Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
..C
*-wff w
© Fabio Grossi dos Santos, 2021
Capa
Arkus Propaganda
Diagramação
João Vasconcelos Floriani
M328
Às margens do Jahu: a história ainda não contada. /
Organização de Fabio Grossi dos Santos. Bruna Castro...
[et al.]. Jaú: 11 Editora, 2021.
524 p.
ISBN: 978-65-88141-01-4
CDD 981.61
1ª impressão, 2021
Apresentação, 9
Introdução, 13
As meninas do telefone
Bruna Faely Mano, 211
Jahu e o jornal em 32
Marcus Carmo, 285
Wilmar R. D’Angelis1
1
Linguista, indigenista e pesquisador da história indígena do Sul e do Sudeste
do Brasil. Professor da área de Línguas Indígenas, no Departamento de
Linguística da Universidade Estadual de Campinas, desde 1994.
49
ya-ú), “aquele que devora” (Sampaio [1901] 1987, p. 268)2.
Não deixa de ser curioso que Teodoro Sampaio completa
sua informação com o seguinte: “é o grande peixe fluvial
(Platystoma), frequente no Rio Tietê, como nos rios da
bacia do Rio da Prata (...). É o mesmo sorobim, do Rio São
Francisco e outros rios do Norte” (Idem, pp. 268-269).
A propósito, registremos, desde já, o que a ictiologia diz
a respeito desse peixe, que nos será útil adiante:
2
É importante entender a razão da variação nos registros, ora com “h”, ora
sem. Os jesuítas do primeiro século (Anchieta entre eles) não costumavam
registrar, nas suas anotações da língua Tupi, a chamada oclusiva glotal, uma
consoante inexistente em Português (veja-se a nota 9, adiante). Confundiam
isso com um mero acento ou uma emissão mais forte da sílaba. Nos séculos
seguintes, em especial nos séculos XVIII e XIX, é frequente encontrarmos (de
mais de uma língua indígena) registros em que aquela consoante é anotada
com o recurso à letra “h”, de onde provém a forma “Jahú”. Atualmente,
seguindo a ortografia adotada para a língua Guarani, os estudiosos anotam
aquela consoante, nas palavras Tupi, com o uso do apóstrofo, do que resulta
a forma “ja’u”.
3
Paulicea luekteni. No registro de Hermann von Ihering (1898, pp. 108-109),
Paulicea Jahu, e, posteriormente, Zungaro jahu. De acordo com Buckup,
Menezes & Ghazzi (2007, p. 218), “considerada sinônimo de Z. zungaro
e Paulicea luetkeni (Steindachner, 1877) até recentemente, esta espécie
[Zungaro jahu, Ihering 1898] foi revalidada por Souza Filho et al. (2003)”.
50
Em outro lugar, lemos que os jaús alimentam-se
E ainda:
4
Bio Orbis: https://www.bioorbis.org/2019/05/gigante-peixe-jau.html.
5
Agro 2.0: https://agro20.com.br/jau/.
6
A propósito, veja-se Lemos Barbosa (1970, p. 63): “comedor-guara; (...)
comilão – caru”.
51
uma vez que o Tupi e o Guarani possuem duas formas de
1ª pessoa do plural). Em todo caso, parece fazer pouco ou
nenhum sentido o peixe chamar-se “nós comemos”.
Se estiver correto identificar o final como o verbo “comer”,
talvez só reste, como gramaticalmente possível, interpretar
como iá+’u (fruta + comer) “(o que) come fruta”, ou yá+’u
(cabaça + comer) “(o que) come cabaça”. Nos dois casos,
soluções que não encontram apoio extralinguístico. A primeira
delas, pelo menos, parece contrária ao hábito carnívoro (ou,
mais propriamente, piscívoro) do jaú, que vive de comer peixes
menores. A segunda, que também parece contrária ao caráter
piscívoro desse peixe, não encontra apoio em qualquer registro
disponível. Mas, na mesma linha de hipóteses, há a possibilidade,
ainda que curiosa (partindo de uma palavra nheengatú)7, de
interpretar-se como iã+’u (macaco-da-noite + comer) “(o que)
come o macaco-da-noite”. Não conheço registros específicos a
respeito, mas em várias partes do Brasil, sobretudo na Amazônia,
ocorrem narrativas populares (talvez fantasiosas) sobre ataque
de jaús a humanos, incluindo caso de criança e, mesmo, de
adultos comidos ou engolidos por um peixe jaú. Vale destacar
que os registros atuais em manuais ou materiais de divulgação
sobre peixes brasileiros, apesar de elencarem o jaú como um dos
maiores peixes do Brasil, informam um comprimento máximo
de até 2 metros, e peso de até 200 kg. (e uma força “capaz de
arrastar a canoa por quilômetros”)8, mas registros de séculos
7
O registro é de Stradelli (1929, p. 446): iã: pequeno macaco, casta de Lemure
– Nyctipithecus felinus.
8
O registro está no Dicionário de Antonio Houaiss (2004, p. 1.678).
52
anteriores mencionam até 15 palmos (acima de 3 metros de
comprimento)9 e até 400 kg.
Outra direção de busca seria a partir de vocabulário do
Guarani Antigo, seja por meio de Montoya (século XVII), seja
por um de seus continuadores (século XVIII).
Em Montoya ([1640] 2011, p. 99), lê-se:
áu2 mancha; sujeira; (sempre se coloca a coisa onde está)
Praticamente um século depois, outro jesuíta traduziu,
ao Guarani, a obra Conquista Espiritual, escrita em espanhol,
por Montoya, em 1639. Compilando o vocabulário empregado
naquela tradução, Batista Caetano (1879, p. 53) registrou:
9
Essa informação é de Fernão Cardim: "Entre estes há um peixe real de bom
gosto e sabor que se parece muito com o solho da Espanha; este se chama
Jaú, são de quatorze e quinze palmos, e às vezes maiores, e muito gordos, e
deles se faz manteiga" (Cardim, [1584] 1978, p. 63).
53
sendo que entre o prefixo e a raiz do verbo ou adjetivo que
se segue, ocorre uma passagem consonantal palatal: i + j +
áu, logo, ijáu. Chama a atenção, porém, que a tônica não se
encontra na última vogal10, de modo que, mesmo contando
com a coalescência da vogal “i” com a consoante homorgânica
“j”, ainda resultaria em jáu (e não jaú)11.
O problema dessa tentativa é mesmo com a questão da
tonicidade. Não fosse por isso, a aparência externa do peixe
jaú (aliás, associado ao pintado ou surubim) justificaria per-
feitamente o nome de “manchado”. E é sabido que a maior
parte dos nomes tupis para peixes é descritiva: piracanjuba
(peixe-da-cabeça-vermelha), pirajuba (peixe-dourado),
pirambu (peixe-que-ronca), piratinga (peixe-branco).
Outro problema com esse caminho está em que, ainda
que as línguas Guarani e Tupi sejam da mesma família, o
fato é que o nome Jaú foi aprendido pelos portugueses,
primeiramente diretamente do Tupi da costa brasileira, já
no século XVI (cf. Fernão Cardim [1584] 1978, p. 63). E a
forma áu (ou mesmo aú), até onde pesquisei, não se encontra
em nenhum vocabulário Tupi (ou Brasílico) com a acepção
de “sujo” (ou manchado, ou malhado, ou pintado).
A pista mais promissora, porém, veio-me da orientação
10
Veja-se o registro de Montoya. Já no registro de Batista Caetano, apesar de
a forma aú aparecer como entrada do verbete, no texto que se segue a ela
o autor mostra que se trata de um ditongo decrescente, sobretudo quando
defende sua origem em ab que passou a av (“b cai em v” quer dizer: b sofre
lenição ou enfraquecimento, e se torna v) , que por sua vez passou a au.
11
Ademais, buscando nas fontes Tupi o que Batista Caetano apontou no
Guarani Antigo, de Montoya, não encontramos nada parecido.
54
de uma pesquisa sobre a língua Tupi-Kawahib (ou Kagwa-
hiva), da Rondônia, e, mais especificamente, do Tenharim.
Analisando dados de campo de um orientando (Osmar
Marçoli), encontrei o seguinte:
Português Tenharim
Jaú ãdiau12
12
O trabalho do linguista registra as palavras em transcrição fonética; nela,
o símbolo [] corresponde ao “nh” ortográfico da língua portuguesa. Já
o símbolo [] representa um fonema inexistente em nossa língua, que os
linguistas chamam de oclusiva glotal (em alguns lugares, “parada glotal”):
uma interrupção da emissão das cordas vocálicas semelhante ao som que
produzimos quando, para indicar uma negativa, fazemos: ũũ ou ãã
(nas histórias em quadrinhos: hum-hum). Na ortografia de diversas línguas
indígenas (entre elas, o Guarani e o Kaingang) esse fonema é representado
pelo apóstrofo, como nos exemplos: ka’a, angu’a, pã’i.
55
palavras, das línguas remanescentes do tronco Tupi, é uma
das que mais guardam proximidade com o Tupi Antigo.
Assim, apostando na possibilidade de que nhãndi’a/
nhũndi’a tenha sido, também, a forma antiga do nome do
peixe no Tupi Antigo, faltaria descobrir por que a sílaba inicial
foi abandonada:
13
Vocabulário na Língua Brasílica, de 1621:"Bagres dagua doce – Nhũdiâ; Mãdij;
Pirâacãmucú; Jaú; este he muito grande" (Vocabulario... [1621] 1952, p. 50).
14
Jundiá é o mesmo que Nhũndiá. Considerando a forma registrada pelos
jesuítas, a análise fonológica do Tupi revela que a consoante nasal inicial,
representada por nh, resulta da nasalização de um j (um processo de
espalhamento de nasalidade, comum em línguas Tupi). Essa nasalização podia
ser menos pronunciada, o que parece ter acontecido com a Língua Geral Paulista,
falada pelos bandeirantes. Isso explica por que, no falar dos bandeirantes, ficou
registrada a palavra jundiá (ver, por exemplo, jundiá’y > Jundiaí).
15
Cf. Vocabulário na Língua Brasílica 1621 (1952, p. 126); Barbosa (1956b, p.
79); Navarro (2013, p. 195).
56
significar cabeça (a palavra plena, para cabeça, é akan)16. Como
só existem esses três elementos linguísticos na composição, não
há lugar para o “bem armada” (ou, no mínimo, para o advérbio
intensificador “bem”) que aparece na tradução de Sampaio.
E como há uma palavra própria em Tupi para barbatana
(“pepocanga”)17, não faz sentido tomar a palavra “espinho”
como uma metáfora desnecessária. Portanto, seguindo-se
a interpretação de Sampaio, jundiá deveria ser traduzido
literalmente por “cabeça com espinho”.
Há, no entanto, uma outra interpretação possível. Sendo
a primeira sílaba correspondente à palavra para espinho, a
sequência ndiá pode ser interpretada como a palavra ndjá
= “pouco” (Cf. Navarro, 2013, p. 151: “îá: porção, pequena
quantidade, um pouco”)18. Nesse caso, ju-ndjá deveria signi-
ficar “pouco espinho”. Essa é, como se sabe, uma característica
ressaltada desse peixe. Veja-se, por exemplo: “Jundiá tem
um filé claro, magro, com boa textura e livre de espinhos
intramusculares...” (Fracalossi et al., s/d). Essa tradução está
mais de acordo com as práticas de nomeação Tupi.
A razão pela qual jundjá’u (nhũndjá’u) tornou-se
djá’u (e finalmente jaú) pode ter sido puramente linguística: a
simplificação que as línguas costumam fazer, ao longo dos sé-
culos, abreviando formas longas, e que acabam transformando
nomes descritivos em nomes muitas vezes indecomponíveis e
16
Cf. Barbosa (1956b, respectivamente páginas 106 e 19).
17
Cf. Vocabulário na Língua Brasílica [1621] (1952, p. 125).
18
Observe-se que, com muita frequência, os anotadores dos séculos XVI e XVII usaram
"i" para representar a aproximante [j] ou a africada [dZ], ou ambas em variação.
57
indecifráveis. Tomem-se, como exemplos, algumas palavras do
português, como meia (peça de vestuário). Pouquíssimos são os
brasileiros que conhecem a origem dessa palavra (basicamente,
apenas uma parte dos profissionais da área de linguagem:
linguistas, filólogos, docentes); meia é o singular criado, por
analogia, a partir da forma “plural” meias, que, por sua vez, foi a
forma abreviada que se passou a usar para o termo meias-calças
(cf. Houaiss; Villar, 2004, p. 571 e 1.882). Outro exemplo é o
nome da árvore açoita-cavalo (Lueheadivaricata – Mart.), que,
pelo interior todo do Brasil, o povo conhece por “soita-cavalo”,
ou, mais comumente ainda, simplesmente como “soita”, inclusive
porque o verbo açoitar não é parte do vocabulário em dialetos
populares19. E se buscarmos a origem latina de algumas
palavras portuguesas, poderemos até nos surpreender. Por
exemplo, o verbo “comer”, cuja origem é a expressão “cum
edere” = “comer em companhia (de outras pessoas)”. Ocorre
que “ed-” era a raiz do verbo “comer”, em Latim, e “cum”
apenas a preposição (o nosso “com”); no caminhar da história,
o que era apenas a preposição se tornou a raiz do verbo, em
nossa língua, e da raiz latina sobrou apenas o “e”, que virou
simples vogal temática do nosso verbo “comer”20.
19
Foi pela forma soita que aprendi a conhecer a árvore, pelo uso popular no
Oeste de Santa Catarina e no Norte do Rio Grande do Sul. Curiosamente, os
dicionaristas, por seu equivocado purismo, não a consignam, como se a forma
soita devesse ser tomada somente como pronúncia errada de açoita, o que já
não é o caso. Trata-se, sim, de um item lexical do falar brasileiro do interior.
20
Essa informação se encontra em qualquer bom trabalho sobre as origens
do português e na etimologia da palavra dada em bons dicionários, como
o Houaiss. Também em fontes de divulgação, como se pode ver em: http://
cienciahoje.org.br/coluna/etimologias/.
58
CONCLUINDO:
21
É esta uma lição de Edward Sapir: “Onde está em uso, para um conceito
simples, um termo descritivo transparente, é justo concluir, na maioria
dos casos, que o conhecimento do elemento ambiental, assim referido, é
comparativamente recente. (...) o caráter transparente ou não-transparente
de um léxico pode nos permitir inferir, ainda que um tanto vagamente, desde
quando, para um grupo populacional dado, é familiar determinado conceito”
(Sapir [1911], 1969, p. 48).
59
POTUNDUVA: ALÉM DO ESTIRÃO
22
Jaú e Bauru – a primeira, a Leste, e a segunda, a Oeste do rio – situam-se
na região do Médio Tietê. Potunduva, salvo informação mais precisa, está
praticamente no exato meio caminho entre as nascentes e a foz do Tietê.
60
aura mística sobre a origem do nome da sua localidade23.
Para se fixar uma etimologia, o fundamental é buscar
identificar os elementos linguísticos (morfemas ou raízes)
presentes no composto (como em geral, são), sem deixar
de observar outras características linguísticas da língua em
que se origina o vocábulo: regras de formação de compostos
ou de sintagmas nominais, e regras morfofonológicas que
operam nesses casos. Explicando isso muito brevemente,
usando de exemplos: (a) regras de formação: o nome de
origem Kaingang, Xanxerê (cidade do oeste catarinense)
compõe-se de xãxã = cascavel + rê = campo; se alguém
traduzisse esse nome por “cascavel do campo”, estaria
desconhecendo a regra de composição genitiva da língua,
pela qual, na justaposição de dois substantivos, o primeiro
é o determinante e o segundo é o determinado; portanto,
Xanxerê só pode ser traduzido por “campo (ou campina)
da cascavel”. (b) regras morfofonológicas: o nome de origem
Tupi, Jaguaquara (município da Bahia) é composição de
jaguar - a = onça + kwar - a = cova, toca, buraco, que, por
regras de composição semelhantes às do Kaingang (embora
sejam línguas não aparentadas), traduz-se por “cova da on-
ça”; observe-se, porém, que o resultado da composição não é
nem jaguaraquara nem jaguarquara, por dois motivos:
primeiro, porque a vogal final átona “a” não pertence à raiz
da palavra; segundo, porque disso resulta uma composição
23
A bem da verdade, algumas dessas invenções nem precisam lançar mão de
mais de três palavras, como é o caso da fantasiosa e insustentável tradução de
Araraquara por “morada do Sol”.
61
jaguar + kwara, na qual justamente intervém uma regra
morfofonológica: em Tupi, no encontro de duas consoantes,
para uma composição, a primeira delas é suprimida (ou
seja, “cai” o “r” final da palavra jaguar).
Com esses conhecimentos gerais, tratemos agora de
esclarecer o nome Potunduva. Mas vale registrar, antes
disso, que, curiosamente, Potunduva não mereceu interpre-
tação etimológica nos grandes trabalhos de toponímia Tupi:
Teodoro Sampaio, no seu “O Tupi na Geografia Nacional” (de
1901), não o traz, e talvez desconhecesse a existência do lugar
(embora Jaú seja uma região povoada desde meados do século
XIX); e Eduardo de Almeida Navarro, no seu “Dicionário de
Tupi Antigo: a língua indígena clássica do Brasil” (2007),
que inclui uma “Relação de Topônimos e Antropônimos com
origem no Tupi Antigo”, consignou a existência do nome,
mas não arriscou dar-lhe a etimologia.
A primeira coisa que nos chama a atenção, e será
mesmo uma chave decisiva para estabelecer a etimologia
de Potunduva, é o morfema final, facilmente reconhecível
na toponímia de origem Tupi: nduva.
A língua Tupi possuía um sufixo coletivizador24 que um
linguista conhecedor da fonologia dessa língua registraria
como {-t-}. Como já dito anteriormente (em um exemplo de
língua Tupi), a vogal átona final “a” não integrava a raiz das
palavras; tinha uma função gramatical (simplificadamente
chamemos de “função nominal”).
24
Para expressar coisas como bananal, pedregal, pinheiral etc.
62
A vogal // do sufixo em questão – em geral grafada com
“y” nas línguas indígenas brasileiras (ex.: Guarani, Kaingang)
– é desconhecida em português, mas tem pontos em comum
com o nosso “i” (é uma vogal alta não arredondada) e com
o nosso “u” (é uma vogal alta posterior). Em razão disso,
os portugueses ora a registraram como um “i” (em nomes
como Itatiba, Juquitiba), ora como um “u” (em nomes como
Ubatuba, Araçatuba). Registre-se, aliás, que há nomes com o
final “tiba” que já foram grafados, oficialmente, no passado,
com “y”, como é o caso de “Curityba” (PR) e “Rerityba” (ES).
Já a segunda consoante (final) do sufixo {-t-} é o que
os linguistas caracterizam como aproximante lábiodental,
também inexistente em nossa língua, mas que guarda se-
melhanças tanto com o “b” como com o “v”, razão pela qual
foi registrada de modo variante pelos portugueses: ora como
“b” (como nos 4 nomes tupi exemplificados acima), ora como
“v” (em nomes como: Boituva, Aricanduva)25.
Sendo assim, temos que o sufixo tupi para coletivizador
(ao qual vai sempre agregada a vogal “a” de sufixo “nominal”)
foi registrado nos topônimos por formas variantes como -tyba,
-tyva, -tiba, -tuba, -tuva. Mas também como -duba, -diba,
-duva, em nomes como o já citado Aricanduva, mas também Ita-
marandiba, Maçaranduba, Tucunduva, e o próprio Potunduva.
Na explicação dessa última variante é que se encontra,
como dito antes, a chave (indireta) para solucionar a etimologia
25
Isso também se registra em composições como Itapeva e Itapeba, onde o
elemento final da composição (o adjetivo Tupi que significa “chato, baixo”)
ora se grafa com “v” (peva), ora com “b” (peba, como em “tatu-peba”).
63
em questão. Quando dois elementos se juntam para compor
uma nova palavra, em Tupi, há regras de ajuste entre eles (as
chamadas regras morfofonológicas). Uma das mais importantes
é a que transforma consoantes ditas “surdas” (como p, t, k)
em consoantes “sonoras” e pré-nasalizadas (respectivamente:
mb, nd, ng) quando, em composição, elas são precedidas por
vogal nasal ou por consoante nasal. Vejam-se os exemplos:
64
Ocorre que não existe uma tal palavra em Tupi, donde
concluirmos que se trata de corruptela de alguma outra pala-
vra ou, mesmo, de uma composição. Uma pista (na verdade,
uma resposta completa), curiosamente, encontramos em
um trabalho de “curioso”, ou seja, de um não especialista26,
mas cuidadoso anotador de topônimos indígenas. Na obra
“Dicionário de palavras brasileiras de origem indígena”,
Clóvis Chiaradia – médico (e político) do interior paulista
(Botucatu) – consignou o seguinte registro:
26
A bem da verdade, é bom registrar que Teodoro Sampaio, grande intelectual
que produziu o mencionado (valiosíssimo) trabalho sobre toponímia Tupi, era
apenas um “curioso” do assunto, sendo engenheiro, e não filólogo.
27
Cf. Coelho & Ramos-Porto (1985). Em Holthuis (1952, p. 78) lê-se, a respeito do
Macrobrachium potiuna: “Distribution: The species is known from fresh water
of the S.E. Brazilian States: Rio de Janeiro to Rio Grande do Sul. The records in
65
Do ponto de vista linguístico, a interpretação é mais
do que plausível. Não sou, porém, conhecedor da região, de
modo que não posso avaliar se a informação da abundância
desse camarão (no passado!) naquela porção do Rio Tietê é
verdadeira. Os velhos moradores ou os antigos cronistas da
região podem contribuir para esclarecer isso. Sabe-se que, em
outras porções do rio, isso era realmente um fato. Por exemplo,
tratando da região da capital paulista, mais especificamente
do Rio Tietê nas proximidades da foz do Aricanduva, veja-se
o seguinte registro do historiador Janes Jorge (s.d, p. 4):
literature are: Rio de Janeiro, Jacarepaguá, Casal, Ponte Nova e Mauá, Rio de
Janeiro State (Moreira, 1901); Santos, São Paulo State (Luederwaldt, 1919, 1919a);
? Itapura, ? Jaboticabal, ? São Paulo, ? Raiz da Serra, e Alto da Serra, Santos, São
Paulo State (Luederwaldt, 1919)... etc.”.
28
A informação também aparece em outra obra do mesmo autor, “Tietê: o rio
que a cidade perdeu. São Paulo, 1890-1940” (São Paulo, Secretaria do Verde
e Meio Ambiente, 2017, p. 89).
29
O diretor do Museu de Jahu, tendo lido este texto até aqui, escreveu-
me contando que se comunicara, em seguida, com alguém que pesquisa a
ictiofauna do Rio Tietê, e a informação que recebeu foi a de que “realmente a
66
DE VOLTA AO ESTIRÃO DA VISTA ESCURECIDA
67
escurece”, ainda que a tradução seria apenas uma paráfrase
poética, já que no composto pỹtũ + tyb-a não há sequer traços
de itens lexicais como “visão”, “olhos” ou “vista”.
Tornou-se necessário, então, buscar os mais antigos
registros conhecidos, do nome Potunduva (em qualquer das
suas variantes). Transcrevo, a seguir, os registros do século
XVIII. Adiante, tratarei do século XIX.
A grande fonte para os registros do século XVIII, são
os “Relatos Monçoeiros”, de Afonso de Escragnolle Taunay
(1876-1958), publicados em 1953. É dessa fonte que trans-
crevo os trechos abaixo, indicando as páginas da edição aqui
empregada (edição da coleção Reconquista do Brasil, Itatiaia/
Edusp, 1981)31.
31
Nas transcrições dos documentos originais, Taunay respeita as formas do
documento, mesmo quando divergem da ortografia oficial.
32
Afonso de Taunay avalia que “este relato venha a ser a mais antiga narrativa
pormenorizada da viagem monçoeira de Porto Feliz a Cuiabá até hoje conhecida”
(Taunay, 1981, p. 28). A interrogação, no texto transcrito, pode ser do próprio
Taunay ou da “Notícia Prática” do Pe. Diogo Juares (coleção de relatos do roteiro
das minas de Cuiabá, fonte de Taunay), e, ao que parece, indica dúvida quanto
à interpretação do que está no manuscrito. A referida coleção de relatos do Pe.
Juares intitula-se: “Notícias Práticas das Minas de Cuiabá e Goiases na Capitania
de São Paulo”, e encontra-se na Biblioteca de Évora.
68
A propósito de se tratar de “uma única roça...”, o mesmo
Taunay destacou, em outra passagem, que “o último ponto de
habitação dos civilizados do Tietê era Potunduva, onde viviam
dois brancos com alguns carijós. Daí em diante não se encon-
trava viva alma mais até o [rio] Paraná” (Taunay, 1981, p. 73).
33
Parafraseio, para melhor entendimento, o trecho que nos interessa nessa
citação: Daqui se parte, e logo se começa a entrar por um estirão de rio,
chamado Pitinduba, que significa isso mesmo: estirão reto de rio; no fim deste
estirão existe uma cachoeira, que atravessa toda a largura do rio.
34
Parafraseando o texto, em uma linguagem mais atual: A 12 de agosto passei pelo
último sítio que existe dali até Camapuan, onde estão vivendo dois moradores,
com alguns carijós (escravos), sem nenhuma comunicação além daquela que
mantêm com os que fazem o trajeto para Cuiabá: este lugar é chamado Pitunduba.
35
Referindo-se ao maior trecho sem cachoeiras ao longo do Tietê, Sérgio Buarque de
Holanda escreveu (no capítulo 5 – As estradas móveis, de seu clássico “Monções”):
69
Putanduva que quer dizer em Português onde a vista se faz escura, é
muito perigosa, e medonha esta cachoeira, se metem as embarcações
por ela com gente dentro a Deus, e à ventura ... (Diário da Navegação
de Theotônio José Juzarte, de 1769. In: Taunay, 1981, p. 246)36.
70
seu percurso até Cuiabá. Trata-se do documento “Plano em
Borrão de todos os rios, e todas as caxueiras, e todas as
cousas mais notáveis, que vi desde Porto de Araraytaguaba
até a Povoação do Guatemi, e dali até a Serra que divide as
duas potências fidelíssima e Católica, o qual será posto em
limpo com melhor idea e perfeição, como inda se não viu”,
onde se lê “Caxrª de putunduva” e, logo abaixo, “Ranxo de
Putunduva povoação deyxada”, como se pode ver no detalhe
reproduzido como Figura 0137.
37
Na edição de Souza & Makino, 2000, ver p. 379.
71
Disso resulta a conclusão que se deve descartar, do
documento de Juzarte, a variante “Putanduva”, uma evidente
falha de transposição do manuscrito original.
Ainda do século XVIII existem dois valiosos mapas.
O primeiro deles é o “Mappa da Capitania de São
Paulo, e seu sertão, em que se vem os descobertos, que lhe
forão tomados para Minas Geraes, como também o cami-
nho de Goyases, com todos os seus pouzos, e passagens,
deleniado por Francisco Tosi Columbina”. O documento
não está datado, mas Tosi Columbina esteve no Brasil entre
1743 e 1755, estando, de 1749 a 1755, a serviço do primeiro
governador de Goiás. No referido mapa, como se pode ver
no detalhe reproduzido como Figura 02, está consignada a
localização de “Apotunduba”.
O segundo é a “Planta do Rio Tiété ou Anembý na
Capitania de S. Paulo: desde a cidade do mesmo nome até á
sua confluencia com o Rio Grande, ou Rio Paraná”, de Fran-
cisco José de Lacerda e Almeida, executado em 1788-1789,
portanto, cerca de 35 anos depois do mapa de Luzarte. Nesse
mapa encontramos o seguinte registro: “Cax. Potenduba”.
As Figuras 02 e 03 apresentam detalhes de cada um desses
dois mapas:
72
Figura 02. Detalhe de mapa de Francisco Tosi Columbina.
Acervo Biblioteca Nacional38.
38
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart1033415/cart1033415.html
39
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart515185/cart515185.jpg
73
Como se vê, nos documentos transcritos (e excluído o
erro já apontado na transcrição de Juzarte), há 7 distintas
formas pelas quais o nome é citado: Putunduva, Potenduba,
Pitamduva (com dúvida, anotada nas próprias fontes, sobre
essa transcrição), Pitinduba, Piraridubá, Pitunduba e Apo-
tunduba. Por guardar muita dessemelhança com todas as
demais, considero a forma Piraridubá uma transcrição mal
feita de originais manuscritos, e a descarto como equivocada.
Restam a considerar, portanto:
74
de viagem de Hércules Florence, artista que integrou a
expedição Langsdorff entre 1825 e 1829, que navegou
pelo Tietê a partir de Porto Feliz, rio abaixo; já o segundo
registro é o que consta em um importante mapa finalizado
em 1837.
Hércules Florence escreveu, durante sua viagem de 1825:
40
Estou seguro de tratar-se, aqui, de um erro de transposição; seguramente
se trata de Cachoeira, em lugar de Cabeceira (até porque, na foz do rio, ou nas
margens de um grande rio como o Tietê, nunca se há de falar em “cabeceira”. A
propósito, Theotônio Juzarte, já citado, relacionou os nomes de 46 cachoeiras
que passaram no Rio Tietê, consignando, entre elas, a Cachoeira Putunduva e
a Cachoeira Ipicu (lit. “água comprida”, ou “Estirão”).
75
Figura 04a e 04b. Detalhe do Mappa Chorográphico
da Província de São Paulo, 1827.
76
Putunduva (3x) Uputunduva < com a sílaba Pu
Apotunduba Potenduba Pontenduba < com a sílaba Po
Pitunduba Pitamduva Pitinduba < com a sílaba Pi
77
soubéssemos (ou propusermos) que a vogal original,
nesta sílaba, era a mesma vogal central alta não
arredondada, porém, nasal: ỹ (lembrando que, se
não for nasal, ou seguida de consoante nasal, não
podemos justificar que o sufixo -tyba/-tuba tenha
se tornado -nduba). Nossa experiência ensinando
outros brasileiros a pronunciar essa vogal em pala-
vras Kaingang ou Guarani mostra que a pronúncia de
ỹ por falantes nativos de português costuma variar
entre “ã” (como na palavra “maçã”), “ĩ” e “ũ”.
3. Há um elemento em comum, entre o registro de
Hércules Florence e o registro de Tosi Columbina,
ambos estrangeiros (o primeiro, francês; e o segun-
do, italiano): em ambos, o nome principia por vogal:
um “A” em Columbina, e um “U” em Florence.
41
A propósito, já em registro jesuítico do século XVI, o Vocabulário na
Língua Brasílica, refletindo a Língua Geral, encontramos: Noite – Putuna
(o Vocabulário foi atribuído por Serafim Leite ao Pe. Leonardo Nunes, mas
Plinio Ayrosa sugeriu ter coautoria de Anchieta. Boletim n. 137 – Etnografia
e Tupi-Guarani n. 23. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
USP, 1952).
42
Para a segunda palavra, nossa única fonte é o Tesoro de la Lengua Guarani,
de Montoya (1639). Se, por um lado, é certo que se deve tomar cuidado com
a mistura de línguas diferentes, mesmo que da mesma família, há algo que
poucos sabem, que é o fato de que a obra de Montoya revela duas coisas,
a saber: (i) que em suas reduções houve também população Tupi, fugida
78
Uma dificuldade que tivemos, para aceitar a raiz pỹtũ
como sendo a primeira parte daquele composto foi o fato
de que o sufixo -tyb-a normalmente se traduz por um co-
letivo, algo como “abundância de; lugar em que há muito
(disso ou daquilo)” (cf. Barbosa, 1956a, p. 156). Com isso,
soava estranho, assumindo a raiz inicial como sendo “noite”,
porque aparentemente resultaria em: “noital”? “noitadas”?
“escuridões”? “escuridal”?
Foi novamente em Montoya (Tesoro) que encontrei a
pista para uma tradução. Ao tratar do sufixo Guarani -ty (que
corresponde ao -tyb-a do Tupi)43, o jesuíta aduz exemplos
como: “ka’atydonde hayyerba (...); karuhaty donde se co-
me”. Ou seja, pỹtũ + tyba > pỹtũndyba (potunduva) pode-se
traduzir simplesmente por “(lugar) onde escurece”44.
Já adotando a outra alternativa, pytỹ + tyba > pytỹndyba
(potunduva), deveríamos traduzir por “lugar em que há muito
afogamento”. Porém, contra essa alternativa militam duas
coisas: (a) a sucinta descrição, feita por Hércules Florence a
respeito dessa cachoeira, de que “o rio ali se espraia muito,
ficando com pouca profundidade” (Florence [1875], 2001, p.
68), o que não sugere ser um lugar favorável a afogamentos;
79
(b) o fato de que os cronistas e viajantes que percorreram
essa rota − cujos relatos vemos reunidos na obra já citada
de Afonso de Taunay − jamais mencionam tal circunstância,
que seria notória e que não deixaria de ser lembrada em cada
passagem pelo local45.
Já a favor de “(lugar) onde escurece” ou “onde há
escuridão”, além das questões linguísticas (isto é, fonéticas,
fonológicas e morfofonológicas) já detalhadas, podemos
destacar ainda duas razões:
45
Veja-se que em cachoeiras onde uma pessoa conhecida morreu afogada,
seu nome ficou para sempre associado ao acidente geográfico, como vemos
na relação das 46 cachoeiras feita por Theotônio Juzarte: “Cachoeira Dugarcia
perdeu-se este homem nela”, “Cachoeira Matias Peres: perdeu-se este
homem nela”, “Cachoeira do Cubas: perdeu-se este homem nela” (In: Taunay,
1981, pp. 258-259).
80
e Apotunduva, em Tosi Columbina. Ocorre que há
uma variante, para pỹtũ, registrada pelo Pe. Montoya
(para o Guarani, é verdade), iniciada por uma vogal:
ĭpỹtũ (Montoya, 1639, p. 177).
81
começa a entrar por um esteirão de rio, chamado Pitinduba,
que vale o mesmo, que esteirão de rio direito” (como está
dito na Notícia 7ª Prática, da já referida coletânea do Pe.
Diogo Juares).
Esse é um bom exemplo de como se produzem confu-
sões, que depois ganham foro de tradição, como é o caso da
interpretação, consagrada na região, para o nome Potunduba,
que me foi reportada pelo diretor do Museu de Jahu:
82
Os mapas são: o “Plano de Borrão...” do Sargento-Mor
Theotônio José Juzarte, de 176946, e a “Planta do Rio Tiété, ou
Anembý” de Francisco José de Lacerda e Almeida, de 1788-1789.
Juzarte passou pelo local no dia 20 de abril de 1769, descendo
o Rio Tietê (sentido Sudeste-Noroeste), viajando com destino
a Iguatemi, no Mato Grosso. Lacerda e Almeida, por sua vez,
passou no mesmo local na antevéspera do Natal de 1788, subindo
o Rio Tietê (sentido Noroeste-Sudeste), vindo de Villa Bela, no
Mato Grosso, com destino a Santos, no litoral paulista.
Potunduva no roteiro de Juzarte (1769):
Retomemos a descrição de Juzarte sobre sua passagem
por esse trecho (para acompanhar no mapa da Figura 05,
seguem-se os acidentes de cima para baixo, na direção da
corrente do rio47):
46
Quando o mapa/roteiro de Luzarte não era ainda público, Taunay escreveu:
“Consta-nos a existência de um álbum de desenhos da lavra de Teotonio José
Juzarte no arquivo de Solar de Mateus [Vila Real, Portugal]. Se assim é exato,
serão essas peças os mais antigos documentos iconográficos monçoeiros de
que temos notícia” (Taunay, 1981, p. 43).
47
Observe-se que a rosa dos ventos indica o Norte para baixo nesse mapa.
83
Cachoeira de Putunduva, e abaixo de uma ilha que ali havia
no rio. Como vimos, essa era a que Taunay destacou (com
base nos diversos relatos monçoeiros) como a derradeira
presença de não-índios antes da foz do Tietê: “o último
ponto de habitação dos civilizados do Tietê era Potunduva,
onde viviam dois brancos com alguns carijós”. A localiza-
ção exata desse rancho ou morada confirma-se em outro
relato monçoeiro (talvez de um piloto), no qual o nome da
cachoeira foi lido erroneamente no original manuscrito,
como “Piraridubá”:
84
Pouco abaixo dareis logo em rio limpo bastante distância que
se chama Piraridubá [Potunduba] que vale o mesmo que estirão
de Rio direito: no fim deste vereis uma cachoeira: tem o canal à
esquerda e com muitas ondas: mandai remar e vinde direito ao
canal desviando-vos de uma pedra que vem logo à entrada da
parte direita porque é preciso que vá sempre a canoa ... roçando
por ela e sobre as ondas que o canal faz, à mão esquerda: em
frente vereis uma pequena ilha, caminhai pela parte direita e
nela [na margem direita] achareis um morador com sua roça.
(Notícia 8ª Prática, da coleção do Pe. Diogo Juares. In: Taunay,
1981, pp. 175-176).
85
(Noroeste), lembrando que o autor trafegava no sentido
contrário (de Noroeste para Sudeste), subindo o rio.
Fazendo a leitura da descrição acima, tendo à vista o
detalhe do mapa (Figura 06), vemos que em tudo ele coincide
com o mapa e descrição de Luzarte. Subindo o rio, Lacerda
e Almeida avistou, primeiramente, o sítio abandonado, pra-
ticamente defronte de uma ilha e na barra de um ribeirão,
e, logo acima dele, a Cachoeira de “Potenduba”. Segue-se,
subindo o rio, um “baixo de Sirga48” e um estirão reto, ao
final do qual está a Cachoeira do Estirão Grande. No entanto,
apesar da clareza disso tudo na representação cartográfica,
no diário ele indica ter passado pela (cachoeira) “do Sítio”,
completando: “assim chamada por estar fronteira a um logar
chamado Potunduba”. O que é fácil concluir, por meio do
mapa e dos vários relatos de viajantes, é que Potunduba
(adotando aqui a forma atual do topônimo) originalmente
foi o nome da cachoeira ao final do Estirão Grande (seguindo
fluxo do rio), e em suas proximidades, em terras férteis logo
a jusante, formou-se um sítio (que, em 1769, já estava aban-
donado). O nome Potunduba, então, passou a identificar o
lugar da última povoação na descida do Tietê, não deixando,
porém, de nomear a cachoeira, como vimos nos dois mapas.
48
Sirgas são cordas grossas para embarcações. Segundo descreveu D. Antonio
Rolim, Conde de Azambuja (que fez o trajeto de São Paulo a Cuiabá em 1751),
quando o rio é pouco fundo e o leito “é desigual com pedras espalhadas e em
altura debaixo dágua que as canoas correm risco de se virarem topando nelas”
chamam a isso de Sirga, “porque é preciso os pilotos lançarem-se e remeiros
à água, e levarem as canoas às mãos para as irem desviando devagar, sem as
deixarem tomar força com a correnteza, que aí é sempre maior” (In: Taunay,
1981, p. 199).
86
Subindo o Tietê, apesar de colocar o nome da cachoeira no
seu mapa, Lacerda e Almeida referiu-se a ela, no seu diário,
como (cachoeira) “do Sítio”.
O que fica evidente, também, é que Potunduba nunca foi
o nome do estirão, mas apenas da cachoeira ao final dele, e,
depois, do povoado ou sítio que ali se ergueu. O estirão, por
sua vez, deu nome à cachoeira que o antecedia (lembrando
que o Rio Tietê foi navegado, antes de tudo, no sentido do seu
fluxo). Sabemos disso pela lista das 46 cachoeiras do Tietê
preparada por Juzarte49, na qual encontramos essa sequência
(compare-se como o mapa da Figura 06):
49
In: Taunay, 1981, p. 258.
50
Há um evidente erro nesse registro ou cópia. Guaçu já significa “grande”, em
Tupi. O nome dessa cachoeira fica explicado na seguinte passagem de outro
documento: “Cachoeira de Bauru, que quer dizer que Baú cahio na agoa por
ser Cachoeira grande, em que antigamente sempre se perdia canôa” (Relação
da chegada que teve a gente de Mato Groço, e agora se acha em companhia
do Senhor D. Antonio Rolim, desde o porto de Araritaguaba, até a esta Villa
Real do Senhor Bom Jesus do Cuyabá”. Lisboa, Oficina Silva, 1754, p. 5). De
fato, “mbaeuru” era um neologismo de Língua Geral do Sul que designava
qualquer veículo, mas especialmente as canoas.
87
Figura 06. Detalhe do mapa de Lacerda e Almeida (1788).
88
Curiosamente, já destaquei acima, o mesmo Lacerda e
Almeida, autor do precioso mapa que analisamos acima, é
responsável pela difundida (e equivocada) tradução para o
topônimo Potunduva, como se pode ver nessa nota de rodapé
do seu diário:
Putunduba, ou Putundyva, quer dizer logar onde escurece
a vista, por ser este um estirão grande do rio, que com a vista
se não alcança bem o fim. (Lacerda e Almeida, 1841, p. 57)
Como já vimos, não faz sentido pensar que essa deno-
minação fora dada por quem viesse da foz, subindo o Tietê,
porque esse rio foi explorado pelos bandeirantes seguindo sua
corrente, partindo de São Paulo, de Sudeste para Noroeste.
Ao entrar no “Estirão grande”, o bandeirante ou monçoeiro
acabara de descer uma cachoeira que, por causa disso, cha-
maram de Ipucu (y+puku), justamente por marcar o início
do estirão; e, ao sair do estirão, passando por um trecho de
“sirga”, deviam transpor a Cachoeira Potunduva (aqui, não
se tratava mais de olhar para trás; o estirão estava superado,
e o problema era enxergar o que vinha adiante, a começar
por uma ilha).
Para concluir, situo tentativamente essas indicações na
geografia atual da região de Jaú (Figuras 07 e 08). Investiga-
ções locais podem tornar essas indicações mais precisas e, por
sua vez, as indicações podem sugerir pesquisas e descobertas
in locu que não foram tentadas antes.
89
Figura 07. Localizando na geografia atual.
90
Figura 08. Provável localização do sítio do século XVIII.
91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, A. A. et al. “Migratory fishes of the Upper Para-
ná River Basin, Brazil”. In: CAROLSFELD, J. et al. (ed.).
Migratory fishes of South America: biology, fisheries and
conservation status. Otawa, International Development
Research Centre, 2003, pp. 19-98.
92
CARDIM, F. “Do clima e terra do Brasil e de algumas coisas
notáveis que se acham assim na terra como no mar” [1584].
Tratados da terra e gente do Brasil. 3a ed. São Paulo, Com-
panhia Editora Nacional; Brasília, INL, 1978, pp. 23-89.
93
LACERDA E ALMEIDA, F. J. de. Diário da viagem do Dr. Fran-
cisco José de Lacerda e Almeida pelas Capitanias do Pará,
Rio Negro, Matto-Grosso, Cuyabá, e S. Paulo, nos annos de
1780 a 1790. Impresso por ordem da Assembleia Legislativa da
Província de São Paulo. São Paulo, Typ. de Costa Silveira, 1841.
94
TAUNAY, A. de E. Relatos monçoeiros. Belo Horizonte, Itatiaia; São
Paulo, Edusp, 1981. Nota: Anteriormente publicados como tomo
III de História das Bandeiras Paulistas. São Paulo, Melhora-
mentos, 1953.
95