à Inglaterra [...], e uma posição de força, sempre à bei-
ra do expansionismo, nos problemas platinos” (SILVA, 2009,
p. 41). Esta herança é perfeitamente compreensível quando

215
se observa que a independência do Brasil não resultou de um
conflito com a Metrópole, tampouco representou uma ruptu-
ra na relação Metrópole-Colônia; ao contrário, se deu por um
grande “acordo pelo alto”,11 algo, aliás, bastante comum na his-
tória política brasileira.
É importante que se diga, entretanto, que não existe um
consenso sobre as fases do período Imperial no Brasil e sua
relação com a Política Externa. Neste debate, cabe ressaltar
as obras de Werneck da Silva (1990) e Amado Cervo (1992).
Segundo Werneck, o período Imperial pode ser compreendi-
do a partir de sua divisão em duas grandes fases. A primeira
refere-se ao período de Acomodação (1822-1844), na qual a
política externa brasileira estaria debruçada sobre questões
relativas ao Sistema Internacional, sobretudo no que diz res-
peito à atenção aos tratados internacionais e a própria política
liberal da época. Este direcionamento da política externa terá
consequências na própria política doméstica do Brasil, cau-
sando um momento de inflexão na mesma, na medida em que
é instaurado o abandono da submissão aos moldes coloniais
para uma dependência nos moldes capitalistas do século XIX.
A segunda fase (1844-1870) marcaria o início da auto-
nomia e da reação do Império brasileiro frente às potências he-
gemônicas europeias. Embora mantivesse os traços marcantes
da estrutura de dependência próprias dos países periféricos
do século XIX, o Brasil se opunha aos Tratados internacionais
entendidos como prejudiciais aos interesses nacionais. Na es-
teira desta reação, a política externa brasileira fez uma inflexão
e o subsistema regional começou a ganhar ênfase na agenda
política do Império. Fizeram parte desta fase questões como a
reconstituição do vice-reinado do Prata e a própria Guerra do
Paraguai. De maneira geral, tal fase marca um Brasil que não

11
Conforme observa Werneck da Silva, foi um acordo entre os “Bragança do Paço português de Queluz
e os Bragança do Paço brasileiro de São Cristóvão, acordo este com aval inglês sem o que não haveria
independência do Brasil numa conjuntura recolonizadora como a do Congresso de Verona” (2004, p. 42).

216
Releituras da História do Rio Grande do Sul

está preocupado sobremaneira com as questões internas, mas


sim com as dinâmicas regionais, na qual as questões platinas
ganham destaque.
Por sua vez, Amado Cervo, na obra História da Política
Externa do Brasil, observa que os anos de 1822 a 1889 carac-
terizaram um longo período de conquista e exercício da so-
berania. Neste momento, o controle do Prata se constitui em
um importante capítulo da história do período Imperial bra-
sileiro. Como disse o autor textualmente: “O Prata foi a área
em que correu solta a política de potência do Estado-Império
Brasileiro, ensaiada internacionalmente a partir de 1844, com
a resistência à hegemonia interna da Inglaterra”, para além das
pretensões norte-americanas relativas ao Amazonas (CERVO
& BUENO, 1992, p. 97). O certo é que, considerando as dis-
tintas abordagens e os marcos temporais, existe um consenso
entre as análises; as questões que envolvem a região do Prata
foram em grande parte responsáveis por algumas inflexões da
política externa do Brasil, além de estarem diretamente rela-
cionadas à própria formação e consolidação da parte meridio-
nal do Brasil.

4 As Questões Platinas

Como já assinalado, as questões platinas fizeram parte


de praticamente toda a História do Brasil colonial e imperial.
E, neste contexto, o Império brasileiro não apenas herdou a
agenda política da Coroa lusa, como também optou por man-
ter o seu status quo. Uma das formas que o Império brasileiro
usou para tratar das questões relativas ao Prata foi a clássica
prática do império inglês “dividir para dominar”. Em conso-
nância com esta máxima, para o Brasil, a melhor das políticas
obedeceria à seguinte estratégia:
Uruguai tem que ser Uruguai. Argentina tem que
ser Argentina. Paraguai tem que ser Paraguai. O

217
Império não aceitou nenhuma federação ou in-
tegração de territórios dessas repúblicas platinas,
porque sabia muito bem que no dia em que hou-
vesse federação ou integração territorial, ou mesmo
uma política comum que as aproximasse por meio
de acordos, tratados de aliança ou amizade, tudo
isto poderia reverter inevitavelmente contra um
Império cuja hegemonia “natural”, pela sua posição
e extensão geográfica naquela área, não era aceito
pelos países hispano-platinos. (SILVA, 2004, p.50)

Segundo Amado Cervo, a política brasileira para os paí-


ses do Prata, entre os anos 1822 e 1889, obedeceu a sete distin-
tas fases que incluem a tentativa de entendimento e a coope-
ração para a defesa das independências (1822-1824); a Guerra
da Cisplatina (1825-1828); a chamada Política de Neutralida-
de (1828-1843); a passagem da neutralidade para a interven-
ção (1844-1852); a presença brasileira ativa (1851-1864); o
retorno à política intervencionista (1864-1876); e, finalmente,
o retraimento vigilante (1877-1889). Essas distintas fases ilus-
tram, entre outros aspectos, os objetivos da política externa
lusa para com a região, que se definiu, sobretudo, durante a
segunda metade do século XIX, em “função de necessidades
internas do Brasil, às quais foram acoplados objetivos concre-
tos de seu interesse” (CERVO & BUENO, 1992, p. 104). Outro
aspecto que Cervo observa são as motivações que delinearam
a movimentação do Brasil no Prata. Tais finalidades foram de
ordem econômica, estratégica, segurança e política. No que
tange aos motivos econômicos, Cervo (1992, p. 104) assinala
a conveniência para o Brasil em manter um comércio regu-
lar, no qual se destacava a necessidade brasileira em relação
à importação do charque, para além de interesses no domí-
nio das finanças,12 mediante empréstimos feitos aos governos

12
“Secundavam essa ação os empreendimentos bancários, os empréstimos particulares e as iniciativas mo-
dernizadoras de Mauá no Uruguai e na Confederação. Era condição para o desempenho dessas atividades
econômicas a livre navegação dos rios interioranos, e nesse ponto o interesse brasileiro coincidia com os
das potências capitalistas, Estados Unidos, França e Inglaterra” (CERVO & BUENO, 1992, p. 104-105).

218
Releituras da História do Rio Grande do Sul

da Confederação Argentina e da República Argentina, além


do Uruguai, “com finalidades eminentemente políticas”. Já no
âmbito dos fins estratégicos e de segurança, teria destaque es-
pecialmente a “defesa intransigente das independências locais,
condição favorável ao exercício de sua hegemonia”, o acesso a
Mato Grosso via estuário, a segurança e definição jurídica das
fronteiras e a liberdade de trabalho para brasileiros residentes
em terras uruguaias (CERVO; BUENO, 1992, p. 105).
Quanto aos aspectos políticos, o historiador sustenta
que ao Brasil interessava “o funcionamento normal de insti-
tuições liberais, condição para a manutenção de relações du-
radouras e construtivas e para o incremento do liberalismo
econômico” (CERVO; BUENO, 1992, p. 105). Aqui, econo-
mia e política caminharam juntas e, ao Brasil, era interessan-
te que os vizinhos prosperassem em ambos os terrenos. No
entanto, a diplomacia brasileira não conseguiu administrar
com imparcialidade alguns antagonismos entre facções uru-
guaias (blancos e colorados) e argentinas, uma vez que os
interesses brasileiros estiveram inevitavelmente vinculados à
determinadas lideranças. Como resume Amado Cervo (1992,
p. 105), “no balanço geopolítico dos fatores, tinha o Uruguai
maior importância econômica, a Argentina maior importân-
cia política, permanecendo o Paraguai na tradicional função
de trunfo estratégico”.

5 Conclusão
Uma análise sobre os três séculos de política externa
brasileira aponta, com clareza, para algumas questões centrais
que podem ser consideradas como marcos na periodização
dos momentos históricos, em que pesem a complexidade e,
sobretudo, a quantidade de eventos registrados ao longo deste
período. O primeiro ponto a ser retomado é que o Brasil co-
lônia não desenvolve uma política externa autônoma, pois sua
condução permanece, ao fim e ao cabo, atrelada aos desígnios
da Coroa portuguesa, cuja agenda determina, por mais de dois

219
séculos, a política externa brasileira. À colônia brasileira, por-
tanto, cabe tentar acompanhar os desdobramentos da própria
política externa lusa, que tem como foco principal as relações
com o reino de Espanha.
Neste contexto, a região do Prata já se constitui tema de
destaque e motivo de contenciosos acordos e tratados que te-
rão papel de destaque na agenda lusa. É a partir desta realida-
de que o Rio Grande do Sul ganha visibilidade e torna-se um
dos cenários da relação entre as duas Coroas europeias, ainda
que não tenha uma importância econômica para Portugal. As
fronteiras e demarcações das terras brasileiras, portanto, não
serão motivadas por ideias de Nação ou Estado – leia-se, “por
nenhum arroubo de nacionalismo” –, uma vez que os interes-
ses em jogo, nesse momento, são pontuais e regionalizados.
De fato, entre todas as questões internacionais que mar-
caram o período colonial – e sua política externa –, o Prata
se tornaria um ponto nevrálgico de disputas. Essa situação de
proeminência não sofrerá alteração no período monárquico.
Para além da discussão entre a efetiva data de instauração de
uma política externa efetivamente brasileira (1822 ou a partir
de 1831, com a aclamação de D. Pedro II), os interesses do
Império serão, paradoxal e ironicamente, marcados pelo pas-
sado luso e, especificamente, bragantino. Se, neste momento,
torna-se clara uma dependência em relação à Inglaterra, os
problemas com a região do Prata seguem pautando as toma-
das de decisões da política brasileira. O Rio Grande do Sul, já
incorporado a este contexto, cresce em relevância, ao ganhar
destaque em questões de ordem econômica e política.
Mas ao longo da história, o Brasil não deixará de de-
senvolver, sobretudo no período Imperial, uma consciência
mais clara de sua posição hegemônica. Se os analistas diferem
em suas periodizações sobre a política externa brasileira, um
consenso é aceito: as temáticas relacionadas à região do Prata
pautaram importantes inflexões da política externa brasileira,
da colônia ao Império.

220
Releituras da História do Rio Grande do Sul

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222
Releituras da História do Rio Grande do Sul

ASPECTOS DA REVOLUÇÃO FEDERALISTA


NO CONTEXTO POLÍTICO DE
JÚLIO DE CASTILHOS
* Sérgio Roberto Rocha da Silva

No Brasil Imperial, era tradição o isolamento entre


as suas regiões, refletindo na sociedade uma desunião, he-
rança do período colonial com as suas capitanias, sendo o
mais comum a comunicação entre as principais regiões do
Brasil diretamente com Portugal (SODRÉ, 1998, p.39). Por
não ser o País da coesão, mas sim da fragmentação, tal situa-
ção deixava-se transparecer na política, economia e cultura,
comprometendo a sociedade brasileira. Desse modo, não se
vislumbrava uma visão de nação ou de identidade nacional.
A principal defesa dos republicanos era de que a moderni-
zação1 teria de estar associada à ordem e ao progresso, di-
ferentemente do que estava acontecendo, julgavam que “a
monarquia era responsável pelo atraso e conservadorismo”
(NEVES; MACHADO, 1999, p. 473).
Portanto, o grande trunfo dos republicanos foi mapear
as fraquezas do Império, os quais, a partir de então, puderam
criar estratégias que apareceriam no discurso “modernida-
de contra estagnação e atraso”. Não quer dizer, com isso, que,
com a Proclamação da República, as transformações ocorre-
ram de imediato, pois:
Nenhum regime ou sistema, nem econômico –
como o de trabalho – nem político – como o de go-
verno – se deixa substituir de todo por outro, da
noite para o dia; e na vida das instituições, essa

* Doutor em História e Professor do Curso de História da FAPA.


1
O conceito de “modernização” aqui presente é fundamentado nas transformações que os centros urbanos
passaram a partir de sua industrialização e urbanização, e que interferiram nas práticas e costumes da
sociedade, entendendo-as, segundo Marschall Berman, como o: “[...] conjunto dos processos sociais que
alimentam o ‘turbilhão da vida moderna’” (1986, p.16).

223
transição dura às vezes tanto, em suas contempo-
rizações de natureza sociológica, que as datas de
registro do fim deste regime ou de começo daque-
le sistema, não significam, em sua pureza ou ri-
gidez cronológica, senão mudanças de superfície
(FREYRE, 2000, p.561).

A Proclamação da República no Brasil pode ser perce-


bida mais como um momento de queda da Monarquia do que
realmente uma conquista da nova ordem política que se ins-
taurava. Hoje, para muitos historiadores, o episódio da Procla-
mação, em 1889, não passou de uma concentração de militares
que se reuniram para anunciar o novo regime político. Com
isso, toda mobilização serviu mais como marco simbólico do
que representação de uma conquista do povo brasileiro. A Re-
pública se iniciava de forma tímida aos olhos da população, já
que esta não participou de forma maciça e tampouco conse-
guiu alcançar a compreensão do que ocorria naquele instante.
O discurso dos republicanos estava sustentado em dois
pilares principais: a modernização e a formação de uma iden-
tidade nacional. De fato, a modernização foi algo perceptível
no Brasil, porém não de imediato. Por outro lado, a tão busca-
da coesão do povo brasileiro e de uma maior união das regiões
do País, formando uma nação, ficou mais no discurso do que
na prática. Por isso, hoje, tem-se várias identidades regionais,
seja pela diversidade cultural como também econômica.
O Rio Grande do Sul, no final do século XIX, ainda pos-
suía uma economia basicamente sustentada na agropecuária.
As principais cidades, como Pelotas, já viviam os ares da Belle
Époque, enquanto Porto Alegre entrava na tão esperada mo-
dernidade2 presente nos discursos dos republicanos. A socie-

2
O sentido de “modernidade” utilizado aqui será aquele almejado pelos republicanos, não reduzido à ideia
de progresso industrial. Seu significado é permeado pelo ideário de transformações no modo de agir e
pensar na sociedade. Novos hábitos e costumes deixariam para trás tradições demarcadas e vivenciadas
pela monarquia. Tais transformações dariam uma nova percepção de civilização para o Brasil, pois - con-
forme Touraine - essa ideia estava mais ligada a uma antitradição, com a “derrubada das convenções, dos
costumes e das crenças” (TOURAINE, 1995, p. 216).

224
Releituras da História do Rio Grande do Sul

dade começava a se delinear com a burguesia no centro das


decisões políticas e econômicas; uma classe média atuante e
uma grande parcela da população, de excluídos. Em 1893, a
República ainda buscava a sua consolidação e, para isso, qual-
quer tipo de ameaça a sua estabilidade política era combatida
com muita severidade e violência.
O objetivo aqui será, portanto, analisar a Revolução Fe-
deralista como um ato de repúdio ao governo de Júlio de Cas-
tilhos (Ilustração 1) e ao cenário político e econômico estabe-
lecido pós-Império. Outra questão importante está na relação
do conflito com a sociedade gaúcha: a violência extrema fez
deste período um momento a ser esquecido. Cabem ser evi-
denciados, aqui, os principais fatos ocorridos na Revolução,
para que seja possível entender o quanto eles foram marcantes
para a História do Rio Grande do Sul.

Ilustração 1 - Castilhos e seu pai, 1868

Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

O Sul do Brasil, inserido nas mudanças ocorridas com a


queda do Império e a instalação da República, apresentou algu-

225
mas especificidades em relação a outros estados. Uma delas foi
a política desenvolvida pelo Partido Republicano Rio-grandense
(PRR), fundamentada no Positivismo adaptado de Auguste
Comte e na figura central de seu líder, Júlio de Castilhos.
O governo do PRR e das práticas autoritárias de Cas-
tilhos contou com o apoio do Exército para implantar suas
ações políticas e de reestruturação econômica do estado. Não
satisfeitos com a Força Armada ao seu lado, os republicanos
criaram a Brigada Militar, que ampliou o poder de coerção e o
combate aos “inimigos” da República.
Figura polêmica, Castilhos ainda hoje desperta duplo
sentimento, sendo considerado um dos principais heróis gaú-
chos, ao mesmo tempo em que é tido como um verdadeiro
“tirano”, que governou o estado.
É perceptível, na literatura rio-grandense pós-morte do
patriarca, uma vertente que aponta o líder do PRR como um
verdadeiro herói. O autor positivista Othelo Rosa traçou um
delineamento de Castilhos bem diferenciado daquele imagi-
nado por muitos dos opositores e das pessoas que conviveram
à sua época. Para Rosa, Júlio de Castilhos era portador de uma
moral incontestável, seguida de uma grandeza, que o vestia
de coragem e honra, bem como de patriotismo e dignidade
(ROSA, 1930, p.315). O autor segue vestindo Castilhos com
uma roupagem de homem singular, em quem batia um cora-
ção “heroico”, fazendo surgir, a partir do político, um gran-
de filósofo, cuja maior qualidade estava na virtude de ser um
pensador (ROSA, 1930, p.317).
Se, por um lado, havia homens que consideravam Júlio
de Castilhos um político que marcou a vertente heroica do
gaúcho, também existiam os que o consideravam um vilão na
história do estado. No olhar dos viajantes que visitaram Porto
Alegre, entre o final do século XIX e início do XX, um outro
Castilhos foi descrito, sem traços de heroísmo.
O viajante Stanislaw Klobukowski esteve em Porto Ale-
gre no final do século XIX. Dirigiu duras críticas ao governo

226
Releituras da História do Rio Grande do Sul

de Castilhos, chegando a anunciar que grande parte da popu-


lação não o queria à frente do governo do Rio Grande do Sul.
O que não impediu Castilhos, através de meios não considera-
dos característicos de um governo republicano – a força – de
se eleger (FRANCO; NOEL FILHO, 2004, p.42). No relato de
suas impressões acerca de Castilhos, Klobukowski expôs que
foi muito bem recebido pelo governante, mas que, mesmo as-
sim, Júlio teria deixado “a impressão de um sanguinário, não
de um herói” (FRANCO; NOEL FILHO, 2004, p.43), decla-
rando que tinha chegado a essa conclusão por ter ouvido mui-
to das crueldades praticadas a mando do líder republicano.
Nos primeiros anos de República no Rio Grande do Sul,
Júlio de Castilhos, por meio do PRR, já era criticado pelos
seus atos, fundamentados na busca pela hegemonia de seu
partido e por princípios que transcendiam a falta de tolerân-
cia e de liberdade àqueles que discordavam de sua ideologia.
Conforme Flores:
Júlio de Castilhos adotou a doutrina positivista que
tinha como princípio a ordem social para chegar
ao progresso de uma sociedade industrial. Tal idéia
gerou a chamada ditadura científica positivista for-
mando um estado policial, onde toda questão so-
cial se transformou num caso de polícia. (FLORES,
1993, p.13-14 – grifo do autor)

Castilhos, para poder chegar ao governo gaúcho, contou


com o auxílio importante das páginas do jornal A Federação.
Era mais que um veículo jornalístico, pois assumia a função
de divulgar seus ideais políticos para o doutrinamento da so-
ciedade (CAMPOS, 1903, p.2). Castilhos não media esforços
para alcançar seus propósitos, e para isto atacava seus adversá-
rios com “golpes rudes e precisos” (ROSA, 1930, p.27). Acre-
ditava na força que o jornal exercia na sociedade e no universo
político. Ele fez de seus artigos no A Federação uma de suas
maiores armas. Por ter plena consciência disso, instituiu aos
jornais adversários a lei do silêncio. Como afirma Rossini:

227
O antigo opositor, A Reforma, foi constantemente
empastelado e, durante a Revolução Federalista,
esteve por um longo tempo impedido de editar suas
folhas, fechando definitivamente em 1910 (ROSSI-
NI, 2005, p.236).

Ary Veiga Sanhudo proferiu um discurso em 23 de ou-


tubro de 1953, na Câmara Municipal de Porto Alegre, cujo
tema era uma homenagem a Júlio de Castilhos. Sanhudo con-
siderava Castilhos um herói da República do Brasil e grande
patriarca do Rio Grande do Sul, pois “Júlio de Castilhos, sem
dúvida alguma, foi o maior cérebro político que até hoje nas-
ceu nas plagas do nosso estado” (SANHUDO, 1953, p.3).
Na concepção do vereador, Castilhos deveria ser lem-
brado pelo ato heroico, ocasião em que, em 1892, entregou seu
governo para evitar derramamento de sangue, já que a opo-
sição percorria o caminho da ambição e do proveito próprio
(SANHUDO, 1953, p.7). Júlio de Castilhos sabia que, ao en-
tregar seu governo, teria mais chances de retornar – e não era
pelo povo que teria feito essa renúncia, configurava-se, sim,
em uma manobra política para atender seus próprios propósi-
tos. Conforme Reckziegel:
Por seu turno, o líder do PRR, Castilhos, era uma
personalidade complexa, cujo caráter autoritário
converteria qualquer dissidente de seu credo em
inimigo potencial digno de um só tratamento: per-
seguição e destruição (RECKZIEGEL, 2005, p.48).

Com a Proclamação da República, mudanças ocorreram


na política e no modo de administrar o País. No entanto, nem
todos ficaram satisfeitos com a queda da Monarquia, pois,
nos primeiros anos após a República, começaram a ocorrer
contestações e revoltas no intuito de evitar a consolidação do
novo regime.
A Revolução Federalista, ocorrida no Sul do Brasil en-
tre 1893 e 1895, teve como uma das principais característi-

228
Releituras da História do Rio Grande do Sul

cas a não celebração e glorificação dos principais personagens


envolvidos diretamente neste evento. Diferente da Revolução
Farroupilha, que produziu um panteão de heróis e solidificou o
mito do gaúcho, como Bento Gonçalves, os maragatos3 e pica-
-paus não tiveram o mesmo destino. Como evento de grande
importância para a História gaúcha, ainda hoje o episódio de
extrema violência é um tabu na sociedade e na historiografia.
Segundo Arnoldo Doberstein, o exemplo mais próxi-
mo dessa aversão do tema são os monumentos públicos, que,
diferentemente daqueles existentes hoje, não retratam seus
“heróis” e tampouco os episódios da Revolução Federalista.
Segundo o autor:
[...] isso foi devido ao legado de rancor e ressenti-
mento que essa guerra civil deixou entre as elites
gaúchas. Seria com um esquecimento compactuado,
para não provocar, através de monumentos, o re-
nascimento de ódio não dissipado (DOBERSTEIN,
1993, p.85).

Os monumentos, além do valor artístico, são portado-


res de um imaginário e servem de instrumento de glorificação
dos heróis. Dessa forma: “[...] toda arte é condicionada pelo
seu tempo e representa a humanidade em consonância com
as idéias e aspirações às necessidades e às esperanças de uma
situação histórica particular” (FISCHER, 1973, p.17). No caso
específico, a Revolução Federalista não produziu heróis que
suprissem as necessidades da sociedade, então de que adian-
taria admirar homens que foram personagens reais de um mo-
mento na História gaúcha que deveria ser esquecido?

3
A explicação mais provável encontrada nas fontes disponíveis sobre a denominação dada aos federa-
listas, está sustentada na seguinte interpretação: maragatos, no Uruguai, são designados aqueles descen-
dentes dos primeiros espanhóis chegados na região, cuja procedência era da Maragateria, província de
León (REVERBEL, 1985, p.5). Conforme Moacyr Flores: “Com os invasores brasileiros vinham gauchos
uruguaios, de um departamento que fora povoado por espanhóis oriundos de Maragateria. [...] Os ma-
ragatos adotaram o lenço vermelho como símbolo de sua facção política. Os republicanos ou pica-paus
usavam lenço branco como distintivo” (1996, p. 158).

229
Como expõe Le Goff, os “arquivos de pedra” são dota-
dos de um poder de durabilidade que despertou nos regimes
políticos o princípio de perpetuação dos ideais ali depositados
(1994, p.432). O poder político, muitas vezes, determina o que
deve ou não ser lembrado pela sociedade, elegendo aconteci-
mentos para serem tornados presentes em monumentos pú-
blicos, agindo diretamente na formação da memória coletiva.
Segundo Peter Burke:
Historiadores dos séculos XIX e XX, (...), vêm dedi-
cando um interesse cada vez maior aos monumen-
tos públicos nos últimos anos (...) esses monumen-
tos ao mesmo tempo expressavam e formavam a
memória nacional (BURKE, 2000, p.74).

Portanto, não foi coincidência a ausência de monumen-


tos que retratassem aqueles que lutaram na revolução e que se
destacaram em ambos os lados do conflito. Não há o “monu-
mento intencional” que, segundo Alöis Riegl, tem por princí-
pio a rememoração dos feitos do herói representado/materia-
lizado, conservando lembranças para as futuras gerações.
A literatura escrita sobre a Revolução, principalmente
nas primeiras décadas que se seguiram ao conflito, também
não deixou de expressar uma tomada de posição frente aos
lados envolvidos. Conforme Carlos Reverbel:
Muito se escreveu sobre 93, durante o conflito,
como nos anos seguintes. A luta armada havia
terminado, com a derrota dos federalistas, mas os
espíritos continuavam em estado de beligerância.
E tudo quanto se escrevia vinha saturado de ódio,
porejava a mais incruenta animosidade, salva ra-
ríssimas exceções (REVERBEL, 1985, p.15).

A guerra narrada nos livros, segundo o autor, tinha a


característica de um relato de algo que ainda estava aconte-
cendo, ou seja, como se a Revolução não estivesse chegado ao
seu fim.

230
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Além disso, acredita-se que estivessem envolvidas tam-


bém motivações de ordem cultural, ou seja, foi um momento
no Rio Grande do Sul que, para muitos, não deveria ser lega-
do a futuras gerações. A ausência de detalhes daquele período
reforça a concepção da existência de um tabu na sociedade
rio-grandense. A questão do imaginário da morte na socie-
dade é algo que ainda permeia os dias de hoje, pois não se
consegue discutir a finitude de forma explícita. Por isso, foi
escamoteada sua presença, transformando-a em tabu (SILVA,
2008b, p.4). Torna-se extremamente difícil glorificar heróis as-
sociados à lembrança das crueldades praticadas no campo de
batalha, bem como ao modo que ambas as partes envolvidas
na Revolução matavam a maioria de seus inimigos: utilizando
a degola. Conforme Sandra Pesavento, a:
[...] maneira mais usual em matar a vítima tal
como se procedia com os carneiros: o indivíduo era
coagido a, de mão atadas nas costas, ajoelhar-se.
Seu executor, puxando sua cabeça para trás, pelos
cabelos, rasgava sua garganta, de orelha a orelha,
seccionando as carótidas, com um rápido golpe de
faca (1983, p.89).

O episódio mais terrível da Revolução Federalista foi, sem


dúvida, Rio Negro e Boi Preto. Na região de Bagé, os pica-paus
foram derrotados pelos maragatos, tendo como líder o General
João da Silva Tavares, conhecido como “Joca Tavares”.
Tavares ordenou que cerca de 300 homens fossem
degolados e seus corpos descartados no rio próxi-
mo. Por outro lado, como vingança, Firmino de
Paula devolveu na mesma moeda, isto é, mandou
degolar quase o mesmo número de federalistas na
batalha do Boi Preto. Após a morte de Gumercin-
do, Firmino externando frieza, ordenou que se
desenterrasse seu corpo a fim de realizar a degola
(PESAVENTO, 1983, p.90-91).

Este tipo de conduta talvez sirva para esclarecer a quase


inexistência de cultos a heróis da Revolução Federalista.

231
Toda cultura tem o seu herói, seja nas sociedades primi-
tivas como na contemporânea, todavia seu sentido se diferen-
cia de acordo com o período e o contexto histórico. O que se
altera na concepção e função do herói serão os valores culturais
atribuídos a ele e a finalidade do seu surgimento (DRUCKER;
CATHCART, 1994, p.82). Segundo Carvalho “[...] por ser par-
te real, parte construído, por ser fruto de um processo de ela-
boração coletiva, o herói nos diz menos sobre si mesmo do que
sobre a sociedade que o produz” (CARVALHO, 1990, p.14).
O herói evidenciado na Primeira República Rio-
-grandense será o que Sidney Hook denomina de “um pro-
duto sintético”. Não será aquele que se torna herói na traje-
tória em vida, mas, sim, após sua morte. O principal meio
de fabricação será via propaganda e discurso, mesmo que o
eleito nunca tenha se destacado na sociedade em que viveu
(HOOK, 1962, p.17). Ele nada mais é que um instrumento de
vontade de um grupo, que desenvolve as intenções de outros
indivíduos que o criaram por puro interesse (HOOK, 1962,
p.140). Frente ao exposto, viu-se o grupo que permaneceu no
poder, os republicanos positivistas, eleger Júlio de Castilhos
como herói, não pelo episódio da Revolução Federalista, mas
pela sua trajetória e como símbolo maior do PRR.
O herói, na sociedade, sempre foi concebido como uma
figura lendária que possuísse atributos de um ser que demons-
trasse vigor, poderes sobrenaturais, bravura e magia, sendo ad-
mirado pelos seus atos. Narrativas acerca de seus predicativos
têm sido reproduzidas de geração a geração, e o herói, na mor-
te mais do que em vida, vem sendo exaltado no decorrer da
história (DRUCKER; CATHCART, 1994, p.221). Isso explica
a falta de culto aos participantes da Revolução, pois causaria
estranhamento ver alguém cultuar quem matou sem piedade
ou que não teve o mínimo de humanidade para com o inimigo.
A Revolução Federalista foi, sem dúvida, o maior exem-
plo de discordância de ideias e de prática política. Entre 1893 e
1895, a estabilidade da República no Sul do Brasil foi contesta-
da não apenas via discursos e artigos de jornais, mas, da mes-

232
Releituras da História do Rio Grande do Sul

ma forma, pela luta armada. A “Revolução da Degola” traduz


de forma denotativa a violência praticada pelos dois grupos
envolvidos. De um lado, os seguidores de Júlio de Castilhos
e de sua República positivista e, de outro, os liberais e dissi-
dentes, que foram afastados do centro das decisões políticas
do Rio Grande do Sul, e líderes, como Gaspar Silveira Martins
(Ilustração 2) que tiveram de buscar o exílio.

Ilustração 2 – Gaspar Silveira Martins à esquerda

Fonte: Museu Municipal de Itajaí.

Júlio de Castilhos foi eleito em 1893 com o auxílio de


fraude eleitoral, fazendo com que seus inimigos se refugias-
sem no Uruguai. A fuga da oposição não pode ser vista como
um mero ato de covardia, mas de estratégia. Poucos meses
após a eleição de Castilhos, os federalistas retornaram ao Rio
Grande do Sul para impedir a permanência dos republicanos
positivistas do PRR no poder.
Com isso, a disputa política na última década do século
XIX se acirra. A alternância de governos provisórios, forma-
dos por dissidentes da política de Júlio de Castilhos foram os
que implantaram o “governicho”, tendo como principais nomes

233
Barros Cassal e Assis Brasil. Sem base política sustentável e
maiores articulações, os dissidentes não suportaram a pressão
dos aliados de Castilhos, não conseguindo evitar que o líder do
PRR retornasse ao governo:
É bem verdade que, quando os castilhistas subiram
ao poder, “varreram” os liberais dos seus cargos e os
perseguiram; por sua vez, quando do “governicho”,
foi a vez de os republicanos serem perseguidos, re-
gistrando-se assassinatos em revide aos crimes pra-
ticados pelo PRR. Com o retorno dos republicanos
ao poder, abriu-se um novo período de violências e
perseguições, que mais fizeram recrudescer a radi-
calização política (PESAVENTO, 1983, p.85).

Em 1892, Gaspar Silveira Martins retornou do exílio e


logo articulou com os antigos liberais a criação, em Bagé, do
Partido Federalista Brasileiro (PFB). Nomeado líder do parti-
do, Martins recebeu apoio de:
[...] ex-liberais e alguns ex-conservadores, como
o clã dos Tavares, naturais de Bagé. Socialmente,
era formado majoritariamente pelos pecuaristas
da região da Campanha, ligados ao comércio e
contrabando na zona da fronteira (PESAVENTO,
1983, p.81).

Para o PFB, a República deveria ser parlamentar e o go-


verno federal deveria centralizar mais sua força política, dife-
rentemente do que desejava Júlio de Castilhos, que buscava um
fortalecimento maior do poder político gaúcho em relação ao
governo federal.
A discórdia política não se manteve apenas no campo
das ideias, a disputa ultrapassou a fronteira entre a civilida-
de e a “barbárie” (Ilustração 3). Não foi somente entre 1893
e 1895 que as atrocidades foram realizadas, pois, de acordo
com Moacyr Flores:
[...] entre o golpe de Castilhos, em junho de 1892
e o início da Revolução Federalista foram degola-

234
Releituras da História do Rio Grande do Sul

das 193 pessoas, de ambas as facções. Os jornais de


cada partido relatavam com detalhes os crimes po-
líticos, exagerando as atrocidades, aumentando os
sentimentos de vingança. (FLORES, 1996, p.157)

Ilustração 3 – Foto de Desconhecido encenando ou praticando a


degola na Revolução Federalista

Fonte: Casa de Memória de Curitiba.

Se, por um lado, os republicanos tinham Júlio de Casti-


lho como líder, por outro, os federalistas contavam com Joca
Tavares e Gaspar Silveira Martins. Conforme Sandra Pesavento,
[...] tiveram ainda nas suas hostes o destacado general
maragato Gumercindo Saraiva [...]. Do lado dos ‘pica-
-paus’, destacavam-se os generais Pinheiro Machado,
Manoel Nascimento, Firmino de Paula e João Francis-
co Pereira de Souza (PESAVENTO, 1983, p.89).

Gaspar Silveira Martins,4 ao chegar no Rio Grande do


Sul, tentou, sem sucesso, convencer Floriano Peixoto da vali-
dade de seus planos para uma pacificação na política do esta-
do. Evidente que o foco de sua conversa deve ter sido o mesmo
que teve com Júlio de Castilhos. O parlamentarismo, concebi-
do por Martins, estava fora de questão para Castilhos, mesmo
porque, para o líder republicano, deveria haver somente um
único partido na administração política – neste caso, o PRR.

4
Gaspar Silveira Martins resistiu em conceber a deflagração da Revolução Federalista.

235
A Revolução iniciou pela região de Aceguá, em 05 de fe-
vereiro de 1893 com Gumercindo Saraiva comandando cerca
de 400 homens. Simultaneamente, o Rio Grande do Sul fora
invadido pelos federalistas,5 tendo, no comando, Juca Tigre e
Ulisses Revervel, que traziam centenas de homens sob o co-
mando de João da Silva Tavares.
Após dois meses do início da ocupação das tropas fede-
ralistas, na região de Alegrete, se deu uma das maiores bata-
lhas que perdurou por horas. Ao leito do Rio Inhanduí, cerca
de 10 mil homens entraram em confronto. Os pica-paus esta-
vam bem mais preparados em termos de armamentos; por ou-
tro lado, os maragatos, mesmo achando que tinham a melhor
posição estratégica, se retiraram na madrugada do campo de
batalho por ordem de Joca Tavares, que temia não ter poder
bélico para sustentar uma nova investida do inimigo.
O movimento Federalista, no primeiro ano, obteve vitó-
rias significativas, ampliando sua ocupação geográfica. Porém,
com a reação dos governos estadual e federal, a sustentabi-
lidade da ação não conseguiu se manter. Como bem analisa
Francisco das Neves Alves:
A forte reação castilhista/florianista somada aos
problemas no seio das forças revolucionárias fize-
ram com que estes recuassem de diversos pontos
anteriormente conquistados. A virada de 1893
para 1894 representou um momento decisivo para
o rumo da revolução (2002, p.37).

Certo momento, os federalistas acreditaram que, ao se


unirem com lideranças da Revolta da Armada, em Santa Ca-
tarina e Paraná, e criarem um Governo Provisório, o combate
aos republicanos e a vitória seria uma questão de tempo. Fato
que não ocorreu:

5
Os federalistas eram denominados como aqueles que estavam ligados ao Partido Federal, mas deve-se
salientar que republicanos que não estavam de acordo com as ideias de Júlio de Castilhos e monarquistas,
prejudicados com a política republicana, do mesmo modo, faziam parte desse grupo.

236
Releituras da História do Rio Grande do Sul

O ponto de confluência da Revolução Federalista


com a Revolta da Armada, juntamente com ele-
mentos rebeldes catarinenses e paranaenses deu-se
na cidade de Desterro, onde chegou a formar-se um
Governo Provisório Revolucionário o qual deveria
ser a representação da aliança entre as diversas
forças rebeldes contra os mandatários da República
[...] (ALVES, 2002, p.35).

Não se pode esquecer que os republicanos contavam


com a força do Exército Nacional e com a Brigada Militar re-
cém-criada. Mesmo que os federalistas tenham tentado a es-
tratégia de enfraquecer o governo do PRR, ao acreditarem que
podiam fragmentar os castilhistas, esqueceram de planejar
uma sustentação material e um maior envolvimento da causa
por parte dos homens que lutavam não somente por um ideal,
mas para atender os interesses dos fazendeiros e dos políti-
cos excluídos e contra a República, que se configurou no Rio
Grande do Sul:
De um lado, os federalistas que, estrategicamente,
procuravam desgastar o governo do PRR com a
finalidade de provocar uma intervenção federal
no estado, utilizando-se da tática de guerrilha,
tendo a cavalaria como principal arma de guerra,
caracterizavam-se como grupamentos de homens
despossuídos de disciplina militar, mal armados,
intrépidos e inconstantes, em outras palavras, era
peão-guerreiro que lutava de acordo com os inte-
resses do estancieiro. De outro lado, os castilhis-
tas, com apoio do Exército Nacional [...] Brigada
Militar e os Corpos Provisórios [...] (MORAIS,
2007, p.275).

Como bem escreveu Morais, a falta de um preparo por


parte dos federalistas, na organização de seus homens e no
aparato bélico, propiciou a perda dos territórios já conquista-
dos e a retomada destes pelos republicanos.

237
Foi no governo do presidente de Prudente de Moraes
que se deu a pacificação entre federalistas e pica-paus. Sem
dúvida, foi um ato mais diplomático do que realmente um
atendimento das principais causas da revolta. Em 1894, com
o fim da administração de Floriano Peixoto e o início do go-
verno civil de Prudente de Morais, o Brasil começou a buscar
a coesão e a paz tão fragmentada nos anos interiores com os
militares. A melhor forma de concretizar a ideia de uma pátria
era por fim às revoluções:
[...] em 23.8.1895, o gen. Galvão de Queiroz e o
gen. João da Silva Tavares assinaram a convenção
de paz em Pelotas, aceitando a anistia decretada
pelo Prudente de Morais. Júlio de Castilhos não as-
sinou a convenção, apenas aceitou a submissão dos
rebeldes (FLORES, 1996, p.168).

Um exemplo disso foi a Constituição de 1891, que ficou


intocável, no tratado de paz assinado em agosto de 1895: “O
confronto militar representou o ápice da bipolarização político-
partidário que domina o cenário gaúcho desde a Proclamação
da República” (ALVES, 2002, p.33). Sabe-se que a “paz” esca-
moteou e manteve os ânimos dos contrariados em relação à
hegemonia do PRR e dos seguidores de Júlio de Castilhos. Em
1923, outra revolução foi feita para acabar com as inúmeras re-
eleições de Borges de Medeiros e finalmente modificar a cons-
tituição de 1891.
Não foi somente a assinatura do Tratado de Paz que en-
cerrou a Revolução Federalista, mas vários fatores foram deci-
sivos para o acordo, como o grande números de combatentes
mortos (Ilustração 4), já que: “A revolução terminou à exaus-
tão dos guerrilheiros e por morte dos principais chefes” (FLO-
RES, 1996, p.168). O resultado desta guerra civil foi de grande
impacto para o Rio Grande do Sul, pois, além de baixas entre
10 e 12 mil homens, o conflito “[...] gerou o ódio entre famílias
e oligarquias políticas, fortalecendo a centralização do poder
em mãos do Partido Republicano[...]” (FLORES, 1996, p.168).

238
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Ilustração 4 – Trincheira da Panela do Candal, em Bagé

Fonte: FLORES, 2006, p. 141.

A memória coletiva6 do gaúcho não resguardou por


muito tempo o ocorrido entre 1893 e 1895. Diferente da Re-
volução Farroupilha, que ainda hoje é comemorada no dia
20 de setembro, a Revolução Federalista teve mais importân-
cia no rumo da política rio-grandense, em comparação da-
quela ocorrida em 1835. O fato é que os farroupilhas foram
elevados pela literatura romanceada ao panteão dos grandes
heróis guerreiros, enquanto que na Federalista, os principais
líderes foram esquecidos ou morreram no próprio conflito.
O único que foi devidamente perpetuado de forma destaca-
da é Júlio de Castilhos.
O que chama a atenção é que um dos principais moti-
vos para o início do conflito foi justamente as práticas autori-
tárias do chefe político do PRR. Sem ceder em nada em suas
ideologias, Castilhos assistiu, fora do campo de batalha, todo
o desenrolar da revolução. Mesmo assim, Porto Alegre abriga

6
Entende-se por memória coletiva “[...] aquela formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes e que
são guardados como memória oficial da sociedade. Ela geralmente se expressa naquilo que chamamos
de lugares da memória que são os monumentos, hinos oficiais, quadros e obras literárias e artísticas que
expressam a versão consolidada de um passado coletivo de uma dada sociedade” (SIMSON, 2000, p.63,
grifo da autora).

239
sua memória em um monumento que narra a vida de Júlio de
Castilhos de forma ideológica e a partir de sua glorificação.
Isso se deve principalmente pela iniciativa dos repu-
blicanos do PRR que, com propagandas, discursos, homena-
gens e monumentos construíram um Júlio de Castilhos bem
diferente daquele quando vivo. Após sua morte, os atos de-
preciativos de Castilhos foram aos poucos sendo apagados da
lembrança da sociedade, restando apenas aquilo que era para
ser lembrado, mesmo que seja uma lembrança forjada para
atender os interesses de um grupo restrito.
Para a História do Rio Grande do Sul, a Revolução Fe-
deralista trouxe mudanças significativas para a sociedade. Os
ideais do PRR iriam pendurar até 1930, principalmente por
meio das inúmeras reeleições de Borges de Medeiros no go-
verno do estado. Mesmo assim, serão germinadas as primeiras
sementes da bipolarização partidária e a cultura de se apoiar
esta ou aquela ideologia.
Para os gaúchos, o “acerto de contas” entre maragatos
e pica-paus foi visto mais com repúdio do que realmente
com admiração. O que permanece sobre o episódio, ainda
é aquela visão de discórdia entre “irmãos”, pois houve uma
luta entre iguais por uma causa política, na qual a valentia,
tão exaltada na figura do gaúcho, desta vez não foi exaltada
de forma mitológica. Pelo contrário, existe um tabu em rela-
ção ao acontecido.
Desta vez, o gaúcho imortalizado pelas “peleias” não foi
o personagem principal a ser lembrado, mas sim a violência
extrema e suas consequências para o rumo do Rio Grande do
Sul. Neste caso, de heróis, os envolvidos na Revolução passa-
ram a ser lembrados pelos dois lados como os vilões da histó-
ria e estão longe de serem personificados como aquele “mito
[...] associado a um cavaleiro indomável, viril, hábil no ma-
nejo das armas, guerreiro valente, capaz de suportar grandes
sacrifícios e reveses” (KAISER, 1999, p.37).

240
Releituras da História do Rio Grande do Sul

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242
Releituras da História do Rio Grande do Sul

COLONIZAÇÃO – SEGUNDA FASE


* René E. Gertz*

1 A imigração

Até os indígenas que habitavam o território que veio a


constituir o Rio Grande do Sul provinham de um processo de
migração. Isto significa que, a rigor, neste estado, ninguém é
“autóctone”. Por esta razão, neste texto, não será feito qualquer
esforço para distinguir, de forma criteriosa, entre “imigração”,
“migração” e “colonização”. Estas palavras, obviamente, não
são sinônimas, mas, de fato, se tratará, aqui, do processo de
colonização resultante da migração de pessoas vindas de outros
continentes, a partir do século XIX, processo, normalmente,
chamado de imigração. Esse processo fez com que determina-
das regiões do estado apresentassem características socioeco-
nômicas, políticas, culturais, religiosas específicas.
Em um segundo momento, populações descendentes
desse processo deram origem a migrações internas e à coloni-
zação de novas áreas, muitas vezes, sem que daí resultasse uma
configuração social, política, cultural, religiosa totalmente di-
ferente daquela que a originou. Isto fez com que aquelas três
citadas palavras, muitas vezes, sejam utilizadas como sinôni-
mos, na linguagem cotidiana. Para dar um exemplo concreto
– cidadãos que se referem a Cerro Largo costumam chamá-lo
de município de “imigração alemã” ou de “colonização alemã”,
ainda que ele tenha resultado, basicamente, de um processo de
migração interna, de forma que poucos dos seus colonizado-
res eram, efetivamente, alemães.
Pretende-se fazer, aqui, alguns comentários muito bre-
ves e gerais a respeito dos processos de imigração, migração e

* Doutor em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim. Professor nos Departamentos de História
da PUCRS e da UFRGS.

243
colonização, desde o início do último quartel do século XIX,
com o início da vinda de imigrantes italianos e poloneses, mais
a continuidade da vinda de novos contingentes de alemães. E,
no século XX, tem-se, ainda, a vinda de judeus, de japoneses e
de vários outros grupos numericamente menores.
Os três primeiros grupos são, porém, aqueles que mais
fortemente marcaram a paisagem humana, socioeconômica,
política e cultural do estado, e são alguns aspectos desta pai-
sagem, em sua configuração até a atualidade, que se tentará
abordar. Evitou-se uma tediosa enumeração de nomes e datas
de fundação de núcleos coloniais através do tempo. O objeti-
vo é tecer algumas considerações que não apenas apresentem
informações sobre o passado, mas também ajudem a entender
aspectos do presente.
Por ter sido abordada em capítulo específico, não se
fará referência aos resultados da imigração açoriana. Também
não se fará nenhuma referência ao ingresso de pessoas vindas
dos países vizinhos, tampouco ao desdobramento da presen-
ça portuguesa ou da introdução forçada de negros, trazidos
como escravos.
Na década de 1870 iniciou uma nova fase no processo de
imigração e colonização, com a chegada de grupos significati-
vos da península italiana e da Polônia. Grosso modo, essa fase
se estendeu até a Primeira Guerra Mundial (1914). Não que
antes dessa data representantes desses dois grupos estivessem
totalmente ausentes – basta lembrar Garibaldi ou Zambecari,
personagens importantes da Revolução Farroupilha, mas tam-
bém Gudowski ou Stepanowski, menos conhecidos da mesma
Revolução ou das guerras no Prata, no início da década de
1850. Mas, no último quartel do século XIX, o modelo de co-
lonização iniciado 50 anos antes, com alemães, foi continuado,
em outros territórios e com imigrantes de outras origens.
Naquilo que tange aos imigrantes vindos da penínsu-
la italiana, fundaram-se três colônias na encosta superior

244
Releituras da História do Rio Grande do Sul

do Nordeste do estado: Conde d’Eu (mais tarde, Garibaldi),


Dona Isabel (mais tarde, Bento Gonçalves) e Caxias. Uma
“quarta colônia” foi fundada, mais ou menos na mesma épo-
ca, na região central do estado, próximo a Santa Maria, tendo
como centro Silveira Martins. Com isso, foram colocadas, no
mapa gaúcho, duas “manchas” relativamente grandes, que vi-
riam a simbolizar a presença italiana, de forma que, até hoje,
a opinião pública associa “colonização italiana”, basicamente,
com a região serrana e com a “Quarta Colônia”, ainda que
elas, entrementes, se tenham espraiado, abrangendo grande
quantidade de municípios das circunvizinhanças, e muitas
outras regiões do estado.
Ao contrário da colonização com italianos, que teve, nos
seus inícios, essas duas áreas centrais relativamente compac-
tas, a colonização com poloneses foi mais dispersa. Seu assen-
tamento inicial foi, predominantemente, em áreas de coloni-
zação nas quais outros grupos constituíam a maioria – com
destaque para os citados núcleos de colonização italiana. Em
períodos posteriores e em momentos diferentes, foram, po-
rém, feitos assentamentos mais concentrados também com
poloneses em, no mínimo, mais seis locais espalhados por di-
versas regiões. Assim, dois foram localizados ao Sul de Porto
Alegre (as colônias de Dom Feliciano e Mariana Pimentel),
um em Guarani das Missões, outros em Ijuí, em Erechim e em
São Marcos.
Além das colônias de tradição mais antiga com alemães,
e das posteriores, com italianos e poloneses, em 1904, foi es-
tabelecida a colônia Philippson, próximo a Santa Maria, com
imigrantes judeus vindos do Leste europeu; oito anos depois,
foi estabelecido outro núcleo ao Norte do Estado, na região de
Erechim, a colônia Quatro Irmãos. Ainda que os dados nu-
méricos sobre os judeus sejam divergentes, apontam para 100
a 350 pessoas que teriam vindo para o primeiro e cerca de
450 para o segundo desses núcleos (WAINBERG, 2004, p. 72;

245
GRITTI, 1997, p. 92). Afora aqueles vindos para esses núcleos,
naturalmente também aconteceu o ingresso de avulsos, vin-
dos antes e depois dessas datas.
Diferente daquilo que aconteceu com alemães, italianos,
poloneses e seus respectivos descendentes, que, em gerações
sucessivas, migraram tanto para o interior, estabelecendo no-
vos núcleos coloniais do respectivo grupo, quanto para centros
urbanos, os colonizadores judeus, em sua quase totalidade,
abandonaram seus lugares de assentamento agrícola original
e migraram para centros urbanos, de forma que os núcleos
originais praticamente deixaram de existir ou, então, foram
ocupados por populações de outra origem.
Finalmente, merece referência a imigração japonesa.
Para o Brasil, como um todo, ela começou em 1908, destinan-
do-se, em especial, para o Sudeste do País. Por isso, no censo
demográfico de 1940, registraram-se apenas 199 japoneses no
Rio Grande do Sul, com pequenos núcleos não consolidados
em Horizontina e em São Sebastião do Caí. A partir da segun-
da metade do século XX, essa imigração, porém, foi retomada,
de forma que, além de famílias isoladas espalhadas por dife-
rentes localidades, estabeleceram-se novos grupos em Ivoti,
Santa Maria, Viamão, Itati e outros lugares.

2 Quantos são e onde estão os colonizadores?

A Primeira Guerra Mundial e, depois, a Revolução de


1930 constituem dois importantes divisores de água na ques-
tão da imigração. A Guerra criou dificuldades físicas para a
própria vinda de novos contingentes, e a Revolução repre-
sentou uma mudança definitiva de rumo na forma de pensar
das autoridades brasileiras da época sobre a colonização por
meio de imigrantes, com preocupações sobre eventuais efeitos
negativos da diversidade da população para a constituição da
nacionalidade, motivo pelo qual começaram a ocorrer restri-

246
Releituras da História do Rio Grande do Sul

ções a determinados grupos, no início, até que o projeto de


imigração, como um todo, fosse colocado sob suspeita.
Evidentemente, o Rio Grande do Sul recebe imigrantes
até hoje, mas não são mais contingentes comparáveis aos do
período áureo de que se trata aqui. O ano de 1930 também
sinaliza a sensação de saturação do espaço gaúcho para novos
projetos colonizadores, dentro da própria sociedade – mes-
mo que nem todo o território estivesse ocupado, começava-se
a sentir a necessidade de buscar novos espaços para além da
fronteira estadual. Simbolicamente, essa sensação está repre-
sentada na fundação das colônias “rio-grandenses” de Porto
Novo (hoje, Itapiranga) e Porto Feliz (hoje, Mondaí), no ex-
tremo Oeste catarinense, na década de 1920. Na sequência,
iniciou um duradouro fluxo colonizador de gaúchos, que, en-
trementes, atingiu as fronteiras mais distantes do País, e até
ingressou em países vizinhos.
Isso significa que, em torno de 1930, existia um qua-
dro mais ou menos definido sobre a influência da imigração e
da colonização sobre a ocupação do espaço gaúcho e sobre a
composição étnico-cultural da população, o qual, nas décadas
seguintes, registrou o desdobramento natural desse processo.
Mesmo que todos os dados estatísticos a esse respeito devam
ser vistos com muita cautela, e os números, com certeza, care-
cem de precisão absoluta, pois até as cifras dos censos demo-
gráficos apresentam discrepâncias, pode-se desenhar o qua-
dro de uma tendência geral.
Em função da crise política que desembocou na Revolu-
ção, não ocorreu o censo demográfico de 1930. Mas como se
tem números ao menos aproximados sobre o total de habitan-
tes do Rio Grande do Sul levantados pelos censos de 1920 e de
1940, pode-se pressupor, por meio de um cálculo da média,
que em 1930 eram cerca de 2.600.000 habitantes. Um relató-
rio apresentado pela Secretaria de Obras Públicas, no ano de
1930, indicava que os imigrantes de que este capítulo trata,

247
mais seus descendentes, eram calculados em, aproximada-
mente, 850.000. Isso representaria 32% da população total do
estado (GRITTI, 2004, p. 79).
Estudos específicos sobre os diferentes grupos, porém,
apontam para percentuais maiores. Jean Roche, ao referir-se
a alemães e descendentes, apresenta autores e conjecturas pró-
prias que sugerem números superiores aos 400.000 admitidos
pela fonte citada, chegando a trabalhar com a hipótese de que,
20 anos depois, em 1950, 21% da população gaúcha eram de
origem alemã (ROCHE, 1969, p. 169-170). Loraine Slomp
Giron e Vania Herédia (2007, p. 25) calculam que, já em
1920, o conjunto da “população colonial” teria representado
41,5% do total. E Isabel Gritti considera sub-representados nas
estatísticas os números de nascimentos de filhos de poloneses,
com que também pleiteia para esse grupo um número maior
que o indicado na fonte governamental (GRITTI, 2004, p. 80).1
Por tudo isso, mesmo que as deficiências estatísticas não
permitam afirmações categóricas sobre o montante da popu-
lação originária do processo de imigração e colonização aqui
abordado, é plausível dizer que, a partir de 1930, cerca de 40%
da população estadual passou a ser constituída por aqueles
que, até hoje, muitas vezes, são chamados de “imigrantes”,
ainda que a quase totalidade deles já tenha nascido brasileira.
Uma parte da opinião pública gaúcha possui uma visão
correta sobre a localização desses “imigrantes”. Mesmo assim,
convém apontar para algumas peculiaridades. Quem viajar
pelo interior do município de Bagé – um dos mais típicos da
campanha gaúcha – poderá deparar-se com a Colônia Nova,
um núcleo de gente com características físicas tipicamente
norte-europeias, que em parte se comunica por meio de uma
língua que não é a portuguesa, e que frequenta uma igreja cuja
denominação não é corriqueira – Menonita.

1
Uma discussão sobre as diferentes fontes estatísticas em torno da população de origem alemã encontra-se
em Schäffer (1994).

248
Releituras da História do Rio Grande do Sul

O mesmo viajante poderá encontrar, não muito distante


de Bagé, um município (Hulha Negra) no qual verá inscrições
do tipo “Açougue Becker”, mas quando se dirigir ao proprie-
tário na língua alemã não será compreendido, de forma al-
guma. E situações semelhantes são encontráveis por todo o
estado, denotando que os imigrantes e descendentes deixaram
suas marcas, ainda que essas marcas possam ter características
muito diferentes de lugar para lugar.
Mas não há dúvida de que aquilo que caracteriza o esta-
do são as grandes “manchas” geográficas decorrentes do pro-
cesso de colonização em pauta. Algumas dessas “manchas”
são mais visíveis e citadas por qualquer cidadão gaúcho, ou
até brasileiro, consultado por um destes institutos que pro-
curam estabelecer hierarquias de “marcas mais lembradas”.
Mas há outras “manchas” quase ignoradas por completo, pela
opinião pública.
Neste sentido, cabe, justamente, chamar a atenção para a
extensa área de colonização localizada ao Sul de Porto Alegre,
em uma área que, grosso modo, compõe um triângulo imagi-
nário, com vértices na Capital, em Pelotas e em Canguçu – área
que, mais próximo de Porto Alegre, abriga os citados núcleos
de colonização polonesa (Dom Feliciano e Mariana Pimentel),
mas também Sertão Santana, de colonização alemã.
O estabelecimento dos imigrantes e de seus descenden-
tes nesta região deu-se de uma forma um tanto diferente da
usual, pois não aconteceu em áreas de florestas, mas sim em
áreas já ocupadas por populações tradicionais do estado, de
origem portuguesa, açoriana, incluindo negros de origem es-
crava, índios, e indivíduos resultantes da miscigenação desses
vários grupos. Ainda que localmente ocorram casos em que os
“imigrantes” foram e continuam sendo maioria (em algumas
partes dos antigos municípios de São Lourenço do Sul e de
Pelotas), foram minoria no conjunto daquela região, tendo-se
“infiltrado” entre a população majoritária.

249
Simbolicamente, essa realidade pode ser ilustrada pelo
município de Canguçu, incluindo a própria sede, uma comuna
de ocupação “tradicional”, na qual se imiscuíram imigrantes
que acabaram de conferir-lhe uma situação socioeconômica e
humana que é típica das mais tradicionais áreas de imigração
– o município se apresenta como aquele que possui o maior
número de minifúndios de todo o Brasil.
Talvez por ser menos visível – isto é, menos lembrada
– como região de colonização centro-europeia, a história e a
configuração atual dessa área do sul ainda foram pouco estu-
dadas. Mas não há dúvida de que esse espaço geográfico apre-
senta algumas características peculiares, em uma comparação
com outras regiões típicas de colonização. Mesmo que se sin-
tam mudanças em tempos mais recentes, as colônias daquela
região nunca tiveram um desenvolvimento econômico com-
parável à boa parte das outras regiões. Possivelmente pela sua
localização em meio a populações de outras origens, também
a paisagem cultural é sui generis – por um lado, o cultivo da
língua original se perdeu em larga medida, mas, por outro, se
mantiveram traços “originários” muito interessantes.
Como esses “imigrantes” são, em grande parte, de ori-
gem alemã, muitos deles são luteranos e, justamente sob essa
perspectiva, conservam uma originalidade que não existe em
nenhuma outra região de colonização alemã – muitas comu-
nidades religiosas nunca se filiaram a instituições eclesiásticas,
isto é, a igrejas nacionais, mantendo-se como comunidades
“livres” ou “independentes”, que se autoadministram e con-
tratam, de forma totalmente autônoma, pastores. Inversamen-
te, chegaram a exercer, em determinado momento, influência
cultural-religiosa sobre populações pré-estabelecidas, a ponto
de ter-se constituído uma comunidade luterana composta de
negros, em Manoel do Rego, no interior de Canguçu.
É evidente que, sob outros aspectos, essa região de co-
lonização apresenta características usualmente consideradas

250
Releituras da História do Rio Grande do Sul

típicas, como a citada divisão da propriedade em minifún-


dios, o aspecto físico das pessoas, a diversidade religiosa, a
vida associativa.
Mas não há dúvida de que a região mais claramente
identificada com o processo de imigração e de colonização,
pela maioria da opinião pública gaúcha e brasileira, localiza-
-se na metade Norte do estado – abstraindo de algumas áreas
do Nordeste os assim chamados “campos de cima da serra”, o
restante desta parte teve algum grau de influência imigrantis-
ta. Esse fato levou a um rearranjo gradativo tanto da demo-
grafia quanto da economia e da própria política estadual. Em
pesquisa realizada aproximadamente 20 anos atrás, foi possí-
vel constatar que, ao estabelecer-se uma linha imaginária que
partisse da fronteira Norte do Município de São Borja e ter-
minasse na fronteira Sul do Município de Osório, ter-se-iam
duas “metades”, em uma correlação que foi se modificando, no
decorrer do tempo.
Em termos de superfície, a “metade” Sul é cerca de 20%
maior que a “metade” Norte, mas, em 1920, o número de ha-
bitantes das duas partes era mais ou menos igual. Já pelo censo
demográfico de 1940, o Norte apresentou uma população 50%
superior à do Sul, mostrando o intenso crescimento, duran-
te um período relativamente curto de 20 anos.2 O Sul ainda
apresentava uma densidade maior de pessoas com curso su-
perior (2.695 graduados contra 2.138), mas, do ponto de vista
econômico, a produção agrícola apontava para uma relação
favorável ao Norte, em um percentual de 65% contra 35%; na-
quilo que tange ao capital industrial investido, essa relação era
de 53% versus 47%; quanto à renda interna municipal de 52%
versus 48% – dados que indicam que o estado se encontrava
em um claro processo de deslocamento de seu peso demográ-
fico, mas, também, econômico para a “metade” Norte.

2
Tal dado torna mais plausível a hipótese de que, no mínimo, 40% da população gaúcha da época tenham
tido origem “imigrantista”.

251
Tal desenvolvimento material era mais difícil de ser con-
trolado pela vontade do que outros campos da atividade hu-
mana. Provavelmente, o fato de que a política pode ser mais
facilmente controlada e dirigida pelos atores dominantes fez
com que, desde o início da República, o número de deputa-
dos estaduais de sobrenome alemão e italiano não conseguisse
ultrapassar os 15%, mas, após a Segunda Guerra Mundial, os
sobrenomes desses dois grupos, juntos, atingiram 41%, nas
eleições de 1947, e 35%, nas de 1950. Isso indica que também
se registra uma ascensão política definitiva do mundo “colo-
nial”, a partir daquele momento (GERTZ, 1991, p. 74-76).
Com isso, a resposta à pergunta sobre o número e a lo-
calização dos imigrantes e de seus descendentes pode ser dada
com algum grau de segurança: desde aproximadamente 1930,
pode-se pressupor que, no mínimo, 40% da população gaúcha
são descendentes de alemães, italianos, poloneses, judeus e ja-
poneses, e eles se concentram, sobretudo, na metade Norte do
Rio Grande do Sul, apesar de que, evidentemente, nem todos
os habitantes dessa área são “imigrantes”.

3 Elogio da diferença

Alguns anos atrás, foi escrito um pequeno texto jorna-


lístico com o subtítulo deste item, no qual se tentou mostrar
que uma parte muito significativa da opinião pública gaúcha
e brasileira pensa que todos os “imigrantes” e todas as “colô-
nias” são iguais – iguais entre si, mas também iguais em sua
diferença em relação àquilo que é considerado tipicamente
gaúcho ou brasileiro.3
Inicia-se por este último ponto, que é utilizado tanto por
aqueles que se mostram simpáticos em relação ao projeto de
imigração e colonização, quanto por aqueles que o criticam.

3
Ver Gertz (2004).

252
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Aqueles que simpatizam com os resultados da imigração des-


tacam aspectos diferenciais considerados positivos em relação
àquilo que se imagina como sendo a realidade brasileira típi-
ca – os imigrantes colonizadores teriam trazido muitas coisas
boas, como a modernização econômica para um estado con-
siderado tradicional, o ethos do trabalho e a disposição para a
ordem, na vida cotidiana.
Os críticos negativos apontam para a importação de tra-
dições culturais que são consideradas diferentes daquilo que
se costuma ver como cultura “típica” do estado; os imigrantes
alemães – em grande parte protestantes – teriam rompido a
unidade religiosa; mas, sobretudo, em uma decisão político-
-administrativa errada, alemães, italianos e poloneses teriam
sido estabelecidos em núcleos coloniais etnicamente homo-
gêneos, cuja consequência teria sido a preservação das carac-
terísticas étnicas, culturais e religiosas, a não miscigenação e
o consequente desenvolvimento de “quistos étnicos” (deve-se
destacar que, na linguagem médica da época em que essa ex-
pressão surgiu, a palavra “quisto” estava intimamente associa-
da ao câncer).
As avaliações favoráveis e desfavoráveis serão retomadas
logo adiante. Antes disso, porém, se pretende falar de outro
tipo de diferença. Mesmo no período imperial, havia projetos
de colonização “oficiais” e “particulares”, mas, para a atualida-
de (entenda-se: depois de 1875), essa distinção adquire im-
portância maior, pois o resultado – ao menos em alguns casos
– será bastante diferente. Os republicanos gaúchos justamente
se preocuparam em evitar colônias homogêneas do ponto de
vista étnico e religioso. E duas colônias fundadas no início da
República simbolizam essa política: Ijuí e Guarani.
Ijuí é suficientemente conhecido para um público mini-
mamente informado. De Guarani, porém, deve-se dizer que
o território não é idêntico ao atual município de Guarani das
Missões. A velha colônia Guarani abrangia um espaço geográ-

253
fico mais amplo, que, grosso modo, se estendia da atual cidade
de Guarani das Missões até Santa Rosa.
Tanto Ijuí quanto Guarani se caracterizaram pela tenta-
tiva de estabelecimento de colonizadores das mais diferentes
origens étnicas e religiosas – incluindo aqueles que, na lin-
guagem da época, eram denominados “nacionais”, isto é, pes-
soas que não eram descendentes de nenhuma das principais
correntes imigratórias centro-europeias. No citado pequeno
texto intitulado Elogio da diferença, arrolou-se uma série de
nomes de colonizadores pioneiros extraídos de um livro edi-
tado por Frei Rovílio Costa (2004) sobre a colônia Guarani:
Gaudêncio da Silva, Johann Johansson Knckta, Saveli Bujaj,
Adolpho Capeletti, Gustav Schultz, Henri van Ecnov, Samsão
Formine Doyko, Nikifor Frondrolnk, Alessander Juntaxna,
Matts Mattsson Maaempão, Jacob Majer, Francisco Przjbsz.
Abstraindo do fato de que em alguns desses nomes foi
tentado um “aportuguesamento” e de que outros devem estar
escritos errados, essa nominata dá uma ideia da variedade de
origem étnico-nacional dos primeiros colonizadores de Gua-
rani. As diferenças religiosas, evidentemente, não são visíveis
pelos nomes, mas fato é que a quase totalidade das confissões
religiosas que um brasileiro mais ou menos informado pode-
ria imaginar, até uns 30 ou 40 anos atrás, estiveram represen-
tados nessa colônia.
Em Ijuí, aconteceu algo muito parecido. Em relação a
esta colônia, basta referir a conhecida FENADI – Feira Nacio-
nal das Etnias Diversificadas –, que é organizada com a parti-
cipação de mais de dez grupos diferentes.
Naquilo que tange à colônia de Guarani, cabe, ainda,
ressaltar que o centro urbano mais significativo de alguma
forma vinculado a esse projeto é a cidade de Santa Rosa. Tanto
por razões doutrinárias (o princípio positivista de separação
rígida entre os poderes temporal e espiritual), quanto por ra-
zões práticas decorrentes do número de confissões religiosas
com representação percentualmente importante, Santa Rosa

254
Releituras da História do Rio Grande do Sul

é, possivelmente, a única cidade desse porte, no Rio Grande


do Sul, em que não há qualquer igreja no entorno – nem pró-
ximo – da praça central.4 Todas as confissões religiosas, com
número razoável de membros, receberam terrenos, em algum
lugar da cidade, para construir sua igreja, incluindo os orto-
doxos russos, que possuem um templo próximo à antiga esta-
ção de trem.
A experiência da colônia Guarani transformou toda a
região do Grande Santa Rosa na área mais ecumênica do es-
tado – ali habitam os colonizadores das mais diferentes ori-
gens étnicas e das mais diferentes origens religiosas. Este é,
possivelmente, o motivo pelo qual a região também apresenta
um grande ecumenismo político, palpável no fato de que os
resultados eleitorais das últimas décadas mostram uma distri-
buição muito equitativa ao longo do espectro político, isto é,
os votos se distribuem de forma muito igual entre “direita” e
“esquerda”, sem predominância de nenhum grupo.
Claro, nenhuma explicação sobre o funcionamento da
sociedade é simples, motivo pelo qual cabe inserir, aqui, outro
aspecto da diversidade entre as “colônias”, decorrente da sua
expansão normal por meio das migrações internas. É prová-
vel que aos efeitos da diversidade étnica e religiosa da região
de Santa Rosa se alie outro fator para explicar o ecumenismo.
Todas essas “colônias” localizam-se na fronteira noroeste do
estado, portanto em uma área que representou o final da linha
de expansão sucessiva decorrente da migração dos excedentes
populacionais das assim chamadas “colônias velhas”, localiza-
das mais a Leste.
Considerando esse fato, torna-se plausível outra hipótese
sobre o caráter ecumênico-progressista da região noroeste – é
claro, deve-se alertar que não se trata de um “progressismo”

4
Sobre essa questão de igrejas na praça central, o projeto de colonização foi responsável por alguns outros
casos peculiares, no contexto gaúcho: em Candelária, na praça central, existe uma igreja luterana; em Ijuí,
há uma igreja católica, de um lado, e uma luterana, na mesma posição, do outro.

255
verbal, no sentido de que as populações costumassem dizer
que são especialmente “democráticas”, “modernas”, “avançadas”.
Elas próprias, pelo contrário, não têm qualquer consciência dis-
so, pois essa realidade só é perceptível ao observador externo,
com certo treinamento para fazer comparações, observando
diferenças de comportamento efetivo. Não há como compro-
var essa hipótese, ainda que ela pareça lógica.
Repetindo, além do ecumenismo étnico e religioso, é le-
gítimo conjecturar que o comportamento progressista da po-
pulação pode derivar, também, do longo processo de migra-
ção sucessiva. A lógica é a seguinte: conforme disse o grande
sociólogo Max Weber, por natureza, os homens gostariam de
viver como e onde sempre viveram. Acontece que o aumento
populacional e o esgotamento do solo pressionam as pessoas a
procurarem novos lugares para se estabelecer. Só que, de duas
pessoas que sofrem a mesma pressão social para sair do lugar
em que sempre viveram, uma pode decidir-se a ir, para tentar
melhorar de vida, e a outra permanecer, sem a preocupação
ou a ânsia de melhorar. Por essa lógica, os mais progressistas
teriam levantado acampamento para tentar melhorar de vida,
os mais tradicionais e acomodados teriam ficado – um proces-
so desses, repetindo-se por várias gerações, teria levado a uma
“seleção”, da qual resultaria uma região mais dinâmica, mais
progressista.
A necessária modéstia do historiador o obriga a admitir
que nem a lógica do ecumenismo nem a lógica da seleção pro-
gressiva pela migração explicam tudo. Isso fica claro quando
se fala de outro tipo de colonização, a colonização particular.
É que projetos de colonização também foram levados a efeito
por iniciativa privada, seja por meio de empresários indivi-
duais, seja por meio de empresas ou de organizações que não
possuíam “dono”. Por mais que os positivistas republicanos de-
saconselhassem esse tipo de colonização, pois tendia a consti-
tuir colônias homogêneas, na prática, não tomaram qualquer

256
Releituras da História do Rio Grande do Sul

medida incisiva para impedi-lo, de forma que se tem grandes


empreendimentos coloniais com esta última característica.
Dois exemplos, cujos inícios datam da virada do século XIX
para o XX, ilustram essa situação. Um é Panambi, o outro Cer-
ro Largo – ambos se localizam na região Noroeste do estado.
Panambi foi um projeto de empreendedor pessoal, que
estabeleceu uma série de condições e de empecilhos que fi-
zeram com que os compradores de lotes coloniais acabassem
apresentando algumas características comuns, étnico-cultu-
rais e religiosas. Isto conferiu certa uniformidade a essa co-
lônia, criando uma mística comunitária, que, evidentemente,
pode ter-se refletido tanto em uma mentalidade comum, mais
ou menos uniforme, quanto no tipo e no ritmo do desenvolvi-
mento socioeconômico.
Cerro Largo, por sua vez, não resultou da iniciativa de
uma pessoa, mas de uma instituição. Planejada e iniciada pela
associação de agricultores, uma entidade ecumênica do ponto
de vista religioso, passou, pouco depois, ao controle da União
Popular, uma organização católica, a qual exerceu forte con-
trole sobre os candidatos à compra de lotes – coisa que prati-
camente era impossível sem a apresentação de uma declaração
do padre da comunidade de origem, atestando bom compor-
tamento e militância religiosa. Certamente, não constitui exa-
gero atribuir a esta prática a constatação de que essa colônia
constitui um dos mais importantes “celeiros” de seminaristas
católicos do Rio Grande do Sul.
Esses poucos exemplos pretenderam mostrar que se há
alguns elementos que são praticamente universais em todas as
“colônias”, como uma estrutura agrária de pequena proprieda-
de, uma ascendência étnica centro-europeia de grande parte
da população, com o cultivo de algum tipo de identidade, com
a eventual preservação da língua dos antepassados, uma pre-
sença marcante das igrejas, há, também, diferenças não despre-
zíveis, decorrentes da história peculiar de cada colônia, da fase

257
em que foram instaladas, da composição humana. Nem tudo é
tão igual quanto o senso comum, muitas vezes, imagina.

4 As populações “tradicionais” e os “colonos”

É óbvio que uma parcela significativa da população que


já se encontrava no estado viu com bons olhos a chegada de
imigrantes, na expectativa de que viessem a dar uma contri-
buição importante para o desenvolvimento econômico e hu-
mano. E essa perspectiva continua presente até os dias de hoje.
Mas é óbvio que elogios, simpatia, convivência harmônica não
despertam tanto a atenção nem recebem tantas referências
na opinião pública quanto eventuais antipatias, atritos ou até
conflitos abertos. Por essa razão, se farão aqui algumas obser-
vações sobre esta segunda forma de encarar as “colônias”.
Não há qualquer dúvida de que, em relação aos cinco
grupos de colonizadores citados aqui (alemães, italianos, ja-
poneses, judeus, poloneses), ocorreram, em algum momen-
to da história brasileira, manifestações desabonadoras. Essas
manifestações podem ter variado de intensidade, de grupo
para grupo e de período para período, mas possuem uma tra-
dição que não se restringe ao estado do Rio Grande do Sul. Tal
fato, associado a eventuais circunstâncias agravantes, levou a
alguns atritos e até a conflitos abertos.
E havia uma acusação comum a praticamente todos
eles – a de terem formado os já citados “quistos étnicos”. To-
dos os países que se constituíram a partir de processos de
colonização cultivam algum grau de expectativa em relação
a imigrantes no sentido de que, tão logo se estabeleçam, se
desfaçam de suas características culturais específicas, e ado-
tem aquelas características que são vistas como típicas do
país que os acolheu. Mas o fato de que, no Rio Grande do
Sul, tal prática não foi seguida à risca, por causa do estabe-
lecimento da maioria das “colônias” em áreas em que havia

258
Releituras da História do Rio Grande do Sul

relativamente poucos habitantes “tradicionais”, fez com que


os processos que os sociólogos de determinada época cha-
mavam de “assimilação” ou “aculturação” fossem mais lentos.
Muitas vezes, preservou-se a língua, os casamentos se deram
entre membros do mesmo grupo, até houve casos em que os
já estabelecidos foram “assimilados” ou “aculturados” aos
recém-chegados – o caso mais folclórico é o de negros que
passaram a falar a língua dos imigrantes e até a identificar-se
como pertencentes à respectiva etnia.
Claro, mais uma vez, essas constatações não são válidas,
de forma linear, para todos os cinco grupos. Opiniões desabo-
nadoras sobre os judeus, por exemplo, são milenares e estão
difundidas em todo o Ocidente, não só no Brasil.
Naquilo que tange aos poloneses, a ênfase não recaía
tanto sobre um suposto “enquistamento étnico”, mas, muito
mais, sobre uma suposta má qualidade humana dos imigran-
tes e de seus descendentes; eram vistos como preguiçosos,
beberrões, relaxados, ladrões. Se os judeus podiam ser vistos
como perigosos justamente pela sua astúcia em “apunhalar a
nacionalidade pelas costas”, a imigração polonesa era encara-
da como prejudicial, porque os imigrantes e seus descenden-
tes eram vistos como pessoas de segunda categoria.
Os perigos apontados como decorrentes do suposto “en-
quistamento” referiam-se, sobretudo, aos três outros grupos
de imigrantes e descendentes – alemães, italianos e japoneses.
Mesmo que em relação aos dois primeiros as prevenções te-
nham vindo desde o século XIX, com uma primeira fase mais
aguda durante a Primeira Guerra Mundial, a situação che-
gou a um auge durante a Segunda Guerra Mundial, quando
as acusações sobre as supostas dificuldades de constituir uma
nação una e uniforme se juntaram às do perigo de invasão por
parte de potências estrangeiras, com a possível ajuda dos seus
“súditos” aqui estabelecidos, os quais funcionariam como
“quinta-coluna” para preparar o caminho às tropas invasoras.

259
Tal situação levou a confrontos físicos, no contexto da
Segunda Guerra Mundial, os quais deram origem a um clima
de estranhamento que perdurou por muitos anos – ao menos
naquilo que tange a alemães e italianos, mais seus respectivos
descendentes, já que esses eram os dois grupos numericamen-
te mais presentes. Essa situação, a rigor, só mudou quando,
em 1974/1975, o governo do estado promoveu o “biênio da
imigração e colonização”, com homenagens oficiais pela pas-
sagem dos 150 anos da imigração alemã e 100 anos da imigra-
ção italiana.
Mesmo que as homenagens mais enfáticas fossem feitas
em relação a esses dois grupos, o fato de que o próprio gover-
no estava comemorando a presença dos “imigrantes” refletiu
sobre o ânimo de praticamente todas as “etnias”, e, na sequên-
cia, aconteceu algo que se poderia chamar de “re-etnização”.
Como a interdição fora levantada pelo próprio poder público,
o cultivo da identidade e a manifestação da autoestima pas-
saram a ser vistos como plenamente liberados. Entre muitos
outros reflexos dessa nova situação, a mais visível, certamente,
são as festas populares.
Mais uma vez, há diferenças entre os grupos – as “co-
lônias” alemã e polonesa festejam suas Oktoberfest e Polfest;
as grandes festas da “colônia” italiana referem-se mais à vida
econômica (Festa da Uva, do Vinho, do Queijo); mas também
houve a retomada de manifestações populares tradicionais,
como o “filó”. Além disso, aconteceu uma revalorização da
arquitetura considerada representativa dos grupos imigrantes
– nas regiões de colonização alemã, as casas de enxaimel; nas
de colonização italiana, as de pedra. Tanto as festas quanto a
arquitetura e outros elementos culturais foram aproveitados
para promover o turismo nas respectivas regiões.
De uma maneira geral, nota-se que a população do es-
tado, como um todo, não faz restrições a essas práticas étnico-
-culturais. Pelo contrário, faz turismo nas respectivas regiões e

260
Releituras da História do Rio Grande do Sul

se diverte nas festas. Mas não há unanimidade a respeito. O fato


de que, desde o final do regime militar, vem acontecendo alguns
episódios classificados como “neonazistas” fez com que a lógica
da antiga tese do “enquistamento” tenha, novamente, ganho al-
guns adeptos na opinião pública.
Mesmo que não haja indícios concretos de que os des-
cendentes dos imigrantes sejam os responsáveis pelos atos
classificados de “neonazistas”, até autoridades atribuem, pu-
blicamente, a responsabilidade aos “imigrantes”. Assim, um
delegado de polícia que costuma ser apresentado como expert
no combate a “neonazistas” disse, em abril de 2011, a uma
repórter que o entrevistou a respeito do assunto: “A senhora
lembra o seguinte: o sul do Brasil é basicamente originário de
colonização alemã, italiana, polonesa” (BARROS, 2011).
Tal observação, feita por um agente do estado, obvia-
mente, lançou uma grave suspeita sobre os três grupos. Isso
sem falar de muitas outras observações, no mesmo sentido,
espalhadas pelos meios de comunicação. Não há pesquisas sé-
rias para aferir que percentual da população gaúcha compar-
tilha desta última opinião em relação aos “imigrantes”. Mas o
fato de que opiniões desse tipo circulam – até são divulgadas
por autoridades – mostra que o projeto imigrantista e seus re-
sultados ainda não estão totalmente assimilados.

5 Os “colonos” e o Rio Grande do Sul

Independente das opiniões de parte da opinião pública,


as comunidades resultantes do projeto de imigração apresen-
tam algumas características decorrentes, não tanto da origem
da população, mas muito mais da estrutura social que ali se
criou. Se é verdade que o desenvolvimento econômico acabou
levando a uma grande diferenciação social, entre os mais ricos
e os mais pobres, naquelas “colônias” que se transformaram
em grandes centros industriais, também é verdade que duran-

261
te muitos anos essas comunidades se caracterizaram por uma
relativa igualdade social, a qual ainda sobrevive em muitas
regiões que não experimentaram um processo acentuado de
industrialização.
E essa igualdade relativa criou, nessas comunidades,
tradições democráticas que sobrevivem até hoje. Nas listagens
com os Índices de Desenvolvimento Humano dos municípios
brasileiros, essas comunidades aparecem no topo. Da mesma
forma, chama atenção um dado sobre a participação feminina
na política dessas comunidades. Os dados numéricos sobre as
mulheres-prefeitas que o Rio Grande do Sul teve, desde 1982,
indicam uma clara predominância dos sobrenomes de origem
alemã, italiana e polonesa, ou, ainda, de mulheres com outro
sobrenome em municípios típicos de colonização com um dos
três grupos.
Em um estudo sobre as vereadoras eleitas em 1992 e
1996, constatou-se que, na primeira data, 57% tinham sobre-
nomes alemães e/ou italianos, e, na segunda, esse percentual
era de 61%. Se somados os sobrenomes poloneses, certamente
seriam mais de 70% de sobrenomes “imigrantes”. A explica-
ção, mais uma vez, está na estrutura familiar relativamente de-
mocrática, permitindo o envolvimento das mulheres.
Há vários anos, a Confederação Nacional dos Municí-
pios realiza uma pesquisa na qual são calculados os níveis de
atendimento proporcionado pelas administrações municipais
brasileiras para seus cidadãos. A lista elaborada a partir dos
resultados desse cálculo é encimada por aqueles municípios
que atendem ao maior número possível de cidadãos, da forma
mais equitativa possível, com os recursos existentes, isto é, os
impostos arrecadados. E essa lista registra, no seu topo, exa-
tamente uma grande quantidade de municípios “coloniais” do
Rio Grande do Sul. Para exemplificar – São José do Hortêncio,
no Vale do Rio Caí, sustentou o primeiro lugar durante quase
toda a primeira década do século XXI.

262
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Entre as supostas mazelas apontadas pelos críticos do


projeto imigrantista, também está o racismo da população –
alegadamente em níveis muito superiores do que no conjunto
da população gaúcha. Da mesma forma que a acusação refe-
rente às origens do “neonazismo”, também esta está fundamen-
tada em dados muito frágeis, ou, até inexistentes. No mínimo,
naquilo que tange aos Índices de Desenvolvimento Humano da
população negra nesses municípios, eles não apontam para nú-
meros mais baixos que em outras regiões. Mesmo que esse tema
ainda não esteja suficientemente investigado para permitir con-
clusões definitivas, alguns estudos apontam para o fato de que
os próprios negros não costumam sentir maiores níveis de pre-
conceito e de desconforto que em outros lugares do estado.
Para concluir, o projeto de colonização com imigrantes
alemães, iniciado em 1824, e ampliado, a partir da década de
1870, com imigrantes de outras nacionalidades, trouxe trans-
formações significativas para as Geografias Física e Humana
do Rio Grande do Sul. Os resultados ainda são controversos.
Mas é certo que nenhum grupo pensa em abandonar o esta-
do, motivo pelo qual essa geografia humana não sofrerá mu-
danças radicais nas próximas gerações. E não há motivo para
acreditar que a convivência harmoniosa – apenas perturbada
por pequenos incidentes causados por irresponsáveis – não
possa melhorar ainda mais, no futuro, por meio de um melhor
conhecimento recíproco.

Referências

BARROS, Ana Claudia. Os neonazistas são bem mais que meia dúzia,
afirma delegado. In: Terra Magazine. 11 de abril de 2011. Disponível em:
<http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5070131-EI6594,00-Os+
neonazistas+sao+bem+mais+que+meia+duzia+afirma+delegado.html>.
Acesso em 30 jul. 2011.

263
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no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Federação Israelita do Rio Grande do
Sul, 2004.

264
Releituras da História do Rio Grande do Sul

O COMEÇO DO TRADICIONALISMO GAÚCHO


* Paulo Roberto de Fraga Cirne

Século dezenove e, no Rio Grande do Sul, o gaúcho já


sentia forte atração que sua querência exercia sobre ele. Este
sentimento de apego ao seu torrão natal, este telurismo con-
gênito, vinha certamente de uma série de fatores. Eram alguns
desses fatores: a participação nas constantes lutas mantidas
para a demarcação e manutenção de suas fronteiras, diante
de ameaça de interesses alienígenas de além-mar; a sistemá-
tica de ocupação do território da então “terra de ninguém”,
esforço que mais tarde seria reconhecido, solucionando os li-
mites fronteiriços; a liberdade de que gozavam os habitantes
deste extremo Sul, com os seus horizontes infindos e campos
imensos, onde patrão e peão esmeravam-se em suas lides do
dia-a-dia, procurando um exceder o outro, mas que culmi-
nava sempre na confraternização por meio da roda de mate,
grande elo afetivo e real de amizade e compreensão mútuas
(MARIANTE, 1976, p. 5-6).

1 Antecedentes

Importante para o surgimento do Tradicionalismo gaú-


cho foi o papel de entidades que valorizaram este amor à que-
rência e que, portanto, começou a tomar forma na metade do
século XIX, no Rio Grande do Sul.

1.1 Sociedade Sul-rio-grandense

Em 1851, no Rio de Janeiro, o porto-alegrense, professor


e historiador Antônio Álvares Pereira Coruja fundou a “Socie-

* Graduado em História. Pós-graduado em História Contemporânea. Pós-graduando em Metodologia de


Ensino de História. Integrante do Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG.

265
dade Sul-rio-grandense” para reunir a gauchada saudosa da
querência. Esta entidade fazia reviver, na capital do Império,
os costumes típicos do Rio Grande (SAVARIS, 2008, p. 177).

1.2 Sociedade Partenon Literário

No Rio Grande do Sul, a grande arrancada foi em Porto


Alegre, com a fundação da Sociedade Partenon Literário em
junho de 1868, por um grupo de intelectuais liderados pelo
abolicionista e republicano Apolinário Porto Alegre. Por meio
de sua revista, conferências, artigos em jornais e livros, seus
associados proclamavam telurismo e amor a esta terra que,
apesar de tão nova, era muito sofrida. O regionalismo come-
çava a tomar formas, a adquirir personalidade e a se agigantar.
As primeiras obras literárias versando sobre assuntos
regionais partiram do trabalho dos integrantes desta pioneira
agremiação e precursora das origens do Tradicionalismo. O
trabalho dos membros dessa sociedade literária foi tão impor-
tante, que ganhou a simpatia até de quem vivia nas cidades,
e que não tinham raízes campeiras (MARIANTE, 1976, p.6).

1.3 Grêmio Gaúcho

João Cezimbra Jacques, major do exército nacional e


nascido em Santa Maria em novembro de 1849, juntamente
com outros importantes nomes da época, fundou, em Porto
Alegre, a 22 de maio de 1898, o Grêmio Gaúcho. Esta enti-
dade, voltada às coisas da tradição sul-rio-grandense, marcou
sua atuação por meio de festas memoráveis, desfiles de cava-
larianos à gaúcha, conferências, palestras e outras promoções
do gênero.
Sob a liderança de Cezimbra Jacques, juntaram-se ho-
mens de todas as condições sociais, aflorando, através de ter-
túlias de afetividades pelas coisas da terra, momentos de exal-
tação cívico-patriótica e imenso amor à terra. Pode-se dizer

266
Releituras da História do Rio Grande do Sul

que essa arrancada do culto das tradições gaúchas, na épo-


ca reconhecida e prestigiada por altas autoridades do estado,
foi a pedra fundamental do que mais tarde seria identificado
como “Tradicionalismo gaúcho” (MARIANTE, 1976, p. 8-9).

1.4 Outros clubes

Além do Grêmio Gaúcho, antecederam a fundação do


Centro de Tradições Gaúchas (CTG) pioneiro as seguintes
entidades: “União Gaúcha (10.09.1899, em Pelotas), Centro
Gaúcho (16.09.1899, em Bagé), Grêmio Gaúcho (12.10.1901,
em Santa Maria), Sociedade Gaúcha Lomba-grandense
(31.01.1938, em Novo Hamburgo1) e Clube Farroupilha
(19.10.1943, em Ijuí)” (MARIANTE, 1976, p. 23). Atualmente,
sabe-se que mais entidades existiam além das citadas.

2 Início do Movimento Tradicionalista organizado

No final da década de 1940, a sobrevivência da cultura


rio-grandense estava ameaçada pelo modismo ditado pelos es-
trangeirismos. Vestir-se como campeiro e andar na cidade era
motivo de gozação. Os veículos de comunicação de massa sa-
turavam-se de tanto estrangeirismo. Quase ninguém pensava
em tradições rio-grandenses, pois “velharia” não tinha valor.
Poucos registros de fatos do Instituto Histórico; lembran-
ças dos hábitos campestres levantados por Cezimbra Jacques;
referências aos “Clubes Gaúchos” do passado e poucos escrito-
res regionalistas. Mais nada. Fora isto tudo, juntava-se apenas a
Brigada Militar, instituição que reverenciava a figura de Bento
Gonçalves junto ao Monumento no dia 20 de setembro. Em
resumo: naquela época, parece que o próprio povo gaúcho ig-
norava o seu patrimônio histórico cultural.

1
Lomba Grande, então distrito de São Leopoldo.

267
2.1 Colégio Júlio de Castilhos

No mês de agosto de 1947, alguns estudantes do Colé-


gio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, liderados por João
Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, fundaram o Departamento de
Tradições Gaúchas, junto ao Grêmio Estudantil. O Departa-
mento destinava-se a
estimular o desenvolvimento, por meio de reuniões
culturais, sociais e recreativas, da belíssima tra-
dição de nossos heróis do passado, incentivando
a nossa juventude a que eleve sempre, e cada vez
mais alto, a chama do amor à Pátria.

2.1.1 Departamento de Tradições Gaúchas


O Departamento de Tradições Gaúchas era um movi-
mento estudantil de diversas camadas sociais e seguimentos
étnicos, que se levantava em favor das tradições. O objetivo
era achar uma trilha diante da perda da fisionomia regional;
combater a descaracterização; “reagauchar” o Rio Grande. Em
suma: procurava a identidade da terra gaúcha.
Aprovada a ideia, o Grêmio Estudantil do “Julinho” en-
viou, à Imprensa da Capital, um comunicado, cujo primeiro
parágrafo dizia:
O Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, sentindo a
necessidade da perpetuação das tradições gaúchas,
fundou aliando aos seus já numerosos departa-
mentos o das Tradições Gaúchas, procurando assim
preservar este legado imenso dos nossos antepassa-
dos, constituído do amor à liberdade, grandeza de
convicções representadas pelo sentimento de igual-
dade e humanidade (CÔRTES, 1994, p. 43).

2.1.2 Ronda Gaúcha


No Departamento de Tradições Gaúchas, decidiram
realizar a “1ª Ronda Gaúcha”, que logo passaria a ser chamada

268
Releituras da História do Rio Grande do Sul

de “Ronda Crioula”. Uma programação que iniciaria no dia 07


de setembro, estendendo-se até o dia 20. O programa previa o
acendimento de um candeeiro crioulo, o primeiro baile gau-
chesco com concursos de danças e trajes, palestras, concurso
literário e uma série de momentos equestres.
O baile foi um sucesso, realizado no Teresópolis Tênis
Clube no dia 20 de setembro, com muita gente trajando à gaú-
cha, inclusive os componentes da banda que animou a festa.
A Ronda Crioula foi, na verdade, a precursora da Sema-
na Farroupilha, oficializada somente 17 anos mais tarde, por
meio da Lei Estadual nº 4.850, de 11 de dezembro de 1964.
Paixão Côrtes (1994, p. 53), que dirigia o Departamento
de Tradições Gaúchas, relata o pedido que fez ao Major Vignoli,
no que foi de pronto autorizado:
E foi assim, na Capital Gaúcha, diante do Major de
Exército Darcy Vignoli, Presidente da Liga de De-
fesa Nacional do Rio Grande do Sul, que dissemos,
de viva voz, do desejo de retirar, ao final do dia
sete, uma centelha do fogo simbólico e transportá-
-la até o Colégio Júlio de Castilhos, onde seria colo-
cada num “candieiro” crioulo típico, a representar
um altar-cívico.

Isto seria parte das comemorações da Ronda Gaúcha.


Toda essa programação, em 1947, foi a semente que culmina-
ria, no ano seguinte, na criação do “35” CTG.

2.1.3 Restos Mortais de David Canabarro

Naquele ano de 1947, a Liga de Defesa Nacional, presi-


dida pelo Major Darcy Vignoli, incluiu, na programação alu-
siva à Semana da Pátria, a trasladação dos restos mortais do
General David Canabarro, de Sant’Ana do Livramento para
o Panteão da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, em
Porto Alegre.
Para um acontecimento tão importante, entendeu o Ma-
jor Vignoli que era do maior significado cívico se a guarda

269
de honra, para fazer as alas em homenagem ao grande herói,
fosse composta por uma representação gaúcha, que traduzisse
a alma da terra, a essência farroupilha. Pessoas que “lembras-
sem os tempos gloriosos dos nossos estancieiros e suas peona-
das, que enfrentaram durante 10 anos todo o Império”.
Diante da inexistência de uma representação com tais
qualidades, o presidente da Liga então solicitou ao Departa-
mento de Tradições do Julinho um piquete de gaúchos para
montar guarda à urna com os restos mortais do grande herói
farrapo.

2.1.4 Grupo dos Oito

Paixão Côrtes prontamente atendeu ao Presidente da


Liga, aceitando o desafio. Ligeirito conseguiu, por empréstimo,
encilha completa para 14 cavaleiros. Os cavalos foram cedidos
pelo Exército, no Regimento Osório. A grande dificuldade foi
conseguir, no Colégio Júlio de Castilhos, adeptos para esta
empreitada, uma vez que ninguém queria passar o “vexame”
de aparecer a cavalo na cidade. Apenas três alunos aceitaram
participar e, com muito custo, fora do colégio foi conseguido
mais cinco pessoas, totalizando oito componentes.
Estava formado o Piquete da Tradição, grupo que pas-
saria para a história no 1º Congresso realizado em julho de
1954 em Santa Maria/RS, quando foi batizado como o “Gru-
po dos Oito”, assim formado: João Carlos D’Ávila Paixão Côr-
tes, Antônio João Sá de Siqueira, Cilço Campos, Cyro Dias da
Costa, Cyro Dutra Ferreira, Fernando Machado Vieira, João
Machado Vieira e Orlando Jorge Degrazia.
No dia 05 de setembro pela manhã, um jipe do Exército
conduziu os restos mortais de David Canabarro do aeroporto
até a Praça da Alfândega, no Centro de Porto Alegre. O gru-
po de cavaleiros acompanhou a viatura do Exército da Rua da
Conceição, esquina com a Avenida Farrapos, até a Praça da

270
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Alfândega, junto ao Monumento ao General Osório, onde foi


realizada uma cerimônia. Da praça, seguiu até o Panteão da
Santa Casa, onde foi encerrada a solenidade (CÔRTES, 1994,
p. 58-60).

2.1.5 O Nascimento da Chama Crioula

Próximo da meia-noite do dia 07 de setembro de 1947,


os jovens João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, Cyro Dutra Fer-
reira e Fernando Machado Vieira, devidamente montados,
aguardavam junto à Pira. Naquela época, a Pira da Pátria fica-
va no Parque da Redenção, nas imediações da Av. João Pessoa,
esquina com a Rua Luiz Afonso, e o Colégio Júlio de Castilhos
localizava-se onde hoje é a Faculdade de Economia da URGS,
na Av. João Pessoa, quase esquina com a Rua André da Rocha.
Chegando o momento da extinção do Fogo da Pátria,
foram chamados para a retirada da centelha, conforme ha-
viam acordado. Paixão Côrtes sobe ao topo da Pira com um
archote improvisado, feito de estopa embebida em querosene
presa à ponta de um cabo de vassoura e solenemente acende
aquela que seria a primeira Chama Crioula. Dali, os três cava-
leiros conduziram a galopito até o “Julinho”, onde acenderam
o Candeeiro Crioulo (CÔRTES, 1994, p. 84-85).

2.2 O “35” Centro de Tradições Gaúchas

Após o acompanhamento aos restos mortais de David


Canabarro, pelo Grupo dos Oito, os integrantes almoçaram
juntos em uma das poucas churrascarias que existia à época,
na Capital. Combinaram, então, de reunirem-se novamente
em um sábado à tarde, na casa de Paixão Côrtes. Assim reali-
zaram várias reuniões.
O entrosamento do grupo ganhou força com a partici-
pação de Luiz Carlos Barbosa Lessa, na época também aluno
do Colégio Júlio de Castilhos. Lessa começou a angariar assi-

271
naturas dos interessados na fundação do que chamava “Clube
de Tradição Gaúcha”.
Outro importante agregado ao grupo foi Glaucus Sarai-
va da Fonseca, que, juntamente com Barbosa Lessa, articulava
reuniões para a unificação de ideias, que tinham a finalidade
de defender as tradições. Foram chegando outros companhei-
ros e o local ficou pequeno.
Em dezembro de 1947, as reuniões passaram para a casa
dos pais de José Laerte Vieira Simch, na Rua Duque de Caxias,
nº 707, centro de Porto Alegre. Ganhava força a ideia de criar
uma entidade em que se pudesse cultivar e preservar as tradi-
ções gaúchas. Todos mantinham o propósito de levar adiante
a iniciativa (CÔRTES, 1994, p. 131).

2.2.1 A fundação prévia

A Ata nº 1, de 03 de janeiro de 1948, da reunião rea-


lizada no galpão da Associação Rio-grandense de Imprensa,
teve como condutor dos trabalhos Hélio José Moro, auxiliado
pelos secretários João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes e João Ma-
chado Vieira. Nessa reunião, ficou definida a denominação da
entidade: “35 - Centro de Tradições Gaúchas”, autoria de Luiz
Carlos Barbosa Lessa com pequena modificação sugerida por
Luiz Osório Aguilar Chagas.

2.2.2 A fundação do CTG

Passaram-se apenas sete meses da realização da Ronda


Gaúcha e este grupo de pioneiros (só homens, pois mulher
não participava) finalmente funda, a 24 de abril de 1948, o
“35” Centro de Tradições Gaúchas, no porão da casa da famí-
lia Simch. A predominância dos fundadores era de gaúchos
campeiros, daí a organização da entidade, partir da ideia de
uma estância rural (CÔRTES, 1994, p. 134-135).

272
Releituras da História do Rio Grande do Sul

2.2.3 Os fundadores

Segundo Ferreira (1987, p. 37), assinaram a Ata de Fun-


dação, na seguinte ordem:
l - Glaucus Saraiva da Fonseca, 2 - Luiz Carlos
Barbosa Lessa, 3 - Antônio Cândido da Silva Neto,
4 - Francisco Gomes de Oliveira, 5 - Luiz Osório
Aguilar Chagas, 6 - Carlos Raphael Godinho Cor-
rêa, 7 - Dirceu Tito Lopes, 8 - Waldomiro de Almei-
da Sousa, 9 - Hélio José Moro, 10 - Luiz Carlos Cor-
rêa da Silva, 11 - Hélio Gomes Leal, 12 - José Laerte
Vieira Simch, 13 - Ney Ortiz Borges, 14 - Guilher-
me Flores da Cunha Corrêa, 15 - Wilmar Winck
de Souza, 16 - Paulo Emílio G. Corrêa, 17 - Paulo
Caminha, 18 - Robes Pinto da Silva, 19 - Venerando
Vargas da Silveira, 20 - Flávio Silveira Damm,
21 - João Emílio Marroni Dutra, 22 - Valdez Corrêa
e 23 - Flávio Ramos.

Posteriormente, por terem participado das reuniões que


antecederam a fundação, mais 39 integrantes foram conside-
rados, totalizando 62 fundadores.

3 A expansão do Tradicionalismo
Com a proliferação das entidades tradicionalistas por
diversas localidades do Rio Grande do Sul,2 na cidade de Pelo-
tas, Fernando Augusto Brockstedt, Ubirajara Timm e Oswal-
do Lessa da Rosa convocaram uma Assembleia Tradicionalis-
ta, que se realizou em dezembro de 1952, com a presença de
representantes de sete Centros de Tradições Gaúchas. Ficou,
então, aprovada a ideia de realização de um Congresso e da
criação de uma federação de entidades tradicionalistas do Rio
Grande do Sul.

2
Erechim, Bagé, Cachoeira do Sul, Piratini, Soledade, São Lourenço do Sul, Farroupilha, Rio Grande, Pi-
nheiro Machado, Porto Alegre, Quaraí, Cacequi, Júlio de Castilhos, Rio Pardo, Esteio, São Gabriel, Canela,
São Francisco de Assis, Lagoa Vermelha, Canoas, Santo Ângelo e Caxias do Sul.

273
3.1 O primeiro Congresso

Fernando Augusto Brockstedt começou a trabalhar na


elaboração do anteprojeto de Estatuto dessa Federação e dis-
tribuiu cópias aos CTGs que participaram da assembleia, para
análise, em março de 1953. Era o passo inicial para o lº Con-
gresso, bem como da criação do Movimento Tradicionalista
Gaúcho (MTG), que se concretizaria somente 14 anos depois.
Rapidamente espalhou-se, através da imprensa para
todo o estado, a realização do pretendido Congresso. O jor-
nalista Sady Scalante, da União Gaúcha, transferindo-se de
Pelotas para Porto Alegre, passou a liderar os preparativos.
Foi programada para novembro de 1953, em Rio Pardo, uma
segunda Assembleia Tradicionalista, realizada no CTG Fogão
Gaúcho Rio-pardense.
Nessa assembleia, ficou decidido que seria em Santa Ma-
ria, no Ponche Verde CTG, com o apoio do CTG Mate Amar-
go (de Rio Grande), CTG Sepé Tiaraju (de São Lourenço do
Sul) e CTG Lalau Miranda (de Passo Fundo). Como organiza-
dor, a União Gaúcha de Pelotas.
No início de 1954, ficou assim definida a comissão: Ma-
noelito de Ornellas e Walter Spalding (“35” CTG), Sady Sca-
lante e Luiz Alberto Ibarra (União Gaúcha) e Emílio Rodrigues
(Ponche Verde CTG). De imediato, marcaram a data do Con-
gresso para o período de 02 a 04 de julho (CIRNE, 2006, p.33).

3.2 A ideia da Federação

Em 1954, já no 1º Congresso Tradicionalista (Santa Ma-


ria/RS), Fernando Augusto Brockstedt, da União Gaúcha (Pe-
lotas/RS), apresentou proposta de criação da “Federação das
Entidades Tradicionalistas do RS”, denominada FENTRA.
No 2º Congresso em 1955 (Rio Grande/RS), duas propos-
tas de criação de Federação foram apreciadas: uma de Learsi

274
Releituras da História do Rio Grande do Sul

Corrêa da Silva, do CTG Mate Amargo, entidade anfitriã, e a


outra de Fernando Augusto Brockstedt, da União Gaúcha (Pe-
lotas/RS), que reapresentava a proposta do 1º Congresso.
Os relatores acharam complicada a ideia, mas ficou
aprovada a formação de uma comissão de estudo da matéria
para o próximo Congresso.

3.3 Criação do Conselho Coordenador

Sugerida, pelo então Deputado Getúlio Marcantonio, a


criação de um órgão coordenador, na 1ª Sessão Plenária do 6º
Congresso. Dia 18 de dezembro de 1959, foi nomeada a seguinte
Comissão para tratar do assunto: Getúlio Marcantonio, Delcy
Dornelles, Carlos Galvão Krebs, Apparício Silva Rillo, Vasco
Mello Leiria, Jorge Moojen de Queiroz e Fernando Augusto
Brockstedt. Em seu parecer, a Comissão julgou indispensável e
propôs a criação do Conselho do Movimento Tradicionalista,
para funcionamento experimental. O parecer sugeriu, ainda, a
divisão do estado em 12 zonas fisiogeográficas, denominadas
Zonas Tradicionalistas (atualmente, Regiões Tradicionalistas).
Era a institucionalização do Movimento Tradicionalista, mas a
Federação ainda ficaria para depois.
Na segunda reunião do Conselho, realizada dia 28 de ja-
neiro de 1960, em uma sugestão por escrito do Secretário José
Paim Brittes, foi aprovado o nome Conselho Coordenador do
Movimento Tradicionalista.
Como o Conselho era em caráter experimental, no 7º
Congresso, realizado em outubro de 1960 em Santo Ângelo/
RS, Getúlio Marcantonio apresentou Moção de torná-lo defi-
nitivo e sugeriu que uma comissão analisasse o Estatuto. Foi
nomeada a seguinte Comissão: Vasco Mello Leiria (Relator),
Wladimir Cunha, Jayme Caetano Braun, Waldomiro de Mou-
ra Leiria e Getúlio Marcantonio. Na 5ª Sessão Plenária, o con-
selho foi totalmente aprovado (CIRNE, 2006, p. 53).

275
3.4 Fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho

Finalmente, no 12º Congresso Tradicionalista, realizado


em 1966, em Tramandaí, no dia 28 de outubro, foi fundado o
MTG, como entidade federativa com personalidade jurídica.

3.5 Fundação Cultural Gaúcha

No 25º Congresso Tradicionalista Gaúcho, realizado na


cidade de São Luiz Gonzaga, de 10 a 13 de janeiro de 1980,
Rodi Pedro Borghetti, na época Presidente do MTG, findan-
do seu primeiro mandato, apresentou proposta de criação de
uma Fundação.
Essa Fundação teria como finalidade específica a de su-
prir as demandas econômico-financeiras. Seria o braço execu-
tivo do MTG, dando-lhe respaldo e possibilitando atuar nas
várias faixas de atividades ligadas ao Tradicionalismo, à cul-
tura e às artes nativas; responsável pela realização prática dos
eventos. A proposta foi aprovada por unanimidade na Tercei-
ra Sessão Plenária, dia 12 de janeiro.

3.6 Fundação da Confederação Brasileira da Tradição


Gaúcha

Com a expansão do Tradicionalismo e o surgimento de


Centros de Tradições Gaúchas em diversos estados do Brasil,
líderes tradicionalistas sentiram a necessidade de unirem-se e
formar um bloco uníssono, respeitadas as peculiaridades de
cada estado.
Assim, a 24 de maio de 1987, reuniram-se tradicionalis-
tas do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo, na cidade
paranaense de Ponta Grossa, e fundaram a Confederação Bra-
sileira da Tradição Gaúcha (CBTG). Tendo, entre os objetivos,
reunir as Federações já formadas e auxiliar os CTGs existentes
em grande número nos demais estados para que se organizem

276
Releituras da História do Rio Grande do Sul

em Federações e, posteriormente, integrem essa Confedera-


ção. A 1ª gestão da CBTG (1987/1989) foi presidida pelo sau-
doso Jacob Momm Filho (CALDERAN, 2010, p.70- 74).

3.7 Teses mais importantes

Nestes 57 anos, contados a partir da realização do 1º Con-


gresso, trabalhos importantíssimos foram aprovados, ditando
a filosofia do movimento e direcionando os caminhos para o
culto às tradições gaúchas, dos quais se destacam: O Sentido
e o Valor do Tradicionalismo, tese de autoria de Luiz Carlos
Barbosa Lessa, aprovada no primeiro Congresso; Carta de
Princípios, redigida por Glaucus Saraiva da Fonseca, um dos
autores do texto e que obteve aprovação em 1961, no 8º Con-
gresso (Taquara/RS), e que hoje é cláusula pétrea do Estatuto
do MTG; Plano Vaqueano, de promoção da cultura regional
e de reativação da vida social dos CTGs, autoria de Hugo Ra-
mírez e aprovado em 1969, no 14º Congresso (São Francisco
de Paula); Plano de Ação Social do Movimento Tradicionalista
Gaúcho, de Onésimo Carneiro Duarte, elaborado em 1983; e
O Sentido e o Alcance Social do Tradicionalismo, tese constitu-
ída de quatro partes e uma conclusão, autoria de Jarbas Lima
e aprovada em cinco Congressos, respectivamente nos anos
de 1995 (Dom Pedrito/RS), 1996 (São Lourenço do Sul/RS),
1997 (Santo Augusto/RS), 1998 (Santa Cruz do Sul/RS) e 2004
(Bagé/RS) (CIRNE, 2004, p. 56-77).

4 Principais Eventos do Movimento Tradicionalista


Gaúcho

A partir da fundação dos primeiros CTGs, começaram


a surgir os eventos de importância para o Tradicionalismo,
desde os administrativos, caso do Congresso e da Convenção.
Posteriormente, surgiram eventos nas áreas cultural, artística,
campeira e esportiva.

277
4.1 Congressos

O Tradicionalismo organizado realizou, de 1952 a 2011, 59


congressos, sendo três extraordinários. Em 2004, foi realizado o
50º congresso (extraordinário), comemorativo aos 50 anos da
realização do primeiro, ambos na cidade de Santa Maria. Poste-
riormente, ocorreram mais dois extraordinários (2007 e 2008),
para alteração do Estatuto do MTG. O primeiro congresso foi
realizado de 02 a 04 de julho de 1954, na cidade de Santa Maria.
O segundo, considerado um dos mais expressivos e marcantes
em termos de organização, foi realizado na cidade de Rio Gran-
de, de 18 a 20 de novembro de 1955. Não foram realizados con-
gressos nos anos de 1962 e 1968.

4.2 Convenções

O MTG já realizou 44 Convenções Ordinárias desde


1968 e mais 38 Extraordinárias, totalizando 82 edições deste
órgão que trata de todos os Regulamentos do MTG. A pri-
meira Convenção foi realizada de 19 a 21 de julho de 1968, na
cidade de Jaguari (CIRNE, 2006, p. 120-121, 135-137).

4.3 Concurso de prendas

Intitulado “Mais Linda Prenda do RS”, inicialmente o


concurso era promovido pela Rádio Gaúcha, Jornal Última
Hora e VARIG. A primeira edição foi realizada em Porto Ale-
gre, no CTG Sinuelo da Tradição, um Departamento do Clu-
be São José. O resultado foi no dia 20 de setembro, em baile
na SOGIPA e, entre as 31 concorrentes, a escolhida foi Marly
Guimarães Zwestch. Desde o início do concurso, os tradicio-
nalistas não viam com bons olhos esse evento, pela maneira
como era feita a escolha. Este descontentamento veio parar no
Conselho Coordenador, que, aos poucos, passou a participar
através da Comissão Avaliadora.

278
Releituras da História do Rio Grande do Sul

4.3.1 Primeira Prenda do RS

Em 1968 ocorre o Concurso de “1ª Prenda do RS”. Em


1969, o Conselho decide realizar o evento durante o Congres-
so (14º), que foi na cidade de São Francisco de Paula, no mês
de janeiro. No 15º Congresso em Santiago/RS, de 08 a 11 de
janeiro de 1970, novamente foi realizado e neste conclave foi
instituído o Concurso. Oficialmente, a 1ª edição do Concur-
so de Primeira Prenda do estado, somente categoria adulta,
aconteceu em janeiro de 1971, na cidade de Quaraí, quando
foi eleita Maria Ivanoska Alves Nunes, representante do CTG
Rodeio dos Palmares (Santa Vitória do Palmar/RS).
A partir de 1982, foi incluída a categoria mirim; em
1985, a juvenil. No ano de 1985, o concurso desvinculou-se
dos Congressos, passando a ser realizado no mês de maio, na
cidade da 1ª Prenda.

4.4 Encontro de Artes e Tradição Gaúcha

Na década de 1970, o Movimento empenhava-se em


combater o alto nível de analfabetismo no País. No Rio Gran-
de do Sul, além de alfabetizar, também almejava divulgar a
cultura como forma de elevar a autoestima da população e
oportunizar o surgimento de novos valores artísticos. O pro-
fessor e advogado Praxedes da Silva Machado, responsável
cultural pelo Mobral na época, buscou a parceria do MTG e,
com a participação do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore
(IGTF), criaram o Festival Estadual de Arte Popular e Folclo-
re, que se popularizou como Festival Estadual do Mobral. O
evento foi idealizado para ser itinerante, (isto é, a cada ano, em
uma cidade diferente).
A 1ª edição desse festival foi no ano de 1977, cuja fase fi-
nal foi realizada na cidade de Bento Gonçalves. A 2ª, em 1978,
em Porto Alegre; a 3ª, em 1979, em Lajeado; a 4ª, em 1980,

279
em Cachoeira do Sul; a 5ª, em 1981, em Lagoa Vermelha; a
6ª, em 1982, em Canguçu; a 7ª, em 1983, em Soledade; e a
8ª, em 1984, na cidade de Farroupilha. Em 1985, a 9ª edição
seria em Rio Pardo, mas, como as autoridades do Município
desistiram, Farroupilha sediou novamente o evento. Decidiu-
-se, então, não mais alternar o local, uma vez que a cidade de
Farroupilha se propunha em continuar realizando anualmen-
te a final.
A partir de 1986, o evento passa a ser promovido pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho e muda de nome: Festival
Gaúcho de Arte e Tradição (FEGART), sempre no último final
de semana de outubro, permanecendo em Farroupilha da 1ª à
11ª edições, portanto até o ano de 1996. Tendo em vista o cres-
cimento do festival, em 1997 (12ª edição) transferiu-se para
Santa Cruz do Sul e por questões judiciais, muda de nome em
1999: Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (ENART), que
neste ano de 2011 será realizada a 26ª edição e 35ª edição des-
de o festival originário (CIRNE, 2006, p.140-158).

4.5 Festa Campeira do Rio Grande do Sul

A ideia partiu de Frontelmo Alves Machado, atual Con-


selheiro Benemérito do MTG, que sonhava em “ver o Rio
Grande campeiro todo reunido numa grande festa anual”.
A iniciativa, segundo seu idealizador, teria como objetivos:
“Unir os gaúchos campeiros em um evento, nas diversas mo-
dalidades, para confraternizar e apurar seus campeões com
representação dentro e fora do estado, para competições des-
ta natureza.” No dia 11 de dezembro de 1987, na Convenção
Extraordinária do MTG, realizada na cidade de Júlio de Cas-
tilhos, foi aprovado o anteprojeto com o nome “Festa Crioula
do RGS”, a seguir modificado para “Festa Campeira do Rio
Grande do Sul (FECARS)” e marcada a primeira edição para
março de 1989, na cidade de Passo Fundo.

280
Releituras da História do Rio Grande do Sul

4.6 Concurso de Peões

No 33º Congresso realizado em janeiro de 1988, na ci-


dade de Veranópolis, foram apresentadas duas propostas de
criação do Concurso: uma de autoria de Rosangela Antoniazzi
de Moraes, 1ª Prenda do RS/1984, e César Vieira, e a segunda,
de Sergei Renan Lopes e Vicente Leomar Mileski. Na 27ª Con-
venção Tradicionalista, realizada em julho de 1988, em Caxias
do Sul/RS, foi aprovado o concurso com o título de “Concurso
Troféu Farroupilha”, com as três fases para o ano seguinte.
Inicialmente, o evento era realizado com o Concurso
Estadual de Prendas; posteriormente, na FECARS; e, na atua-
lidade, isolado na cidade do Peão.
A primeira edição foi em maio de 1989, em Cachoeira
do Sul/RS, quando foi eleito o representante do PL Esteios de
Japeju, de Uruguaiana/RS, Agnaldo Reis.
Em julho de 1995, na 40ª Convenção Tradicionalista
(Canguçu/RS), a equipe de Peões do estado aprovou proposta
de criação da categoria Juvenil, denominada Guri Farroupi-
lha. A primeira edição foi realizada em 1996, na cidade de
Bento Gonçalves, tendo sido eleito o representante do CTG
Sinuelo (Canguçu/RS), Roger Borges Jacondino (CIRNE,
2006, p. 148-154).

5 Conclusão

O Tradicionalismo gaúcho, hoje, está presente em todos


os estados do Brasil e até em outros países, totalizando mais
de 3.000 entidades, reunindo filhos do Rio Grande do Sul e
também pessoas que aqui nunca estiveram.
O culto à tradição organizada é sadio, cultural, cívico,
social e forma uma grande família, pois reúne desde o avô ao
neto, com muita harmonia, alegria e satisfação, para desfruta-
rem dos usos e costumes legados pelos antepassados, os quais

281
escreveram uma história bonita, que enche o povo gaúcho de
orgulho ao lembrá-los e que, assim o fazendo, continua a es-
crever esta história, para a grandeza da amada querência.

Referências

CALDERAN, Loiva. CBTG História, in: CIRNE, Paulo Roberto de Fraga;


MACHADO, Mauro Magno (Orgs.). 15º Congresso Brasileiro da Tradição
Gaúcha e 8ª Convenção Brasileira da Tradição Gaúcha. Brasília, DF. Anais.
Porto Alegre: Calábria, 2010.

CIRNE, Paulo Roberto de Fraga (Org.). Meio século de congressos


(1954 – 2004): documentos basilares do tradicionalismo gaúcho. Porto
Alegre: [s.n.], 2004.

CIRNE, Paulo Roberto de Fraga. MTG 40 Anos: raiz, tradição e futuro


1966-2006. Porto Alegre: Maredi, 2006.

CÔRTES, J. C. Paixão. Origem da Semana Farroupilha: primórdios do


Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994.

FERREIRA, Cyro Dutra. 35 C.T.G.: o pioneiro do Movimento Tradiciona-


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MARIANTE, Hélio Moro. História do tradicionalismo sul-rio-grandense.


Porto Alegre: Smith, 1976.

SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Por-


to Alegre: [s.n.], 2008.

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