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Unidade
Uma língua de cultura como a nossa, portadora de longa história, que serve de matéria prima e
é produto de diversas literaturas, instrumento de afirmação mundial de diversas sociedades,
não se esgota na descrição do seu sistema linguístico: uma língua como esta vive na história,
na sociedade e no mundo.
Tem uma existência que é motivada e condicionada pelos grandes movimentos humanos e,
imediatamente, pela existência dos grupos que a falam.
Significa isto que o português falado em Portugal, no Brasil e em África pode continuar a ser
sentido como uma única língua enquanto os povos dos vários países lusofalantes sentirem
necessidade de laços que os unam. A língua é, porventura, o mais poderoso desses laços.
Diz, a este respeito, o linguista português Eduardo Paiva Raposo:
A realidade da noção de língua portuguesa, aquilo que lhe dá uma dimensão qualitativa
para além de um mero estatuto de repositório de variantes, pertence, mais do que ao
domínio linguístico, ao domínio da história, da cultura e, em última instância, da
política. Na medida em que a percepção destas realidades for variando com o decorrer
dos tempos e das gerações, será certamente de esperar, concomitantemente, que a
extensão da noção de língua portuguesa varie também.
[Algumas observações sobre a noção de "língua portuguesa", Boletim de Filologia, 29,
1984, 592]
Diversidade
No particular (...), o nosso pensamento coincide com o que há tempos externou Diego Catalán
Menéndez-Pidal com relação à unidade superior da língua espanhola:
«A unidade da língua não exige a imposição de uma norma única. Longe de favorecer uma
política idiomática que propugne o ensino de uma ortologia rígida e artificiosa em todo o âmbito
do espanhol,
escreve ele,julgo que se deve reconhecer como característica essencial da língua espanhola
sua enorme liberdade normativa.»
E acrescenta:
[Celso Cunha, Em busca de uma norma objetiva, A questão da norma culta brasileira, Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985, 56-57]
O próprio status da modalidade linguística de que nos servimos não está claramente definido,
ou melhor, as conceituações propostas se fundam em razões extra-linguísticas. de regra
eivadas de preconceitos historicistas ou nacionalistas. Daí as denominações variadas, que vão
desde as jacobinas (do tipo língua brasileira) às subservientes (como dialeto brasileiro). Isso
sem falar nas neutras, anódinas (a exemplo de língua ou idioma nacional), que mais de uma
vez têm valido para acalmar zelos patrióticos, mas que, em verdade, deixam a língua
inominada, pois não há país soberano que não possua o seu idioma nacional.
Como classificar o português do Brasil? E qual a metodologia de que nos devemos servir para
descrevê-lo e explicá-lo?
Duas questões prévias e fundamentais, e sobre elas nos permitimos tecer breves
considerações, resumindo em alguns casos observações anteriores.
Quando, em fins do século passado, o sábio filólogo português José Leite de Vasconcelos
chamou dialeto brasileiro à modalidade que o português assumiu na América, orientou-se pelo
parentesco historicamente condicionado entre o português básico, originário, e suas formas
ultramarinas. Numa época em que a ciência só se interessava pelos fatos linguísticos em sua
história, a classificação genética de Leite de Vasconcelos justificava-se plenamente.
Hoje, porém, com os progressos da dialectologia hispânica, o emprego do termo dialeto para
designar o espanhol e o português americano em seu estado atual é não só perturbador, mas
carece de apoio científico. Numa contrapartida nacionalista, poderíamos ser tentados - e alguns
já o foram - a considerar também dialeto à modalidade européia em seu conjunto, o que, como
pondera Manuel Alvar, é um contra-senso, e implica a confusão das noções de língua e dialeto,
funcionalmente distintas. [Manuel Alvar, Hacia los conceptos de lengua, dialecto y hablas.
Nueva revista de filologia hispánica, XV, México-Austin, 1961, 51-60, especialmente 52-53]
Em primeiro lugar (e isto não sofre dúvidas), o termo dialeto evoca a “idéia de dependência
(mais unilateral que recíproca) entre o dialeto, modalidade linguística tida como inferior. e o
idioma nacional, concebido sempre como a síntese superior”. [G.V. Stepanov, Algunas
cuestiones metodológicas del español americano, Actele celui de al XII-lea Congres
International de Linguistica si Filologie Romanica, II, Bucarest, 1971, 1166].
Ora, quanto ao português e ao espanhol, ninguém mais contesta, “à bon droit”, a existência, em
cada caso, de uma comunidade linguística ibero-americana. Também não se pode negar que
as modalidades americanas do português e do espanhol, que forjam e continuam forjando suas
próprias normas, inclusive no campo da expressão literária, devem qualificar-se como objetos
sociolinguísticos especiais, em certo sentido autônomos, que coexistem nos limites da referida
comunidade linguística, sólida, mas não estática, antes de acentuado dinamismo evolutivo.
Para ele,
[E acrescenta:
A variante caracteriza-se por uma estruturação mais complicada que o dialeto tradicional: 1)
pluralismo de normas diastráticas, entre as quais a forma superior (que é o falar culto informal)
se opõe às diferentes modalidades incultas (dialetais, semidialetais, rurais, populares, etc.); 2)
representa um subsistema estilístico funcional que não coincide com o de outras variantes nem
com o sistema literário espanhol. Estas peculiaridades estruturais da variante são próprias da
linguagem falada, mas podem refletir-se também na linguagem escrita de cada área nacional.
(Ibidem)]
Sob este aspecto todas as variantes são paritárias, e as peculiaridades da variante peninsular
podem também qualificar-se como “desvios” (iberismos) em comparação com particularidades
linguísticas americanas (americanismos).
Daí a vacilação permanente da língua culta do Brasil, a dificultar padrões para o ensino,
mesmo depois que certas atitudes radicais dos escritores modernistas conseguiram, em alguns
casos, diminuir o vácuo enorme que separava a expressão falada da escrita.
Essa interferência, historicamente explicável, ainda hoje consentida - e por muitos gramáticos
até ardentemente desejada -, não é, como se costuma afirmar, uma riqueza idiomática, pelo
acréscimo de opções estilísticas. Ao contrário, não tendo raízes na língua viva, torna-se uma
possibilidade de escolha irreal, um claro empecilho à expressão habitual do brasileiro a perder-
se nas flutuações diassistemáticas.
Sirva de exemplo - entre muitos que poderíamos aqui aduzir - o chamado problema da
colocação dos pronomes átonos na frase, e a forma inaceitável por que tem sido, em geral,
solucionado por nossos gramáticos.
É facto sabido que a colocação dos pronomes átonos no Brasil difere apreciavelmente da atual
colocação portuguesa e encontra, em alguns casos, similar na língua medieval e clássica.
Infelizmente, certos gramáticos nossos e grande parte dos professores da língua, esquecidos
de que esta variabilidade posicional, por ser em tudo legítima, representa uma inestimável
riqueza idiomática, preconizam, no particular, a obediência cega às atuais normas portuguesas,
sendo mesmo inflexíveis no exigirem o cumprimento de algumas delas, que violentam
duramente a realidade linguística brasileira e que só podem ser seguidas na língua escrita, ou
numa elocução altamente formalizada.
Esta é, a nosso ver, a primeira distinção que as duas variantes nacionais da língua portuguesa
apresentam em sua forma culta: a vigência de uma só norma em Portugal; no Brasil, a
ocorrência de dualidade ou de assimetria de normas, com predominância absoluta da norma
portuguesa no campo da sintaxe, o que dá a aparência de maior coesão do que a real entre as
duas modalidades idiomáticas, principalmente na língua escrita.
É a história que vai explicar-nos esta relativa unidade da língua culta de Portugal e do Brasil e
as sensíveis, por vezes profundas, diferenças da língua popular em áreas dos dois países.
[Celso Cunha, Política e cultura do idioma, Língua, nação e alienação, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1981, 15-18]
A exemplo do sentido que dou à palavra România no mundo neolatino, vou chamar Lusitânia
ao espaço geolinguístico ocupado pela língua portuguesa, no conjunto de sua unidade e
variedades.
Esse será o espaço próprio da lusofonia: os seus usuários serão os lusofalantes. Como
“estágio atual da língua portuguesa no mundo”, considerarei a situação da Lusitânia após a
Segunda Guerra Mundial.
Nessa perspectiva, vejo cinco faces na Lusitânia atual, que assim denominarei: Lusitânia
Antiga, Lusitânia Nova, Lusitânia Novíssima, Lusitânia Perdida e Lusitânia Dispersa.
[Sílvio Elia, A língua portuguesa no mundo, São Paulo, Ática, 1989, 16-17]
Martin Harris
Portuguese in Brazil, influenced by the diverse origins of both the immigrants and the
administrators sent from Lisbon, rapidly developed norms of its own, particularly in the more
popular registers. The overall position is that while the official and literary standards on both
sides of the Atlantic do vary, not least because of the changes which took place in metropolitan
but not Brazilian Portuguese from the seventeenth century onwards, apparently as part of a
process of fairly conscious linguistic distancing from Castilian, ease of communication ensures
that this variation is kept within limits; no such constraints affect common speech, however, in
which divergences at all linguistic levels can readily be perceived. Again as elsewhere, there
have been attempts to demonstrate that the divergences between Brazilian Portuguese and that
of Portugal are due to the influence either of Tupi and/or of the Portuguese-based creole which
developed subsequent to the importation of black slaves; but whereas as usual no influences
other than on the lexicon have been established to general satisfaction in respect of the
standard language, the widespread simplification of suffixed morphology in particular in spoken
Brazilian Portuguese is strongly reminiscent of a typical result of the process of creolisation.
[Martin Harris, The romance languages, The romance languages, London, Croom Helm, 1988,
10]
Stephen Parkinson
Portuguese, like English, has spread too far and wide to be described solely in terms of its
European forms. The polarisation of European Portuguese varieties (abbreviated EP) and
Brazilian Portuguese varieties (BP), and the relative decline in the cultural and economic
position of Portugal are such that the Brazilian standard must be given equal status with the
European.
The processes of convergence and divergence inside the Portuguese speaking world are still
working themselves out. While European and Brazilian varieties are drawing closer together,
partly through the realisation that Brazilian norms need not be opposed to Portuguese ones,
partly through the influence of Brazilian television on Portugal, the former Portuguese colonies
in Africa are looking for linguistic independence in the recognition of local standards.
Portuguese can nevertheless claim ‘unity in diversity’ and as such can only increase in
prominence as a major world language.
[Stephen Parkinson, Portuguese, The romance languages, London, Croom Helm, 1988, 131,
168]
Paul Teyssier
O português é a língua de Portugal e do Brasil, assim como dos diversos países da África e da
Ásia que estiveram, até recentemente, sob administração portuguesa.
[Paul Teyssier, Manual de Língua Portuguesa (Portugal – Brasil), Coimbra, Coimbra Editora,
1989, p. 15]
Mary Kato
Mas os resultados fornecem uma descrição bastante instigante do que vem mudando no
português do Brasil, e o conjunto desses resultados é uma evidência de que o que ocorre não é
um processo de ‘deterioração da gramática’, como pensam os escolarizados pela ótica da
gramática prescritivista, mas uma reorganização interna coerente, uma mudança radical
(paramétrica) na língua. Entre os aspectos mais extraordinários do PB estão o progressivo
empobrecimento de sua morfologia flexional, o uso extensivo de categorias vazias cuja
identificação não pode ser feita através da flexão; a falta de mobilidade, ou de movimentos
longos, de elementos distintos, como verbos, pronomes interrogativos e clíticos. Por outro lado,
mesmo quando a morfologia é capaz de identificar um pronome nulo, é o pronome lexical que
se manifesta. O ‘sujeito’, seja como a categoria que concorda com o verbo, seja como tópico,
pede realização fonológica. Apesar dessa aparente “desgramaticalização” do PB, o
entendimento entre as pessoas é tão perfeito (ou imperfeito) como o que ocorre com falantes
do italiano ou espanhol, línguas de complexa morfologia, cheia de movimentos de subida ou de
inversão, ou com falantes de línguas como o inglês ou francês, com pouca morfologia flexional
e com pouco uso de pronomes nulos.
[Mary A. Kato, Como, o que e por que escavar? Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica,
Ian Roberts, Mary A. Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 19-20]
Fernando Tarallo
O principal objetivo deste capítulo é delinear algumas bases lingüísticas em torno das quais se
centrava toda a discussão na virada do século, isto é: esboçar a emergência de uma gramática
brasileira que, ao final do século XIX, mostrava claras diferenças estruturais em relação à
gramática portuguesa. Tais diferenças, conforme bem o atestam os trabalhos de Galves
tornaram-se ainda mais acentuadas neste final do século XX. Quatro grandes mudanças serão
aqui apresentadas:
Os quatro casos sintáticos apresentados na seção anterior devem ser tomados como evidência
quantitativa de que mudanças dramáticas aconteceram na passagem do século XIX para o
atual. Fica claro a partir do retrato oferecido que um novo sistema gramatical – chama-se de
gramática brasileira ou de dialeto com sua própria configuração uma vez tratar-se de uma
questão meramente ideológica – emergiu ao final do século XIX, estabelecendo uma nova
gramática radicalmente diferente da modalidade lusitana (...)
HOMERO SENNA: Mas não há probabilidade de que venha a formar-se, à semelhança do que
aconteceu com as línguas românicas derivadas do latim?
HOMERO SENNA: Que atitude devem a esse respeito adotar os escritores: trabalhar para que
cada vez mais se acentue a diferença entre o português d'aquém e d'além mar, ou, ao
contrário, procurar fazer com que o idioma se mantenha um só? Adiantará alguma coisa a
posição que a propósito tomem os escritores?
SOUSA DA SILVEIRA: Penso que os escritores nossos devem cultivar a modalidade brasileira da
língua portuguesa, sem procurarem afastar-nos, de propósito, da literatura portuguesa. Isso
seria empobrecer-nos. Se já se tem dito que a grande força dos ingleses e norte-americanos se
deve, em parte, a falarem a mesma língua, e se já se tem pensado num imperialismo espiritual
por meio da difusão do idioma inglês pelo mundo, não é diminuir consideravelmente a nossa
capacidade de resistência o separar-nos de Portugal? E não será um desatino esforçarmo-nos
para que se deixe de ser também nossa a riquíssima literatura portuguesa e para que se nos
torne arcaica a apreciável literatura que já temos?
[citado por F. Tarallo, Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além-
mar ao final do século XIX, Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica, Ian Roberts, Mary A.
Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 77-78]
Mattoso Câmara:
As duas subnormas do portuguêsComo quer que seja, as discrepâncias de língua padrão entre
Brasil e Portugal não devem ser explicadas por um suposto substrato tupi ou por uma suposta
profunda influência africana, como se tem feito às vezes, resultam essencialmente de se achar
a língua em dois territórios nacionais distintos e separados.
A partir do período clássico, em que o português se implantou no Brasil, cada país teve a sua
evolução lingüística, nem sempre coincidente uma com a outra apesar das estreitas relações
de vida social e cultura.
A fonologia brasileira, por exemplo, não apresenta, como sucede com a de Portugal a partir da
fase clássica, os fenômenos de ritmo em allegro e forte insistência na sílaba tônica, que lá
determinaram aspectos fonológicos importantes. A nossa fonologia resulta, também, não
obstante, de uma evolução, desde o momento em que ela se estruturou no território brasileiro
pelo contacto entre variados dialetos ultramarinos e a língua padrão.
O problema do português popular e dialetal do Brasil é, naturalmente, outro. Nele podem ter
atuado substratos indígenas, não necessariamente, tupi, e os falares africanos, na estrutura
fonológica e gramatical. Também se verificaram, por outro lado, sobrevivências de traços
portugueses arcaicos, que não se eliminaram de áreas isoladas ou laterais em relação às
grandes correntes de comunicação da vida colonial. A imensa vastidão do território brasileiro e
as modalidades de uma exploração intermitente e caprichosa já propiciavam, aliás, por si sós,
uma complexa dialetação, que ainda está por estudar cabalmente.
[Joaquim Mattoso Câmara Jr., História e estrutura da língua portuguesa, Rio de Janeiro,
Padrão, 1976, p. 30-31]
Podemos referir aqui a questão da língua nacional no Brasil como um dos elementos de
definição da identidade brasileira. Esta questão leva à consideração da variação (e por aí da
diversidade) na medida em que ela pode caracterizar o Brasil como um país distinto de
Portugal. Mas, por outro lado, isto se inscreve na constituição da unidade necessária (ou de
uma nova unidade) nesse novo espaço que é o Brasil. Assim, os indigenismos, os
africanismos, os provincianismos, os regionalismos aparecem como diferenças “domesticadas”,
enquanto características do Brasil. Em outras palavras, todas as diversidades dos falares e a
diversidade do conjunto das línguas indígenas brasileiras e das línguas indígenas brasileiras e
das línguas africanas faladas no Brasil são referidas à unidade da língua nacional. Elas se
organizam em relação a essa unidade. O que há de específico é que esta unidade não é
referida ao português de Portugal mas ao do Brasil.
[Eni Orlandi, Ética e política lingüística, Línguas e instrumentos lingüísticos, 1, 1998, 10].