Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CRISTIANA BARRETO
HELENA PINTO LIMA
CARLA JAIMES BETANCOURT
Organizadoras
Fotos: Cristiana Barreto, Edithe Pereira, Glenn Shepard, Sivia Cunha Lima; Wagner Souza
Imagem da capa: Vaso da cultura Santarém, acervo Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Glenn Shepard.
Kamalu Hai é a gigantesca cobra-canoa que apareceu para os Wauja, há muito tempo, oferecendo-lhes a visão primordial de todos os tipos de
panelas cerâmicas, o que lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira. As panelas chegaram navegando e cantando sobre o dorso
da grande cobra que antes de ir embora defecou enormes depósitos de argila ao longo do rio Batovi para que eles pudessem fazer sua própria
cerâmica. Segundo o mito, esta é a razão pela qual apenas os Wauja sabem fazer todos os tipos de cerâmica (Barcelos Neto, 2000).
Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese / Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes
Betancourt, organizadoras. Belém : IPHAN : Ministério da Cultura, 2016.
ISBN 978-85-61377-83-0
1. Cerâmica – Brasil - Amazônia. 2. Cerâmicas Arqueológicas. I. Barreto, Cristiana. II. Lima, Helena Pinto. III.
Betancourt, Carla Jaimes.
CDD 738.098115
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO DO IPHAN - Andrey Rosenthal Schlee 8
APRESENTAÇÃO DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI - Nilson Gabas Jr.
APRESENTAÇÃO 9
PREFÁCIO - Michael Joseph Heckenberger 10
INTRODUÇÃO - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 12
INTRODUCCIÓN - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 14
MAP
MAPAA ARQUEOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA 51
AIRE DES V
“C’EST CURIEUX CHEZ LES AMAZONIENS CE BESOIN DE FFAIRE VASES”:
ASES”:
ALF ARERAS P
ALFARERAS ALIKUR DE GUY
PALIKUR ANA
GUYANA 97
Stéphen Rostain
A CERÂMICA MINA NO EST ADO DO PARÁ: OLEIRAS DAS ÁGUAS SALOBRAS DA AMAZÔNIA
ESTADO 125
Elisângela Regina de Oliveira, Maura Imazio da SilveirA
DOS FFASES
ASES CERÁMICAS DE LA CRONOLOGÍA OCUP ACIONAL
OCUPACIONAL
DE LAS ZANJAS DE LA PROVINCIA ITÉNEZ – BENI, BOLIVIA 435
Carla Jaimes Betancourt
PAR TE III - P
ARTE ARA SEGUIR VIAGEM:
PARA
REFERÊNCIAS P ARA A ANÁLISE DAS CERÂMICAS ARQUOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
PARA 541
A CONSER
CONSERVVAÇÃO DE CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA 543
Silvia Cunha Lima
GLOSSÁRIO 551
Processos tecnológicos 553
Denominações formais e funcionais das cerâmicas 568
Contextos arqueológicos das ocupações ceramistas 581
Conceitos e categorias classificatórias 589
REFERÊNCIAS 603
ÍNDICE ONOMÁSTICO 654
AGRADECIMENTOS 659
SOBRE OS AUTORES E SUAS PESQUISAS 661
BAIXO AMAZONAS
E XINGU
ARQUEOLOGIA DOS TUPI-GUARANI
NO BAIXO AMAZONAS
ABSTRACT
Archaeology of the Tupi-Guarani in the Lower Amazon
The aim of this paper is to present the ceramic material produced by the Tupi-Guarani groups who inhabited
vast regions of south-eastern Amazonia. To understand the variability of these ceramics it is necessary to compare
them to those produced by the Coastal Tupinambá and the Guarani. Further comparison will be undertaken
between the Tupiguarani Tradition and the ceramics manufactured by other Tupi, and non-Tupi groups, which
may have stylistically influenced this tradition.
171
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
Introdução
A cerâmica Tupi-Guarani foi produzida durante cerca de dois milênios por grupos falantes de línguas
da família homônima. Trata-se de uma das cerâmicas arqueológicas mais amplamente difundidas das
terras baixas sul-americanas. A coerência nas formas de produção, uso e descarte dessa cerâmica indica
um estilo tecnológico (cf. Dietler; Herbich, 1989); a permanência temporal e a dispersão espacial de
muitas das escolhas que constituíram as cadeias operatórias dos vasilhames permitem dizer que esse estilo
é uma Tradição; enquanto que os dados arqueológicos, etno-históricos e etnográficos correlacionam de
maneira extraordinária a família linguística Tupi-Guarani ao estilo tecnológico.
A cerâmica, por ser o elemento mais encontrado nas áreas antigamente ocupadas por esses grupos, é a
principal definidora dessa Tradição. Os atributos politéticos 1 da Tradição Tupiguarani são o uso de
manufatura acordelada, o antiplástico de caco moído e/ou mineral, a presença de vasos compostos (um
ângulo na parede) ou complexos (dois ou mais ângulos nas paredes), com base convexa ou ovalada, vasilhas
com decorações plásticas corrugadas, unguladas, digitadas, raspadas, escovadas, quase sempre encontradas
no exterior do vaso, assim como o uso de pigmentos vermelho, preto e branco, que aparecem como
banhos, faixas e/ou motivos geométricos, dentro ou fora dos vasos. Urnas funerárias também são comuns
e, em geral, são reutilizações de grandes panelas cobertas por uma tigela (Buarque, 2010; La Salvia; Brochado,
1989).
A Tradição Tupiguarani pode ser divida em três subtradições: Subtradição Guarani, Subtradição Tupinambá
da Mata Atlântica (ou do litoral) e Subtradição Tupinambá da Amazônia. Neste artigo será discutida a
cerâmica dessa última Subtradição como também, de maneira sucinta, outros elementos que caracterizam
esse agrupamento: o lítico, a terra preta, os padrões de assentamento e os formatos das aldeias. Para
compreender o contexto do sudeste amazônico, será necessário também discutir os possíveis fatores que
asseguraram a persistência ou levaram a mudanças na cerâmica desses grupos, as semelhanças e diferenças
com relação a outros grupos Tupi, assim como as possíveis influências que grupos não Tupi tiveram e
que podem ser identificadas na cerâmica dos Tupi-Guarani.
A presença de cerâmica Tupi-Guarani nas bacias dos rios Xingu e Tocantins foi inicialmente definida
por pesquisas do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica (PRONAPABA),
conduzidas respectivamente por Celso Perota (1992) e Mário Simões (Simões; Araújo-Costa, 1987).
Posteriormente, as pesquisas prosseguiram por meio de projetos de arqueologia de contrato (e.g. Caldarelli,
Araújo-Costa; Kern, 2005; Scientia, 2008), com destaque para uma série de levantamentos na área de
interflúvio entre esses rios, na serra dos Carajás (e.g. Kipnis; Caldarelli; Oliveira, 2005; Magalhães, 1994;
Pereira et al., 2008; Silveira et al., 2008; Simões, 1986) e outras áreas de mineração (Garcia, 2012).
Além dessas pesquisas, um grande número de sítios na área de encontro dos rios Tocantins e Araguaia
foi levantado pela Fundação Casa da Cultura de Marabá, sob a coordenação de Noé Von Atzigen. Foi
na área de encontro desses rios, foco central deste artigo, que existiu um dos maiores núcleos pré-coloniais
de ocupação Tupi-Guarani (Almeida, 2010)(Figura 1).
Essas pesquisas, muitas ainda em andamento, têm permitido a construção de um quadro cronológico bastante
consistente para a Subtradição Tupinambá da Amazônia, com mais de 60 datações radiocarbônicas ou de
1. Atributos que são recorrentes, mas cuja presença individual não é necessariamente obrigatória para a inserção de uma determinada indústria nessa Tradição.
172
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
Figura 1. Localização de sítios Tupi-Guarani na bacia do baixo rio Tocantins (Google Earth).
termoluminescência. As datas sugerem que os Tupi-Guarani ocupavam o sudeste amazônico desde pelo
menos o século 1700 AP até o século 200 AP, período em que vários relatos históricos (e.g. Vieira, 1997
[1659]) já indicavam a presença de grupos Tupinambá na região (cf. Almeida, 2008; Garcia, 2012; Pereira
et al., 2008; Silveira et al., 2008). Ainda hoje, uma série de grupos Tupi-Guarani, como os Asurini, os
Araweté e os Parakanã, segue habitando essa região, incluindo áreas a leste do baixo Tocantins e no interior
do atual estado do Maranhão (e.g. os Tenetehara, os Ka’apor e os Awá-Guajá). Dentre esses grupos, os
únicos Tupi-Guarani a ainda produzirem cerâmica são os Asurini (cf. Müller, 1990, 1992).
Apesar de poucos dados disponíveis, tanto a etnografia (cf. Fausto, 2001; Viveiros de Casto, 1986) quanto
a arqueologia (Almeida; Garcia, 2008) da região sugerem que não havia um de padrão na organização
das casas dos Tupi-Guarani: muitas vezes dispersas de maneira aleatória, às vezes seguindo um formato
circular ou ainda restritas a uma grande cabana. Trabalhos de etnoarqueologia (Silva, 2000) e de arqueologia
(Almeida, 2008) também apontam a existência de lixeiras nos arredores das aldeias. Nessas áreas de deposição
secundária (cf. Schiffer, 1987), onde os fragmentos cerâmicos são encontrados desarticulados, em posições
verticais e transversais, também são frequentes detritos de material lítico, restos de carvão e fauna. Observou-
se, no entanto, que alguns sítios (e.g. Cavalo Branco) possuíam grande quantidade de material bem
estruturado, com disposição horizontal na subsuperfície, o que remete a um possível contexto primário
de deposição.
A etnografia (cf. Balée, 1994) e a arqueologia (Almeida; Garcia, 2008; Garcia, 2012) parecem estar de
acordo quanto a um padrão de reocupação dos sítios, que ocorre tanto em áreas previamente habitadas
por grupos Tupi-Guarani como em locais antes habitados por grupos produtores de cerâmicas distintas.
Fundamental para a compreensão dos processos de reocupação é considerar possíveis estruturas temporárias
(para caça, pesca ou roça) no entorno das aldeias. Estruturas estas que serviam para mapear (uma cartografia
geográfica e mítica) o território de um grupo que de outra forma não possuía limite geográfico definido
(cf. Ladeira, 2008).
173
A grande diferença entre o tamanho dos sítios, variando de algumas dezenas de metros a vários hectares,
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
com significativas diferenças entre a tecnologia cerâmica e lítica, é um forte indicador da distinção entre
aldeia e estrutura temporária. A presença de pacotes rasos de terra preta (+-30 a 40 cm), com coloração
mais clara do que as identificadas, por exemplo, em sítios nas margens do rio Amazonas (cf. Petersen,
Neves; Heckenberger, 2001; Kern, 1996), assim como o espaçamento entre as datações de um mesmo
sítio contribuem para que se argumente a favor de uma grande mobilidade por parte desses grupos (Denevan,
2001; Almeida, 2008; Almeida; Garcia, 2008).
O material lítico é restrito a uma indústria expedita, com predomínio de lascas corticais unipolares ou
bipolares, por vezes retocadas, produzidas com o material encontrado nos sítios ou nas áreas de entorno,
especialmente seixos de rio. No caso do baixo Tocantins, é comum encontrar vestígios de silexito, arenito
silexificado, quartzo ou quartzito (Almeida, 2008). Os artefatos polidos, lâminas de machado e os adornos
(tembetás?) fogem desse padrão expedito do material lítico (Figura 2). Nos sítios do baixo Tocantins e
do interior maranhense é comum encontrar lâminas de machado em “T”. Souza (2013) sugere que esse
tipo de artefato seria um diagnóstico lítico dos grupos Tupi-Guarani.
Figura 2. Material lítico polido encontrado no sítio São José, baixo Tocantins (Foto: Fernando Ozorio de Almeida).
174
também podiam ser ressaltados por faixas vermelhas, brancas e/ou pretas. As pintadas (vermelhas, pretas,
175
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
Figura 3. Decoração plástica e pintada dos Tupi-Guarani do baixo Tocantins (Foto: Fernando Ozorio de Almeida).
176
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
Figura 4. Tipos de formas encontradas no sítio Cavalo Branco, baixo Tocantins.
urna e tampa funerárias. Nota-se, entretanto, uma baixa presença de urnas funerárias nos sítios arqueológicos
dos antigos Tupi-Guarani amazônicos, o que permite pensar, com base na etno-história dos Tupinambá
do litoral (cf. Fernandes, 1963, 1970) e da etnografia dos Araweté do sudeste amazônico (Viveiros de
Castro, 1986), que a estrutura funerária ideal (e mais recorrente) era o estômago do inimigo.
É possível dizer que a iconografia dos Tupi-Guarani pode, de maneira quase unânime, ser inserida no
conjunto das figuras geométricas bidimensionais. Dentre as várias possibilidades, é possível identificar
uma recorrência de motivos antropomorfos – o que pode ser visto como uma nítida distinção frente ao
clássico modelado tridimensional zoomorfo encontrado na cerâmica da Tradição Barrancoide – seja ela
na forma de gregas (cf. Müller, 1990: 250), seja na forma de outros padrões (Figura 5).
Durante o longo período em que foram produzidos os utensílios da Tradição Tupiguarani, ocorreram
mudanças estilísticas nesses materiais. Um dos maiores desafios atuais da chamada “arqueologia Tupi” é
compreender como essas mudanças ocorreram em diferentes contextos. Sabe-se, por exemplo, que a maior
distinção cronotipológica já proposta para a arqueologia desses grupos, uma que dividia a cerâmica em
agrupamentos (Subtradições) Corrugados, Escovados e Pintados, não funciona (Prous, 1992: 411). Pode-
se dizer que a presente perspectiva de análise de cerâmica, ao utilizar uma grande quantidade de atributos
politéticos para caracterizar as indústrias cerâmicas e assim escapar das armadilhas essencialistas do uso
177
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
Figura 5. Acima, a relação entre as gregas e o antropomorfismo, segundo Ribeiro (1989); no centro, os motivos em gregas do
sítio Cavalo Branco; abaixo, outros motivos do mesmo sítio.
de atributos tipo “fóssil-guia”, cria para si mesmo uma maior dificuldade quanto à compreensão de mudanças
de frequência no tempo (Needham, 1975: 358). Da mesma forma, a inserção de possíveis diferenças
espaciais intrassítios da cerâmica adiciona mais uma variável, que complexifica a leitura vertical (quem
escava só uma unidade não possui esse problema!). O que não impede a busca pela identificação e
interpretação das variações e da variabilidade através do tempo.
Parte das mudanças resulta de inovações ou de recombinações de elementos por parte das ceramistas,
dentro de uma restrita gama de possibilidades disponíveis, estabelecida por uma rígida estrutura de
práticas. A consolidação de uma alteração dentro da estrutura estilística provavelmente necessitaria,
178
antes, da aprovação das pares artesãs: a estrutura só pode ser alterada por quem já faz parte dela (Bowser;
179
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
Entre os Tupi
A falta de informação sobre a cerâmica dos demais grupos Tupi – visto que a família Tupi-Guarani é
apenas uma dentre as dez famílias que compõem o tronco Tupi – dificulta identificar se a mesma correlação
entre língua e cultura material se repete nas demais famílias. Os poucos dados disponíveis parecem indicar,
entretanto, que Miller (2009) está correto (pelo menos em alguns casos) em defender a existência de
um estilo particular para cada uma das famílias. As amplas lacunas sobre a olaria dos demais grupos
Tupi também dificultam a comparação desta com a Tradição Tupiguarani, ainda que algumas inferências
possam ser feitas. Por exemplo, o conjunto de vasos para preparo, armazenamento e serviço de fermentados
documentado etnograficamente (Caspar, 1958) e arqueologicamente (Miller, 1983; Cf. Almeida, 2013b)
para os Tupi-Tupari (grupos que habitam a bacia do Médio Guaporé) parece semelhante ao mesmo conjunto
funcional Tupi-Guarani. Um conjunto funerário similar também pode ser encontrado na bacia do alto
rio Ji-Paraná, local tradicionalmente habitado por grupos Tupi-Mondé (Almeida, 2013b; Miller, 2009),
que aparentemente também (como os Tupi-Guarani) utilizavam decorações corrugadas em suas cerâmicas
(Cruz, 2008; Zimpel Neto, 2009). A semelhança das formas de muitos vasos arqueológicos do alto Ji-
Paraná e a cerâmica até hoje produzida pelos grupos Suruí (Tupi-Mondé da região) fornece outro argumento
a favor dessa hipótese. No entanto, se Miller (2009) estiver correto na sua correlação entre a cerâmica
da Tradição Jamari e os grupos Tupi-Arikém – e a proximidade entre os dados arqueológicos e etno-
históricos sugere que sim – significa uma provável completa ausência de afinidade entre esse estilo cerâmico
e o dos Tupi-Guarani.
Um elemento que parece diferenciar os Tupi-Guarani dos demais Tupi é a ampla presença de decorações
pintadas na cerâmica dos primeiros. A distribuição geográfica dos Tupi ao longo da bacia sul do Amazonas
talvez seja a chave para explicar essa diferença. Isso porque são justamente os grupos orientais, nas bacias
dos rios Xingu e Tocantins, os que aplicavam a policromia em seus vasos. Contribui para esse quadro o
fato de os vasos Juruna (os únicos Tupi não Tupi-Guarani da Amazônia Oriental) possuírem essa policromia
(Oliveira; Galvão, 1969), assim como o fato de os grupos Tupi-Guarani amazônicos mais ocidentais, que
habitavam a bacia do rio Tapajós (e.g. Kayabi e Kawahiva), não utilizarem essa policromia (cf. Stuchi,
2010), o que talvez signifique que nem todos os grupos Tupi-Guarani produziam cerâmica de estilo homônimo.
Uma das mais significativas consequências de separar geograficamente os grupos Tupi ocidentais e orientais
e de ligar a gênese do estilo cerâmico Tupi-Guarani aos grupos orientais é um deslocamento para leste
no foco da área-chave para a compreensão da dispersão dos grupos Tupi-Guarani. Em outras palavras, a
chamada expansão Tupi-Guarani (cf. Brochado, 1984; Lathrap, 1970; Noelli, 1996) não teria ocorrido
a partir da bacia do Alto Madeira, no atual estado de Rondônia, conforme advogaram linguistas (Rodrigues;
Cabral, 2012; Migliazza, 1982) e arqueólogos (Miller, 2009; Schmitz, 1991). Os movimentos de migração
e expansão dos grupos Tupi-Guarani produtores de cerâmica homônima teriam ocorrido a partir do
sudeste amazônico, no entorno das bacias dos rios Xingu e Tocantins, local com maior diversidade linguística
dentro dessa família (Melo; Kneipp, 2006) e maior diversidade estilística (Revista Mana, 21(3): 499-
525. 2015).
No entanto, essa divisão geográfica entre os grupos Tupis orientais e ocidentais e entre presença/ausência
de policromia pode ser demasiadamente simplista ao se considerar a presença da chamada Tradição Polícroma
da Amazônia (TPA) em sítios no Alto Madeira e no Alto Amazonas, áreas historicamente ocupadas por
180
grupos Tupi. Não será aprofundada aqui a possível relação entre os Tupi e a TPA. No momento, o que
181
nas cerâmicas Uru e Aratu e vice-versa. No contexto amazônico, no interflúvio Xingu-Tocantins, Garcia
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
(2012, Capítulo XX) identificou elementos de uma antiga cerâmica inciso-modelada em cerâmicas Tupi-
Guarani, levando a uma confusão classificatória no momento de definir a chamada fase Carapanã
(Figueiredo, 1965; Simões; Corrêa; Machado, 1973). Da mesma forma, a cerâmica da fase Tauá do baixo
Tocantins parece possuir ao mesmo tempo elementos Tupi-Guarani, Inciso-Modelados e Marajoaras
(Almeida, 2013b; cf. Miller et al., 1992; Meggers et al., 1988; Nimuendaju, 2004; Simões; Araújo-Costa,
1987), o que dificulta inserir essa fase em uma classe arqueológica específica, assim como compreender
o significado de tamanha variabilidade (provavelmente relacionada a núcleos de interação).
Em síntese, o que se pode observar nesse momento é um quadro de grande complexidade, com muitas
variáveis na história cultural dos grupos Tupi-Guarani. Grande parte dessa complexidade deve-se à inserção
da arqueologia dos grupos amazônicos dessa língua e Tradição na discussão. Os estudos dos sítios da Subtradição
Tupinambá da Amazônia possuem um imenso potencial de pesquisa, como a caracterização da variabilidade
artefatual no tempo e no espaço dos vestígios desses grupos, a relação com os seus vizinhos Timbira (para
leste), os diversos grupos Jê do Brasil Central, os grupos que habitaram a Ilha do Marajó ao norte, e os
demais grupos Tupi que ocupavam extensas áreas para o oeste. O fato de que o sul da bacia amazônica, a
região ocupada por muitos grupos Tupi, é uma das áreas que sofrem maior pressão por parte dos interesses
econômicos privados e estatais, torna urgente a divulgação dos dados que retratam a imensa riqueza histórica
desses grupos. Espera-se que este artigo seja uma pequena contribuição neste sentido.
182