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R ev ista do M useu

de
A rq u eo lo g ia e Etn olo g ia

U n iv e r sid a d e de São Paulo

N s 11 2001
REVISTA DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

Comissão Editorial

Maria Beatriz Borba Florenzano


Maria Christina de Souza Lima Rizzi
Maria Cristina Mineiro Scatamacchia
Maria Isabel D'Agostino Fleming
Paulo De Blasis

Editora Responsável

Maria Isabel D'Agostino Fleming

Conselho Editorial

Ana Mae Tavares Barbosa Lux Vidal


Antonio Porro Maria Luiza Corassin
Augusto Titarelli Maria Manuela Carneiro da Cunha
Aziz N. Ab'Saber Maria Margareth Lopes
Carlos Serrano Niède Guidon
Fábio Leite Noberto Luiz Guarinello
Felipe Tirado Segura Oscar Landmann
Gabriela Martin D'Ávila Pedro Ignácio Schmitz
Igor Chmyz Pedro Paulo Abreu Funari
Jacyntho Lins Brandão Roberto Cardoso de Oliveira
José Antonio Dabdab Trabulsi RudolfWinkes
Kabengele Munanga Solange Godoy

Pede-se permuta
We ask fo r exchange

Av. Prof. Almeida Prado, 1.466


Cidade Universitária - São Paulo, SP
CEP 05508-900 - FAX 3818-5042 - 3818-4888
ISSN 0103-9709

R ev ista do M useu
de
A rq u eo lo g ia e Etn o lo g ia

U n iv e r s id a d e de S ão Pau lo

publicação anual

N 2 11

2001

S ão P a u l o , B rasil
Capa: p ele de onça bororo coletad a por Natterer. In Kann, P.; Dorn, R. D ie
oesterreichische Brasilien-E xpedition 1817-1836. W. Seipel (Ed.) D ie E n tdeck­
ung d e r Welt, D ie Welt d e r E ntdeckung: O esterreich isch e Forscher, Sammler,
Abenteurer. Viena, KHM: 217-255. 2001.
Sumário

ARTIGOS

3 Margarita Díaz-Andreu - Nacionalismo y Arqueologia: el contexto


político de nuestra disciplina

21 Lúcio M. Ferreira - “Um Bando de Idéias Novas na Arqueo­


logia” (1870-1877)

35 Johnni Langer - Os sambaquis e o Império: escavações,


teorias e polêmicas, 1840-1889

55 Mário Sérgio Celski de Oliveira - De Guaratuba a Babitonga: uma contri­


Norberto Olmiro Hom Filho buição geológico-evolutiva ao estudo
da espacialidade dos sambaquianos no
litoral norte catarinense

77 Andrea Lessa - Reflexões preliminares sobre a questão


João Cabral de Medeiros da violência em populações construto­
ras de sambaquis: análise dos sítios
Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ)

95 Adriana Schmidt Dias - Sistema tecnológico e estilo: as implica­


Fabíola Andréa Silva ções desta interrelação no estudo das
indústrias líticas do sul do Brasil

109 Paulo Jobim Campos Mello - Possibilidades de interpretação da cadeia


Sibeli Aparecida Viana operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT)

125 Astolfo Gomes de Mello Araújo - Arqueologia da região de Rio Claro:


uma síntese

141 Denise Pahl Schaan - Os dados inéditos do Projeto Marajó


(1962-1965)

165 Walter Fagundes Morales - A cerâmica “neo-brasileira” nas terras


paulistas: um estudo sobre as possibili­
dades de identificação cultural através
dos vestígios materiais na vila de
Jundiaí do século XVIII

189 Gregório Cardoso Tápias Ceccantini - Os novelos de fibras do abrigo rupestre


Luciana Witovisk Gussella Santa Elina (Jangada, MT, Brasil):
anatomia vegetal e paleoetnobotânica

201 Maria Beatriz Borba Florenzano - Fontes sobre a origem da moeda:


apresentação crítica

213 Jonathan Mark Hall - Quem eram os gregos


227 Alfredo José Altamirano Enciso - Lesión litica craniana por Leishmaniasis
João Soares Moreira en Makat-tampu durante el império
Mauro C.A. Marzochi inca: siglos XV-XVI, valle dei Bajo
Rímac, Peru

243 Gordon Brotherston - ‘Meaning in a Bororo jaguar skin’

ESTUDOS DE CURADORIA

263 Mareia Bezerra de Almeida - An archaeological view of the Amazo­


nian ethnographic collections at the
National Museum of Rio de Janeiro,
Brazil: reviewing function

275 Pedro Paulo A. Funari - MAE-USP amphora collection: vessels


and inscriptions

283 Alessandra Cristina Monteiro de Castro - Figurinhas femininas sírias e iranianas


Trigo no acervo do MAE/USP

ESTUDOS BIBLIOGRÁFICOS

303 Gilson Rodolfo Martins - Contribuições da Etno-História para a


arqueologia do nordeste do Mato
Grosso do Sul, na área impactada pelo
gasoduto Bolivia-Brasil

311 Francisco Silva Noelli - Resenha: GASPAR, M. Sambaqui:


arqueologia do litoral brasileiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 89 p.

313 Paulo De Blasis - Resenha: WATKINS, J. Indigenous


archaeology. American Indian values
and scientific practice. Walnut Creek
(CA), Alta Mira Press, 2000, 234p.,
ISBN 0-7425-0329

NOTAS

317 Elaine F. Veloso Hirata - Arqueologia e Educação: uma pro­


Judith Mader Elazari posta para o Engenho São Jorge dos
Jussara Moritz Erasmos (Santos, SP)

323 André Costa - O Engenho São Jorge dos Erasmos -


Silvio Cordeiro imagens da redescoberta

327 Maria Cristina Mineiro Scatamacchia - Considerações sobre a pesquisa arqueo­


Cleide Franchi lógica na área urbana de Barueri

331 Resumos de teses e dissertações do


MAE/USP, 2001
Contents

ARTICLES

3 Margarita Díaz-Andreu - Nationalism and Archaeology: the poli­


tical context of our discipline

21 Lúcio M. Ferreira - “A whole bunch of new ideas in


Archaeology” (1870-1877)

35 Johnni Langer - The shellmounds and the Empire:


excavations, theories and contro­
versies, 1840-1889

55 Mário Sérgio Celski de Oliveira - From Guaratuba to Babitonga: a


Norberto Olmiro Hom Filho geologic-evolutionary contribution to
the study of the spatial distribution of
the shell mound builders on the northern
coast of Santa Catarina

77 Andrea Lessa - Preliminary thoughts about the occu­


João Cabral de Medeiros rence of violence among the Brazilian
shellmound builders: analysis of the
skeletons from Cabeçuda (Santa Catarina)
and Arapuan (Rio de Janeiro) sites

95 Adriana Schmidt Dias - Technological systems and style: the


Fabíola Andréa Silva implications of this interrelationship in
the study of lithic industries of southern
Brazil

109 Paulo Jobim Campos Mello - Possibilities of interpretation of the


Sibeli Aparecida Viana operational sequence for the stone tool
production - Pedreira site (MT)

125 Astolfo Gomes de Mello Araújo - Archaeology from Rio Claro region: a
synthesis

141 Denise Pahl Schaan - The unpublished data of the Marajo


project (1962-1965)

165 Walter Fagundes Morales - The “neo-Brazilian” ceramics in the


Paulista territories: a study on the
possibilities of cultural identification
on archaeological remains from eigh­
teenth century Jundiaí village

189 Gregório Cardoso Tápias Ceccantini - Plant anatomy and palaeoethnobotany


Luciana Witovisk Gussella at Santa Elina shelter (Jangada, MT,
Brazil)

201 Maria Beatriz Borba Florenzano - The origins of coinage: archaeological


and literary sources
213 Jonathan Mark Hall - Who were the Greeks

227 Alfredo José Altamirano Enciso - Lytic skull lesion by Leishmaniasis at


João Soares Moreira Makat-Tampu during the Inca Empire:
Mauro C.A. Marzochi XV-XVI centuries, Rimac Valley, Peru

243 Gordon Brotherston - ‘Meaning in a Bororo jaguar skin’

CURATORSHIP STUDIES

263 Marcia Bezerra de Almeida - An archaeological view of the Amazo­


nian ethnographic collections at the
National Museum of Rio de Janeiro,
Brazil: reviewing function

275 Pedro Paulo A. Funari - MAE-USP amphora collection: vessels


and inscriptions

283 Alessandra Cristina Monteiro de Castro - Sirian and Iranian feminine figurines in
Trigo the collections of MAE/USP

BIBLIOGRAPHICAL STUDIES

303 Gilson Rodolfo Martins - Ethnohistoric contributions to the


archaeology of northeastern Mato
Grosso do Sul - Brazil

311 Francisco Silva Noelli - Review: GASPAR, M. Sambaqui:


arqueologia do litoral brasileiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 89 p.

313 Paulo De Blasis - Review: WATKINS, J. Indigenous


archaeology. American Indian values
and scientific practice. Walnut Creek
(CA), Alta Mira Press, 2000, 234p.,
ISBN 0-7425-0329

NOTES

317 Elaine F. Veloso Hirata - Archaeology and education: activities


Judith Mader Elazari at the Engenho São Jorge dos Erasmos
Jussara Moritz (Santos, SP - Brazil)

323 André Costa - The “Engenho São Jorge dos Erasmos”


Silvio Cordeiro - Images of a rediscovery

327 Maria Cristina MineiroScatamacchia - Notes on the archaeological research at


Cleide Franchi the urban area of Barueri (S.P. - Brazil)

331 Abstracts of PhD dissertations and


masters theses of MAE/USP, 2001
Artigos
Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

NACIONALISMO Y ARQUEOLOGIA:
EL CONTEXTO POLITICO DE NUESTRA DISCIPLINA

Margarita Díaz-Andreu*

DIAZ-ANDREU, M. Nacionalism o y Arqueologia: el contexto político de nuestra


disciplina. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

RESUMO: Neste artigo discute-se como as identidades atuais e, concreta­


mente, a nacionalista influem na forma como pensamos sobre o passado.
Argumentarei que não se pode entender o trabalho arqueológico fora de seu
contexto sócio-político, no qual as identidades desempenham um papel
crucial. A emergência da Arqueologia como uma disciplina profissional esteve
intimamente relacionada com o êxito do nacionalismo como uma opção
política que levaria à criação do Estado moderno, passando, desta forma, de
uma atividade erudita a uma disciplina profissional. Farei um contraste entre a
prática arqueológica desses dois últimos séculos com os diversos períodos
pelos quais passou o nacionalismo. Terminarei argumentando que, apesar
dessas mudanças, esta ideologia política ainda mantém sua importância e
ilustrarei minha hipótese referente à integração das comunidades indígenas e
o patrimônio de seu passado.

UNITERMOS: Arqueologia e política - Nacionalismo - Patrimônio -


Indígenas.

Toda disciplina científica tiene una historia En un plano más concreto, para la historio­
tras de sí que determinados miembros dentro grafía de cada país existen obras más específi­
de la comunidad científica se han dedicado a cas de carácter general o particular como las
investigar y describir. Quien se interesa por el de Alessandro Guidi (Guidi 1988) o Marcelo
pasado de la arqueología puede acudir a las Barbanera (Barbanera 1998) en Italia, Emst
magníficas obras de carácter general produ­ Wahle en Alemania (Wahle 1950, 1951), Pedro
cidas por Glyn Daniel (Daniel 1975), Amaldo Funari (Funari 1992) en Brasil, Ignacio Bemal
Momigliano (Momigliano 1955 (1950), Bruce (Bemal 1979) y Luis Vázquez León en México
Trigger (Trigger 1989), o Alain Schnapp (Vázquez León 1996); Chakrabarti (Chakrabarti
(Schnapp 1993) por citar a los más conocidos. 1988) en India, etc. Todas estas historias de la
arqueología, sin embargo, adoptan una óptica
internalista, es decir, que fundamentalmente
(*) Departament o f A rchaeology, U niversity o f discuten qué autor dijo qué cosa en qué época
Durham, South Road, Durham DH1 3LE, Reino y lo que sus ideas supusieron para el progreso
U nido. de la ciencia. La visión que estos autores

3
D IA Z-A N D R EU , M. N acionalism o y Arqueologia: el contexto p olítico de nuestra disciplina. Rev. do M useu de
A rqu eologia e E tn o logia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

ofrecen se podría caricaturizar como la de una unos años fundamentalmente en lengua


lucha heróica llevada a cabo por valientes y inglesa (ver bibliografía final). En concreto mi
sabios intelectuales/arqueólogos (pocas objetivo será describir cuál es la relación entre
arqueólogas suelen salir en estas historias) en la arqueología como disciplina científica y la
su conquista del Conocimiento sobre el ideología política del nacionalismo. Intentaré
pasado. De vez en cuando aquí y allí en los explicar hasta qué punto ambas están conecta­
textos surgen comentarios sobre el papel das, cómo es posible trazar una conexión entre
político que tuvo la arqueología en momentos el surgimiento del nacionalismo y un cambio
de crisis, fundamentalmente durante regímenes radical en el estudio del pasado arqueológico.
totalitarios tipo el Nacional Socialista en A partir del éxito del nacionalismo como teoría
Alemania o el fascista en Italia. La impresión política a finales del siglo XVIII, la arqueología
que dan estas obras es que esta relación con dejó de ser una actividad secundaria para
la política es conyuntural, que nunca tuvo convertirse en un quehacer profesional. La
gran importancia en el desarrollo de la arqueo­ nueva importancia que adquirió el conoci­
logía como teoría política. miento sobre el pasado llevo al estado-nación
Si acudimos a otros disciplinas humanís­ a proveer las subvenciones necesarias para
ticas como la historia, sin embargo, encontra­ crear y mantener un cuerpo profesional, para
mos otro posicionamiento. Como R. Kühnl que se la arqueología se impartiera como una
observa: disciplina más en las universidades, para que
Un libro de historia nunca se limita a la
se abrieran museos especialmente dedicados a
narración aséptica a la información neutral de la exposición de los objetos antiguos y se
los hechos. La mera selección de los datos por sí promulgaran legislaciones con el objetivo
misma requiere un juicio sobre lo que es esencia o proteger la labor arqueológica y el estudio del
no. Toda exp osición histórica contiene, exp lícita pasado. Una vez que haya aclarado esta
o im plícitam ente, una interpretación esp ecífica
relación entre la ideología política del naciona­
de las causas, de los factores condicionantes y de
las fuerzas que llevaron o impidieron un lismo y la institucionalización de la arqueo­
determinado desarrollo histórico... Es decir, que logía, entonces realizaré una reflexión sobre la
una ‘científicam ente pura’ exp osición histórica relación entre el desarrollo de las ideas en la
no existe, dado que todos los discursos y arqueología - fundamentalmente el histori-
exp licacion es tienen im plicaciones políticas.
cismo cultural todavía de tanta influencia - y
(Kühnl 1 9 8 5 ).1
el contexto político en el que se éste se dió.
En estos últimos años también en la
historia de la arqueología ha habido autores
que han adoptado una actitud más crítica La nación y el pasado
(Mora 1998, Patterson 1995). Estos, sin dejar a
un lado el desarrollo de las ideas tan habitual La primera pregunta que habré de respon­
en los investigadores citados más arriba - der para explicar mi hipótesis sobre la relación
puesto que el conocimiento sobre como éste entre la arqueología y el nacionalismo es
se transformó también es importante - han porqué el pasado es relevante para este último.
prestado una mayor atención al contexto Si acudimos al libro de Alain Schnapp (1993) o
socio-político en el que se ha producido el a autores como Richard Bradley (Bradley 1996,
devenir histórico de la arqueología. En este 1998) en ellos queda claro que el estudio del
artículo mi intención será centrarme precisa­ pasado se ha producido desde épocas muy
mente en ese contexto, sintetizando de esta anteriores a la emergencia de dicha teoría
manera ideas que he desarrollado en varios política, que la memoria histórica ha estado
trabajos publicados por mí misma desde hace presente desde periodos tan antiguos como el
neolítico europeo, las primeras sociedades con
escritura, las épocas clasicas griegas y roma­
(1) Todos los textos cuyo original se halla en otro nas y el medievo. Incluso se puede sospechar
idioma han sido traducidos por la autora de este que esta importancia del pasado estaba
trabajo. presente incluso antes, entre cazadores-

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A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11\ 3-20, 2001.

recolectores (Layton 1989b). Pero pese a caso que aquél otro adoptado por los movi­
reconocer esta trascendencia del conocimiento mientos pre-románticos que también se desar­
sobre el pasado y a veces incluso de los rollaron en aquel siglo (Smith 1976). La racio­
restos de cultura material provenientes de él, nalidad adquirió un puesto fundamental en este
lo cierto es que solamente a partir de los siglos siglo. Ideas como ‘utilidad’, ‘ciudadanía’,
XIV y XV fue cuando por primera vez a ‘nación’, etc. comenzaron emplearse con cada
determinados individuos de la sociedad se les vez mayor frecuencia (Mora 1998).
permitió especializarse de una manera más A partir del último tercio del siglo XVIII en
definitiva y continuada en el estudio del el plano político las ideas de la ilustración
pasado y de sus restos materiales. Fue en este comenzaron a dar fruto en una serie de revolu­
momento cuando se produjo una transforma­ ciones: la de 1776 que dió paso a la indepen­
ción radical en este interés que serán las dencia de los Estados Unidos de América, la
primeras raices que al cabo de tres siglos de 1783 en Holanda, la de 1789 en Francia, las
terminarán llevando a la definitiva aceptación posteriores en diversos paises europeos y en
de la arqueología como diciplina científica. toda Latinoamérica que se saldaron con la
En los siglos XIV y XV se produjo en independencia de prácticamente todo el
Europa un cambio de tipo social y político que continente americano en las primeras décadas
llevaría a la larga a la aparición del estado del siglo XIX. En todos estos países, la
moderno. En esta Europa en transformación las racionalidad ilustrada llevada a su conse­
élites comenzaron a interesarse por los objetos cuencia lógica, empujaría a las clases medias a
antiguos de una manera nunca conocida antes, rechazar a los gobernantes que no resultaran
ni siquiera durante el periodo romano, momento útiles para la nación. Es decir, por primera vez
en el que las estatuas griegas habían atraído se hacía posible contestar la legitimidad
gran atención. Lo que las élites renacentistas política del sistema que había reinado en la
buscaban en las antigüedades era simbolizar su práctica totalidad del mundo occidental desde
poder con metáforas diferentes a las que se la caida del imperio romano: la monarquía y el
habían empleado en época medieval. En su sistema social al que éste iba a asociada en el
lucha contra el poder eclesiástico el lenguaje de que la cada vez mayor clase media tenía poca
la antigüedad - sobre todo de la antigüedad cabida. Pero si la monarquía había sido hasta
clásica - cobró una importancia nunca antes aquel momento la base del estado, a partir de
experimentada. De esta forma dejó de ser ahora un nuevo concepto debía ponerse en su
ocasional que un individuo poderoso acudiera lugar y este fue el de nación.
al pasado como forma de mostrar su posición ‘Nación’ era una palabra de origen latino
en la sociedad, como había pasado en Babilo­ que se había empleado tanto en latín como en
nia, Grecia o Roma (Schnapp 1993). A partir del las lengua romances derivadas del mismo
siglo XIV y XV en primer lugar en Italia, este desde la época romana. Significaba lugar de
tipo de argumentación empezó a ser por así origen, tanto el pueblo, la región, comarca o el
decirlo un requerimiento y por ello las élites país. Este uso tan amplio quedó restringido a
políticas comenzaron a emplear a su servicio a partir de finales del siglo XVIII, cuando el
anticuarios que les proporcionaran el prestigio término empezó a emplearse fundamentalmente
que ellos necesitaban (Rosenberg 1990). Esta para referir al territorio estatal. Es necesario
moda que se inició en Italia fue más tarde aclarar en este punto, sin embargo, que los
copiada por el resto de los países europeos a especialistas en el estudio de nacionalismo
partir de los siglos XV y XVI (Schnapp 1993), distinguen dos tipos fundamentales de
pues la nueva expresión de autoridad permitía a definición de nación que se relacionan con los
las élites de todos ellos reivindicar el poder dos tipos principales de nacionalismo: nacio­
secular y dejar definitivamente atrás el código nalismo cívico o político por una parte y por la
político medieval. Tras los problemas religiosos otra nacionalismo cultural o étnico.
del siglo XVII, durante la ilustración del siglo El nacionalismo que surgió en la revolu­
XVIII el lenguaje basado en lo clásico adquirió ción francesa de 1789 (por escoger a la más
de nuevo una gran importancia, mayor en todo famosa de todas las revoluciones mencionadas

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anteriormente) fue el nacionalismo cívico o ca, donde los nuevos estado-nación claramen­
político. En realidad somos nosotros los que te incluso superaron en tamaño a los euro­
ahora lo denominamos así, pues en aquel peos. Salvo excepciones - y el caso de
momento el término nacionalismo ni siquiera Dinamarca es el único que se me ocurre y de él
estaba en uso, ya que sólo se tiene documen­ me ocuparé más adelante - sólo será en estos
tado a partir de 1812 en Francia y 1836 en países donde veamos surgir la arqueología
Inglaterra (Huizinga 1972: 14). Lo que sí que se profesional, una arqueología en un principio
empleaba en aquel momento con gran énfasis centrada en el estudio de lo clásico, lo que
era el concepto de ‘nación’. Para el nacionalis­ dificultará su éxito en América.
mo cívico o político el término ‘nación’ estaba Este criterio de tamaño es el que permitiría a
unido a los conceptos heredados de la ilustra­ la larga el éxito de las ideas nacionalistas de tipo
ción neoclásica que ahora se asociaron unificador tanto en Italia como en Alemania.
íntimamente con la nación: ciudadanía, territo­ Pero la creación de estados nuevos a partir de
rio, derechos y deberes iguales para todos los naciones supuso un cambio radical en el
ciudadanos, educación universal e ideología nacionalismo. Hasta entonces era el estado el
cívica (Smith 1991: 9-10). La importancia de la que había dado lugar a la nación. A partir de la
historia antigua como modelo donde aprender unificación de ambos países, cabía la posibi­
sobre la sabiduría del pasado que ya habíamos lidad de que fuera la nación la que diera lugar al
visto que empezó en el siglo XVIII se afianzó estado. Las unificaciones de Italia y Alemania
ahora. Pero además la nueva consideración en 1870 y 1871 evidenciarían un cambio radical
dada a la educación implicó la apertura de en el nacionalismo, puesto que el nacionalismo
museos donde exponer objetos provenientes de cívico o político daría paso al nacionalismo
la antigüedad clásica y esto llevó a la necesidad cultural o étnico. Este provenía de las ideas pre-
de tener profesionales que se ocuparan de ellos románticas del siglo XVIII (Smith 1976) en las
y por tanto a la de incluir la arqueología entre que ‘nación’ se asoció con ideas en principio
los saberes impartidos en la universidad o en muy diferentes. La justificación para la unión de
las escuelas de educación superior. Es decir, el países como Italia o Alemania no podía ser otra
nacionalismo cívico llevó a la instituciona- que la existencia de unas características comunes
lización de la arqueología. Ya no eran los pocos que fusionaban de forma natural a una serie de
anticuarios de siglos anteriores pagados por pueblos de manera que hacían legítima la defensa
reyes, nobles o personas con medios econó­ de su existencia como nación y por tanto su
micos. Ahora era el estado el que se ocupó de derecho a exigir la independencia política.
subvencionar a un cuerpo profesional de Los rasgos comunes que unían a la nación
arqueólogos. La arqueología pasó de ser una étnica o cultural podían ser de variados tipos:
actividad que sólo unos pocos con medios o en primer lugar una cultura similar demostrada
apoyados por personas con ellos se podían en costumbres semejantes y/o idioma compar­
permitir a ser considerada como una disciplina tido, además de en algunos casos una misma
científica dotada con cada vez un mayor religión o misma etnia o raza; y en segundo
número de profesionales. una descendencia común. Para todo ello la
Pero como la nueva nación política tenía historia propia de cada nación tenía un papel
que ser coherente con los principios de fundamental legitimador. Si hasta entonces la
utilidad ilustrados, en un primer momento sólo subvención del estado había estado volcada
los estados de gran tamaño lograron ser fundamentalmente a la arqueología clásica, a
aceptados como naciones; las unidades partir de ahora en Europa habría otras épocas
políticas de pequeña dimensión eran juzgadas - la prehistórica y la medieval - que empeza­
como contrarias al buen hacer político y por rían a cobrar un papel central. La situación en
tanto se les denegaba el carácter de nación. America, sin embargo, no podía ser sino
Estas ideas, por tanto, restringieron el número diferente. Las poblaciones anteriores a la
de naciones posibles a unas pocas localizadas conquista no tenían nada que ver con las
fundamentalmente en Europa occidental - élites que gobernaban los países, que eran de
Francia, Gran Bretaña, España... - y en Améri­ origen europeo. Ante esto la respuesta

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mayoritaria sería la de ignorar este tipo de nes particulares también darían lugar a mu­
arqueología, negando un pasado histórico a seos. Una de las que fue a parar a manos
las poblaciones indígenas y restringir el relato particulares fue la adquirida por Sir Hans
histórico nacionalista a la época a partir de la Sloane, quien compró al estado de la Toscana
colonización realizada por sus antepasados la colección de obras clásicas amasada
europeos. En América - como luego en durante tres siglos por la familia italiana
Australia - la arqueología se confinaría como Medici (Pomian 1990: 42). Sloane dejó la
una rama dentro de la antropología, es decir, colección en manos del estado británico, quien
no incluida dentro de los estudios históricos. en 1753 decidió abrir un museo, resultando
La excepción a esta actitud se encontraría en todo ello en la apertura del Museo Británico en
México, donde el discurso nacionalista desde 1759. Estas tendencias neo-clásicas ilustradas
un principio se apropió del indigenismo. Así fueron continuadas y agrandadas por el primer
que tras un primer momento fracasado por las nacionalismo cívico. Es así como en plena
turbulencias políticas del país durante gran revolución francesa en 1793 el estado francés
parte del siglo XIX, principalmente en el XX decidió la apertura del Museo del Louvre
las élites políticas comenzarán la subvención (Gran-Aymerich 1998). He de señalar aquí que
sistemática del estudio de cierto pasado el otro tipo de nacionalismo, el étnico o
precolombino, el de las grandes civilizaciones cultural, pese a que ya he apuntado antes sólo
del valle de México y del Yucatán. tuvo éxito a partir de 1870, estuvo presente
desde un principio y llevó también a la crea­
ción de museos. Un ejemplo fue el Museo de
La institucionalización de la Monumentos Nacionales abierto igualmente
Arqueología y los problemas de la Prehistoria en París, donde se exhibían monumentos
góticos y renacentistas. La comparación entre
Como he explicado en la sección anterior el el devenir de éste y el del Louvre, sin embargo,
surgimiento del nacionalismo - en un primer es significativa. Mientras que para el último no
momento del nacionalismo de tipo cívico - dejaron de llegar obras, entre otras circuns­
como teoría política llevó a la instituciona­ tancias por las campañas de Napoleón Bona-
lización de la arqueología. La primera prueba parte, los encargados del Museo de Monu­
de que esto ocurrió fue la creación de museos, mentos Nacionales no hacían más que lamen­
aunque como siempre podemos buscar tarse por la falta de una sede adecuada y por el
precedentes anteriores. El ímpetu adquirido desinterés general que la institución provo­
por el estudio de la antigüedad clásica y la caba (Gran-Aymerich 1998: 38). En otros
importancia conferida a los objetos provenien­ países, sin embargo, sí que estos museos
tes de la misma habían llevado ya en el siglo dedicados a las antigüedades del país tuvieron
XVIII a la aparición de un preocupante merca­ más éxito. Este fue el caso de Dinamarca,
do de antigüedades centrado en la ciudad de donde el Museo Nacional se creó en 1807 o en
Roma. La desaparición de obras iba contra el México donde el Museo Nacional abrió sus
bien común, contra la educación del ciudada­ puertas en 1825 (para cerrarlas al poco tiempo,
no, y así en aquella centuria, en fecha tan pero esa es otra historia) (Florescano 1993).
temprana como 1733, se crearía el primer A la creación de museos siguió la profe-
museo de arqueología abierto al público, el sionalización de los arqueólogos - que
Museo Capitolino (al que más tarde se unió significativamente a lo largo del siglo XIX
también en Roma en Pió Clementino en 1771) dejan de llamarse anticuarios - y la creación de
(Arata 1998).2 Por otra parte ciertas coleccio­ instituciones que justificaban su labor. Así en
1821 se creó en Francia la École de Chartes
donde se enseñaría arqueología - o más bien
una de sus ramas, la paleografía (Schnapp
(2) En realidad otro m useo abierto al público en fecha
más temprana, el Ashm olean de Oxford de 1683,
1996: 53). Esta institución se copiaría en otros
parece que incluía en sus colecciones algunas antigüe­ países como en España, donde la Escuela de
dades (Sim ock 1984). Diplomática abriría sus puertas en 1856 (Peiró

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D IA Z-A N D R EU , M. N acionalism o y Arqueologia: el contexto p olítico de nuestra disciplina. Rev. do M useu de
A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

Martín & Pasamar Alzuría 1996). En Francia el vivían entre las antigüedades de un pasado
Comité de Estudios Históricos, que se dedi­ supuestamente glorioso. La esencia de la
caría a la protección y restauración de los nación quedaba simbolizada en este pasado de
monumentos históricos vió la luz en 1834 piedras con inscripciones rúnicas y de túmu­
(Schnapp 1996: 54). La creación de Comisiones los prehistóricos. Fue esta situación la que
de Monumentos en Francia en 1830 tuvo llevaría a Dinamarca a crear el primer Museo
igualmente su reflejo en España aunque años Nacional en el que las antigüedades propias -
más tarde, en 1844 (Díaz-Andreu 1994). En este y no las clásicas - cobraron una importancia
último país sólo sería en 1868 cuando el no conocida en otro país. Para el museo se
Cuerpo Facultativo de Archiveros y Biblio­ contrataron a expertos que intentarían ordenar
tecarios incluyó en su nombre el de los las colecciones, con el resultado por todos
anticuarios (que sólo a partir de 1900 se conocidos de la elaboración del sistema de las
denominarían oficialmente como arqueólogos). tres edades establecido por Thomsen (Gráslund
Toda esta institucionalización aludida 1981), que posteriormente se exportaría a otros
hasta ahora se refiere fundamentalmente a los países (Bóhner 1981, Rodden 1981, Sórensen
estudios clásicos y acaso - pero con menor 1998, etc.). También fue en Dinamarca donde
éxito - los medievales. La prehistoria, sin se crearía la primera cátedra universitaria para
embargo, tuvo dificultades para conseguir el la enseñanza de la prehistoria en 1855, ocupa­
mismo nivel que el de sus por entonces da por Worsaae en la Universidad de Copen­
hermanas mayores. Hay diversas razones que hague (Sórensen 1996: 34).
impidieron la rápida institucionalización de la La prehistoria, además, tenía otros proble­
prehistoria (Schnapp 1993: 321). En primer mas que impidieron su pronta instituciona­
lugar se daba una prioridad absoluta a las lización. Uno de ellos fue la conexión estable­
fuentes escritas y éstas lógicamente sólo cida entre la arqueología y el arte, que prove­
valían a partir de la época protohistórica. Esto nía de la importancia de los objetos artísticos -
se debía principalmente a la poca sofisticación las estatuas y los monumentos - en la época
que los estudios sobre cultura material habían premoderna. Si para enorgullecerse de sí
adquirido a excepción, quizá, del estudio de misma la nación tenía que tener un pasado
monedas y obras de arte antiguas, ninguna de glorioso, éste se simbolizaba mejor en objetos
las dos de carácter prehistórico. Para que la de arte y no en pequeños fragmentos rodados
prehistoria se aceptara hubo que desarrollar de cerámica de ininteligible significado para el
los métodos tipológico, tecnológico e imponer no especialista. Es significativo que en la
el criterio estratigráfico como forma de ordenar creación de la Escuela de Diplomática en 1856
el material. Esto sólo se fue logrando a lo largo referida más arriba la arqueología se definiera
del siglo XIX. No es casualidad que uno de los como aquella ciencia que estudiaba las obras
países donde se dieron varios de los pasos de arte y de la industria bajo el exclusivo
más importantes para ello fue Dinamarca. Una aspecto de su antigüedad (Peiró Martín &
serie de derrotas militares provocaron a Pasamar Alzuría 1996: 146). Los intereses
principios de la centuria no sólo la pérdida creados a lo largo del siglo XIX impedirían de
definitiva de la flota que hasta entonces había alguna manera el desarrollo de los estudios
sido el orgullo del país sino además de gran prehistóricos. Esta importancia dada a los
parte de su territorio. Esto haría que las monumentos explica también que en toda
desmoralizadas élites políticas y las clases América sólo en aquéllos países donde
medias buscaran justificar la existencia de existían grandes edificaciones precolombinas
Dinamarca en otro tipo de razones. Se acudió es donde se produjera un primer desarrollo de
entonces a la arqueología, a la que tanta la arqueología propiamente americana. Es decir,
importancia se le había dado en el memorable esto ocurrió fundamentalmente en México
siglo XVII (Klindt-Jensen 1975, Randsborg (Bernal 1979), en el sur de los Estados Unidos
1994, Schnapp 1993). En contraste con aquel, (Welsh 1998) y en cierta manera en Perú, país
lo único que le quedaba a Dinamarca era el donde se promulgó - aunque sin demasiado
solar patrio, la tierra, donde los campesinos éxito - una primera legislación relacionada con
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las antigüedades en 1811, apenas conseguida tóricas (1912-1939) supondría un primer


la independencia y se abrió un museo nacional intento de institucionalización de la prehistoria
en 1826 (Bonavia 1984: 110, Chávez 1992: 43-4). con sede en el Museo de Ciencias Naturales
En el resto de los países americanos o la en Madrid y dirigida como subdirector primero
arqueología no se desarrolló o si lo hizo, como y luego director por el Catedrático de Geología
he explicado más arriba, fue sólo en su ver­ de la Facultad de Ciencias de Madrid, Eduardo
tiente no americana, dando lugar a especialis­ Hernández-Pacheco. Esta situación también
tas en arqueología bíblica y clásica, siendo era frecuente en América como lo muestra el
ejemplos de esto tanto Estados Unidos ejemplo de Argentina - al que se le podrían
(Patterson 1991) como Canadá (Trigger 1981). añadir muchos otros. En aquel país hacia
Un tercer obstáculo que la arqueología principios de siglo Gustavo Politis e Irina
prehistórica tuvo que superar para que su Podgorny nos relatan cómo los objetos
institucionalización se permitiera fue el que se prehistóricos (indígenas) iban a parar al museo
aceptara su versión frente a la ofrecida por la de Ciencias Naturales de la Plata (Podgorny
Biblia. Desde los primeros siglos del cristianis­ 1997, Politis 1995).
mo los intelectuales habían intentado compa­ Pero que mientras que en el viejo mundo,
tibilizar las fuentes clásicas con aquélla central como veremos en el próximo apartado, la
a la doctrina cristiana. Así a lo largo del prehistoria se trasladó del campo de las
medievo y las centurias que le siguieron una Ciencias Naturales al de la Historia hacia
mezcla de héroes troyanos e hijos y nietos de principios del siglo XX - aunque hay persis­
Noé habían logrado poblar todo el mundo tencias posteriores como es el caso de Portu­
conocido y fundar todas las ciudades de cierto gal (Díaz-Andreu 1997a) - en la mayoría del
prestigio. Fue contra esta historia mítica que nuevo mundo los estudios prehistóricos, es
por repetida pasó a tomarse como cierta contra decir precolombinos, continuarían en las
la que los primeros prehistoriadores tuvieron Ciencias Naturales y el paso que darían sería
que luchar. El problema no fue fácil, puesto hacia la antropología. La razón para esto se
que muchos de ellos eran fervientes creyentes. hallaría en el evolucionismo del siglo XIX. En
Los largos debates entre la prehistoria, el el caso de las sociedades donde existía una
evolucionismo social derivado del biológico discontinuidad evidente entre los restos
de Darwin a partir de su obra El origen de las prehistóricos que simbolizaban el pasado de
especies publicada en 1859 no se resolvieron las poblaciones indígenas coetáneas y las
en ocasiones hasta ya entrado el siglo XX poblaciones “civilizadas” blancas que las
(Trigger 1989). Esta falta de aceptación de la dominaban, la arqueología sirvió para justificar
arqueología prehistórica como parte de la el status quo existente (Kuper 1988). La cultura
historia es lo que explica que en la práctica material indígena era semejante a la encontrada
mayoría del mundo occidental ésta se institu­ en las rebuscas arqueológicas tanto en los
cionalizara dentro de las Ciencias Naturales. Es países colonizados (o de reciente indepen­
decir, los objetos prehistóricos no iban a parar dencia) como en aquellos mismos. Es decir,
en la mayoría de las ocasiones a los museos que siguiendo una lógica evolucionista se
arqueológicos sino a los de Ciencias Naturales podía inferir que en contraste con las pobla­
y fue en las facultades de Ciencias donde en ciones europeas - y sobre todo aquellas más
muchos casos se comenzó a impartir la docen­ rubias del norte de Europa - que habían
cia de la prehistoria. Los ejemplos de esto son llegado a la cima del progreso conocido hasta
múltiples. El primero que citaré será el de entonces, las poblaciones indígenas no habían
Francia, donde la prehistoria se enseñaba en la evolucionado, se habían quedado atrasadas.
Facultad de Ciencias de Toulouse por Cartailhac Como el progreso tecnológico se asociaba con
hacia principios de siglo (Boule 1921), y donde el progreso social y moral (no hemos de
ésta formaría parte del Instituto de Paleon­ olvidar que el siglo XIX fue el de la Revolución
tología Humana creado en 1910 con sede en Industrial llevada a cabo fundamentalmente
París. También en España la Comisión de por las clases medias, de las «que provenían los
Investigaciones Paleontológicas y Prehis­ arqueólogos), era evidente que desde el punto

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de vista moral las poblaciones indígenas eran y deberes ya no estarían necesariamente


igualmente reprobables. Todo esto se unía con unidas al concepto de nación - aunque sí al de
la consideración que de ellas se tenían de la nación democrática. La nación comenzó
inferiores tanto desde un punto de vista ahora a basarse fundamentalmente en la
genético como cultural. En un primer momento esencia que la justificaba, que podía ser por
se pensó que su misma postergación ante el una parte una cultura o una raza o una lengua
progreso iba a llevar ineludiblemente a su en común y en todo caso por la otra, un
extinción y esto llevó a la creación de museos pasado común. Esto llevó a que el pasado
a los que fueron a parar tanto objetos etnográ­ propio - medieval o prehistórico -, por
ficos como arqueológicos (Bowler 1992; contraposición al clásico, adquiriera progresi­
McGuire 1989; McGuire 1992; Trigger 1980). En vamente mayor importancia. El cambio difícil­
un segundo momento, cuando se hizo eviden­ mente se podría haber dado en Italia, donde el
te que estas poblaciones no iban a desapare­ pasado propio se confundía con lo clásico y
cer - por lo menos en masa - la continuación ello permitió la continuación del subdesarrollo
de las colecciones se justificó como una forma de los estudios prehistóricos (Guidi 1996). Por
de aumentar la escasa información disponibles ello no ha de extrañamos que fuera en Alemania
sobre estos grupos supervivientes de una donde se produjera esta transformación.
época anterior. En todo caso, estos museos Los términos empleados por las publica­
junto con la labor de arqueólogos y antropólo­ ciones arqueológicas durante la mayoría del
gos justificaban la creencia de que era deber siglo XIX para significar un conjunto de
de las naciones civilizadas - o del estrato de la personas unidas bajo el mismo poder político
sociedad civilizado en el caso de las naciones y con una serie de rasgos comunes fueron los
americanas - de ayudar a los más atrasados a de ‘nación’ o ‘pueblo’ o ‘raza’ (sin que tuviera
desarrollarse. De esta forma la colonización este último término las connotaciones biológi­
quedaba legitimizada. cas que luego más tarde adquiriría durante el
El paso de la prehistoria desde las Ciencias mismo siglo XIX y fundamentalmente en el
Naturales a la Elistoria sólo ocurriría a finales del XX). Varios ejemplos es estos usos bastarán:
siglo XIX y fundamentalmente en el siglo XX y en 1797 el inglés John Frere describía unos
será Alemania la que tendría un protagonismo bifaces paleolíticos como “armas de guerra,
fundamental en este cambio. Este se funda­ fabricadas y usadas por un pueblo que no
mentó en el surgimiento de una teoría arqueoló­ utilizaba metales” (Daniel 1975: 31). O en 1847 el
gica, el historiei smo cultural, también estuvo arqueólogo danés Jens Worsaae aludía de una
unido al auge del nacionalismo étnico o cultu­ manera un tanto ilógica en sus Primeras
ral. Esta teoría tendría tanto éxito que, pese a antigüedades de Dinamarca que “aunque se
que ha experimentado una evolución interna, reconocía ahora generalmente que nuestro país
todavía sigue vigente y es practicada por la nativo se ha habitado por varias razas diferen­
gran mayoría de los arqueólogos y arqueólogas tes, todavía se supone que todas estas antigüe­
sin excepción de país, lengua o hemisferio. dades debían haber pertenecido a solo uno y
único pueblo’ (Daniel 1975: 39). La palabra
‘nación’ se empleó fundamentalmente en los
El nacionalismo étnico o cultural y el países de lenguas romances, pero ya en el siglo
historicismo cultural en arqueología XIX la encontramos en países de lenguas
germánicas. Así el británico Richard Colt Hoare
La unificación de Italia y Alemania en 1870 decía refiriéndose al túmulo megalítico irlandés
y 1871, como he explicado más arriba, transfor­ de New Grange que todavía no era conocido “a
mó radicalmente el carácter del nacionalismo, qué nación se podría razonablemente atribuir la
de tal manera que si el nacionalismo cívico no construcción de tal singular monumento”
desapareció, vino a integrarse dentro del (Daniel & Renfrew 1988:19-20).
nacionalismo de tipo étnico o cultural. Es decir, Estos términos de ‘nación’, ‘pueblo’ y
a partir de ahora características como la ‘raza’ fueron sustituidos por el de ‘cultura’ a lo
educación universal o la igualdad de derechos largo del siglo XIX y fundamentalmente en el

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XX (Díaz-Andreu 1996a) y ello se hizo en el que los arqueólogos contribuyeron en muchos


contexto del cada vez mayor éxito del naciona­ casos como miembros del ejército - en el que
lismo étnico o cultural. He de apuntar, sin la palabra ‘cultura’ fue rápidamente aceptada
embargo, que en Francia, donde el nacionalis­ en la arqueología prehistórica. Como he dicho
mo cívico siguió teóricamente en boga durante antes fue Gordon Childe el primero en definirla
más tiempo que en ningún otro lado, junto al de una manera más sistemática en 1929,
término ‘cultura’ se empleó - y emplea - con aunque sólo lo hizo de una manera casi
gran asiduidad el de ‘civilización’. El uso del podríamos decir indirecta. Según Childe:
término ‘cultura’ había resurgido ya antes de Encontramos ciertos tipos de restos -
la unificación alemana (ver ejemplos en Díaz- vasijas, útiles, ornamentos, ritos de enter­
Andreu 1996) pero para su aceptación dentro ramiento, plantas de casas - que constantem ente
del vocabulario arqueológico especializado fue se encuentran asociadas. A tal com plejo de
fundamental el desarrollo en las ciencias características regularmente asociadas denom ina­
remos un ‘grupo cultural’ o sim plem ente una
antropológicas de la teoría del historicismo
‘cultura’ (Childe 1929: V-VI).
cultural, de los Kulturkreise o círculos cultura­
les formulada por Frobenius en 1898 (Zweme- Lo que vemos aquí, por tanto, es que el
mann 1983: 31) cuya traducción a la arqueo­ término ‘cultura’ vino a significar algo así
logía se realizaría por Gustaf Kossinna en 1911. como una ‘nación ya desaparecida’. ‘Nación’
La primera definición del término de pasaba a ser un término empleado únicamente
cultura arqueológica, sin embargo, sólo se para época moderna. Para momentos anteriores
produciría en 1929 y ésta vendría de Gordon a partir de ahora se utilizaría ‘cultura’. Entre
Childe. Pero antes de continuar mi relato paréntesis quizá sea importante aludir a que al
dentro de la arqueología creo que es importan­ mismo tiempo que esto estaba ocurriendo en
te preguntarse porqué esta idea surgida en arqueología en antropología la palabra ‘cultu­
Alemania tuvo tanto éxito en el resto de ra’ que como hemos visto había comenzado a
Europa. Para responder á esta cuestión creo emplearse en 1898 se sustituyó hacia los años
que debemos reflexionar sobre el contexto veinte por la de ‘tribu’ o la de ‘grupo étnico’
político en el que esta difusión se produjo: la (Jenkins 1997). Los arqueólogos decidieron,
primera Guerra Mundial. Por una parte ésta sin embargo, no emplear ‘etnia’ para referirse a
supuso el fracaso rotundo de la internaciona- culturas, puesto que como el catalán Pere
lización de las clases trabajadoras pretendida Bosch Gimpera afirmaba hacia los años treinta,
por los seguidores de Marx. Los obreros de era preferible emplear el término ‘etnia’ para
cada país lucharon por su nación y no por la los grupos citados en las fuentes escritas,
causa común del proletariado. A este apoyo de mientras que para los grupos arqueológicos él
las masas al nacionalismo habría que añadir prefería seguir usando el término ‘cultura’.
otro hecho que tendría especial importancia La introducción del término ‘cultura’ en la
para el desarrollo del mismo. Eric Hobsbawm arqueología vino acompañada por un recono­
(Hobsbawm 1990) apunta la relevancia que cimiento de la prehistoria como el origen de la
tuvieron los acuerdos de guerra para la nación y esto llevó a que su estudio pasara
definitiva imposición del nacionalismo como primero en Alemania, y más tarde en muchos
teoría política. El criterio nacional fue emplea­ otros países por influencia germana, de las
do en estos acuerdos para redefinir el mapa Ciencias Naturales a las facultades de historia.
político de Europa lo que llevó no a unir España es un buen ejemplo de esto. En aquel
diversas unidades políticas en nuevas nacio­ país se concedió en 1922 la primera cátedra
nes - como había ocurrido en el caso de oficial de estos estudios, la llamada de Historia
Alemania y de Italia - sino a separar estados Primitiva del Hombre, en la facultad de Madrid.
como el imperio Austro-Húngaro en diversas No de forma casual ésta fue creada para un
naciones, en algunos casos casi inventadas alemán, Hugo Obermaier, al que el principio de
como fue el caso de Yugoslavia. la I Guerra Mundial había sorprendido en
Fue en este contexto de auge del naciona­ España impidiéndole por razones evidentes su
lismo en el que los arqueólogos vivían - y al vuelta a París donde trabajaba en el Instituto

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de Paleontología Humana al que antes me he arqueología italiana (Guidi 1996: 112-5; Torelli
referido. El otro catedrático que de forma extra­ 1991), seguiría al término de la misma.
oficial había estado enseñando prehistoria era En cuanto al empleo de un nombre colecti­
Pere Bosch Gimpera en Barcelona, y su cátedra vo la arqueología ayudó a buscar un pasado a
se encontraba en la sección de Historia dado determinados etnias, llamadas ahora culturas o
que oficialmente se llamaba de Historia civilizaciones en arqueología, que formaban
Antigua y Media hasta 1933 en la que el parte o la práctica totalidad de la nación. En
nombre cambió al de Prehistoria. Pero lo que ocasiones los datos arqueológicos actuaron
me interesa resaltar de Bosch Gimpera es que como una proyección aparentemente nada
éste se había recibido su educación en arqueo­ problemática de lo actual hacia épocas anterio­
logía en Alemania (Díaz-Andreu 1995a) y su res, impresión ofrecida por la práctica de llamar
admiración por la arqueología de aquel país a los grupos desaparecidos con el mismo
perduró toda su vida (Bosch Gimpera 1980). La nombre que los modernos. Esto pasó en el
influencia de la arqueología alemana en países caso de los alemanes (Wiwjorra 1996), y los
como Canadá (Trigger 1981) o Estados Unidos eslavos (Raczkowski 1996: 207, Shnirelman
(véase los apellidos de Kroeber y Kluckhohn 1996). En la mayoría de las ocasiones, sin
(Kroeber & Kluckhohn 1952)) indica esta embargo, las etnias actuales se basaron en
misma influencia al otro lado del Atlántico. culturas o civilizaciones pasadas conocidas
La adopción de una nueva teoría, la del con nombres diferentes al grupo contempo­
historicismo cultural, estuvo también apareja­ ráneo. Un ejemplo de esto se dió en la recién
da a un aumento significativo en la utilización creada república de Turquía en 1923, para cuya
de la arqueología para fines políticos. Esta se base histórica su dirigente, Kemal Atatürk,
produjo en naciones con independencia quiso ver la civilización sumeria e hitita, de tal
política - ahora interesadas en crear un manera subrayando que desde un pasado
nacionalismo de masas - y en otras en las que remoto Turquía había estado caracterizada por
ésta era reclamada y cuyo futuro indepen­ una variada composición étnica (Ózdogan
diente se había hecho posible al aceptarse el 1998: 116-7). También se emplearon culturas
nacionalismo definitivamente como argumento prehistóricas de forma semejante. Así en
al fin de la I Guerra Mundial. Como el concepto Portugal el catedrático de arqueología y
de nación cultural o étnica estaba basado, conservador del Museo Nacional de Arqueo­
lógicamente, en el de comunidad étnica logía, Manuel Heleno (1894-1970), en una
seguiré los criterios de Anthony Smith (1991: conferencia de prensa dada en 1932 y que tuvo
21) para definirla para explicar este punto. gran impacto posterior reclamaba la cultura
Estos son: la existencia de un nombre colecti­ megalítica como el origen de la nación portu­
vo; de un mito de origen común; de memorias guesa, creencia todavía muy extendida entre
históricas compartidas; de uno o más elemen­ gran número de intelectuales (Fabiáo 1996: 96-
tos diferenciadores de cultura común; una 97). En cuanto al periodo medieval cristiano,
asociación con un lugar de origen específico; éste fue el que más éxito tuvo por lo general en
y finalmente un sentimiento de solidaridad todas las naciones europeas (Olmo Enciso
entre sectores significativos de la población. 1991; Pohl 1997), pero ver (Díaz-Andreu
Siguiendo estos puntos intentaré aclarar de 1996b).
qué forma la arqueología se implicó en el Todo lo explicado en el párrafo anterior
nacionalismo de tipo étnico o cultural tanto lleva al segundo atributo, el del mito de origen
antes pero sobre todo después de la primera común para el que la historia en lo referente a
Guerra mundial, tendencia que, pese a la los momentos más recientes y para los anterio­
terrible complicidad de la arqueología alemana res la arqueología proveyeron de datos. En
durante la segunda gran confrontación Polonia, basta ver los títulos de los artículos
(Amold 1990, Amold & Hassmann 1995, publicados por von Richthofen y por Kostrzewski
Bollmus 1970, Kater 1974, Losemann 1977), para inferir su contenido nacionalista (Raczkowski
aunque ver Junker (Junker 1998a, Junker 1996: 205-6). Pero además de artículos acadé­
1998b), y en cierta manera también de la micos - y de otros múltiples publicados en

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periódicos de gran tirada cuyo estudio todavía símbolos materiales políticamente efectivos y
no se ha realizado en la mayoría de los no es casualidad que en este periodo de
países en esta época los arqueólogos se entreguerras se viera por primera vez una
lanzan a publicar obras de tipo más general inversión estatal importante para la excavación
pensadas para llegar a un público más amplio. sobre todo de sitios señalados para el discur­
En México, por ejemplo, aparece en 1916 el so nacionalista. Lo que pretendía el estado-
libro Forjando Patria publicado por el arqueó­ nación era crear un paisaje nacional propio,
logo mexicano Manuel Gamio. Si acudo al caso fijar una memoria histórica compartida por
de España, que es el que más conozco, son de todos los miembros de la nación. Así determi­
este momento la Prehistoria Universal y nados yacimientos claves en el discurso
Especial de España del Padre Carballo de nacionalista que en algunos casos ya habían
1924; la más importante Etnologia de la llamado una cierta atención hacia las últimas
Península Ibérica de Pere Bosch Gimpera décadas del siglo XIX pero sin tener gran
originalmente publicada en catalán en 1932, y repercusión a largo plazo como Alésia en
que pese a su nombre significativamente Francia o Numancia en España, ahora volverán
trataba de prehistoria, o la conferencia sobre a ser el centro de atención. La historia de las
“España” dada por el mismo autor en plena excavaciones en este último yacimiento es
Guerra Civil española; o las enciclopedias que buen ejemplo. Tras algún intento anterior que
empezaron a hacerse populares en estos acabó en monumentos a medio construir o de
momentos, como la del tomo producido por el tamaño claramente deficiente, en 1905 un
discípulo del último, Luis Pericot, sobre potentado de la ciudad más cercana decide
Historia de España. Geografía histórica costear la erección de uno a la altura de las
general de los pueblos hispanos. Tomo I. circunstancias en memoria de los caídos en
Epocas primitiva y romana en 1934. Numancia. Significativamente se logra que sea
Estas publicaciones de carácter general y el rey quien lo inaugure, pero cuando éste
de las más concretas derivadas de los trabajos acude se encuentra con que apenas unos
arqueológicos tuvieron un impacto mayor que pocos días antes un arqueólogo alemán, Adolf
el puramente académico, pues su contenido Schulten, ha comenzado la primera excavación
llegó a un público más general, reforzando por seria del sitio. Aquello constituyó tal escán­
tanto la creación de la memoria histórica dalo que terminó en la prohibición al alemán de
compartida de la que hablaré en el próximo realizar sus investigaciones en el cerro tras lo
párrafo. Las ideas expresadas por la arqueo­ que éste revierte su esfuerzo a la búsqueda de
logía se recogieron, como varios autores han los campamentos romanos que habían sitiado
estudiado (Podgomy 1994, Ruiz Zapatero & la ciudad. Para los trabajos sobre el yacimiento
Alvarez-Sanchís 1997) en los manuales se crea una comisión dirigida por el prestigio­
escolares. Además el trabajo de los artistas so arqueólogo José Ramón Mélida, quien de
hará que el eco del trabajo arqueológico llegue forma reveladora calificará su labor como un
mucho más lejos. Así la influencia ejercida por “deber nacional” (Díaz-Andreu 1995b: 44-5,
las obras ibéricas de la Edad del Hierro y Jimeno & Torre 1997). Numancia será uno de
etnográficas principalmente africanas en los yacimientos que más dinero reciba desde
cuadros como Las señoritas de Aviñón de entonces hasta la guerra civil (Díaz-Andreu
Pablo Picasso (Walther 1993: 37-40), o la del 1997b). Otros dos ejemplos de excavaciones
arte precolombino en los frescos producidos con claras connotaciones nacionalistas
por Diego Rivera en México (Kettenmann bastarán para dejar clara la utilización de la
1997), producirán un efecto mucho mayor y arqueología en la fijación de la memoria
más duradero que el que los arqueólogos histórica. En México fue igualmente en este
habrían podido tener por sí mismos. periodo es cuando comienza la exploración
El trabajo de los arqueólogos - y de las sistemática de yacimientos como Teotihuacán
primeras arqueólogas que empiezan a encon­ por Manuel Gamio (Brading 1988) y en Polonia
trar trabajo por estos años (Díaz-Andreu & el yacimiento de Biskupin encontrado en 1933
Sprensen 1998) - ofrecía al nacionalismo comenzaría a tener una importancia inmensa a

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nivel propagandístico dentro de un ambiente supuso de alguna manera la teorización de


cada vez más influido por el nacionalismo una serie de tendencias que ya se estaban
previo a la II Guerra Mundial (Raczkowski produciendo en la época anterior, sobre todo
1996). Los resultados obtenidos por la arqueo­ desde 1870, y la aceptación que hoy en día
logía, por tanto, sirvieron - y todavía sirven en aún tiene es reflejo a mi entender de el éxito
muchos casos - para retrotraer al pasado los que todavía mantiene el nacionalismo étnico
elementos diferenciadores de la cultura común y cultural y que hacen explicables en la
de la nación. Así el nacionalista catalán Prat de actualidad a un nivel político unificaciones
la Riba quiso ver rasgos fonéticos propiamen­ como la alemana y desafortunadas guerras
te catalanes ya en la escritura ibérica prerroma­ como la yugoslava y a un nivel más arqueo­
na en su libro de 1906 La Nacionalitat Catala­ lógico problemas como los que resaltaré en
na., o los arqueólogos que trabajaron en la última sección de este trabajo.
Numancia hablarían de la valentía y bravura
del espíritu español. El alto nivel de civiliza­
ción que parecía demostrar el yacimiento de Un largo camino por recorrer:
Biskupin en Polonia se empleó como prueba el desafío de la pérdida de la inocencia política
del progreso que ya mostraba la nación
incluso en época prehistórica (Raczkowski Habría otros temas que podrían ser
1996). desarrollados en un trabajo de esta índole
La arqueología también proveyó a la igualmente vinculados con el nacionalismo de
historia de cada nación con lugares de origen tipo étnico o cultural y que se refieren a la
específicos. En el periodo de entreguerras, época posterior a la última gran confrontación
durante e inmediatamente después de la y a los años que estamos viviendo. Estos
segunda Guerra Mundial, esta búsqueda de otros puntos a tratar se refieren a la utiliza­
los lugares de origen pobló las publicaciones ción de la arqueología por el nuevo imperia­
de arqueología de mapas con flechas en las lismo posterior a la segunda Guerra Mundial,
que se trazaban el camino seguido por determi­ fundamentalmente por parte de Estados
nados pueblos. No es difícil ver una conexión Unidos (Evans & Meggers 1973, Gassón &
entre estas teorías y la situación política del Wagner 1994: 127-8, Patterson 1986: 13-14,
momento, lo que han estudiado autores como Schávelzon 1988, Schávelzon 1989), o al
John Chapman para el caso de Marija Gim- reciente debate sobre quién tiene prioridad, si
butas (Chapman 1998). Esta relación la encon­ los arqueólogos y arqueólogas que han
tramos explícitamente indicada por algunos de dominado durante estos dos últimos siglos, o
los que vivieron en aquella época (Hawkes & si los indígenas que reclaman el derecho al
Hawkes 1943). Más tarde, sin embargo, las control de “su” pasado (Layton 1989a,
flechas fueron desapareciendo para dar lugar a 1989b). Este último asunto tiene conse­
hipótesis sobre transmisión de ideas por una cuencias que van mucho más lejos de los que
incierta aculturación. Hoy en día, con los algunos han querido ver y por tanto me
análisis de ADN, otro tipo de flechas están detendré brevemente en esta cuestión antes
volviendo, aunque en un mismo artículo éstas de dar fin a la discusión sobre nacionalismo y
sirvan para justificar cosas muy diferentes en arqueología que vengo desarrollando en este
el caso de los vascos y en el de los pueblos artículo.
anatólicos. Como he explicado en otro lugar (Díaz-
Como sinopsis de lo dicho en estos Andreu 1998) la retórica aplicada por las
últimos párrafos resaltaré de nuevo que la comunidades indígenas está lejos de estar
arqueología, al adoptar la teoría histórico conectada con un sistema de valores que no
cultural que todavía es predominante en ha variado con la colonización, como así
gran parte del mundo, suministró al naciona­ parecen propugnar aquéllos - incluidos
lismo el pasado, las Edades de Oro, que arqueólogos y arqueólogas profesionales -
mostraban su importancia y los símbolos que las defienden. Muy al contrario de esto
que éste necesitaba. El historicismo cultural opino que estamos ante un ejemplo más de

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A rqu eologia e E tn o lo g ia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

globalización, en este caso referente a la forma resolver, pero cuya confrontación es inevi­
de expresar la identidad, en concreto la étnica table, como así parecen demostralo la creciente
y nacional (pero también otras como explicaré politización de congresos internacionales de
en el próximo párrafo) de la forma tal y como la arqueología como el World Archaeological
sociedad occidental lo ha estado haciendo Congress (Colley 1995, Funari & Podgorny
estos dos últimos siglos, buscando y definien­ 1998, Ucko 1987).
do una o varias Edades de Oro que funda­ Terminaré haciendo una reflexión sobre si
mentan el presente. Lo que estamos presenci­ los arqueólogos y arqueólogas son conscien­
ando, a mi entender, es un movimiento por tes de la implicación política de su quehacer
parte de los indígenas hacia la elaboración de científico y sobre la importancia, en todo caso,
la historia de sus comunidades con una que tiene el que lo sean. La gran mayoría se
finalidad que nos es conocida, la de establecer resiste a admitir tal relación entre una discipli­
un pasado que las legitimice. Del éxito que les na que consideran - correctamente - científica
ha supuesto la adopción del discurso naciona­ y la política, aunque en la literatura publicada
lista son prueba las nuevas legislaciones en en lengua inglesa (como bien se puede ver en
países como Estados Unidos o Australia que la bibliografía que cito en este artículo) hay
han limitado en gran manera el trabajo arqueo­ cada vez una mayor apertura hacia estos
lógico (Hubert 1989). Es decir, sólo cuando temas. Las alusiones al patriotismo tan fre­
estas comunidades han abandonado su propio cuentes en el siglo XIX y que hacían tan
lenguaje para adoptar el nuestro nacionalista evidente el carácter nacionalista de la arqueo­
es cuando sus reivindicaciones han podido ser logía desaparecieron hace ya bastante de las
entendidas por el mundo occidental. Este publicaciones, aunque ciertas reminiscencias
ahora ya no les reconoce un carácter simple­ se pueden encontrar todavía en los prólogos
mente tribal sin más, como así se hacía en el de volúmenes cuyo contenido parece clamar a
pasado, sino más bien uno propiamente étnico la más pura objetividad. Es decir, es verdad
al nivel de cualquier otra etnia occidental y que ya no es tan explícita tal relación, pero
como tal, por tanto, se hace obvio el derecho esto no significa que no exista. Por otra parte
que tienen a reclamar un territorio propio y el cabe preguntarse si la arqueología que hoy en
control sobre el mismo - incluyendo la gestión día está defendiendo las muchas veces justas
de los restos arqueológicos. reivindicaciones de las poblaciones indígenas
El problema, sin embargo, no es tan fácil sabe distinguir entre el uso político de la
puesto que tiene implicaciones mucho mayo­ arqueología durante estos dos últimos siglos y
res. Las comunidades indígenas no son las la retórica elegida para tales reclamaciones. No
únicas que están exigiendo el derecho a la estoy defendiendo la necesaria priorización de
historia y a los restos materiales del pasado, la lectura arqueológica o la de los intereses de
ya que existen otros grupos que también lo grupos económicos frente a otras lecturas de
hacen: los New Age travellers (Finn 1997), los comunidades indígenas o de otros. Pero lo que
druidas (Chippindale et al. 1990), o las ecofe- está en juego es la validez del discurso
ministas que quieren ver en £atal Hóyük u arqueológico - y, siguiendo a Eco (Eco 1990)
otros yacimientos como símbolos de un poder todavía pienso que ésta la tiene - y tal validez
femenino perdido (Conkey & Tringham 1995, dependerá en parte de lo conscientes que
Hodder 1998, Meskell 1998). Por las mismas seamos de las condiciones que han hecho y
razones que la arqueología profesional tiene siguen haciendo posible la arqueología
derechos o que ahora se empieza a aceptar que profesionar y esto no sólo pasa por una
las comunidades indígenas también los tienen, revisión historiográfica, sino también por su
estas otras comunidades unidas por otro tipo contraposición con voces alternativas. No es
de identidades que no la académica, étnica y/o posible hacer arqueología sin hacer política, y
nacional, también los deberían tener. Los aceptarlo y actuar éticamente en consecuencia
conflictos de intereses que todo esto está nos pondrá en una situación a mi entender más
suponiendo representan actualmente un reto ventajosa para afrontar el desafío que esto
muy gravera la arqueología que no será fácil supone.

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A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

Agradecimientos la International School in Archeologia. Mis


notas producidas para aquella ocasión fueron
Este artículo constituye el resumen de mis más tarde completadas en mi viaje a Brasil en
conferencias dadas en agosto de 1999 en noviembre de 1999, organizado por el Prof.
Siena, Italia, donde fui invitada por el Prof. Funari mediante una beca de la FAPESP para
Nicola Terrenato a impartir docencia en el dar conferencias en las universidades de São
Curso de Arqueología y Teoría organizado por Paulo, Campinas y Joinville.

DIAZ-ANDREU, M. N ationalism and A rchaeology: the p olitical con text o f our


discipline. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 3-20,
2001 .

ABSTRACT: This article discusses how present identities, and in parti­


cular nationalism, influence the way in which we think about the past. As I will
argue, archaeological endeavour cannot be understood outside its socio­
political context in which present identities play a crucial role. The emergence
of archaeology as a professional discipline was closely related to the success
of nationalism as a political option to sustain the modem state. Archaeology
was, thus, transformed from an erudite enterprise to a professional discipline
in a specific political context ruled by the success of nationalist ideology. I will
contrast archaeological practice with nationalism in its various periods. .
Despite changes in nationalism, it still maintains its importance in an analysis
of current developments in world archaeology. In this light I will discuss the
integration of indigenous communities into the management of the past.

UNITERMS: Archaeology and politics - Nationalism - Heritage - Natives.

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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 5 de a b ril de 2001.

20
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

“UM BANDO DE IDÉIAS NOVAS”


NA ARQUEOLOGIA (1870-1877)*

Lúcio M. Ferreira**

FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias Novas na Arqueologia” (1870-1877). Rev. do


Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

RESUMO: O objetivo deste artigo é o de discutir a articulação da Arqueo­


logia Imperial com um campo de saber e de poder. A partir desta articulação,
levanto algumas questões sobre as relações entre a prática arqueológica, o projeto
político Imperial e o Evolucionismo.

UNITERMOS: Arqueología - Brasil Imperial - Saber - Poder - Evolu­


cionismo.

Há uma rarefação de estudos sobre a 2001; Pinõn 2000).1 Com este artigo gostaria de
História das Ciências Humanas e das Idéias no contribuir para o debate. Valendo-me das
Brasil. Tome-se, por exemplo, a exigüidade de Revistas do Instituto Histórico e Geográfico
análises sobre a História da Arqueologia brasilei­ Brasileiro (IHGB), pretendo analisar a Arqueolo­
ra (Cf. Barreto 1992, 1999; Meggers 1985; gia conforme ela foi praticada em sua articulação
Souza 1991; Prous 1992; Funari 1989, 1991, com o projeto político Imperial e o evolucio­
1994, 1995, 2000; Pinõn 2000). Nem mesmo as nismo. Por outra, tento entender os usos políti­
obras de referência sobre a História das Ciências cos da Arqueologia num contexto em que a
no Brasil abordam a disciplina (Cf. Azevedo estabilização do sistema monárquico de domina­
1956, Ferri e Motoyama 1979-81, Miceli 1989). ção começava a apresentar suas primeiras
Nesta seara de evidente carência faltam pesqui­ fissuras.
sas mais amplas sobre a Arqueologia oito-
centista, momento de constituição institucional e
epistêmico da disciplina (Ferreira 1999, 2000, (1) Durante o século XIX, a Arqueologia foi praticada
por diferentes instituições situadas em diferentes
contextos regionais: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1838), O Museu Nacional (1808), o Instituto
(*) À memória de meu primo, mais amigo do que primo, Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
Fabrício Ronaldo Menezes. (1868), o Museu Paraense Em ílio G oeldi (1866), o
(**) M estre em História pela UNICAMP. Professor Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Alagoano
de História do C olégio Dom B osco, Americana, SP. (1869) e o Museu Paulista (1895).

21
FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 11\ 21-33, 2001.

Assim, na primeira parte deste artigo, que se detecta nas páginas da Revista, na
procuro demonstrar como a disciplina foi verdade, é a produção de um saber sobre o
justaposta r um campo de saber e de poder, Brasil. O Instituto foi um fórum privilegiado de
integrando a. rede de conhecimentos tecida pelo onde se falava e se olhava o país. Lançando mão
IHGB. Na segunda, intenciono dissecar o de uma série de disciplinas, o IHGB visava
conjunto discursivo específico em que esteve legitimar “cientificamente” a manutenção do
inserida a Arqueologia, direcionando o escalpelo projeto político centralizador da Monarquia,
no sentido de examinar as condições de apareci­ confeccionando uma rede de informações sobre
mento de seu objeto (Foucault 1986, 1995). A as diversas províncias e encaminhando propostas
perspectiva é a de analisar a disciplina enquanto que visavam viabilizar a exploração econômica
positividade, enquanto uma prática que, ao do território nacional. Tal assertiva clarifica-se
imbricar-se com outros saberes, estipulou ao se rastrear o cenário social, político e econô­
critérios classificatórios sobre o teor civiliza- mico da quadra histórica em questão.
cional das sociedades indígenas, postulou para Em primeiro lugar, apresentavam-se os
elas um lugar social na identidade da Nação e problemas advindos com a Guerra do Paraguai
forneceu elementos para a definição de uma (1864-1870). É bastante provável que este
política indigenista de integração. conflito tenha acirrado as tensões geopolíticas
nas áreas de fronteiras. O que pediria, muito
mais do que nas décadas de consolidação e
A produção de um saber sobre o Brasil estabilização do regime Monárquico, um maior
conhecimento destas regiões, das instituições
Como se sabe, o evolucionismo, juntamente provinciais que as resguardavam e das popula­
com o positivismo, foi arma de justificação ções que as habitavam. Nesse âmbito, deve-se
intelectual e científica - como então se pretendia lembrar que, historicamente, as áreas circunscri­
- para a implantação da República. De acordo tas ao Rio Prata foram palco de diversos confli­
com Silvio Romero (1986: 23), o “bando de tos entre a Monarquia e as Repúblicas latino-
idéias novas”, ambientadas no Brasil a partir de americanas (1825-28; 1850-52). O domínio
1870, mostrou o sofisma do Império em toda a geopolítico destas regiões era crucial para o
sua nudez. Não se deve supor, porém, que o Império, pois possibilitaria sua exploração
Estado Imperial não se valeu da “arma republica­ comercial por meio do monopólio da navegação
na” como tática para continuar “sofismando”, no Rio Prata, ponto de contato com as Provínci­
como estratégia para os embates políticos que as do Sul. Em segundo, a inadiabilidade da
então se travavam. O Museu Nacional,2 por abolição da escravatura ameaçava solapar o
exemplo, um dos bastiões da Monarquia, regime produtivo assentado na grande proprieda­
reconhecidamente comungou com o evolu­ de, organizado juridicamente com a Lei de
cionismo (Schwarcz 1989, 1993; Lopes 1997). Terras de 1850. Como conseqüência, prenuncia­
Quanto ao IHGB, pelo menos no campo da va desatar um dos laços do sistema de domina­
Arqueologia, o uso do modelo efetuou-se a partir ção nacional, a aliança Coroa-Grande Lavoura
de 1873. Contudo, é preciso filtrá-lo no discurso de Exportação. A lei do Ventre Livre (1871),
arqueológico, demarcando-o no interior de um medida estratégica que visava protelar a defla­
diálogo “interdisciplinar” em que o IHGB gração deste impasse político, foi decretada num
intercruzou dados e métodos. momento em que as lavrouras agroexportadoras
Com efeito, não se pode considerar os textos se expandiam para as novas áreas de fronteiras.
arqueológicos dissociando-os dos outros Urgia, p irtanto, definir uma política indigenista
conjuntos discursivos articulados pelo IHGB. O capaz tanto de assegurar uma mão-de-obra
alternativa aos braços africanos, quanto de
desobstruir as áreas agricultáveis do domínio das
populações indígenas (Ferreira 1999, 2000;
(2) Notar que no frontispicio do primeiro volume dos
Arquivos do Museu Nacional figura como sócio
Pinõn 2000). Capaz de sanear os caminhos para
correspondente o naturalista Charles Darwin. Cf. o progresso da civilização Imperial. Por último, e
Arquivos do Museu Nacional, Vol I, 1876. não menos importante, o ■■•'«cava-se o problema

22
FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (187 0 -1 8 7 7 ). Rev. do Museu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 77: 21-33, 2001.

das raças, da complexa formação étnica da Ao contrário de uma visão amplamente


população brasileira, marcada pelo trabalho difundida, durante o século XIX, as Humanida­
escravo e pela existência de sociedades indíge­ des não se encontravam completamente cindidas,
nas. Problema de difícil solução para os intelec­ circunscritas pelos limites de seus objetos,
tuais do IHGB, que planejavam construir uma seccionadas na região delimitada por seus
identidade nacional pautada sob o conceito de métodos. O que se pode notar, pelo menos no
civilização; e intentavam ancorá-la numa cultura interior de uma instituição oficial como o IHGB,
ilustrada, fixá-la numa História linear e conti- é a tentativa de enfeixá-las numa rede episte­
nuísta, Magistra Vitae, de onde os heróis e os mológica, de tomá-las intercambiáveis, de
acontecimentos políticos do passado transmitiri­ alargá-las em múltiplas visões e falas.3 No
am exemplos para as gerações futuras; assegurá- interior desta ambiciosa tentativa em esboço,
la numa memória que reuniria personagens e mesmo as ciências naturais foram estreitadas às
eventos dispersos no tempo e no espaço, que humanidades nesta rede de sabei es lançada sobre
aglutinaria as diferenças culturais plantadas no o Brasil. Veja-se, por exemplo, a participação do
território nacional. Em suma, estes intelectuais IHGB no projeto meteorológico dos Professores
ocupavam-se com a tecelagem de uma auto- Carlos Weyprecht e Wilzek, o qual objetivava a
imagem, uma representação da Nação a ser criação de estações científicas nas latitudes do
veiculada para o conjunto mais amplo dos Brasil (Cf. RIHGB, 39: 403, 1876). Na ocasião
Estados europeus e para as elites do país. em que o projeto foi elaborado, os intelectuais
A prática arqueológica, de fato, articulándo­ do Instituto ressaltaram a sua relevância para os
se num espaço de interpositividades, ajudou a estudos antropológicos e arqueológicos (Cf.
propulsar efeitos de poder que pretendiam RIHGB, 39: 406, 1876). Exemplo mais eloqüen­
costurar as cissuras do Estado Imperial. Integran­ te, contudo, foi a formulação do Plano para se
do-se, por meio das expedições científicas, com Escrever a História, Geografia, Etnografía e
a Geografia, a Geologia e a História Natural, a Estatística de cada uma das Partes do
Arqueologia promoveu a composição de um Império (tomo 40: 437-39, 1877). O objetivo
maior conhecimento do espaço da Nação. pareçe claro: montar corpora que pudessem
Participou do olhar e do registro sobre as fundamentar um saber sobre o país. Particular­
possibilidades de exploração econômica dos mente interessante é a inclusão da estatística.
territórios, de suas riquezas naturais, sejam Esta técnica matemática, aplicada às popula­
aquelas latentes no interior de jazidas, sejam ções - entre as quais, obviamente, incluíam-se
aquelas manifestas e que afloravam à superfície. as indígenas -, serviria para mensurar e conta­
Do olhar e do registro que vigiavam e fiscaliza­ bilizar os seus movimentos, o número de mortos,
vam as províncias, suas instituições e os fluxos de doentes, a fecundidade de suas produções,
de suas populações, que esquadrinhavam seus os focos de tensão social etc.. Em suma, serviria
contornos físicos para confeccioná-los numa à confecção de um saber sobre o Estado e suas
cartografia identitária. Integrando-se com a populações (Foucault 1994a, Kapalgan 2000).
Antropologia e a Historiografia, a Arqueologia
produziu discursos sobre as sociedades indígenas
a fim de resgatar a gênese da Nação, de construir (3) É provável que uma análise sobre o Museu Nacional,
um saber sobre seus diversos povos, passíveis de delimitada no mesmo período, encontre uma outra rede
serem o corolário de um processo histórico de saber e poder. O Museu Nacional estava subordinado
ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
continuísta e encabeçado por uma “civilização
Públicas. Destinava-se ao estudo da História Natural,
branca”. Saber que formulou modalidades de particularmente a do Brasil, “sobretudo em suas
controle sobre estas sociedades ao ocupar-se aplicações à agricultura, indústrias e artes”. Suas seções
com a definição de uma política indigenista de englobavam variados domínios: Antropologia, Zoologia
integração. Saber que, ademais, tinha nítidos Geral e Aplicada e Paleontologia Animal: Botânica Geral
e Aplicada e Paleontologia Vegetal; Mineralogia,
objetivos geopolíticos ao dirigir-se às popula­
Geologia e Paleontologia Geral. Havia também uma
ções indígenas fronteiriças, no intuito de garantir seção de Arqueologia anexada ao Museu. Cf. Decreto n.
o poder do Estado Nacional sobre estes espaços 6.116 de 9 de fevereiro de 1876. Arquivos do Museu
ainda não definidos, não coagulados. Nacional, Voi I, 1876.

23
FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tnologia, São Paulo, II: 21-33, 2001.

Parafraseando De Certeau (1979), pode-se presidiu as Províncias de Goiás, Pará e Mato


dizer que pesquisas arqueológicas são realizadas Grosso (1863-68), o que lhe facultou a oportuni­
a partir de um locus de produção sócio-econômi- dade de realizar pesquisas de campo sobre os
co, político e cultural. Situada no suporte grupos indígenas entranhados nos sertões do
institucional do IHGB, a prática arqueológica Brasil. Realizou diversas viagens pelo Norte e
pôde ser aplicada, sobretudo, sobre as popula­ Nordeste do Brasil, cujos frutos trouxeram, além
ções indígenas, embora, como foi visto, tenha de pesquisas em Arqueologia e Antropologia,
atuado num campo de saber e de poder mais descrições geográficas e geológicas, considera­
abrangente. O exame da emergência de seu ções administrativas e econômicas acerca de
objeto, de sua posição numa formação discur­ diversas localidades. Acresce a isso seu plano de
siva, talvez possibilite o discernimento dos colonização dos indígenas. Vieira Couto acredi­
critérios segundo os quais estes povos indígenas tava que os indígenas eram aptos à civilização.
foram avaliados. Defendia a integração do “elemento indígena” à
sociedade brasileira por meio do trabalho, como
mão-de-obra alternativa aos braços escravos. Sua
O IHGB e a Arqueologia Evolucionista: idéia era a de formar “soldados intérpretes” que
Selvagens e Phases de Civilização chefiariam os aldeamentos indígenas.
O segundo autor é Antonio Manoel Gonçal­
Após 1870, com a aclimatação das idéias ves Tocantins. Este engenheiro industrial
positivo-evolucionistas em solo nacional, o objeto formado pela Universidade de Gand, na Bélgica,
de estudo da Arqueologia englobou uma tríade de atuou sobretudo na província do Pará.5 Ali foi
problemas: qual a origem das sociedades indíge­ secretário da Repartição de Obras Públicas. Em
nas? os indígenas seriam autóctones ou teriam 1880, executou, a serviço do Império, uma longa
imigrado de um outro continente? é possível exploração do rio Trombetas (PA) e seus
avaliar o grau de civilização das sociedades confluentes. Estudioso do Tupi, Tocantins travou
indígenas? Mais do que um corpus organizador inúmeros contatos com grupos indígenas do
da disciplina, estas perguntas emergiram de Pará. Os resultados de suas pesquisas aparece­
relações de força precisas, partircularmente as que ram pela primeira vez, nas páginas da Revista do
recortaram a questão das raças e da identidade IHGB, em 1876, quando publicou o seu Relíqui­
nacional. Resultaram da inserção da Arqueologia as de Uma Grande Tribo Extinta (RIHGB, 39:
num espaço de interpositividades, o qual lhe 51-64, 1876). Neste ensaio, o autor descreve e
permitiu criar dispositivos para uma política analisa os vestígios cerâmicos da Ilha do
indigenista de integração e fundar um regime Pascoval (PA), situada próxima à de Marajó
discursivo que classificou as sociedades indíge­ (PA). Tendo como pressuposto esta análise
nas. Princípios e signos que legitimaram e empírico-descritiva, investiga o cotidiano da
definiram o lugar a ser ocupado pelos indígenas
na rígida hierarquia do Estado Imperial.
Um conjunto de textos de dois autores 36: 563, 1873; 5a Sessão em 7 de julho de 1876.
permite demarcar a vigência da Arqueologia RIHGB, 39: 377-86, 1876 (leitura de O S elvagem );
evolucionista nolHGB. O primeiro é José Vieira 8a Sessão em 18 de agosto de 1876. RIHGB, 39: 400,
Couto de Magalhães, o Barão de Corumbá, que 1876 (leitura da obra Com parações entre o Guarani e
o Tupi antigos, Guarani fa la d o no P aragu ai e o Tupi
em 1873 publicou o seu Ensaio de Antropologia
falado no A m azonas). Para m aiores detalhes
(1873), texto do qual resultou O Selvagem (1935 biobibliográficos sobre Vieira Couto, Cf. D icionário
[1876]), obra que figurou na Exposição Univer­ B iobibliográfico de H istoriadores, G eógrafos e
sal da Filadélfia (1876).4 José Vieira Couto A ntropólogos B rasileiros. Rio de Janeiro, IHGB,
1993: 5 3-55.
(5) Tocantins foi admitido còm o sócio do IHGB em
1873. Cf. 13a Sessão em 5 de dezembro de 1873.
(4) Vieira Couto participou ativamente das pesquisas RIHGB, 36: 604, 1873. Detalhes biobibliográficos
arqueológicas e antropológicas do IHGB. Ali suas obras podem ser conferidos no D icionário Biobibliográfico de
eram freqüentemente lidas e comentadas durante as H istoriadores, Geógrafos e Antropólogos Brasileiros.
reuniões. Cf. 4a Sessão em 25 de julho de 1873. RIHGB, Rio de Janeiro, IHGB, 1993: 171-72.

24
FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (187 0 -1 8 7 7 ). Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

sociedade que fabricou as cerâmicas. Tenta De fato, ainda que representem um pequeno
responder às seguintes perguntas: “Que povo foi conjunto, tais textos merecem ser estudados, até
este? A que grau de civilização chegou? Qual foi porque a recepção da Arqueologia ao evolucio­
a sua maneira de viver? Qual a sua origem?” nismo permanece como uma análise ainda a ser
(RIHGB, 39: 51, 1876). Em seu segundo ensaio, feita pelos estudiosos da História da disciplina
Manoel Gonçalves efetua uma análise filológica no país. Sob este aspecto, tanto em José Vieira
e antropológica sobre a Tribo Munducuru Couto, quanto em Manoel Gonçalves Tocantis,
(RIHGB, 40: 10-161, 1877). Descreve as notam-se os enunciados da teoria. O primeiro,
pinturas rupestres dos ancestrais da “tribo”, as em seu Ensaio de Antropologia (1873: 408 -
quais ele compara com as “tradições” ainda grifos meus), assevera:
vivas. Investiga também os primeiros contatos
“(...) a anthropologia demonstra que o homem
culturais realizados entre os Munducurus e os physico passou sempre d ’um período mais atrazado
colonizadores quinhentistas, objetivando extrair p a ra um mais adiantado (...)”
exemplos para a formulação de uma política O segundo, em Relíquias de uma Grande
indigenista destinada às regiões de Belém (PA) e Tribo Extinta (1876: 52 - grifos meus), afirma,
“(...) alguns artefactos cerâm icos que aqui
adjacências.
tem sido descobertos, e outros que ainda existem
Poder-se-ia objetar que estes textos seriam enterrados, são, por assim dizer, as únicas
insuficientes para caracterizar a disciplina, que reliquias que restam d ’esta tribo, hoje totalmente
o seu diminuto conjunto teria sido um aconteci­ extincta. Porém, con siderações de alto valor
mento fugaz no interior da trajetória da Arqueo­ prendem os produ tos cerâm icos ao estudo dos
povos primitivos e aos das diversas phases de sua
logia brasileira, reles acontecimento fadado a
civilisação (...)”
permanecer em silêncio na memória deste
saber. Contudo, deve-se considerar, em primei­ Ora, a partir destas citações, e dos comen­
ro lugar, que o IHGB já praticava pesquisas tários já feitos sobre estes textos, pode-se
arqueológicas desde 1839, conforme se pode averiguar a configuração específica em que a
aquilatar no primeiro tomo de sua Revista (Cf. Arqueologia evolucionista do IHGB esteve
Ferreira 1999). De maneira que, tais textos, disposta. Com efeito, a disciplina inseriu-se
analisados como parte integrante da produção num espaço de interpositividades que a articu­
arqueológica da instituição, configuram uma lou com a Geologia, a Antropologia, a Filologia
reordenação epistemológica, pois, antes de e a Historiografia. Constituindo-se no espaço
1873, o evolucionismo não fundamentava a definido por estes saberes que lhe foram
positividade da Arqueologia (Cf. Ferreira 2000, coetáneos, a Arqueologia pôde formular
2001). Em segundo lugar, as obras de Vieira hipóteses sobre a origem dos indígenas e
Couto e Gonçalves Tocantis inscrevem-se no criterizar sobre o teor civilizacional de seus
mesmo solo espistêmico que orientou as variados grupos.
pesquisas dirigidas por outras instituições. O Integrando-se com a Geologia, a Arqueolo­
exame destes textos, portanto, oferece a gia evolucionista instituiu uma intermediação
oportunidade de se cotejá-los com outros com dois conceitos. O primeiro é o de artefato.
conjuntos discursivos, notadamente, no que se Conceito nuançado que engloba duas facetas
refere ao período em questão, com os do Museu indissociáveis: ele é uma materialidade física, é
Nacional. Em terceiro lugar, após 1870, um composto por uma matéria-prima que diz do
evento demonstra que a Arqueologia praticada que ele é feito - portanto, um problema a ser
pelo IHGB gozava de um certo prestígio no deslindado pela Geologia; é ao mesmo tempo
quadro das pesquisas arqueológicas internacio­ uma atividade humana de transformação, o
nais. Trata-se do Congresso Internacional dos trabalho de confecção de uma matéria-prima
Americanistas (Cf. RIHGB, 39: 369, 1876), que o materializa, é uma tecnologia que permite
realizado em Luxemburgo, em 1877. O IHGB a exploração do meio-ambiente - portanto, um
foi convidado para participar da Comissão de problema a ser pesquisado também pela
Organização, cabendo-lhe versar sobre a Antropologia. Para se ter uma idéia de como os
Antigüidade do Homem Americano (Cf. artefatos passam a ser um dos focos de análise
RIHGB, 39: 403, 1876). da Arqueologia, veja-se como o Museu Nacio-

25
FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tnologia, São Paulo, 77: 21-33, 2001.

nal preocupou-se em ordená-los e classificá-los:6 geográfica do sítio arqueológico. Dava-se


Charles F. Hartt (1876a) descreveu e analisou o ênfase à sua situação topográfica, suas
material lítico conservado no Museu, além de dimensões, sua forma e sua localização no
tecer considerações sobre tangas de cerâmica quadro de um meio-ambiente mais amplo. A
indígenas (1876b); Domingos Soares Ferreira tarefa, portanto, era a de caracterizar a posição
Pena (1877) fez o mesmo com os vestígios do sítio no interior de uma estrutura geográfica
cerâmicos dos sambaquis do Pará; Ladislao Neto e geológica (Cf. Rath 1871: 289, Wiener 1876: 4-
(1877), por sua vez, escreveu alguns apontamen­ 7). Este determinismo geográfico permitiu, em
tos sobre tembetás. primeiro lugar, o entendimento da função do
O outro conceito é o de sítio arqueológico. sítio arqueológico. Era o imperativo constrin­
Ao lado dos artefatos, este é o objeto empírico gente da natureza, a força irredutível do meio-
fundamental da Arqueologia evolucionista - ambiente, os caprichos das oscilações e ciclos
como ainda o é da Arqueologia pré-histórica ecológicos que conduziam as sociedades
contemporânea. Sem ele, não se poderia angariar indígenas na escolha de suas moradias.
os artefatos, pois estes agora estão sobretudo Ladislao Neto (1876b), por exemplo, enfatizou
“enterrados”. Não basta colecioná-los quando que os sambaquis do Sul do Brasil eram
eles, por obra do acaso, aparecem na superfície.7 estações de pesca, locais de ocupação esporá­
Os sítios arqueológicos são os depositários dos dica das tribos do interior, que fugiam do
tesouros, das “relíquias” do passado que jazem, minuano do inverno em busca de temperatura
intocadas em seu mutismo, nos arquivos da terra. mais amena e da pesca farta do litoral. Tal
As jazidas arqueológicas devem agora ser conclusão foi alicerçada pela análise dos
compulsadas, devem ser escavadas para que vestígios arqueológicos e pela observação
delas se retirem os resíduos de uma sociedade antropológica. Havia ali muitas espinhas de
“extinta”. Somente assim poder-se-á lê-los, fazê- peixe, artefatos de pedra e “louça” semelhan­
los falar, dirigindo-se aos signos que neles tes aos encontrados no interior. Restos de
estão depositados. Não foi à revelia, portanto, fogueiras confirmam, além disso, um hábito
que Karl Rath (1871) instou o IHGB para que o comum destas tribos sertanejas: quando vão
acompanhasse em seus estudos sobre os aos rios pescar, sobretudo à noite, os índios
sambaquis existentes no interior do país. Desta costumam se aconchegar ao fogo. Domingos
importância conferida aos sítios arqueológicos Soares F. Pena (1876) concordou com Ladislao
surgiram as pesquisas sobre os “montes de Neto. Os sambaquis do Pará também serviram
conchas” concretizadas por Charles Wiener às ocupações sazonais. Vindos do interior das
(1876) e Domingos Soares Ferreira Pena (1876).8 densas florestas, os índios, esquivando-se da
As regras de uso destes conceitos umidade sufocante do verão, desciam para o
possibilitaram à Arqueologia o desdobramento litoral, acompanhando o movimento decres­
de algumas análises. Tratava-se, inicialmente, cente das águas e a imigração dos animais.
de descrever a composição geológica e Assentavam ali suas “malocas” temporárias.
Também aqui os artefatos e a Antropologia
lastraram a conclusão. Os materiais toscos dos
(6) Esta preocupação com o ordenar e o classificar sambaquis mostram bem que estes índios eram
podem ser averiguadas no Art. 1 do Decreto n. 6.116 de selvagens, viviam da caça, não conheciam nem
9 de fevereiro de 1876. Cf. Arquivos do Museu Nacional, ao menos os rudimentos da agricultura. Daí
Vol I, 1876.
(7) Antes de 1870, os artefatos eram solicitados aos
estes índios serem impingidos pela implacabi­
sócios correspondentes do IHGB. Cf. 108a Sessão em 20 lidade da natureza, migrando de uma região
de julho de 1843. RIHGB, 5: 382, 1843; 146a Sessão em para outra, enterrando seus mortos ao sabor
18 de março de 1846. RIHGB, 8\ 152-55, 1846; 148a das idas e vindas, misturados entre as conchas
Sessão em 30 de abril de 1846. RIHGB, 8: 289, 1846. amontoadas, sob o chão que dormiam. A
(8) Para se medir a importância que os sítios arqueoló­
“repugnância” deste costume, sem dúvida,
gicos passaram a ter, vale a pena citar uma frase de
Wiener: “... o humilde sambaqui tem para a sciencia
mostra que o povo que deu origem aos
universal a mesma importancia que a majestosa sambaquis é realmente selvagem. Em segundo
pyramide do Egypto ou do M éxico...” (1876: 20). lugar, as observações geológicas dos sítios

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FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (18 7 0 -1 8 7 7 ). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

arqueológicos embasaram a fixação de uma portanto, para deixá-los viverem nos extensos
cronologia sobre o povoamento do Brasil. Ora, territórios do Norte e Centro-Oeste sem colo­
os artefatos estão agora encravados num nizá-los. O Estado Imperial deveria, assim,
depósito sedimentar, instalados num tempo tomar para si a tarefa de salvá-los de sua
geológico. Os artefatos, agora, estampam um subjugação brutal à natureza, deveria incluí-
calendário. Podia-se, portanto, determinar a los no plano da civilização, deveria ensiná-los
antigüidade da tribo tomando-se por base a a plantar e a colher os frutos da terra, os frutos
camada geológica em que eles se encontravam. do trabalho agrícola. As amplas fronteiras
Assim, Wiener (1876) calculou que os samba- teriam que ceder ao ímpeto do progesso,
quis tinham dois ou três séculos. Domingos teriam que render-se à monocultura do café ou
Soares Ferreira Pena (1876: 86) resolveu não de outros gêneros. Era preciso, portanto,
fixar uma cronologia, pois, segundo ele, os integrar os indígenas e suas terras aos interes­
sambaquis estavam extremamente erodidos ses administrativos e econômicos do Império.
devido à ação eólica e do relevo. Vieira Couto Era preciso formular uma política indige­
(1873: 409), por sua vez, datou a primeira nista que encaminhasse o “processo civilizador”
imigração para o Brasil no período da “Pedra (Elias 1993, 1994). Até porque alguns povos
Polida”, mais especificamente no “Paleolítico detinham costumes abjetos. Seus ancestrais, por
Superior”, de acordo com os instrumentos meio da tradição oral, haviam-lhes irremediavel­
localizados “nos mais antigos sedimentos da mente transmitido por herança. Wiener (1876: 17
época quaternária”. Deste modo, esta imigra­ e segs.), por exemplo, a partir do exame das
ção situar-se-ia “mais ou menos a cem mil anos evidências ósseas fornecidas pelos esqueletos
atrás” (1873: 409). Sendo os selvagens filhos humanos, mostra como alguns deles estavam
da imigração, efetuada depois que transpuse­ friáveis, calcinados e incompletos. Só poderiam
ram, em outro continente, o primeiro estágio da ser então restos de refeições, pois a carne
civilização, Vieira Couto lamenta a ausência de humana era muito apreciada pelos índios dos
coleções de artefatos no Brasil. Estas, se sambaquis, eram eles um povo “que via em seu
ligadas a suas devidas estruturas geológicas, semelhante somente um objecto de alimenta­
se não coletadas erradamente, permitiriam o ção”. Seus banquetes, cujo prato principal era a
estabelecimento de uma cronologia mais carne dos inimigos, satisfaziam o apetite do ódio
segura da imigração originária. e a extradiordinária fome de vingança de que
As análises empírico-descritivas dos eram possuidores (Pena 1876: 88). Mas há
artefatos seguiam princípios similares aos feitos outros costumes “repugnantes”. Os índios dos
no campo da História Natural e da Geologia. sambaquis enterram os seus mortos no mesmo
Tentava-se isolar, por meio do pormenor descriti­ solo onde dormem, entre vestígios alimentares
vo, as identidades e diferenças dos artefatos - (espinhas de peixes e conchas), no meio do lixo
assim como se procedia com a natureza das e o mais perto possível do pai, irmão, mãe, filho
plantas e dos animais (Cf. Netto: 1876a), com as e mulher do falecido. Se o Império quer cons­
formações geológicas e geográficas (Cf. Derby: truir sua identidade nacional sob o signo do
1877). Feita esta tarefa, podia-se avaliar o grau progresso e da civilização, se quer realmente
de civilização dos indígenas. Já se viu como confeccionar uma auto-imagem digna de ser
Domingos Soares Ferreira Pena (1876), combi­ exibida para suas elites e para as Nações euro­
nando determinismo geográfico e análise dos péias, deve integrar os índios à civilização.
artefatos, classificou os indígenas como selva­ Deve, fazendo-os conviver com os brancos,
gens, povos ignorantes do saber agrícola. Neste incutir-lhes costumes nobres. Contudo, nem tudo
ponto, as análises de Ferreira Pena convergem está perdido. Manoel Gonçalves Tocantins
com as de Vieira Couto (1873: 407). Também (1876), estudando o cotidiano da sociedade que
este autor, após longa descrição dos vestígios, produziu as “relíquias” da “cultura marajoara”,
percebeu que alguns deles indicavam a existên­ analisando-as meticulosamente, enfatizou que o
cia de populações que não passaram por nenhum povo que as fabricou era “bastante adiantado na
período de civilização, que não conheceram nem indústria cerâmica” (p. 60). Pode-se levá-las para
ao menos a agricultura. Não haveria razões, as grandes Exposições Universais, festas do

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FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 77: 21-33, 2001.

trabalho e do progresso (nas palavras de seus estudos craniométricos, pôde organizar o


Schwarcz 1998), onde elas mostrarão que o primeiro Curso de Antropologia do Museu
Império possui uma gênese histórica fundada Nacional (Lacerda 1877). Foi assim, também,
sob uma cultura sofisticada. Nem tudo está que Vieira Couto (1873, 1935) pretendeu
perdido. Algumas tribos sujeitar-se-ão com interpretar os Tupis do ponto de vista físico e
mais facilidade às normas de uma política moral. Partes de um mesmo processo, os
indigenista. Afinal, já estão habituadas ao corpos dos Tupis, suas medidas morfológicas
labor e ao esmero industrial. e características físicas, forneceriam os
Com efeito, esta articulação entre a Arqueo­ indícios para o estudo de sua moral, as provas
logia e a Geologia só pode ser entendida plena­ de sua perfeição ou imperfeição intelectual.
mente considerando-se a inclusão da Antropolo­ Ora, se os Tupis migraram de outro continente
gia nesta dimensão discursiva. O que se constata quando estavam na primeira fase da civiliza­
é que a Arqueologia e a Antropologia, percorren­ ção, resta buscar na compleição de seus
do um mesmo campo de manifestações empíri­ corpos e na linha recuada de seu passado - o
cas, não foram praticadas em domínios estan­ qual pode ser perscrutado nos registros
ques e hierarquizados, sulcadas em momentos arqueológicos e geológicos -, o estágio de
diferenciados da abordagem sobre as popula­ evolução em que se encontram suas popula­
ções indígenas, cada qual em sua démarche. ções, habitantes do “Grande Sertão Interior”,
Ao contrário, pode-se dizer que a Arqueologia, isolados na vida bucólica das florestas
entre 1870 e 1877, teve uma relação simbiòtica tropicais. Isolados dos intercâmbios com a
com a Antropologia. Ela não surgiu, como no “cultura branca”, ocidental, civilizada.
espaço europeu, da Filologia, onde esteve Nesta perspectiva de caracterização
subordinada sobretudo à História (Bandinelli cultural das sociedades indígenas, no bojo
1994; Funari 1998, 1999b). Nem tampouco foi deste trabalho de esquadrinhamento de suas
concebida como simples subsidiária da Antro­ populações, também a Filologia foi utilizada.
pologia, como em seus desdobramentos iniciais Conhecendo-se os dialetos indígenas, os
na América do Norte ( Funari 1998). fonemas e regras sintáticas de sua linguagem,
Daí a presença, nesta formação discursiva, da pode-se entender os mitos de sua cultura,
Antropologia Física - o estudo comparatativo pode-se demonstrar como sua visão cos­
das raças, a classificação morfològica das mológica, sua visão do tempo, possuem
raças indígenas.9 Dá-se início, no Brasil, à formas primárias de percepção e explicação do
utilização de uma tecnologia de poder, a mundo. Formas fetichistas. A Filologia, assim,
craniometria, por meio da qual a categoria raça,
sofreu uma irrupção de temporalidade. Serviu
medida em suas “falsas dimensões” (Gould
para se mensurar o tempo, o limiar que separa
1981), legitimou a conformação de identidades
os selvagens da civilização. Se os artefatos,
e fundamentou num “discurso verdadeiro” os
enquanto documentos, permitem a inferição de
racismos oficiais (Foucault 1988, 1994a, 1994b,
um calendário e do grau cultural dos indíge­
1999; Jones 1997; Marx 1998; Milles 1989;
nas, também seus dialetos apontam para um
Patterson 1997; Trigger 1990). Foi assim que
passado distante e selvagem, confirmado pela
Batista Lacerda (1876a, 1876b), com base em
observação do presente, pela Antropologia.
Os indígenas, de fato, são selvagens. Não
somente seus artefatos e suas línguas reve-
(9) Antes de 1870, Lund havia praticado uma espécie de
lam-no: ao contrário das civilizações meso-
frenologia, comparando os crâncios fossilizados que ele
descobriu em Lagoa Santa (MG) com crânios egípcios. americanas, não há no Brasil grandes monu­
Cf. Carta Escrita de Lagoa Santa ao Sr. Primeiro mentos arquitetônicos (Cf. Magalhães 1873:
Secretário do Instituto. RIHGB, 4: 80-7, 1842. Martius, 501).
em sua metodologia antropológica para os estudos das A Antropologia Física e a Filologia,
“raças vermelhas”, sugeriu a análise comparativa das
atuando em rede com os discursos Antropoló­
raças. Cf. Como se Deve Escrever a História do Brasil.
RIHGB, 6: 389-411, 1844. Gonçalves Dias também,
gico e Arqueológico, possibilitaram a averi­
antes de 1870, já lia literatura antropométrica. Cf. Brasil guação da origem dos indígenas. Assim,
e Oceania. RIHGB, 30: 5-271, 1867. Manoel Gonçalves Tocantins, em seus estu­

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FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1 8 70-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

dos sobre a Tribo Munducuru (1876), argu­ os vestígios arqueológicos e a “atual” organi­
menta sobre a especificidade da Língua e dos zação social de uma tribo, elas deveriam
traços anatômicos do grupo. Daí ter ele desanuviar sua origem nebulosa e a sua phase
levantado a hipótese poligenista para explicar civilizacional. Deveriam interpretar os eixos de
o surgimento das sociedades indígenas. Se contato com os remanescentes da “tradição”,
seus grupos são a prova empírica dos diferen­ os elos de continuidade entre o presente e o
tes centros de criação da humanidade, trata-se passado. A Historiografia, dispondo destes
de determinar seu teor civilizacional. Neste dados, tentaria enredá-los num discurso
sentido, também em Gonçalves Tocantins, os universal e indiviso que apagaria todas as
dialetos têm o mesmo valor documental que os diferenças e descontinuidades. Procuraria
artefatos. Se a indústria cerâmica da população construir um sujeito coletivo coroado, se
de um sambaqui do Pará representa um estágio possível, por uma sociedade evoluída, ante­
avançado de civilização, não é o que se passados da nobreza Imperial, da elite ilustra­
depreende da linguagem dos Munducuru. da que impulsionava a marcha civilizatória da
Seus mitos, se comparados com os registros Monarquia brasileira.
rupestres de seus ancestrais - ou por outra, se Entretanto, a Arqueologia evolucionista -
comparados com os testemunhos arqueológicos e a Antropologia - do IHGB não conseguiu
-, mostram toda a primitividade e insipiência de comprovar traços de cultura indígena elabora­
suas concepções sobre o mundo, revelam uma da. Nas palavras de Vieira Couto, que soaram
humanidade na infância, em seus primeiros como um desabafo, ou como um lamento, a
passos em direção à civilização. Também em Pré-História brasileira, ao contrário da das
Gonçalves Tocantins, a Arqueologia e a Antro­ vizinhas Repúblicas latinas, não revelou
pologia se regulam num mesmo jogo de relações nenhum grande monumento, nenhuma sobran­
discursivas. Assim é que, a partir das evidências ceira pirâmide erguida no seu vasto território.
arqueológicas, ou seja, valendo-se dos fragmen­ Pelo contrário, a Antropologia e a Arqueologia
tos cerâmicos, ele procurou reconstituir a evolucionista demonstraram empiricamente -
organização social da tribo semi-avançada, como se pretendia - que os indígenas são
remontar o seu cotidiano. Suas próprias pergun­ selvagens. Frustraram a tentativa de repre­
tas indicam este objetivo: “Como viveram eles? sentá-los na imagem de uma Nação que se
A que grau de civilização chegaram?”. queria civilizada. Os grupos indígenas, deste
Embora os indígenas tenham sido defini­ modo, foram excluídos do discurso histo­
dos como pertencentes a uma tribo, a um riográfico. Só interessavam, agora, como
grupo arraigado a um tronco filológico- elemento de riqueza, como possível mão-de-
cultural, simultaneamente foram incorporados obra sucedânea aos braços escravos. Eles
num discurso teleologico que os reuniu num agora são definitivamente selvagens, primiti­
mesmo bloco histórico. E aqui se destaca a vos. Suas sociedades, como que refletidas
articulação da Arqueologia e da Antropologia num gradiente, no máximo possibilitariam a
com o projeto historiográfico do IHGB. Projeto apreensão de uma maior ou menor evolução
que supunha a existência de um telos que cultural. Quiçá algumas estariam numa fase
guiava o processo histórico de uma Nação mais avançada do processo histórico-evo-
destinada ao progresso e à civilização; que lutivo da humanidade. Os selvagens, deste
primava por uma ontologia da profundidade, modo, deveriam ser integrados à Nação pelas
uma leitura que realçasse na História da Nação mãos benfazejas do Estado Imperial, represen­
um reecontro do presente com o passado, tantes da civilização nos trópicos. Neste
representado, quem sabe, por uma cultura sentido, talvez se possa entender a radica­
elaborada, perdida em algum período longín­ lização de alguns pronunciamentos de intelec­
quo, em algum momento civilizacional das tuais ligados ao IHGB. Roberto Armiño, por
sociedades indígenas. Nesta tarefa, a função exemplo, via na introdução das máquinas a
da Arqueologia e da Antropologia não seria vapor uma forma de “libertar as raças de cor”
tanto a de atentar para a singularidade cultural (Cf. RIHGB (37): 390, 1874). As raças de cor
de cada grupo indígena. Tomando como vetor (obviamente aqui se incluem os negros)

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FERREIRA. L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do Museu de A rqu eologia e
E tnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

deveriam ser libertadas! A política indigenista Conclusão


de integração transformou-se numa forma de
libertação. Era preciso livrar estes povos das Os estudos das relações históricas entre a
amarras da escravidão selvagem das matas, Arqueologia e o Estado apresentam-se, hoje,
orientá-los através da topografia das ferrovias, como um dos principais campos de pesquisa da
este símbolo tão caro da civilização e do disciplina (Diaz-Andreu 1996, 1999). Teorias
progresso. Arqueológicas, historicamente, quase sempre
Mas, pensando bem, esta radicalização estiveram a serviço da dominação social (Hodder
ainda é suave. Num momento em que os 1992, Shanks and Tilley 1987), e o debruçar-se
indígenas eram escravizados e exterminados
crítico sobre os seus materiais históricos tem
com alguma sistematicidade, Armiño foi
revelado os vínculos estratégicos da disciplina com
pedagógico. Procurou integrar os indígenas ao
a formação de Estados-Nações e identidades
Estado Imperial através da educação pelo
sociais e históricas (Haber 1999, Daniel 1981,
trabalho. Trabalho pontuado ao ritmo do
Jones 1997, Funari 1999a, Patterson 1997), com o
tempo de produção dos “brancos”, não mais
Imperialismo e o Colonialismo (Rodrigues 1991;
ao “som da mão-de-pilão”, mas ao do apito
Trigger 1984, 1990; McGuire and Navarrete 1999).
regular das ferrovias. Antes da aclimatação do
Escrever a História da Arqueologia Imperial em
evolucionismo, houve, contudo, propostas
suas correlações com campos de saber e poder,
menos pedagógicas, mais belicistas. Francisco
portanto, pode servir tanto para o entendimento da
A. Varnhagen, historiador e conselheiro oficial
constituição de sua constituição epistêmica, quanto
do Império, recomendou o extermínio de todos
para a compreensão dos mecanismos por meio dos
os indios “não mansos” (Ferreira 2001) como
quais se fabricaram interpretações racistas e
forma de desobstruir o caminho do Brasil rumo
à civilização. Décadas depois da proposta de elitistas da identidade brasileira.
Armiño, o evolucionista Von Ihering, do O que é tanto mais importante na medida
interior do Museu Paulista, retomou o debate. em que os embates e enfrentamentos do
Seguindo a marcha militar de Varnhagen, presente liberam um certo número de imagens
sugeriu o extermínio sistemático dos Kaiagang do passado. A festa identitária da Comemora­
(Cf. Ihering 1911), dos selvagens que estorva­ ção dos 500 anos do Brasil, cuja celebração
vam o progresso da Nação. Estranho cons- reforçou os três componentes de “nossa”
traste este entre um historiador, um Diretor de Nação imaginada (Anderson 1986) - identidade
Museu e um engenheiro! lusa, católica e cordial -, tratou a Marcha
E a história se repete, com variações. Tem- Indígena 2000 a cassetetes e bombas de “efeito
se um exemplo mais recente do uso do evolucio­ moral” (Cf. Folha de São Paulo, 23/04/2000: 3-
nismo para “civilizar” o Brasil. Hélio Jaguaribe 12). Indígenas de etnias diversas continuam a
(1994), decano cientista político e ex-ministro da ser exterminados (Cf. Antenore 1999, Natali
Ciência e Tecnologia do Governo Collor (1990- 1999); são freqüentes, ademais, as denúncias de
92), um dos principais conselheiros de Femando assassinatos de seus líderes (Cf. Informe do
Henrique Cardoso na campanha à presidência CIMI, n. 423: 2 p.) e de abuso sexual de índias
de 1994, propôs, nas entrelinhas de um dos Yanomâmis por soldados do Exército brasileiro
seus artigos, uma “limpeza étnica” entre os (Cf. Folha de São Paulo, 22/10/2000: 12). Os
índios. Sob a justificativa de que a maoiria deles conflitos pela demarcação das terras têm
- somente “200 mil almas” ! - vive em pleno motivado os indígenas a invadir fazendas (Cf.
paleolítico, outros poucos no neolítico. E, Folha de São Paulo, 26/08/2000: 13) e a
conseqüência inevitável, “o destino histórico seqüestrar pescadores que adentram suas
do índio brasileiro é deixar de ser índio e se reservas (Cf. O Estado de São Paulo, 7/08/2000:
tomar um cidadão brasileiro”. Curiosa perma­ 15). Por outro lado, na via da ação legal, os 350
nência a se observar ao longo da História mil indígenas que sobreviveram ao extermínio
brasileira esta tentativa de integrar o “velho” ao pressionam o Governo Federal por um novo
“novo”, de forma a que as rupturas sejam estatuto que os liberte da tutela da Funai
evitadas. Hélio Jaguaribe, como conselheiro (Fundação Nacional do índio) (Cf. Folha de
oficial, lembra Varnhagen. São Paulo, 12/11/2000: 5-6); organizam cartas-

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FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1 870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

protesto contra telenovelas que veiculam Agradecimentos


estereótipos culturais sobre os seus povos (Cf.
Folha de São Paulo, 19/11/2000: 14). A integra­
ção política dos indígenas à Nação, questão À FAPESP, por financiar esta pesquisa.
que de certa forma lastrou as condições de Aos amigos e colegas que me ofertaram seus
possibilidade para a Arqueologia Imperial, é um textos (alguns inéditos) e leram as primeiras
problema ainda insolvido. Tudo parece indicar versões deste artigo, ajudando-me a melhorá-lo:
que a Arqueologia brasileira, no futuro, terá de Margarita Diaz-Andreu, Célia Maria Marinho
fundar suas pesquisas nos termos dos conflitos de Azevedo, Pedro Paulo Abreu Funari,
do presente - não poderá deixar de assistir aos Francisco Noelli, David Nogueira, Ana Pinõn,
deslocamentos, diferenças e transformações Margareth Rago, José Alberione dos Reis.
destas imagens do passado que se projetam e Pelas minhas próprias idéias aqui argumenta­
reiteram no presente. das, contudo, sou o único responsável.

FERREIRA, L.M. “A whole bunch o f new ideas in Archaeology” (1870-1877). Rev. do


Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the articulation of the


Imperial Archaeology related to knowledge and power. From this articulation
some matters are raised about the relationship between the archaeological
practice, the Imperial political scheme and the Evolutionism.

UNITERMS: Archaeology - Imperial Brazil - Knowledge - Power - Evolu­


tionism.

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Rev. do Museu d e A rqu eologia e Etnologia, S. Paulo, 11: 35-53, 2001.

OS SAMBAQUIS E O IMPÉRIO: ESCAVAÇÕES,


TEORIAS E POLÊMICAS, 1840-1889*

Johnni Langer**

LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêm icas, 1840-1889.


R evista do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

RESUMO: O artigo analisa as primeiras investigações sobre sítios litorâ­


neos, ocorridas durante o reinado de D. Pedro II.

UNITERMOS: Sambaquis - Mito e Arqueologia - Barbárie e civilização.

De todos esses monumentos sepulcrais não há arqueológicos, que receberam seu primeiro
mais vestígio. Mas, sem dúvida alguma, poderíamos debate ainda no Setecentos, prosseguindo
reencontrá-los através de escavações. Heinrich
suas discussões por todo o século seguinte. A
Schliem ann, ftaca, o P eloponeso e Tróia, 1869.
principal polêmica levantada inicialmente a
respeito dos sambaquis foi se tinham sido
Um dos aspectos mais pitorescos da
construídos pelo homem ou acidentalmente
Arqueologia é sua característica de estudar,
pela natureza.
muitas vezes, o entulho de uma cultura. No
O frei Gaspar de Madre de Deus, em seu
Brasil, esse papel também não seria diferente.
livro Memórias para a história da capitania
Nosso imenso litoral brasileiro foi habitado por
de São Vicente (1797), descreveu o processo
diversas populações indígenas em seu passa­
do pré-cabralino. No período de colonização
portuguesa, essas mesmas regiões foram alvo
de interesses econômicos, como a exploração
Tupi-guarani: Tambá, conchas e Qui, monte.
da cal de sambaquis.1 Interessantes sítios Testemunha de bandos recoletores e pescadores do
litoral. Apresenta-se com o uma pequena colina
arredondada, constituída quase que exclusivam ente
por carapaças de m oluscos. Os sambaquis podem
(*) Este artigo é a m odificação do capítulo “O lixo de chegar a 30m de altura e provavelm ente filiam -se a
nossos antepassados”, de nossa tese de doutorado em várias fases, ainda que indubitavelm ente constituam
História: M ito e ruína, a arqu eologia no B rasil uma única tradição. Sinônimos: Sernambi, casqueiro,
im pério. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, concheiro, ostreiro (Souza 1997: 115). Os sambaquis
novem bro de 2000. são incomuns, se comparados a outros sítios indíge­
(**) Universidade Federal do Paraná. Pós-Graduação nas, por três m otivos principais: primeiro, porque
em H istória, Doutoram ento. possuem m uitos vestígios de alimentação; em
(1) Sam baqui - Acum ulação artificial de conchas de segundo, porque existia uma convivência entre vivos
m oluscos, tradicionalmente considerados vestígios da e mortos muito grande - os mortos eram sepultados
alim entação de grupos humanos (Prous 1992, p. no m esm o espaço cotidiano do sítio; e terceiro,
204), mas que atualmente são considerados edifica­ porque “foram o grupo que deixou a maior quantidade
ções intencionais. Sítio arqueológico cuja com posição e diversidade de testemunhos de sua permanência no
seja predominante de conchas. A origem da palavra é território b rasileiro.” (Gaspar 1999: 160).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
g ia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

de formação dos sambaquis ou ostreiras: litorâneas. A polêmica estava estabelecida. Um


seriam resultado da acumulação de mariscos comitê, que ficou conhecido por Lejre Comis-
coletados pelos indígenas, servindo para sion, foi criado em 1847 para tentar chegar a
cemitérios e nos quais “acham-se machados, uma conclusão sobre o dilema. Além desses
pedaços de panelas quebrados e ossos de dois especialistas citados, participaram os
defuntos.” (1953: 46). A maioria dos escritores geólogos J. Forchammer e H. Orsted. Neste
desta época acreditava, erroneamente, que mesmo ano, Steenstrup iniciou uma troca de
esses montes conchíferos teriam sido forma­ correspondência com Peter Lund, em Minas
dos naturalmente, sendo a opinião de frei Gerais, que durou até 1852.2 Para Lund era
Gaspar uma exceção significativa. evidente que as acumulações de conchas
Até a metade do Oitocentos, o assunto existentes no litoral brasileiro eram similares às
não despertou maiores atenções dos intelectu­ da Dinamarca, e que foram produzidas pela
ais brasileiros. Algumas rápidas referências ao presença humana. Com isso, os pesquisadores
assunto foram feitas por Vamhagen, em três nórdicos se viram obrigados a mudar de
momentos diferentes. No primeiro, o historia­ opinião, um fato consolidado em 1851, quando
dor encontrava-se vasculhando os arquivos Worsaae escavou um sambaqui na Jutlândia,
paulistas em 1840, seguindo o levantamento descobrindo diversos indícios que apontavam
documental proposto pelo Instituto nesta para a artificialidade do sítio (Bahn 1996: 90).
época. Visitando um sambaqui em Cubatão, Curiosamente, em nosso país essa correspon­
encontrou crânios e ossos humanos, mas dência de Lund foi praticamente desconhecida.
questionou a origem artificial proposta por Todos os debates realizados posteriormente
Madre de Deus (Vamhagen 1840: 525). Nove no Brasil sobre o assunto fundamentavam-se
anos depois, suas concepções começaram a no reconhecimento científico dinamarquês a
mudar. Agora as ostreiras foram apontadas respeito da artificialidade dos vestígios
como possíveis resquícios de antigas civiliza­ conchíferos, desconhecendo esse intercâmbio.
ções, restos de monumentos de outras gera­ Após Vamhagen, o Instituto seria agracia­
ções (1849: 372). Ao final dos anos 40, outros do com uma série de estudos arqueológicos, a
estudiosos lançaram esforços para o estudo partir de 1864, tratando dos vestígios arcaicos
desses restos, como Carlos Rath e Freire do litoral. A origem deste material não viria de
Alemão, este último autor de um estudo seus sócios ou membros, e sim de uma figura
chamado Memória sobre a Pirâmide do totalmente externa à elite carioca. Um misterio­
Campo Ourique do Maranhão. Vamhagen so conde, de origem francesa, deixaria seu
voltaria ao assunto em sua História do Brasil nome marcado nos anais da instituição por sua
(1854), desta vez comparando nossos sítios ousadia e determinação.
com outras regiões do mundo, como vestígios
da Dinamarca, norte da Europa, ilhas do Egeu
e Antilhas. Na realidade, o intelectual estava As aventuras de um conde arqueólogo
bem atualizado durante os anos 50, conhecen­
do as pesquisas desenvolvidas principamente Em mais uma sessão promovida pelo
nos países nórdicos. Instituto, em novembro de 1864, o futuro
A Dinamarca foi uma das pioneiras nos marquês de Sapucaí promoveu a leitura de uma
estudos pré-históricos, recebendo um grande carta enviada para a secretaria de estado do
impulso após a obra sistematizadora de Império. Poderia ser mais uma correspondência
Thomsen. Desde 1827, um zoólogo chamado
Japetus Steenstrup investigava os sambaquis
da região escandinava, denominados kõkken-
mõddingers, considerando os mesmos como (2) A Biblioteca Real da Dinamarca possui duas cartas
do intercâmbio entre Lund e Steenstrup, escritas em
formados naturalmente. Durante os anos 40, o
dinamarquês, datadas de 28/3/1847 e 11/3/1,852, com
arqueólogo Jens Worsaae defendia uma as referências: NKS 3460, 4 e NKS 2677, 2 IV
posição contrária, estabelecendo que estes (conforme bibliografia enviada pela arquivista Palie
montes seriam obra de antigas populações Ringsted, Manuscrit Department).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de Arqueolo-
gia e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 35-53, 2001.

sem maiores alardes ou comprometimentos. onde encontrou restos de diversos sambaquis,


Porém, a mesma consistia em um relatório da denominados pelo conde de amas de coquil-
descoberta, em Santa Catarina, de ossos e lages.
outros vestígios instigantes. Seu autor, o Com auxílio de um jovem francês, identifi­
conde de La Hure,3 solicitava ao IHGB o seu cou as conchas do local como da espécie
parecer sobre esse encontro. chamada de berbigão. Sua primeira conclusão,
Este pesquisador francês residiu no Brasil, comparando com os montes de concha
tratando de assuntos relacionados com artificiais da Dinamarca, foi de que esses
agricultura, plantação de algodão, criação do restos eram provenientes de diferentes
bicho-da-seda e colonização. No começo dos habitantes da região com o passar do tempo.
anos 60, realizou expedições corográficas pelo La Hure observou que existiam no mesmo
interior paulista. Seus primeiros livros publica­ monte diferentes camadas de estratificação e
dos, L ’Empire du Brésil (Paris) e Le Mexique de espécies conchíferas, comprovando épocas
(Douai, ambos de 1862), forneciam dados alternadas de ocupação. Escavando quase um
abrangentes destes dois países: geografia, metro e meio do sítio, encontrou três esquele­
estatística, indústrias, história e sociedade. tos humanos adultos, dos quais realizou uma
Nesta época também publicou, em Douai pormenorizada descrição de suas característi­
(França), um opúsculo de quatorze páginas, cas físicas, comentando o estado de conserva­
denominado Les peuples du Brésil avant da ção dos dentes e a proeminência das mandíbu­
découverte de l ’Amérique (1861), iniciando las. Junto aos restos humanos, deparou com um
seu interesse pela pré-história brasileira. machado de pedra, cacos cerâmicos e objetos
A carta-relatório de Hure, datada de 16/08/ líticos. Uma pedra trabalhada, de origem
1864 e enviada de Dona Francisca (SC), deve granítica, foi reproduzida em um detalhado
ter surpreendido o ministro imperial. Utilizando desenho no relatório. As dimensões de cada
terminologias arqueológicas extremamente face e suas equivalências em milímetros,
técnicas e atualizadas, o conde estava muito à apresentadas no croqui, atestam a sagacidade
frente de seu tempo, superando as limitações do conde em estudos arqueométricos.
dos intelectuais cariocas. O local investigado Sem dúvida, La Hure apresentava uma
foi a baía de Saí, em São Francisco do Sul (SC), formação especializada, não somente ao citar
autores dinamarqueses, como Worsaae e
Steenstrup, mas também ao descrever dados
obtidos empíricamente. Detalhes de escavação
(3) Infelizm ente carecem os de m aiores inform ações
e dos vestígios não foram ignorados, pelo que
biográficas sobre o m isterioso conde. Um dos poucos
historiadores que mencionou este arqueólogo, José podemos considerá-lo um arqueólogo moder­
Bittencourt, referiu-se ao m esm o com o “especialista no, oposto ao modelo de antiquário brasileiro
em epigrafia internacionalm ente con h ecid o” (1997: exemplificado em Manuel Porto Alegre. Como
235). Não sabem os que fontes foram utilizadas para já mencionamos, o conde enviou os esquele­
afirmar tal declaração. Consultando a maioria das
tos e objetos junto com o relatório para o
obras especializadas desta época, desde enciclopédias
até livros de arqueologia francesa, não encontramos ministro, esperando serem examinados pelo
uma única citação referente ao pesquisador. Atendo- Instituto ou doados para o Museu Nacional.
se apenas à documentação disponível - manuscritos e No final de setembro de 1864 o ministro
im pressos disponíveis no Brasil (Biblioteca Nacional) José Barroso enviou, no mesmo dia, uma carta
e Estados Unidos (Biblioteca do Congresso) -
para o presidente do IHGB e uma resposta para
encontramos algumas pistas úteis. Sua aproximação
com o Brasil não era apenas científica ou comercial. o investigador francês. Ao primeiro incluiu o
C orrespondências dem onstram um relacionam ento relatório original, solicitando um “parecer
direto com o imperador, a quem dedicou sua obra sobre o valor ethnographico e histórico da
L 'E m pire du B résil. Em sua carta endereçada ao descoberta” (Barroso 1864), enquanto para
m inistro José Liberato Barroso, identificou-se com o
Hure agradeceu a oferta, aceitando a continui­
vice-cônsul dos Estados Pontificiais. Também alguns
m anuscritos com provam essa ligação com assuntos dade de seus trabalhos.
diplom áticos, nom eado m inistro do interior da Advindo o primeiro mês do ano de 1865,
França (Hure 1864b, 1865d, 1870, 1877, 1887, s.d.). novamente o conde remeteu um relatório para

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

o ministro. Infelizmente esse material foi colonização européia, realizados por uma
perdido. Segundo Barroso, La Hure pron­ mesma raça e com os mesmos padrões alimen­
tificou-se a explorar qualquer ponto do tares.
Império, caso fosse julgado conveniente. 2. Os sambaquis brasileiros são análogos
Findando janeiro, desta vez o conde enviou da aos da Dinamarca, ilhas Canárias e Antilhas,
própria capital uma carta para Fernandes seja pela maneira como foram formados
Pinheiro (então secretário do Instituto). O teor (sobreposição de conchas), como pelos
da missiva foi muito obscuro, em parte devido vestígios encontrados: ossos de peixes e de
ao nosso desconhecimento da carta anterior. animais terrestres, cinzas e carvão de madeira,
No mês seguinte, o ministro imperial recebeu cerâmica espessa, utensílios de pedra. Na
outro relatório, este com 30 páginas, tratando análise das diversas camadas5 dos sambaquis
das pesquisas do conde. investigados é que percebemos todo o
pioneirismo do conde. Para ele, as camadas
seriam sucessivas e distintas umas das outras,
A origem das ostreiras apresentando uniformidade e separadas por
cinzas, carvão e pequenas conchas. Mas no
Com o sugestivo título de Considérations limite entre as camadas, o pesquisador perce­
sommaires sur VOrigine des amas de coquil- beu uma diferenciação, apresentando um maior
lages de la côte du Brésil, o pesquisador número de cinzas e restos de peixes. Sua
francês inaugurou as modernas pesquisas dos interpretação para esse fato seria de que no
vestígios litorâneos em nosso país. O prefácio período em que os moluscos apresentavam-se
do trabalho procurou demonstrar a extensão escassos, as populações litorâneas dedicaram
geográfica dos sambaquis, desde o Pará até a maior tempo para a pesca. Ainda em relação à
extremidade do Rio Grande do Sul. A importân­ dieta alimentar dos sambaquieiros, observou a
cia principal no estudo destes locais seria a presença de um pequeno número de ossos de
possibilidade de resgate da “plus ancienne animais silvestres no sambaqui, interpretados
race d ’hommes du Brésil.” (Hure 1865: 1). Em como simples passatempos, sem maiores
seguida, o trabalho foi dividido em três partes. preocupações de subsistência.6
A primeira era referente aos resultados obtidos Outra fonte de alimentação destes povos,
empiricamente em Santa Catarina, que para segundo Hure, seria a carne de prisioneiros de
Hure foram muito positivos e que poderiam guerra. Nas camadas centrais de um sambaqui
enunciar inicialmente algumas conclusões: da lagoa de Saguaçu (SC), encontrou ossos
1. Os sambaquis foram originados pela humanos espalhados e partidos, misturados a
mão humana. Colocando-se entre os partidári­ ossos de peixe. As fraturas dos ossos indicari
os da origem artificial destes montes conchí­ am a finalidade de extrair o tutano. Também
feros, Hure contestou aqueles que atribuíam
os mesmos aos índios Guarani. Outras etnias
proto-históricas, como os Carijó de Santa (5) C am adas - Superposição de estratos, de com posi­
Catarina, foram também excluídas da possibili­ ção natural ou artificial. Estrato, horizontal ou não,
dade de terem sido as originadoras dos com características próprias, numa estratificação.
montes.4 Apresentando-se completamente Leito ou estrato de rocha maciça, em depósito
natural. Estrato - Camada geológica ou cultural. É
recobertos por vegetação, arbustos e outros
com posto por sedim entos minerais e evidências
detritos, os sambaquis seriam anteriores à culturais. O mesmo que capa, nível, depósito. Cf.
Souza 1997: 32, 52.
(6) Até pouco tempo, a coleta de m oluscos era
considerada a maior fonte de subsistência dos
(4) Atualmente consideram-se dois períodos de sambaquieiros. Porém, pesquisadores acreditam que a
formação dos sambaquis sul-brasileiros: os realizados principal fonte de alimentação do grupo era a pesca,
pelos sam baqu ieiros (de 5.000 a 1.000 anos atrás) e mesmo no início da ocupação dos sítios. As numero­
as aldeias e acampamentos dos grupos Tupi-guarani sas conchas parecem estar mais associadas à uma
(1000 anos atrás até a chegada dos portugueses). Cf. estratégia de construção do aterro do que a uma dieta
Figuti 1999: 198. alimentar (Gaspar 1999: 165, Figuti 1999: 201).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

uma mesma mandíbula apresentava-se partida velhos debates difusionistas, como por
em dois fragmentos. Estes esqueletos diferen- exemplo a colonização dos escandinavos na
ciavam-se dos outros ossos humanos encon­ América. Mas sem necessariamente identificar
trados, sem características de sepultamento. a origem dos ameríndios no Velho Mundo,
Para o francês, só poderiam ter sido descarna­ atentou para as conexões filológicas entre os
dos e expelidos após a refeição. A questão do dois continentes, citando Hugo Groetius e seu
canibalismo é um tema complexo. As crônicas livro De Origine gentium Americanarum
e a bibliografia apontam para uma antropofagia (1642). Grotius foi um dos iniciadores da
americana com propósitos sempre ritualísticos, hipótese de que a América foi colonizada
seja com caráter familiar (endocanibalismo, pelos nórdicos, popularizada no Oitocentos
ingestão tradicional das cinzas) ou dos por Rafn. Do mesmo modo, Hure não deixou de
inimigos (exocanibalismo, digestão da carne). elaborar alguns comentários favoráveis às
Mas alguns registros modernos em sambaquis analogias entre as palavras, costumes e
também parecem confirmar as mesmas conclu­ hábitos dos povos intercontinentais desenvol­
sões de Hure e, apesar de raros e isolados, não vidas por Grotius.
podem ser descartados.7 Apesar desta conexão lingüística, era
3. O povo que construiu os sambaquis do muito claro para este arqueólogo a origem
Brasil habitou em sua superfície. Além dos migratória do índio brasileiro: seria provenien­
vestígios encontrados na escavação, Hure te da Ásia, berço da Humanidade. Em uma
recorreu à etimologia para comprovar essa extensa nota ao texto, Hure enumerou os
afirmativa. Sambaqui seria uma derivação da autores que constataram as similitudes entre
palavra taba, aldeia em tupi, originando çaba os indígenas da América do Norte e do Sul.
quig. Uma conclusão errônea, pois a proce­ Desta maneira, a filologia tornou-se um
dência correta é: tamba, marisco e qui, amon­ instrumento precioso no auxílio do resgate
toado. De qualquer maneira, suas teorias da histórico. É uma importante aliada do difusio-
formação geológica dos sambaquis e de sua nismo, desde autores setecentistas até intelec­
utilização como habitação estavam corretas: tuais como Emile Âdet, Varnhagen, Warden,
sedimentos de terra e areia acumularam-se em entre outros. Essa conexão entre as descober­
volta dos restos conchíferos com o passar do tas empíricas e sua interpretação dentro de
tempo, originando as elevações dos samba­ modelos clássicos tornou-se um procedimento
quis. Hure acreditava que a povoação indígena semelhante ao realizado desde o início da
no Brasil foi originada pelo norte - hipótese arqueologia moderna. Hure não fugiu a esse
muito aceita pelos acadêmicos brasileiros comportamento. Mas o que o diferenciou de
nesta época - e se estabeleceu aos poucos antiquários como Porto Alegre foi a importân­
pelo litoral, criando e habitando os montes de cia concedida aos vestígios materiais, em
lixo marinho. relação às similitudes filológicas.
Neste ponto, novamente recorreu às A principal preocupação de Hure, seguin­
semelhanças existentes entre nossos samba­ do seu texto, foi procurar mostrar as evidências
quis e os da Dinamarca, uma idéia sobre a qual que os sambaquis foram habitações indígenas.
o arqueólogo Worsae já havia se pronunciado. O costume de viver em regiões aquáticas,
Essas similitudes seriam independentes ou preservando-se do ataque de animais ferozes e
teriam alguma relação cultural direta? O conde de outros agrupamentos humanos, seria uma
francês não teve dúvida, recorrendo aos prática observada também na antigüidade
européia. Mas nos sítios brasileiros, com
vestígios de madeira praticamente escassos,
(7) A rqueólogos m odernos encontraram evidências saber qual a estrutura de habitação utilizada
muito similares às de Hure: crânios isolados, ossos deve ter intrigado muito nosso pertinaz investi­
quebrados e raspados, misturados com numerosos
gador. Segundo suas observações empíricas, os
ossos de peixe e cinzas de fogueira, o que comprova a
existência de antropofagia entre os sambaquieiros do sambaquieiros não utilizavam cabanas de
nosso litoral (Prous 1992: 218). Sobre a com plexa madeira, mas somente habitações provisórias
questão do canibalism o brasileiro ver Ram inelli 1996. semelhantes a choupanas, para o abrigo do sol

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia , São Paulo, 11: 35-53, 2001.

e chuva/ Com relação ao uso de grandes conjuntamente com uma proposta de continui­
fogueiras e de canoas talhadas ao fogo, mostrou- dade das suas pesquisas. Finalmente, após dez
se também muito correto. Um outro detalhe meses do primeiro contato, foi emitido um
curioso, que preocupou La Hure, foi a questão do parecer pelo engenheiro Guilherme Such de
odor exalado pelos sambaquis. Afinal, os indíge­ Capanema,10 que não concordou com diversos
nas habitavam em cima de verdadeiros lixos pontos da memória. A etimologia da palavra
orgânicos. Para o sábio francês, os moradores sambaqui foi a primeira questão contestada.
deste locais deveriam utilizar muito a fumaça das Quanto à idade desses vestígios, o parecerista
fogueiras para atenuar as condições odoríferas.9 acreditava que seriam proto-históricos, ou
A segunda parte da memória tentou determi­ seja, fabricados no período colonial ou mesmo
nar a época em que teriam sido realizados os ainda em uso. A analogia com os vestígios
sambaquis, baseados em estudos de Arte, dinamarqueses do mesmo modo recebeu
Filologia, Geologia, Etnografía e História. Apesar críticas negativas. Capanema explicou a origem
de não mencionar objetivamente uma datação, dos sambaquis por motivos geológicos,
Hure calculou corretamente que os sambaquiei- desprezando sua origem humana, pois não
ros deveriam ser mais antigos que os povos acreditava em uma grande antigüidade para
megalíticos europeus, ou seja, mais de três mil eles. E também citou semelhanças entre
anos atrás. A origem asiática dos povos america­ morfologia craniana das culturas açorianas
nos foi apresentada como a mais provável, mas o com os ameríndios e mesmo com o mito da
conde também mencionou a possível inclusão de Atlântida. Apesar de todas as suas pondera­
elementos brancos (semíticos) no Novo Mundo, ções, julgou que o Instituto deveria aceitar os
entre os séculos VIH e IX d.C. objetos encontrados pelo conde. Percebemos
A parte final do relatório consistiu na uma nítida desatualização do barão de Capa­
descrição pormenorizada de cada objeto nema, pois o assunto não era novidade - ao
encontrado, identificados por suas respectivas menos na Revista do IHGB, a exemplo das
camadas estatigráficas. Esse certamente foi o antigas opiniões de Vamhagen, que já relata­
momento mais significativo de toda a investi­ mos.
gação de Hure, que realizou um processo O conde francês enviou diversos outros
descritivo muito complexo para os padrões livros, documentos e manuscritos de sua
brasileiros de sua época. autoria para o Instituto. Três memórias merece­
ram pareceres especiais, respectivamente
tratando sobre Geografia, Arqueologia e
A resposta do Instituto Geologia. Em setembro de 1865, Giacomo
Rabaglia e Manoel Oliveira efetuaram uma
La Hure insistia que seu relatório sobre análise sobre o trabalho Exploration du Rio
sambaquis fosse examinado pelo IHGB, Parahyba. A maior questão apresentada por
Hure era referente às denominadas pedras à
écuelles, que considerava formações naturais
originadas pela erosão aquática. Na realidade,
(8) Apesar de raras, foram observadas estruturas de
cabanas com fundos e delimitações por estacas,
chegando inclusive algumas habitações a possuir sete
metros de diâmetro. La Hure deve ter observado (10) G uilherm e Schuch de Capanem a, barão de
sedim entos de cor escura e compactados, comuns nos Capanem a - engenheiro e físico brasileiro (Minas
sambaquis catarinenses, que indicam também a Gerais 1824 - Rio de Janeiro 1908). Formado na
utilização de choupanas sem apoio de postes cavados Escola Politécnica de Viena, foi professor da Escola
(Prous 1992: 211). Politécnica do Rio de Janeiro e do Museu Nacional.
(9) “Pode-se imaginar o cheiro que exalava desse Participou da Com issão científica de exploração
material, mas a percepção do que é um cheiro (1856), e da Carta Itinerária do Império (1871).
agradável ou desagradável varia de cultura para cultura. Chefiou a Comissão de Introdução do Sistema
Um grupo que vivia da exploração do mar, pescando e M étrico, e instalou as primeiras estações m eteoro­
catando m oluscos rotineiramente, certamente deveria lógicas no Brasil. Foi o fundador da Sociedade
ter o olfato bastante acostumado aos odores que Brasileira de Estatística e do Instituto P olitécnico
exalam desses animais.” (Gaspar 1999: 163). Brasileiro. Cf. Grande Larousse 1998: 1135.

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g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 35-53, 2001.

tratavam-se de bacias de polimento,u utiliza­ interessante aos anseios econômicos do


das pelas populações pré-históricas nas momento. A reação da imperial academia para
margens dos rios. A comissão, apesar de com a memória sobre a cidade perdida da
apresentar alguns conhecimentos sobre Bahia, por exemplo, foi reservada. Dos quatro
Geologia, não conseguiu formar uma conclu­ relatórios do conde de La Hure enviados ao
são definitiva sobre o assunto. O grande Instituto, os relativos à pré-história mostraram-
mérito apontado na memória do conde foi o de se muito mais morosos para terem juízos
apresentar pesquisas em uma região desco­ publicados na Revista. Enquanto os pareceres
nhecida do Brasil (Gabaglia 1865: 309). que tratavam de Geologia foram impressos em
Outra memória geológica da região do rio menos de um mês, o de sambaqui levou cinco
Paraíba foi examinada por Saldanha Filho em e o da cidade perdida dez meses.12 Apesar de
novembro de 1866. Este novo trabalho manus­ envolver algumas polêmicas, o tema da
crito de Hure, que foi o único publicado pela Geologia mostrava-se dentro de um panorama
Revista, descrevia as formações e decomposi­ muito mais tranqüilo. E envolvia um interesse
ções das rochas de diorito. Um trabalho muito imediato aos anseios da elite: a transformação
meticuloso e extremamente técnico. Quanto ao de bens naturais em recursos econômicos.
parecer de S. Filho, baseava-se nas pesquisas Uma das metas do IHGB era ampliar as frontei­
do barão de Capanema, demonstrando certas ras do conhecimento das províncias, tornando
restrições teóricas para as conclusões do o espaço territorial mais acessível. Conhecen­
conde francês. Mas como os outros pareceres, do melhor seus minérios, suas matas, seus
reconhecia a importância destes estudos em rios, o Império estaria viabilizando a ciência
locais ermos para a ciência nacional (Filho enquanto instrumento de conquista das
1866:421). potencialidades naturais, uma tarefa que para a
Se de um lado temos pareceres não muito Arqueologia do momento estava descartada.
otimistas sobre suas pesquisas, por outro, Depois de uma intensa atividade de
ocorreu um grande interesse pelas possibilida­ correspondência, o conde La Hure cessou seu
des econômicas dos mesmos. Desde 1865, intercâmbio com o Instituto após 1867. O
Hure solicitava ao ministério imperial e ao pesquisador francês continuou seu contato
IHGB subsídios para as custosas investiga­ com membros da elite carioca, a exemplo do
ções de campo, não sendo em nenhum momen­ imperador D. Pedro II. Mas seus vínculos com
to atendido. Mesmo suas proveitosas propos­ o passado pré-histórico se desvaneceram. A
tas encaminhadas não surtiram efeito: relatóri­ tarefa de esquadrinhar nosso passado litorâ­
os, levantamentos de plantas e seções geoló­ neo passaria para as mãos de outros investiga­
gicas, desenhos, mapas, determinação de dores.
posições geográficas, observações meteoro­
lógicas, etnológicas, levantamento de inscri­
ções rupestres (Hure 1865). A década das escavações
A grande temática dos trabalhos apresen­
tados - investigações arqueológicas - não O início da nova década também refletiu
estavam recebendo maiores atenções por parte um posicionamento diferente do Instituto para
dos intelectuais brasileiros durante os anos 60. com o tema dos sambaquis. Pela primeira vez,
O único trabalho de Hure impresso na Revista foi publicado um estudo sobre esses sítios
versava sobre Geologia, um assunto bem mais

(12) Entrada dos re latórios de H ure no IHGB (E);


(11) B acias de polim ento - Vestígios humanos P u blicação dos p a re c e re s (P):
utilizados sem m odificação intencional. Rochas 1 - Sam baquis (E - 10/2/1865; P - 16/6/1865)
granulosas, ricas em sflica, em cujos afloramentos 2 - C idade P erdida (E - 21/6/1865; P - 12/4/1866)
localizados perto da água os homens esfregavam as 3 - E xploração do rio P araíba (E - 18/8/1865; P -
pedras que desejavam polir, provocando a formação de 1 5 /9 /1 8 6 5 )
amplas depressões alongadas ou circulares bem polidas, 4 - Rochas do D esengano (E - 10/10/1866; P - 8/
por vezes com sulcos alongados (Prous 1992: 64). 1 1 /1 8 6 6 )

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gia e E tn ologia, São Paulo, 77: 35-53, 2001.

arqueológicos, Noticia ethnologica sobre um ção, o geólogo germânico lamentou a falta de


povo que já habitou a costa do Brasil (1871), verbas e incentivo público para as escavações
do geólogo Carl Rath.13 Não deixa de ser de campo, uma atitude que já havia sido
curiosa uma questão: porque o IHGB publicou tomada por La Hure em 1866.
este estudo de Rath, e não o de La Hure, seis Esse fato perpetuou-se por toda a nova
anos antes? Os dois intelectuais pareciam década, não ocorrendo patrocínio para pesqui­
estar bem envolvidos com a elite da capital, sas arqueológicas por parte do IHGB. Porém,
mas alguns indícios apontam para uma especi­ os sambaquis continuariam a despertar
al posição do estudioso alemão. A partir dos interesse de seus membros, como foi o caso do
anos 40, Rath publicou algumas considerações engenheiro barão de Capanema. Em 1874,
sobre sambaquis na revista Brasilia, de publicou o artigo “Die sambaquis oder mus-
Petrópolis, bem como em jornais europeus. chellugel brasilien” (Petermann’s Mitheilun-
Importantes membros do Instituto, como gen, Gotha, Alemanha), que foi reproduzido na
Capanema e Freire Alemão, devem ter tomado revista Ensaios de Sciencia (março de 1876).
conhecimento dessas publicações, mesmo Em relação ao seu parecer sobre a memória de
porque Rath não enviou originalmente o seu La Hure, escrita dez anos antes, não percebe­
artigo de 1871, sendo reimpresso pelo Instituto mos muitas modificações. Em nenhum momen­
em alguma publicação paulista. to Capanema aludiu sobre a antigüidade
Outros fatores, como a conjuntura desta desses vestígios, preferindo citar exemplos de
década, reforçaram a escolha entre as duas fabricações similares nos tempos contemporâ­
memórias aludidas. Como sabemos, os anos 70 neos. A diferença entre as camadas estrati-
foram o período em que as novas idéias, gráficas de cada sítio - uma prova de diferen­
métodos e teorias científicas entraram definiti­ tes momentos cronológicos - foi apontada
vamente em nosso país. O artigo de Rath, como resultado de processos naturais: na
comparado com o de Hure, era muito pequeno, mesma época em que um grupo criou aleatoria­
com apenas seis páginas. Não apresentou mente esses depósitos de lixo, a natureza teria
detalhes ou descrições muito longas, apenas feito várias camadas de terra. Essa sua inter­
conclusões parciais baseadas nas experiências
pretação contrariava as corretas idéias de Hure
pessoais do autor. Para o geólogo alemão, não
e Rath, que apontavam diferentes períodos
havia dúvida que os sambaquis foram cons­
para cada nível dos sambaquis. Outro erro de
truídos por antigos indígenas, uma idéia
Capanema foi considerar os vestígios de
reforçada pelo encontro de artefatos líticos
fogueiras entre as camadas como sendo
junto a ossadas humanas no litoral brasileiro e
antigas queimadas na vegetação do local.
em sítios semelhantes nas Guianas. Outra
Apesar de sustentar uma origem artificial
grande diferença entre esses dois pesquisado­
para a estrutura dos sambaquis, o barão
res foi de que o texto de Rath não apresentava
contrariava todas as teorias vigentes sobre
nenhuma filiação ao ideário difusionista, sendo
sua funcionalidade. Em relação aos ossos
muito mais apropriado ao novo contexto
vivenciado na Revista. Em sua última observa­ humanos nos sítios, cuja existência ele mesmo
confirmou, afirmou *que seriam muito raros,
simples restos abandonados do mesmo modo
que as conchas: “reduzimos assim á sua
(13) Não temos informações mais detalhadas sobre
singela expressão natural o sambaqui, que
esse pesquisador, autor de algumas obras sobre
corografia e aspectos geográficos das províncias de
teve de servir para tanta produção fantástica,
São Paulo e Paraná. Rath voltou ao tema dos ora sendo diques, ora trincheiras, outras vezes
sambaquis no livro Algum as p alavras ethnologicas e mausoléus, e até construcções para o culto.”
p a leo n th o lo g ica s a respeito da provín cia de São (Capanema 1876: 85). Os especialistas moder­
P aulo (São Paulo: Typographia de J. Skler, 1875), e nos concordam que os sambaquis foram
no artigo “D ie sambaquis oder muschellugelgraber
erigidos com finalidades específicas de
brasiliens”. Globus, Illustrierte zeitung fu r laender
und volkerk B rau n sch ew eig, 26 (13): 193-198, 1874. construção, não sendo apenas restos de
Essas duas fontes não existem nos principais acervos alimentação dos agrupamentos, mas também a
brasileiros. maioria destes sítios não foram especializados

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gia e E tn ologia, São Paulo, 77: 35-53, 2001.

como cemitérios ou habitações, sendo antes revista Bulletins de la Societé d ’Anthro-


uma mescla de ambos (Figuti 1999: 159-167, pologie de Paris, por exemplo, publicou um
Prous 1992: 216). resumo do artigo de Rath (.Revista 1871),
Em todo caso, temos de considerar as efetuado por Abbé Durand em 1874. Definiti­
idéias de Capanema em relação aos outros vamente, o tema despertava grandes interes­
pesquisadores do período. Percebemos que ses tanto pela comunidade internacional,
havia uma tendência deste autor em criticar quanto pelos investigadores nacionais.
investigações estrangeiras.14 No início de seu Durante uma incursão pelo Rio Grande do Sul,
artigo, afirmou que o mais famoso geólogo os naturalistas Ladislau Neto e Carl Schreiner
oitocentista, Charles Lyell, teria cometido um realizaram algumas pesquisas em vestígios
grave erro ao conceder uma origem civilizada dessa natureza, no ano de 1873. Com base
aos sambaquieiros paulistas. E as teorias já nestes estudos iniciais, Neto organizou uma
comentadas do barão sobre a funcionalidade série de problemáticas em torno do assunto,
dos sítios eram contrárias aos estudos de Hure encarregando o estudioso Carl Wiener de
e Rath - ambos de origem européia. Capanema realizar escavações em Santa Catarina. As
foi um pesquisador preocupado em dar conti­ principais preocupações do então empossado
nuidade a uma linha de investigação nacionalis­ diretor do Museu Nacional diziam respeito a
ta, originada durante os anos 40, e que credita­ indícios que esclarecessem a origem dos
va muitos erros aos exploradores vindos de fora sambaquis - como vestígios de fogueira e a
do país. Do mesmo modo que o antiquário posição dos esqueletos dentro das camadas
Manoel Porto Alegre entre 1840-1850, Capa­ dos sítios. Deste modo, Wiener publicou o
nema esperava encontrar as respostas para artigo Estudos sobre os sambaquis do sul do
nossa pré-história em uma geração perdida, e Brazil, o primeiro da estreante Archivos do
não em simples restos de lixo indígena, opondo- Museu Nacional, de 1876. A escolha não foi
se, deste modo, aos anseios de estrangeiros de modo algum casual, demonstrando o
muito mais preparados tecnicamente na recupe­ interesse da instituição pelo patrocínio da
ração de relíquias arqueológicas. Arqueologia. Em seus seus trabalhos de
campo, Wiener foi acompanhado por Schreiner,
do Museu Nacional, Frederico Muller,15
As pesquisas do Museu Nacional professor do Desterro, e Martiniere, filho do
vice-consul francês. A composição desta
O interesse pelos polêmicos sítios litorâne­ equipe também refletiu o envolvimento da elite
os se estendeu pelos anos seguintes. A erudita das províncias em tomo de temas pré-
históricos.
O relatório-artigo de Wiener foi dividido
em quatro partes, tratando a primeira do
(14) Capanema foi um típico cientista oitocentista, ambiente geográfico, da forma e dimensões
cujas teorias já estavam estabelecidas em sua mente, dos sítios, enfim, da estrutura dos sambaquis.
antes m esm o de realizar investigações de campo, que
foram muito poucas. Caso tivesse escavado diversos
sambaquis, teria percebido os vestígios típicos de
qualquer sítio desta natureza, contrariamente às suas (15) Wiener se refere a Frederico Muller com o
interpretações. M esm o Rath já havia notado esse lecionando em Florianópolis. No primeiro número do
padrão sambaquieiro, do m esmo modo que Hure muito A rchivos (quadro pessoal do Museu Nacional), ele
antes: “N o fundo e centro d ’estes outeiros (...) aparece com o naturalista viajante. Maria Margaret
encontramos sempre ossadas humanas, e junto a ellas Lopes (1997: 101) cita o intelectual com o F ritz
acha-se não pequeno numero de armas e utensílios de . M uller e morando na cidade de Blumenau. Cientista
pedras, com o sejam, machado, pontas de lança, alem ão (1 8 21-1897), em igrou para o Brasil em 1852,
frechas, cunhas, virotes, argolas, massas, pilões, mãos dedicando-se à agricultura em Blumenau. Manteve
de pilões, pedras chatas e côncavas (...) um povo correspondência assídua com Darwin e Haeckel.
antiquissimo do Brasil reuniu no espaço de muitos D escreveu numerosas plantas, insetos, m oluscos e
annos as cascas d ’estes crustáceos que com ia, para crustáceos. Escreveu em 1864 o livro Für D arwin,
entre ellas sepultarem os seus irmãos m ortos.” (Rath em defesa do darwinismo. Conf. Grande Larousse
1871: 2 8 8 ). 1998: 4 1 1 7 .

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gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

Pelas terminologias empregadas, o investiga­ que levou o geólogo a afirmar que seriam
dor demonstrou ser um naturalista particular­ vestígios de canibalismo: “a carne humana era
mente familiarizado com Geologia e Paleon­ provavelmente mais apreciada do que qualquer
tologia. E justamente nesta parte foi o momen­ outro alimento.” (1876b: 17).
to em que citou os anteriores trabalhos de O investigador germânico não soube
Rath e Hure. Do primeiro, criticou dados de examinar atentamente os vestígios que encon­
localização litorânea dos montículos, e do trou, faltando experiência arqueológica para
segundo, detalhes sobre vegetação cobrindo escavar os diversos montículos. Muitas vezes,
os sambaquis. Wiener ainda classificou os sepultamentos primários16 podem ter sido
sítios morfológicamente em trincheiras, colinas fragmentados com a erosão ou deslocamento
e montes regulares; e segundo suas disposi­ das camadas geológicas. A falta de outros
ções internas, em irregulares, túmulos e os tipos de ossos animais pode ter sido ocasiona­
destituídos de divisão interna. da pela ausência de mais escavações por parte
Na seção dedicada aos objetos humanos de Wiener. Um arqueólogo mais preparado,
recuperados pela expedição, percebemos as como foi o caso de La Hure, percebeu que os
limitações deste autor nas questões arqueoló­ sambaquieiros alimentavam-se de peixes,
gicas. Wiener descreveu cada objeto encontra­ moluscos, pequenos mamíferos e aves,
do, mas sem fornecer sua localização nas conforme a época de escassez de alimentos -
respectivas camadas e sítios, um procedimento um dado obtido pelo exame estratigráfico.
que o conde de La Hure havia feito de maneira Quando o conde francês encontrou ossos com
bem competente. Sem os dados espaciais dos indícios de canibalismo, estes estavam além de
artefatos, o registro, a Arqueologia é destituí­ despedaçados, quebrados e com cortes
da de seu principal método de trabalho, que transversais, indicando seu descarnamento,
diferencia os cientistas de qualquer escavador misturados com cinzas e ossos de outros
comum. animais. Além disso, Hure diferenciou clara­
Na síntese final, o artigo estabeleceu mente sepultamentos de vestígios antropofá-
algumas conclusões divergentes com as gicos no mesmo sítio, estes últimos apontados
opiniões reinantes até então, e, em outros por ele como indícios de exocanibalismo.17
aspectos, conservou algumas especulações.
Sobre a época em que foram levantados esses
montes conchíferos, Wiener foi totalmente (16) Sepultam ento prim ário - Aquele em que o
contrário a uma remota datação, considerando- morto foi sepultado sem receber qualquer tratamento
prévio de descarne ou cremação e também não foi
os com poucos séculos. Nesse momento, o
exumado e reenterrado algum tempo depois da morte
geólogo contrariou Lund, Rath e Hure (defen­ (W esolosky 1999: 193). Enterram ento direto - se o
sores de umn data pré-diluviana para os corpo é colocado diretamente de encontro à terra,
sambaquis), aaseando-se em considerações do sem uso de urnas ou receptáculos (Souza 1997: 49).
astrônomo e naturalista Emmanuel Liais sobre (17) Tradicionalm ente, os historiadores e antropólo­
gos sempre consideram os vestígios de antropofagia
calcificação das conchas. Ora, sabemos muito
com o ritu alísticos, seja para a ingestão de mortos da
bem que tanto Wiener, quanto Liais e Capa- mesma tribo, com o para inim igos externos. Mas,
nema, estavam estreitamente ligados ao atualmente, algumas pesquisas m eticulosas apontam a
Museu Nacional e ao IHGB, e ambos conside­ ocorrência de canibalism o com o dieta alim en tar em
ravam que os montículos eram recentes. casos extremos - com o a falta de outras alternativas
de alimento, ocasionadas por secas ou catástrofes
Existiria alguma relação entre os resultados
naturais. O melhor exem plo é com a antiga tribo dos
destas pesquisas com pressupostos ideológi­ Anasazi, no sul dos EUA. Sem nenhuma tradição
cos da elite imperial? Mais adiante surgem religiosa ou social contendo esta prática, foram
algumas pistas que esclarecem essa questão. encontrados restos de ossos quebrados, descarnados e
Como já afirmamos, Wiener classificou os misturados a cinzas - exatamente com o Hure
descreveu os vestígios nos sambaquis catarinenses.
sambaquis em diversos tipos, encontrando em
Além disso, exam es de laboratório em excrem entos
alguns destes - os irregulares - mais ossadas provaram a ingestão de carne humana. A estratigrafia
humanas do que de animais. Todos esses deste sítio Anazazi apontou um grande período de
corpos ficaram depositados em fragmentos, o seca, relacionado a conflitos violentos e ao colapso

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Baseado em suas errôneas interpretações, Ladislau Neto, não apresentou nenhuma


Wiener logo elaborou uma série de hipóteses novidade ao panorama das pesquisas sobre o
etnocêntricas. Os mais antigos sambaquis, os assunto, pelo menos, o que já havia sido
de forma irregular, teriam sido habitados por resgatado por Hure e Rath, sendo, inclusive,
“bipedes carnivoros,” que se alimentavam dos bem inferior em resultados empíricos. Repre­
seus semelhantes, e em cuja convivência ainda sentou uma tentativa do Museu Nacional em
não haveria leis sociais. A partir do momento entender o próprio acervo, composto em
em que a individualidade física foi respeitada, grande parte por material sambaquieiro, assim
surgiu a moral, o progresso e a ordem, acaban­ como de sistematizar as pesquisas destes
do com a antropofagia. Os sambaquis transfor­ importantes sítios. Porém, devido à falta de
maram-se em túmulos, locais para resguardar a preparo do comissionado, esta meta transfor­
memória dos mortos: “a primeira pedra de tudo mou-se em uma expectativa sem maiores
quanto a civilisação tem podido erigir de sucessos.
grande e bello (...) recorda-se aos viventes por Mas, apesar disso, o artigo abriu uma série
um monumento, primitivo, é verdade, mas que de discussões, inaugurando uma nova fase
se toma um dos mais curiosos para a historia nas investigações brasileiras. Ao escavar
da humanidade.” (1876b: 18). Neste momento, sambaquis no Pará, por exemplo, o naturalista
não estamos distantes das idéias de Ladislau Ferreira Pena18 já estava conhecendo o
Neto, do qual o geólogo foi subordinado, ou trabalho de Wiener, nesse mesmo ano de 1876.
das metas do Instituto. O sambaqui como um Os resultados destas investigações também
primitivo indício de civilização, um marco logo foram publicados pelos Archivos, mas
grandioso e visível do passado separado da seu autor não esperava alcançar nenhum
bárbarie, cuja forma atesta um desenvolvimen­ resultado sistematizador, e sim uma espécie de
to intelectual dos antepassados do Império guia para os futuros pesquisadores. A quanti­
brasileiro. O típico antagonismo na imagem dade de montículos conchíferos ainda visíveis
indígena - geralmente representado pelo eixo nesta época era bem elevada, motivando Pena
Botocudo/Tupi - apareceu aqui na forma de a elaborar um extenso mapeamento dos locais.
duas fases distintas dos restos litorâneos. Mesmo não apresentando maiores conheci­
Por último, Wiener fez rápidos comentários mentos arqueológicos, ao descrever os
sobre os instrumentos líticos dos sambaquis. objetos e condições estratigráficas encontra­
Como tinha encontrado muitos instrumentos das, este naturalista não demonstrou os
polidos e pouquíssimos por lascamento, mesmos erros de interpretação da comissão
concluiu erroneamente que na América existiu oficial do Museu Nacional. Baseado em suas
uma idade da pedra polida antes da lascada. descobertas, Ferreira Pena discordou de
Uma idéia influenciada pela obra de Couto de Wiener, concluindo que existiram sepultamen-
Magalhães, e endossada por Emmanuel Liais. tos de corpos inteiros nos montículos, e
Este trabalho de Wiener, financiado por principalmente, que os indígenas não “comiam
carne humana como quem come mariscos e
peixes, nem mesmo para satisfazerem a fome, e
seguramente nenhum delles jámais vio no seu
do sistem a Chaco. Conf. Walker 1997: 26. Do semelhante um simples objecto de alimenta­
m esm o modo, na região de Ardèche (França), indícios ção!” (1876: 95). Somente os selvagens mais
apontam práticas canibais dos Neandertais há
100.000 anos atrás: “Cut marks on the bones could
have been made only by sharp flin ts.‘The skulls had
been smashed open and limb bones hab been broken (18) D om ingos S oares F erreira Pena - Naturalista,
apart, presum ably to extract nutritious brain tissue nasceu em (Mariana) Minas Gerais e faleceu em 9 de
and remove marrow. Only the hand and foot bones, janeiro de 1888. Professor da Escola do Pará, sócio
which contain no marrow, remained intact. Cut do IHGB, foi incumbido em 1863 de explorar os rios
marks indicate that tendons had been severed Tocantins e Amapú, em com panhia do engenheiro
(necessary for limb rem oval), the thigh m uscles J.R. Moraes Jardim. Foi o primeiro diretor do Museu
rem oved, and in at least one case a tongue taken Paraense Em ílio Goeldi e naturalista viajante do
o u t.” A rch aeology 1999. Museu Nacional. Cf. Blake 1883: 233-234.

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ferozes seriam canibais, aproveitando a carne defendia um pensamento semelhante - os


dos inimigos, mortos em rituais. restos conchíferos eram artificiais mas não
Um assunto que despertou a atenção de monumentos - foi também um adversário de
Pena, assim como de todos os anteriores Neto na mesma instituição, o médico João
pesquisadores de sambaquis, foi a questão do Lacerda. Essas rivalidades pessoais no
cheiro exalado por estes sítios. Para o referencial Império pareciam estar relacionadas com
evolucionista destes eruditos, causava certo interpretações diferentes sobre a pré-história,
desconforto a imagem de indígenas habitando, o que pode ser percebido na arqueologia
comendo e sepultando sobre lixo orgânico! Já na brasileira até nossos dias. Alguns estudiosos
difícil questão da origem e idade dos montes modernos (Souza 1997, Lima 1999-2000: 287)
paraenses, Ferreira Pena elaborou algumas declararam que houve, a partir de 1870, uma
hipóteses baseado em dados etnológicos. Os divisão quanto à origem dos sambaquis, entre
depósitos de conchas teriam tido início no os defensores do naturalismo e o artificialismo.
século XIV, através do povoamento de tribos Mas, na realidade, a grande maioria dos
vindas do Peru. Nesta questão, o trabalho do pesquisadores das duas últimas décadas do
investigador paraense não ia contra o estabeleci­ Império admitiu o homem como fabricante de
do por Wiener. Percebemos uma outra linha de tais montes. O único defensor da corrente
pensamento, justamente em um pesquisador naturalista no Império, mas com publicações
externo ao Museu Nacional, o já comentado somente no período republicano, foi Herman
Barão de Capanema, que foi adjunto de Geologia Ihering, diretor do Museu Paulista.
desta fundação até 1876, quando se exonerou. Em meados dos anos 70, Carl Rath entre­
Justamente neste ano, em que também gou ao imperador um minucioso relatório sobre
surgiu o primeiro número do Archivos, Capa­ suas descobertas. Levando D. Pedro II a
nema lançou com João Barbosa Rodrigues a acompanhá-lo em suas escavações nos
revista independente Ensaios de Sciencia. casqueiros do rio Santana, em Santos, “onde
Estes dois eruditos foram alguns dos maiores recolheu um grande bloco com um sepultamen-
desafetos de Ladislau Neto, então diretor do to e vários objetos” (Souza 1991: 63). Outras
Museu. Wiener, Neto e Pena foram partidários pesquisas in loco também ocorreram durante
do sambaqui como forma artificial de constru­ esta década, como as comissões de Roquete
ção, utilizada geralmente para enterros funerá­ Pinto ao sul do Brasil, e Charles Hartt na
rios. Já para o barão de Capanema, os montí­ Amazônia, ambas financiadas pelo Museu
culos nada significavam, e seu artigo implicita­ Nacional; e as do naturalista João Barbosa
mente discordava deste grupo, além de ser Rodrigues,20 que possuía uma opinião muito
uma crítica velada a ele: “sabios de cacos de pessoal e atípica sobre os montículos.
potes, geologos e anthropologos improvisa­ No terceiro volume da Ensaios de Scien-
dos.” (1876: 81).19 Outro intelectual que cias (1880), Rodrigues demonstrou estar bem
familiarizado com a bibliografia escandinava
sobre o assunto. Examinando os sambaquis da
Amazônia, acreditou que suas semelhanças
(19) O barão de Capanema possuía muito prestígio no
Império. Foi amigo de infância do imperador e
com os existentes na Dinamarca não eram
cunhado de Manoel Porto Alegre (Lopes 1997: 138), somente coincidências estruturais. Com isso,
este também muito envolvido com arqueologia durante
as décadas de 40 e 50. Capanema continuou suas
escavações em sambaquis até o início do século XX,
mas depois do artigo de 1876, não publicou nenhum (20) João Barbosa R odrigues - Botânico brasileiro
material sobre pré-história. Saindo do Museu Nacional, (São Gonçalo do Capivari MG 1842 - Rio de Janeiro
continuou como membro da comissão de geografia do RJ 1909). Explorou durante três anos e m eio o rio
IHGB até final do Império. Ocasionalmente, com o no Am azonas, realizando trabalhos de Botânica,
período de 1884-1889, voltou a ocupar a com issão de Arqueologia, Antropologia e Etnografia. Foi diretor
arqueologia. No final do século, Capanema investigou do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1890 a 1909).
uma misteriosa inscrição-petróglifo relacionada a um Publicou Iconografia das orquídeas do Brasil; R elação
sambaqui de Antonina (PR), que considerava uma obra das novas palm eiras. Cf. Grande Larousse, 1998:
da arte humana (Leão 1919: 238). 50 9 5 .

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqu eolo­
g ia e E tnologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

os antigos indígenas da Amazônia seriam mais ou mesmo outros tipos de resquícios. Com um
que simples bárbaros, produtores de cerâmica cérebro tão pequeno e inferior, o habitante dos
e utensílios de pedra - do mesmo modo que os sambaquis não poderia ter feito nada de
povos nórdicos. Uma idéia bem diferente de grandioso, muito menos monumentos arqueo­
praticamente todos os outros pesquisadores lógicos - a exemplo do que pensavam Wiener
do assunto. Mas uma questão intrigava o e Neto. A configuração dos montículos foi um
naturalista. O que seriam os ossos humanos mero acidente de acúmulo alimentar.21 Essas
dos montículos? Rodrigues não podia acreditar idéias de Lacerda foram ainda mais acentuadas
no canibalismo, nem mesmo nos sepultamentos em outro trabalho, surgido anteriormente na
primários. Afinal, um povo civilizado não iria Revista da Exposição (1882). Sem nenhuma
enterrar seus mortos no meio de lixo orgânico, e indústria e uma arte imperfeita, os samba-
muito menos devorá-los. Os corpos seriam quieiros teriam constituído a raça mais selva­
simples acidentes, pessoas que morreram e por gem, bruta e imperfeita que habitou o Brasil,
coincidência acabaram sedimentadas com os mais inferiores até do que os Botocudos.
restos de comida. Esta interpretação do natura­ Neste momento, percebemos uma idéia
lista nos permite verificar a quantidade de totalmente oposta à enunciada por Hartt.
especulações em tomo deste tipo de relíquia. Ao menos para os intelectuais, os restos
Em relação ao pensamento do período, o artigo conchíferos eram muito importantes para se
de Rodrigues foi praticamente ignorado, até entender nosso panorama indígena. Durante a
mesmo por seu colega Capanema. Os grandes Exposição Antropológica, realizada na sala
debates ainda giravam em tomo da revista do Lund, foi representada uma planta detalhada
Museu Nacional. de um sambaqui catarinense, ao lado de
conchas, fragmentos de carvão, mariscos,
ossos de animais e peixes. Além é claro, de
Os sambaquis nos anos 80 crânios humanos. Imaginar como teria sido a
vida nesses locais era muito instigante para
Em 1885, no sexto volume do Archivos, qualquer arqueólogo, e o diretor do Museu
foram publicados os resultados das pesquisas Nacional não seria indiferente a isso. Em seu
do então falecido Charles Frederic Hartt, que único trabalho a respeito do assunto - A
não foram muito diferentes das de Ferreira origem dos sambaquis, Revista da Exposição
Pena. Tendo como objetivo maior o registro de - , Ladislau Neto tentou criar uma imagem
alguns sítios, estudos mais detalhados e baseada em dados mais empíricos. A antiga
meticulosos foram deixados em segundo questão monumental foi deixada de lado,
plano. Este investigador encontrou ossos mesmo porque não havia indícios que apon­
humanos e de mamíferos nos sambaquis do tassem positivamente para isso. Também já
Pará, praticamente, os mesmos vestígios que não importavam detalhes como o estado
os sítios de outros locais do Brasil. Mas um civilizatório desses povos, devido ao consen­
detalhe em especial chamou a atenção do so em considerá-los aborígenes selvagens.
geólogo Hartt. Ao deparar com fragmentos de Baseado em suas viagens ao Rio Grande do
louça, considerou que estes indígenas haviam Sul, Neto acreditava que os depósitos litorâne­
dado um grande passo para a civilização, e no os foram criados durante o inverno por tribos
caso, seriam muito mais adiantados que os do interior. Ao fugir do frio, os indígenas
atuais Botocudos. viviam da pesca e da coleta de moluscos, no
Neste mesmo número do Archivos apare­ espaço de quatro meses, rendendo grandes
ceu outro artigo, O homem dos sambaquis, de provisões para o seu regresso ao interior. Ao
João Lacerda. As principais preocupações
deste médico-antropólogo foram um pouco
diferentes de seus predecessores. Em primeiro
(21) O arqueólogo Alfredo Mendonça de Souza
lugar, Lacerda considerava muito mais impor­ com eteu um equívoco ao citar João Lacerda com o
tantes os vestígios craniológicos dos samba- representante da corrente naturalista dos sambaquis
quieiros do que restos de sua manufatura lítica (1991: 69).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 77: 35-53, 2001.

escavar alguns sambaquis desta província, intelectuais generalizaram um suposto compor­


acreditou ter encontrado evidências desse fato: tamento que, na realidade, remete a um estere­
a maior quantidade dos ossos animais das ótipo presente no pensamento ocidental.
camadas eram de peixes do inverno. Por isso Tradicionalmente, o homem canibal esteve
mesmo considerava que os restos de fogueira associado com a figura do pagão, do estran­
seriam indícios decisivos para futuras pesqui­ geiro, do habitante das florestas, enfim, de
sas, além da posição estratigráfica dos esquele­ toda sociedade desvinculada dos princípios
tos. Essa imagem defendida por Neto parece, superiores da civilização européia: “as guerras,
antes de tudo, uma espécie de desvio funcional. a nudez, o canibalismo e a falta de centraliza­
As tribos indígenas não teriam feito os sítios ção política sempre foram costumes próprios
como parte de um processo natural da sua dos bárbaros.” (Raminelli 1996: 54).
cultura, mas antes, uma necessidade derivada Na América, essa forma de conceber seus
das condições climáticas. Uma maneira de habitantes não seria diferente. Desde a coloni­
minimizar a imagem “repugnante” de nossos zação, as imagens de antropofagia tiveram forte
ancestrais habitando montões de entulhos. apelo para o imaginário. Com o Renascimento, a
Neste momento percebemos que a maior própria imagem do Brasil foi muitas vezes
limitação nas teorias de todos os pesquisado­ confundida com o canibalismo, como na
res, até então, foi a falta de uma maior sistemati- iconografia cartográfica (p. 60). A influência do
zação, comparando os dados obtidos com os estereótipo camuflou ou superou a experiência
sambaquis de todo o país. Pequenos detalhes, fornecida pelos relatos empíricos, sedimen­
na maioria das vezes, eram superestimados, e tando a imagem do indígena do Brasil como um
outros, minimizados, originando hipóteses sem selvagem por natureza devorador de outros
maiores fundamentos. Wiener, por exemplo, não homens: “a difusão dos estereótipos do
encontrou esqueletos inteiros; Lacerda desco­ bárbaro e do demoníaco constitui uma forma de
nhecia achados de cerâmica neste sítios. Caso absorver a diversidade cultural encontrada no
estes dois pesquisadores tivessem levado em Novo Mundo. O índio seria integrado ao
conta as outras pesquisas publicadas até então, imaginário ocidental, recebendo portanto uma
ou teriam mudado de opinião, ou seriam menos classificação e um valor.” (p. 66). Sem condi­
categóricos. O único fato absolutamente aceito ções de entender as exóticas e diversificadas
pelos maioria dos eruditos brasileiros, durante formas sociais dos aborígenes, tanto o europeu
os anos 80, foi que os indígenas originaram renascentista quanto o arqueólogo do século
esses montículos nos tempos modernos. XIX generalizaram estereótipos que colocavam
Essa falta de sistematização também o homem europeu como um ser superior, livre
acarretou outras conseqüências. O artigo de das características animais do americano
Wiener, por ter sido publicado no Archivos, primitivo.
acabou sendo o mais conhecido trabalho Cada pesquisador adaptava estas imagens
nacional na Europa. Citando suas pesquisas, o tradicionais com suas próprias hipóteses, e
marquês de Nadaillac (L ’Amérique préhis­ com o tipo de material encontrado no meio do
torique, 1882: 55), considerou que todos os lixo indígena. Como Karl Koseritz, que, durante
antigos habitantes do Brasil foram antropófa­ a década de 80, foi um dos intelectuais mais
gos! Por sua vez, o professor G. Mullrr- atuantes na província gaúcha, realizando
Schiess (Dona Francisca, SC), forneceu muitos estudos sobre pré-história. Ele foi um
diversas informações para A. von Eye (Join­ perceptível defensor dos indígenas, para, os
ville, SC), autor do artigo Die Brasilianischen quais criou uma imagem extremamente positi­
Sambaquis (Zeitschrift fu r ethnologie, 1887: va. Acreditava que a antiga população pré-
531-533), levando a conclusões idênticas: do cabralina foi muito numerosa, com a tecnologia
mesmo modo que os Botocudos, os samba- lítica atingido um nível espetacular - demons­
quieiros foram uma raça canibal e selvagem. Já trado pelos restos de machados dos quais fez
comentamos que os resultados fornecidos por uma grande coleção. Suas descobertas
Wiener são contestáveis. A partir de interpre­ arqueológicas foram publicadas em diversos
tações errôneas dos dados estratigráficos, os artigos no jornal Gazeta de Porto Alegre, mais

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqu eolo­
g ia e E tnologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

tarde reunidos em alguns opúsculos. Particu­ erudito estrangeiro, residindo no sul do Brasil
larmente, um desses estudos foi reimpresso ao final do Império, que apostava no sucesso
pela Revista do IHGB em 1884. das colônias, nos ideais de superioridade
Koseritz dedicou-se ao estudo dos samba­ européia, no triunfo do homem moderno, enfim,
quis da Conceição do Arroio, que na realidade na evolução darwiniana.24 Um ideal não muito
foram investigados por sua equipe, composta distante das metas pretendidas pela elite
por Bischoff, Kehl e Helm. À medida que carioca, mantendo inclusive alguns mitos em
diversos objetos foram sendo encontrados nas comum.
camadas de conchas, o erudito alemão acredita­
va que seus fabricantes seriam de tribos
diversas das que então povoavam esta provín­ Entulho indígena, civilização e barbárie
cia. Um nítido contraste foi assim estabelecido.
De um lado, os autores prováveis dos samba­ “Devenir archéologue est, au niveau de
quis, e de outro os indígenas então contempo­ l’imaginaire des vocations, en projet ou en
râneos, sem vínculos com os montículos de regret, infiniment plus chargé que devenir
conchas, e a que era positivamente favorável. À ingénieur, életronicien ou médecin.” Jean-Paul
medida que as pesquisas de campo prossegui­ Demoulle, La préhistoire et ses mythes, 1982.
ram, foram encontrados vestígios pertubadores, Alguns intelectuais que tratamos concebe­
todos no interior de igaçabas sambaquieiras:22 ram os sambaquieiros como uma cultura
pérolas de vidro, chapas de cobre e de prata. bárbara, eminentemente selvagem e canibal.
Como bem sabemos, as populações indígenas Afinal, não poderia haver outra interpretação
não fabricavam o vidro nem metais antes dos para povos que habitavam e viviam sobre lixo
europeus. Isso demonstrava, para Koseritz, que orgânico. Mesmo dentro destes parâmetros
teria existido alguma espécie de vínculo entre o etnocêntricos, podemos perceber claramente
ocidente e nosso passado, bem antes do uma relação direta entre observação e inter­
tradicionalmente concebido. Assim, apelou para pretação da cultura material, que sobrevive
a hipótese de que navegantes fenicios estabele­ até hoje. Dados fósseis e vestígios materiais
ceram antigos contatos comerciais com os interpretados incorretamente ou parcialmente,
selvagens (1884b: 35). Em nosso século não foi muitas vezes ocasionando o surgimento de
realizado qualquer estudo sobre a instigante mitos arqueológicos.
questão da ocorrência dos mencionados Um exemplo muito conveniente foi com o
objetos. O diretor do Museu Paulista, Hermán mito das cidades lacustres na Europa. A partir
von Ihering, alegou que tais indícios seriam de 1853-1854, na borda de lagos suíços, foram
provas de um contato entre culturas andinas descobertos diversos fragmentos de madeira,
com as do Rio Grande do Sul (1895: 98). De cerâmica e utensílios, logo explicados como
qualquer maneira, é uma questão ainda sem restos de antigas palafitas neolíticas montadas
maiores aprofundamentos, e conseqüentemen­ sobre lagoas. Dentro do vigente esquema
te, sem solução.23 Koseritz foi um caso típico de evolucionista, não poderia ocorrer descoberta
mais oportuna. As réplicas de palafitas
expostas em museus, exposições e colégios
(22) Igaçabas - (do Tupi iga saba, lugar onde a água oitocentistas, passaram a simbolizar a vitória
cai). Pote de barro ou talha grande para a água, que humana sobre a barbárie, o triunfo da razão
serve para guardar outros gêneros. Urna funerária sobre as limitações da animalidade. Durante
indígena. Conf. Grande Larousse, 1998: 3069.
(23) André Prous m enciona a existência de instru­
m entos lítico s retocados (pontas de projéteis com
pedúnculos e aletas) em alguns sambaquis. Como a (24) Relação de alguns intelectuais de origem
presença de quartzo é difícil no litoral, existe a germânica, com residência permanente, que in vesti­
possibilidade de um antigo intercâmbio entre as tribos garam a pré-história sul brasileira durante o segundo
do litoral e do interior do Brasil (1992: 221). A Império: Herman Bruno Otto Blum enau, O. Tischler,
ocorrência de m etais também pode indicar um antigo A. Schnupp, H.J. M ueller, Theodoro B ischoff, R.
contato dos sambaquieiros com os Andes, mas as Hensel, A. von Eye, G. M uller-Schiess, Pedro Kehl,
d iferenças cronológicas tornam o assunto com plexo. Helm.

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

muito tempo habitando em escuras e tenebro­ de parâmetro para suas considerações sobre
sas cavernas, o moderno homem neolítico civilização ou barbárie. Assim, voltamos à
passou a construir casas expostas diretamente nossa comparação com o mito das cidades
a céu aberto e sobre as águas - um triunfo lacustres, onde os vestígios também funciona­
também do Homem sobre a natureza física. Já ram como mediadores de esquemas sociais,
em nosso século, o arqueólogo nazista principalmente a metáfora da escalada evolu­
Reinerth utilizou este mito para atrações tiva, separando o ser animal do homem em vias
turísticas no lago Constance (entre a Alema­ de progresso racional: “Aqueles objetos
nha, Suíça e Áustria) repletas de referências reintegrados pelo arqueólogo passam a
racistas: “la métaphore de 1’ascenseur appli- possuir novas funções e a exercer mediações
quée à la théorie des stades.” (Demoulle 1982: no interior das relações sociais em que foram
751). Em 1948, o especialista O. Paret demons­ inseridos.” (Funari 1988: 24). Um objeto
trou que estas palafitas ou casas lacustres escavado e interpretado pelo cientista não
jamais existiram. Na realidade, foram restos de tem, necessariamente, as funções originais a
habitações construídas diretamente sobre o ele atribuídas. Ao procurar o índice25 de um
solo, encobertos pela subida do nível das artefato, freqüentemente o pesquisador
águas nos tempos modernos. submete-se às condições sociais de seu
Resguardadas as devidas proporções, próprio tempo, afetando suas análises teóri­
este mito possui muita similaridade com nosso cas: “Là encore, on peut voir que 1’objectivité
presente tema. Os sambaquis brasileiros, de 1’observation, là oü 1’archéologie déploie la
razoavelmente explorados durante o Império, technique la plus convaincante, c ’est-à-dire
serviram de apoio a idéias divergentes entre si, sur le terrain de fouille, n’est pas le départ de
mas todas relacionadas com algum tipo de toute interprétation” (Demoulle 1982: 752).
imagem acerca do indígena, gerando dois Sendo sítios incomuns, os sambaquis
grupos principais de repercussão, o nacional e receberam conotações que os desvincularam
o internacional. O primeiro divide-se claramen­ de seus primitivos usos por parte dos indíge­
te em dois eixos interpretativos: os que nas (exceção paras as pesquisas do conde de
entendiam os sambaquis como monumentos, e La Hure). Adquiriram funções específicas,
outro que identificou os sítios como resquíci­ servindo para recuperação de um passado
os selvagens. Wiener foi representante dos idealizado pelos eruditos nacionalistas. Um
dois casos, pois acreditava que teriam existido dado que à primeira vista pode parecer insigni­
montículos com restos canibais, e os que ficante - a datação dos montes conchíferos
serviram para mausoléus. Esta última uma idéia para os tempos modernos - revela que a
seguida por Neto. Restos com algum indício de maioria dos investigadores preocupou-se em
civilização, portanto, essa monumentalidade desvincular esses sítios de uma pré-história
apontaria para outros povos interferindo na remota, resguardando as raízes brasileiras para
construção do lixo indígena. Aqui entram em outros tipos de vestígios. E necessariamente,
cena as considerações de Barboza Rodrigues, estabeleceram vínculos diretos com as recen­
apostando no contato viking, e as teorias de tes tribos oitocentistas. A relação entre
Karl Koseritz, perpetuando o mito fenicio. contexto arqueológico (artefatos, estratigrafía,
Quem radicalizou uma interpretação oposta foi escavação) e sua reconstituição foi afetada
o médico Lacerda, para quem os sambaquieiros
foram um povo inferior, imperfeito e canibal.
Para a academia internacional, as idéias de (25) ín dice - O artefato em sua materialidade indica
selvageria foram preponderantes, publicando (“dá indício de”) determinadas relações sociais, tanto
estereótipos genéricos sobre o indígena na sua produção com o no seu consumo: uma ponta de
brasileiro, principalmente como antropófago. flecha (esfera material) é índice de um domínio de
técnicas de lascamento e de uma prática social de
Sempre baseados nas pesquisas nacionais caça (contexto cultural). Ao m esm o tem po, os
sobre o assunto. artefatos medeiam, direcionam as relações humanas,
Ambos os eixos interpretativos cometeram impulsionando os agentes sociais a tomarem determ i­
erros na análise dos dados de campo, servindo nadas atitudes entre si (Funari 1988: 80).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqu eolo­
g ia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

pelas relações sociais em que estava inserido mento. Curiosamente, tanto esse estereótipo
o cientista: “A arqueologia nada mais é que seria identificado nos sambaquis, quanto
uma leitura, um tipo particular de leitura, na conotações típicas de grandes sociedades. Um
medida em que seu texto não é composto de caso único, onde a arqueologia brasileira
palavras mas de objetos concretos, em geral identificou em meio a entulhos, os dois lados da
mutilados e deslocados do seu local de balança do mundo ocidental: a civilização e a
utilização original.” (Funari 1988: 22). barbárie. Em ambos os casos, o imaginário estava
Identificado em muitos locais e em épocas ocultando a verdadeira identidade do aborígene,
diferentes, o bárbaro podia ser um negro africa­ criando novos valores, mais condizentes com a
no, australiano, ou um ameríndio. Sua natureza proposta máxima deste momento - o avanço
bestial e inferior serviu para propósitos colonia­ triunfal do europeu, máximo representante da,
listas e evangelizadores, durante o Renasci­ escala evolutiva.

LANGER, J. The shellmounds and the Empire: excavations, theories and contro­
versies, 1840-1889. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo,
11: 35-53, 2001.

ABSTRACT: The article analyses the first investigations about coastal


sites, in the reign of D. Pedro II.

UNITERMS: Sambaquis - Myth and Archaeology - Barbarian and


civilization.

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R ecebido para publicação em 24 de novem bro de 2000.

53
Rev. d o M useu d e A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 55-75, 2001.

DE GUARATUBA A BABITONGA: UMA CONTRIBUIÇÃO


GEOLÓGICO-EVOLUTIVA AO ESTUDO DA ESPACIALIDADE
DOS SAMBAQUIANOS NO LITORAL NORTE CATARINENSE

Mário Sérgio Celski de Oliveira*


Norberto Olmiro Horn Filho**

OLIVEIRA, M.S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição


geológico-evolutiva ao estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte
catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 55-75,
2001.

RESUMO: O trabalho apresenta uma abordagem geológico-evolutiva dos


sambaquis da planície costeira de Joinville cujos resultados indicam uma
possível rota para deslocamento de sambaquianos entre o litoral sul para­
naense e o litoral norte catarinense. O modelo paleogeográfico proposto e as
datações absolutas de sambaquis atualmente disponíveis convergem para o
canal do Palmital como região inicial de ocupação de Joinville por aquelas
populações de pescadores-coletores.

UNITERMOS: Sambaquis - Planície costeira de Joinville - Paleogeografia


- Quaternário costeiro.

No Brasil, há mais de um século tem-se demarcação territorial, dentro de um sistema


envidado esforços científicos para dar sentido social bem mais complexo do que se entendia
à cultura material herdada da sociedade anteriormente (Gaspar 2000, Lima 1999/2000).
sambaquiana. Restos esqueletais humanos, Estudiosos de processos evolutivos da
artefatos produzidos em osso, pedra e concha, planície costeira têm identificado uma relação
vestígios de cabanas, carvões de antigas direta entre a distribuição espacial dos samba­
fogueiras e a própria estruturação dos sítios, quis e oscilações do nível relativo do mar -
levam a supor que os sambaquis teriam sido NRM durante o Holoceno (Krone 1908,
espaço multifuncional associado a moradia, a Leonardos 1938, Bigarella 1954, Martin et al.
local de enterramento de mortos e até mesmo a 1984, entre outros). Recentemente, tem-se
debatido a necessidade de revisão dos
critérios utilizados para utilização dos samba­
quis como efetivos indicadores espaço-
(*) Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville - temporais fidedignos destas oscilações,
MASJ.
estimulando a retomada de pesquisas que
(**) Departamento de G eociências (Instituição
efetiva do Programa de G eologia e G eofísica Marinha melhor explicitem as razões culturais e as
- PGGM), Universidade Federal de Santa Catarina - técnicas de implantação dos sítios em áreas
UFSC. sujeitas a inundação pelas marés (Angulo &

55
OLIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

Lessa 1997, Martin et al. 1998, Lessa & paleogeográfico então proposto possui sobre
Angulo 1998). a interpretação de deslocamentos de samba­
Bigarella (1954) e Martin et al. (1984) quianos no litoral norte catarinense.
consideraram que quando associados a Geomorfologicamente, o litoral norte
estudos paleogeográficos, a determinação do catarinense insere-se no “setor sudeste -
substrato pode contribuir para a estimativa costões rochosos, laguna/barreira, man-
aproximada de um intervalo de tempo onde guezais” segundo a classificação de Silveira
teria sido construído o sambaqui. Como (1964); no “macrocompartimento litoral
exemplo, Martin et al. (1984) citaram samba- sudeste - litoral das planícies costeiras e
quis sobre depósitos eólicos, que somente estuários” segundo a classificação de Muehe
poderiam ter sido construídos após o NRM (1998) e no “compartimento I - litoral seten­
máximo holocênico para aquela região. Obvia­ trional” segundo a proposta para compar-
mente tal dedução possui uma resolução timentação do litoral de Santa Catarina de
temporal limitada, já que em termos de datação D iehl& H om Filho (1996).
absoluta “sambaquis situados em um só e A área de estudo ocupa aproximadamente
mesmo tipo de unidade morfológica ou 230km2, tendo como paralelos extremos
espacial, podem ter idades muito diversas” 26°06’47” e 26°20’48” e meridianos extremos
(Ab’Saber 1984). 48°50’46” e 48°43’34”, conforme Figura 1. A
Este trabalho apresenta resumidamente altitude máxima de 229m é verificada no Morro
alguns resultados obtidos em recente disserta­ do Boa Vista. Nesta área, Oliveira & Hoenicke
ção de mestrado (Oliveira 2000) cujo objetivo (1994) indicaram o então registro de 27 sítios
foi o de caracterizar os sambaquis da planície arqueológicos do tipo sambaqui.
costeira de Joinville segundo uma perspectiva A metodologia do trabalho incluiu proce­
geológico-evolutiva e uma abordagem conser­ dimentos específicos da pesquisa em planície
vacionista dos sítios. Especificamente, o costeira. A fotointerpretação foi direcionada à
trabalho refere-se às implicações que o modelo determinação das características gerais das

Figura 1 - Localização geral da área de estudo.

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OLIVEIRA, M .S.C .; HORN FILHO, N.O . D e Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

morfologías deposicionais e de afloramento Guerra e, segundo o próprio (Tiburtius 1996),


nas unidades geológicas e respectivos “aborrecido” com a impossibilidade de
contatos. Para a amostragem dos afloramentos escavar os sambaquis no Paraná, mudou-se
recorreu-se a tradagens manuais e descrição para Joinville onde sua ascendência germânica
de perfis. O controle altimétrico deu-se princi­ lhe garantiu ser “bem recebido pelos habitan­
palmente com base nas plantas cadastrais tes e por todos os prefeitos”.
1:2 .000. Tiburtius trabalhou por quase vinte anos
A amostragem do substrato dos sítios foi nos sambaquis de Santa Catarina, tendo
orientada na maioria das vezes à não tradagem publicado 13 artigos e com pelo menos outros
direta sobre os sambaquis, procurando-se 17 ainda inéditos. Em Joinville, escavou os
áreas marginais que permitissem visualizar sambaquis Morro do Ouro e Cubatãozinho,
faixas de contato do sítio com os depósitos além do “sambaqui” Itacoara. Apesar de
sedimentares. intitular-se um “individualista” (Tiburtius
Foram processadas 91 amostras dos 1996), sua parceria com João José Bigarella,
sedimentos coletados em 71 pontos de íris Koehler Bigarella, Alsedo Leprevost e
amostragem ao longo da área de estudo. Para a Arnoldo Sobanski, aproximou-o da metodo­
determinação das cores, cálculo dos teores de logia acadêmica. Segundo Beck (1974), o
matéria orgânica e de carbonatos e proces­ trabalho de Tiburtius significou uma transição
samento granulométrico dos sedimentos, entre os estudos amadores e os profissionais,
utilizaram-se os métodos descritos por Suguio “quase uma Arqueologia de salvamento,
(1973) e Martins et al. (1978). podendo a contribuição ser colocada ao
nível dos primeiros trabalhos profissionais
executados em Santa Catarina“.
Os Sambaquis da Coube ao Prof. Bigarella a inclusão dos
Planície Costeira de Joinville sambaquis de Joinville (Cubatãozinho, Morro
do Ouro, Rio Velho I e Rio Velho II e n.° 42,
Há mais de 120 anos os sambaquis de este último trata-se provavelmente do Samba­
Joinville vem despertando o interesse de qui Guanabara I), em uma sistemática aborda­
estudiosos de diversas disciplinas. gem geológica e paleogeográfica que, iniciada
Atribui-se a Virchow (1872), Wiener (1876) em seus pioneiros estudos na década de 40 no
e Steinen (1887) a publicação dos primeiros Paraná, persiste até hoje como referencial ao
trabalhos nos quais sambaquis de Joinville estudo da correlação dos sambaquis e evolu­
são referenciados (Fettback, Krelling, Schroe- ção litorânea (Bigarella 1946, 1949; Bigarella et
ders Goldberg, Miranda e “Joinville”), ainda al. 1954; entre outros).
no final do Século XIX. Piazza (1966) pesquisou o Sambaqui
Gualberto (1908) descreveu no início do Espinheiros I em 1964, mesmo ano em que
Século XX um grande sambaqui “da lagôa do elabora um mapa intitulado “Área de Joinville
Saguassú” ao lado do qual existiria uma - Cadastro dos Sambaquis - Lei n.° 3.924”,
estação pré-histórica, fazendo referência ainda onde localiza sítios de difícil acesso e que
ao grande número de sambaquis da região: “só somente voltariam a ser “atualizadas cadas-
em S. Francisco nós podemos contar para tralmente” 36 anos depois.
mais de 150 sambaquis” e a outras estações à No início da década de 70, dentro do
margem do rio Pirabeiraba. Programa Nacional de Pesquisas Arqueológi­
Oliveira (1944) informou ter encontrado cas - PRONAPA, Piazza (1974) apresentou
vários sambaquis mas nenhum “além de 10 uma nova distribuição dos sítios arqueológi­
quilômetros no vale do Itapocu”, fazendo cos para o litoral norte catarinense, onde
referência aos “casqueiros” do rio Cachoeira classifica os sítios em três fases pré-cerâmicas,
citados por Backheuser (1918). segundo critérios “ecológicos e arqueológi­
Guilherme Augusto Emílio Tiburtius (1892- cos”. O autor denominou de Fase Saguaçu
1985) conheceu seu primeiro sambaqui em aquela referente a 2 sambaquis com predomi­
Matinhos (PR), no último ano da 2a. Grande nância de Modiulus brasiliensis, ambos

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OLIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo lógico-evolu tiva ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 77: 55-75, 2001.

situados na Ilha do Gado em Joinville, tendo do Município, com fins de subsidiar a preser­
os outros sambaquis do município recebido a vação do patrimônio. Este inventário básico é
classificação de Fase Acaraí. posteriormente utilizado para análises da
Em balanço sobre a produção científica da morfometria e distribuição dos sítios em
Arqueologia Pré-Colonial no litoral norte Joinville (Oliveira & Hoenicke 1994, Oliveira
catarinense, Bandeira (1997) informa que 1996a, 1996b).
Piazza, com a colaboração de Afonso Imhof, Hom Filho (1997) defendeu tese de
pesquisou em 1970 o Sambaqui Rio Comprido doutoramento sobre os aspectos geológicos,
(inédito). No final da década de 60, as Profa. ambientais e evolutivos da Ilha de São Fran­
Anamaria Beck, Gerusa Maria Duarte e Maria cisco do Sul e arredores. Sambaquis de
José Reis elaboraram pesquisas no Sambaqui Joinville são incluídos sob uma perspectiva
Morro do Ouro (Beck et al. 1969). geoevolutiva.
O Sambaqui Morro do Ouro foi novamente A Figura 2 apresenta a distribuição
escavado em 1979 pelos Profs. Marilandi espacial dos 42 sambaquis mapeados por
Goulart, Margarida Andreatta, Afonso Imhof e Oliveira (2000) na planície costeira de Joinville.
Guilherme Naue, no Projeto “Tecnologia e Quase 60% dos sambaquis possuem altura
Padrões de Subsistência de Grupos Pescado- igual ou inferior a 4m (Tabela 1) e mais de 70%
res-Coletores Pré-Históricos”, com financia­ possuem volume igual ou inferior a 7.992,80m3
mento da Prefeitura Municipal, que na época (Tabela 2).
construía a Ponte de Trabalhador (Goulart Quanto à composição malacológica dos
1980). sítios, verificou-se que Anomalocardia
De 1980 a 1989, o próprio MASJ, então por brasiliana não foi identificada tão somente na
iniciativa de seu diretor, Arqueólogo Afonso amostra coletada no Sambaqui Ponta das
Imhof, desenvolveu o Projeto “A Pré-História Palmas, enquanto Crassostrea rhizophorae
de Joinville: Coletores e Pescadores” (inédito), esteve ausente somente nas amostras coleta­
com escavações no Sambaqui Ilha dos Espi- " das nos sambaquis Espinheiros II, Morro do
nheiros II e Guanabara I (Alves 1997). Amaral III e Morro do Amaral IV. A distribui­
O DNPM publicou em 1988 o mapa ção espacial das espécies predominantes
Geológico do Quaternário Costeiro dos indicou que cerca de 64% dos sambaquis
Estados do Paraná e Santa Catarina, realizados apresentam amostras principalmente constituí­
pelos Prof. Louis Martin, Kenitiro Suguio, das por Anomalocardia brasiliana, enquanto
Jean-Marie Flexor e Antonio E.G. de Azevedo. que cerca de 34% apresentam amostras com
Na metodologia desenvolvida pelos autores, predominância de Crassostrea rhizophorae.
os sambaquis possuem importância como Cerâmica foi observada ou é citada em
indicadores das oscilações do NRM, sendo bibliografia nos sambaquis Rio Sambaqui,
que 18 sambaquis de Joinville foram por eles Cubatão I, Cubatãozinho, Ilha do Gado II, Ilha
estudados sob a perspectiva geológica dos Espinheiros III, Lagoa do Saguaçu, Ilha do
(Martin et al. 1988). Mel II e Rio Velho II. Esculturas (’’zoólitos”)
Entre 1991 e 1992, a Fundação Cultural de são citadas em bibliografia para os sambaquis
Joinville financiou o Projeto “Pesquisa de Cubatãozinho, Rio Comprido, Rio Velho I e
Salvamento no Sambaqui Espinheiros II”, Morro do Ouro. No Sambaqui Espinheiros II,
coordenados pelos Profs. Marisa Coutinho há registro de fibras vegetais trançadas que
Afonso, Paulo De Blasis e Levy Figuti, tendo também foram observadas no Sambaqui
subsidiado várias publicações (Afonso & De Cubatão I. Este último ainda apresenta “esta­
Blasis 1994, Afonso 1999, Figuti 1993, Figuti & cas” de madeira ao longo do perfil do sítio e ao
Klõkler 1996). longo da margem do rio, paralelo ao sítio.
Em 1994, o MASJ em parceria com o Para a compreensão da inserção fisio-
Instituto de Pesquisa e Planejamento de gráfica dos sambaquis, a planície costeira de
Joinville - IPPUJ promoveu o recadastramento Joinville foi classificada por Oliveira (2000)
e divulgação das informações sobre os sítios como costa sedimentar do tipo estuarina.
arqueológicos aos órgãos de gestão pública Identificaramu-se nove unidades geológicas

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O LIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. D e Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

_____________________ LJ---------1________________ Jã - . " ^ T ____ ___ ______


Figura 2 - Distribuição espacial dos sambaquis na planície costeira de Joinville (adaptado de Oliveira, 2000)

1 - Rio Pirabeiraba 15 - Rua Guaíra 29 - Ipiranga


2 - Rio Bucuriúma 16 - Ilha do Gado I 30 - Morro do Amaral IV
3 - Rio Ferreira 17 - Ilha do Gado III 31 - Lagoa do Saguaçu
4 - Rio das Ostras 18 - Ilha do Gado II 32 - Morro do Amaral I NM
5 - Rio Sambaqui 19 - Ilha do Gado IV 33 - Rio Velho I *
6 - Tiburtius 20 - Ilha dos Espinheiros III 34 - Morro do Amaral II
7 - Rio Fagundes 21 - Rio Comprido 35 - Ilha do Mel II
8 - Ribeirão do C ubatão 22 - Ilha dos Espinheiros IV 36 - Morro do Ouro
9 - Ponta das Palm as 23 - Espinheiros II 37 - Ilha do Mel III
1 0 -C u b a tã o II 24 - Gravata 38 - Rio Velho II
1 1 -C u b a tã o I 25 - Ilha dos Espinheiros I 39 - Ilha do Mel I
1 2 -C u b a tã o III 26 - Ilha dos Espinheiros II 40 - Guanabara II
1 3 -C u b a tã o IV 27 - Morro do Amaral III 41 - Rio Riacho 0 1 2 3 4 5 km
14 - Cubatãozinho 28 - Fazendinha 42 - Guanabara I esodagranca-piqeçaouTM

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OLIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição geoló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

TABELA 1 depósitos paludiais estuarinos holocê­


Freqüência da altura dos 42 sambaquis em Joinville nicos e depósitos eólicos do Holoceno
Ponto Freqüência Freqüência e do Pleistoceno.
Altura (m) Depósitos paleoestuarinos foram
médio absoluta relativa
identificados em altitudes inferiores a
1,00 1— 1 4,00 2,50 24 5 7 ,1 4
2,5m com maior concentração na região
4,00 — 1 7,00 5,50 5 11,90 ao sul do rio Cubatãozinho e ao norte
7,00 — 1 10,00 8,50 8 19,05 do rio Comprido, constatando-se
10,00 — 1 13,00 11,50 1 2,38 recorrente presença de bancos conchí­
13,00 — 1 16,00 14 ,5 0 1 2,38 feros naturais.
16,00 — 1 19,00 17,50 3 7,14 Os depósitos eólicos apresentam-se
na forma de cobertura pouco espessa
Fonte: O liveira (2000).
principalmente no conjunto de ilhas da
porção sudeste da área de estudo, em
__________________ TABELA2______________
sua maioria recobrindo depósitos
Freqüência da dimensão volumétrica (MDS)
dos 42 sambaquis em Joinville paleoestuarinos. Dois corpos sedimen­
tares na Ilha dos Espinheiros e outra
,r, 3 Ponto Freqüência Freqüência
o ume (m ) médio absoluta relativa área contínua na Ilha do Mel foram
classificados como depósitos eólicos
< 1.100,00 10 23,81 pleistocênicos.
1.100,00 1— 1 7.992,80 4 .5 4 6 ,4 0 20 4 7 ,6 3 Quanto ao substrato geológico dos
7.992,80 — 1 14.885,60 11.439,20 2 4,76 sambaquis, 14% dos sítios foram
14.885,60 — 1 21.7 7 8,40 18.332,00 3 7,14 edificados sobre o embasamento
21.7 7 8 ,4 0 — 1 2 8.671,20 25.224,80 3 7,14 cristalino, 12% sobre depósitos flúvio-
2 8.671,20 — 1 35.564,99 32.118,10 1 2,38 lagunares, 34% sobre depósitos de
> 35.564,99 3 7,14 leques aluviais e 40% dos sambaquis de
Joinville foram construídos sobre
Fonte: O liveira (2000). depósitos eólicos, sendo que nestes
Obs.: MDS - Maior dimensão observável em superfície. últimos há recorrente associação com
depósitos paleoestuarinos.
(Quadro 1) subdivididas em três grupos
principais, sendo o primeiro constituído pelo
Considerações evolutivas sobre o
Embasamento Cristalino Pré-Camhriano e
Quaternário Tardio na área de estudo
elúvios associados, praticamente representado
por associações litológicas (gnaisse granu-
lítico e gnaisse bandado) do Complexo Granu- Após a Transgressão Cananéia que teria
lítico. Verificou-se um sistema principal de alcançado o máximo de 8±2m há 120.000 anos
falhas e fraturas com orientação preferencial AP, ocorreu uma fase regressiva marinha até
N20-30W, influenciando a rede de drenagem. 17.500 anos AP (quando o nível relativo do
No Sistema Deposicional Continental mar - NRM encontrar-se-ia 120-130m abaixo do
identificaram-se depósitos coluviais, de leques atual, segundo Corrêa et al. 1996) resultante
aluviais e fluviais, atribuindo-se estes últimos da última glaciação. A emersão da área de
ao Holoceno e os demais ao Quaternário estudo deu-se a partir de uma sucessão de
Indiferenciado. Destacam-se os depósitos de depósitos marinhos praiais recobertos por
leques aluviais que ocorrem ao longo de toda depósitos eólicos que mesmo bastante
a área de estudo, constituindo-se na principal dissecados pela rede de drenagem, provavel­
cobertura sedimentar ao norte do rio Cubatão. mente não permitiu a individualização de
No Sistema Deposicional Transieional identifi­ corpos lagunares de grandes dimensões.
caram-se depósitos flúvio-lagunares holocêni- Remanescentes desta regressão foram
cos (restritos à desembocadura do rio Cuba­ mapeados como depósitos eólicos pleisto­
tão), depósitos paleoestuarinos holocênicos, cênicos na Ilha do Mel e na Ilha dos Espinhei-

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O LIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O . D e Guaratuba a Babitonga: uma contribuição geo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do M useu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

__________QUADRO 1__________
Coluna Estratigráfica Simplificada
Era Período/ Época Unidade G eológica Caracterização Lito-Sedim entológica
Depósito paludial Lamas ricas em matéria orgânica. Correspondem, de maneira geral,
estuarino às áreas ocupadas pelos manguezais.
Areias finas, bem selecionadas, de coloração esbranquiçada. Ocorrem
D epósito eólico na forma de lençóis de reduzida espessura, recobrindo principalmente
depósitos paleoestuarinos.
Sedimentos síltico-arenosos, pobremente selecionados, normalmente
D ep ósito
apresentando matéria orgânica. Apresentam-se na forma de terraços
flúvio-lagunar
com altitudes normalmente inferiores a 3m.
H o lo cen o
Q A reias e sedim en tos síltico -a rg ilo so s, com cores tendendo ao
c U D ep ósito cinzento-am arelado. Am pla ocorrência de bancos con ch íferos
E A paleoestuarino naturais. O b servam -se recorrentes afloram en tos de d ep ósitos
paleoestuarinos e bancos conchíferos naturais sotopostos por outras
N T
unidades geológicas superficiais.
O E
D epósito fluvial Sedimentos variando de argila à cascalhos, predominando lamas.
z R
Areias finas soltas ou semi-consolidadas (eventualmente formando
ó N
P leisto cen o piçarras), de coloração bruno-amarelada, normalmente apresentando
I Á Superior
D epósito eólico
minerais pesados. Afloramento na forma de terraços, com altitudes
c R normalmente superiores a 4,5m .
A I Areias e lamas resultantes de ação de processos gravitacionais de encosta
Quaternário D ep ósito
O Indiferenciado de leque aluvial e retrabalhamento fluvial. Os leques apresentam-se coalescidos.
Depósitos incoerentes (normalmente síltico-argilosos) que sofreram
D epósito coluvial deslocamento na vertente por efeito da gravidade. Inclui eventuais
depósitos de tálus.
Gnaisse granulítico com intercalações de rocha meta-ultramáfica e
Embasam ento anfibolito;
PRÉ-CENOZÓICA Gnaisse bandado com intercalações de quartzitos, formação ferrífera,
cristalino
rocha meta-ultramáfica e anfibolito;
Diques de diabásio.

Fonte: O liveira (2000).

ros. A datação (TL) de 20.950 ± 2.000 anos AP de 10.200 ±100 anos AP, a partir de fragmentos
para o depósito da Ilha dos Espinheiros é de madeira imersos em lentes de cascalho e
significativa na medida em que confirma o areia (camada 2), pouco abaixo de inconformi-.
caráter remanescente daqueles sedimentos, dade erosiva que separava uma seqüência
retrabalhados, em fase terminal de um longo inferior rudácea-arenácea (camada 3) de uma
período de clima mais seco e de denudação superior constituída por camadas síltico-
intensa. argilosas (camada 1). Bigarella et al. (1975)
A partir de 17.500 anos AP, a elevação do consideraram que aquela madeira representaria
NRM variou a taxas de 0,6 a 2,0cm/ano, a idade de transição entre o regime de drena­
influenciado por alterações abruptas de gem semi-árido e o úmido, e que a parte
temperatura, principalmente entre 13.000 e superior da camada 3 corresponderia ao limite
10.000 anos AP, período conhecido como entre o Pleistoceno e o Holoceno.
Última Deglaciação e que poderia demarcar a De maneira geral, esta transição entre as
transição do Pleistoceno para o Holoceno épocas do Quaternário foi marcada por um
(Ab’Saber 1980, Roberts 1998, Suguio 1999). evento paleoclimático denominado de Ótimo
Aproximadamente 20 km ao norte do Climático (Idade Hipsitérmica), quando a
centro de Joinville (fora da área de estudo), temperatura média no planeta teria sido de 1 a
Bigarella (1971) descreveu um terraço no rio 2 °C superior a atual, e que Suguio et al. (1985)
Pirabeiraba, onde obteve a idade radiométrica e Suguio (1999) associam à glacioeustasia cujo

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São Paulo, 77: 55-75, 2001.

principal efeito na maior parte do litoral distais dos depósitos de leques aluviais
brasileiro teria sido uma elevação do NRM com (incluindo depósitos fluviais dos cursos
ápice há aproximadamente 5.100 anos AP. inferiores das bacias dos rios Cubatão,
Para Bigarella (1954), a construção dos Cachoeira, Pirabeiraba e Canela), encontravam-
sambaquis está estreitamente ligada à fase final se submersos. A Figura 3 constitui uma
da máxima transgressão holocênica, já que tentativa de representar esta espacialidade.
grandes áreas foram inundadas permanecendo, Deve-se salientar que aproximadamente há
contudo, uma condição batimétrica favorável ao 500m ao sul do Sambaqui Rio Riacho fotointer-
desenvolvimento da população malacológica pretou-se uma sucessão de tênues alinhamen­
nos extensos baixios em formação. Ab’Saber tos W-E. Embora o reconhecimento em campo
(1980) afirmou que o “páleo-índio terminar do seja dificultado pelo uso atual do solo (reflo-
litoral paulista já estava “associado a uma restamento por pinus), tais feições são passí­
geografia costeira em que havia restingas e veis de corresponderem a cristas praiais
campos de dunas, muitas barras livres e muitas indicativas das prováveis linhas costeiras da
águas livres marinhas, mas não existia man­ paleobaía em sucessão regressiva a partir do
guezal”. Mais tarde, (Ab’Saber 1984) refere-se a máximo pós-glacial.
esta paisagem “como reflexos da Transgressão Considerando-se unicamente a altitude da
Flandriana e ou uma pequena fase de regres­ base dos sítios (excluindo-se a possibilidade
são pós-Flandriana". de movimentos verticais crustais neotectô-
Segundo a curva proposta para o litoral nicos), é possível afirmar que há 5.100 anos
catarinense por Martin et al. (1988), o NRM AP todos os sambaquis mapeados na área de
ultrapassou o nível atual pela primeira vez no estudo que eventualmente existissem, cuja
Holoceno há cerca de 6.500 anos AP, elevan- base se assentasse em altitudes inferiores a
do-se até o máximo pós-glacial de 3,5m (há 3,5m, teriam sido afogados total ou parcialmen­
5.100 anos AP). Este máximo da Transgressão te, implicando provável abandono temporário
Santos (anteriormente denominada Transgres­ ou definitivo dos sítios (Figura 4).
são Flandriana) invadiu o Canal do Palmital, Na planície costeira de Joinville, 6 samba­
que ainda mantém herança paisagística na quis (Rio das Ostras, Tiburtius, Ponta das
forma de ria. Palmas, Rua Guaira, Lagoa do Saguaçu e
Ainda sobre o Canal do Palmital, mencio- Morro do Ouro) edificados sobre embasa­
na-se a possibilidade apresentada por Angulo mento cristalino poderiam, em tese, ter sido
(1992) de que ainda no Quaternário este braço iniciados antes de 5.100 anos AP sem terem
norte da Baía da Babitonga fosse o curso sido posteriormente submetidos aos efeitos
médio/inferior do rio São João (PR). Com erosivos da transgressão marinha pós-glacial.
orientação inicial NW-SE na Serra do Mar, o Além destes seis sítios, somente dois outros
rio São João executa uma radical mudança de (Ribeirão do Cubatão e Guanabara I) tiveram
quase 90° (SW-NE) para desaguar no litoral seus substratos atribuídos a altitudes superio­
paranaense, na Baía de Guaratuba. Para res a 3,5m e somente três sítios (Ilha dos
Angulo (1992) o desvio do curso original do Espinheiros II e Ilha do Mel I e III) apresentam
rio São João pode ter sido ocasionado por altitudes com possível implantação sob condi­
sobreposição dos depósitos de encostas da ções especiais anteriores há 5.100 anos AP.
Serra do Quiriri, que interromperam sua Tais avaliações não significam necessaria­
possível drenagem para a Baía da Babitonga. mente que os sítios citados sejam contemporâ­
Quanto ao máximo da Transgressão neos ou constituam-se nos mais antigos de
Santos em Joinville, é possível ainda inferir Joinville, já que poderiam também ter sido
submersão e retrabalhamento da maior parte edificados em outros momentos após o máximo
dos depósitos pleistocênicos então remanes­ transgressivo pós-glacial (desde que as
centes da fase regressiva anterior. As áreas condições ambientais permitissem acesso a
hoje ocupadas por depósitos paludiais fontes de subsistência e de material construti­
estuarinos, eólicos holocênicos, paleoes- vo), então em fase de emersão da planície
tuarinos, flúvio-lagunares e as partes mais como conseqüência da regressão marinha.

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Figura 3 - Configuração espacial hipotética da paleobaía da Babitonga na planície costeira de Joinville,


em época próxima ao NRM máximo pós-glacial (aproximadamente há 5.100 anos AP).

Esta fase seguinte é descrita por Suguio et 4.000 - 3.800 e entre 3.000 - 2.700 anos AP.
al. (1985), Martin et al. (1988) e Hom Filho Para Angulo & Lessa (1997) e Lessa et al.
(1997) a partir de uma descida do NRM com (2000) o declínio do NRM a partir do máximo
duas oscilações secundárias de alta freqüência pós-glacial deu-se de maneira suave e gradual,
(Martin et al. 1999) aproximadamente entre sem tais oscilações de alta freqüência.

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Esta fase regressiva é a responsável mentar na região de desembocadura do rio


principal pela formação das atuais feições Cubatão.
geomorfológicas da planície costeira de O meandramento do rio Cubatão acen­
Joinville. A descida do NRM deve ter se tuou-se e seus sedimentos e migração lateral
processado a partir de um eixo geral NE-SW, ampliaram sua área de desembocadura, sendo
como sugere o alinhamento aparente da maior os atuais depósitos flúvio-lagunares herança
parte dos depósitos paleoestuarinos na deste processo. Em algumas áreas foi também
porção centro-sul da área de estudo. O possível identificar depósitos paleoestuarinos
promontório e península da região da Vila da (e bancos conchíferos naturais em áreas mais
Glória (município de São Francisco do Sul) restritas, observáveis atualmente em situação
certamente influenciaram o transporte sedi­ de baixa-mar) sotopostos por depósitos

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fluviais e flúvio-lagunares, representando a Nas ilhas principais da planície costeira


progressiva dissecação dos depósitos sedi- de Joinville a indisponibilidade de testemunhos
mentares da paleobaia pela ação fluvial. de sondagem dificulta perspectivas paleogeo-
O perfil topogeológico na Figura 5 apre­ gráficas em detalhe. Com base na descrição dos
senta simplificadamente uma associação afloramentos analisados (com recorrente
vertical entre os sambaquis Ribeirão do observação de depósitos paleoestuarinos
Cubatão, Cubatão I e Cubatão III, e as unida­ sotopostos por areias sedimentologicamente
des geológicas existentes nesta área. associadas ao ambiente eólico, em grande parte
Mesmo não havendo datações absolutas, da porção centro-sul e sul da área de estudo e
chama a atenção uma possível co-visibilidade onde não foram constatados depósitos mari­
entre os sítios, condição esta importante para nhos praiais típicos), tentativamente vislumbra­
as relações sociais daquelas populações pré- se que os depósitos identificados estejam
coloniais, caso os três sítios arqueológicos relacionados em sua geogênese ao modelo
estivessem sendo ocupados simultaneamente. barreira de estuário / bacia lamosa proposto por
O isolamento espacial (Oliveira 1996b), altura Woodroffe (1992).
(18m) e altitude do Sambaqui Ribeirão do No litoral paranaense, Angulo (1992)
Cubatão parecem remetê-lo ao conceito de propôs que a maior parte dos depósitos
landmark apresentado por Gaspar & De Blasis sedimentares das ilhas da Cotinga e Rasa da
(1992), Fish et al. (1997), entre outros. Cotinga (interior da Baía de Paranaguá) é
Na porção central da área de estudo, o conseqüência da descida do NRM quando
período regressivo no Holoceno Médio “extensas áreas de fundos rasos transforma­
(caracterizado por uma grande variabilidade do ram-se progressivamente em planícies de
clima e pela ocorrência de climas geralmente maré e áreas emersas”. Tal mecanismo pode
mais secos que o atual, relacionados a uma ser também concebido para parte do substrato
ainda fraca insolação do verão no hemisfério das ilhas do Gado e dos Espinheiros, e mesmo
sul, segundo Turq et al. 1999) da mesma para o Morro do Amaral e Ilha do Mel. Consi­
maneira permitiu uma intensificação nos derando a herança da área de estudo como
processos de denudação com avanço dos interior de estuário onde o afogamento de
leques aluviais sobre as margens paleoes- vales fluviais foi processo importante no
tuarinas então em recuo. desenvolvimento das morfologias ao longo do

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tempo, não se descarta que estes “fundos associados, sugerem uma “paleo-ilha” de
rasos” tenham deltas em sua origem, comuns sedimentos continentais ou fluviais onde
em estuário de micro e mesmo de meso marés inclusive poderiam ter sido edificados os
(Petchik 1984). sambaquis Espinheiros I e II (Piazza 1966),
Em uma primeira aproximação, é possível posteriormente dissecada por depósitos
conceber nesta fase de regressão marinha do paludiais estuarinos holocênicos, a exemplo
Holoceno Médio/Superior, a emersão gradual do que ocorre na região do Palmital.
de tais ilhas pela descida do NRM em proces­ A construção de sambaquis nesta fase
so de sedimentação acelerado pela influência estaria favorecida, embora haja dificuldade em
do embasamento cristalino, o qual funcionava especificar tal momento já que o mapeamento
como armadilha para os sedimentos elásticos do substrato dos sítios não incluiu técnicas
terrígenos alimentados pelo sistema de adequadas para excluir a possibilidade de que
drenagem Velho/Cachoeira/Comprido/Iririú, e nesta área os sambaquis tivessem sido
os provindos por ação eólica dos depósitos construídos diretamente sobre depósitos
pleistocênicos remanescentes das ilhas dos paleoestuarinos. Parece recorrente, no entan­
Espinheiros e do Mel, os quais não foram to, que a base inicial tenha se processado sob
afogados pelo último máximo pós-glacial há depósitos eólicos mais interiorizados e tendo
5.100 anos AP, embora submetidos a intensos havido posterior avanço dos sítios em direção
processos erosivos. aos depósitos paleoestuarinos herdados da
Neste sentido, menciona-se o modelo paleobaía.
evolutivo regional proposto por Horn Filho A distribuição dos sítios nestas áreas de
(1997), uma vez que mesmo havendo alteração maior influência marinha remete à concepção
na litologia e cronologia dos depósitos das de Bigarella (1954) sobre a evolução da
ilhas de Joinville em relação aos mapeamentos paisagem e a situação dos sambaquis sobre os
anteriores, a paleogeografia ora proposta bancos de sedimentos. Estes sambaquis
confirma a ausência de retrobarreira lagunar de edificados sobre depósitos eólicos possuem
idade pleistocênica na área de estudo. como principal característica paleogeográfica
A granulometria dos depósitos mapeados uma espacialidade controlada pela morfologia
nas ilhas indica retrabalhamento eólico dos dos depósitos em relação aos paleoníveis da
sedimentos disponibilizados pelo sistema preamar e da baixa-mar, onde há época prolife­
regressivo (em cujas fontes devem ser incluí­ ravam bancos de moluscos. A configuração
dos os terraços pleistocênicos ao sul da área atual da distribuição dos sítios no limite entre
de estudo, no município de Araquari). Nesta depósitos eólicos e depósitos paludiais
condição de progradação da planície, barras, estuarinos, à época de edificação inicial dos
tômbolos e esporões orientados pela deriva sítios representaria (grosso modo) o limite
(possivelmente de sul para norte) devem ter entre os terraços arenosos e prováveis dunas
permitido ligações físicas (efêmeras ou não) incipientes com bancos areno-argilosos e
entre as ilhas. baixios síltico-argilosos da zona inter-marés da
As atuais “lagoas” do Saguaçu e do paleobaía.
Varador poderiam funcionar como estuários A altitude (3,5m) da provável base inicial
“cegos”, similarmente ao que ocorre com a sobre a qual teria sido construído o Sambaqui
Lagoinha do Leste, na Ilha de Santa Catarina Ilha dos Espinheiros II (próxima a depósitos
(Horn Filho et al. 1999). Entre estas ilhas e o pleistocênicos), bem como a datação mais
“continente” joinvilense, em pelo menos duas antiga disponível para o sítio (3.015+130 anos
áreas possíveis conexões estariam favoreci­ AP), sugerem que o mesmo represente a fase
das: a principal delas na região dos morrotes e inicial de ocupação da Ilha dos Espinheiros,
leques aluviais associados ao sistema de embora por critérios exclusivamente topográfi­
drenagem Santinho/Velho (ao sul da Lagoa do cos todos os sambaquis da ilha teriam condi­
Saguaçu), e uma possível ligação na região ções de serem construídos a partir de 3.600
dos Espinheiros, onde a presença de aflora­ anos AP, quando o NRM permitiria que suas
mentos do embasamento cristalino e depósitos bases inferidas pudessem estar emersas.

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Na região do Morro do Amaral, à época de Supõe-se que a continuidade da regressão


edificação inicial dos sambaquis Morro do marinha e ativação da sedimentação fluvial
Amaral I e II e do Sambaqui Rio Riacho, teria gradualmente permitiram o desenvolvimento de
havido condições para a existência de um manguezais sobre os bancos e baixios, estimu­
paleocanal entre a Lagoa do Saguaçu e o canal lando os sambaquianos à conquista de novos
do Ipiranga (onde atualmente observa-se o Rio territórios menos paludosos, então em emersão
Riacho e manguezais associados), significando na porção centro e sul da área de estudo.
uma hidrodinâmica favorável a uma ligação por Como tratado anteriormente, Angulo
depósitos arenosos menos efêmeros entre a (1992) concluiu que durante o máximo da
Ilha do Mel e o Morro do Amaral, em situação Transgressão Santos, a paleobaía de Guara­
de inexistência ou insipiência do Canal do tuba avançava no vale do rio São João,
Ipiranga. Esta deposição arenosa provavel­ formando junto com o rio Cubatãozinho (PR)
mente teria geogênese relacionada a remanes­ um eixo transversal à atual Baía de Guaratuba.
centes dos terraços pleistocênicos, hoje Martin et al. (1988) identificaram extensos
inexistentes nas áreas circunvizinhas ao Canal depósitos de sedimentos holocênicos poden­
do Ipiranga na área de estudo. do conter conchas de moluscos ao longo do
A partir de 2.500 anos AP, Hom Filho (1997) curso inferior do rio São João. Reitera-se
atribuiu o início da deposição intensa de também a alteração radical do curso do rio São
sedimentos paludiais em ambientes de baixa João a partir de um “cotovelo de falha”
energia que permitiram a formação de mangue­ (Bigarella et al. 1961), sendo que Angulo
zais. A individualização das ilhas do Gado e dos (1992) não descartou a possibilidade de que o
Espinheiros e das ilhotas do Canal do Palmital referido rio drenasse para a paleobaía da
está relacionada a esta última fase regressiva, Babitonga através do que hoje corresponde ao
também caracterizada pela ampliação da disse­ Canal do Palmital.
cação da rede fluvial sobre os depósitos Hom Filho (1997) cartografou amplo
paleoestuarinos e flúvio-lagunares como é afogamento do Canal do Palmital durante o
observado nos rios Iririú-Guaçu e Cubatão- máximo holocênico, evidenciando depósitos
zinho, respectivamente, além da esculturação estuarinos (correspondentes a depósitos
das planícies de maré pelos canais de maré paleoestuarinos) atualmente existentes como
existentes ao longo da área de estudo. resultado da regressão pós-glacial, na maior
parte da margem esquerda do Canal do Palmital.
A região entre o rio São João (PR) e o
A paisagem como herança: Canal do Palmital (SC) teria, portanto, condi­
Eixo São João / Palmital ções de oferecer em época holocênica caracte­
rísticas fisiográficas favoráveis ao desloca­
As considerações preliminares efetuadas mento de populações sambaquianas entre as
sobre alguns aspectos da evolução geológica e baías de Guaratuba e Babitonga, justificando
paleogeográfica da planície costeira de Joinville as possibilidades anteriormente levantadas
indicam que o sentido geral de regressão sobre o Canal do Palmital como área emissora
marinha após o máximo pós-glacial teria se inicial para a expansão da produção do territó­
processado preferencialmente a partir de um eixo rio “joinvilense” pelo Homem do Sambaqui.
principal geral N-S/O-E, e na porção sul da área Neves (1988) e Neves & Blum (1998)
de estudo uma tendência S-N/O-E (Figura 6). concluíram que os sambaquianos do Paraná e
Sobressai nesta tendência a possibilidade os do norte de Santa Catarina formariam um
de que o desenvolvimento das planícies de “bolsão” biológico, ou seja, haveria uma
marés com seus extensos bancos arenosos e homogeneidade genética entre aquelas socieda­
síltico-argilosos propensos ao desenvolvimen­ des, justificando tal similaridade por uma
to de bancos de moluscos tenha da mesma “lógica geográfica'” diante da contigüidade
forma se processado, sugerindo áreas prefe­ espacial das planícies costeiras “que realmente
renciais para ocupação antrópica no mesmo poderia ter facilitado a troca gênica entre os
sentido. grupos humanos” (Neves & Blum op. cit.).

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Figura 6 - Direção hipotética regressiva preferencial da linha de costa após o máximo transgressivo pós-glacial na
planície costeira de Joinville (Oliveira 2000).

A Figura 7 apresenta esta rota “facilitado- OceanoAtlântico, sendo que o vale do rio Saí­
ra de troca gênica”, denominada aqui de Eixo Guaçu (embora com alteração de curso médio e
São João / Palmital, o qual é sugerido comple- inferior durante o Holoceno), poderia ter
mentarmente à mais óbvia rota ao longo do servido de elo entre os dois eixos principais.

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Figura 7 - Mapa geológico sim plificado da planície costeira entre a Baía de Guaratuba (PR) e o norte da Baía da
Babitonga (SC ), com ênfase a uma possível rota (Eixo São João / Palmital) para deslocamento de populações
sambaquianas entre estes dois com plexos estuarinos do litoral sul-brasileiro. O percurso “foz do rio São João (PR),
Garuva, foz do rio Cubatão (SC )”, é inferior a 40km. Figura produzida a partir da sobreposição dos mapas em
escala 1:200.000 produzidos por Martin et. al. (7988) e informações de ROHR (1984), os quais subsidiaram a
indicação dos sambaquis, com exceção àqueles em território joinvilense.

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No que se refere à cronologia de desloca­ duras. No posterior período regressivo, o rio


mento, fundamental informação para o eixo Saí-Mirim teve sua desembocadura progressi­
proposto são as datações efetuadas por vamente deslocada para norte, até atingir sua
Martin et al. (1988) para o Sambaqui Saí-Guaçu posição atual.
(n.° 1) que em coleta de superfície apresentou Por outro lado, como segunda rota
5.040+210 anos AP e, principalmente, o possível para a ocupação inicial da Ilha de São
Sambaqui Palmital (n.° 2, no mapeamento dos Francisco do Sul, o intervalo de tempo entre as
referidos autores), cuja amostra da base foi datações dos sambaquis Palmital, Rio Pinhei­
datada em 5.420+230 anos AP, este último ros/8 e Forte Marechal Luz (superior a 1.000
correspondendo ao registro mais antigo até anos), permite também supor que a migração
agora disponível para todo o litoral catari­ poderia ter sido iniciada a partir da planície
nense. costeira de Joinville, servindo-se então de
Na Figura 8 são indicadas as datações eventual estreitamento no paleocanal do
disponíveis para o litoral norte catarinense. Linguado.
Estas poucas datações sugerem tendência de Considerações finais
ocupação norte-sul. As datações referentes Não obstante estar limitada pela escassez
aos sambaquis Forte Marechal Luz, 59, de datações absolutas ou análises geológicas
Conquista/B e Rio Pinheiros/8 permitem em detalhe, a perspectiva evolutiva que se
conceber pelo menos duas rotas para ocupa­ apresenta para a planície costeira de Joinville
ção inicial da Ilha de São Francisco do Sul. sugere os sambaquianos como uma sociedade
A primeira delas corresponderia a um altamente especializada no ambiente do
percurso pela faixa litorânea de Itapoá, cujo interior do Complexo Estuarino da Babitonga,
limite extremo sul (Figueira do Pontal) é coexistindo com extensos bancos arenosos e
separado da região de Capri na Ilha de São baixios síltico-argilosos, que devem ter
Francisco do Sul, atualmente, por um canal de orientado as ocupações iniciais dos samba­
profundidades máximas de lOm e extensão quis. Por este prisma, as últimas gerações
inferior a 2km (Kinak et al. 1999). sambaquianas possuíam práticas espaciais
Aquele canal seria uma limitação fisiográ- diferenciadas de seus antecessores “joinvi-
fica teoricamente transponível pelo Homem do lenses”, onde a intensificação dos bosques de
Sambaqui. Hom Filho (1997) destacou que manguezais é processo importante a ser
desde o Holoceno até hoje, na região norte da considerado.
Ilha de São Francisco do Sul, na interface baía/ Finalmente, considera-se oportuno que
oceano, tem sido recorrente a formação de seja retomada a pesquisa arqueológica nas
esporões arenosos devido à dinâmica das bacias do rio Piraí (afluente do rio Itapocu),
correntes de maré e atuação das ondas e dos onde há registros de sítios arqueológicos
ventos. Não obstante, deve-se destacar que por aparentemente diferenciados em relação aos
volta de 5.000 anos AP, o NRM encontrava-se sambaquis aqui mapeados (ora denominados
alto e as características do canal certamente de sambaquis fluviais, ora de jazidas paleoet-
estariam modificadas (Hom Filho op. cit.). nográficas; atribuídos aos Tupiguarani ou à
Na planície costeira de Itapoá, Souza et al. Tradição Itararé), que potencialmente podem
(1999) identificaram que no máximo da trans­ indicar área de transição mais recente entre as
gressão holocênica existiam também esporões ocupações planalto/litoral, ou território
ou ilhas-barreira ao norte e ao sul de Itapoá e, cronologicamente associado à tendência
ao norte, pelo menos três grandes desemboca­ norte-sul mais antiga.

70
O LIVEIRA, M .S.C .; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Re v. do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

Datação mais antiga


Sambaqui Referência
(anos AP)

Saí-Guaçu 5.040+210 Martin et al. (1988)


Palmital 5.420+230 Martin et al. (1988)
Forte Marechal Luz 4.290+130 Bryan1 apud Bandeira (1997)
Rio Comprido 4.815+130 Prous & Piazza (1977)
Espinheiros II 2.970+60 Afonso & De Blasis (1994)
Ilha dos Espinheiros II 3.015+130 MASJ"
Morro do Ouro 4.030+40 MASS
Guanabara II 2.350+120 MASS
59 3.850+200 Martin et al. (1988)
Linguado/B 2.830 Prous & Piazza (1977)
Linguado/A 2.590 Prous & Piazza (1977)
Conquista/B 4.070 Prous & Piazza (1977)
Rio Pinheiros/8 4.580 Prous & Piazza (1977)
Rio Perequê/53 2.760+180 Martin et al. (1988)

1 Bryan, A. L. (1993) The Sambaqui o f Forte Marechal Luz, State o f Santa Catarina, Brazil Brazilian
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2 Conforme cópia de resultado de análise radiomètrica elaborada por iniciativa de Afonso Imhof
e de Walter Alves Neves.

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evolutionary contribution to the study of the spatial distribution of the shell
mound builders on the northern coast o f Santa Catarina. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 55-75, 2001.

ABSTRACT: The paper presents a geologic-evolutionary approach to the


shell mound along the coastal plain of Joinville, whose results indicate a
possible route for the displacement of the shell mound builders between the
Paraná southern coast and the Santa Catarina northern coast. The paleogeo-
graphic model proposed and the absolute dating of the shell mounds curren­
tly available converge on the Palmital Channel as the region where the
occupation of Joinville by those fishers-gatherers first started.

UNITERMS: Shell mounds - Joinville coastal plain - Paleogeography -


Coastal Quaternary.

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REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE A QUESTÃO


DA VIOLÊNCIA EM POPULAÇÕES CONSTRUTORAS
DE SAMBAQUIS: ANÁLISE DOS SÍTIOS
CABEÇUDA (SC) E ARAPUAN (RJ)

Andrea Lessa*
João Cabral de M edeiros**

LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. Reflexões preliminares sobre a questão da violência em
populações construtoras de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan
(RJ). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 77-93, 2001.

RESUMO: O presente estudo teve como objetivo testar a hipótese preli­


minar de que os grupos construtores de sambaquis do litoral brasileiro, de
uma forma geral, não praticavam a violência física de forma recorrente. Foram
analisados 62 crânios provenientes do Sambaqui de Cabeçuda (SC) e 11
esqueletos do Sambaqui de Arapuan (RJ), buscando-se identificar as típicas
lesões associadas a episódios de violência. Também foi realizada uma revisão
bibliográfica sobre o tema, para populações litorâneas anteriormente estuda­
das, incluindo-se aí os dados relativos às lesões traumáticas pós-cranianas
observadas na amostra de Cabeçuda. As baixas prevalências observadas em
todas as amostras, ou a sua ausência (4,8% para o sambaqui de Cabeçuda e
0% para o sambaqui de Arapuan, por exemplo) confirmam a hipótese formu­
lada. Os resultados observados podem ser interpretados a partir de fatores
sócio-culturais, econômicos e ambientais, ou ainda de ordem metodológica.

UNITERMOS: Paleopatologia - Traumas agudos - Violência - Sam­


baqui.

Introdução acabou por inseri-la como uma das principais


preocupações no campo da saúde coletiva em
O notório crescimento da violência nas todo o mundo.
grandes metrópoles, tanto em países desenvol­ Este destaque, no entanto, não tem sido
vidos como em vias de desenvolvimento, dado apenas para estudos clínicos epidemio­
lógicos, mas também para estudos de violência
entre populações pré-históricas, principalmen­
te entre pesquisadores norte-americanos, os
(*) ENSP / FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisado­
ra Visitante. quais têm avançado no desenvolvimento
(**) ENSP / FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ. Aluno de teórico-metodológico para a sua identificação
E sp ecialização. em material arqueológico.

77
LE SSA A.; M EDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
— ^ 7 93 2 0 0 ? ° S SltK CabeÇUda (SC) C AraPuan (RJ)- R ev• do Museu de A rqueologia e Etnologia, São

No Brasil, entretanto, os estudos paleo- Com base nestas evidências, ainda


patológicos voltados para a violência ainda bastante frágeis, foi formulada uma hipótese
são raros, apesar de representarem uma preliminar de que os grupos construtores de
importante ferramenta para a verificação de sambaquis, de uma forma geral, não estavam
hipóteses sobre o modo de vida e organização envolvidos em atividades, ou não possuíam
social entre as sociedades pré-históricas. condutas, onde a violência física fosse um
Devido à importância de uma abordagem fenômeno recorrente.
paleoepidemiológica, a partir de amostras Para testar esta hipótese foram analisadas
numericamente representativas, os sítios do amostras de duas coleções esqueletais
tipo sambaqui, localizados no litoral sul/ alojadas no setor de Antropologia Biológica
sudeste do Brasil, constituem-se potencial­ do Museu Nacional do Rio de Janeiro: o
mente informativos para o estudo da violência. sambaqui de Cabeçuda (SC) e o sambaqui de
Embora existam outros tipos de sítios litorâne­ Arapuan (RJ), buscando-se identificar as
os na costa brasileira, como os acampamentos típicas lesões associadas à violência. Também
litorâneos, os sambaquis formam a grande foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o
maioria dos sítios conhecidos e estudados. tema para populações construtoras de sam­
Apesar do grande número de escavações baquis anteriormente estudadas.
sistemáticas nos sambaquis brasileiros, com Ainda que os resultados obtidos neste
muitos deles apresentando amostras esque- estudo representem uma primeira aproximação ao
letais representativas, pouquíssimos estudos tema, não devendo ser generalizados, a distância
voltados para as condições patológicas foram espacial e temporal entre as duas ocupações
desenvolvidos até o momento com o material permite uma visão menos restrita do fenômeno.
proveniente destes sítios, podendo ser citados Estudos posteriores deverão aprofundar o nível
os trabalhos de Neves (1984) sobre osteoar- das inferências a partir da análise de amostras
trites; Mendonça de Souza (1999) sobre mais representativas, agrupadas segundo uma
anemia e adaptabilidade; além de Ferigolo contextualização geográfica e cultural mais
(1987); Machado (1992); Mendonça de Souza específica, ajudando assim a construir um quadro
(1995); Silva & Mendonça de Souza (1999); mais consistente sobre o fenômeno de violência
Machado e Sene (2001); e Storto et al. (1999), entre populações construtoras de sambaquis.
sobre um conjunto mais amplo de patologias
ósseas.
Nestes últimos estudos fica evidente uma Contextualização
baixíssima prevalência, ou sua ausência, para
traumas agudos, sejam eles associados a Neste estudo, estão sendo considerados
episódios de violência ou a acidentes relativos sambaquis, especificamente, os sítios caracte­
a atividades cotidianas. Por outro lado, na rizados por depósitos homogêneos, nos quais
importante síntese realizada por Prous (1992) as conchas estão bem distribuídas em superfí­
sobre arqueologia brasileira, o autor admite cie e profundidade, formando a quase totalida­
desconhecer o registro de esqueletos apresen­ de da massa sedimentar. Estes sambaquis
tando pontas de flechas encravadas nos ossos stricto sensu distinguem-se, portanto, de sítios
em populações sambaquianas, sinal inequívo­ rasos cujas lentes de conchas estão dispersas
co de violência e normalmente apontado pelos no meio de uma matriz sedimentar composta
pesquisadores devido a sua raridade. O mesmo por elementos minerais, os quais foram
não acontece com outros tipos de sítios, como classificados como acampamentos litorâneos
os acampamentos litorâneos da Tapera - SC ou sítios paleoetnográficos. Apesar de as
(Silva et al. 1990), Itacoara - SC (Tiburtius, datações indicarem que os acampamentos
Bigarella & Bigarella 1951) e Alecrim II - SP litorâneos mais antigos foram contemporâneos
(Sakai 1981), nos quais, apesar de não terem dos sambaquis, sua distinta morfología -
sido realizadas análises paleopatológicas, foi admitida como uma das principais característi­
observada e descrita a situação acima mencio­ cas unificadoras - sugere tratarem-se de
nada. unidades culturais distintas (Prous 1992).

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC ) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

Os sistemas de construção dos sambaquis formando uma unidade geral que seria o
resultam na criação de um espaço tridimen­ reflexo não somente de um mesmo contexto
sional onde o volume que estes sítios podem ecológico, mas provavelmente também de um
alcançar é um aspecto marcante e intencional: mesmo tipo de organização social.
não poderiam jamais representar, simplesmen­
te, restos de lixo casualmente acumulados.
Teorias mais recentes propõem que os samba­ Sambaqui de Cabeçuda/SC:
quis constituem verdadeiros marcos espaciais litoral meridional do Brasil
e/ou territoriais - certamente imbuídos de uma
carga simbólica significativa - com grande O litoral meridional do Brasil é constituído
visibilidade e destaque na paisagem. Sua por extensas planícies litorâneas, cortadas
implantação, distribuição e os materiais que o ocasionalmente por prolongamentos da serra
compõem teriam sido deliberadamente ali do mar, estuários de rios que deságuam no
depositados como resultado de ações perti­ Oceano Atlântico, manguezais e lagunas
nentes ao sistema sócio-cultural em questão represadas pelos espigões das restingas, o
(Gaspar & De Blasis 1992, Gaspar et al. 1994). que torna essa região extremamente abundante
Esses grupos litorâneos apresentam uma em alimentos (Prous 1992).
certa unidade em razão da adaptação a um O sambaqui de Cabeçuda foi um dos
meio ambiente muito particular e do aparente maiores do Brasil, com 53.000 m2, localizándo­
isolamento em relação às terras interioranas, se entre as lagunas de Santo Antonio dos
das quais são separados por uma barreira Anjos e Imaruí, no município de Laguna,
montanhosa quase contínua, formada pela Estado de Santa Catarina. Até 1928, este sítio
Serra do Mar. Em conseqüência de uma encontrava-se praticamente intacto, mas a
geologia e de uma ecologia homogêneas, a posterior e contínua exploração do seu
economia e a tecnologia básicas evidenciam material conchífero para fabricação de cal e
numerosos pontos de convergência, o que não como material de aterro, ocasionou uma grande
impede que fácies culturais diversas tenham se destruição. Apenas a sua porção central,
desenvolvido no espaço e no tempo (Prous medindo 20 metros de altura, permanecia
1992). intacta no momento em que se iniciou sua
São marcantes, entretanto, os indícios de escavação, em 1951 (Castro Faria 1955, 1999).
uma unidade ideológica simbolizada pela Uma datação radiocarbônica obtida entre
presença peculiar de zoolitos bastante elabora­ dois e três metros de profundidade, coincidindo
das. Prous (1972) realizou um estudo minucio­ com a primeira concentração de esqueletos,
so sobre 166 esculturas, representando quase forneceu idade de 4.120 ± 220 AP (Putzer 1957).
o total de peças recuperadas. Essas peças A sua estrutura estratigráfica mostrava
foram encontradas em sambaquis localizados conchas limpas de bivalves (Anomalocardia
desde o Estado de São Paulo até o Rio Grande brasiliensis), lentes contendo ossos de peixe,
do Sul, e foram confeccionadas em rocha dura principalmente bagres e miraguaias, ossos de
e local, mostrando que os zoolitos foram aves e de pequenos mamíferos, carvões e
fabricados na mesma região em que foram pequenos blocos de granito e diabásio. Além
encontrados. Sua morfología, além da repre­ das fogueiras há, também, fogões bem cons­
sentação zoomorfa, apresenta outra caracterís­ truídos, com pedras, mostrando espessas
tica uniforme: a presença de uma cavidade com lentes de carvão, que indicam o uso daquele
aparência de recipiente. sítio como habitação e com uma ocupação
O autor conclui que, apesar de se tratar do prolongada. A relação de objetos encontrados
primeiro estudo sobre o tema, tudo indica que inclui partes de artefatos para pesca e caça,
os zoolitos estudados não tinham uma função tais como pontas em osso, arpões e anzóis;
utilitária, mas possivelmente, uma razão social. objetos para moagem, quebra ou trituração
Apesar de serem percebidas variações regio­ como quebra-cocos, almofarizes e batedores;
nais, destaca-se a grande extensão (mais de além de grandes blocos de pedra cortados em
1300 Km) do litoral onde são encontrados, diabásio (Castro Faria 1955).

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 77-93, 2001.

Com relação aos sepultamentos, os Devido a processos tafonômicos, os


primários se encontravam logo abaixo da esqueletos recuperados nos sítios não foram
superfície, cerca de 30 cm de profundidade, considerados apropriados para datação. A
sucedendo-se às dezenas. A distribuição cronologia relativa foi estabelecida com base
estratigráfica dos achados confirma que os nos trabalhos de Herédia, no sambaqui de
sepultamentos concentravam-se em dois Amorins, datado de 3530±30 AP (Bezerra
conjuntos de maior densidade, respectivamen­ 1995).
te entre dois e três metros de profundidade, e A fauna encontrada assemelha-se às
entre seis e oito metros de profundidade demais dos sambaquis da região, havendo
(Castro Faria 1955). predomínio das bivalves Anomalocardia
A morfologia dos esqueletos não apresen­ brasiliana e Lucina pectinata. A fauna
ta mudanças significativas, levando a que se ictiológica está representada por espinhas,
tenha trabalhado, até o momento, com a mandíbulas e otólitos, bem como por placas
hipótese de continuidade biológica, ou seja, mastigadoras, placas faringeanas e dentes de
de que o sítio tenha sido ocupado por um seláqueos trabalhados ou não. A fauna
único grupo humano (Mendonça de Souza terrestre não foi identificada.
1995). A coleção de esqueletos humanos que O material cultural coletado foi classificado
constitui o acervo do sambaqui de Cabeçuda como adornos pessoais, confeccionados de
apresenta-se em diferentes condições de vértebras; armas fabricadas a partir de frag­
preservação, em função das condições de mentos rochosos e seixos rolados; fogueiras;
inumação, da pressão das camadas superiores, e utensílios líticos, como almofarizes, percu­
das variações das condições microambientais tores, quebra-cocos, raspadores e cortadores
devido à pluviosidade, acidez e variações confeccionados com material malacológico
térmicas, e do seu acondicionamento na (Bezerral995).
reserva técnica (Mendonça de Souza 1990,
1995).
Fundamentação teórica

Identificação dos marcadores de violência


Sambaqui de Arapuan/RJ:
litoral central do Brasil
A identificação dos marcadores de
violência tem sido realizada com relativa
O litoral central do Brasil é caracterizado facilidade através de indicadores específicos,
por duas formações, uma delas identificada sugeridos a partir de estudos epidemiológicos
como o litoral das restingas, lagunas, e clínicos e em material arqueológico, tais como
baixadas, que ocupa o trecho do litoral norte as fraturas em depressão no crânio; fraturas na
de São Paulo até Cabo Frio. Nele, as restingas face, principalmente dos ossos nasais; as
ou cordões litorâneos são extensos, fechando fraturas nos terços médios e distais dos
ou isolando braços de mar que vão formar cubitos; e a presença de pontas de projétil
lagunas. Para o interior, a planície é constituída encravadas nos ossos (Steinbock 1976, Ortner
por baixadas, entre as quais a mais extensa é a & Putschar 1985, Merbs 1989, Walker 1989;
baixada da Guanabara, que antecede a Serra do Lessa 1999).
Mar, disposta paralelamente à costa (IBGE Estes indicadores, apesar de serem
1977:4-10). específicos, não são oS únicos, pois outros
O sambaqui de Arapuan está situado tipos de fraturas, como as fraturas no tórax,
neste trecho, em região alagadiça, entre o Rio podem eventualmente ser associadas a golpes,
Guapi e o Canal de Caioba, no Município de considerando-se as interpretações biome­
Guapimirim, no Recôncavo da Baía de Guana­ cánicas, o contexto cultural e a observação de
bara, Estado do Rio de Janeiro. Possui uma uma alta prevalência das lesões acima relacio­
área circular de 2000 metros quadrados e 4,5 nadas.
metros de altura, e seu estado de conservação Apesar de pouco comum no registro
é considerado regular (São Pedro 1999). arqueológico, também são considerados sinais

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

de violência os traumas provocados por articula com os metacarpos, e em caso de


decapitação, escalpo, canibalismo e desmem­ queda e tentativa de sustentação do corpo
bramento. receberia a maior parte da força de impacto,
Nas sociedades modernas, um grande provocando uma fratura na articulação ou na
número de fraturas de crânio está relacionado diáfise.
com acidentes, principalmente automobilísti­ As pontas de projétil, por sua vez, têm
cos, ainda que predominem as causas relacio­ sido regularmente associadas a episódios de
nadas à violência, principalmente entre os 15 e violência (Jurmain 1991, Lambert 1997, Walker
50 anos (Gurdjian 1973). Entre as populações 1997, Smith 1997, Maschner 1997, Keeley
pré-históricas, a agressão interpessoal também 1997). A localização e a trajetória de penetra­
tem sido apontada como a principal causa das ção do projétil podem informar sobre a estraté­
fraturas de crânio (Walker 1989, Wilkinson gia de ataque, indicando fuga da vítima ou
1997, Martin 1997, Lambert, 1997, Robb 1997 emboscada quando a penetração ocorreu pela
Smith 1997), ainda que acidentes pudessem parte posterior do corpo ou ainda de cima para
ocorrer com relativa freqüência, principalmente baixo, e indicando um ataque frontal quando a
entre grupos que ocupavam ambientes com penetração ocorreu pela parte anterior do
relevo irregular ou montanhoso, ou que corpo, considerando que a vítima estava em pé
tivessem práticas culturais que incluíssem as (Lessal999).
escaladas regulares e a incursão em terrenos A menos que o grupo em questão tenha
perigosos. sido vítima de um massacre generalizado, as
Estudos clínicos epidemiológicos indicam lesões ocasionadas por agressões físicas
que, de uma forma geral, a cabeça e o pescoço devem apresentar um padrão sexual e etário,
são as regiões mais atingidas durante lutas e dependendo sempre da situação que motivou
agressões interpessoais, podendo haver uma a atitude agressiva.
considerável variação relacionada ao contexto
sócio-cultural de onde emergiu o conflito. Sob
o ponto de vista estratégico, a cabeça e Metodologia
especialmente a face, são alvos atrativos
porque o ferimento pode ser muito doloroso, O presente estudo teve como objetivo
imobilizando temporariamente a vítima. Por testar a hipótese de que, de uma forma geral, o
outro lado, os ferimentos nestas regiões modo de vida dos grupos construtores de
provocam sangramento e hematomas aparen­ sambaquis não envolvia comportamentos
tes, os quais atuariam como símbolo visível da violentos recorrentes.
dominação do agressor (Walker 1997). Para testar esta hipótese preliminar, foram
As fraturas de face, geralmente provo­ analisados 62 crânios provenientes do samba-
cadas por esmagamento, podem ser associa­ qui de Cabeçuda e 11 esqueletos provenientes
das à violência principalmente quando o do sambaqui de Arapuã, buscando-se identifi­
indivíduo não apresenta outras fraturas car os típicos sinais de agressão física, além de
ocasionadas por queda acidental, uma vez que outros tipos de traumas agudos. Os autores
dificilmente este tipo de acidente provocaria mantêm como fundamento metodológico a
apenas uma lesão nos nasais ou na maxila, desconsideração das lesões peri-mortem, que
regiões de menor probabilidade de impacto não apresentam sinais de remodelação óssea, e
(Lessa 1999). portanto apresentam diagnóstico inseguro. De
As fraturas nos terços médio e distal nos qualquer forma, não foram observadas lesões
cubitos, denominadas de fraturas de “parry”, deste tipo nas amostras estudadas.
têm sido atribuídas à elevação do antebraço Também foram considerados os resultados
em defesa de um golpe (Ortner & Putschar obtidos para estudos de traumas agudos em
1985, Merbs 1989, Jurmain 1991, Webb 1995). amostras anteriormente analisadas, além do
A ausência de fratura no rádio homolateral registro de esqueletos com pontas de flecha
descarta a possibilidade de fratura ocasionada encravadas nos ossos, verificados através de
por queda, uma vez que este osso é o que se revisão bibliográfica.

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

Apenas indivíduos adultos foram analisa­ possível estimar a idade e sexo dos indivíduos,
dos, admitindo-se que a expressão da violên­ uma vez que se apresentavam incompletos e
cia sobre crianças e adolescentes só seria muito fragmentados. Apesar de o seu estado
observada em casos muito específicos de de conservação não ser considerado ideal para
violência doméstica contra estes segmentos, análise, esta amostra foi incluída porque
ou em caso de guerra ou massacre. nenhum estudo paleopatológico havia sido
A observação de outros tipos de traumas realizado sobre a sua totalidade, e porque o
agudos foi realizada porque, além dos sinais caráter preliminar deste estudo permite a
típicos, algumas fraturas primariamente associa­ utilização de dados cujo significado deve ser
das a acidentes também podem ser, eventualmen­ relativizado, conforme discutido mais adiante.
te, consideradas como sinalizadores de episódios A identificação das lesões foi feita a partir
de violência. As fraturas na região do tórax são da observação de neoformação, ausência e/ou
as mais sugestivas, já que podem ser o resultado destruição ósseas, e de solução de continuida­
de golpes diretos ocorridos durante confrontos de nas estruturas anatômicas, além de suas
corpo-a-corpo. Para que a associação entre conseqüências morfológicas, como anomalias
fraturas primariamente consideradas acidentais e de textura, forma e/ou tamanho (Lessal999).
episódios de agressão possa ser feita, no entanto, Além da técnica de observação visual
é necessário, em primeiro lugar, o suporte da macroscópica, foi utilizada a radiologia (inci­
existência de uma expressão epidemiológica dência Antero-posterior e perfil) como técnica
significativa dos típicos traumas violentos, além complementar para o estabelecimento de um
de uma contextualização e de uma análise diagnóstico seguro.
biomecánica que permita associar as armas As lesões localizadas no crânio foram
utilizadas e as táticas de luta com essas fraturas. medidas com paquímetro manual com precisão
A análise dos traumas agudos já havia de até 0,5mm, e sua localização tomou como
sido realizada anteriormente na amostra do referência as suturas cranianas.
sambaqui de Cabeçuda (Ferigolo 1987, Men­
donça de Souza 1995), sem que tivesse sido
dada, no entanto, atenção especial aos sinais Revisão bibliográfica
de violência, e sem que houvesse sido aplica­
da uma metodologia mais refinada para a sua Traumas agudos nas populações construtoras
identificação, onde são consideradas peque­ de sambaquis: possíveis sinais de violência
nas depressões totalmente remodeladas no
crânio, provavelmente causadas por um golpe Os estudos de paleopatologia óssea em
desferido com pouca intensidade ou que tenha grupos construtores de sambaquis ainda são
atingido a vítima de raspão. pouquíssimos apesar do grande número de
Por este motivo, foram revistos os 62 sítios escavados, sendo inexistentes os
crânios desta amostra que se encontravam em estudos voltados especificamente para a
bom estado de preservação. Os esqueletos violência. Na bibliografia existente, as amos­
pós-cranianos destes indivíduos não foram tras analisadas apresentam poucos casos de
revistos neste estudo, sendo utilizados os traumatismos agudos associados ou não
dados já existentes (Ferigolo 1987, Mendonça diretamente a agressões. Ocorre, no entanto,
de Souza 1995). A estimativa de sexo dos um registro de uma ponta de flecha encravada
indivíduos foi realizada em trabalho anterior no esqueleto, sinal mais evidente de violência,
por Mendonça de Souza (1990). sem que estudos paleopatológicos tivessem
Na série proveniente do sambaqui de sido realizados no material.
Arapuan, foram analisados os ossos cranianos Dentre os estudos paleopatológicos
e pós-cranianos de todos os indivíduos realizados, podemos citar o sambaqui de
adultos recuperados. O trabalho foi iniciado Cabeçuda (SC), onde Ferigolo (1987) observou
individualizando-se cada esqueleto nos as seguintes fraturas em dois esqueletos: um
sepultamentos múltiplos. Foram identificados deles apresentava mandíbula com alteração
11 adultos, duas crianças e dois fetos. Não foi pós-traumática, verticalização do ramo e calo

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de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São
P aulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

ósseo na região sinfisária, além de severas No Sambaqui da Tarioba, localizado no


alterações degenerativas pós-traumáticas no município de Rio das Ostras, Machado & Sene
úmero e na ulna. No outro indivíduo, foi (2001) não observaram traumas agudos nos 17
observada uma ulna com fratura consolidada indivíduos recuperados.
no terço distai. Finalmente, Storto e colaboradores (1999)
O mesmo material foi analisado por analisaram 37 indivíduos adultos provenientes
Mendonça de Souza (1995) e, além das lesões do sambaqui Jaboticabeira II, localizado no
acima descritas, foram observadas: duas município de Jaguaruna (SC), tendo sido
vértebras, uma cervical e outra dorsal, com observado apenas um indivíduo que apresen­
traço de fratura, tendo a segunda um acunha- tava uma fratura envolvendo dois tarsos.
mento do corpo; dois rádios direitos com Apesar do grande número de sambaquis
fraturas bem remodeladas junto à extremidade estudados, com todos eles tendo apresentado
proximal; dois úmeros com deformidades enterramentos com amostras numericamente
sugestivas de arrancamento do epicôndilo; e variáveis (Prous 1992), nenhum outro caso
um metatarsiano com fratura bem remodelada típico de violência foi registrado, como as
da diáfise. duas pontas de flecha encravadas nos ossos,
No sambaqui da Beirada, localizado no acima descritas. Este dado parece ser bastante
município de Saquarema (RJ), entre os 32 significativo, uma vez que a sua ocorrência
esqueletos analisados, foi observada uma motiva a publicação, mesmo na ausência de
fratura de “parry” em uma ulna esquerda, estudos paleopatológicos, justamente por
apresentando a não união dos fragmentos constituir-se caso raro.
afetados e pseudoartrose, em um indivíduo
masculino com cerca de 39-44 anos de idade
(Machado, 1992). Foi observada também uma Resultados da análise paleopatológica
ponta serrilhada, confeccionada sobre esporão
de arraia (provavelmente Aetobatus narinari), No sambaqui de Arapuan não foram
encravada verticalmente entre as costelas de observadas lesões associadas a episódios de
um indivíduo feminino adulto (Kneip 1994). violência. Dentre os 11 indivíduos adultos
Machado e colaboradores (Kneip et al. analisados, um apresentou uma fratura de
1995) analisaram os remanescentes ósseos de metatarso.
9 indivíduos adultos do sambaqui de Saqua­ Dos 62 indivíduos analisados do sambaqui
rema (RJ), localizado no meio de um canteiro de Cabeçuda, três apresentaram lesões no
de obras. O pequeno número de esqueletos e crânio (4,83%), sendo todos do sexo masculino.
as más condições de preservação óssea
limitaram o estudo, tendo sido observadas
evidências de antigas fraturas na diáfise de um Descrição das Lesões
fêmur e de um úmero esquerdos em um Sambaqui de Cabeçuda
indivíduo masculino.
Num estudo preliminar em 10 esqueletos - Crânio n° 1704 (Fig. 1)
adultos do sambaqui Forte Marechal Luz (SC), Indivíduo masculino. A presenta lesão
Silva & Mendonça de Souza (1999) observa­ circular superficial no osso parietal direito a
ram em um indivíduo de sexo indeterminado 3,5 cm da sutura sagital e a 8,5 cm da sutura
uma fratura no quinto metatarso, com seqüela lambdoidal, com diâmetro de 0,3 cm. Possui
de soldadura da falange. as bordas arredondadas, sem linhas de
No sambaqui Zé Espinho, localizado em fraturas irradiadas, e no seu interior há
Guaratiba (RJ), onde foram recuperados 22 neoformação óssea com superfície irregular.
esqueletos, mas não foi realizada análise Não apresenta processo infeccioso nas
paleopatológica. Kneip (1987) observou mais áreas adjacentes.
uma vez a existência de uma ponta confeccio­ - Crânio n° 1825 (Figs. 2 e 2a)
nada sobre esporão de arraia, encravada entre Indivíduo masculino. Apresenta lesão
as costelas de um indivíduo adulto feminino. oval, localizada no osso parietal direito,

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de sambaquis: análise dos sític Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de Arqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

Fig.l - Crânio n° 1704, Sambaqui de Cabeçu­ Fig.2 - Crânio n° 1825, Sambaqui de Cabeçu­
da. Indivíduo masculino apresentando fratura da. Indivíduo masculino apresentando fratura
em depressão associada à violência. em depressão associada à violência.

pouco profunda, a 4,5 cm da sutura lambdoidal


e a 2,0 cm da sutura sagital, com 1,0 cm de
largura por 1,6 cm de comprimento. As bordas
da lesão encontram-se arredondadas e não há
linhas de fratura irradiadas; no seu interior
podem ser observadas neoformação óssea e
porosidade que atinge o nível da diploe,
compatíveis com processo final de cicatriza-
ção, não havendo sinais de processos
infecciosos a sua volta.
- Crânio n° 1837 (Fig.3; 3a)
Indivíduo masculino. Apresenta uma
depressão pouco profunda no parietal direito,
localizada a 1,0 cm da sutura sagital e a 5,5 cm
da sutura lambdoidal. Tem formato oval e mede Fig. 2a - Crânio n° 1825, Sambaqui de Cabe­
1,6 cm por 1,0 cm. çuda. Detalhe da lesão.
A região adjacente apresenta-se bastante
irregular com extensa neoformação óssea
Sambaqui de Arapuan
sugerindo um processo infeccioso. A própria
lesão apresenta superfície irregular, com
neoformação óssea, e suas bordas não Sepultamento n° 13
apresentam arestas agudas e não há linhas de Sexo indeterminado. Fratura de metatarso,
fraturas irradiadas. lado indeterminado, apresentando desvio dos
Esta lesão não apresenta o padrão fragmentos proximal e distai, ao longo do eixo
observado para as fraturas em depressão longitudinal.
devido à irregularidade da superfície. É
possível que ela esteja relacionada a um
trauma agudo, no entanto, a ocorrência de um Discussão
processo infeccioso obriga a especulação de
outra etiologia para a mesma. Uma vez que o Entre os oito sambaquis citados no presen­
diagnóstico apresenta-se impreciso, esta te trabalho, em 3 deles (37,5%) foram observa­
lesão não foi incluída na quantificação dos das as típicas lesões relacionadas a episódios
dados. de agressão. As baixas prevalências observa­

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Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

das para essas lesões em cada uma das amos­ grupos, constituindo-se eventos esporádicos, o
tras, ou a sua ausência, no entanto, constituem- que confirma a hipótese proposta (Quadro 1).
se um dado muito mais informativo, indicando Apenas a título de comparação entre as
que os episódios de violência provavelmente prevalências observadas, podem ser citados
não ocorriam de forma recorrente entre esses como exemplos dois estudos específicos sobre
violência, um em ambiente semelhante e outro
em ambiente totalmente distinto ao dos grupos
construtores de sambaquis:
Em um estudo diacrônico realizado por
Lambert (1997), foram analisados esqueletos
provenientes de 30 cemitérios de grupos
caçadores-coletores que viveram no litoral,
junto ao canal de Santa Bárbara, no Estado da
Califórnia (EUA), durante um período que

S A M B A Q U I DE C A B E Q U D A
C R À N IO N° 183 7
M U S E U N A C IO N A L - RJ
■■■ lini a i a mji iw s i x m :iI.jl.-ji"

Fig. 3 - Crânio n° 1837, Sambaqui de Cabeçu­ Fig. 3a - Crânio n° 1837, Sambaqui de Cabe­
da. Indivíduo masculino apresentando fratura çuda. Detalhe da lesão.
em depressão associada à violência.

QUADRO 1
Prevalência de traum as agudos associados à violência nos sambaquis citados neste estudo
Número de indivíduos
Sítio adultos analisados Número de % Referências
ou recuperados indivíduos com lesão bibliográficas
Arapuan 11 0 0 Bezerra 1995, São Pedro 1999

Cabeçuda 62 3 4 ,8 Castro Faria 1955, Mendonça de


Souza 1990, 1995

Beirada 32 2 6,2 Machado 1992, Kneip 1994

Saquarema 9 0 0 Kneip 1995

Forte Marechal Luz 10 0 0 Silva & Mendonça de Souza 1999

Zé Espinho 22 1 4 ,5 Kneip 1987

Tarioba 17 0 0 Machado & Sene 2001

Jaboticabeira II 37 0 0 Storto et al. 1999

T otal 200 6 3

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de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

variou entre 6.000 a.C. até 1800 A.D. Dos 753 Com relação às lesões no crânio acima
crânios analisados, 17% , na maioria pertencen­ citadas, sua morfologia (pequenas depressões
tes a indivíduos do sexo masculino, apresenta­ ovais) e grau de letalidade (lesões superficiais,
vam lesões provocadas por golpes. O estudo sem comprometimento da tábua interna e com
demonstrou que nos cinco períodos cronológi­ total recuperação) permitem associá-las a
cos considerados, o número de lesões foi golpes que tenham atingido a vítima apenas de
constante, apontando a violência como um raspão, ou que tenham sido desferidos com
comportamento normal entre aqueles grupos. instrumentos rombudos pouco pesados, como
O mesmo não foi observado em um estudo bastões de madeira ou osso, ou com pequenas
realisado por Lessa (1999) em esqueletos pedras. No entanto, bastões de osso são raros
recuperados no cemitério Solcor-3, localizado no nos registros arqueológicos, com alguns
deserto de Atacama, Chile. Foram estudados exemplares encontrados em sítios de Joinville
dois períodos culturais distintos: o primeiro como Conquista, Morro do Ouro e Rio Velho, e
anterior à influência do estado altiplânico interpretados como propulsores (Prous 1992).
Tiwanaku sobre os grupos atacamenhos; e o Os artefatos próprios para o arremesso de
segundo coincidente com esta influência. Foi pedras a longa distância, por outro lado, são
observado um significativo aumento de lesões desconhecidos para as populações litorâneas.
associadas à violência entre os homens jovens De qualquer forma, faz-se necessário nestas
durante o período de interação entre os dois reflexões iniciais, observar que o registro
povos - 47% -, contra apenas 5,8% observado arqueológico de bastões de madeira deve ser
no período anterior. Os resultados foram inter­ relativizado em função dos problemas de
pretados como o resultado da emergência de preservação, especialmente acentuados nos
tensão social na população de São Pedro de sambaquis. Como bem afirma Prous (1992),
Atacama, em virtude do notório processo de raramente são encontrados artefatos que
hierarquização, e do rearranjo das relações sociais tivessem sido confeccionados sobre pedra ou
intragrupais e entre os grupos atacamenhos e os osso. As pedras, por sua vez, podem ser arre­
grupos que integravam a secular rede de trocas messadas manualmente, desde que a uma curta
entre o deserto, a costa e outras regiões. distância do seu alvo, o que estaria mais compa­
As baixas prevalências observadas neste tível com as brigas domésticas ou intragrupais.
estudo, além da total ausência de informações Por outro lado, as agressões físicas que resulta­
etnográficas para grupos construtores de ram nestas lesões podem ter sido provocadas
sambaquis, que poderiam fornecer dados por outros grupos, com aparato bélico distinto
referentes às táticas e armas empregadas em daquele observado para grupos sambaquianos.
confrontos ou castigos, invalidam qualquer Já as pontas de projétil, universalmente
tentativa de associação direta entre as demais reconhecidas pelos arqueólogos como parte
fraturas observadas nestas amostras e possí­ integrante de uma arma e abundantemente
veis episódios de agressão. encontradas em sambaquis, foram sem dúvida
Apenas três indivíduos foram contabi­ utilizadas por esses grupos com finalidade
lizados como portadores de leões associadas à bélica, como bem atestam os dois esqueletos
violência na amostra de Cabeçuda: um indiví­ observados por Kneip (1987, 1994).
duo apresentando fratura de “parry” observada E interessante notar que os dois indivíduos
por Ferigolo (1987) e Mendonça de Souza afetados eram do sexo feminino, sugerindo que
(1995); e dois indivíduos apresentando lesões os ataques ocorreram dentro ou perto dos
em depressão no crânio, observadas neste limites do núcleo habitacional, considerando-se
estudo. O indivíduo que apresenta lesão na a teoria tradicional de que os homens explora­
mandíbula, observada pelos autores supra­ vam áreas mais distantes em busca da caça.
citados, não foi incluído, apesar de as lesões na Segundo Chagnon (1992), baseado em estudos
face constituírem um indicador específico de etnográficos, a violência proveniente do uso de
violência, uma vez que ele apresenta também arco e flecha é mais freqüentemente observada
fraturas em outros ossos, compatíveis com em confrontos ou guerras entre grupos com
episódio de acidente. parentesco distante, sugerindo, neste caso,

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LESSA , A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

uma rixa intergrupal. Por outro lado, uma vez oferecia alimentos cuja estabilidade poderia
que as duas pontas foram confeccionadas influenciar de maneira decisiva na mobilidade e
sobre material marinho, é bastante provável que na densidade populacional dos grupos huma­
os ataques tenham partido de outros grupos nos. A coleta acrescida de produtos marinhos
litorâneos, ficando praticamente descartada a garantiria um alto grau de previsibilidade do
possibilidade de ataques por parte de grupos alimento, com recursos altamente concentrados,
do interior. facilmente coletáveis por todos os segmentos
Os resultados observados neste estudo humanos com um mínimo de gasto energético.
podem ser interpretados a partir de fatores Além disso, os locais escolhidos para assenta­
sócio-culturais, econômicos e ambientais, ou mento tendem a ser próximos a correntes
ainda de fatores extrínsecos de ordem meto­ ascendentes ou estuários, os quais são alta­
dológica. O caráter preliminar deste trabalho, no mente produtivos em termos de pesca.
entanto, dificulta a justificativa de concessão de Hassan (1881), ao comparar a forma de
um peso maior a qualquer um destes aspectos, subsistência entre agricultores e caçadores-
sendo possível, inclusive, que tenham atuado coletores, enfatizou que os últimos são capazes
de forma conjugada, em diferentes níveis, de de formar grupos sedentários e com alta
acordo com as diversas fácies culturais que densidade populacional somente em condições
compõem o sistema sambaquiano. excepcionais, quando são ocupadas regiões
Dentre os aspectos acima citados, no onde os recursos são abundantes e concentra­
entanto, a questão da complexidade do sistema dos, citando como exemplo a costa noroeste da
sócio-cultural destes grupos vem ganhando América do Norte. Este autor refere-se também
destaque nas discussões mais recentes, onde ao fato de a disponibilidade de proteína animal,
não há mais espaço para as antigas perspecti­ abundante nos recursos marinhos, ser o mais
vas teóricas onde os construtores de samba­ acentuado fator limitante para o aumento da
quis eram vistos como pequenos grupos densidade populacional humana.
coletores-caçadores que ocupavam estes Analisando a questão sob outra perspecti­
sítios apenas sazonalmente. va, em um trabalho realizado por Neves (1988)
Tenório (1995) argumenta que a maior sobre paleogenética dos grupos pré-históricos
dificuldade em se aceitar a postulação de uma do litoral sul do Brasil, os resultados demons­
ocupação sazonal para os grupos litorâneos tram um alto grau de similaridade biológica
reside na ausência de adornos ou elementos de entre homens e mulheres, concluindo que as
importância ritual, elaborados a partir de unidades exogâmicas de matrimônio encon-
matéria-prima marinha, em sítios de mesma tram-se representadas numa mesma aldeia,
antiguidade localizados no interior. Pois, parece favorecendo o desenvolvimento de um
pouco provável que grupos viessem ao litoral conúbio interno.
em determinadas épocas do ano, sem levarem O autor argumenta que a relação entre
de volta quaisquer elementos litorâneos. Ao exogamia intra-sítio e exogamia interaldeia está
mesmo tempo seria incompreensível que sítios atrelada à demografia. Para haver a possibilida­
litorâneos não apresentassem objetos elabora­ de, portanto, de a estrutura social dos grupos
dos a partir de materiais encontrados no interior. locais dos construtores de sambaquis ter
A autora afirma ainda que, embora Prous desenvolvido um sistema de metades, clãs ou
(1992) cite a presença de raros artefatos líricos linhagens exogâmicas complementares dentro
relacionados ao interior em sítios litorâneos, da própria aldeia, é necessário que a demografia
este autor aceita que estes indícios represen­ desses grupos tenha ultrapassado os limites
tam apenas contatos esporádicos e não podem convencionalmente aceitos para bandos de
ser interpretados como sítios complementares caçadores-coletores, sem o que, a articulação
de pesca e coleta. de todo esse sistema não seria viável.
Por outro lado, estudos ecológicos como Este alto grau de densidade populacional
os de Yesner (1983, 1986 apud Tenório 1995), teria fornecido a base para a emergência de um
revelaram que o litoral não só era extremamente sistema sócio-cultural e ideológico bastante
rico em recursos protéicos, como também complexo.

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões prkíiVninares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

Gaspar (1992), em um estudo realizado para sobre o trabalho. Essas construções monu­
sítios na região do Rio de Janeiro, relacionou as mentais não teriam sido feitas de forma
diferentes classes de tamanho observadas com aleatória, mas obedeceram, com certeza, a um
as características ambientais consideradas projeto ideologicamente determinado.
significativas para a estratégia de implantação Mais uma vez argumentando a favor da
(altura, visibilidade, distância de água potável, emergência de uma complexidade sócio-
proteção contra o vento), constatando a existên­ cultural e ideológica entre os grupos samba­
cia de dois conjuntos de sítios bem definidos. quianos, Lima (1999/2000, 2000) refere-se aos
Segundo a autora, essa ordenação dos zoolitos, artefatos altamente elaborados, que
sítios em classes de tamanho evidencia uma exigem grande talento para a sua produção e
dimensão sociológica ordenadora do sistema configuram trabalho especializado, cuja
sócio-cultural, que aponta para a existência de organização transcende a unidade doméstica,
uma hierarquia entre sítios. assim como sinaliza o surgimento de indivídu­
Lima (1999/2000, 2000) refere-se à expansão os com funções e status diferenciados,
populacional dos grupos sambaquianos, a qual exercendo maior poder e controle.
teria se traduzido na diminuição da distância Diante deste quadro que sugere a existên­
entre os assentamentos, determinando uma alta cia de lideranças institucionalizadas, faz-se
densidade de sítios nas áreas lagunares, e que necessário supor que um sistema sócio-
decerto esta distribuição no ambiente atendeu a cultural e ideológico pode ter atuado como
hierarquias1 intra e intergrupais, cabendo regulador das diferenças e dos conflitos inter-
àqueles com maior prestígio e poder as implan­ populacionais, sem que os indivíduos tives­
tações mais estratégicas para fins de controle sem que, ou quisessem, recorrer ao uso da
territorial, bem como os locais mais favorecidos violência física sistematicamente.
em recursos alimentares, hídricos e minerais. Uma outra tentativa de interpretação
Referindo-se aos monumentais sambaquis poderia passar por questões econômicas, mais
localizados na região de Santa Catarina, com pragmáticas, que não devem, no entanto, ser
dezenas de metros de altura, a mesma autora avaliadas isoladamente, mas como parte de um
afirma que as motivações em geral aventadas produto multifatorial.
para a sua construção, como a procura por Uma vez que os sambaquis encontram-se
lugares mais arejados e protegidos contra concentrados em ambientes altamente produti­
insetos, são evidentemente simplistas, ou vos e que permitem a exploração simultânea de
mesmo ingênuas. A magnitude do fenômeno vários nichos ecológicos, dificilmente a aquisi­
envolveria, inequivocadamente, hierarquia, ção de recursos, fator muitas vezes discutido nas
prestígio e não-igualitarismo, demostrando o interpretações sobre violência em populações
controle de uma elite sobre os recursos e pré-históricas (ver, por exemplo, Carneiro 1992,
Larsen, 1999), seria um motivo para intensos e
freqüentes combates entre os grupos litorâneos.
(1) Ressaltamos que o termo “hierarquia” deve ser Por outro lado, as disputas por território e
visto com cautela quando empregado para populações recursos entre grupos construtores de samba­
construtoras de sambaquis, uma vez que não dispo­ quis e grupos interioranos parece pouco
mos, até o momento, de dados arqueológicos que provável em função da limitação geográfica
comprovem a existência de uma estratificação social
imposta pela Serra do Mar, com relevo escar­
bem definida, além de um sistema político centraliza­
do, tal com o nas “chefias” e nos “estados”.
pado e coberta por uma vegetação tropical
Os processos de estratificação social e centralização exuberante, a qual teria atuado como uma
política, inclusive, são apontados na literatura barreira poderosa para o deslocamento desses
especializada com o um dos fatores que promovem grupos em sentido transversal à costa.
conflitos e guerras entre populações pré-históricas. Em apenas três pontos uma topografia
Não pretendemos, com esta observação, classificar os
grupos sambaquianos dentro de qualquer categoria
mais suave ao longo de vales facilita a trans­
sócio-política. Apenas, admitimos a existência de posição dessa barreira, e eles certamente
uma organização com plexa, com posições de funcionaram como vias de comunicação entre
ascendência e liderança dentro do grupo. o litoral e o interior: os vales dos rios Jacuí,
LESSA , A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

Itajaí e Ribeira. As evidências disponíveis, no excede a dois metros, não devendo representar,
entanto, parecem sugerir muito mais estratégi­ portanto, um ponto de observação estratégico.
as oportunistas de penetração nesses vales Não devem ser descartadas, por outro
por parte de grupos que já estavam bem lado, as rixas intragrupais, de ordem pessoal,
estabelecidos e com um sistema de subsistên­ ou ainda os conflitos domésticos, comuns em
cia consolidado em ambientes costeiros, que qualquer sociedade. No caso dos grupos aqui
propriamente deslocamentos sistemáticos estudados, questões relacionadas a aspectos
ligando diferentes zonas ecológicas para fins ideológicos, de caráter êmico, podem ter
de exploração sazonal (Lima 2000). forjado um comportamento pouco agressivo, já
O mesmo raciocínio parece correto no que esses grupos poderiam ter desenvolvido
sentido inverso, sendo pouco prováveis as outros mecanismos para resolução dos seus
investidas dos grupos interioranos até o litoral conflitos internos, como as competições e as
para a exploração sazonal de recursos marinhos. lutas rituais. Essas inferências, neste caso,
Quanto às investidas para ocupação constituem-se especialmente especulativas
permanente de território, os dados arqueológi­ devido à total ausência de dados etnográficos
cos disponíveis não apontam para a penetração para esses grupos.
de sistemas sócio-culturais totalmente distintos De qualquer forma, aponta-se mais uma vez
nas camadas de ocupação. Gaspar (1995) afirma para a possibilidade de que padrões sócio-
que alguns sambaquis apresentam cerâmica nos culturais e ideológicos específicos, mais
últimos níveis de ocupação, sendo, no entanto, complexos e sofisticados do que inicialmente
pouco provável que a presença deste material propostos para os grupos construtores de
indique a ocupação do sítio por outro grupo sambaquis, possam ter mantido o seu funciona­
cultural, já que a cerâmica é acrescentada à mento e o equilíbrio interno e externo, mesmo
totalidade dos materiais encontrados sem que na ausência de coerção ou violência física.
ocorram modificações significativas. Segundo a Fatores de ordem metodológica, como o
autora, dificilmente grupos ceramistas relegari­ mau estado de preservação de algumas
am ao segundo plano todos os seus costumes amostras, além de a maior parte delas consti­
- vida em aldeia sem acumulação de restos tuir-se numericamente pouco representativas,
alimentares, eventualmente horticultura, aparato podem ter subestimado os resultados encon­
tecnológico distinto etc. - para se adequarem trados. Apenas mediante a análise futura de
totalmente aos hábitos dos grupos litorâneos, outras coleções, além de uma revisão nas
mantendo apenas a sua cerâmica. amostras já estudadas, buscando-se específica
Ainda que muitas interpretações possam e minuciosamente os sinais de violência,
ser aventadas para o fato de os grupos poderemos confirmar a situação de equilíbrio
sambaquianos terem construído grandes que parece apontar para esses grupos.
montes, alguns deles chegando à incrível Convém reiterar que este trabalho não
dimensão de 20 ou 30 metros de altura, é pretende caracterizar os grupos construtores
pertinente expor a proposição de Tenório de sambaquis como “povos pacíficos”, que
(1995), que acredita na possibilidade de esses viviam em permanente estado amistoso entre si
assentamentos terem uma função estratégica e com os demais grupos. Apesar de a violência
defensiva, pois o sítio localizado numa eleva­ física não parecer ser parte inerente a este
ção, além de possibilitar que o inimigo seja sistema, estudos futuros podem apontar para
visualizado, permitiria uma melhor defesa. eventos violentos pontuais, que assinalem
Os resultados iniciais aqui observados, no processos temporários e específicos.
entanto, não apóiam esta proposição, uma vez Ainda que os grupos em questão tenham
que, para que os montes tivessem sido cons­ sido contextualizados de forma abrangente, e
truídos com uma finalidade defensiva, seria ainda que esta hipótese preliminar tenha sido
necessário que os ataques ocorressem com formulada sem nenhum recorte espacial ou
certa freqüência, constituindo-se uma ameaça temporal específicos, não se pretende aqui
real ou potencial para o grupo. Por outro lado, ignorar deliberadamente as possíveis varia­
muitos sambaquis apresentam altura que pouco ções inerentes aos sub-sistemas que compõem

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

o que denominamos genericamente de grupos O pequeno número de sítios que foram


construtores de sambaquis. submetidos a análises paleopatológicas,
Não se trata de concordar ou discordar da muitos contando com uma amostra em mau
perspectiva teórica baseada na concepção de estado de conservação e composta por
que todos os sítios que apresentam associação, poucos indivíduos, confere à nossa análise um
num mesmo espaço, de moradia, de cemitério e caráter preliminar. Embora ainda seja cedo para
de descarte de restos alimentares e industriais, fazer inferências mais abrangentes quanto à
foram construídos por grupos vinculados à questão da violência entre grupos construto­
mesma tradição cultural (Gaspar 1994/95, 1995). res de sambaquis, a variação geográfica e
Apenas com os dados arqueológicos e temporal que abrangeu o estudo obriga a uma
paleopatológicos disponíveis até o momento, e reflexão sobre o significado dos resultados
sem a possibilidade de uma contextualização apresentados.
mais complexa que penetre nos aspectos Ainda que os estudos futuros venham a
simbólicos desses grupos, torna-se impossível confirmar mais uma vez a hipótese aqui
a tentativa de identificação de possíveis formulada, a ausência de uma contextualização
variações quanto à interpretação e aplicação, mais complexa, proveniente principalmente dos
por parte deles, do que é entendido por nós dados etnográficos, deixará sempre uma lacuna
como violência física. com relação à forma como esses grupos
equilibravam os momentos de tensão social,
inter ou intragrupais, invariavelmente existen­
Conclusões tes em qualquer sociedade, em maior ou menor
grau.
A hipótese inicial formulada neste
trabalho foi confirmada a partir da observação
de baixas prevalências para traumas agudos Agradecimentos
diretamente associados à violência. A inter­
pretação para esses resultados pode estar A Dr3 Sheila Mendonça de Souza (ENSP/
relacionada a fatores sócio-culturais, econô­ FIOCRUZ) pelas críticas e sugestões dadas
micos e ambientais, ou ainda a fatores durante a elaboração do trabalho; a Dr3 Maria
metodológicos, que podem ter atuado em de Lourdes Lemos, pelas fotos que ilustram
conjunto ou isoladamente. este trabalho.

LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. Preliminary thoughts about the occurence of violence
among the Brazilian shellmound builders: analysis of the skeletons from Cabeçuda
(Santa Catarina) and Arapuan (Rio de Janeiro) sites. Rev. do Museu de Arqueo­
logia e Etnologìa, São Paulo, 11: 77-93, 2001.

ABSTRACT: This research was to test the initial hypothesis that shellmound
builders of brasilian seashore were not usually involved in physical violence. Sixty
two skulls from the Cabeçuda site (Santa Catarina) and eleven skeletons from the
Arapuan site (Rio de Janeiro) were analysed in order to search for typical lesions
that could be associated to episodes of violence. A revision about this topic in
the littérature was also performed, including the post-cranial traumatic lesions data
observed for the Cabeçuda Site. Low prevalence (4.8 %) for the Cabeçuda
skeletons, and the absence of violent trauma for the Arapuan skeletons, confirm
the proposed hypotesis. Socio-cultural, economic and environmental factors
could explain this behaviour, although methodological factors cannot be excluded.

UNITERMS: Paleopathology - Acute trauma - Violence - Shellmound.

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LE SSA , A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São
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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 20 de ju n ho de 2001.

93
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11'. 95-108, 2001.

SISTEMA TECNOLÓGICO E ESTILO:


AS IMPLICAÇÕES DESTA INTER-RELAÇÃO NO
ESTUDO DAS INDÚSTRIAS LÍTICAS DO SUL DO BRASIL

Adriana Schmidt D ias*


Fabíola Andréa Silva**

DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistema tecnológico e estilo: as implicações desta interrelação no
estudo das indústrias líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 95-108, 2001.

RESUMO: A partir da avaliação dos conceitos de sistema tecnológico e


estilo, analisaremos a noção de estilo tecnológico e as suas implicações no
estudo de indústrias líticas. Paralelamente, refletiremos sobre a sua aplica­
bilidade no estudo dos conjuntos líticos das Tradições Umbu e Humaitá,
tomando como referência dois estudos de caso.

UNITERMOS: Arqueologia Sul-brasileira - Tecnologia litica - Estilo -


Caçadores- coletores.

Sistema tecnológico e estilo que podem se influenciar mutuamente e, neste


caso, constituir o sistema tecnológico propria­
O uso do conceito de sistema tecnológico mente dito; e 3) do sistema tecnológico em sua
implica na compreensão de que as técnicas inter-relação com outros sistemas culturais.
desenvolvidas por uma dada sociedade não Nas últimas décadas, os estudos sobre os
são elementos isolados, mas estão constituí­ sistemas tecnológicos têm se desenvolvido,
das sistemicamente. Segundo Lemonnier (1992: principalmente, a partir de dois enfoques
5-9), podemos entender este caráter sistêmico distintos. O primeiro entende que os sistemas
das técnicas a partir de três níveis distintos: 1) tecnológicos são o resultado de estratégias
da técnica em si, no sentido de que ela se adaptativas, inter-relacionadas com as limita­
constituiu na inter-relação de elementos como ções e possibilidades do meio natural e as
matéria, gestos, energia, objetos e conheci­ demandas da organização sócio-econômica
mento; 2) das diversas técnicas ou conjuntos das populações. O segundo concebe os
técnicos desenvolvidos por uma sociedade, sistemas tecnológicos como uma construção
social resultante de escolhas tecnológicas
culturalmente determinadas.
Na primeira perspectiva - inspirada pelos
(*) Departamento de História e NUPArq/Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul.
pressupostos da Antropologia Econômica, da
(**) Departamento de História da U niversidade Ecologia Cultural e da Antropologia Ecológica
Luterana do Brasil, Canoas, RS. - os sistemas tecnológicos são analisados

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D IA S, A .S ., SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas. do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

como um meio a partir do qual os homens sobre as técnicas corporais foi, segundo
viabilizam sua existência frente ao meio Lemonnier (1992:1), o inspirador desta que se
natural. Neste sentido, a investigação volta-se poderia chamar de “antropologia dos sistemas
para o entendimento das inter-relações entre tecnológicos”. Neste trabalho, Mauss reflete
os sistemas tecnológicos e aspectos como sobre a arbitrariedade cultural de nossos
disponibilidade ou escassez de matérias- comportamentos mais casuais, definindo o
primas, características físicas dos materiais, corpo como o “primeiro e mais natural objeto
atribuições funcionais a que se destinam os técnico e, ao mesmo tempo, meio técnico do
objetos, e organização e eficiência das popula­ homem” ([1935] 1974: 217). Depois dele, os
ções na ação e exploração do meio natural. trabalhos descritivos e comparativos de Leroi-
Trabalhos como os de Meillassoux ([1967] Gourhan ([1943] 1984, [1945] 1984) e as refle­
1978), Godelier (1971) e Rappaport (1968) são xões de Lévi-Strauss (1976, 1986) sobre o
exemplos deste enfoque teórico, a partir do caráter sistêmico das técnicas constituíram-se
qual os sistemas tecnológicos são analisados em referência obrigatória nestes estudos.
como o resultado de coerções que se originam Em nosso trabalho, pretendemos discutir
do meio natural e do tipo de organização da um aspecto dos sistemas tecnológicos que
produção e que afetam, por sua vez, os demais vem sendo desenvolvido, principalmente,
aspectos da vida social como o ciclo ritual, as pelos pesquisadores vinculados a esta
relações políticas e de parentesco, entre segunda vertente teórica por nós destacada
outros (Lemonnier 1992: 14-17). acima. Ou seja, trata-se da idéia de que os
Quanto à segunda perspectiva, os siste­ sistemas tecnológicos estão relacionados com
mas tecnológicos são analisados, em contra­ os sistemas de representação social e se
posição, como um produto e um recurso de constituem como um local de manifestação
criação e manutenção de um ambiente natural e estilística. Neste caso, a noção de estilo
social, simbolicamente constituídos. A investi­ tecnológico torna-se um conceito fundamental
gação está voltada para o entendimento da para o entendimento dos conjuntos tecnoló­
relação destes sistemas com os demais gicos de diferentes grupos culturais, podendo
sistemas de representação social. Neste ser definido como o “modo como as pessoas
sentido, a tecnologia é entendida como signo realizam o seu trabalho, incluindo as escolhas
e, portanto, carregada de significados e pode feitas por eles no que se refere aos materiais e
ser definida como o corpus de artefatos, às técnicas de produção” (Reedy & Reedy
comportamentos e conhecimentos transmiti­ 1994: 304) . A noção de estilo tecnológico
dos de geração a geração e utilizado nos permite compreender o estilo não apenas como
processos de transformação e utilização do um padrão material que se manifesta na
mundo material.1 Em outras palavras, a tecno­ morfología e decoração dos artefatos, mas,
logia passa a ser definida como um “fato social também, como algo que é inerente e subjacente
total” que não tem apenas uma dimensão aos processos de produção a partir dos quais
material ligada à esfera tecno-econômica, mas estes aspectos visuais são uma resultante.
que está simultaneamente vinculada a aspec­ Cabe ressaltar que este conceito deriva de
tos da organização social (por exemplo, um debate mais amplo sobre os fenômenos
relações de gênero, idade ou étnicas) e estilísticos que vem sendo travado entre
interrelacionada com as esferas da mitologia, vários pesquisadores de diferentes filiações
cosmología e religião (Pfaffenberger 1988). teóricas. As discussões estão longe de
Esta concepção de tecnologia está profunda­ alcançar um consenso, podendo-se constatar
mente enraizada na tradição desenvolvida por que o estilo não é um fenômeno unidimen­
autores como Mauss, Leroi-Gourhan e Lévi- sional, integrando várias concepções e, ao
Strauss. O artigo seminal de Mareei Mauss mesmo tempo, apresentando uma multi-
funcionalidade nos diferentes contextos sócio-
culturais. Há pesquisadores que investigam
(1) Adaptado de Schiffer & Skibo (1987:595) e como o estilo pode estar relacionado a proces­
L em onnier (1 9 9 2 :1 ). sos de difusão a partir de estudos comparati­

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D IA S, A .S.; SILVA, F.A. Sistem a tecnológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

vos, com uma dimensão histórica e regional nestes padrões são explicadas, principalmente,
(Davis 1983, Stahl 1991). Outros, estão interes­ em termos dos processos de difusão e migra­
sados em compreender a relação dos aspectos ção. O estilo, entre os arqueólogos tradicio­
estilísticos com a organização social (Amold nais, pode ser lido na forma do artefato e
1983), com a identidade social e individual variações morfológicas nos conjuntos artefa-
(Wiessner 1983), com os valores sociais e tuais são interpretadas como resultantes da
religiosos (David et al. 1988), com os contex­ ação de grupos étnicos diferentes. A ordena­
tos de ensino-aprendizagem (Roe 1995), com a ção de artefatos em tradições, fases ou
cosmología (Layton 1987), com as estruturas indústrias passa pela noção de que quanto
cognitivas (Washburn 1983) e com as estraté­ maior a proximidade cultural, maior será a sua
gias de poder (Pauketat & Emerson 1991). semelhança estilística. Também a funcionalida­
Finalmente, alguns autores voltam-se a de dos artefatos é definida a partir da forma,
investigar como o estilo pode estar subjacente mas não é levada em consideração na interpre­
ou inserir-se nos processos de produção da tação das semelhanças e diferenças dos
cultura material (Gosselain 1992, Dietler & conjuntos. Neste sentido, estilo e função são
Herbich 1989). esferas dicotômicas sendo que a primeira é
Estas diferentes perspectivas analíticas e sempre explicada em termos do contexto
explicativas sobre a categoria estilo comparti­ histórico-cultural e/ou etnicidade e a segunda
lham, no entanto, alguns princípios básicos: 1) em termos de ação física.
que o estilo refere-se a um determinado modo A discussão sobre a relação entre estilo e
de fazer algo ou alguma coisa; 2) que este função adquiriu novas conotações a partir do
modo de fazer implica em escolhas dentre enfoque processualista, sendo ilustrada no
possibilidades alternativas; e 3) que é próprio debate desenvolvido entre Sackett (1977, 1982,
de um determinado tempo e lugar (Hegmon 1986, 1993) e Binford (1986, 1989) quanto à
1992). variabilidade das indústrias líticas e a sua
Nosso interesse reside na discussão sobre relação com o conceito de estilo. Suas pers­
a inter-relação entre sistema tecnológico e pectivas originaram-se a partir da reflexão
estilo, mais precisamente, como esta discussão crítica de ambos os autores quanto à variabili­
tem sido levada a cabo no que se refere às dade dos conjuntos líticos do Paleolítico
indústrias líticas e como ela pode ser incorpo­ Médio e Superior europeu, interpretados
rada para problematizar o estudo das Tradi­ tradicionalmente dentro de uma perspectiva
ções líticas do sul do Brasil. taxonômica-classificatória, a partir dos traba­
lhos de François Bordes (1988, 1992).
Para Binford (1962), a variabilidade dos
Estilo e indústrias líticas conjuntos de artefatos deve ser compreendida
tendo em vista a função contextual primária
O debate em tomo da aplicabilidade do destes, a partir de uma concepção sistêmica de
conceito de estilo para o estudo de indústrias cultura. Sua variabilidade diz respeito ao seu
líticas é de longa data na Arqueologia e não papel nos subsistemas tecnológico, social e
encontrou consenso até o presente. As ideológico que compõem o sistema cultural
divergências derivam de orientações teóricas total. Dentro desta perspectiva, os artefatos
diferenciadas e centram-se, principalmente, na podem ser classificados em três grupos pela
questão da variabilidade dos conjuntos líticos sua relação com a função: tecno-econômicos,
em sua relação com estilo, função e etnicidade. sócio-técnicos e ideo-técnicos. Os artefatos
Para a arqueologia tradicional, o estilo é tecno-econômicos têm sua função primária
sempre um código diagnóstico de tempo, lugar relacionada ao ambiente físico, sendo sua
e etnicidade. A interpretação das semelhanças variabilidade explicável em termos adaptativos.
e diferenças nos padrões morfológicos de Os artefatos sócio-técnicos correspondem a
artefatos costuma ser feita em termos de elementos materiais, cujo contexto funcional
unidades histórico-culturais com conotações principal é o subsistema social, funcionando
étnicas e as mudanças ao longo do tempo como um meio extra-somático de articulação

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

dos indivíduos entre si em grupos coesos fa to re s ] podem o ferecer um ar de fa m ilia rid a d e


capazes de, eficientemente, manterem-se e aos conjuntos de artefatos que sugerem um
estilo étnicam ente sign ificativo (Sackett 1982:
manipularem a tecnologia. Qualquer padrão de
106).
mudança nesta categoria de artefatos é
relacionada a alterações na estrutura social. Para o autor, o estilo não se reduz à forma
Por fim, os artefatos ideo-técnicos têm como final dos artefatos, mas está presente na
contexto funcional primário os componentes escolha de um tipo particular de lasca como
ideológicos do sistema social. Seriam itens que suporte de um artefato, na forma de desgaste e
significam ou simbolizam racionalizações quebra que este sofre durante o uso, entre
ideológicas do sistema social e promovem um outros aspectos que possuem significância
meio simbólico no qual os indivíduos são étnica.
enculturados, enquanto participantes do Sackett (1986: 630) considera que a
sistema social. Qualquer mudança nesta principal distinção de seus pontos de vista
categoria de artefatos é compreendida como com relação a Binford diz respeito à concepção
reflexo de mudança social. Atravessando distinta de ambos autores sobre onde reside o
todas estas classes gerais de artefatos, estão estilo. Para Binford, o estilo reside em um
as características formais que podem ser domínio formal distinto e fechado em si mesmo
chamadas de estilísticas que não são direta­ - algo acrescentado ou acessório (adjunto) à
mente explicáveis em termos da natureza da forma essencial ou instrumental que o artefato
matéria-prima, da tecnologia de produção ou ocupa. Para Sackett a noção de estilo não é um
da variabilidade da estrutura tecnológica e domínio diferente da forma, mas sua qualidade
social do sistema cultural. Suas propriedades latente e inerente a qualquer variação artefa-
formais têm por função proporcionar ao grupo tual, na medida em que a forma é constituída
identidade e reconhecimento social, compreen­ de escolhas feitas pelo artesão, consciente­
dendo-se qualquer mudança de estilo como mente ou não, de um amplo espectro à sua
produto de mudança sócio-cultural. O estilo é disposição. Estas escolhas determinam a
concebido enquanto uma forma acessória variação isocréstica (2) e são ditadas pela
(adjunct form), cujas qualidades formais têm tradição na qual o artesão foi enculturado
por função promover uma base simbólica de como membro de um grupo social. Por ser
identidade de grupo, associada a itens não limitada socialmente, a variação isocréstica
utilitários da cultura. traduz-se em noções de design peculiares a
Sackett (1982: 82-93) considera que o certos lugares e tempos, sendo diagnostica de
enfoque processual sobre estilo peca por uma etnicidade. Estilo e função são noções comple­
visão funcional extrema, ao entendê-lo como mentares e as variações isocrésticas podem
um elemento não utilitário da variação formal, ser vistas em sentido amplo, abrangendo
funcionando simbolicamente como um tipo de desde a cadeia operatoria que dá origem ao
iconologia social para identificação de grupos artefato até seu uso e descarte.
humanos. Estilo, para Binford, corresponderia Portanto, estilo e função são aspectos
a características formais que não podem ser complementares que determinam a morfologia
explicadas em termos de natureza da matéria- dos artefatos e as características das cadeias
prima ou da tecnologia, residindo em um operatorias que lhes dão origem. O aspecto
segmento muito restrito da variação formal funcional de um artefato reside na maneira
exibida pelo artefato. Ao contrário, para como a sua forma serve a um determinado fim e
Sackett (1982:105), o estilo não se restringe a o aspecto estilístico reside na variante étnica
uma única categoria tipológica, como a ou escolha isocréstica em que esta forma
morfologia. Segundo este:
E stilo p o d e ser encontrado na escolha da
m atéria prim a, nas técn icas de lascam ento p a ra
redução de núcleos e na produ ção de artefatos, (2) Sackett elabora este conceito a partir de um
nos tipos altern ativos de retoques m arginais, nos neologism o do grego Isos - igual e chrestikôs - bom
vá rio s ângulos de uso de borda, na form a de para o uso, útil, usual, que sabe se servir de, habilitado
uso e rejuvenescim ento do artefato. (...) [Estes para se servir de (Bailly 1990:2154).

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

surge (Sackett 1977:75). O autor argumenta e natural) na qual vive (Binford 1989: 55-60).
que quando analisamos um artefato em termos Porém, a variabilidade funcional tem sempre
funcionais salientamos sua “voz ativa” e a implicações seletivas e o contexto desta
dimensão estilística seria a sua “voz passiva”, seleção pode variar independente das identi­
como um código que sinaliza a “arena em que dades sociais. O conceito de variação isocrés-
os papéis são performados” (Sackett 1977:370). trica seria, portanto, improdutivo, pois não
Se considerarmos a noção de variação permitiria reconhecer a diferença de conjuntos
isocréstica de Sackett (1982), podemos perceber produzidos por membros de um mesmo grupo
que, em parte, este está de acordo com uma étnico e conjuntos análogos produzidos por
visão tradicional de que os estilos refletem membros de diferentes grupos (Binford 1989:
etnicidade, na medida em que as escolhas 62-65).
isocrésticas são para ele contextualmente Refletindo sobre as críticas de Binford,
determinadas. No entanto, diferencia-se deste Sackett (1993: 38) aponta que a possibilidade
enfoque ao dissociar forma de função, pois, de diferenciação de conjuntos produzidos,
segundo Sackett, o estilo não é simplesmente similares ou não, seriam ditadas pelo contexto
um padrão que se manifesta na forma, mas trata- de deposição dos artefatos. No caso dos
se de uma propriedade da forma em si, na artefatos líticos também deve ser considerado
medida em que esta é o resultado de escolhas e que os padrões de variabilidade podem derivar
é nelas que precisamente reside o estilo. de variações étnicas no contexto tecnológico,
Binford (1986), por sua vez, ressalta que a dotadas por diferenças territoriais em sua
relação entre estilo e função, por si só não relação com diferentes recursos, aspectos da
basta para dar conta explicativamente dos demografia, do sistema de assentamento, da
fenômenos que determinam a variabilidade dos densidade dos artefatos e da maneira como
conjuntos de artefatos. Baseado em estudos estes se agrupam nas superfícies ocupadas
etnoarqueológicos, critica a associação da dos sítios. Compreender estilo e função como
variabilidade de formas dos conjuntos dos aspectos indissociáveis nas escolhas isocrés­
artefatos à noção de estilo enquanto correlato ticas permite observar os contextos dos sítios
de etnicidade. Para o autor, a variabilidade dos de uma área de forma mais ampla da que a
conjuntos de artefatos é funcional, devendo sugerida por Binford. Assim, uma técnica
esta ser entendida a partir da relação entre específica de descarne pode transmitir melho­
classes de restos materiais diferencialmente res informações etnicamente significativas do
estruturados pela organização interna de um que a tipologia dos artefatos com o qual o
sistema cultural (Binford 1986: 558-559). descarne foi feito (Sackett 1993: 35).
Binford defende que a função é uma concep­ Jelinek (1976: 21-22) adverte ainda que o
ção mais ampla do que uso real de um item no maior problema na análise e na interpretação
sistema socio-cultural, relacionada às condi­ estilístico-funcional de materiais provenientes
ções interativas em um sistema. Condições de sítios puramente líticos reside na natureza
situacionais diferenciadas podem condicionar das coleções. Deve-se levar em consideração
o uso de diferentes formas de artefatos no que a maior parte do material lítico presente
desenvolvimento de tarefas análogas ou a nos sítios provavelmente representa o que não
produção de restos arqueológicos altamente é mais desejado por seus habitantes quando
variáveis por um mesmo grupo nos diferentes estes abandonaram o local. Da mesma forma, o
sítios que ocupam. O autor ressalta que a potencial das coleções para estudos estilís­
variabilidade de conjuntos artefatuais pode ticos pode variar em função das técnicas de
caracterizar certos lugares e períodos de escavação e amostragem empregadas no
tempo, porém não implica que seja diagnostica trabalho de campo, dos contextos de deposi­
de identidade étnica. Para Binford, as escolhas ção natural, do sistema de assentamento do
isocrésticas correspondem à essência da grupo estudado e da natureza dos recursos a
variabilidade organizacional em um grupo sua disposição.
étnico, promovendo-lhe flexibilidade adapta- Um aprofundamento do debate sobre a
tiva para lidar com a dinâmica ambiental (social relação entre estilo, função e etnicidade foi

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DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

desenvolvido por Sackett (1985, 1993) e indivíduos entre si. Neste caso, na variação
Wiessner (1985, 1993) a partir do trabalho da nas pontas San não se trata de uma variação
autora sobre a variabilidade das pontas de isocréstica, mas sim de um comportamento
projétil dos San do Kalahari, no qual procura estilístico, pois não corresponde a uma
demonstrar que a variação estilística é utilizada equivalência em uso, mas em uma demarcação
como um instrumento para transmitir mensa­ de fronteiras. Em última instância, a discussão
gens a respeito da identidade social e indivi­ entre eles gira em torno de onde reside o estilo
dual daqueles que as produzem (Wiessner e do questionamento da intencionalidade ou
1983). Segundo Wiessner, quanto maior o nível não do estilo como um código de etnicidade.
de interação social, mais sutil é a diferença No desenvolvimento deste debate, ambos
entre as pontas de projétil, porém num contex­ os autores relativizam suas posições. Sackett
to social mais amplo, elas servem como (1993) passa a aceitar a idéia de que as varia­
demarcadoras dos grupos de linguagem San. ções isocrésticas podem, em alguns casos,
São um instrumento fundamental nas estratégi­ resultar de escolhas conscientes por parte dos
as de sobrevivência destes grupos, sendo artesãos e servir como um código para trans­
constantemente distribuídas nas redes de mitir mensagens. Wiessner (1993), por outro
reciprocidade o que implica no acesso dos lado, admite que o estilo relaciona-se também
indivíduos pertencentes aos diferentes grupos com a variação isocréstica, pois as diferentes
de linguagem aos recursos existentes nos pontas San são equivalentes em uso. Neste
vários territórios ocupados pelos San. Para a sentido, ambos concordam que a dicotomia
autora, o estilo é um elemento ativo na trans­ entre estilo e função não é pertinente na
missão de mensagens e, no caso dos San, é análise dos conjuntos artefatuais. Wiessner
empregado conscientemente nos processos de insiste, porém, que alguns atributos dos
identificação social e individual. artefatos podem ser utilizados, mais do que
A crítica de Sackett (1985) a este trabalho outros, como instrumentos ativos de comuni­
fundamentou-se sobre a noção de que estilo cação de etnicidade e identidade social e
simboliza etnicidade a partir de uma auto­ individual. Na mesma direção das críticas de
determinação consciente dos indivíduos. Para Wiessner ao modelo de Sackett encontra-se
ele, a variação que ocorre nos conjuntos de Lemonnier (1992), segundo o qual a noção de
pontas de projétil dos San é uma variação variação isocréstica é insuficiente para o
isocréstica inconsciente que surge em função estudo dos sistemas tecnológicos, pois é
das diferentes tradições artesanais em que os necessário que se investiguem as bases
indivíduos de variados grupos de linguagem sociais das escolhas tecnológicas das quais
se inserem. Além disso, para Sackett, a inter­ esta é resultante e que se verifique como estas
pretação de Wiessner também incorre na escolhas se inserem em um sistema de signifi­
separação entre estilo e função, na medida em cados.
que ela aponta que apenas alguns elementos Acrescentando outra perspectiva ao
da morfología das pontas são atributos debate em questão, Schiffer e Skibo (1997)
estilísticos, empregados para transmitir defendem que a compreensão da variabilidade
mensagens. Segundo Sackett, o estilo é dos conjuntos artefatuais relaciona-se à
subjacente a todas as características dos natureza das escolhas tecnológicas, sendo os
artefatos e reside nas escolhas isocrésticas conceitos de estilo e função não explicativos
feitas dentre alternativas variadas durante para se entender os processos que geram e
todo o processo produtivo, sendo a morfo­ motivam as escolhas feitas pelo artesão. Para
logía uma decorrência destas escolhas. os autores, a variabilidade artefatual é definida
Por sua vez, Wiessner (1985) destaca que pelo conhecimento e experiência do artesão e
existe uma diferença comportamental que gera por aspectos situacionais. O primeiro estaria
as escolhas isocrésticas, produto de um relacionado com as diferenças individuais, as
comportamento repetitivo e de imitação, e as estruturas de aprendizagem, a percepção e
escolhas estilísticas, geradas a partir de um decisão de fazer, a transmissão de conheci­
processo dinâmico de comparação dos mento e a tradição tecnológica. O segundo

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DIA S, A .S.; SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

vincula-se a aspectos como a procura do mesma região que podemos antever a possibi­
material, a manufatura, o transporte, a distri­ lidade de distinção entre identidades sociais
buição, o uso, a estocagem, a manutenção e ou culturais no registro arqueológico de
reparo, a reutilização e a deposição. Portanto, caçadores-coletores. Contudo, esta percepção
não haveria sentido questionar se a causa da nunca pode estar dissociada de uma análise
variabilidade é estilística ou funcional, mas contextual, na medida em que um estilo
investigar sistematicamente os processos de tecnológico só adquire sentido quando
ordem comportamental, social e ambiental dos compreendido como parte de um sistema
quais ela resulta. Embora Schiffer e Skibo tecnológico e este, por sua vez, de um sistema
neguem a relevância destes conceitos para o cultural mais amplo. Assim, no resgate das
entendimento da variabilidade, suas premissas cadeias operatórias de uma determinada
sobre a inter-relação entre performance, indústria lítica, estas devem ser compreendi­
escolhas técnicas e propriedade formal do das em conjunto e associadas ao contexto
artefato correspondem, de fato, à idéia da situacional da região estudada para possibili­
inter-relação entre estilo e função revisitada. tar a interpretação da variabilidade artefatual.
Fazendo um balanço dos pontos de vista No caso do estudo das indústrias líticas
analisados, poderíamos destacar alguns do sul do Brasil, estas discussões sobre a
aspectos que nos parecem centrais para o natureza dos sistemas tecnológicos e a
estudo da variabilidade de indústrias líticas: dimensão estilística das tecnologias são
a) que a variabilidade dos conjuntos de fundamentais, pois nos obrigam a tornar mais
artefatos líticos é resultado de escolhas complexos os nossos parâmetros de análise
tecnológicas, culturalmente determinadas, e sobre as mesmas.
que estas escolhas são indissociáveis da
função, na medida em que os artefatos são
idealizados para alcançar determinados fins; As indústrias líticas das
b) que estas escolhas tecnológicas Tradições Umbu e Humaitá
refletem estilos tecnológicos que, por sua vez,
residem na seleção dos materiais, técnicas e As reflexões desenvolvidas sobre os
seqüências de produção e nos resultados conceitos de sistema tecnológico e estilo
materiais destas escolhas; tecnológico em suas implicações para o estudo
c) que os estilos tecnológicos, sendo o de indústrias líticas abrem a possibilidade para
produto de uma tradição cultural, podem servir se repensar as Tradições arqueológicas pré-
como indicadores de identidades sociais e cerâmicas do sul do Brasil. Neste item objeti­
culturais. vamos levantar alguns tópicos neste sentido,
No entanto, o estabelecimento da diferen­ avaliando as lacunas existentes quanto aos
ciação de grupos culturais a partir de sistemas dados atualmente disponíveis nessa área e
tecnológicos distintos depende da compara­ destacando dois estudos de caso, cujos
ção contextual dos seguintes tipos de informa­ resultados permitem levantar propostas
ções: interpretativas associadas à questão do estilo.
a) análise comparativa de conjuntos As pesquisas arqueológicas desenvolvi­
tecnológicos líticos associados a diferentes das na região sul brasileira, entre as décadas
contextos arqueológicos de uma dada região; de 1960 e 1970,3 identificaram centenas de
b) identificação do estilo tecnológico
subjacente às escolhas técnicas que origina­
ram diferentes categorias de artefatos;
c) interpretação da funcionalidade dos (3) Estas pesquisas associavam -se ou seguiam as
contextos de deposição destes conjuntos de orientações teórico-m etod ológicas do Programa
Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA),
artefatos, pois forma e função são aspectos
coordenado por Betty M eggers e Cliford Evans. Para
indissociáveis no estudo do estilo. uma análise de seu processo de implementação e das
É da comparação entre estilos tecnoló­ orientações seguidas pelo Programa ver Dias (1994
gicos de indústrias líticas dos sítios de uma 1 9 9 5 ).

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DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

sítios líticos classificados como pertencentes a pontas de projétil líticas foram associadas a
duas tradições tecnológicas em função da uma unidade histórico-cultural e, em oposição a
presença de determinados tipos de artefatos esta, aquelas nas quais as pontas estavam
diagnósticos: as pontas de projétil líticas, ausentes foram relacionados à outra unidade,
demarcando a Tradição Umbu, e os grandes subentendendo a existência de dois grupos
bifaces e talhadores que representam a caçadores-coletores distintos.
Tradição Humaitá (Meggers & Evans 1977). Os Em segundo lugar, a metodologia de
trabalhos de síntese, posteriormente elabora­ campo utilizada nas pesquisas que definiram
dos, apontaram uma dispersão espacial e as Tradições Umbu e Humaitá contribuiu para
temporal correlata,4 estando suas principais este quadro (Evans & Meggers 1965). Na
diferenças marcadas em termos ecológicos. medida em que o objetivo que orientou estes
Assim, a Tradição Umbu estaria centrada em trabalhos iniciais era identificar a distribuição
áreas abertas e de ecótone, entre floresta e espaço-temporal dos conjuntos pré-históricos
campo, e a Tradição Humaitá associada à sul brasileiros, os métodos de campo emprega­
exploração de ambientes florestais do planalto dos foram a seleção de áreas amplas (princi­
(Kem 1981,1983; Ribeiro 1979; Schmitz 1981, pais vales de rios) que, em sua maioria,
1984,1987). apresentavam contextos arqueológicos e
Uma revisão destes trabalhos, no entanto, ecológicos extremamente diversificados. Por
aponta uma série de lacunas que comprometem outro lado, os trabalhos de campo conduzidos
as interpretações sobre o significado da através de estratégias oportunísticas, privilegi­
variabilidade lítica entre ambas as Tradições. aram coletas assistemáticas de superfícies e
Em primeiro lugar, deve-se destacar o enfoque sondagens em níveis artificiais (através de um
teórico-metodológico empregado em sua ou dois poços testes por sítios) oferecendo
definição. Seguindo uma perspectiva histórico- uma amostragem dispare no que se refere aos
cultural, o fator presença/ausência de artefatos sítios líticos. Igualmente, os sítios arqueológi­
guia foi fundamental para a definição das fases cos foram considerados como unidades não
arqueológicas destas Tradições que, em última relacionadas entre si nas áreas pesquisadas e
instância, subentenderiam unidades sociais. De os sítios líticos foram tratados de forma
acordo com Meggers e Evans (1985: 5), embora homogênea, não se considerando a dinâmica
fases arqueológicas correspondam a abstra­ de ocupação do espaço de comunidades
ções, sem base etnográfica, “as tradições caçadoras-coletoras.
definidas em termos de fases que compartilham Um terceiro aspecto diz respeito à metodo­
um conjunto de elementos (...) [comuns] logia de análise das coleções líticas. A maioria
provavelmente representam entidades tribais ou dos trabalhos publicados centra sua atenção
lingüísticas”. No caso dos conjuntos líticos nos artefatos, desprezando os resíduos de
aqui analisados, as similaridades morfológicas lascamento. Também não há padronização no
dos artefatos guia foram utilizadas como tratamento dos dados, caracterizando-se
principal fator para estabelecer unidades alguns relatórios pela utilização da metodolo­
culturalmente significativas em termos de fases gia francesa (Laming-Emperaire 1967) e outros
e tradições. Deste modo, todas as fases pré- na elaboração de listas de artefatos definidos
cerâmicas do sul do Brasil que apresentavam por sua morfologia, muitas vezes não apresen­
tando dados quantitativos associados a estas
categorias, dificultando comparações. Nestas
(4) Ambas Tradições abrangem os Estados do Rio análises destaca-se a busca do artefato guia,
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Para a centrada na tentativa de filiação cultural dos
Tradição Umbu as datações radiocarbônicas apontam conjuntos líticos analisados a qualquer uma
uma dispersão temporal entre 10.500 anos A.P. (fase das duas tradições. Por outro lado, alguns
Uruguai) ao início da Era Cristã (fases Lagoa, Patos e
autores buscaram estabelecer cronologias
Chuí). A Tradição Humaitá apresenta datações entre
6.500 A. P. (fase Antas) e 1.100 A.P. (fase Canhem-
relativas, com base no método Ford (Ford
borá), embora a maioria de suas fases apresentem 1962), a partir da seriação de pontas de projétil
apenas estim ativas cronológicas de ordem relativa. líticas, obtendo resultados questionáveis.

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

Fazendo um balanço destes trabalhos fica derivam de uma distinção cultural e/ou crono­
a questão: o que realmente diferencia em lógica. Procurando refletir sobre estas ques­
termos culturais as tradições Umbu e Humaitá? tões destacamos dois estudos de caso para o
A nosso ver, a variabilidade entre os conjun­ Rio Grande do Sul onde a metodologia de
tos líticos observada para estas Tradições análise das coleções líticas permite sugerir
pode ser compreendida a partir de questões problemáticas associadas às questões levanta­
não apenas de ordem adaptativa, mas também das.
de ordem funcional e estilística, subentendem Em primeiro lugar, destacamos o trabalho
escolhas tecnológicas que refletiriam, em de Hoeltz (1995, 1997) que procurou investigar
última instância, identidades culturais. Portan­ quais características tecnológicas distinguiri-
to, o problema em questão ultrapassa os am as Tradições Umbu e Humaitá. Para tanto, a
limites teórico-metodológicos das pesquisas autora desenvolveu pesquisas que objetiva­
levadas a cabo até o presente, demandando ram, através de trabalhos comparativos entre
novas orientações analíticas em campo e coleções, estabelecer padrões relativos à
laboratório. organização tecnológica das Tradições em
Podemos exemplificar esta idéia através da questão. Tendo por base as coleções líticas de
análise dos resultados das prospecções 10 sítios a céu aberto localizados no vale do
realizadas por Miller no nordeste do Rio rio Pardo, Hoeltz buscou estabelecer critérios
Grande do Sul, abrangendo os vales dos rios de diferenciação entre os conjuntos líticos dos
dos Sinos, Maquiné, Três Forquilhas e sítios que transcendessem os tradicionais
Mampituba (Miller 1967, 1974). Nesta região artefatos guia, utilizados em trabalhos anterio­
foram identificados mais de 200 sítios líticos res para classificar a afiliação cultural das
distribuídos cronologicamente ao longo de ocupações da área (Ribeiro 1991). A autora
4.000 anos de ocupação da área. A associação trabalhou com critérios tecno-tipológicos,
destes sítios à Tradição Umbu está relaciona­ reconstituindo as cadeias operatorias e
da aos abrigos sob rocha (105 sítios), sendo comparando estatisticamente as categorias de
apenas 5 sítios a céu aberto associados à artefatos associadas aos resíduos de lasca-
mesma pela presença de pontas de projétil. mento em cada sítio. Como estes se distribuí­
Todos os demais sítios líticos que não apre­ am em diferentes áreas geomorfológicas que
sentaram pontas de projétil foram vinculados à caracterizam a região (planície, encosta e
Tradição Humaitá, embora a região também planalto), foi possível estabelecer um critério
apresente uma ampla ocupação ceramista pré- de comparação entre as indústrias quanto à
histórica relacionada à Tradição Guarani, nos disponibilidade de matéria-prima e estratégias
vales, e à Tradição Taquara, no planalto. de confecção de artefatos. O conjunto de
Partindo das discussões levantadas neste sítios apresentou uma homogeneidade grande
trabalho, podemos sugerir que a ausência de quanto à organização da tecnologia de produ­
pontas de projétil líticas nos sítios arqueológi­ ção de artefatos, com marcada preferência pela
cos associados à Tradição Humaitá poderia utilização da matéria-prima disponível local­
marcar uma funcionalidade diferenciada mente. As estratégias de redução e produção
destes, tanto associada a sítios de atividade de artefatos também seguem um padrão
específica da Tradição Umbu quanto das homogêneo, estando presentes nos sítios
Tradições ceramistas. Tais questões não apenas os resíduos de lascamento associados
podem ser compreendidas com clareza somen­ à redução primária e secundária de artefatos
te com base nos relatórios de pesquisa e bifaciais e ausentes ou sub-representados
devem ser levadas em consideração para a aqueles associados a atividades de preparação
reavaliação dos estudos na área. de núcleos. A única exceção é representada
O problema de pesquisa por nós destaca­ por um sítio localizado no planalto, onde se
do coloca em pauta a relação entre variabilida­ observa um padrão de resíduos, uso de
de e variação para os conjuntos líticos identifi­ matéria-prima e artefatos que foge aos demais.
cados como pertencentes às Tradições Umbu Com base nas diferenças na produção de
e Humaitá, buscando observar em que medida peças bifaciais, Hoeltz propõe que a Tradição

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

Umbu seria caracterizada na área por apresen­ para as fases da Tradição Umbu (Miller 1969c,
tar artefatos de morfologia variada (incluindo Ribeiro & Hentschke 1976). As críticas a este
as pontas de projétil), elaborados sobre seixos enfoque partem do princípio de que a morfo­
e lascas unipolares, com dimensões pequenas logia desta categoria de artefatos não se
ou médias e com 1/3 ou menos de sua superfí­ constitui enquanto marcador temporal eficien­
cie coberta por córtex. A Tradição Humaitá, te, pois sua variabilidade formal pode respon­
representada em um único sítio do planalto, der a razões alheias à cronologia, dependentes
caracterizar-se-ia por bifaces elaborados sobre de características tecnológicas e funcionais.
bloco, com dimensões que variam entre médio Igualmente, estabelecer distinções cronológi­
a extra-grande e superfície coberta em até 2/3 cas baseadas em diferenciações morfológicas
por córtex. de uma única categoria de artefatos torna-se
Embora ressalte a importância de compre­ problemático, particularmente em situações
ender os sítios em conjunto, as interpretações arqueológicas como coletas de superfície e
de Hoeltz limitam-se em função das estratégias sítios analisados isoladamente ou relaciona­
de campo utilizadas que, por não se realizarem dos entre si, mas sem controle estratigráfico
através de coletas controladas ou escavações adequado, caso recorrente às metodologias de
em áreas amplas, impedem inferências quanto à campo empregadas no estudo de sítios
funcionalidade dos sítios. Contudo, os dados arqueológicos da Tradição Umbu até o
levantados abrem margem para o questio­ presente (Flenniken & Raymond 1986).
namento de uma efetiva coexistência de dois Partindo das premissas acima expostas, a
grupos contemporâneos na área. autora estudou a coleção de 404 pontas de
Um primeiro fator que deve ser considera­ projétil líticas associadas a um abrigo sob
do diz respeito à possibilidade de haver uma rocha, situado no vale do rio Caí,5 tendo em
variação de funcionalidade entre estes artefa­ vista as tendências tecnológicas gerais dos
tos. Embora os bifaces de grande porte conjuntos de artefatos em sua relação com os
associados aos sítios do planalto pudessem resíduos de lascamento. Os resultados permiti­
estar relacionados à exploração de recursos ram observar dois grandes grupos: pontas de
ecológicos mais diversificados do que os da projétil de morfologia lanceolada, derivadas de
planície, isto não indicaria grupos necessaria­ redução primária de lascas bipolares em
mente distintos em termos étnicos. Além calcedonia; e pontas de projétil pedunculadas
disso, o fato de o sítio do planalto apresentar produzidas a partir da redução primária de
peças de maior porte e cobertura cortical lascas unipolares em arenito silicificado. A
extensa pode referir-se a um local de produção distribuição estratigráfica das pontas de
e abandono de peças inacabadas, associado projétil demonstrou que as freqüências dos
aos grupos assentados na planície. Destaca-se diferentes tipos apresentavam correspondên­
o fato de que na planície os talhadores bifa- cia entre si e com a distribuição dos resíduos
ciais, de menor porte não estão ausentes. Este de lascamento e demais artefatos. Portanto,
não parece ser um dado isolado para o Rio variações na freqüência de determinados tipos
Grande do Sul, pois algumas das fases da morfológicos de pontas de projétil não corres­
tradição Umbu apresentam em seus conjuntos ponderiam a um indicador de mudança tempo­
líticos talhadores que tipicamente seriam ral associado ao conceito de fase, mas em um
associados à tradição Humaitá, como é o caso reflexo dos padrões de descarte ao longo da
da fase Itaqui, no vale do médio rio Uruguai ocupação do sítio (Dias 1996).
(Miller 1969b), da fase Amandaú, no vale do Embora este estudo tenha demonstrado
alto rio Uruguai (Miller 1969a), e da fase que a representatividade das pontas de projétil
Araponga, no vale do rio das Antas (Miller enquanto marcadores temporais deve ser
1971). relativizada, por ser um trabalho pontual não
O segundo estudo de caso diz respeito às
pesquisas de Dias (1994, 1996) quanto à
variação morfológica entre pontas de projétil, (5) Sítio RS-C-43: Picada Capivara, localizado no
entendidas como marcadores cronológicos município de São Sebastião do Caí, Rio Grande do Sul.

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D IA S, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecnológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e'E tnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

permite avaliar as causas de variação entre arqueólogos. Como podemos observar a partir
conjuntos líticos da Tradição Umbu para do debate apresentado, a forma dos artefatos e
diferentes cronologias e áreas. Uma possibili­ a sua distribuição espacial e temporal são as
dade de interpretação alternativa é levantada variáveis básicas sobre as quais os conceitos
pelo conceito de estilo tecnológico, ao sugerir de estilo e função são utilizados para alcançar
que a variação dos conjuntos de pontas esta compreensão.
líticas, funcionalmente equivalentes, seria Nossa atenção no debate sobre o proble­
resultante de escolhas técnicas refletidas na ma do estudo estilístico das indústrias líticas
seleção dos materiais, nas seqüências de traz subjacente a nossa preocupação em
produção e nos resultados materiais destas compreender de uma maneira mais aprofun­
escolhas. Portanto, a noção de estilo tecno­ dada as causas da variabilidade (entre os
lógico, entendido enquanto produto de uma conjuntos artefatuais) e da variação (nos
tradição cultural, pode servir como indicador conjuntos artefatuais) que se observa nas
de identidades sociais e culturais para a indústrias líticas do sul dó Brasil.
Tradição Umbu, demarcadas regional ou Quando distinguimos variabilidade de
temporalmente. Contudo, tal abordagem só variação estamos seguindo a proposta de
torna-se possível através de estudos regionais Schiffer (1992: 18-21) que associa o conceito
que estabeleçam padrões comparativos de variabilidade aos padrões materiais dos
uniformes em termos intra e inter-sítio, basea­ conjuntos arqueológicos que se estendem por
dos em cronologias sólidas. longos períodos de tempo e cobrem extensas
A incorporação da noção de estilo tecno­ áreas geográficas. Em outras palavras, o autor
lógico a esta reflexão contribui para ampliar o relaciona o conceito de variabilidade à idéia de
referencial interpretativo quanto à variação cultura arqueológica, em alusão às propostas
dos conjuntos de pontas de projétil líticas da de Willey e Phillips (1958). Segundo Schiffer, é
Tradição Umbu, além do referencial cronológi­ sobre esta base de padrões materiais de
co. A partir deste enfoque abre-se a discussão grande extensão espaço-temporal que os
para a possibilidade de estarmos diante de arqueólogos criam seqüências que são
uma variação tecnológica ligada a escolhas definidas a partir das variações observadas.
culturais que derivam de processos de intera­ Estas variações consistem, portanto, nas
ção entre indivíduos pertencentes a uma diferenças nos conjuntos de artefatos que
mesma tradição, sendo, portanto, funcionais e ocorrem espaço-temporalmente no interior de
estilísticas. O problema das variações regio­ uma dada tradição.
nais representadas pelas fases da Tradição Sendo assim, a nossa preocupação é
Umbu pode sugerir que alguns dos padrões entender quais aspectos, além do artefato
tecnológicos observados entre coleções de guia, justificariam a distinção entre dois
sítios contemporâneos em áreas distintas, conjuntos líticos originalmente definidos em
englobando a variação morfológica das pontas termos de tradições arqueológicas e divididos
de projétil, poderiam representar identidades em diferentes fases arqueológicas para o sul
regionais. No entanto, isto requer uma revisão do Brasil. Nossa proposta é que se tomem
crítica dos critérios de definição destas fases, mais complexos os parâmetros definidores de
associado à complexificação da idéia de sua variabilidade, bem como, que se procure
interpretação contextual dos vestígios arqueo­ apreender contextualmente as causas de suas
lógicos para o estabelecimento de uma tradi­ variações internas.
ção ou fase. Ao reconhecermos a importância da noção
de estilo tecnológico pretendemos ressaltar
que o processo produtivo é um campo de
Conclusão análise complexo, no qual diferentes fenôme­
nos (comportamentais, sociais, culturais e
Compreender o significado e as causas da físicos) podem atuar e contribuir na configura­
variabilidade e da variação da cultura material ção dos itens materiais. Neste sentido, torna-
é uma das principais preocupações dos se central para esta reflexão a noção de que a

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DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecnológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77: 95-108, 2001.

técnica constitui-se da inter-relação de elemen­ quia no seu emprego; entre os homens e os


tos (matéria, energia, objetos, gestos e conhe­ utensílios, principalmente no que se refere ao
cimentos) que fazem parte de um conjunto de saber-fazer; entre os indivíduos que participam
cadeias operatorias, ou seja, de uma “série de no processo de produção; entre os indivíduos,
operações envolvidas em qualquer transforma­ a matéria e os artefatos, no que concerne aos
ção da matéria (incluindo o nosso próprio usos que deles fazem; entre as diferentes
corpo) pelos seres humanos” (Lemonnier 1992: matérias, em relação à sua disponibilidade e
26). E a partir da análise e compreensão destas aplicabilidade (adaptado de Muchnik 1987: 78-
cadeias operatorias que se torna possível 82 e Schiffer e Skibo 1997: 31-39). Em resumo,
verificar a natureza das relações que se para entender a variabilidade e a variação dos
estabelecem entre a matéria e os objetos conjuntos artefatuais é necessário, antes de
utilizados na sua transform ação; entre os mais nada, apreender os processos a partir dos
utensílios, na medida em que há uma hierar­ quais estas foram resultantes.

DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Technological systems and style: the implications of this
interrelationship in the study of lithic industries of southern Brazil. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77 : 95-108 , 2001.

ABSTRACT: Starting from the evaluation of the concepts of technological


system and style, we will analyze the notion of technological style and its
implications in the study of lithic industries. We will also contemplate its
application in the study of Umbu and Humaita Tradition’s lithic assemblages,
having as reference two case studies.

UNITERMS: South-Brazilian archaeology - Lithic technology - Style -


Hunter-gatherers.

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R ecebido p a ra p u b licação em 9 de abril de 2001.

108
Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paúlo, 11: 109-124, 2001.

POSSIBILIDADES DE INTERPRETAÇÃO DA
CADEIA OPERATÓRIA DE PRODUÇÃO DE
INSTRUMENTOS LÍTICOS - SÍTIO PEDREIRA (MT)

Paulo Jobim Campos Mello*


Sibeli Aparecida Viana*

MELLO, P.J.C.; VIANA, S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de


produção de instrumentos líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de
A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

RESUMO: O presente artigo apresenta a cadeia operatória para a confec­


ção de instrumentos líticos lascados em um dos sítios escavados durante o
‘Projeto de Resgate do Patrimônio Arqueológico da UHE Manso (MT)’.

UNITERMOS: Cadeia operatória - Indústria litica - Estado do Mato


Grosso.

Introdução decoradas etc.), tomando também mais clara a


percepção da mudança cultural. Assim, os
Os instrumentos líticos dominaram o artefatos mais característicos de certos
conjunto de material arqueológico por um estratos eram utilizados como ‘fósseis direto­
grande período na maior parte do mundo. Não res’, permitindo o reconhecimento e ordenação
é surpresa, portanto, que as tendências de da sucessão das facies industriais e das
análise do material lítico tenham seguido a culturas que eles identificavam.
trajetória comum de análise da arqueologia em A maioria dos estudos das indústrias líricas
geral (Odell 1996). pré-históricas, portanto, restringia-se à descri­
Como podemos ver em Karlin; Bodu & ção e à classificação de somente uma fração
Pelegrin (1991), a pré-história, desde o século dos testemunhos, em detrimento de uma
XVIII, consagrou a maior parte de seus interpretação mais geral das atividades técnicas
esforços no estabelecimento de um quadro nas quais esses testemunhos se inserem.
crono-cultural. Esse objetivo fez com que se Não faz muito tempo que a pré-história,
focalizasse o interesse sobre os testemunhos com André Leroi-Gourhan na década de 1950,
cuja intencionalidade era mais clara e imediata­ ampliou esses objetivos: as atividades técni­
mente acessível pela observação direta cas, cujos objetos são os testemunhos
(instrumentos líticos retocados, cerâmicas materiais, tomaram-se um campo de pesquisa.
Se o estudo tipològico ‘clássico’ das
indústrias provou seu valor para uma primeira
identificação cultural dos grupos graças à
(*) Instituto G oiano de Pré-história e A ntropologia comparação das indústrias (cronologia -
da Universidade Católica de Goiás. tempo de longa duração), convém se chegar

109
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

hoje a uma melhor precisão do que essa No total, foram coletadas 376 peças
indústria testemunha (cotidiano - tempo de líticas,2 havendo o predomínio do arenito (338
curta duração) (Karlin; Bodu & Pelegrin 1991). peças), aparecendo, ainda, o sílex (34 peças),
É possível perceber, portanto, que o calcedonia (duas peças) e o quartzo (duas
conjunto lítico resulta de uma série complexa peças).3
de inter-relações envolvendo seleção de O material aparece desde a superfície até
matéria-prima, economia de debitagem, técnica os 40 cm de profundidade, sendo que a grande
de lascamento, função de sítio e sistema de maioria das peças, 335, correspondendo a
assentamento/subsistência. Assim, se se 90,8%, foi recolhida até os primeiros 10 cm.
deseja obter dados significativos sobre o Em relação ao peso geral4 desse material, é
comportamento humano, deve-se analisar o possível ver também o predomínio do arenito
conjunto inteiro de relações (Thacker 1996). sobre as demais matérias-primas: 50.955 g de
Foi essa a abordagem utilizada para a arenito, representando 83,86% do geral de
análise do material lítico da área afetada pela material do sítio, 9.765 g de sílex, representando
construção da UHE Manso (MT).1 Pretende­ 16,07% e 45 g de quartzo, representando 0,07%.
mos, nesse artigo, mostrar o início dessa Foram identificadas duas técnicas de
análise, com a cadeia operatória de um dos lascamento - a unipolar e a bipolar, nos três
sítios escavados. tipos de matéria-prima.

1. Área da pesquisa 2. O material arqueológico em arenito5

A construção da barragem da UHE Manso O material em arenito pode ser dividido


(localizada nas coordenadas N 8.355.500 e S nas seguintes categorias: 281 lascas (sendo
631.000) formou um lago de aproximadamente 208 inteiras, 72 fragmentos proximais e uma
429 km2, abrangendo parte dos municípios de lasca de refrescamento de plano de percussão
Chapada dos Guimarães, Rosário do Oeste e de núcleo unipolar), oito núcleos unipolares,
Nova Brasilândia. A área afetada pelo empre­ sete suportes retocados, 12 instrumentos
endimento mostrou-se extremamente rica em utilizados brutos, 22 lascas bipolares sobre
termos arqueológicos, tendo sido localizados seixo, oito núcleos bipolares.6
92 sítios arqueológicos pré-históricos, sendo
que 60 dentro da área a ser diretamente afetada 2.1. Núcleos unipolares
e os restantes nas suas imediações.
Será apresentada, no presente artigo, a
Foram considerados como núcleos
análise do material lítico do sítio Pedreira, um
unipolares os blocos de matéria-prima rocho­
dos sítios escavados durante o projeto de
sa, dos quais foram retiradas lascas para
resgate. Esse sítio localiza-se nas coordenadas
obtenção de instrumentos (Tixier et al. 1980).
UTM 21.636598 E / 8.334039 N. Está implanta­
do em um terreno com declividade inferior a
10%, a cerca de 20 m de um pequeno córrego e
a 1.250 m do rio principal, o rio Quilombo. (2) Não foram computados os fragmentos de lasca e
O material está disperso por uma área de de matéria-prima, que só foram pesados.
(3) Não há evidências de ação de fogo sobre o
aproximadamente 14.000 m2, onde foram
m aterial.
realizadas 53 sondagens de lx l m, além de ter (4) Aqui, foram incluídas todas as categorias do
sido delimitada uma área de 400 m2 , na qual material: lascas, fragmentos de lascas, instrumentos,
coletou-se material de superfície (Prancha 1). núcleos, fragmentos de núcleos, percutores e
fragmentos de matéria-prima.
(5) Só o material em arenito, que apareceu num
maior número de peças e do qual foi possível esboçar
(1) Projeto em desenvolvim ento pelo IGPA/UCG em a cadeia operatória, será descrito com mais minúcia.
convênio com FURNAS Centrais Elétricas desde (6) Para a descrição detalhada dessas peças cf. Viana,
1 999. M ello; Barbosa (2002).

1 1n
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . P ossibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - S ítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

LEGENDA
□ SONDAGEM SEM MATERIAL
■ SONDAGEM COM MATERIAL LÍTICO
B COLETA DE SUPERFÍCIE
J CÓRREGO
«GROTA
OBS AS ÁREAS DAS SONDAGENS ESTÃO 3
VEZES MAIORES. PARA EFEITO DE VISUALIZAÇÃO

PRANCHA 1

m
MELLO. P.J.C.; VIANA. S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 20,01.

A análise tecno-morfológica dos oito apresentar face superior lisa ou com uma ou
núcleos da coleção demonstrou que esses duas nervuras.
suportes eram obtidos a partir de seixos
grandes, medindo de 54 a 98 mm e média de 2.2. Instrumentos modificados por retoques
72,35 mm de comprimento; de 86,4 a 164,4 mm e
média de 109,33 mm de largura e 57,8 a 144,7 Foram classificados sete instrumentos,
mm e média de 87, 95 mm de espessura. Acerca compostos por retoques que não formam um
da intensidade de exploração dos núcleos, padrão específico, não apresentando, portan­
ressalte-se que nenhum deles se encontra to, forma definida (Prancha 2). Instrumentos
totalmente esgotado. Sobre a qualidade da tecnológicamente semelhantes foram descritos
matéria-prima, observou-se que os núcleos por Fogaça; Sampaio e Molina (1997).
apresentam-se com matéria-prima homogênea, Todos os instrumentos são espessos e
com ausência de intrusões, assim como de pouco elaborados. São raras as peças que
grandes negativos refletidos na superfície. apresentam marcas de façonnage, caracteri­
Essas informações, associadas ao contexto zando-se por terem formas grosseiras e
ambiental onde o sítio esteve instalado, com preliminares. As atividades de moldagem,
abundância de matéria-prima de boa qualidade executadas em poucos instrumentos do sítio
à sua disposição, levam a supor que não Pedreira, não se assemelham à definição
houve uma economia de matéria-prima; em proposta por Tixier; Inizan & Roche (1980) que
outras palavras não houve uma preocupação as caracterizam como uma sucessão de
em exploração total do suporte, já que no seu operações de lascamento cujo objetivo é
entorno havia grande disponibilidade. moldar o instrumento pretendido. Os retoques
O fato de todos apresentarem forma localizados nos instrumentos também são
globular leva a pensar em métodos semelhan­ pouco elaborados e pouco representativos nas
tes de gestos de exploração desses núcleos. A peças, ou seja, estão dispostos em áreas
presença de uma lasca de refrescamento aleatórias, não formando um padrão específico
indica, por sua vez, prolongamento de explora­ e, portanto, não se caracterizando como
ção do núcleo, recuperando os ângulos aptos atividades finais que, conforme definição dos
para debitage. autores acima mencionados, teria como finalida­
Pela análise dos negativos dos núcleos, de dar o acabamento final ou reavivar a peça.
pode-se inferir que as lascas debitadas se - Instrumento sobre suporte indetermi­
classificam em dois tipos: uma maior - resul­ nado, com dimensões 42 mm x 31 mm x 17 mm.
tante da produção de lascas tanto na fase Apresenta retoques curtos e longos, paralelos,
inicial, de descorticagem, como de debitagem sobre nervura, delineando um gume côncavo,
- e outra menor, que pode estar relacionada ao com ângulo de cerca de 60° e peso de 20
reforço das arestas do núcleo ou produção de gramas. O instrumento não apresenta negati­
lascas pequenas. vos de lascas de façonnage', apenas negativos
As lascas maiores resultantes teriam saído das lascas de retoques abruptas (ângulo talão/
com formas quadrangulares, semi-circulares ou face interna de 120° a 125°), com uma forma
triangulares, com talões lisos, dimensões semi-circular, com talão liso, com apenas uma
aproximadas de 20 a 87 mm de comprimento e ou sem nenhuma nervura na face externa e
31 a 60 mm de largura, ângulo da face interna dimensões aproximadas de 7 mm x 10 mm;
do talão de 100° a 120° e face externa cortical, - Instrumento sobre núcleo, com dimen­
semicortical ou sem córtex, apresentando uma sões de 121 mm x 70 mm x 56 mm, apresentando
ou duas nervuras na face superior. As lascas retoques longos, alternantes, paralelos,
menores, por sua vez, teriam saído com formas delineando um gume convexo, com ângulo de
quadrangulares, semicirculares ou triangula­ cerca de 50° e peso de 460 gramas. O instru­
res, com talões lisos e lineares, dimensões mento apresenta negativos de lascas retoques,
aproximadas de 10 a 33 mm de comprimento e 7 que se apresentariam com inclinação semi-
a 32 mm de largura, ângulo da face interna do abrupta (ângulo talão/face interna de 105°),
talão de 95° a 110° e face externa lisa, podendo com forma triangular, talão liso, uma ou duas
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

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MELLO. P.J.C.; V IA N A . S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

nervuras na face externa e dimensões aproxi­ teriam inclinação semi-abruptas (ângulo talão/
madas de 9 mm x 9 mm; face interna de 120°), apresentando forma
- Instrumento sobre lasca, com dimensões triangular, talão liso, face superior com uma
de 164 mm x 118 mm x 63 mm, apresentando nervura e dimensões de 32 mm x 39mm;
retoques longos, diretos, paralelos, no bordo - Instrumento sobre suporte indetermina­
direito e nas partes mesial e distai, formando do, com dimensões de 104 mm x 56 mm x 42 mm,
duas coches, com ângulo de cerca de 70° e apresentando retoques diretos curtos, parale­
peso de 1.090 gramas. O instrumento apresenta los, formando uma coche, com ângulo de cerca
negativos de lascas de façonnage e de lascas de 70° e peso de 155 gramas. O instrumento
de retoque. As lascas de façonnage seriam apresenta negativos de lascas de façonnage e
semi-abruptas (ângulo talão/face interna de de lascas de retoque. As lascas de façonnage
105°), apresentando formas triangulares ou seriam semi-abruptas (ângulo talão/face
quadrangulares, talão liso, com uma ou interna de 110°), apresentando formas triangu­
nenhuma nervura na face externa e dimensões lares ou quadrangulares, talão liso, com uma
de 71 mm x 61 mm. As lascas de retoques ou nenhuma nervura na face externa e dimen­
resultantes seriam também semi-abruptas sões de 39 mm x 26 mm. As lascas de retoques
(ângulo talão/face interna de 105°, aproximada­ resultantes seriam semi-abruptas (ângulo
mente), quadrangulares e com talão liso talão/face interna de 105°), com forma triangu­
relativamente espesso, apresentando uma lar ou quadrangular, talão liso, apenas uma
nervura na face externa e dimensões aproxima­ nervura na face externa e dimensões aproxima­
das de 18 mm x 45 mm; das de 9 mm x 13 mm.
- Instrumento sobre lasca de seixo frag­ Tendo em vista que não foi verificada uma
mentado, com dimensões de 120 mm x 98 mm x diferença em termos tecnológicos entre esses
45 mm; apresentando retoques longos, diretos, instrumentos, mesmo entre aqueles com
escamosos, delineando um gume convexo, com evidências de negativos de façonnage,
ângulo de cerca de 70° e peso de 520 gramas. O dividiram-se esses materiais em duas categori­
instrumento apresenta negativos de lascas de as de instrumentos, tomando por base seu
retoque as quais teriam inclinação semi-abrupta aspecto morfológico:
e abrupta (ângulo talão/face interna de 110°, 1 - composta por peças espessas, sobre
aproximadamente), triangulares e quadran­ lascas ou massa central, sendo a maioria com
gulares com talão liso, apresentando uma ou matéria-prima recuperada sob forma de seixo. Os
duas nervuras na face externa e dimensões instrumentos dessa categoria medem de 164 a
131 mm de comprimento e 117 a 170 mm de
aproximadas de 19 a 30mm x 14 a 26 mm; largura e espessura de 62 a 45 mm. Apresentam
- Instrumento sobre lasca fragmentada, uma seqüência de retoques, os quais estão
com dimensões de 132 mm x 117 mm x 52 mm, representados nas posições diretas ou alternan­
apresentando uma seqüência de retoques tes, em formas paralelas, sub-paralelas ou
localizada na porção direita da peça: apresenta escamosas, longas ou curtas, formando gumes em
coches, com ângulos que variam de 50° a 80°.
retoques longos, diretos, delineando um gume
Somente um instrumento apresentou marcas,
côncavo, com ângulo de cerca de 60° e peso de embora grosseiras, de tentativa de façon n age.
755 gramas. O instrumento apresenta negativos Pela análise dos negativos, observou-se que essas
de lascas, as quais seriam semi-abruptas lascas teriam formas triangulares e quadrangu­
(ângulo talão/face interna de 120°, aproximada­ lares, com talões lisos e inclinação sempre semi-
abrupta (ângulo da face. interna/talão de 105° a
mente), com forma triangular e quadrangular,
120°). Os comprimentos são de cerca de 61 e 71 mm
talão liso, uma nervura na face externa e e face superior lisa ou com uma nervura,
dimensões aproximadas de 36 mm x 30 mm; enquanto as lascas de retoques resultantes teriam
- Instrumento sobre suporte indetermina­ formas triangulares e quadrangulares, de talões
do, com dimensões de 79 mm x 55 mm x 39 mm, lisos e inclinação semi-abrupta, sendo que
somente uma apresentou-se abrupta (ângulo da
apresentando retoques diretos, longos,
face interna/talão de 100° a 130°). Os com pri­
formando uma coche, com ângulo de cerca de mentos variam de 9 a 36 mm e de largura de 9 a
55° e peso de 150 gramas. O instrumento 45 mm, apresentando face superior com uma ou
apresenta negativos de lascas de retoque que duas nervuras;

1 14
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. P ossibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (M T). Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

2 - a outra categoria caracteriza-se por 2.4. Lascas unipolares


peças menores, sobre lasca ou suporte não-
determinado, apresentadas em seixos ou em
categorias não determinadas. Os instrumentos
Foram consideradas como lascas peças
dessa categoria medem de 42 a 104 mm de que apresentam estigmas característicos de
comprimento, 31 a 56 mm de largura e espessura lascamento por percussão unipolar: bulbo,
de 17 a 42 mm, apresentando som ente uma talão, ondas de percussão etc. (Tixier; Inizan &
seqüência de retoques, os quais estão representa­ Roche 1980) e lascas bipolares sobre seixo, as
dos nas posições diretas ou em nervura, em
quais apresentam características dessa técnica
formas paralelas às escam osas, longos ou curtos,
formando gumes côncavos, em coches ou (Prous 1986/1990). Essa categoria foi subdivi­
retilíneos com ângulos que variam de 55° a 70°. dida em: lascas inteiras, lascas fragmentadas
Somente uma peça apresentou evidências de (presença da porção proximal) e fragmentos de
atividades de façon n age. lascas (porção mesial e/ou distai). Foram
tabuladas somente as lascas inteiras e as
Pela análise dos negativos, observou-se
fragmentadas, enquanto os fragmentos foram
que saíram lascas de façonnage de formas
somente pesados (Prancha 3).
triangulares e quadrangulares, com talões lisos
As características tecnológicas, como
e inclinação semi-abrupta (ângulo da face
podem ser observadas a seguir, em geral,
interna/talão de 110 ). Os comprimentos
coincidem com os negativos observados nos
dessas lascas são de cerca de 39 mm e largura
núcleos, bem como aqueles localizados nos
de 26 mm, apresentavam face superior lisa ou
instrumentos, o que denota uma possibilidade
com uma nervura. As lascas de retoques
de inter-relação entre essas classes.
resultantes teriam formas triangulares, qua­
As lascas pesaram 22.545 g, representando
drangulares ou semi-circulares, com talões 44,24% do total do arenito presente no sítio.
lisos e inclinação semi-abrupta e abrupta Quanto à cor, dez são brancas, oito cinza, 110
(ângulo da face interna/talão de 105° a 140°). Os avermelhadas e 152 amareladas. A maioria das
comprimentos variavam de 7 a 32 mm e de 10 a lascas unipolares (173) não apresenta córtex.
45 mm de largura, apresentando face superior Em seguida, aparecem aquelas que apresentam
lisa ou com uma nervura. uma pequena reserva cortical (69), depois as
semi-corticais (29) e, por último, as inteiramen­
2.3. Instrumentos utilizados brutos te corticais (9). A maioria delas é de seixo.
Com respeito à morfología,7 a forma
Dentre os instrumentos não-modificados quadrangular predomina (113), vindo a seguir
desse sítio, estão 11 percutores, todos em a triangular (45). Aparecem, ainda, a com mais
seixo, de tamanhos e pesos variados, o que de quatro lados (29), a subcircular (15) e a
sugere que esses percutores estariam relacio­ laminar (seis).
nados a diferentes etapas de produção dos Quanto às dimensões das lascas, o
instrumentos. O comprimento maior deles é 132 comprimento varia de 10 a 139 mm (média de
mm, o menor é 79 mm, com média de 105,6 mm, 52,2 mm e mediana de 48,5 mm), a largura de 8 a
a largura maior é 117 mm, a menor é 55 mm, 126 mm (média de 52,2 mm e mediana de 47,0 mm)
com média de 76,4 mm e a espessura maior é 52 e a espessura de 2 a 59 mm (média de 19,2 mm e
mm, a menor é 39 mm, com média de 43,4 mm. mediana de 18,0 mm).
Apresentam marcas de uso, localizadas nas Com relação ao perfil, o helicoidal e o
superfícies aplanadas, provavelmente por curvo aparecem quase na mesma quantidade
causa de atividade relacionada à percussão (80 e 73, respectivamente). Lascas com perfil
bipolar e vestígios em diversos pontos das convexo e retilíneo aparecem em menor
superfícies laterais das peças. quantidade (37 e 18, respectivamente).
O outro instrumento dessa categoria foi
classificado como um triturador, apresentando
em uma de suas faces marcas de intenso (7) A análise da morfologia das lascas, do perfil, do
picoteamento ou amassamento, que indicam número de nervuras e dim ensões, foi restrita às lascas
esta atividade. unipolares inteiras.

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de Arqueologia e E tn ologia, São Paulo, / / : 109-124, 2001.

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

Quanto ao número de nervuras na face 77,6 mm e mediana de 66,5 mm), a largura de 16 a


externa, a maior parte apresenta apenas uma 100 mm (média de 57,4 mm e mediana de 59,5 mm)
(67), vindo a seguir aquelas que apresentam e a espessura de 16 a 66 mm (média de 35,9 mm e
três ou mais (41). Também aparecem aquelas mediana de 30,5 mm).
que não apresentam nenhuma (35), duas (22),
em Y invertido (18), em Y (12), em T (uma), 2.7. Fragmentos de lascas
duas paralelas (oito) e uma vertical (quatro).
O talão liso é o predominante, aparecendo Foram classificadas nessa categoria todas
em 188, vindo a seguir o cortical (50) e o linear (18). as lascas que não apresentavam porção
Aparecem, ainda, o talão esmigalhado (sete), em proximal. Estão inseridas nessa categoria 3,765
asa de pássaro (cinco), diedro (três), facetado, em
gramas, que representam 7,39% do total de
vírgula e puntiforme (um de cada tipo).
material de arenito.
Em relação ao ângulo do talão/face interna,
este varia de 90° a 140° (média de 105,8° mm e
mediana de 110,0° mm). 2.8. Fragmentos de matéria-prima
Quanto ao comprimento do talão, pode-se
perceber que apresenta uma grande variação, Todo o material que não apresentava
indo de 3 até 108 mm (média de 31,5 mm e vestígio de lascamento foi introduzido nessa
mediana de 27,0 mm). categoria. No total, foram registrados 6,620
O mesmo acontece em relação à espessura gramas de matéria-prima, que representam
do talão, que varia de 1 a 51 mm (média de 13,8 12,99% do total de material de arenito.
mm e mediana de 11,0 mm).
Quanto ao acidente de lascamento, 56
lascas (20% do total) apresentam algum tipo, 3. Análise comparativa: negativo dos
sendo o sir et o mais comum (46). Aparecem, instrumentos x negativos dos
ainda, lascas refletidas (4), com lingueta (4) e núcleos x detritos de lascamento
transbordantes (2).
A análise comparativa das características
2.5. Lasca de refrescamento dos negativos dos instrumentos e dos núcleos
com as lascas presentes da coleção constatou
uma possível inter-relação entre essas catego­
Foi identificada uma lasca de refresca­
rias.
mento de plano de percussão medindo 94 mm
Com o objetivo de averiguar essa inter-
de comprimento, 42 mm de largura e 24 mm de
relação em nível estatístico, trabalhou-se
espessura e pesando 90 g, que apresenta, em
primeiramente com a categoria de dimensão
sua superfície, vários negativos de retirada de
das lascas (largura e comprimento), com o
lascas, orientados em diversas direções.
intuito de averiguar diferenças entre elas;
posteriormente, trabalhou-se com ângulo de
2.6. Lascas e núcleos bipolares talão e com presença de córtex, buscando uma
diferença para as lascas de dimensões peque­
Quanto ao material obtido pela técnica nas, de retoque e de preparação de núcleo; um
bipolar, foram identificadas 22 lascas e oito outro teste foi realizado, agora utilizando as
núcleos sobre seixo. dimensões de comprimento, largura e espessu­
Em relação às dimensões das lascas, o ra das lascas maiores; buscando diferenças
comprimento varia de 30 a 99 mm (média de ainda entre os tipos de lascas de descortica-
64,1 mm e mediana de 60,5 mm), a largura de 12 a gem e as de façonnage, foi realizado um teste
48 mm (média de 33,0 mm e mediana de 33,5 mm) utilizando as variáveis de comprimento e
e a espessura vai de 8 a 50 mm (média de 20,4 mm presença de córtex na face externa e, finalmen­
e mediana de 19,0 mm). te com o objetivo de refinar o teste anterior,
Já quanto às dimensões dos núcleos, o trabalhou-se com as categorias de tipo de
comprimento varia de 37 a 117 mm (média de talão e presença de córtex na face externa.

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MELLO. P.J.C.; V IA N A . S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatoria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

O primeiro teste, no qual foram utilizados a preparação de núcleo (sendo que 14 lascas
largura e o comprimento das lascas, mostra um podem pertencer a qualquer um dos grupos)
continuum, não podendo perceber-se nenhu­ (Fig. 2).
ma divisão entre os diferentes tipos de lascas Quanto ao grupo de lascas maiores, no
(retoque, preparação de núcleo, descortica- qual estariam representadas as lascas de
gem, façonnage, debitagem para obtenção de descorticagem, façonnage e que serviriam para
suporte para instrumento) em relação a esses suportes de instrumentos, essas últimas
atributos (Fig. 1). podem ser diferenciadas das demais pelas suas
A partir da observação dos negativos grandes dimensões (comprimento maior que
existentes nos núcleos e instrumentos, no 100 mm, largura maior que 80 mm e espessura
entanto, nota-se que as lascas referentes às
atividades de retoque e preparação de núcleo
apresentam dimensões menores (não ultrapas­

maior que 30 mm), características observadas


nos instrumentos fabricados sobre lasca.
Dentro da coleção há apenas cinco lascas com
sam os 30 mm de comprimento ou 35 mm de essas características (Fig 3).
largura) que as dos outros tipos. Para fazer a diferenciação entre as lascas
Trabalhando-se com esse grupo de lascas de descorticagem e as de façonnage, uma vez
menores, e ainda por meio da observação dos que elas apresentam dimensões semelhantes,
negativos dos instrumentos e dos núcleos, pode ser usada a quantidade de córtex: as
pode-se tentar distinguir aquelas referentes às primeiras apresentam-se inteiramente ou semi-
atividades de retoque das ligadas à preparação corticais e as últimas mostram-se sem córtex,
de núcleos tanto pela presença de córtex com uma pequena reserva ou, também, semi-
(enquanto as primeiras apresentam-se sem corticais (Fig 4).
córtex ou com apenas uma reserva cortical, as E possível notar que as lascas semi-
últimas podem apresentar-se, também, semicor- corticais podem pertencer a qualquer uma
ticais) como pelo ângulo talão/face interna (as das duas categorias. Esse grupo ambíguo
primeiras apresentam ângulo maior que 100°, pode ser diminuído com a utilização do tipo
enquanto as últimas têm ângulo menor que de talão: enquanto as lascas de descor­
120 °). ticagem podem apresentar talão liso ou
Assim, foram identificadas 21 possíveis cortical, nas de façonnage dificilmente
lascas de retoque e 34 possíveis lascas de apareceria este último tipo de talão. Assim,

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, l l \ 109-124, 2001.

de uma inter-relação entre os núcleos, os


instrumentos e os detritos de lascamentos
presentes na coleção. A análise comparativa
desses elementos demonstrou a possibilidade de
essas categorias terem sido organizadas (desen­
cadeadas) numa série de operações que, segun­
do Balfet (1991), são como malhas indispensá­
veis e dependentes de uma cadeia operatória.
Essa cadeia operatória está caracterizada
por três fases (Prancha 4), sendo a primeira
realizada fora do sítio e as demais realizadas no
interior do assentamento, identificadas na
coleção ou inferidas a partir dos detritos de
lascamento.
A primeira fase, denominada Obtenção de
Fig. 3. Matéria-Prima, realizada fora do sítio consti-

as lascas que poderiam pertencer a estas


duas categorias ficam reduzidas ao número
de nove (Fig. 5).
No total, portanto, as lascas de descorti-
cagem aparecem em número de 20 e as de
façonnage em número de 36 (lembrando que
nove delas podem pertencer a qualquer um
desses dois grupos).

4. Reconstituição da cadeia operatória

A reconstituição da cadeia operatória do


sítio Pedreira só foi possível pela identificação

Fig. 5.

tui-se na primeira etapa de uma cadeia


operatória de fabricação de instrumento lítico.
No sítio Pedreira, as matérias-primas mais
utilizadas foram os grandes seixos de arenito
e de sílex, que poderiam ser adquiridos na
área de entorno do sítio (num raio de 5 km),
presentes tanto nos rios secundários, como
naquele de maior porte da área, o rio Quilombo,
localizado a cerca de 1.250 metros de distân­
cia do sítio.
A segunda fase da cadeia operatória,
realizada no interior do sítio, caracteriza-se
Fig. 4. pela produção propriamente dita dos instru-

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
1íticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11'. 109-124, 2001.

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líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

mentos, elaborados pelas técnicas unipolar e da à quantidade expressiva desse material, às


bipolar. Através do lascamento unipolar, características grosseiras dos instrumentos e
predominante na coleção, foi se desencadean­ ao contexto do próprio sítio, situado numa
do uma série de gestos que, a partir de se­ cascalheira. Pensa-se que o limite dessa cadeia
qüências previsíveis, teriam transformado a operatória não seja unicamente a produção
matéria-prima no instrumento desejado. Nessa desses artefatos rústicos, mas sim a elabora­
fase, estão inseridas desde as primeiras ção de peças mais refinadas que pudessem
etapas, como a preparação do plano de atender a finalidades específicas. Essas peças
percussão, até a produção de suportes- para a teriam sido finalizadas e aproveitadas em
produção de instrumentos. Os suportes dos outros assentamentos da região que mantives­
instrumentos foram adequados a partir de sem alguma inter-relação com o sítio Pedreira.
métodos distintos de lascamento: debitagem, Essa estratégia permite que o gasto de energia
façonnage e fatiagem de seixo, cujas seqüênci­ seja dissipado de modo positivo, de forma que
as de operações foram identificadas da não seja transportada matéria-prima que não
seguinte forma: atenda às necessidades previstas.
Nesse sentido, estudo em nível de detalhe
1 - Atividades de debitagem - durante ou
a ser desenvolvido a posteriori pretende não
após as atividades de descorticagem, utilizando
um plano de percussão preparado ou não, as só encontrar em outros assentamentos da
lascas grandes, assim com o os fragmentos de região coleções líticas cujos suportes para os
matéria-prima, seriam utilizados com o suporte instrumentos já estão preparados, sem a
para instrumentos. Ressalta-se que lascas primeira fase da cadeia operatória, mas também
bastante espessas também poderiam passar por
elementos tecnológicos que possam inter-
atividades de façon nage e somente depois serem
finalizadas (retocadas);
relacioná-los.
2 - atividades de façonnage - dos grandes
seixos teria sido retirada uma lasca inicial; seu
negativo teria criado o plano onde as lascas de 5. Distribuição espacial
fa ço n n a g e sairiam com talão liso, face externa
cortical no início e, posteriorm ente, sem i-
cortical e sem córtex. Após a façonnage da Baseando-se em dados gerais como,
massa central, o instrumento tomaria sua forma tamanho do sítio, deposição de refugo arqueo­
final através das seqüências de retoques; lógico, implantação topográfica e reconsti­
3 - atividades de fatiagem - dos grandes
tuição da cadeia operatória, há fortes possibili­
seixos teria sido retirada uma lasca cortical;
posteriorm ente, sairiam outros tipos de lascas, dades de esse assentamento não ter sido de
porém não utilizando o plano de percussão habitação, mas de atividades específicas,
criado, mas “fatiando” o seixo, ou seja, as lascas relacionado à produção de instrumentos
sairiam com talão cortical, mas com face líticos, elaborados a partir das estratégias de
externa sem i-cortical, com córtex localizado no
fatiagem, façonnage e debitage. Esses instru­
dorso da lasca. Ressalta-se que lascas espessas
poderiam ser moldadas por atividades de
mentos apresentam-se, como já demonstrado,
fa ço n n a g e antes de serem retocadas.
pouco elaborados e, de modo geral são
grandes e toscos, os quais poderiam ser
Ao final dessa segunda fase, a base de transportados para outros sítios para servirem
produção dos instrumentos estaria finalizada, de suportes de peças mais elaboradas ou
sendo concluída na terceira etapa com as utilizadas como tal.
retiradas de retoque. Essa terceira fase poderia No entanto, a análise da distribuição
ser desenvolvida no interior do sítio, onde espacial do material lítico em arenito ficou
seriam produzidos instrumentos dos tipos 1 e comprometida por causa do estado de preser­
2, cujas descrições já foram apresentadas, ou vação do sítio, pela baixa densidade de
transportada para outros assentamentos, onde material e pelo método de escavação, os quais
instrumentos mais elaborados seriam con­ não propiciaram a identificação de área
feccionados. A hipótese de transporte de específica de produção dos instrumentos.
material preparado está sustentada na própria Na área de escavação (Prancha 5), obser­
diversidade de produção de suportes, associa­ va-se pouca densidade de material lítico,

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MELLO, P.J.C., V IA N A , S.A . P ossibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

rKANCHA 5

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. P ossibilidades de interpretação da cadeia operatoria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

disperso em sentido oblíquo, visualmente As duas metodologias mostram-se


perceptível na direção NO/SE, enquanto nas equivalentes. Então é provável que represen­
extremidades ocorre ausência de materiais. tem o total do sítio, tanto em termos quantitati­
Esses dados não sustentam a preservação de vos como qualitativos.
ateliês originalmente bem delimitados, ainda O problema da delimitação obtida para o
que fossem posteriormente alterados. sítio poderia ser explicado pelo intenso
A relação observável entre algumas remeximento de uma área, originalmente mais
categorias tecnológicas que, ao menos teorica­ concentrada e menor.
mente, deveriam estar interligadas, não sustenta A possibilidade de transporte de material,
a possibilidade de se reconhecer ateliês de levantada anteriormente, será aprofundada
lascamento pouco perturbados: a proporção pela análise tecnológica mais detalhada do
entre núcleos (oito peças) e lascas em geral (140 material, com reconhecimento de métodos de
peças) é de apenas 1:18. Deve-se atentar para o debitage, confecção de artefatos etc. Esse
fato de que se no grupo de lascas estão detalhamento permitirá ultrapassar os dados
incluídas aquelas resultantes de façonnage, até agora levantados, quando buscar-se-á
retoque etc., esta relação deve ser ainda menor. estabelecer as relações qualitativas entre as
Se tomarmos apenas as lascas corticais categorias para um melhor controle dos
(sete peças), que estão estreitamente ligadas à indícios ainda preliminares resultantes da
debitage, a proporção é de aproximadamente análise espacial ainda baseada em relações
1:0,88, inferior ao que seria de se esperar em se
quantitativas gerais.
tratando de seixos recuperados no curso
d ’água localizado próximo.
Por outro lado, comparando-se os dados da
Agradecimentos
área de coleta (área contínua) com os dados dos
materiais de superfície das sondagens de lm 2, as
relações mantêm-se muito próximas: lascas : Os autores agradecem ao Prof. Emílio
núcleos - 1:18 e lascas : núcleos - 1:1,33. Fogaça pelas valiosas críticas e sugestões.

MELLO, P.J.C.; VIANA, S .A. Possibilities o f interpretation o f the operational


sequence for the stone tool production - Pedreira site (MT). Rev. do Museu de
A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

ABSTRACT: This article presents the operational sequence for the stone
tool confection in one of the sites excavated in the course of the ‘Project of
Archaeological Rescue in the Manso Dam (MT)’.

UNITERMS: Operacional sequence - Lithic - Mato Grosso State.

Referências bibliográficas

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . P ossibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
liticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

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PROUS, A. VIANA, S.; MELLO, P.; BARBOSA, M.
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1 9 9 0 classificatórios. A rqu ivos do M useu de dos S itios A rq u eológicos do rio M anso/
H istória N atural, IX: 1-90. MT. R elatório Final. Projeto de R esgate
TH AC K ER, P.T. do P atrim onio A rq u eo ló g ico Pré-
1 9 9 6 H unter-gatherer lith ic econ om y and histórico da U H E -M anso/M T . G oiânia,
settlem ent system s. G.H. Odell (Ed.) UCG /IGPA.

R ecebido p a ra p u b lica çã o em 4 de ju n h o de 2001.


Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 125-140, 2001.

A ARQUEOLOGIA DA REGIÃO DE RIO CLARO: UMA SÍNTESE

Astolfo Gomes de Mello Araujo*

ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de
A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 125-140, 2001.

RESUMO: A área arqueológica de Rio Claro, uma região compreendendo


vários municípios localizados na porção central do Estado de São Paulo, pode
ser considerada como uma das mais importantes em termos de arqueologia
brasileira, tanto por sua importância dentro do debate sobre o povoamento
das Américas como pela riqueza de seu registro arqueológico. Apresentamos
aqui um breve histórico da pesquisa arqueológica na área, uma visão geral das
características de seu registro arqueológico e os principais resultados obtidos
pelos diferentes grupos de pesquisa.

UNITERMOS: Arqueologia - Rio Claro - Estado de São Paulo - Paleoam­


biente - Paleoindio.

Introdução mais tempo pesquisando a região, entre 1964 e


1973, e em menor escala nas pesquisas realiza­
A porção centro-leste do Estado de São das por Maria C. Beltrão (Becker 1966, Beltrão
Paulo, cujo epicentro em termos de estudos 2000), Fernando Altenfelder Silva (1967, 1968),
arqueológicos pode ser considerado o Municí­ Caio R. Garcia e Dorath P. Uchôa (Uchôa 1988) e
pio de Rio Claro, é a região onde supostamen­ Luciana Pallestrini e José Luiz de Morais
te se localizam os sítios arqueológicos mais (Morais 1982,1983).
antigos do Estado.
A importância da região e a grande quanti­
dade de informações sobre ela referentes Localização geográfica e
justificam uma síntese, ainda que modesta, das aspectos ambientais
informações arqueológicas coligidas por
diferentes pesquisadores oriundos de institui­ A região em pauta situa-se em sua maior
ções diversas. Como seria de se esperar, as parte dentro da Depressão Periférica, uma
abordagens utilizadas foram um tanto distintas, Província Geomorfológica existente entre dois
bem como os objetivos de cada pesquisa. Este planaltos (Planalto Atlântico e Planalto Ociden­
trabalho irá tratar principalmente dos estudos tal), caracterizada por um compartimento topo­
realizados por Tom O. Miller Jr, que despendeu gráfico rebaixado, apresentando um relevo de
colinas suaves, formando um corredor de
aproximadamente 80 a 100 km de largura (IPT
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia/USP - DHP - 1981). A área situa-se, grosso modo, entre 22° 15’
Prefeitura M unicipal de São Paulo. e 23°45’ S e 47°00’ e 47°45' W, e é recoberta por

125
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, Sao
Paulo, 11: 12 5 -1 4 0, 2001.

uma densa rede de drenagem, tendo como rios como representativas de possíveis episódios
principais o Corumbataí e o Piracicaba, afluentes de queimada natural. Deste modo, os autores
do Tietê pela margem direita. (Mapa) correlacionam o carvão encontrado nos solos
O clima atual na região poderia ser classifi­ às fases climáticas mais secas. Isto pode ser
cado como Cwa (Kõppen), ou subtropical com verdadeiro, salvo os casos onde a existência
temperaturas médias anuais entre 20 e 21°C e de carvões seja relacionada à ocupação
acentuada amplitude térmica anual devido à humana. Um maior intercâmbio entre arqueólo­
circulação atmosférica. No entanto, a incidên­ gos e quaternaristas seria bastante proveitoso
cia de massas de ar promove um regime de para ambas as áreas de conhecimento.
chuvas cujo máximo da precipitação coincide De qualquer modo, os resultados obtidos
com os meses de verão, e o mínimo com os por Melo (1995) para datações de fragmentos
meses de inverno, o que coloca a região nas de carvão em solos coluviais da região de Rio
características de clima tropical. (Feltran Filho Claro são bastante interessantes. Segundo o
1981, Scheel et al. 1995). autor, “(•••) nota-se que as idades aparente­
A vegetação original, atualmente quase mente distribuem-se aleatoriamente com
completamente destruída, seria caracterizada relação à profundidade da coleta, às coordena­
por uma área de fronteira ecológica entre o das geográficas e níveis planálticos, mas
cerrado/cerradão (savana) e mata (floresta parece haver tendência de concentração de
estacionai semidecidual). Segundo o Projeto idades compreendidas no intervalo entre 6.500
Radambrasil (1983), a Região da Savana e 8.500 anos AR” (Melo 1995:76). Correlacio­
(cerrado) na área apresenta-se como uma nando esta possível idade para um clima mais
disjunção da ocorrência principal no Planalto seco com datações realizadas em outras
Central. Dentre as formações remanescentes localidades do país, o autor sugere que as
da savana, a Arbórea Densa (cerradão) mesmas estejam indicando uma variação
apresenta características xeromorfas, com dois paleoclimática significativa.
estratos bem definidos. A formação Arbórea Outro dado de possível correlação paleo­
Aberta (campo-cerrado) apresenta composição climática para a região foi obtido por Scheel et
florística semelhante à anterior, mas sua al. (1995), que dataram carvões do solo no
estrutura é mais simples. A Região da Floresta Município de São Pedro (SP), não muito
Estacionai Semidecidual ocorre em regiões com distante de Rio Claro, e obtiveram datas de
dupla estacionalidade climática, com mais de 2.250±40 AP e 5.540 ±40 AP. Estas duas
60 dias secos, ou com seca fisiológica provo­ datações foram provenientes de fragmentos de
cada pelo frio. Na área em questão, ocorrem as carvão soltos. Uma terceira datação, de 1.220
formações Submontana e Montana, definidas ±40 AP, foi realizada em uma estrutura de
de acordo com a altitude e a latitude (IBGE, combustão que os autores consideraram de
1992). provável origem antrópica. Apesar de uma
possível correlação entre a idade dos carvões
Dados paleoambientais e episódios de clima mais seco, somente um
recentes para a região maior número de datações, preferencialmente
realizadas fora de sítios arqueológicos, poderia
Desde meados da década de 70, qvando lançar mais luz sobre esta questão.
os últimos estudos de Arqueologia com
caráter regional foram realizados na área, até
os dias de hoje, não se pode dizer que os Os levantamentos arqueológicos na
conhecimentos a respeito dos paleoambientes região de Rio Claro
da região de Rio Claro tenham sofrido um
avanço muito significativo. Algumas datações Segundo Altenfelder Silva (1967, 1968), a
de C 14, feitas a partir de fragmentos de carvão região que compreende Rio Claro e adjacências
encontrados imersos em solos coluviais, há muito interessou pesquisadores e colecio­
começaram a ser realizadas a partir da década nadores devido à abundância de material
de 80. Tais datações estão sendo encaradas arqueológico, principalmente material lítico

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Paulo, 11: 1 2 5 -1 4 0 , 2 001.
ARAUJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 12 5 -1 4 0 , 2001.

lascado. Peças provenientes da região engros­ região, inserido dentro da Depressão Periféri­
saram coleções de particulares e atraíram ca, apresenta colinas suaves com desníveis
arqueólogos amadores, sendo, inclusive, a que não ultrapassam 40 a 60 m, formando um
falsificação de peças uma “atividade lateral verdadeiro corredor no sentido N-S. No
compensatória”. A prospecção mais sistemáti­ sentido E-W, o “caminho natural” seria o eixo
ca teria sido iniciada por Altenfelder em 1959, fluvial representado pela bacia do Rio Tietê,
pela Cadeira de Antropologia, Etnologia e localmente reforçado pela presença do Rio
Arqueologia da Faculdade de Filosofia, Piracicaba.
Ciências e Letras de Rio Claro. Em 1965, Maria O panorama inicial traçado por Altenfelder
C. Beltrão iniciou um projeto de levantamento dá conta de basicamente duas classes de
arqueológico paralelo na região. No ano de vestígios arqueológicos na região: sítios
1966, Altenfelder Silva insere-se formalmente líticos, caracterizados por serem amplos e
dentro do Programa Nacional de Pesquisas numerosos, e sítios cerâmicos, em número mais
Arqueológicas (PRONAPA), sob a coordena­ reduzido. Dada a maior facilidade com que
ção dos arqueólogos norte-americanos Betty geralmente são identificados sítios cerâmicos,
Meggers e Clifford Evans. Posteriormente, o é de se supor que a estimativa do autor seja
projeto de levantamento desvinculou-se do válida no que concerne ao tipo e à intensidade
PRONAPA. O responsável pelos trabalhos da ocupação pré-colonial na área.
seria Tom O. Miller Jr., então professor assis­ Apesar do reconhecimento da existência
tente da Faculdade de Filosofia, Ciências e de sítios líticos bastante amplos, Altenfelder
Letras de Rio Claro. As etapas de prospecção sugere que os mesmos seriam representativos
realizadas por Miller Jr. entre os anos de 1965 e de ocupações rápidas, “(...) sugerindo em
1967 abrangeram os municípios de Rio Claro, alguns casos tratar-se mais de campo de
Ipeúna, Charqueada, Itirapina, Cordeirópolis e pouso para sortidas de caça que habitações
Piracicaba, resultando na detecção de 97 sítios permanentes.” (Altenfelder Silva 1968:160).
arqueológicos. Um dos fatores que levou o autor a esta
Seguindo uma linha de pesquisa que pode conclusão foi a pequena espessura das
ser considerada bastante atual, e que infeliz­ camadas arqueológicas, que não ultrapassari­
mente não foi muito aplicada na Arqueologia am trinta centímetros. Trabalhos subseqüentes
brasileira de um modo geral, Altenfelder realizados por Miller Jr, publicados original­
justifica a inexistência de escavações sistemá­ mente na Tese de Doutoramento do autor
ticas por parte da equipe da FFCL de Rio Claro (Miller Jr. 1967) e posteriormente em outras
pelo fato de ser necessário primeiramente o publicações (Miller Jr. 1969a, 1969b, 1969c,
entendimento do panorama arqueológico da 1972), não favorecem a hipótese de os sítios
região, o que só seria feito por meio de um líticos da região de Rio Claro representarem
amplo trabalho de prospecção, uma vez que o ocupações tão rápidas, ou que fossem produto
“(...) trabalho de escavação implica na de populações que estavam “de passagem”:
destruição (...) e somente deve ser realizado
(...) para salvá-lo [o sítio] de uma destruição “O número de sítios nos horizontes
já iniciada ou inevitável, ou para responder líticos não tem que significar migrações;
um problema específico que não poderá ser pode, antes, significar ocupação intensiva da
resolvido de outra form a.” (Altenfelder Silva região por um povo, durante muito tempo.”
1968:158). (Miller Jr. 1968:40).
Alguns sítios apresentaram materiais
O panorama arqueológico inicial líticos em abundância; além disso, sabe-se
hoje que a espessura de uma camada arqueoló­
Os primeiros trabalhos de síntese e de gica é mais relacionada a processos de forma­
tentativa de correlação foram publicados por ção de sítio do que à duração da ocupação
Altenfelder (1967, 1968), que entendia a região propriamente dita (não tomando exemplos
como área de passagem e confluência de extremos como Tróia ou Jericó, bem entendi­
caminhos naturais. Com efeito, o relevo da do). Pode-se aventar, quando muito, a hipóte­

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se de que a região de Rio Claro e adjacências Dado o extenso trabalho de prospecção


tenha sido uma área de confluência de popula­ realizado na região, supomos que estas
ções pré-cerâmicas oriundas de outras regiões. observações sejam confiáveis, e não fruto de
No que se refere aos sítios cerâmicos, estes viés amostrai, comum em prospecções realiza­
poderiam ser atribuídos a dois grupos distintos: das estritamente ao longo de drenagens.
um grupo de sítios apresentando cerâmica No tocante à cronologia, apesar de ter sido
espessa com decoração plástica e pintada, aventado “um marcado hiato temporal” entre
atribuível à Tradição Tupiguarani (Altenfelder as ocupações pré-ceramistas e as ceramistas
Silva 1967:81) e outros sítios, em menor quanti­ (Altenfelder Silva 1967:82, 1968:163), a ausên­
dade, apresentando cerâmica pouco espessa e cia de datações absolutas e a existência de
escura, provavelmente relacionados à Tradição sítios líticos superficiais podem não corroborar
Itararé (Miller Jr. 1972). esta hipótese. Na verdade, toda a cronologia
Altenfelder coloca tentativamente uma da região foi realizada com base em métodos
cronologia baseada nos dados disponíveis à de datação relativa, quer seja pelo posicio­
época: um nível pré-cerâmico antigo, que seria namento estratigráfico dos níveis arqueológi­
datado entre 5.000 e 3.000 anos AP, contendo cos (no caso dos sítios líticos), quer seja por
apenas material lítico; um nível pré-cerâmico seriação de atributos estilísticos e tecnoló­
mais recente, entre 3.000 e 1.000 anos AP, gicos. Somente após a elaboração de uma
apresentando artefatos polidos; finalmente, o cronologia relativa é que foram datados alguns
nível cerâmico, entre 1.000 AP e a época da estratos, conforme será visto adiante.
colonização européia. Esta cronologia basea­
va-se no conhecimentos existente na época; o Estudo e interpretação dos
sítio arqueológico com datação mais recuada horizontes líticos segundo Tom O. Miller Jr.
do Brasil era José Vieira, com 6.683 anos AP
para o nível lítico mais profundo (Andreatta Antes de proceder ao apanhado geral das
1968, apud Miller Jr. 1968). interpretações realizadas por Miller Jr., seria
interessante colocar em contexto o autor e sua
Relações espaciais e temporais linha de pesquisa.
Os trabalhos de Miller Jr. podem ser
A ocupação do espaço pelas populações considerados pioneiros e mesmo exemplares,
indígenas da região de Rio Claro parece ter principalmente se levarmos em conta o então
obedecido a uma padronização distinta, estágio da Arqueologia em termos epistemo­
dependendo da faixa cronológica. Altenfelder lógicos, e o nível do conhecimento em termos
(1968:160) nota que há uma dicotomia com de Arqueologia brasileira. A ênfase na tecno­
logia lítica (e não simplesmente nos aspectos
relação à localização dos sítios líticos e
formais das peças), a preocupação com a
cerâmicos. Os primeiros encontrar-se-iam nas
interação homem-ambiente, o raciocínio
proximidades dos cursos d ’água, quer seja em
interdisciplinar e a fundamentação teórico-
terraços fluviais ou em elevações próximas.
metodológica explícita colocam os trabalhos
Os últimos, em sua maioria, estariam a cerca
deste autor em pé de igualdade com os
de um quilometro dos cursos d ’água e em
realizados pelos colegas de países mais ricos,
pontos elevados, onde a visibilidade dos
apesar do atraso que seria esperado na
terrenos adjacentes seria favorecida. Além
divulgação e acesso à bibliografia. Assim,
disso, o autor sugere uma maior coincidência
antecipando os colegas brasileiros em pelo
entre as ocupações ceramistas e as ocupa­
menos duas décadas, Miller Jr. já citava
ções atuais:
correntemente Butzer e Binford. O primeiro
“Os sítios do horizonte cerâmico acham-se capítulo de sua Tese de Doutoramento apre­
localizados quase sempre em áreas mais senta o posicionamento teórico que justificaria
próximas dos atuais centros de população, as tomadas de decisão efetuadas ao longo do
vilas ou cidades, coincidindo mesmo com elas, trabalho, incluindo discussões a respeito do
em alguns casos." (Altenfelder Silva 1967:82). tipo de analogia que seria usada nas interpre-
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Paulo, 11: 1 25-140, 2001.

tações (analogia comparativa geral) e qual o “vertical”, com execução de poços-teste e


conceito de cultura que mais seria adequado, a coletas em barrancos em detrimento de
seu ver, para o alcance dos objetivos propos­ escavações mais amplas, uma vez que seria
tos.1 Apesar de seus trabalhos apresentarem inútil tentar observar padrões espaciais em
uma ênfase em determinantes ecológicos que material arqueológico retrabalhado. Tal visão
atualmente poderia ser considerada um tanto pode ter, inclusive, chocado alguns colegas
excessiva, o mérito de explicitar teoricamente arqueólogos menos versados em processos
suas posições coloca o autor em uma categoria geológicos e geomorfológicos. O autor estava
à parte da de seus colegas. consciente de que somente os sítios arqueoló­
Saindo do domínio estrito da Arqueologia, gicos situados acima da linha de seixos superior
pode ser percebido nos textos de Miller Jr. um (mais recente) poderiam ser considerados
diálogo bastante profícuo com profissionais “depósitos primários” (Miller Jr. 1972:22).
das Ciências da Terra. Este diálogo, um
intercâmbio de informações na verdadeira Definição das tradições
acepção da palavra, resultou não só em líticas arqueológicas
aplicações da Geomorfologia à Arqueologia,
como é comum acontecer atualmente, mas em Com o aprofundamento das pesquisas
contribuições da Arqueologia à Geomor­ relacionadas aos horizontes líticos, Miller Jr.
fologia, o que é muito mais raro, para não dizer (1968) definiu duas tradições pré-cerâmicas
quase inexistente; a contraparte pode ser para a região; a Tradição Rio Claro e a Tradi­
exemplificada no artigo de M.M. Penteado, a ção Ipeúna. A diferença básica entre as duas
respeito das linhas de seixos (“stone lines”) da tradições estaria no tipo de tecnologia empre­
região de Rio Claro: gada na manufatura de artefatos líticos; na
Tradição Rio Claro haveria uma ênfase no
“Contudo, consideramos esta observação
lascamento e espatifamento, ou seja, na
e as conclusões a que chegamos válidas por
modificação da massa primordial de matéria-
estarem corroboradas por conclusões e dados
prima. A Tradição Ipeúna, por sua vez, seria
da pré-história.” (Penteado 1969:20).
calcada no aproveitamento de material com
Para entender a potencialidade e as formas preexistentes, como seixos, chapas,
limitações das correlações efetuadas por Miller cristais a fragmentos naturais. Não serão aqui
Jr., teríamos que nos aprofundar em uma série discutidas as definições de termos como
de definições geomorfológicas que talvez não “tradição”, “sub-tradição”, “fase” etc., que
caibam neste artigo. Outrossim, deve ficar carregam consigo uma série de problemas
claro que a cronologia e as reconstruções conceituais, mas será apresentada simplesmen­
ambientais tentadas pelo autor estavam te uma síntese dos conhecimentos adquiridos
balizadas, em termos de conhecimentos sobre a região.
paleoambientais e de processos morfoge- A Tradição Rio Claro foi subdividida em
néticos, no “estado da arte” da época. Basica­ quatro fases arqueológicas: a mais antiga seria
mente, o autor iniciou uma datação relativa a Fase Serra D ’Agua, caracterizada por uma
levando em conta a posição estratigráfica dos indústria com forte predominância de espatifa­
sítios arqueológicos e de seus “componentes” mento e lascamento bipolar (Miller Jr. 1972:72),
na paisagem. onde técnicas como a percussão direta estariam
O reconhecimento da gênese dos estratos praticamente ausentes. O tamanho dos imple­
onde o material arqueológico estava inserido mentos seria de médio a grande. Dentre os tipos
justificava em muitos casos uma abordagem de artefatos descritos estão incluídos plainas,
facas, raspadores, chopping tools e bolas, além
de bifaces foliáceas.2 Não foram observadas
1) N o caso, o conceito de cultura com o um meio
extra-som ático de adaptação, preconizado por L eslie
White e utilizado por Lewis Binford com o uma das 2) A tipologia definida pelo autor está em M iller Jr,
bases da “New Archaeology”. 1 9 7 2 :4 1 -4 4 .

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pontas de projétil. Posteriormente, o autor Monjolo Velho (Miller Jr. 1972:73), caracteriza­
admitiu que existem problemas de interpretação da pela predominância quase exclusiva de uma
no tocante à chamada técnica bipolar; as “lascas tecnologia de aproveitamento de seixos,
côncavas” e os respectivos “núcleos globu­ plaquetas e cristais em estado natural, fendi­
lares” ou “bolas” resultantes poderiam não ser dos ou com retoques marginais. Espatifamento
produtos de lascamento bipolar, e sim de e lascamento seriam raros. Os artefatos
alteração térmica. Outrossim, experiências de apresentariam tamanhos reduzidos.
lascamento com o núcleo parcialmente enterrado Um outro grupo de sítios apresentaria uma
no solo e aplicação tangencial do golpe de indústria ainda menos elaborada, com a utiliza­
percussão podem resultar em lascas côncavas ção de seixos, plaquetas e blocos naturais de
semelhantes às encontradas na região (Miller Jr., vários tamanhos, com um inventário tecno­
comunicação verbal).3 lógico ainda mais restrito do que o da Fase
A fase arqueológica seguinte, denominada Monjolo Velho.
Fase Santo Antônio, seria tecnológicamente O autor realizou também vistorias em sítios
embasada no espatifamento, mas apresentaria arqueológicos nos municípios de Conchas,
ênfase considerável na percussão direta com Anhembi e Laranjal Paulista, encontrando
percutor duro. Implementos de tamanho médio material lítico que “mostra essencialmente a
a grande, com grande freqüência de facas e mesma situação que observamos no norte do
raspadores, apresentando também chopping Rio Tietê” (Miller Jr. 1972:60), o que represen­
tools, plainas etc.. Pontas de projétil possivel­ taria uma extensão de pelo menos 100 quilôme­
mente fariam parte desta fase, embora não tros, na direção sul, das tradições e fases
tivessem sido encontradas in situ. reconhecidas para a região de Rio Claro.5
Posteriormente, teríamos a Fase Marchiori, Posteriormente, segundo Prous (1992), a
caracterizada por predominância da percussão chamada Tradição Rio Claro foi englobada no
direta com percutor duro, com baixa freqüência que se define atualmente como “Tradição
de espatifamento. Presença de pontas de Umbu”,6 sendo mantidos, porém, os nomes
projétil e machados de pedra polida.4 Maior das fases. Já a Tradição Ipeúna foi incluída na
freqüência de facas do que a fase anterior, e denominação genérica das “indústrias de
menor freqüência de raspadores. lascas sem pontas de projétil”, sendo mantida
Finalmente, a última fase da Tradição Rio a Fase Monjolo Velho.
Claro seria a Fase Pitanga, apresentando
variedade de técnicas de lascamento, com C ronologia
predomínio de percussão direta com percutor
duro e macio, incluindo percussão indireta. Os Conforme dito anteriormente, a cronologia
artefatos desta fase apresentariam característi­ das ocupações pré-coloniais para a região de
cas mais formais, com retoques ao longo dos Rio Claro foi feita principalmente levando em
bordos, peças trabalhadas bifacialmente, conta o posicionamento estratigráfico dos
incluindo formas foliáceas, ovoides e pontas níveis arqueológicos. Esta abordagem foi
de projétil, estas últimas em freqüência superi­ possível devido ao avançado estágio dos
or à fase anterior. Continua a presença de estudos de geologia e geomorfologia da região
artefatos de pedra polida. e, sobretudo ao caráter de multidisciplinari-
Para a Tradição Ipeúna, foi definida pelo dade adotado pelos pesquisadores envolvi­
autor apenas uma fase, denominada Fase dos, que transparece nos artigos escritos na
época.

3) Porém, as “lascas côncavas” mostradas na fig. 24


de M iller Jr. (1972:94) são provavelm ente lascas 5) Especificam ente a Fase Santo A ntonio da Tradição
térm icas. Rio Claro.
4) O que corrobora observações posteriores de que 6) Atribuição um tanto controversa, uma vez que
artefatos de pedra polida não são indicadores diretos nem todas as fases da Tradição Rio Claro apresentam
da existên cia de agricultura, e nem necessariam ente pontas bifaciais e, portanto, não poderiam ser
con tem p orân eos à cerâm ica. englobadas na Tradição Umbu.

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A correlação entre níveis arqueológicos apresentou peças pouco trabalhadas (possi­


ou “componentes” e formações geológicas velmente Tradição Ipeúna) misturadas a um
não é isenta de problemas. Se em alguns casos nível de cascalheira depositado imediatamente
pode-se ter um controle razoável sobre o que acima de uma formação geológica bem mais
representa a existência de artefatos em uma antiga (siltitos do Grupo Passa Dois, do
formação geológica, este nem sempre é o caso. Permiano Superior). Acima deste nível, interca­
Um depósito natural pode conter artefatos lado por pouco mais de um metro de solo
muito mais antigos do que a idade de sua coluvial, estaria o nível II (Tradição Ipeúna,
formação (como é o caso de uma cascalheira Fase Monjolo Velho) coincidindo com uma
de rio, por exemplo, que pode ter em seu “stone line”, ou linha de seixos, que na
interior artefatos erodidos de níveis mais interpretação de geomorfólogos seriam
antigos). O contrário também pode ocorrer; fragmentos de rocha transportados, remanes­
artefatos mais recentes podem se introduzir em centes de um período semi-árido. Após nova
depósitos subjacentes mais antigos, por meio intercalação de solo, com espessura de 1,20 a
de movimentação vertical. A primeira hipótese 1,40 m, haveria a deposição de mais um nível
foi amplamente reconhecida pelos pesquisado­ de linha de seixos com artefatos arqueológicos
res envolvidos (Miller Jr. 1972:25, Penteado misturados, que representariam o nível III
1969:25-28). Já no caso contrário, a inserção de (Tradição Rio Claro, Fase Serra D’Água).
peças mais recentes em níveis mais antigos é A partir da posição estratigráfica das
assunto pouco desenvolvido e pouco reco­ indústrias líticas, o autor utilizou-se da seria-
nhecido de um modo geral, quer seja entre ção de atributos tecnológicos e formais para
arqueólogos ou entre profissionais das entender quais atributos variavam com o
Ciências da Terra (Araújo 1995). Este último tempo. Assim, observou-se que, por exemplo,
fator pode, inclusive, invalidar algumas lascamento direto, tamanho da plataforma
interpretações relativas à existência de peças (talão), gumes de 15° a 35° e “canivetes” tinham
arqueológicas em extratos geológicos conside­ sua porcentagem aumentando com o tempo, ao
rados muito antigos. De qualquer modo, existe passo que raspadores laterais, gumes de 80° a
uma superposiçãq, de níveis arqueológicos na 100° etc. diminuíam com o tempo. Calculando as
região de Rio Claro que sugere um período porcentagens dos atributos sensíveis à passa­
longo de ocupação pré-colonial. Um exemplo gem do tempo e utilizando alguns cálculos
de “sítio-tipo” que representaria esta sucessão bastante simples, o autor construiu a chamada
e a cronologia relativa envolvida seria o Sítio “linha de regressão”, onde cada “componente”
Tira Chapéu (SP.IN.8), que apresentou três ou nível arqueológico é plotado em um plano
níveis arqueológicos distintos, ao longo de 4 cartesiano, formando uma reta que representa
metros de profundidade. Deve ficar claro que, um modelo de tempo (ver Miller Jr. 1972:68-71 e
no caso de Tira Chapéu, estamos lidando com fig- 58).
um depósito sedimentar, um depósito de baixa
vertente em processo de erosão. Segundo o Interpretações
autor e também Penteado (1969), os artefatos
teriam sido acumulados por processos morfo- A conjugação do posicionamento dos
genéticos, depositados juntamente com níveis arqueológicos em estratigrafía e a
material rochoso não trabalhado, durante um análise do material inserido em cada nível
período mais seco. Assim, o valor informativo levaram Miller Jr. a concluir que “(...) ao menos
de Tira Chapéu está, sobretudo, no que se na Tradição Rio Claro, houve uma evolução
refere à ordenação diacrônica das indústrias contínua da tecnologia lítica; a começar com
líticas, não podendo ser encarado como um a simples utilização de formas naturais com
local onde atividades humanas tivessem sido pouca ou nenhuma modificação (...) seguido
desenvolvidas. pelo espatifamento de blocos e seixos de sílex
Os artefatos dos níveis (componentes) I, II para produzir margens cortantes (...); final­
e III encontravam-se invariavelmente imersos mente observamos uma tradição de (...)
em formações naturais. O nível I, mais antigo, percussão direta, que empregou, primeiro,

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percutores duros (pedra), e, posteriormente, sas, o que não foi inteiramente possível. Porém,
percutores moles (Miller Jr. 1972:75). ainda a tempo de serem publicadas no último
No caso da Tradição Ipeúna, o contexto artigo-síntese (Miller Jr. 1972), o autor apresen­
seria menos claro, dada a própria característica tou algumas datações de C-14 feitas para o
pouco sofisticada dos artefatos. Em verdade, componente Santa Rosa III (portanto, Tradição
foi observada uma certa interrupção na Rio Claro, Fase Santo Antonio). Das datas
evolução proposta para a indústria lítica. A obtidas, apenas a mais antiga foi aceita pelo
Fase Santa Rosa, anterior a Monjolo Velho, autor, que considerou as outras inconsistentes e
apresentaria grande semelhança à Fase Santo provavelmente sujeitas a contaminação. Este
Antonio, posterior a esta última, colocada em argumento foi baseado em uma correlação que,
outro nível estratigráfico. Ao quadro de se com os conhecimentos da época poderia ser
evolução técnica, o autor acrescentou um viável, hoje parece um tanto frágil: o componente
quadro paleoambiental e propôs um modelo Santa Rosa IH estaria dentro da Fase Santo
hipotético para ser testado e orientar os Antonio, que, por sua vez, seria correlacionável
trabalhos de campo. Assim teríamos, resumida­ ao paleopavimento (linha de seixos) superior,
mente, a seguinte seqüência de eventos que, por sua vez, teria a mesma faixa de idade do
(Miller Jr., 1969b): terraço de várzea. Dado o fato de que um terraço
de várzea teria sido datado no Paraná em 2.500
1) Am biente de estepe ou savana, tempera­
tura alta, favorável à caça. Tradição “e co lo g ica ­ a.C., a única data plausível para Santa Rosa III
mente livre” (segundo Haury 1956, apu d M iller seria a data mais antiga, de 4.530±290 AP (3.330/
Jr. 1969b), representada no n ível (com ponente) 3140 a.C.).7 Na verdade, as datações para Santa
Santa Rosa I. Rosa III parecem coerentes, uma vez que as
2) M udança clim ática, aumento da
idades radiocarbônicas vão aumentando com a
umidade, expansão da floresta, dim inuição da
biom assa, especialm en te caça de grande porte.
profundidade (vide Tabela). Outro fator a ser
Tradição de caçadores torna-se incom patível levado em consideração é que não existe uma
com as con d içõ es am bientais, torna-se “e c o lo ­ correspondência direta entre as linhas de seixos
gicam ente presa”, resultando em uma adaptação (“paleopavimentos”) e fases climáticas mais
à vida florestal e em pobrecim ento do inventá­
secas. Sabe-se hoje que processos distintos
rio lítico , resultando em uma “tradição em
redução” (Haury op. c it.), representada pela
podem levar à formação de tais linhas.
Tradição Ipeúna. Parte da população teria saído No tocante à organização da tecnologia,
da região. hoje sabemos que é muito problemático dividir
3) Volta às condições clim áticas mais secas, sítios arqueológicos em classes cronológicas
condições de erosão formadoras da linha de
com base em atributos tecnológicos, como o
seixos inferior, onde foram depositados os
artefatos da Tradição Ipeúna (Fase M onjolo
tipo de lascamento (se por percussão direta,
Velho). N estas condições, M onjolo Velho seria por espatifamento etc.), ângulos de gume ou
uma tradição “ecologicam ente presa”, que tamanhos de artefatos. Sítios de atividades
encontrou situação am biental incom patível e específicas podem apresentar um inventário
desapareceu da região. Descendentes da popula­ bastante distinto de sítios habitação, mesmo em
ção que abandonou a área no estágio anterior,
se tratando de uma mesma população. Outros-
representada em Santa Rosa I, voltam à região
formando a Tradição Rio Claro. sim, pode ser que em longo prazo tais tendênci­
4) Continuidade da Tradição Rio Claro, as de variação na freqüência de atributos sejam
passando por mudanças representadas pelas fases realmente significativas. Independente de tudo,
descritas anteriorm ente, até aproxim adam ente o mérito de Miller Jr. residiu em organizar,
2.500 anos AP, quando o clim a volta a se tornar
publicar e justificar suas observações, além de
úmido, resultando na redução da tradição. Depois
disso, os agricultores teriam adentrado a região, montar bancos de dados com vista a uma
portando uma tecn ologia mais com patível com posterior informatização, novamente demons-
os recursos disponíveis.

A validade do esquema cronológico e


evolutivo proposto pelo autor poderia ser 7) Todas as datas calibradas dadas em parênteses
testada por meio de datações absolutas (C-14, (a.C.) foram calculadas segundo Stuiver & Reimer
termoluminescência) e continuidade das pesqui­ 1993.

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TABELA
D atas o b tid as p ara sítio s da região de R io C laro
Sítio Idade Data calibrada* Referência

2.490 ± 325 A P(30 cm prof.) 760 a 550 a.C. Miller Jr. 1972

2.840 ± 210 AP(33 cm prof.) 990 a.C. Miller Jr. 1972


Santa Rosa
3.080 ±455 A P(50 cm prof.) 1.380 a 1.320 a.C. Miller Jr. 1972
(com ponente III)
3.600 ±480 AP(56 cm prof.) 1.940 a.C. Miller Jr. 1972

4 .530 ±290 AP(55 cm prof.) 3.330 a 3.140 a.C. Miller Jr. 1972

Faz. Tanquinho 2.510 ±90 AP 760 a 600 a.C. U chôa 1975

Faz. Água Ronca 6.160 ±180 AP 5.070 a.C. U chôa 1975

Faz. Pau D ’Alho 4.140 ±345 AP 2.860 a 2.630 a.C. Uchôa 1988

5.505 ±105 AP 4.350 a.C.

Caiuby 5 .3 5 0 ± 1 2 0 AP 4.230 a 4.180 a.C. Morais 1982

A lice Boêr 2.190 ± 185 AP (TL) Beltrâo et al. 1983

10.970 ± 1.020 AP (TL)

14.200 ± 1.150 AP 14.583 a.C.

(*) Conforme Stuiver & Reimer, 1993.

trando um pioneirismo bastante louvável. A Paulista, o autor percebeu a “presença fre­


abordagem dos ângulos e formas de gumes qüente de alguns recipientes pequenos e
realizada pelo autor, em detrimento da tipologia rasos, muitos deles no estilo policromo, (...) ao
morfológica realizada amiúde até hoje, é extre­ lado de vasos redondos de 20 a 25 cm de
mamente pertinente e necessária para se altura, com superfície lisa, corrugada, engobo
entender a organização de uma tecnologia lítica branco ou banho vermelho, e ainda vasos de
“não formal” ou expediente.8 tamanho maior, provavelmente umas, com 0,80
a 1 m de altura, lisos, corrugados ou policro­
Os sítios cerâmicos mos.” (Altenfelder Silva 1967:83).
Com base em seriação, o autor comparou
Os principais trabalhos versando sobre os as freqüências de alguns atributos decorativos
grupos ceramistas da região de Rio Claro são e tecnológicos dos sítios de Rio Claro com as
de Altenfelder Silva (1967, 1968). O autor dá coleções de São Carlos, Piracicaba, Guaira e
conta de sítios cerâmicos em Rio Claro, Estirão Comprido (este último localizado no
Piracicaba, Itirapina e São Carlos, todos Paraná), obtendo uma cronologia relativa.
pertencentes à Tradição Tupiguarani, apresen­ Deste modo, como “hipótese provisória de
tando urnas funerárias no estilo corrugado e trabalho” o autor sugeriu uma maior antigüida­
policromo. Os fragmentos de cerâmica recupe­ de para os sítios localizados mais a sul, a
rados sugeriram ao autor uma grande varieda­ cerâmica de Piracicaba sendo mais antiga do
de de formas. Especificamente no Sítio Vila que a d ' Rio Claro e São Carlos. Os sítios de
Piracicaba apresentariam ainda uma maior
variedade e riqueza de formas, “(...) sugerindo
que se busque ali o centro de difusão da área.”
8) Ou “expedient” em inglês, segundo a definição de
(Altenfelder Silva, 1968:165). A região de Rio
Binford (1979), ou seja, uma tecnologia empregada
para um fim específico. Não confundir com o termo Claro apresentaria uma cerâmica mais tardia,
“expedito”, cujo sentido se restringe a um caráter de constituindo uma área periférica em termos de
rapidez. ocupação Tupiguarani.

134
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
P aulo, 11: 12 5 -1 4 0 , 2001.

Com relação à presença de sítios da estratigráfica. Dado o estado de conhecimentos


Tradição Itararé na região de Rio Claro, Miller atuais com relação às idades de alguns sítios
Jr. (1972:46, 54) dá indicação de dois sítios pleistocênicos no Brasil, pode-se aceitar sem
(Paraíso e Camaquã), o primeiro apresentando problemas que Alice Boér é um sítio cuja
material “semelhante ao Iacrí cinzento polido” primeira ocupação de deu em tomo de 11.000
encontrado pelo autor na região de Tupã, e o anos AP, o que o mantém como o mais antigo
segundo com cerâmica “idêntica ao Icatu do Estado de São Paulo.
escovado” encontrado em Braúna. Estes sítios A indústria lítica de Alice Boér apresentaria
estariam entre os mais setentrionais já encon­ três componentes tecnológicos que se sucede­
trados no Estado de São Paulo, sugerindo uma riam em ordem cronológica: inicialmente uma
continuidade espacial entre os sítios tradicio­ indústria com ênfase no lascamento de seixos,
nalmente conhecidos no sul do Brasil e a sotoposta a uma indústria com lascamento
região central do país (vide Araújo 2001 para unifacial, por sua vez substituída por uma
uma discussão sobre a possível dispersão indústria com lascamento bifacial (Beltrão,
espacial da Tradição Itararé). 2000:45). Estas observações se coadunam com
as “Tradições” propostas por Miller (1972) e
apresentadas acima; a Tradição Ipeúna poderia
Outras pesquisas realizadas na região representar a indústria sobre seixos, e a Tradi­
ção Rio Claro englobaria as indústrias mais
Além dos trabalhos desenvolvidos por elaboradas, com lascamento unifacial e bifacial.
Miller Jr., cabe citar as pesquisas efetuadas Em 1973, Dorath Uchôa e Caio Garcia, do
por Beltrão (1974, 2000), Uchôa e Garcia (1976) Instituto de Pré-História da USP, executaram
e Morais (1982, 1983). algumas vistorias e prospecções na região de
Os trabalhos de Beltrão foram iniciados em Rio Claro, dentro de um projeto que seria
1965, com a detecção de três sítios arqueológi­ conveniado entre a FFCL de Rio Claro e o IPH/
cos, um deles sendo o Sítio Alice Boér. USP. A continuidade do projeto foi comprome­
Assentado em um terraço fluvial e com uma tida, mas ainda assim os pesquisadores
estratigrafía de 4 m de profundidade, este sítio realizaram algumas vistorias e prospecções em
foi datado por termoluminescência e C l4, quinze sítios, tendo havido coleta de superfí­
apresentando datas entre 2.190 ± 185 AP e cie em onze deles, e escavação sistemática em
11.000 ± 1.000 AP (por T L )e 14.200 ± 1.150 AP um, denominado Sítio Pau D’Alho. O sítio
(por C14; vide Beltrão et al. 1983). Tais datas situa-se em uma encosta suave, próximo ao
dividiram a comunidade arqueológica nacional. fundo do vale, e a escavação foi realizada em
Muitos não aceitaram tal antigüidade para o uma área de 24 m2. Carvão associado ao
Homem na América do Sul, levando em conta material lítico (em sua maioria silexito, perfa­
as idades dos sítios arqueológicos mais zendo 98,97% do inventário) foi datado em
antigos descobertos no hemisfério norte. As 4.140 ± 345 AP (2.860 a 2.630 a.C.- Laboratório
idades de Alice Boêr colocariam o sítio como de Geocronologia da USP) e 5.505 ±105 AP
contemporâneo a Clovis, nos EUA, com uma (4.350 a.C. - Laboratório Isotopes, França). O
indústria lítica nada similar. A data mais antiga, material lítico encontrava-se sempre próximo
obtida por radiocarbono, pode ser colocada ou diretamente sobre o contato entre o
sob suspeita devido à relação indireta entre embasamento (arenitos do Grupo Tubarão) e o
carvão e material arqueológico, e pela abundân­ solo coluvial, o que sugere uma possível
cia de evidências de bioturbação na estratigrafía redeposição ou movimentação vertical. Se for
do sítio (vide o perfil estratigráfico apresentado este o caso, a relação entre o carvão datado e
em Meis & Beltrão 1982, Perez 1991:246). As o material cultural pode ser um tanto dúbia.
datas obtidas por TL, porém, são bastante Como não houve publicação de perfis estra-
confiáveis por se relacionarem às próprias peças tigráficos, a questão permanece em aberto.
líticas com alteração térmica, não dependendo Entre 1979 e 1980, a equipe de arqueólogos
de argumentos de ligação e tornando, portanto, do Museu Paulista da USP, chefiada por
irrelevantes as questões de perturbação Luciana Pallestrini, realizou três etapas de

135
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 125-140. 2001.

prospecções no Sítio Caiuby, no Município de da periférica rendeu 36 peças líricas, encontra­


Santa Bárbara D’Oeste. O Sítio Caiuby, localiza­ das nos primeiros 15 cm de profundidade, e
do na margem esquerda do Médio Piracicaba, outras seis peças foram coletadas em superfície.
apresentou exclusivamente material lítico O material lítico, a supor pelas observações
lascado, e o achado de uma estrutura de realizadas e pelos desenhos de algumas peças,
combustão com material arqueológico associa­ parece ser pouco trabalhado, composto princi­
do permitiu sua datação: 5.350± 120 AP (4.230 a palmente de lascas com retoque marginal, a
4.170 a.C.). As prospecções resultaram na maioria em arenito silicificado. Além do material
coleta de 405 peças que foram analisadas por lítico, o abrigo apresenta gravuras em uma área
Morais (1982, 1983). O inventário lítico mostrou- restrita, de 3 m2, e sulcos de polimento.
se bastante requintado, apresentando uma No Município de Analândia, o mesmo grupo
tecnologia de redução formal ou “curada”,9 de espeleólogos localizou o chamado “Abrigo
apesar de se tratar de local próximo à área fonte do Alvo”, que também apresenta gravuras
de matéria-prima; 26,35% das peças encontra­ rupestres (Figs. 1, 2, 3 e 4). O autor reaüzou
das eram retocadas. Encontrou-se alta freqüên­ algumas experiências de estabilização da rocha,
cia de raspadores de diversos
tipos, totalizando 11,6% das
peças. Além disso, foram encon­
tradas pontas projéteis finamente
trabalhadas, bifaces, percutores,
peças com reentrâncias etc..

Informações adicionais -
abrigos rochosos e arte rupestre

Cabe aqui tratar também das


prospecções realizadas pelo
grupo de espeleólogos liderado
por Guy C. Collet, que encontrou
uma série de abrigos rochosos
com gravuras e pinturas rupestres
nos municípios de Analândia,
Ipeúna e Corumbataí. Em um
destes abrigos, denominado
“Abrigo da Glória” (Collet 1980),
o grupo de espeleólogos chegou
a realizar uma sondagem. O
Abrigo da Glória é uma cavidade
arenítica localizada no Município
de Ipeúna, e suas coordenadas
aproximadas são 22° 26’08”S e 47°
47’40”W. De grandes dimensões,
o abrigo apresenta 55 m de
comprimento total, e altura média
de 6 a 8 m, com abertura voltada
para o norte. A sondagem
realizada em uma área considera­

Fig. 1 - Abrigo do Alvo - Analândia, SP. Croqui de gravura


(9) Ou “curated”, sensu Binford (1979). rupestre. Medida aprox. 1,00 x l,30m. Modif. de Collet 1981.

136
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 12 5 -1 4 0 , 2 001.

Figs. 2 e 3 - Abrigo do Alvo - Analândia, SP. Croquis de gravuras rupestres, sem escala
exata. Medida aproximada 1,00 x 1,30 m. Modificado de Collet 1981.

que se encontrava extremamente friável, com um (Collet 1986), obtendo resultados aparentemente
produto químico à base de acetato de vinila satisfatórios, mesmo após um período de doze

137
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 1 25-140, 2001.

Fig. 4 - Abrigo do Alvo - Analândia, SP. Croqui de gravura rupestre, sem escala exata.
Medida aproximada 1,00 x 1,30 m. Modificado de Collet 1981.

anos. Segundo o autor, o abrigo está localizado profundidade temporal da ocupação humana na
no sopé de um morro arenítico, voltado para região parece ser considerável. Sítios arqueológi­
leste, nas coordenadas geográficas 22° 07’03”S cos apresentando pontas de projétil foram
e 47° 39’05”W. As gravuras recobririam uma datados na faixa de 4.200 a 5.000 anos a.C., e uma
área de 12 metros quadrados, com motivos antigüidade maior pode ser pleiteada para os
geométricos, linhas e pontos. níveis arqueológicos estratigraficamente mais
Além das ocorrências mencionadas acima, antigos. Ocorre, porém, que apesar de um início
há ainda referências a outros quatro abrigos com promissor e metodológicamente bem embasado,
material arqueológico e/ou arte rupestre (Collet a arqueologia da região passou por um período
1981 e 1982): Abrigo Roncador, Abrigo da Santa, de total abandono desde meados da década de
Abrigo Bocaina (todos localizados em Ana­ 70, culminando com a dispersão da coleção
lândia, os dois últimos bastante próximos um ao arqueológica sob guarda da antiga Faculdade de
outro) e Abrigo Santo Urbano (Corumbataí). Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro. Após a
saída de Miller Jr. dos quadros da FFCL, o
material arqueológico, segundo testemunhos de
Considerações finais mais de um informante, foi acondicionado de
maneira insatisfatória, em caixas de papelão
A região centro-leste do Estado de São sobre o chão, e “pilhado” por alunos de gradua­
Paulo, e principalmente a área que compreende o ção. Pontas de flecha e machados de pedra
Município de Rio Claro e adjacências, apresenta teriam servido como elementos decorativos nas
um panorama bastante instigante no contexto da repúblicas estudantis. A preocupação de Miller
Arqueologia brasileira. A área foi objeto de Jr. com a documentação de suas pesquisas é o
estudos arqueológicos já há bastante tempo, e a que nos dá alguma esperança de resgate da
despeito da polêmica suscitada por algumas arqueologia da região. Um dossiê preparado pelo
datações bastante recuadas, é fato que a autor (Miller Jr. 1969c), por exemplo, lista todos

138
ARAUJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 1 2 5 -1 4 0 , 2001.

os 86 sítios encontrados até então, com as Este (des)caso poderia servir como ponto de
respectivas descrições e croquis de localização. partida para uma reflexão a respeito da efeme-
Suas outras publicações apresentam tabelas de ridade do que julgamos eterno (as coleções
classificação do material lítico, indo além da arqueológicas, os artefatos inter-relacionados
tradicional listagem de tipos e freqüências. É compondo um conjunto), da necessidade de se
possível que esta documentação cuidadosa publicar algo além de notas prévias e descrições
tenha sido tudo o que restou do patrimônio sucintas, e de nossa própria impermanência
arqueológico recuperado ao longo de quase uma como guardiões de um patrimônio que, se não
década de trabalhos na região de Rio Claro, uma for inculcado no imaginário popular como algo
vez que não se sabe quantos dos sítios identifi­ importante, dificilmente escapará incólume à
cados podem ainda existir. ignorância de administradores despreparados.

ARAUJO. A.G.M. Archaeology from Rio Claro region: a synthesis. Rev. do Museu de
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 125-140, 2001.

ABSTRACT: The Rio Claro archaeological area, a region emcompassing


several counties located in the central part of the State of São Paulo, can be
singled out as one of the most important in terms of Brazilian archaeology,
both for its importance on the issue of the peopling of the Americas, and for
the richness of the archaeological record. We here present a brief history of
the archaeological research in the area, an overview of the characteristics of
the archaeological record, and the main results obtained by the different
research teams.

UNITERMS: Archaeology - Rio Claro - São Paulo State - Paleoen-


vironment - Paleoindian.

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Recebido p a ra publicação em 20 de setem bro de 2001.

140
Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, S. Paulo, 11: 141-164, 2001.

OS DADOS INÉDITOS DO PROJETO MARAJÓ (1962-1965)

Denise Pahl Schaan*

SCHAAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu


de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 141-164, 2001.

RESUMO: Durante a década de sessenta, o Projeto Marajó identificou e


estudou dezenove novos sítios no sudeste da Ilha de Marajó, buscando
ampliar, dentro da metodologia de pesquisa empregada pelo Programa Nacio­
nal de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica/PRONAPABA, a base
de dados que sustentava o modelo das Fases da Floresta Tropical proposto
por Meggers & Evans (1957). No entanto, os resultados das pesquisas não se
encaixaram totalmente dentro das expectativas dos pesquisadores, e alguns
dados importantes nunca foram publicados. Neste artigo, confrontamos os
dados parciais publicados com os relatórios das pesquisas de campo e
resultados das análises da cerâmica (fichas de sítios, relação de fragmentos e
livro de tombo do Museu Goeldi), discutindo a validade do modelo utilizado
para a definição de culturas cerâmicas pré-históricas na Ilha.

UNITERMOS: Arqueologia da Ilha de Marajó - Fases da Floresta Tropical


- Culturas cerâmicas.

O Projeto Marajó foi um programa de Museu e do Instituto do Patrimônio Histórico e


pesquisas arqueológicas desenvolvido na Artístico Nacional/IPHAN, enquanto a firma
região sudeste da Ilha de Marajó, estado do Cardoso & Irmãos ofereceu ocasionalmente
Pará, em uma área de 450 km2 entre os rios transporte, estadia e outras facilidades, como a
Goiapi e Camará, durante os anos de 1962 a cedência de trabalhadores braçais (Simões
1965. Em um período de escassez de recursos 1981:155). Em quatro etapas de campo, entre os
destinados às pesquisas arqueológicas dentro meses de setembro a novembro dos anos de
do Museu Paraense Emílio Goeldi, a execução 1962, 1963, 1964 e 1965, Napoleão Figueiredo,
desse projeto foi possível graças à parceria Mário Simões e José Carlos Cardoso - os dois
desenvolvida entre a Universidade Federal do primeiros representantes das duas instituições
Pará, o Museu Goeldi e a firma Cardoso & conveniadas e o terceiro, sócio da firma proprie­
Irmãos, proprietária de várias fazendas em cujas tária das fazendas - localizaram, mapearam e
terras se localizavam os sítios arqueológicos. realizaram sondagens em dezesseis novos
Um pequeno apoio financeiro proveio do sítios, ampliando em direção à área sudeste da
Ilha o conhecimento que se tinha sobre a
ocupação pré-histórica na região (Simões 1967).
(*) Universidade de Pittsburgh, PA. Doutoranda em Esse foi o segundo maior projeto de
A ntropologia Social, Bolsista do CNPq. investigação arqueológica realizado no

141
SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

Marajó, pois, após as pesquisas de Meggers uma prospecção arqueológica na região dos
& Evans nos anos de 1948-49, houve somente rios Goiapi e Camará, Ilha de Marajó” (Atas do
a pesquisa realizada por uma expedição do Simpósio sobre a Biota Amazônica) e “The
Museu Paulista, nos primeiros meses do ano Castanheira Site: New evidence on the anti-
de 1950, da qual participou Peter Paul Hilbert quity and history of the Ananatuba Phase,
como representante do Museu Goeldi.1 Dados Marajó Island, Brazil” (.American Antiquity).
os antecedentes, o objetivo do Projeto Marajó Cerca de trinta e cinco anos depois, revendo
era o de: as anotações de laboratório, os relatórios e as
fichas dos sítios estudados naquela época,
“comprovar a seqüência local estabele­
descobrimos que vários dos dados que surgiram
cida por Meggers & Evans (1957) (...) e obter
através da análise do material cerâmico coletado
amostras de carvão para datação por C l4 ”
pelo Projeto Marajó continuam inéditos. Algu­
(Simões 1981:155-6).
mas ocorrências importantes jamais foram
O carvão coletado em dois sítios permitiu mencionadas, como a contemporaneidade das
datar o período de contato entre as Fases fases Mangueiras e Marajoara nos sítios PA-JO-
Ananatuba e Mangueiras (sítio PA-JO-26: 23: Ilha da Ponta e PA-JO-28: Ilha do Fogo, ou a
Castanheira) e forneceu uma data antiga para a existência de cerâmica, em alguns sítios, que não
Fase Marajoara (sítio PA-JO-36: Frei Luís).2 pôde ser enquadrada em nenhuma das fases,
Do Projeto Marajó resultaram quatro pois não se encaixava em nenhum dos tipos
relatórios de viagem com mapas e croquis, cerca descritos, por apresentar diferentes colorações
de quarenta mil fragmentos de cerâmica, de núcleo ou antiplástico constituído por ossos,
algumas poucas peças inteiras ou fraturadas areia ou cariapé.3 Além disso, o material proveni­
como urnas, vasos, banquinhos e tangas, além ente do sítio-cemitério de Ilha Pauxis nunca foi
de fragmentos de ossos e alguns artefatos estudado e o sítio não foi registrado. A rigidez de
líticos. A cerâmica foi classificada nos laborató­ princípios teóricos prévia à coleta de dados pode
rios da Área de Arqueologia do Museu Goeldi ter influenciado decisivamente na avaliação dos
segundo a metodologia utilizada na época, resultados das pesquisas:
separando-se os fragmentos segundo os tipos
já definidos por Meggers & Evans (1957), e “Como a seqüência regional já era conhe­
quantificando-os para a realização de seriações. cida, seria necessário apenas efetuarmos
O estabelecimento de cronologias relativas rápidas prospecções de reconhecimento ( “spot
entre os sítios partia da comparação entre as surveys”), isto é, a localização extensiva dos
freqüências relativas de dois dos tipos simples sítios e a respectiva coleta de material de
(não decorados) de cada fase. Os relatos das superfície para identificação e seriação
etapas de campo e os resultados das análises posteriores. Entretanto, pelo desconhecimento
do material foram publicados parcialmente em arqueológico da área em prospecção e a
três artigos: o primeiro em 1963, na Revista do necessidade de dados relevantes, como amos­
Museu Paulista, intitulado “Contribuição à tras de carvão para datação por C-14, padrões
arqueologia da Fase Marajoara”, assinado por de sepultamento e outros - somente obtidos
Figueiredo e Simões, e os posteriores, em 1967 através de escavações -, preferimos proceder
e 1969, de autoria individual de Simões, em todos os sítios cortes-estratigráficos para
respectivamente: “Resultados Preliminares de extrair destes o maior número possível de
informações” (Simões 1967:213).

(1) Os resultados das prospecções realizadas durante


essa expedição foram publicados por Hilbert, em (3) Em todas as cinco fases descritas por Meggers &
1952, e por M eggers & Evans, em 1957. Evans para a Ilha de Marajó, é característico o uso do
(2) Segundo o relatório de 1965 (Sim ões 1965:11), caco m oído com o antiplástico; com o a ocorrência
foi coletado carvão de mais dois sítios: PA-JO-33: desse antiplástico é atributo distintivo fundamental
São Leão (nível 45cm ) e PA-JO-34: Gentio (níveis na caracterização dos tipos cerâm icos dessas fases,
30, 60 e 90cm ), mas, aparentemente, estas amostras toda ocorrência diversa era considerada com o
não foram datadas. “inclassificado” ou, por vezes, cerâm ica “cabocla”.

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do M useu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

No entanto, à medida que as prospecções superfície foi, em geral, assistemática, e as


e a análise da cerâmica começaram a produzir sondagens foram realizadas nos pontos mais
dados que não confirmavam a seqüência já altos e/ou aparentemente não muito perturba­
estabelecida para as fases, e que mostravam dos dos sítios.
que poderia haver uma contemporaneidade Os cortes não seguiram um padrão
muito além da esperada entre os sítios, além de determinado quanto às suas dimensões -
revelar uma diversidade na manufatura da variando entre lxlm , l,5 x l,5 m e lx2m. As
cerâmica até então não reportada, os pesquisa­ escavações obedeceram a níveis artificiais que
dores podem ter optado por desconsiderar as variaram de 10 até 25cm. Como geralmente a
novas informações, uma vez que assumi-las escavação era realizada por trabalhadores não
implicaria em ter que rever o modelo corrente. qualificados e não era dada importância às
Os resultados publicados, portanto, apenas camadas estratigráficas, as observações a esse
confirmaram o quadro teórico já existente, respeito, nos relatórios, são lacônicas. Entre­
reforçando-o com as seriações realizadas com tanto, em alguns sítios, as poucas notas
os novos sítios descobertos na região sudes­ mostram a existência de camadas de ocupação
te. As datações absolutas obtidas, por seu distintas, com a ocorrência de placas de barro
turno, reenquadraram cronologicamente a batido e queimado, provavelmente relaciona­
posição geral das fases sem alterar sua das com pisos de casas (cf. Figueiredo 1963).
situação na sucessão diacrônica. No entanto, essas diferentes camadas não
No presente trabalho, portanto, apresenta­ foram consideradas relevantes para a constru­
mos e discutimos alguns dos dados levantados ção das seriações, o que poderia ter sido feito,
pelo Projeto Marajó - a partir do exame dos aumentando a confiabilidade do método, do
registros existentes na Reserva Técnica da Área qual uma das premissas era a de sucessão
de Arqueologia do Museu Paraense Emílio cronológica dos níveis estratigráficos, seguin­
Goeldi sobre os sítios pesquisados e do exame do o princípio geológico. Não foi levado em
do material proveniente dos sítios Ilha da consideração, por exemplo, que poderiam estar
Ponta, Ilha do Fogo e Ilha Pauxis, confrontan­ trabalhando com seqüências invertidas,
do-os com os dados publicados por Figueiredo ocasionadas por um reviramento acidental ou
& Simões (1963) e por Simões (1967,1969). antrópico do solo.
Em PA-JO-21: Teso dos Bichos, foi feito
um corte em 1964, escavado em níveis de 25cm,
A pesquisa de campo levado até 350cm. Após foi feito um “capea-
durante o Projeto Marajó mento” (Figueiredo 1964:6-8), com a descrição
das camadas estratigráficas - 10 camadas
distribuídas em 6 estratos distintos. Mesmo
A pesquisa de campo conduzida pelo
com esses dados, as seriações continuavam a
Projeto Marajó consistiu basicamente na
ser feitas segundo os níveis artificiais, mistu­
identificação, mapeamento, coleta de material
rando, portanto, em um mesmo nível, fragmen­
de superfície e realização de sondagens nos
tos de períodos claramente diferentes.
sítios arqueológicos da área selecionada. Os
Segundo Simões (1967), teriam sido
sítios foram identificados tanto através das
realizadas prospecções em 16 novos sítios,
informações obtidas junto a moradores locais,
levando em conta que os sítios PA-JO-21: Teso
como a partir da observação da existência de
dos Bichos e PA-JO-37: Fortaleza já tinham
material na superfície ou de acúmulo de
sido escavados anteriormente. No entanto, é
sedimento de origem antrópica em contraste
curioso que ele inclua na lista dos novos sítios
com o relevo natural da paisagem.4 A coleta de

(4) A região pesquisada é muito plana e os sítios vindo daí o nome de muitos deles. Os sítios da fase
sobressaem-se por serem elevados e cobertos de vegeta­ Formiga pesquisados em 1965, por exemplo, apresenta­
ção. Principalmente na época das chuvas, quando os vam cerca de 0,50m de altura acima do nível do campo e
campos são inundados, os sítios surgem como “ilhas”, somente PA-JO-33: São Leão, chegava a atingir 0,95m.

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SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

pesquisados pelo Projeto Marajó o sítio PA- A classificação da cerâmica


JO-26: Castanheira, que foi trabalhado por
José Carlos Cardoso sozinho em 1965, e que A construção tipológica realizada por
exclua de seus registros outro sítio pesqui­ Meggers & Evans para a aplicação do método
sado por Cardoso: Ilha Pauxis (nunca registra­ Ford no estudo da cerâmica proveniente da Ilha
do como sítio arqueológico). Ilha de São de Marajó baseou-se em dois critérios básicos:
Raimundo, por seu turno, segundo o relatório a decoração e a coloração do núcleo, uma vez
de 1962, foi visitado nesse mesmo ano por que o antiplástico identificado em todas as
Simões e Figueiredo, que fizeram coleta amostras era o caco moído, não podendo,
superficial, não registrando o sítio. Outro sítio portanto, ser utilizado como atributo distintivo.
ainda, PA-JO-38: Rocinha, não citado nas Durante a vigência do Projeto Marajó, nos
publicações, foi pesquisado por Cardoso em
laboratórios da Área de Arqueologia do Museu
1966 e, segundo a ficha do sítio,5 nos registros
Paraense Emílio Goeldi, a cerâmica era limpa,
do Museu Goeldi, é também da fase Marajoara.
numerada e classificada segundo os tipos
Durante a vigência do Projeto Marajó,
cerâmicos descritos por Meggers & Evans
foram visitados, portanto, segundo o que
(1957) para as fases da Ilha de Marajó. Simões
apuramos, um total de 19 sítios, sendo quatro
havia organizado as coleções-tipo, conjuntos
destes compostos por dois aterros cada um.
de fragmentos representativos de cada um dos
Do total, 17 foram formalmente registrados,
tipos cerâmicos, que serviam de guia comparati­
sendo exceção feita a Ilha Pauxis e Ilha de São
vo para a classificação.
Raimundo. Ilha Pauxis foi prospectada por
José Carlos Cardoso (fazendeiro que partici­ Em um primeiro momento, os fragmentos
pou das pesquisas de campo) e não existem no eram separados em função da existência ou não
Museu Paraense Emílio Goeldi notas de de decoração. Cada uma das três primeiras fases
campo, apesar de o sítio ter fornecido material da seqüência (Ananatuba, Mangueiras e
interessante e em quantidade (cf. Quadro 1). Formiga) possuíam um tipo-decorado-diagnósti-
Quanto às fases arqueológicas identi­ co, ou mesmo alguns traços diagnósticos que
ficadas, Simões descreve: permitiam sua rápida identificação; a cerâmica da
fase Marajoara, por sua complexidade decorativa,
“Dos sítios prospectados, 10 perten­ diferenciava-se suficientemente das outras fases.
cem à fase Marajoara (7 sítios-cerimoniais
No grupo dos fragmentos não decorados -
e 3 sítios-habitações), 5 à fase Formiga e 1
chamados simples - cada uma das fases se
à fase Ananatuba” (Simões 1967: 222).
diferenciava por apresentar características
Quatro dos cinco sítios da fase Formiga distintivas quanto à tecnologia de preparo e
pesquisados faziam parte, na verdade, de um queima da cerâmica, visíveis, supostamente, no
grupo de sete aterros, conforme o relatório: exame da pasta cerâmica. Os tipos simples
descobrimos uma série de sete descritos, no entanto, para cada uma das fases
aterros sobre a lombada do teso que vai desta (dois para as fases Ananatuba, Mangueiras e
fazenda [Ilha do Fogo] até o Curuxis. Embora Marajoara e quatro para a fase Formiga), possu­
nenhuma evidência arqueológica fosse em, na realidade, diferenças realmente significati­
encontrada à superfície, a ligeira elevação vas apenas quanto à cor do núcleo, apesar de as
acima do nível do campo e o tipo de solo descrições de cada um dos tipos serem detalha­
levaram-nos a testar tais elevações, revelando das quanto à qualidade da mistura, tamanho das
todos os cortes experimentais a presença de inclusões, dureza etc.. Sabe-se, no entanto, que
cacos logo abaixo da capa superficial. Dos uma construção tipológica sempre se baseia em
sete aterros prospeccionamos: aterro I (J-29), dois, no máximo três, atributos distintivos
II (J-30), III (J-31) e IV (J-32)” (Simões 1965:4). básicos e que as demais características do tipo
são, na realidade, variações previsíveis dentro de
um mesmo grupo de entes semelhantes.
(5) As fichas de sítio foram feitas seguindo o modelo Na tipologia de Meggers & Evans os tipos
proposto por M eggers e Evans (1965: 21-28). simples não apenas descrevem tipos sem

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

QUADRO 1
Ilha Pauxis
Informações constantes no Livro de Tom bo/Acervo arqueológico MPEG
(procedência Pauxis/Faz. Santa Maria, coletor José Carlos Cardoso). As observações são nossas

N°Tom bo D escrição Local Observações

933 Frag fase Marajoara Sitio A 53 frag. de cerâmica decorada, a maioria com engobo
vermelho e 54 frag. de cerámica-decorada.
934 Vaso fase não-identificada Sitio A Cerâmica leve, temperada com caco moído, muito porosa,
formato irregular, provavelmente devido à queima.
935 Vaso fase não-identificada Sitio A Tigela restaurada (cf. fig.2)
936 Vaso fase não-identificada Sitio A Tigela restaurada (cf. fig.2)
940 Frag. fase não-identificada Sitio A Vasilha restaurada em 1999. Pasta sem elhante ao tipo
Catarina sim ples (fase Formiga); engobo verm elho (cf.
fig.2)
941 Urna fase não-identificada Sitio A Uma sem decoração, restaurada (cf. fig.2)
942 Vaso fase não-identificada + 2 Sitio A Vaso com borda entalhada (cf. fig.2)
frag. Fase Marajoara
943 Frag. fase não-identificada Sitio B 9 fragmentos de cerâmica decorada e 12 de cerâmica não
decorada
944 Urna fase n ão-id en tificad a + Sitio B Vestígios de pintura marrom avermelhada (cf. fig.2)
ossos
945 Urna fase n ão-id en tificad a + Sitio B Não localizada
ossos
946 Frag. fase Marajoara ???? Sitio B Peça restaurada em 1999. Diâmetro 54cm, não foi possível
enquadrar em nenhuma das fases. Formato semelhante à
peça n° 940
947 Frag. fase Marajoara + fase não- Sitio C 97 fragmentos de cerâmica decorados e 150 fragmentos de
identificada cerâmica não decorada. Os fragmentos que não puderam
ser c la ssific a d o s na fase M arajoara apresentam pasta
sem elhante à fase M angueiras, mas também aos tipos
Camutins simples e Formiga Simples. A decoração inclui
u n gu lad os, d ig ita d o s, pintura p o licrô m ica , en gob o
vermelho, escovados e incisos
937 Lâmina de machado pequena Sem inform.
948 Lasca lítica Sem inform.
938 Pigm ento para pintura Sem inform.
939 Fragmentos de ossos humanos Sem inform.

decoração mas também definem tipos de pasta decorados, Saúba escovado (com pasta Coroca
cerâmica que podem - e devem - ser identi­ pimples), Mucajá corrugado (com pasta Embaú­
ficadas nos tipos decorados. Na fase Manguei­ ba simples) etc.. Essa classificação permitiu,
ras, por exemplo, existem dois tipos simples: principalmente para os autores, caracterizar
Mangueiras simples e Anjos simples, e, entre' mudanças cronológicas, criando uma seqüência
os tipos decorados, Bacuri escovado (com qüe resultou em uma sucessão diacrônica entre
pasta Anjos simples), Croari escovado (com as fases e uma cronologia relativa entre os
pasta Mangueiras simples), Pocoató raspado sítios de uma mesma fase, com o objetivo de
(com pasta Mangueiras simples) etc.. Na Fase mostrar que os sítios eram apenas parcialmente
Formiga, por exemplo, há quatro tipos simples: contemporâneos e, portanto, com grau de
Formiga simples, Coroca simples, Embaúba sedentarização compatível com o esperado para
simples e Catarina simples, e, dentre os tipos culturas de floresta tropical.

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SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 77: 141-164, 2001.

No entanto, um dos problemas que a equipe enterramentos: urnas, “alguidares”, banco,


de Simões encontrou na classificação do material tanga, “fruteiras”. O corte “aproveitado”
proveniente desses três sítios que aqui descre­ provavelmente foi aquele que possibilitou a
vemos foi que alguns dos tipos decorados, recolhida de fragmentos suficientes para a
relacionados a fases facilmente identificáveis, realização da seriação. Há a seguinte descrição
estavam aparecendo com pastas cerâmicas que sobre esse (corte 4):
não se enquadravam na descrição dos tipos “No primeiro horizonte, evidência de
simples de suas próprias fases. Além disso, barro queimado, carvão e pequenas placas
mesmo quando a maioria dos decorados se de barro endurecido de cor branca e amare­
encaixava bem em uma das fases, os tipos la, com sinais de fogo. Em um dos cantos do
simples pareciam ser de outra fase, o que era corte, fo i encontrada urna excisa, junto com
incoerente. Isso sem falar na coexistência de outra globular totalmente fragmentada.
fragmentos cerâmicos das fases Mangueiras e Retirou-se a urna, mais ou menos inteira, que
Marajoara em vários níveis em um mesmo sítio se encontrava repousando sobre areia numa
(Ilha da Ponta e Ilha do Fogo), o que era incom­ profundidade de 0,75cm” (Figueiredo 1963).
patível com a posição diacrônica dessas duas
Foi possível aos pesquisadores classificar a
fases, uma vez que, após as datações radiocar-
maior parte dos fragmentos coletados nesse
bônicas processadas com carvão obtido nas
ano segundo os tipos estabelecidos para a Fase
escavações do próprio Projeto Marajó, haveria
Marajoara (cf. Tabela 1). Entretanto, 71 fragmen­
um hiato temporal muito grande entre elas.
tos tombados sob o n° 1329 são classificados
Uma vez que esses fatos não poderiam ser
como “Mangueiras(?)” [sic].6 Nas fichas do
explicados de maneira convincente sem questio-
sítio encontra-se, referente ao nível 25-50cm, a
ir o modelo, Simões não publicou esses dados,
seguinte observação: “25 cacos não-Marajoara
) mesmo tempo em que preservou as primeiras
- provável Mangueiras?” [sic], enquanto, em
notações de laboratório onde, ao lado das
relação ao nível 50-75cm, 44 cacos já são
¡uantificações dos fragmentos da fase Manguei­
classificados como Mangueiras.
ras em dois dos sítios da fase Marajoara se
Essa ocorrência de fragmentos da fase
observam grandes pontos de interrogação.
Mangueiras, ainda que em número bastante
reduzido, nesse que se caracterizava como um
sítio-cemitério da fase Marajoara, deve ter sido
PA-JO-23: Ilha da Ponta
o motivo que levou Simões a voltar à Ilha da
Ponta em 1965. No entanto, o relatório de 1965
Durante a primeira semana de setembro do é bastante lacônico quanto a este teso:
ano de 1963, Napoleão Figueiredo e José
Carlos Cardoso escavaram o sítio Ilha da procedemos ainda a novo corte-
Ponta, localizado na Fazenda Santa Maria: estratigráfico no aterro Ilha da Ponta”
(Simões 1965:4).
“O aterro Ilha da Ponta é uma elevação
com aproximadamente l,5m de altura, medindo Nas fichas, entretanto, há a descrição do
200m de comprimento por 50m de largura, teso, seguida pelo relato de que o novo corte,
coberto de vegetação, com declives para o chamado então de 2, foi feito a 3m do corte 1
campo e para a baixa que, na estação chuvosa, (o aproveitado, corte 4) de 1963 (MPEG N° de
fica ligada ao igarapé Ilha do Fogo (...) Foram Tombo 964). Esse corte (lx lm ) foi escavado em
procurados os pontos mais altos do aterro. No níveis artificiais de 20cm até o nível 80cm, a
primeiro fo i tentado corte experimental de partir do qual começava o solo estéril. Apare­
Ixlm. Foram feitos 5 cortes, mas somente um foi ceram cacos, blocos de barro queimado e
trabalhado” (Ficha do sítio Ilha da Ponta, 1963). vestígios de carvão. Essa escavação foi
pródiga em fragmentos da fase Mangueiras,
O relatório de campo, entretanto, descreve
com algum detalhe os cinco cortes realizados,
sendo que em todos eles foram encontradas (6) Fonte: Listagem de fragmentos tombados,
peças semi-inteiras e fragmentadas, denotando Reserva Técnica Arqueológica MPEG.

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do iviuseu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

como mostra a Tabela 2. Na publicação de pesquisado Ilha da Ponta, em 1965, uma vez
1967, no entanto, Simões considera somente que são próximos um do outro. O aterro de Ilha
uma parte dos fragmentos coletados (tipos do Fogo é banhado a sul e sudeste pelo
Inajá simples e Camutins simples, da fase igarapé Ilha do Fogo, e media, à época,
Marajoara) para a realização da seqüência 98mx45m, possuindo 1,15m de altura acima do
seriada: 203 fragmentos Inajá simples e 84 nível do campo e distando cerca de 500m da
fragmentos Camutins simples (Simões 1967: fazenda Ilha do Fogo. Na parte oriental do teso
220), enquanto, somente no nível 0-20cm, havia um cemitério e o terreno estava bastante
havia 199 fragmentos Inajá simples e 113 perturbado e por essa razão escolheram a parte
Camutins simples! oeste para trabalhar, onde foram feitos dois
Simões realizou ainda uma coleta superfici­ cortes-estratigráficos e coleta de superfície.
al que produziu um total de 187 fragmentos, Ambos os cortes (lx lm ) foram escavados em
sendo 69 de cerâmica decorada e 118 de níveis de lOcm, mostrando evidências até o
cerâmica não decorada (cf. Livro de Tombo, n° nível 140cm, constituídas de fragmentos de
962). Não há registro da análise desse material cerâmica, barro queimado, pequenos fragmen­
nas fichas. tos de ossos e vestígios de carvão (Simões
Segundo a classificação realizada na 1965). No livro de tombo constam os números:
época, do total de 667 fragmentos tombados T. 967 - fragmentos das fases Marajoara e
provenientes da escavação de 1965, 10,64% Formiga, corte 1-A e T. 968 - fragmentos da
são da fase Mangueiras, 4,35% não puderam fase Marajoara e Formiga, corte 2-B. No
ser classificados dentro de nenhum tipo entanto, duas outras fontes de informações na
cerâmico e 85,01% são da fase Marajoara. Reserva Técnica da Área de Arqueologia do
Dessa fase, a porcentagem de decorados Museu Goeldi mostram dados diferentes.
atinge 41,23%, um valor bastante elevado, As fichas do sítio, feitas em seguida à
mesmo para sítios-cerimoniais.7 chegada de campo e onde eram colocadas as
Se, por um lado, os fragmentos coletados informações sobre a análise dos fragmentos
por Figueiredo e Cardoso em 1963 foram, mostram que, em relação à coleta de superfície,
infelizmente, guardados por tipo-variedade, dos 189 fragmentos coletados, 52 fragmentos,
perdendo-se a informação sobre sua proce­ classificados como pertencentes à fase
dência estratigráfica, por outro lado, o material Mangueiras e 9 fragmentos, classificados
coletado por Simões foi guardado segundo os como cerâmica cabocla, são tidos como: “não
níveis estratigráficos de onde provieram, Computados”. No canto da ficha consta:
divididos dentro dos níveis segundo os tipos “Marajoara - 72,5%; Mangueiras (?) - 27,5%”.
cerâmicos, o que tornou possível reexaminar Já na relação de fragmentos tombados na
parte do material e confrontar os dados com as Reserva Técnica (Tabelas 4, 5 e 6) tem-se 51
análises feitas à época. fragmentos como “provável Formiga”. Em
relação aos dois cortes feitos, os fragmentos
foram classificados em parte entre os tipos
PA-JO-28: Ilha do Fogo cerâmicos da fase Marajoara e parte permane­
ceu como pertencente à fase Mangueiras,' sem
A prospecção no sítio Ilha do Fogo foi a classificação nos tipos dessa última fase e
feita na mesma oportunidade em que foi com constantes pontos de interrogação ao
lado da expressão “fase Mangueiras”, com
relação a todos os níveis.
(7) Sim ões (1967: 219) classificou Ilha da Ponta É interessante notar que, na relação de
com o aterro-cerim onial, uma terceira categoria de quantificação de fragmentos existente na
sítio, que não é o sítio-cem itério (por não conter Reserva Técnica para todos os fragmentos
enterramentos), mas que apresenta mais de 8% da tombados, no corte 1-A, entre os níveis 0 e
cerâm ica coletada com decoração. N o entanto,
m esm o segundo esses critérios, Ilha da Ponta seria
80cm, os fragmentos Mangueiras aparecem
sítio-cem itério, pois Figueiredo, em 1963, localizou como “provável Formiga”, e para todos os
en terram en tos. demais níveis como “não-Marajoara”. Já no

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
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148
SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

TABELA3 Tombo 934, 935, 936, 942) e três umas (n° de


PA-JO-23: ILHA DA PONTA Tombo 941, 944 e 945) foram registrados como
(Resumo de dados da Tabela 2) de “fase não-identificada” (cf. Tab. 1; Fig. 1).
Fase Marajoara Fase Mangueiras Total Duas dessas urnas continham ossos. Apesar
de esse sítio não ser citado no relatório, sua
Níveis N° % N° % N°
localização consta do mapa anexado ao
0 -2 0 cm 399 100 0 0 399 relatório de 1965 (cf. Mapa). No Livro de
2 0 -4 0 cm 747 9 5 ,0 3 39 4 ,9 6 786 Tombo o material está registrado como proce­
4 0 -6 0 cm 266 3 6 ,3 4 466 6 3 ,6 6 732 dente de “Ilha Pauxis, Fazenda Santa Maria,
6 0 -8 0 cm 0 0 20 100 20 doado por José Carlos Cardoso em 1963”.
Total 1412 7 2 ,8 9 525 2 7 ,1 0 1927 Além disso, como local de procedência dentro
de Ilha Pauxis constam as denominações: sítio
A, sítio B e sítio C, o que sugere que o sítio
Livro de Tombo, o sítio é caracterizado como pode ser um agregado de pelo menos três
pertencente às fases Marajoara e Formiga, aterros. Além dessas peças, fragmentos e
enquanto na publicação de Simões de 1967 o ossos, provêm também do sítio uma lâmina de
sítio Ilha do Fogo consta como um sítio machado pequena (n° de Tombo 937) e pig­
cerimonial da fase Marajoara, sem nenhuma mento vermelho (n° de Tombo 938).
menção a outras fases. Ou seja, das primeiras Nesse sítio, os fragmentos que não podem
anotações de laboratório nas fichas até a ser claramente relacionados à fase Marajoara
publicação dos resultados, desapareceram mostram diferenças que não permitem enqua­
3.692 fragmentos! drá-los em nenhuma das fases, mas que
Observe-se ainda que no nível 90-100cm possuem uma maior semelhança aos tipos
do corte 2-A, os fragmentos da fase Manguei­ simples da fase Formiga. O fato de os enter-
ras (ou “provável Formiga” ou “não-Marajoa- ramentos estarem justamente em urnas de fase
ra”) perfazem 67,54% do total, enquanto no “não-identificada” torna esse sítio especial­
nível 40-50cm do corte 2-B, são 73,24%; mente interessante, pois em nenhum dos sítios
números expressivos o bastante para serem das fases Ananatuba, Mangueiras e Formiga
desprezados. pesquisados por Meggers & Evans e por
Simões & Figueiredo foram encontrados
enterramentos em urnas.
Ilha Pauxis
O antiplástico nos tipos cerâmicos
Esse aterro foi escavado por José Carlos
Cardoso e apesar de este material ter dado O caco moído é identificado como anti-
entrada no Museu Goeldi ainda em 1965, e do plástico predominante nas cinco fases cerâmi­
sítio constar no mapa do relatório de Simões cas da Ilha de Marajó. No entanto, outros
do mesmo ano, nenhuma menção é feita tipos de antiplástico, como cariapé, areia e
quanto a ele na publicação de 1967 ou mesmo osso, têm sido constatados em fragmentos de
na publicação de Simões e Araújo-Costa de cerâmica associados a todas as fases.8 Sobre o
1978 - onde, além de todos os sítios pesqui­ sítio PA-JO-26: Castanheira, Simões relata que:
sados e registrados, há menção da existência “os cacos simples inclassificados incluem
de diversos sítios sem localização precisa 6 temperados com osso e 29 temperados com
(Simões e Araújo-Costa 1978: 106-108).
A cerâmica, no entanto, foi analisada,
constando de fragmentos de vasilhas e urnas,
algumas das quais foram restauradas recente­ (8) Palmatary 1949 e M agalis 1975 fazem referência
ao uso do cariapé em cerâmica da fase Marajoara.
mente. Segundo a classificação realizada na R ecentem ente, Canto L opes (1 9 9 9 ) apresentou o
época, alguns fragmentos foram registrados cariapé com o antiplástico predom inante em cerâm ica
como pertencentes à fase Marajoara (n° de de sítio proto-histórico no leste da Ilha (sítio PA-JO-
Tombo 933, 946 e 947) e quatro vasos (n° de 46: Joanes).

149
SCHAAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia ,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

areia. Os primeiros se limitam à superfície e níveis, mas no total do corte atinge somente
níveis superiores e se relacionam à ocupação 1,11% (cf. Tabela 8).
cabocla recente do sítio "(Simões 1969: 404). Em PA-JO-33: São Leão, a cerâmica
Outros sítios, como os da fase Formiga temperada com osso está presente nos três
pesquisados durante o Projeto Marajó, níveis superiores, atingindo 3,14% do número
apresentaram também quantidades variáveis total de fragmentos (cf. Tabela 9).
de cerâmica temperada com osso. No sítio PA- Em alguns fragmentos decorados da fase
JO-31: Aterro Pelado, aparece uma porcenta­ Marajoara também temos constatado ocasio­
gem significativa de cerâmica temperada com nalmente a utilização de ossos triturados como
osso no 2° nível, perfazendo 31,74% dos antiplástico.
fragmentos do nível, enquanto, por exemplo, o
tipo não-decorado predominante do nível,
Formiga simples, alcança somente 26,7%. O A seqüência cronológica
número total de fragmentos do nível é estatis­
ticamente significativo: 397. No terceiro nível A partir das pesquisas realizadas no final
também há a presença da cerâmica temperada dos anos 40, Meggers & Evans identificaram a
com osso, em menor quantidade. No total do existência de contato entre as fases Anana-
corte ela alcança 11,91% (cf. Tabela 7). tuba e Mangueiras, a segunda substituindo a
No sítio PA-JO-32: Cavalo Morto, também primeira em dois sítios (J-7 e J-10), na costa
ocorre cerâmica temperada com osso no 2° e 3o Norte, e contato entre as fases Formiga e

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SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do M useu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

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São Paulo, 11: 141-164, 2001.

TABELA5
PA-JO-28: ILHA DO FOGO - Corte 1-A (Simões 1965) - MPEG Tombo 967
Fase Marajoara
Tipos não decorados Tipos decorados Outras cerâmicas
Camutins Inajá Joanes Carmelo Goiapi Outros tipos Provável Não N ão TOTAL
simples sim ples Pintado vermelho Raspado decorados Formiga Marajoara classificada

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10-20 cm 103 31,79 131 4 0 ,4 3 15 4,63 14 4,32 14 4,32 21 6 ,4 8 17 5,25 - 0 9 2 ,7 8 324 1 0 0 ,0
20-30 cm 115 27,38 168 4 0 ,0 17 4,05 14 3,33 36 8,57 16 3,81 44 10,48 - 0 10 2 ,3 8 420 1 0 0 ,0
30-40 cm 63 19,15 102 3 1 ,0 6 1,82 11 3,34 58 17,63 17 5 ,1 7 62 18,84 - 0 10 3 ,0 4 329 1 0 0 ,0
40-50 cm 35 12,28 84 2 9 ,4 7 2 0,7 7 2,46 41 14,39 18 6 ,3 2 82 28,77 - 0 16 5,61 285 1 0 0 ,0
50-60 cm 15 6,94 36 16,67 0 6 2,78 39 18,06 7 3 ,2 4 108 50,0 - 0 5 2,31 216 1 0 0 ,0
60-70 cm 30 12,55 56 2 3 ,4 3 0 5 2,09 20 8,37 2 0 ,8 4 121 50,63 0 5 2,1 239 1 0 0 ,0
70-80 cm 69 14,97 96 2 0 ,8 2 0 - 0 - 0 9 1,95 268 58,13 - 0 19 4 ,1 2 461 1 0 0 ,0
80-90 cm 61 14,59 40 9 ,5 7 0 4 0,96 6 1,44 1 0 ,2 4 0 275 65,79 31 7 ,4 2 418 1 0 0 ,0
90-100 cm 86 18,74 22 4 ,7 9 0 - 0 6 1,31 - 0 - 0 310 67,54 35 7 ,6 3 459 1 0 0 ,0
1 0 0 - 1 10cm 30 18,63 20 1 2,42 0 - 0 - 0 1 0 ,6 2 0 103 63,98 7 4 ,3 5 161 1 0 0 ,0
1 10-120cm 11 17,46 8 12,7 5 7,94 2 3,17 - 0 - 0 0 36 57,14 1 1,59 63 1 0 0 ,0
1 2 0 -1 30cm 7 16,67 4 9 ,5 2 0 -, 0 0 - 0 0 26 61,9 5 11,9 42 1 0 0 ,0
Total 892 21,7 1107 2 6 ,9 3 64 1,56 74 1,8 221 5,38 120 2 ,9 2 728 17,71 750 18,25 154 3 ,7 5 4110 1 0 0 ,0

Outras ocorrências - Nível 0-10cm: 3 fragmentos de tangas, 1 aplique; nível 10-20cm: 1 fragmentos de tanga; nível 30-40cm: ossos.
SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
TABELA6
PA-JO-28: ILHA DO FOGO - Corte 2-B (Simões 1965) - MPEG Tombo 968
Fase Marajoara
Tipos não decorados Tipos decorados Outras cerâmicas
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

Camutins Inajá Joanes Carmelo Goiapi Outros tipos Tempero de Não N ão TOTAL
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0-10 cm I 17, 19,67 195 3 2 ,8 35 5,9 8 1,34 28 4,71 9 1,51 0 194 32,6 9 1,51 595 1 0 0 ,0
10-20 cm 67 15,58 11 1 25,81 6 1,4 25 5,81 28 6,51 6 1,4 0 173 40,23 14 3 ,2 5 430 1 0 0 ,0
20-30 cm 42 10,1 71 17,1 2 0,48 5 1,2 34 8,17 5 1,2 0 243 58,41 14 3 ,3 6 416 1 0 0 ,0
30-40 cm 39 8,04 68 14 ,02 2 0,41 10 2,06 33 6,8 7 1,44 0 311 64,12 15 3,1 485 1 0 0 ,0
40-50 cm 19 5,35 30 8 ,4 5 1 0,28 9 2,53 19 5,35 1 0 ,2 8 0 260 73,24 16 4 ,5 1 355 1 0 0 ,0
50-60 cm II 5,76 14 7 ,3 3 2 1,05 9 4,71 6 3,14 - 0 0 139 72,8 10 5 ,2 4 191 1 0 0 ,0
60-70 cm 30 12,5 29 12,1 0 9 3,75 6 2,5 1 0 ,4 2 18 7,5 130 54,17 17 7 ,0 8 240 1 0 0 ,0
70-80 cm 33 11,54 25 8 ,7 4 0 10 3,5 15 5,24 - 0 0 190 66,43 13 4 ,5 4 286 1 0 0 ,0
80-90 cm 28 10,14 11 3 ,9 8 0 1 0,36 - 0 - 0 9 3,26 210 76,1 17 6 ,1 6 276 1 0 0 ,0
90-100 cm 22 9,91 12 5 ,4 0 - 0 2 0,9 - 0 10 4,5 152 68,47 24 10,81 222 1 0 0 ,0
100-1 10cm 4 3,51 1 0 ,8 8 0 2 1,75 1 0,88 - 0 13 1 1,4 78 68,42 15 1 3 ,1 6 114 1 0 0 ,0
1 10-1 2 0cm 4 10,81 - 0 2 5,4 - 0 - 0 - 0 0 22 59,46 9 2 4 ,3 2 37 1 0 0 ,0
1 2 0 -1 3 0 cm 7 35,0 1 5 ,0 0 2 10,0 - 0 - 0 0 10 50,0 - 0 20 1 0 0 ,0
Total 423 11,53 568 15,49 50 1,36 90 2,45 172 4,7 29 0 ,7 9 50 1,36 2112 57,59 173 4 ,7 2 3667 1 0 0 ,0

Outras ocorrências - Nível 0-1 Ocm: 4 fragmentos de tanga; nível 20-30cm: 1 fragmento de tanga; nível 30-40cm: 6 fragmentos de tanga; nível 60-70cm : 2
fragmentos de tanga.
SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia ,
SCH A AN , D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia ,

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i°Vd164S2001ltOS d° Pr0jet° MafajÓ (1962'1%5)- Revista d° Museu de Arqueologia e Etnologia ,

Marajoara, essa última também tomando os uma das fases (cf. Quadro 2). Segundo esses
locais ocupados pela anterior. Nenhuma dados combinados, observa-se, então, a
“conecção estratigráfica" (Meggers & Evans existência de um hiato entre o final da fase
1957: 408) foi encontrada pelos autores entre Mangueiras e o início da fase Formiga (ante­
as fases Formiga e Mangueiras ou entre cessora da Marajoara), que pode chegar a 800
Marajoara e Mangueiras. Mesmo assim, anos (Meggers & Danon, 1988:249). Durante
segundo as primeiras estimativas dos autores esse período, segundo os autores, que
na época, baseados na cronologia relativa adicionam dados climáticos e palinológicos ao
construída entre os sítios através da análise quadro, teria havido um período de aridez
cerâmica, o final da Fase Mangueiras estaria onde os recursos disponíveis à subsistência
próximo ao início da Fase Formiga e, portanto, teriam diminuído drasticamente, o que poderia
também ao da Marajoara (Meggers & Evans ter levado ao abandono da Ilha ou ao desmem­
1957: 590, fig.205). A partir de hipóteses bramento das comunidades que subsistiram
construídas sobre a duração do período de em pequenos grupos de caçadores-coletores
ocupação dos sítios, a construção da cronolo­ nômades, pelo menos em determinadas épocas
gia relativa e o fato de a Fase Aruã ser consi­ do ano (op.cit:251-2).
derada proto-histórica, os autores concluíram
que a ocupação da Ilha por todas as fases -
Ananatuba, Mangueiras, Formiga, Marajoara e Entendendo a “linguagem da cerâmica”
Aruã - teria durado cerca de 800 anos, com
início de Ananatuba em 700 d.C. A pesquisa que resultou no presente
Entretanto, após terem sido processadas artigo iniciou-se ao acaso, enquanto fazíamos
as primeiras datações absolutas, a partir das um levantamento nos registros das coleções
amostras de carvão coletadas durante o de cerâmica da fase Marajoara que haviam
Projeto Marajó, ampliou-se cronologicamente procedido de escavações, na Reserva Técnica
o período de ocupação pré-histórica na Ilha. A Arqueológica do Museu Paraense Emílio
pesquisa no sítio Castanheira, além de esten­ Goeldi. A constatação de que no sítio PA-JO-
der a área de dispersão das fases Ananatuba e 23: Ilha da Ponta, havia cerâmica das fases
Mangueiras para a região sudeste da Ilha, Mangueiras e Marajoara coexistindo nos
proporcionou a primeira e única datação mesmos níveis, nos levou do Livro de Tombo
absoluta para o momento de contato entre às fichas de sítios, relatórios e artigos publica­
essas duas fases - 980 ± 200 a.C. (SI-386), dos, que revelaram a existência de dados
através do carvão recolhido no corte A, nível discordantes entre as fontes e nunca reporta­
50-60cm (Simões 1969: 403). Além disso, dos à comunidade científica. Como resultado,
Simões obteve datas antigas para o que ficamos frente à tarefa a qual Simões se furtou
poderia ser o início Fase Marajoara: 480 ± 200 há 35 anos: explicar a contemporaneidade entre
d.C. (SI-386) e 580 ± 200 d.C. (SI-387) no sítio as fases Mangueiras e Marajoara, identi­
PA-JO-36: Frei Luiz. Como a fase Mangueiras ficadas em dois sítios da região pesquisada
teria tido uma curta duração e, além disso, era pelo Projeto Marajó.9
parcialmente contemporânea com Ananatuba, Examinamos uma amostra do material dos
sua distância diacrônica com relação à Fase sítios Ilha da Ponta e Ilha do Fogo, que atingiu
Marajoara poderia chegar a ser de 1.000 anos. cerca de 10% dos fragmentos de todos os
Na década de 80, Meggers & Danon (1988)
dataram vários fragmentos de cerâmica,
representando todas as fases de Marajó, pelo (9) O projeto Marajó não teve o mérito de, pela
processo de termoluminescência da cerâmica. primeira vez, ter identificado contem poraneidade
A combinação entre as datas produzidas pela entre as fases Mangueiras e Marajoara. M eggers e
Evans identificaram a presença de fragmentos de
cerâmica e as datações de radiocarbono
tangas vermelhas da fase Marajoara em “níveis
obtidas em escavações (dados de Simões e perturbados” no sítio PA-JO-17: Flor do Anajás (fase
Roosevelt) desenhou um quadro cronológico Mangueiras), mas essa ocorrência não foi considerada
bem mais preciso para o início e final de cada indicação de contato.

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São Paulo, 11: 141-164, 2001.

______________________________ QUADRO_2_____________________________
D a ta ç õ e s a b so lu ta s p a ra as fa se s a r q u e o ló g ic a s d a Ilh a de M a ra jó
(R a d io c a r b o n o e T e r m o lu m in e sc ê n c ia d a C erâ m ica )

FASES ARQUEOLÓGICAS

Datas/ n° laboratório Ananatuba Mangueiras Formiga Marajoara Aruã

1460 AC (T L -18) J-26


1450 AC (T L -34) J-7
1182 AC (T L -80) J-26
1110 AC (T L -79) J-26
1090 AC (T L -69) J-26
1062 AC (T L -81) J-26
1050 AC (T L -47) J-10
980 AC (C 14/SI-385)* J-26 J-26
920 AC (T L -76) J-26

S u p o sto h ia to en tre 920 AC e 70 AC (M eggers & D an on 1988)

70 AC (C 14/SI-202)* J-21
10 DC (T L -125) J-32
88 DC (T L -127) J-32
97 DC (T L -132) J-33 (J-33)
220 DC (T L -161) J-36
245 DC (T L -126) J-32
2 90 DC (T L -117) J-29
3 20 DC (T L -130) J-33
380 DC (T L -131) J-33
4 0 0 DC (T L -120) J-30
4 80 DC (C 14/SI-386)* J-36
580 DC (C 14/SI-387)* J-36
610 DC (TL) J-6
615 DC (C 14/G X -16061) J-14
690 DC (C 14/SI-199)* J-21
695 DC (C 14/G X -16075) J-21
750 DC (TL) J-6
837 DC (TL) J-6
890 DC (C 14/G X -16063) J-14
1150 DC (T L -88) ?
1195 DC (C 14/G X -16066) J-21
1275 DC (C 14/G X -16061) J-14
1320 DC (T L -48) J-21
1350 DC (TL) ?

Fonte: As datas TL são de M eggers & Danon (1988:248); as datas de C14* são de Sim ões
(1969:402 e em R oosevelt 1991:313-314); as dem ais são de R oosevelt (op.cit.).
“?” foi usado por não haver informação sobre o sítio a que pertencia a amostra cerâmica.

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níveis, apenas paia confirmar a análise feita em então era conhecido para a região, principal­
laboratório na época do projeto Marajó. O mente considerando-se as formas e o tipo de
material de Ilha do Fogo e de Ilha da Ponta de decoração pintada (identificada em apenas
1965 foi guardado separadamente por nível e uma vasilha). Além disso, esse sítio apresenta
por tipo cerâmico e nossa análise confirma a enterramento secundário em urnas, que até
classificação feita: de acordo com a classifica­ então não tinha sido identificado para as fases
ção tipológica construída por Meggers & Ananatuba, Mangueiras e Formiga.
Evans (1957) para a cerâmica das fases Man­ Aparentemente, os dados acima expostos
gueiras e Marajoara, há coexistência das duas significam que a fase Mangueiras, sendo
fases nos níveis 20-40cm e 40-60cm em Ilha da parcialmente contemporânea às fases Anana­
Ponta, com um total de 27,10% de fragmentos tuba e. Marajoara, possui uma duração superior
da fase Mangueiras em todo o corte (cf. Tab.3). a 1.000 anos, sendo, portanto, provável que se
Quanto à Ilha do Fogo, a situação é um pouco encontrem sítios dessa fase que venham a
diferente. O material é muito fragmentado e a preencher o “hiato” (baseado em evidências
análise depende basicamente do exame da pasta negativas) que é mostrado no Quadro 2. Ilha
cerâmica, onde identificam-se em geral fragmen­ Pauxis, por outro lado, seria uma sexta fase,
tos que seriam da fase Mangueiras e em menor pelo menos parcialmente contemporânea à fase
freqüência fragmentos que pertenceriam à fase Marajoara, ainda não estudada, e à espera de
Formiga. A cerâmica, em geral, não-Marajoara datação.
atinge um total de 35,96% no corte A-l e Vale relembrar que a metodologia de
57,59% no corte B-2 (cf. Tabs. 5 e 6). pesquisa utilizada por Meggers & Evans
Nas fichas do sítio Ilha do Fogo, onde baseava-se em duas hipóteses nunca compro­
foram anotados os resultados das análises de vadas: 1) de que os sítios encontrados na Ilha
laboratório, os fragmentos “não-Marajoara” seriam típicos das “culturas de floresta tropical”
aparecem claramente como Mangueiras. Nas (Meggers & Evans 1957: 18), portanto com
outras fontes de registros aparecem como agricultura pouco eficiente, dependentes dos
“provável Formiga”, “não-Marajoara” ou recursos florestais e aquáticos, de estilo de vida
“Formiga”. Isso se deve ao fato de que a semi-sedentário, e com organização social
contemporaneidade da fase Formiga com simples (sem concentração de poder, divisão do
Marajoara era possível segundo o modelo de trabalho ou desigualdade social) e 2) de que
sucessão diacrônica das fases da floresta não havia sentido em estudar a estratigrafía já
tropical e, portanto, era considerado mais que os sítios seriam “tipicamente pequenos e
provável que uma fase não-Marajoara, encon­ pouco profundos... com estratigrafía natural
trada juntamente com cerâmica Marajoara, limitada e sem restos arquitetônicos sobrevi­
fosse pertencente à fase Formiga. ventes, como paredes ou pisos” e os artefatos,
O fato de o sítio Ilha Pauxis ter sido sendo constituídos quase que exclusivamente
totalmente ignorado nas publicações não pode de cacos de cerâmica, não compensavam o
ser explicado pelo fato de esse sítio ter sido esforço de uma “escavação intensiva” (Evans
escavado por José Carlos Cardoso. Afinal, o & Meggers 1965: viii).
sítio PA-JO-26: Castanheira, que forneceu a As poucas referências sobre camadas
única data radiocarbônica para a fase Anana- estratigráficas nos registros do Projeto Marajó
tuba também foi escavado por Cardoso, sem a atestam a existência de camadas distintas, que
participação dos pesquisadores do Museu deveriam ter sido consideradas quando da
Goelui e da Universidade Federal do Pará. A coleta de fragmentos para as seriações,
cerâmica de Ilha Pauxis possui formas diferen­ proporcionando maior confiabilidade ao
tes das demais fases, mas é temperada com método. Além disso, o fato de na maioria dos
caco moído e possui pasta que, em algumas casos não ter sido feito nenhum comentário
peças (T.940, T.947) pode ser considerada sobre a estratigrafía, levanta dúvidas a respei­
semelhante à da fase Formiga. No entanto, no to da confiabilidade dos depósitos trabalha­
conjunto, a cerâmica de Ilha Pauxis aparece dos. Podemos, a partir de nossa própria
como algo totalmente diferente do que até experiência de pesquisa na Ilha de Marajó -

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escavamos sete sítios recentemente no rio sítio Ananatuba escavado pelo projeto
Anajás10 (Schaan 1999) - afirmar que é possí­ Marajó (PA-JO-26: Castanheira) localiza-se
vel identificar camadas arqueológicas distintas no campo, junto ao médio rio Camará, que
relacionadas a diferentes intensidades de deságua na Baía de Marajó e é navegável.
ocupação e uso diferencial do espaço; que Por outro lado, um dos sítios escavados
diferentes áreas escavadas dentro de um por nós, PA-JO-50: Rio Branco, localiza-se
mesmo sítio mostram diferenças importantes no em zona de floresta, à margem esquerda do
tipo e quantidade de artefatos encontrados; e rio Anajás, um dos maiores rios do centro
que é possível distinguir claramente depósitos da Ilha, navegável em todo seu curso. O
bem preservados de depósitos onde as cama­ sítio Rio Branco fica a mais de 20km de
das sofreram distúrbios, antrópicos ou naturais. distância do campo e, enquanto em nenhum
Um rápido exame da literatura arqueológica dos sítios Ananatuba pesquisados anteri­
brasileira da década de 1990 permite observar ormente foram encontrados enterramentos,
que a “crença” na impossibilidade de distin- no sítio Rio Branco encontramos dois
guir-se camadas estratigráficas acabou enterramentos em umas.
juntamente com o Programa Nacional de 2) Os sítios da fase Marajoara escava­
Pesquisas Arqueológicas/PRONAPA e sua dos por Meggers e Evans (1957): PA-JO-
versão amazônica, o Programa Nacional de 14: Monte Carmelo e PA-JO-15: Camutins;
Pesquisas Arqueológicas da Bacia Amazônica/ e por Roosevelt (1991): Guajará (aterro de
PRONAPABA. A utilização das seriações dos PA-JO-14: Monte Carmelo) e PA-JO-21:
tipos cerâmicos como forma de inferir duração, Teso dos Bichos, foram considerados
tamanho, contemporaneidade e reocupação em como sítios típicos da fase Marajoara. Os
sítios nas terras baixas amazônicas tem sido autores basearam suas conclusões (sem
seriamente criticada (Raymond 1995; DeBoer, entrar no mérito das diferenças radicais
Kintigh e Rostoker 1996) e à medida que novas entre as duas abordagens) também nas
pesquisas arqueológicas desenvolvem-se na evidências disponíveis para outros sítios
Amazônia, os modelos generalizantes come­ da fase, a grande maioria deles, aterros
çam a ser postos em cheque (ver Hecken- construídos artificialmente, localizados na
berger, Petersen e Neves 1999). região dos campos, contendo cerâmica
Vimos somar aos dados aqui apresentados cerimonial e funerária. No entanto, os
aqueles coletados durante nossas pesquisas, aterros são apenas parte - ainda que
atualmente em andamento. Basicamente o que fundamental - da história da fase Mara­
pretendemos demonstrar é que há uma variabi­ joara. Quatro sítios dessa fase, recente­
lidade de formas de ocupação do espaço mente escavados, localizam-se às margens
fisiográfico e organização social na pré- do rio Anajás, dentro de um trecho de 5km,
história da Ilha de Marajó da qual o modelo no centro da Ilha, em zona de floresta,
anteriormente utilizado não pode dar conta. sobre elevações naturais do terreno. Não
Citamos como exemplo: há indício de construção artificial nem de
relação clara entre os sítios, que mostram
1) Meggers & Evans (1957: 246)
diferenças marcantes na cultura material e
concluem que a fase Ananatuba caracteri-
nas formas de ocupação do espaço
za-se por ocupar região de floresta prefe­ intrasítio (Schaan 1998, 1999).
rencialmente, e que a proximidade do campo
é mais importante do que a proximidade a As fases arqueológicas identificadas por
um curso d’água navegável. No entanto, o Meggers e Evans foram concebidas como
demarcadoras de culturas distintas. Enquanto
Ananatuba foi incluída na tradição hachurado-
(10) PA-JO-49: Cacoal, PA-JO-51: Saparará, PA-JO- zonada, Mangueiras na borda-incisa e Mara­
52: Casinha e PA-JO-55: Leal, da fase Marajoara;
joara na policrômica, a fase Formiga não foi
PA-JO-50: Rio Branco, da fase Ananatuba; PA-JO-53:
Vista A legre, PA-JO-54: São Benedito, até agora não relacionada a nenhuma tradição maior. Funda­
classificados em nenhuma das fases previamente mentalmente, percebe-se que o método de
definidas. classificação considerou as fases como não-

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relacionadas a priori. No entanto, todas as pelo exame da superfície dos fragmentos,


fases ocupam os mesmos ecossistemas, distinguir entre a técnica de escovação desta
compartilham semelhanças na tecnologia fase para as outras. Além disso, os tipos
cerâmica: nas formas de vasilhames, nas Bacuri escovado e pseudo-sipó inciso da fase
técnicas decorativas, nos designs. Além disso Mangueiras são feitos nas mesmas formas que
todas usam o caco moído com antiplástico, são feitos na fase Ananatuba, só mudando,
uma característica que não é comum em outras portanto, a pasta, no exame da qual a caracte­
cerâmicas da foz do Amazonas. Basicamente, o rística distintiva é a cor do núcleo.
uso do caco moído como antiplástico, o Espera-se que a coloração do núcleo dos
engobo e a técnica da escovação das paredes fragmentos cerâmicos seja conseqüência dos
externas das vasilhas surge com a fase Anana- procedimentos técnicos utilizados pelo
tuba e perdura até a fase Marajoara. ceramista para o processo de queima dos
O “tipo diagnóstico” da fase Ananatuba, vasilhames. Considera-se que contumazes
sipó inciso, se apresenta em freqüências muito ceramistas no passado tenham criado, repro­
pequenas nos sítios pesquisados - 0,5% em duzido e perpetuado procedimentos técnicos
PA-JO-9; 1% em PA-JO-10 e 3% em PA-JO-7. para a realização de uma queima bem feita e
Talvez por isso não seja coincidência o fato de rentável, o que se pode traduzir em vasilhames
PA-JO-7 ser justamente o sítio onde há resistentes e minimização de custos com
coexistência entre as fases Ananatuba e material combustível e tempo despendido por
Mangueiras, quando Mangueiras começa a peça. Como resultado do processo de reprodu­
“copiar” o tipo inciso Ananatuba. Os tipos ção de procedimentos técnicos durante várias
incisos são tão semelhantes que Meggers & gerações, pode-se identificar no registro
Evans chamaram tanto o inciso da fase arqueológico através do estudo da cerâmica a
Mangueiras quanto o da fase Formiga de manutenção e reprodução de uma determinada
Pseudo-sipó inciso, nome dado inicialmente ao técnica de produzir cerâmica. Que isso seja
tipo inciso da fase Ananatuba, chamando-os chamado de fase pode fazer sentido, mas não é
de “Pseudo-sipó inciso variação M anguei­ lógico que as fases sejam identificadas com
ras" e “Pseudo-sipó inciso variação Formi­ diferentes culturas e que essas culturas
ga", uma vez que teriam copiado ou sofrido correspondam a diferentes grupos sociais. Não
influência da fase Ananatuba. há razão para que se considere que uma
“Este tipo [Sipó inciso] fo i assim chamado técnica ou um estilo tomado isoladamente
para enfatizar o fato de que os motivos são defina uma cultura, como se a cultura pudesse
idênticos àqueles do Sipó inciso da fase ser reduzida a uma de suas dimensões e fosse
Ananatuba. Se distingue somente por ser homogêna e imutável; e ainda que à sociedade
aplicado à Mangueiras simples ou Anjos corresponda uma só cultura, e que, portanto,
simples, mostrando que representa a adoção cultura e sociedade possam ser definidas
e perpetuação desta técnica decorativa dentro dos mesmos limites.
alienígena pelo povo da fase Manguei- Em vista dos dados coletados pelo Projeto
ra s ”(Meggers e Evans 1957: 218-9). Marajó, é necessário avaliar as semelhanças e
Uma análise dos tipos decorados nos leva diferenças entre a cerâmica das fases Man­
a perceber que existe uma continuidad; das gueiras e Marajoara. As duas fases têm dois
técnicas decorativas utilizadas em todas as tipos “simples”: um com núcleo alaranjado e
fases. Os tipos escovados são, em geral, outro com núcleo de cor escura (cinza, preto
bastante semelhantes: deixando-se de examinar ou marrom). Anjos simples (fase Mangueiras)
a cor da pasta, muitas vezes podem ser e Camutins simples (fase Marajoara) têm
encontradas diferenças mais significativas núcleo claro, alaranjado, mas Anjos tem uma
entre fragmentos com decoração escovada de pasta mais fina, melhor misturada, de cor mais
uma mesma fase do que entre fragmentos de freqüentemente ocre, enquanto Camutins tem
fases diferentes. Dentre todas as decorações, uma pasta de mistura mais grosseira, de uma
os tipos escovados atingem freqüências mais cor alaranjada forte, mostrando uma clivagem
altas na fase Mangueiras, mas não é possível, em ângulos bem pronunciados. Fragmentos

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típicos desses tipos, examinados à lupa, são co dessa maneira e que a provável grande
caracteristicamente distintos. No entanto, duração da fase Mangueiras (ou a menor
examinamos muitos fragmentos de cerâmica distância entre as fases Ananatuba e Marajoa­
Marajoara decorada (bastante elaborada) com ra) não pode ser explicada dentro do antigo
pasta tipicamente... Anjos simples! paradigma. Por outro lado, os dados estritos
Entendemos que as diferenças na queima produzidos pelas pesquisas anteriores não
da cerâmica indicam diferentes procedimentos permitem interpretações diferentes, pois estão
técnicos, cujos efeitos não são totalmente amarrados a hipóteses de pesquisa que não se
controlados pelo ceramista, e não definem sustentam frente às novas evidências.
obrigatoriamente diferentes culturas ou grupos Entendemos que os novos dados aqui
sociais na acepção dada por Meggers & Evans. apresentados e as questões levantadas, ainda
O problema é que a coleta dos fragmentos de que de maneira preliminar, não apenas questio­
cerâmica durante o projeto Marajó foi feita nam a validade da seqüência cultural apresenta­
seguindo um procedimento que não admite da por Meggers & Evans para a Ilha de Marajó
outras leituras. Por isso, dificilmente um mas demonstram a fragilidade da construção
reestudo da cerâmica proveniente das pesqui­ tipológica cerâmica até então utilizada para a
sas anteriores poderia dar um bom resultado ou identificação e caracterização de culturas pré-
esclarecer os muitos pontos obscuros. Além históricas distintas na área. A partir desse novo
dos problemas assinalados relativos aos quadro fica claro que as pesquisas relativas à
métodos de escavação, a cerâmica proveniente ocupação pré-histórica da Ilha de Marajó
de campo é, em geral, muito fragmentada e, em deverão orientar-se no sentido de questionar a
alguns casos, não foi guardada obedecendo validade do modelo de sucessão diacrônica das
aos critérios de sua procedência, mas segundo Fases da Floresta Tropical, não só em função
sua classificação em tipos cerâmicos, o que de sua relação espaço-temporal mas inclusive
para alguns sítios toma inviável aplicar uma questionando as bases teóricas sobre as quais
metodologia diferente de análise. ele constituiu-se.
Não pretendemos afirmar que não existem
diferenças entre as supostas fases. Com base
nas evidências que se possui até o momento, Considerações finais
pode-se considerar cada fase como diferentes
estilos de fazer cerâmica. A coexistência A fase de pesquisas arqueológicas na Ilha
parcial ou total de algumas destas populações que se encerra com o projeto Marajó ilustra
com seu estilo próprio de fazer cerâmica levou uma abordagem do registro arqueológico em
ao compartilhamento de procedimentos que toda a explicação derivava simplesmente
técnicos e à ocorrência de influências mútuas do estudo de fragmentos cerâmicos, tidos
entre elas. As poucas datações absolutas que como demarcadores culturais e temporais que
se possuem para as três primeiras fases podiam ser lidos do ponto de vista de algumas
cerâmicas da Ilha não são conclusivas sobre de suas características técnicas e suas quanti­
sua duração, início e fim, pois baseiam-se em dades. Essas características não eram relacio­
material coletado em alguns poucos sítios. Os nadas com nenhuma outra evidência material
dados disponíveis constituem-se basicamente ou feição arqueológica dentro dos sítios
na descrição de tipos cerâmicos e seriações, pesquisados. Considerava-se, desta maneira:
além de estimativas sobre o tamanho dos 1) o sítio arqueológico como um espaço
sítios. A aplicação dessas técnicas buscou homogéneamente ocupado, por onde os itens
produzir dados comparáveis de tal maneira que componentes da cultura material (cerâmica)
uniformizou o registro arqueológico fechando espalhavam-se indistintamente; 2) que todos
os olhos para especificidades e variações que os sítios que exibiam os mesmos tipos cerâmi­
não estivessem previstas no modelo. Ou seja, cos básicos, agrupados sob a denominação de
a metodologia de trabalho trazia implícitas as “fase cerâmica”, faziam parte de uma mesma
conclusões da pesquisa. Consideramos que etnia/cultura e, conseqüentemente, indicavam
não é possível entender o registro arqueológi­ a existência de populações que possuíam as

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mesmas estratégias de subsistência; 3) que a onde for encontrado o mesmo tipo de cerâmica
mudança de características tecnológicas encontrar-se-ão também todas as demais
através do tempo obedecia uma razão constan­ características relacionadas a ela nos sítios
te e homogênea para todos os sítios; 4) que os previamente pesquisados. Disso decorre que,
sítios não eram totalmente contemporâneos e se antes, a abertura de um ou dois poços-teste
que representavam episódios de reocupação em uma meia dúzia de sítios fornecia material
dada a mobilidade dos grupos sociais em para o entendimento do processo de ocupação
função dos recursos naturais. humana de uma grande área geográfica, hoje a
Nossa crítica a esse modelo de pesquisa escavação da mesma quantidade de depósitos
não se refere simplesmente à sua abordagem em um só sítio nos fala ainda pouco sobre o
no estudo da cerâmica, mas à concepção sítio e menos ainda sobre sua inserção em um
subjacente a ele a respeito do significado da contexto regional.
cerâmica enquanto fonte de dados sobre as Ao lado do estudo meticuloso de sítios
sociedades e culturas arqueológicas. A arqueológicos, os levantamentos e estudos
cerâmica é uma das mais importantes fontes de regionais são extremamente importantes e são
dados para os sítios amazônicos dadas suas cada vez mais reconhecidos como necessários
características de perenidade dentro do na medida em que fica claro que complexas
ambiente úmido da floresta tropical, mas não redes de trocas e intercâmbios culturais
pode ser entendida fora do seu contexto de regionais ligavam as sociedades humanas pré-
deposição. Isso significa dizer que deve ser históricas. Esses estudos requerem planeja­
relacionada com feições arqueológicas e com mento da pesquisa e metodologias específicas
as diferentes áreas de atividade e organização - prospecções regionais que combinem
do espaço intrasítio, dados estes que somente técnicas de amostragem probabilística adequa­
podem ser obtidos através de uma escavação das às perguntas da pesquisa, construções de
que envolva: estudo de camadas estratigrá- tipologias de sítios e artefatos, estudos de
ficas - seu processo de formação, sua compo­ variabilidade e dispersão de feições arqueoló­
sição e sua distribuição diferencial diacrônica gicas, levantamento de informações sobre a
e sincrónica no sítio - , estudos de composição distribuição espacial dos sítios e monitora­
química e mineralógica do solo, estudos de mento e análise dos dados em um sistema de
remanescentes de fauna e flora, plotagem e informação geográfica. Nesse sentido, os
registro gráfico da distribuição de objetos da artefatos constituem-se em um dos segmentos
cultura material através do sítio, estudo e geradores de informação, que devem ser
registro gráfico horizontal e vertical de feições estudados dentro do contexto particular de
arqueológicas etc.. sua ocorrência e em uma perspectiva regional.
Afirmamos que os fragmentos cerâmicos Por todos os motivos acima expostos,
não têm distribuição homogênea, mas diferen­ consideramos que, ainda que os estudos com
cial sobre o sítio. Dada a existência de diferen­ material proveniente de antigas pesquisas
tes áreas, relacionadas a atividades específicas possa ser importante, as novas questões que
- descarte, preparação de alimentos, manufa­ ora se colocam para a arqueologia da Ilha de
tura de artefatos, circulação, performances Marajó, e por extensão a toda a arqueologia
rituais etc. - os contextos deposicionais amazônica, certamente só poderão ser respon­
devem ser estudados para a reconstituição das didas a partir do desenvolvimento de novas
áreas de produção, uso e descarte dos obje­ pesquisas, orientadas segundo um enfoque
tos. teórico-metodológico que seja consistente
Além disso, que a presença de determina­ com os problemas colocados.
do tipo de cerâmica não é o reflexo direto da
existência de determinado tipo de organização
social e utilização do espaço físico. O que Agradecimentos
significa dizer que o estudo de um único sítio
ou pequeno número deles não autoriza o Gostaríamos de agradecer ao CNPq pela
arqueólogo a concluir que em todos os sítios concessão da Bolsa de Desenvolvimento

162
SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

Científico Regional, que possibilitou a realiza­ ao técnico da Área de Arqueologia do Museu


ção desse trabalho; à Curadora da Reserva Goeldi, Raimundo Teodório dos Santos pela
Técnica Arqueológica do Museu Goeldi, Vera restauração das vasilhas de Ilha Pauxis; e a
Guapindaia, e aos técnicos Regina Farias e Julice Pimentel, bolsista do PIBIC/CNPq, pelos
Raul Ivan Campos pelas facilidades de acesso desenhos das peças de cerâmica que ilustram
ao acervo e registros sobre o Projeto Marajó; esse artigo.

SCHAAN, D.P. The unpublished data o f the Marajo project (1962-1965). R evista do
Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 141-164, 2001.

ABSTRACT: During the 1960’s, the Marajo project recorded and studied
nineteen new archaeological sites on the southeastern portion of Marajo
Island, aiming to increase, by employing the PRONAPABA’s methodology,
the data that supported the basis for the Tropical Forest Phases model
proposed by Meggers and Evans (1957). Nevertheless, not all the results
conformed to the researches’ expectations and as a result, some important
data was never published. In this article, I compare the published material to
the field and laboratory reports (site files and records of artifacts at the Museu
Paraense Emilio Goeldi), discussing the validity of the model used for the
definition of ceramic cultures on Marajo Island.

UNITERMS: Marajo archaeology - Tropical Forest Phases - Ceramic


cultures.

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Recebido para publicação em 21 de novembro de 2000.

164
Rev. d o Museu de A rqu eologia e Etnologia, S. Paulo, 77: 165-187, 2001.

A CERÂMICA “NEO-BRASILEIRA” NAS TERRAS PAULISTAS:


UM ESTUDO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE IDENTIFICAÇÃO
CULTURAL ATRAVÉS DOS VESTÍGIOS MATERIAIS NA VILA
DE JUNDIAÍ DO SÉCULO XVIII

Walter Fagundes M orales*

MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as


possibilidades de identificação cultural através dos vestígios materiais na vila de
Jundiaí do século XVIII. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
77: 165-187, 2001.

RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar alguns dos resultados
obtidos na dissertação de mestrado “A escravidão esquecida: a administração
indígena em Jundiaí durante o século XVIII”. Em especial, aqueles que se
referem às possibilidades interpretativas oferecidas pela chamada cerâmica
“neo-brasileira” no contexto das terras Paulistas do período colonial.

UNITERMOS: Arqueologia-histórica - São Paulo Colonial - Adminis­


tração Indígena - Escravidão Africana - Interação Cultural - Identidade
Étnica - Cerâmica - “Cerâmica Neo-brasileira”.

Introdução Óbitos)2 dos índios e negros ocorridos na


Matriz da “Villa da Nossa Senhora do Desterro
“A escravidão esquecida: a administração de Jundiahy”.3 Os registros4 destes manuscri­
indígena em Jundiaí durante o século XVIU” tos são diferentes em sua composição, pois
(Morales 2000) foi uma pesquisa de mestrado
que procurou demonstrar a presença e inser­
(2) Pertencente ao acervo do Museu H istórico e
ção social de uma população indígena utilizada Cultural de Jundiaí.
como mão-de-obra escrava na vila de Jundiaí (3) Jundiaí corresponde a um dos núcleos coloniais
até as últimas décadas do século XVIII, mais antigos da capitania de São Vicente, com o
através de dados de natureza distinta. Um povoado sendo elevado a vila em 1655. Seu povoa­
mento ocorreu nas primeiras décadas do século XVII
conjunto de informações foi extraído de fontes
devido à procura por novas terras para o plantio e a
textuais primárias, como os documentos necessidade da máxima aproximação da mão-de-obra
manuscritos do século XVIII, até agora principal do período: as aldeias indígenas.
inéditos, onde foram registrados os casamen­ (4) As anotações manuscritas existentes no “Livro de
tos (Livro de Casamentos)1 e mortes (Livro de Óbitos” referem-se aos 1271 óbitos ocorridos entre os
anos 1744 e 1787, enquanto o “Livro de Casamentos”
remete as 204 uniões realizadas perante a Igreja entre
1739 e 1777. De uma maneira geral, cada um dos registros
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Pós- destes documentos tem informações sobre a condição
graduação em Arqueologia, Doutorado. social dos cativos, sua idade, origem étnica, relações de
(1) Pertencente ao Arquivo da Cúria de Jundiaí. parentesco, local de residência, nome dos proprietários etc.

165
MORALES, W.F. A ceramica neo-brasileira nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn o lo g ia, São Paulo; 11: 165-187, 2001.

tratam de acontecimentos distintos da vida o recenseamento da vila de Jundiaí realizado


social. Entretanto, no que diz respeito aos em 1767.6
estudos de demografía histórica, são comple­ O levantamento intensivo e sistem ático
mentares, já que cada um deles, a sua maneira, dessas fontes escritas ofereceu referências,
auxilia a entender aspectos da composição mesmo que pontuais e esparsas, sobre os
social, étnica e cultural da região de Jundiaí. A locais das diversas sesmarias doadas na
transcrição de ambos os documentos, com a região ou dos antigos bairros rurais. A partir
inserção de seus registros em um banco de dessas inform ações docum entais esboçam os
dados informatizado, possibilitou análises e um mapa com a implantação aproximada
acesso a um volume considerável de informa­ desses sítios durante o período colonial, que
ções inéditas sobre um período histórico serviu como definidor das áreas onde
escasso em documentos originais. realizar-se-iam os primeiros trabalhos de
O outro conjunto de dados foi de natureza campo - as prospecções.7 Identificados os
essencialmente arqueológica. Trata-se dos sítios,8 procedemos à escolha daqueles mais
fragmentos cerâmicos provenientes de diver­ adequados a intervenções arqueológicas -
sos sítios arqueológicos localizados em abertura de poços-testes, sondagens,
fundos de vale e pequenos platôs nas cercani­ trincheiras e coleta sistemática de material
as da serra do Japi e na bacia do rio Jundiaí- em superfície - que evidenciaram, em sua
Mirim, exatamente onde as fontes documentais maior parte, material cerâmico, objeto de
registram a implantação de várias fazendas e análise deste trabalho.
roças no período em questão. A cerâmica coletada nestes locais, em
O direcionamento dos trabalhos de especial a indústria cerâmica do sítio Russo,9
prospecção arqueológica baseou-se na apresentou características técnicas e decorati­
pesquisa das transcrições do Arquivo do vas similares às empregadas pelos grupos
Estado publicadas na coleção “Documentos portadores de cerâmica Tupiguarani anteriores
Interessantes para a História e os Costumes à chegada dos portugueses, embora agregadas
de São Paulo”, no “Repertório das Sesmarias a elementos europeus e africanos como
Concedidas pelos Capitães da Capitania de
São Paulo desde 1721 até 1821” e na série
“Inventários e testam entos”. Somada a estas
publicações, foi realizada também uma busca (6) As informações destas últimas duas fontes, apesar
completa na cartografia histórica referente a de bastante genéricas, já que somente indicam os
Jundiaí, depositada no Museu Histórico e bairros da vila, serviram para inferir a densidade
aproximada de ocupação dos antigos bairros rurais.
Cultural desta cidade,5 a fim de obter infor­
(7) As prospecções aplicadas à serra do Japí desenvol­
mações sobre a toponimia de locais, cami­ veram-se em dois eixos principais, ambos trilhas de
nhos e acidentes geográficos que tiveram grande circulação de pessoas e mercadorias no
seus nomes alterados nos mapas atuais, mas passado. O primeiro deles corresponde ao antigo
que são amplamente empregados nos caminho de ligação entre a vila de Jundiaí, as
barrancas do Tietê e a vila de Itu, onde atualmente
documentos coloniais. Por último, foram
passa a rodovia Mal. Rondon. O segundo eixo, que
acrescentadas as informações obtidas com a quase não é mais utilizado nos dias de hoje, até
transcrição do Livro de Óbitos, onde estão décadas atrás servia com o elo de ligação entre Jundiaí,
anotados o local de residência dos cativos, e Santana do Parnaíba e São Paulo.
(8) Durante os trabalhos de prospecção arqueológica
foram localizados um total de dez sítios relacionados
ao período histórico.
(5) Os mapas são: 1) Força Pública do Estado de São (9) O sítio Russo foi escolhido como unidade de análise
Paulo, folha de Jundiahy (Norte n ° 46 aj e a.^), 1932; preferencial devido à existência de documentos
2) da Commissão Geographica e G eologica do Estado escritos que indicam a implantação de diversas
de São Paulo, folha Jundiahy, 1925; 3) Planta de sesmarias na região no final do século XVII e início do
parte da linha divisória dos m unicípios de Jundiahy e XVIII, a significativa quantidade de vestígios diagnósti­
Itatiba, 1924; 4) Planta do Encanamento Geral - cos do material produzido ou utilizado em Jundiaí no
Estudo para o abastecimento d’água de Jundiahy, período em questão, e o razoável estado de conserva­
1893. ção desse sítio.

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 77: 165-187, 2001.

pegadores, alças e gargalos.10 Esta sobre­ certo segmento da cultura material, produzida
posição de estilos indica a permanência, nas no período colonial.
fazendas, de pessoas que manufaturavam Resultado de um somatório de elementos
vasilhas cerâmicas conforme padrões tradicio­ provenientes do contato de três segmentos
nais indígenas e que, somados aos novos distintos - indígena, africano e europeu o
elementos, deram origem a uma cerâmica material cerâmico analisado reflete a interação
cabocla, genericamente denominada como cultural que a situação de cativeiro, imposta
“tradição neo-brasileira”11 (Chymz 1976: 145). pelos europeus aos indígenas e africanos,
O estudo integrado dos aspectos tecno­ acabou por produzir. A identificação das
lógicos, decorativos e morfológicos12 desse alterações sofridas pela cerâmica neste
material, com a possibilidade de análise período e as informações presentes no conjun­
estrutural dos elementos que compõem os to de dados históricos, demonstram a existên­
artefatos cerâmicos (Shepard 1976, Deane cia de uma rede de sociabilidade e miscigena­
1985, Rye 1988, Rice 1988, Price 1988, Arnold ção que, a partir de meados do século XVIII,
1989, Sinopoli 1991), aliado à mediação de descaracteriza os segmentos indígenas como
parâmetros temporais, culturais e demo­ mão-de-obra escrava. Os trabalhos forçados
gráficos que as fontes históricas proporcio­ passam a ser cada vez mais atribuídos aos
nam (Marcflio 1977, Henry 1977), serviram indivíduos de origem e ascendência africana e
como uma excelente oportunidade para os indígenas e seus descendentes passam a
diagnosticar as alterações sofridas, em um ocupar os estratos mais baixos, porém livres,
da sociedade paulista colonial.

(10) Durante os trabalhos de campo foram coletadas


duas amostras de cerâmica e sedimento datadas por
As condições de contato na
term olum inescência no “Laboratório de Vidros e sociedade colonial
Datação” da FATEC/SP, com o resultado final
praticamente igual, respectivam ente, 290 e 300 anos
Desde cedo, qualquer estudante aprende
antes do presente. Essas duas datas confirmam que a
ocupação do sítio Russo ocorreu entre o final do que a formação do Brasil contemporâneo se
século XVII e início do XVIII. Se estendermos a deve ao encontro da raça branca, índia e negra
margem de erro das amostras ao máximo, ou seja 20 (Freyre 1930). Contudo, essa afirmação, em vez
anos a mais ou a m enos, podemos perceber que a de oferecer a dimensão da pluralidade étnica
ocupação histórica se deu entre 1680 e 1730. Assim ,
do povo brasileiro, acaba por esconder a
os resultados obtidos através da datação cerâmica
permitem trabalhar sincrónico e contextual as
verdadeira diversidade existente entre nós.
evidências materiais e as inform ações provenientes Não se pode reduzir centenas de grupos
das fontes docum entais primárias. étnicos, tanto os autóctones quanto os vindos
(11) Entendida e analisada de um modo geral com o e os trazidos de fora, a somente três categorias
“uma tradição cultural caracterizada pela cerâmica - dos “brancos”, dos “índios” e os dos
confeccionada por grupos fam iliares, neobrasileiros
“negros”. Essa redução favorece a idéia de
ou caboclos, para uso dom éstico, com técnicas
indígenas e de outras procedências, onde são diagnos­ que os componentes de cada um destes
ticas as decorações: corrugada, escovada, incisa, grupos compartilhariam a mesma língua,
aplicada, digitada, roletada, bem com o asas, bases cultura, organização social, religião etc., ou
planas em pedestal, cachim bos angulares, discos seja, apresentariam poucas diferenças inter­
perfurados de cerâmica e pederneiras” .
nas.
(12) Os atributos analisados em cada um dos fragmen­
tos de paredes, bases, bordas e apêndices foram:
Mas a realidade está bem longe disso. As
técnicas de manufatura, tratamento de superfície, variações internas entre os chamados “índios”
tipo de decoração, tipo e tamanho de antiplástico, e “negros” é enorme, assim como as diferenças
espessura da parede e tipo de queima. Em seguida entre os “brancos”. Apenas na vila de Jundiaí
realizam os a reconstituição da forma dos recipientes
do século XVIII foi possível constatar, a partir
a partir da inclinação (ângulo) e diâmetro dos
fragmentos das bordas e bases, com o intuito de
do manuscrito “Livro de Óbitos de escravos”,
definir a existência de categorias baseadas no seu pelo menos quatro denominações para os
fo rm a to . indígenas - Carijó, Kayapó, Pareci e Bororo -

167
MORALES, W.F. A cerâmica neo-brasileira’ nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos v estígios m ateriais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 165-187, 2001.

e três para os africanos - os da Guiné, Congo “peça” - como era mais comumente chamado,
e Benguela. Estas definições costumam ser que deveria ser capturada e vendida para quem
genéricas e por isso escondem sua especi­ oferecesse melhor preço (Schwarcz 1996).
ficidade étnica, porque costumam ser nomes Desta forma, algumas das designações
dados por outros grupos e/ou pessoas encontradas nos registros documentais, como
externos a eles, dificilmente tratando-se de “peça do gentio da guiné” ou “preto da nação
autodenominações. banguela”, somente fazem referência ao porto
Os chamados Carijó, termo amplo que de saída na costa africana (Ramos 1943) - e
englobava uma série de grupos falantes de esse é o indicador aproximado da origem de
línguas Tupi-Guarani, eram os cativos prefe­ alguns dos indivíduos africanos trazidos
renciais dos colonos paulistas desde os durante os mais de 300 anos que o tráfico
primeiros tempos do século XVII (Schaden negreiro foi praticado no Brasil (Schwartz
1954). Essa preferência se dava por vários 1995).
fatores: moravam em aldeias numerosas, Segundo Nina Rodrigues (1932) e Artur
falavam a mesma língua, estavam acostumados Ramos (1934), dentre os vários milhares de
aos trabalhos agrícolas e ocupavam territórios escravos importados, dois grupos destaca­
relativamente próximos e de fácil acesso a vam-se numericamente: aqueles de língua
incursões de aprisionamento - o interior banto e os sudaneses. No século XVI, os
paulista e as porções mais ao sul da província escravos vinham predominantemente da região
de São Paulo, em áreas conhecidas como da Senegâmbia, também conhecida como
“sertão dos carijós” e “sertão dos patos” Guiné, e das feitorias de São Tomé e Cabo
(Monteiro 1994). Verde, e eram os grupos sudaneses Manjaca,
Da mesma forma que os Carijó, os Kayapó Balanta, Bijago, Mandinga e Jalofo. No século
trazidos para a vila de Jundiaí não representam XVII, expande-se a oferta de negros ao tráfico
um grupo específico e sim, um termo geral para nas porções equatorial e central do continente
os falantes da família lingüística Jê. Estes africano, no porto de Mpinga, e na região ao
grupos ocupavam uma vasta região que vai do sul do rio Dande (Angola), sem, contudo,
noroeste de São Paulo até o norte de Goiás cessar o comércio com outras áreas. Durante o
(Turner 1992), e não eram vistos como bons século XVIII, ocorre uma retomada na captura
trabalhadores devido a sua belicosidade e a dos escravos sudaneses na costa da Guiné e
dificuldade em adaptá-los ao trabalho agrícola na costa da Mina e inicia-se a captura de
(Neme 1969). Eram considerados por isso um escravos em direção à baía de Benin, de onde
obstáculo e acabaram sendo envolvidos nas vieram os Iorubá, Jeje, Nagô, Tapa e Haussá
chamadas guerras justas e combatidos impie­ (Verger 1987). Posteriormente, entrando no
dosamente (Ataídes 1998). século XIX, esta captura estende-se até
As duas únicas referências isoladas ao Moçambique, na costa oriental da África (Law
apresamento dos Pareci e Bororo, habitantes 1991).
de territórios mais afastados, em áreas dos Os africanos trazidos para a região de São
chapadões de Mato Grosso, no planalto Paulo no final do século XVIII e início do XIX
central, são indicativas das grandes distâncias eram, em sua grande maioria, Banto de “Ango­
que as incursões percorriam em busca de um la” saídos dos portos de Luanda e Benguela
fluxo contínuo de cativos para mover a (Sienes 1991-1992). Os Banto, ou Bantu,
economia paulista e, neste caso, parecem estar correspondem às populações que ocupam a
mais relacionadas aos grupos étnicos de parte meridional da África, possuindo uma
origem dessas pessoas. origem lingüística comum (Oliver 1966), mas
Quanto à identificação dos africanos apresentando uma grande diversidade de
capturados, a questão é ainda mais difícil de valores e costumes (Lopes 1988).
resolver, pois esbarra na falta, de registros nos Enfim, havia uma variedade de grupos
documentos de época que, quando muito, têm étnicos dessas terras e de outras que compu­
apenas a sua procedência, já que um escravo nham uma complexa multiplicidade de históri­
não passava de uma mercadoria ou uma as, culturas e condições sociais e jurídicas que

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos v estígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn olo g ia , São Paulo, 11: 165-187, 2001.

influíam diretamente, e de diversas maneiras, or distribuição dos cativos para os engenhos


em seu grau de inserção na sociedade colonial do litoral (Furtado 1989, Prado Jr. 1953).
e nos modos de entender sua própria situação Aquele autor enfatiza que a principal função
(Faria 1998). Darcy Ribeiro (1995:131) traçou o das expedições residia na reprodução física da
resultado final dessa situação: força de trabalho e que São Paulo era tanto
“O brasilíndio com o o afro-brasileiro
fornecedora como consumidora de cativos,
existiam numa terra de ninguém , étnicam ente mobilizando expressivos contingentes indíge­
falando, e é a partir dessa carência essencial, nas que influenciaram sua formação.
para livrar-se da ninguendade de não-índios, não- Através da análise de dados históricos e
europeus e não-negros, que eles se vêem forçados arqueológicos, procuramos ampliar este
a criar a sua própria identidade étnica: a
quadro para o século seguinte e demonstrar
brasileira”.
que a presença indígena na “Villa de Nossa
Essa “brasilidade”, no entanto, estava Senhora do Desterro de Jundiahy” perdurou
longe de se concretizar durante o transcorrer até pelo menos meados do século XVIII.
do século XVIII. Pode-se dizer que estava em
andamento e a inserção dos africanos e índios
na sociedade colonial se processava de índios e africanos:
maneira bastante desigual. Ela dependia da culturas em transformação
região e época, uma vez que a oferta, a neces­
sidade e os tipos de cativos empregados não A situação de contato imposta a diversas
foram uniformes dentro da colônia ao longo do etnias cativas causou um profundo impacto
tempo. Sabe-se, por exemplo, que em áreas não só na sociedade colonial, que as absor­
responsáveis por grande produção de açúcar veu, como na totalidade das esferas socio-
para exportação, como Bahia e Pernambuco culturais das sociedades indígenas e africanas
(Schwartz 1996), os africanos tiveram uma (Wolf 1982, Beauregard 1994). No entanto,
participação fundamental desde muito cedo, a acreditar que estas comunidades tiveram sua
partir da metade do século XVI, e que as cultura simplesmente eliminada, com a incor­
Minas Gerais receberam um grande contingen­ poração automática de novas normas e regras
te de escravos africanos para a mineração no (Rubertone 1994), indica desconhecer a
final do século XVII (Souza 1999). Nas terras capacidade de reformulação e transformação
paulistas, a importação africana em larga de padrões culturais (Geertz 1973, Shalins
escala aconteceu apenas a partir das derradei­ 1976). Claro que é difícil que uma cultura seja
ras décadas do século XVIII, período em que a transportada de sua base de origem para
cana-de-açúcar, e logo em seguida o café, novos contextos e continue mantendo as
alavancaram a economia paulista definitiva­ mesmas características (Cohen 1969). Uma
mente (Marcílio 1974, Linhares & Silva 1981). situação nova exige a reformulação das
Sobre o cativeiro indígena e sua inserção características internas e dos modelos e
na sociedade colonial ainda pouco se sabe. Na símbolos culturais ancestrais para que se
maior parte das vezes, a historiografia tradicio­ adaptem às novas realidades e significados
nal prioriza o papel e a presença do negro absorvidos (Durham 1977, Cunha 1985).
como mão-de-obra, restringindo o emprego Assim, alguns valores são mantidos, outros
dos indígenas às etapas iniciais da colonização transformados ou substituídos, sem que isso
(Furtado 1989, Fausto 1999). Entretanto, elimine a possibilidade de existência de uma
recentes trabalhos desenvolvidos por John identidade comum ou de continuidade cultural
Monteiro (1988, 1989, 1992, 1994) têm dado desses grupos (Balandier 1963, Thomas 1996).
novos contornos a esta situação. Segundo Barth (1969), a própria identidade
Através de extenso levantamento cartorial, de um grupo é mutável. Ela depende de como
Monteiro demonstra a presença do cativeiro os indivíduos situam-se a si próprios e aos
indígena em São Paulo durante todo o século outros, dentro de categorias formuladas a
XVII e modifica a tradicional visão da capitania partir de uma origem ou elementos culturais
apenas como centro de apresamento e posteri­ comuns. Esse discernimento cria grupos, os

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cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rqu eologia e
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grupos étnicos, que têm o poder de definir colônia. Escravos (africanos), administrados13
quem está dentro ou fora dele. Mas não basta (indígenas) ou seus descendentes, poderiam
somente a auto-identificação dos seus compo­ ascender a uma melhor condição jurídica como
nentes (Drummond 1981). É necessário que alforriados ou libertos. Sua ascensão social era,
outros grupos aceitem essas diferenças, no entanto, ainda mais difícil que a jurídica,
definindo categorias relacionais, dicoto- havendo outras categorias qualitativas e bem
mizadas, onde “Nós” contrapõe-se a “Outros” mais sutis para classificar os estratos mais baixos
(Todorov 1988, Novaes 1993). Dessa relação da população colonial (Mattos 1998). Dentro da
nascem e são construídas as diferenças, quer escravaria conviviam, por exemplo, os “crioulos”
sejam elas reais, imaginárias ou até impostas (filhos de africanos nascidos no Brasil), “mula­
(Balibar & Wallerstein 1988, León 1992, tos” (filhos de branco e negra), africanos recém-
Brandão 1986). chegados e que ainda falavam apenas sua
Era assim que se davam as relações sociais língua nativa (“boçais”), “ladinos”, que eram os
nas terras Paulistas. Havia uma classe econômi­ escravos trazidos há mais tempo, os “cayapó
ca e política dominante que tinha o poder de vindo do sertão”14 e até índios aldeados.15
nomear e dividir a população em função da sua Todas essas macro-divisões eram exóge-
origem racial - branca, negra ou indígena - e, a nas, isto é, impostas de fora para dentro. Para
partir daí, definir sua condição de homens um viajante europeu recém-chegado das
livres, libertos, alforriados, administrados ou metrópoles, estas categorias seriam claras e
escravizados. funcionais para definir e identificar a situação,
As etnias africanas foram reduzidas a pelo menos a grosso modo, de qualquer
escravos, com condição jurídica e social bem componente da colônia de imediato.
definidas dentro da colônia (Mattoso 1990). Os componentes dessas categorias
Esta redução também foi feita às etnias também sabiam seu lugar e porque faziam parte
indígenas, mas, apesar de estabelecida, sua delas. Um africano ou indígena, por força da
condição não era tão clara juridicamente. dominação, sabia a que grupo social pertencia,
Primeiro, devido às flutuações da legislação mesmo que à sua revelia, porque estava
indigenista (Thomas 1981; Cunha 1992a, compulsoriamente inserido nele. Só que
1992b; Perrone-Moisés 1992; Hansen 1998) e, também se reconheciam enquanto grupo
segundo, socialmente, devido à dificuldade de étnico e criavam suas próprias diferenças
reconhecer quem era ou não branco, já que as internas. Um negro da “nação” Benguela sabia
características fenotípicas indígenas estavam das suas diferenças culturais e lingüísticas
bastante misturadas às dos “brancos”. Essa com os negros da Guiné, tanto quanto um
situação correspondia a um interesse da coroa índio Bororo em relação ao Pareci.
em integrar esses segmentos à sociedade, Esse contato entre padrões culturais,
como pode-se perceber pelo alvará de 4 de étnicos e condições sociais e/ou jurídicas
abril de 1775, no qual o rei de Portugal declara diversas presenciou ações de dominação,
(citado de Souza Filho 1994:158): resistência e assimilação diferenciadas, que
“Eu El-Rei, sou servido declarar que os meus acabaram por gerar articulações e soluções
vassalos deste reino e da América que casarem novas para lidar com as necessidades impos-
com as índias dela não ficam com infâmia
alguma, antes se farão dignos de real atenção.
Outrossim proíbo que os ditos meus vassalos
casados com índias ou seus descendentes, sejam
tratados com o nome de caboclos ou outro
(13) Como os indígenas, pelas leis da Coroa somente
semelhante que possa ser injurioso. O mesmo se
podiam ser escravizados em situações específicas
praticará com portuguesas que se casarem com
(com o as guerras justas), evitava-se utilizar na
ín d ios”. documentação de época a palavra “escravo”,
em pregando-se o termo “administrado” para registrar
Esse quadro propiciava aos indígenas
os indivíduos de origem indígena.
uma maior mobilidade social que aos africanos, (14) Livro de Óbitos - 28/4/1767.
em bora fosse possível a ambos os grupos (15) O Livro de Óbitos revela o falecim ento em
ascender social e juridicam ente dentro da Jundiaí de índios aldeados de Barueri e São Miguel.

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E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 165-187, 2001.

tas (Sienes 1991-1992). Nada mais natural, já solução para isso ocorrer seria apropriar-se de
que as pessoas, quer individualmente ou em sinais e elementos daqueles que eram conside­
grupos, são agentes ativos na elaboração da rados “brancos” pela sociedade.
ordem social e não apenas reprodutores dessa As possibilidades de ascensão eram ainda
situação. mais difíceis e limitadas para os negros
A estratégia dos segmentos indígenas africanos, já que a cor da sua pele representa­
incorporados à sociedade colonial para buscar va um entrave de difícil superação (Chalholb
melhores condições jurídicas e/ou sociais 1990). A situação de escravidão legal em que
passava ora pela afirmação de sua origem estavam inseridos era indiscutível e, por mais
étnica, ora pela sua negação. Em alguns que quisessem ou de fato estivessem incorpo­
momentos, era oportuno reivindicar uma rados à sociedade colonial, seus traços físicos
origem indígena para garantir sua liberdade, permitiam a identificação da sua origem de
empregando inclusive a justiça para assegurar imediato e, conseqüentemente, de sua condi­
esse direito, como revela John Monteiro (1994: ção de escravo ou descendente de escravo
214). Entre os vários exemplos documentais (Reis & Silva 1989). Assim, as estratégias de
arrolados por este autor, temos um processo resistência tomavam percursos além do modelo
na própria vila de Jundiaí, em que Rosa Dias clássico de submissão, fuga e revolta (Carnei­
Moreira vai contra seu proprietário, Francisco ro 1947, Moura 1981), como, por exemplo, o
Xavier de Almeida, declarando que seu relacionamento afetivo que havia entre as
cativeiro não poderia ocorrer devido a ser ela mulheres negras e seus senhores, para que
“descendente de carijós”. estas conseguissem a alforria de si e dos filhos
Por outro lado, alguns descendentes de mestiços que resultassem dessas uniões
grupos indígenas procuravam desvincular-se (Paiva 1995, Mattos 1998).
de sua origem indígena, aproveitando-se da Contudo, independentemente das necessi­
dificuldade existente em caracterizar quem era dades, transformações e estratégias adotadas,
ou não índio. Essa possibilidade acontecia uma série de hábitos, costumes e outros
porque existiam pessoas encarregadas de atributos culturais de origem indígena ou
decidir quem poderia ou não ser considerado africana, de forma consciente ou não, continu­
administrado diante de instituições como a aram atrelados ao passado desses indivíduos.
Igreja ou o Estado e que realizavam avaliação As diferentes tecnologias, morfologías e
ancorada em critérios na maior parte das vezes estilos presentes na indústria cerâmica do sítio
subjetivos, como traços fenotípicos e caracte­ Russo refletem esta situação. Da mesma forma
rísticas culturais. As características físicas que que apresentam a manutenção de certas
influenciavam este julgamento não podiam ser características, trazem grandes transforma­
determinantes, já que, até o início do século ções, resultado do contato entre os vários
XIX, boa parte dos paulistas possuía fortes grupos e/ou pessoas de diferentes origens
traços fenotípicos indígenas, resultado de étnicas na sociedade colonial do período.
mais de 200 anos de contato. Uma vez incorpo­ Não é, no entanto, possível para a Arque­
radas aos estratos livres da sociedade coloni­ ologia resgatar toda a complexidade cultural
al, mesmo que sua condição jurídica ainda as que produziu a cultura material estudada. A
determinasse administradas, essas pessoas análise arqueológica não pode ultrapassar os
deixariam de ser vistas exclusivamente por seus dados e estes não nos permitem fazer
suas características raciais, embora ainda identificações étnicas. Mesmo que através das
fossem classificadas por parâmetros socioe­ fontes históricas tenha sido possível resgatar
conómicos. Desta forma, se alguns dos filhos parte da diversidade cultural presente entre as
dos inúmeros Carijó trazidos do sertão, pardos diferentes etnias que formaram a sociedade
ou bastardos, quisessem melhorar sua condi­ colonial jundiaiense, enriquecendo o seu
ção social, deveriam fazer o possível para quadro de ocupação, a identidade étnica é uma
negar, pelo menos em certos aspectos e diante questão essencialmente política e suas
de determinadas pessoas, traços que os fronteiras podem aparecer, desaparecer ou se
relacionassem à sua ascendência indígena. A modificar, dependendo do momento (Jones

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cultural através dos v estígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo. / / : 165-187, 2001.

1997). Não existe, necessariamente, correspon­ que outros atributos. Comparado às caracterís­
dência direta entre etnia e cultura material ticas de visibilidade presentes na forma ou
(Dietler & Herbich 1994). Várias etnias podem decoração, o antiplástico caco moído é
produzir e/ou utilizar tipos cerâmicos seme­ “invisível” e, enquanto tal, não é um bom
lhantes, da mesma forma que uma única etnia vetor de significados. A necessidade de
pode produzir e/ou utilizar diferentes tipos de externalização de padrões tradicionais ou de
artefatos. Então, preferimos falar da existência suas mudanças encontra-se relacionada a
de identidade cultural através de uma série de atributos mais visíveis como forma e decora­
elementos tradicionalmente indígenas presen­ ção. Conseqüentemente, entendemos sua
tes nos artefatos cerâmicos. Neste caso, mais presença como parte de um sistema tecnoló­
especificamente, naqueles relacionados aos gico tradicional, herdado e utilizado em função
grupos portadores de cerâmica Tupiguarani. de um processo de observação/imitação/
A presença de indivíduos relacionados a repetição (Parga 1988) e que, por isso, remete
estes grupos foi percebida durante a análise aos grupos portadores de cerâmica Tupigua­
técno-tipológica, quando foi efetuado o rani, ou seja, indivíduos provenientes de
cruzamento do tipo de antiplástico empregado grupos falantes de línguas do tronco Tupi-
na composição da pasta com a decoração Guarani.
aplicada à parede da vasilha. Indicador O cruzamento entre esse tempero e os tipos
tecnológico comumente relacionado aos de decoração existentes nas paredes das
grupos portadores da cerâmica Tupiguarani vasilhas demonstram que, entre as peças
pré-contato (La Salvia & Brochado 1989), o escovadas, corrugadas e roletadas, os índices
uso de caco moído como antiplástico sintoma­ de freqüência de antiplástico caco moído são
ticamente aparece em maiores proporções nas superiores às demais categorias: 35,4%, 41,2%,
peças corrugadas, escovadas e roletadas, e 44,8%, respectivamente. Quando contabili­
decorações também associadas a esses zamos todas as peças da indústria, independen­
grupos16 (Morales 2000). temente da decoração, que têm esse elemento
Consideramos que o antiplástico caco agregado à sua composição, percebemos que
moído proporciona uma maior confiabilidade sua presença se dá em 24,8% dos casos.
como fonte de informação porque é um dos A presença de elementos relacionados aos
poucos tipos de antiplástico cujo emprego grupos portadores de cerâmica Tupiguarani foi
intencional pode ser confirmado, possibilitan­ ainda evidenciada pela correlação entre o
do uma identificação cultural mais segura. antiplástico caco moído, decoração corrugada
Acreditamos que a presença de caco moído na e forma das vasilhas (Prancha 1). Dentre as
indústria cerâmica do sítio Russo sugere que, seis reconstituições com Forma 4, três possu­
em uma situação de mudança e transformação em decoração corrugada associada a antiplás-
cultural intensa, é mais fácil sobreviverem tico caco moído. Entre as outras três, uma está
técnicas eficientes na forma de se manufaturar decorada com o motivo corrugado e duas com
a cerâmica do que os atributos relacionados à engobo vermelho aplicado interna e externa­
sua decoração ou morfologia, geralmente mente. Apesar de esta forma ser bastante
associados a contextos culturais e ideológicos comum, não permitindo uma correspondência
muito mais específicos. cultural mais direta, ela também pode ser
O caco moído, por ser um componente de encontrada entre os ceramistas Tupiguarani e
baixa visibilidade e difícil percepção na sua associação à decoração corrugada e
composição da pasta, neste caso, parece estar antiplástico caco moído permite-nos atribuir-
mais dissociado de aspectos simbólicos do lhe tal identificação.
Quanto aos demais padrões decorativos,
entre as peças engobadas, a freqüência do
antiplástico caco moído é um pouco menor,
(16) As análises e descrições tecnotipológicas,
m orfológicas e decorativas com pletas da indústria do
com 25,5% do total. Naquelas sem decoração
sítio Russo podem ser encontradas no capítulo IV, este antiplástico aparece em 20,4% das vezes,
“As evidências m ateriais”, pp. 48-105. nas incisas em 20,3% e nas unguladas, 16,7%.

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1 - Formas das vasilhas (sem escala) encontradas no sítio Russo.


Prancha

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Estas freqüências mais modestas e sem produto de africanos escravizados. Trabalhos


associação direta a elementos característicos arqueológicos desenvolvidos no continente
da tecnologia, morfologia e/ou decoração de africano indicam a utilização do ponteado e de
algum dos três segmentos sociais presentes traços incisos como uma constante na decora­
neste período e espaço não nos permite ção da cerâmica desde o início da Idade do
relacioná-los. Ferro. Algumas das “tradições arqueológicas”
O resultado das análises do material africanas que apresentam a decoração pontea­
cerâmico deste sítio corroboram as informa­ da e incisa podem ser encontradas na síntese
ções provenientes das fontes manuscritas de Fagan (1970) sobre a ocupação da África
analisadas (o “Livro de Óbitos” e de “Casa­ Austral, no Quênia (Chittick 1984), em Mason
mentos”) - onde parte da população cativa é (1969) para a região do Transvaal, Nenquin
de origem indígena e genericamente conhecida (1971) no Congo, Rwanda e Burundi, e Davies
como “carijó”, termo que costumava englobar (1961, 1967), na porção oeste (junto à costa da
uma série de grupos de origem Tupi-Guarani Guiné), e na África Central, para áreas ocupa­
do sul do Brasil. das pelos falantes do Bantu em Huffman
A situação de contato demonstrada pelas (1970), regiões próximas àquelas de onde
fontes escritas do período colonial apontam vieram os escravos para o Brasil.
ainda para a possibilidade de identificação de O confronto da decoração cerâmica
atributos relacionados à influência de outras encontrada no sítio Russo com algumas das
origens na produção cerâmica deste período, localizadas na bibliografia sobre a África
como a africana e a européia. possibilitou constatar, mesmo que sumaria­
A comparação da cerâmica produzida no mente e com um caráter exploratório, alguma
Brasil com aquela encontrada na África esbarra semelhança com o material encontrado em
em um problema básico: o pequeno número de Gana, na região do Baixo Volta (Davies 1961). O
trabalhos desenvolvidos naquele continente desenho retirado de Davies (1961:41) e a Foto 1,
voltado para a produção material deste período. de um fragmento de asa encontrado no sítio
Existem grandes lacunas geográficas, principal­ Russo, revelam a mesma aplicação de incisões
mente nas porções centrais da África (Maret cortando transversalmente a asa da peça.
1990) - local de origem dos grupos Bantu que Além do exemplo citado, temos outro,
vieram para o Brasil -, e temporais, já que sítios ainda mais interessante, onde a semelhança
ocupados durante os século XVII e XVIII quase entre os materiais é ainda maior. A peça da
não foram estudados naquele continente. Além Foto 2, também coletada no sítio Russo,
disso, comparar formas, tecnologias e tipos de apresenta um desenho geométrico em forma de
decoração das cerâmicas encontradas no Brasil losango com duas incisões em seu interior.
com as da África pode ser bastante subjetivo e Fragmento semelhante foi retirado das escava­
generalizante. No entanto, se comparações ções desenvolvidas na região da costa do atual
forem efetuadas com o devido cuidado, Quênia (Chittick 1984: Painel 41a) (Foto 3).
contextualizando tempo e espaço, podemos ter Apesar da dificuldade em correlacionar os
uma fonte de informação importante para atributos existentes na África e aqueles que
compreender as transformações culturais aparecem na cerâmica do século XVIII em terras
sofridas pelos habitantes da colônia e pelos paulistas, sua realização serve como medida das
que para cá foram trazidos. Além disso a transformações em andamento e para corrigir
Arqueologia pode contribuir de maneira algumas informações de ampla utilização
decisiva para descobrir-se a origem dos referentes à cerâmica “neo-brasileira”.
africanos capturados, tema que os documen­ É o caso dos apêndices aplicados à lateral
tos históricos do período não permitem dos recipientes para servir como apoio das
abordar de forma plena. mãos que, normalmente associados à influência
Dias Jr. (1988) foi um dos primeiros a européia (Chmyz 1976), são na verdade também
sugerir a possibilidade de muitas das peças de uso comum na África desde muito tempo
com incisões e ponteados, freqüentemente atrás. Portanto, estes apêndices podem repre­
encontradas em sítios históricos, serem sentar influência tanto de origem européia

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(Brochado 1974) quanto africana. Outra associ­ trabalhos publicados em que se buscava
ação bastante usual que deve ser evitada é perceber influências africanas e/ou indígenas
relacionar a confecção de potes pela técnica de na cerâmica do período colonial, apenas
roletes como um indicador da procedência/ poucos preocupavam-se em contextualizar a
influência indígena. A produção de vasilhas cerâmica coletada através da mediação dos
com essa mesma técnica ou associada à parâmetros temporais, culturais e demográficos
modelagem é, ainda nos dias de hoje, encontra­ que as fontes históricas podiam proporcionar,
da em várias regiões da África, como entre os e, ao mesmo tempo, poucos apresentavam
Maconde de Moçambique (Dias & Dias 1964) e análises e descrições tecnotipológicas siste­
os Luo, do Quênia (Dietler e Herbich 1989). máticas que servissem para caracterizar e
Procuramos também durante a pesquisa comparar essas indústrias. Entre esses traba­
fazer comparações entre o material analisado e lhos citam-se os desenvolvidos nas missões
o de outras indústrias. Contudo, dentre os (Kem 1994) e no posto da guarda de Viamão

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(Jacobus 1996a), sendo que apenas o último se padrões decorativos comumente presentes
assemelha a este em contexto (presença dos entre os grupos pré-coloniais, é plausivel
segmentos indígenas, africanos e europeus) e imaginar que sua origem remeta a influências
cronologia (século XVIII). africanas.
Em sua dissertação de mestrado, André Todas essas informações obtidas com a
Jacobus (1996a) examina a cerâmica “neo- pesquisa bibliográfica e as comparações entre
brasileira” encontrada no Registro de Viamão, coleções são testemunhos das influências
um posto de guarda do sul do Brasil, e apre­ tecnológicas e estilísticas de diferentes
senta algumas peças de acervo sem identifica­ matizes na cerâmica “neo-brasileira”, apontan­
ção existentes no MARSUL. Segundo o autor, do a diversidade dos contextos culturais nela
este acervo faz parte do material da região de presentes e confirmando, através da cultura
Torres, onde haveria posto de guarda - o material, principalmente como a sociedade
Registro de Torres. Sua decoração cerâmica paulista contou com a forte presença indígena
oferece algumas semelhanças significativas e de seus descendentes, até pelo menos o final
com peças decoradas presentes no sítio do século XVIII. Todavia, esse fato não é
Russo. Os fragmentos mais parecidos podem admitido historicamente de forma fácil. Pelo
ser vistos nas páginas 53 (Figura 3(g) e (j)) e contrário, ele é escamoteado por motivos
54 (Figura 4 (d)) de um artigo de Jacobus ideológicos e sociais (Hodder 1986; Shanks &
(1996b) sobre sua dissertação e foram aqui Tilley 1987a, 1987b; Leone & Potter Jr. 1988;
reproduzidos nos Quadros 1 e 2 e comparados Paynter & McGuire 1991) interessados em
com a Foto 4 desse trabalho. Podemos perce­ negar a participação e influência indígena na
ber que a aplicação de incisões lineares formação da sociedade brasileira como um
formando arranjos triangulares sobre os todo. No caso dos paulistas do período
roletes e o uso de uma espátula alisando-os colonial, além das fontes documentais, o
transversalmente são praticamente idênticos. tempo preservou vários outros testemunhos
Diante a uma semelhança tão grande entre dessa ativa participação - são restos de
esses fragmentos, permite-se supor que seria pratos, vasilhas cerâmicas e cachimbos
difícil, e também uma grande coincidência, que utilizados cotidianamente nas residências -,
um indivíduo viesse a elaborar uma vasilha que servem como elo para entender as relações
com decoração nova, original, de estilo mais interétnicas e as transformações pelas quais
complexo, exatamente igual a uma produzida passaram as diferentes etnias indígenas em
por outra pessoa a centenas de quilômetros contato com seus senhores e os escravos
dali. Como a distância entre estas regiões é africanos.
considerável, fica complicado imaginar a vinda
de vasilhas rústicas de barro por comércio. O
mais provável é que esses recipientes tenham A cerâmica como fonte de informação:
sido produzidos nos respectivos locais e com possibilidades de identificação
dispersão limitada. Isso leva à conclusão que cultural através dos vestígios materiais
os recipientes foram elaborados por oleiros
distintos, sem qualquer tipo de interação Como foi brevemente esboçado acima, uma
sociocultural que pudesse ter criado uma das características do processo de formação
articulação, ou uma identificação comum, sociocultural paulista e brasileiro é a complexa
expressa em uma cerâmica com elementos rede de contextos, situações históricas e
decorativos iguais. Como seria improvável a interações entre grupos étnicos diferenciados,
criação de duas decorações originais e idênti­ que as fontes documentais e os registros
cas, é possível supor que ambos os ceramistas históricos disponíveis conseguem delinear. A
tenham repetido padrões já conhecidos e/ou aplicação de uma perspectiva arqueológica
observados dentro do seu escopo cultural. procura aumentar o alcance da análise desse
Como estes padrões decorativos não têm processo ao revelar articulações e influências,
correspondência, até o presente momento e continuidades e mudanças, presentes nos
dentro do nosso conhecimento, com os restos de cultura material da sociedade colonial.

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Foto 4.

Mas, como já foi dito, não é tarefa fácil


para a Arqueologia relacionar a cerâmica
produzida ao grupo étnico que a confeccio­
nou, pois não existe um paralelismo direto e
imediato entre etnicidade e vestígios materiais
(Trigger 1978, Atherton 1983, Hodder 1982).
Esta dificuldade está ligada ao próprio signifi­
cado do termo e aos constantes rearranjos
pelos quais os grupos étnicos passam ao
longo do tempo (Shennan 1994). Durante esse
processo, onde está em jogo a identidade
étnica do indivíduo ou do grupo de que faz
parte, uma série de elementos exteriores podem
ser formulados para manter, negar ou recriar
uma nova identidade (Thomas 1996). Tais
elementos podem ser uma determinada atitude
dos agentes, a vestimenta, o idioma, a religião
e/ou a cultura material. Ou, como afirmou
Manuela Carneiro da Cunha (1986:103), os
símbolos escolhidos para marcar a diferença
são aleatórios e, embora imprevisíveis, não são
arbitrários.
O que importa é criar uma série de caracte­
rísticas que marque a diferença ou propicie
uma “interação tridimensional” (Carmagnani
1993), através da qual essas diferenças
possam ser percebidas dentro do grupo, entre
grupos de mesma origem étnica e, por fim,
entre grupos de origens étnicas distintas.
Portanto, o problema está na constante busca
por relacionar grupos étnicos específicos a
determinadas “culturas arqueológicas” (Childe
1956), já que a identidade étnica não é uma
coisa constante, imutável, e sim, algo que se
desenvolve em sociedades concretas e dentro
de contextos históricos específicos (Jones
1997,Eriksen 1991). Quadro 2.

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Se relacionar a cerâmica arqueológica a um grande quantidade de caminhos e opções


grupo étnico (Barth 1969) é um procedimento passíveis de serem trilhadas. Fica claro,
discutível e até temerário - porque o estudo portanto, que não é possível determinar o
deste tipo de material depara com sua difícil quanto as alterações sociais irão refletir em
articulação aos aspectos imateriais da cultura transformações na cerâmica. Afinal, é inerente
(Dietler & Herbich 1994) não se trata de ao conceito de cultura a adaptação e a trans­
procurar definir traços étnicos. Procuramos, formação em decorrência das novas situações
sim, identificar as diferenças e semelhanças (Lévi-Strauss 1958).
existentes no interior dos segmentos indígenas, No caso da cerâmica produzida a partir da
africanos e europeus, relacionando-os através conquista portuguesa nas terras brasileiras,
de tecnologias, morfologias e estilos presentes essa ampla diversidade tecnotipológica e,
em grupos conhecidos etnográfica e/ou arqueo­ conseqüentemente, de significados, está
lógicamente. diretamente relacionada às variações do
É difícil procurar fazer identificações contexto histórico regional e, inclusive, microre-
culturais através da cerâmica quando existem gional que cada situação propiciou. Designada
vários trabalhos arqueológicos indicando que genericamente pelos arqueólogos de “neo-
ela pode ter um perfil de transformação brasileira” esta cerâmica de elaboração local/
bastante conservador, mesmo diante de regional e também conhecida como “cabocla”,
transformações culturais intensas e, conse­ reflete influências dos segmentos sociais que
qüentemente, não ser um bom instrumento formaram a base da sociedade colonial.
para medir alterações na estrutura da socieda­ Apesar do potencial que este material
de (Howson 1990). Dentre os trabalhos que representa, quase não existem estudos preocu­
apontam esse caráter, podemos citar Van Der pados em caracterizá-lo sistematicamente. Os
Merwe e Scully (1971-1972) para a África, e trabalhos de arqueologia histórica desenvolvi­
dentro da América espanhola Tschopik (1950), dos no Brasil costumam priorizar a análise de
no Peru, e Charlton (1976) no México. louças e vidros, evidências mais facilmente
Por outro lado, também há pesquisas que identificáveis quanto à origem e época de
apontam na direção oposta a essa perspectiva fabricação e relacionadas às classes mais
de a cerâmica ter um papel mais estático e abastadas. Na maior parte das vezes, a cerâmica
conservador (Mintz & Price 1976). Hill (1987), tem seu valor subaproveitado, pois é analisada
estudando antigas fazendas escravistas na de maneira superficial, sendo geralmente tratada
América do Norte, propõe, a partir da cerâmica como se possuísse características homogêneas
encontrada, que os escravos de origem e uniformes por todo território brasileiro.
africana não estavam interessados em ficar Buscando caracterizar e reconhecer elementos
presos à utilização ou manutenção dos comuns, as análises acabam por ignorar os
padrões tradicionais de confeccionar cerâmica diferentes contextos socioculturais, históricos e
e sim, buscavam criar novas formas e estilos temporais daqueles que a elaboraram.
em resposta à situação de opressão a que Classificar um fragmento cerâmico de
estavam submetidos. Processo semelhante foi “neo-brasileiro”, da forma como vem sendo
sugerido aqui no Brasil por Alien (1998) e feito até o presente momento, tem o mesmo
Funari (1996) que, pesquisando o Quilombo sentido, valor e alcance que denominar de
dos Palmares, propõem que ali existiria: “indígena” uma cerâmica pré-colonial. Claro
exemplo do tipo de generalização empregada
“... uma sociedade plural cuja característica
pode ser visto em um texto de Dias Jr. (1988:4)
principal era a criação de novas formas estéticas,
não a sim ples reprodução dos pretéritos usos
entitulado “A cerâmica neo-brasileira”. O autor
africanos, indígenas ou europeus pré-coloniais.” busca em seu trabalho elementos gerais que:
(Funari 1996:143). “(...) podem ser reconhecidos nas diferentes
Fases até agora descritas nos diversos pontos do
Essa falta de consenso sobre como,
país onde foram localizadas”.
quanto e porque o mesmo tipo de vestígio
material se altera diante de novos contextos Essa perspectiva acaba mais por confundir
culturais e/ou históricos é indicativo da do que explicar, porque além de considerar a

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 165-187, 2001.

cerâmica “neo-brasileira” uma “tradição colonial teve conseqüências sobre sua produção
arqueológica”, que segundo Chmys (1976:145), material. A maioria da população estava inserida
representa “um grupo de elementos ou em um estado de grande pobreza que pode ser
técnicas, com persistência temporal”, compac­ percebido pela leitura dos testamentos e inventá­
ta características tecnológicas, estilísticas e rios da época. Estas fontes revelam que os bens
morfológicas, misturando tempo, espaço e herdados muitas vezes não passavam, além das
contextos culturais distintos. terras e dos cativos, de alguns instrumentos de
A análise que propomos para esta cerâmica trabalho de ferro, móveis e até roupas usadas.
deve partir de detalhadas descrições morfoló­ Esta situação proporcionou, durante longo
gicas, tecnotipológicas e estilísticas que tempo, papel de destaque para os recipientes
possibilitem a percepção tanto das semelhanças rústicos de barro queimado, potes, pratos e
quanto das diferenças. Grandes generalizações vasilhas utilizados cotidianamente para o
diluem sua complexidade, enquanto as diferen­ preparo, cozimento, consumo e armazenagem de
ças nos permitem relacioná-las a períodos, áreas alimentos e líquidos.
e contextos culturais específicos. Ou seja, além A grande heterogeneidade de técnicas,
das particularidades sociais e econômicas de formas e estilos encontrados na cerâmica
ocupação de cada região, deve-se levar em produzida durante os séculos XVII e XVIII,
conta o processo de formação, composição e como é exemplo a indústria do sítio Russo,
articulação dos pequenos povoados e até indica que a produção e o uso dessas peças
mesmo de cada fazenda, já que nelas ocorreram eram locais, geralmente restritos aos limites
os desdobramentos sociais que o trabalho das propriedades rurais, com algumas pessoas
arqueológico busca detalhar. confeccionando os objetos tanto para si
Em áreas ou períodos em que as atividades quanto para seus senhores (Chmyz 1976).
econômicas ofereciam a possibilidade de uma Como cada unidade doméstica produzia as
concentração maior de cativos por proprieda­ peças de acordo com a necessidade, as
de, como a Bahia do século XVII (Schwartz variações poderiam ocorrer em decorrência da
1995), as Minas Gerais no XVIII (Souza 1999) e grande quantidade de produtores relacionados
São Paulo durante o século XIX (Marcílio a contextos culturais bastante diversos; do
1974), por exemplo, o encontro entre grupos de isolamento da produção, não implicando na
mesma origem étnica ou cultural poderia troca ou homogeneização de padrões tecnoló­
propiciar articulações sociais mais intensas, gicos, morfológicos e estilísticos; e da incor­
com reflexos em uma cultura material mais poração de novos padrões, principalmente
homogênea. Contudo, não é este o caso de morfológicos e estilísticos, da louça européia e
São Paulo até o final do século XVIII. Na maior da cerâmica africana.
parte das vezes, os plantéis eram pouco O resultado final dessa confluência de
expressivos - no máximo 20 cativos para cada padrões cerâmicos provenientes de diversos
proprietário. Essa baixa densidade por unidade locais convivendo em uma mesma comunidade
de produção e os limites impostos para a reflete a situação de contato e transformação
circulação da escravaria restringia, em variadas cultural a que estas pessoas e/ou grupos
medidas, a comunicação entre os cativos estavam sujeitos. Em outras palavras, cada
(Mattoso 1990). As trocas simbólicas e as oleiro confeccionava vasos conforme novos
redes de solidariedade e sociabilidade esta- padrões, muitos dos quais diferentes daqueles
vam, então, limitadas ao local de residência e utilizados em sua terra de origem (seja ela o
seu entorno imediato. “sertão” ou a África) e que seguia padrões
culturais tradicionais. Este quadro propiciou
uma grande expansão nas formas, desenhos e
A cerâmica no contexto colonial paulista: elementos agregados às peças, como as alças,
a formulação de uma hipótese asas e pedestais, elementos que as populações
indígenas pouco ou nada utilizavam.
O papel econômico secundário ocupado Com o transcorrer das décadas, o período
pela província de São Paulo durante o período de pobreza de uma economia voltada basica­

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios m ateriais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 165-187, 2001.

mente para subsistência que afligiu as terras “fazer loiça de cujos productos se sustenido”,17
paulistas até as últimos anos do século XVIII ou, como Saint-Hilaire (1976: 160) anotou:
começa a ser superado (Machado 1930, “Em 1823, consum ou-se a ruína total dos
Queiroz 1967). A província inicia uma fase de indígenas de Pinheiros, a qual provavelm ente já
crescimento populacional e desenvolvimento tinha com eçado havia muito tempo, e os
econômico. As vilas tornam-se mais numero­ intrusos ocuparam todas as terras que tinham
pertencido a esses infelizes. Os homens ganha­
sas e algumas passam a cidades. A economia
vam a vida fazendo jornadas de trabalho e as
volta-se para as unidades de produção de
mulheres fabricavam vasilham es de barro”.
cana-de-açúcar em larga escala (Petrone
1968). Aumenta a demanda nos aglomerados É fato que alguns dos termos do tipo
urbanos e cria-se a necessidade crescente por “criolos índios” pouco ajudam para identificar,
cerâmica utilitária nas vilas e cidades. Surgem esses artesãos do barro e, como já havia
pequenos núcleos de produção e venda diagnosticado Pasquale Petrone (1995: 289-
desse produto. 293), existe uma grande dificuldade em traçar a
Relatos de cronistas e viajantes evidenciam origem étnica dos índios aldeados devido à
a existência de intensa produção de recipientes pouca documentação. Contudo, apesar de
cerâmicos por uma população indígena, ou grandes variações em sua composição, eram
mestiça, que vivia nos arredores de São Paulo os grupos Tupi os mais numerosos e os que
no início do século XIX. Vendida a preços deixaram os traços culturais mais presentes.
baixos, esta cerâmica estava direcionada para a Além disso, sempre segundo esse autor, um
população de menor poder aquisitivo: dos motivos para essa variedade étnica estava
“Ao registrar em 1800 o sucesso favorável
relacionado ao interesse das autoridades em
das feiras que instituirá no campo da Luz, as transformar os aldeamentos em vilas e bairros
celebres feiras de Pilatos, escrevia o governador rurais, enviando índios e “pessoas vadias”
(...): ‘os m esm os índios, que são os que fazem a para aumentar seu contingente demográfico.
louça ordinária, repetiram três e quatro vezes as
Como resultado deste quadro que se iniciou de
suas conduções. É minimo o valor de taes
productos na época de que nos occupamos.
maneira mais forte no final do século XVIII e
D elles se utiliza a arraia meuda, quando não dá início do XIX:
preferencia ás gamelas e copos de madeira’”
“As populações aldeadas passaram a
(M achado 1930:62). com por-se, sem pre em proporções maiores, p o r
m estiços de todos os tipos. Num processo cujas
John Mawe (1978:64) relatou em 1807 que,
fases não são sim ples de definir, os contingentes
na vizinhança da cidade de São Paulo, eram am eríndios foram se tornando gradativam ente
produzidas m ais mamelucos, foram caboclizando-se, até
“(...) louças para cozinha, grandes jarros adquirirem as características mais típicas de uma
para água e uma variedade de outros utensílios, população caipira que, ainda na atualidade,
marca com sua presença alguns ângulos dos
ornamentados com algum gosto”.
arredores de São Paulo (Petrone 1995: 135).
Gustavo Beyer (1908: 288) em 1813, escreveu:
Com isso, começa a surgir uma diferencia­
“Nos arrabaldes (de São Paulo) moram
ção entre a cerâmica comprada dos aldeamentos
muitos criolos índios que fabricam potes de barro
de grande consumo, porque é uso geral preparar
e aquela produzida nas propriedades rurais.
nelles a comida e carregar água. Muitos outros Como a produção dos aldeamentos teve de
objectos são fabricados de barro e não sem gosto.” adaptar-se a uma demanda maior e aos gostos e
necessidades da clientela, suas formas, decora­
É bem provável que os relatos transcritos
ções e apêndices passam a ser cada vez mais
estejam se referindo à população residente em
padronizados, acabando por se distanciar dos
alguns dos aldeamentos indígenas que ainda
elementos mais diagnósticos de origem indíge­
teimavam em sobreviver no começo do século
na. A padronização de formas e decoração
XIX perto de São Paulo. Outras fontes documen­
tais indicam que as poucas atividades econômi­
cas desenvolvidas nestes decadentes locais se (17) Boletim - Aldeam entos de índios (1 7 2 1 -1 8 0 4 ),
restringiam ao plantio para a subsistência e a vol. 8, pp. 156, 1948.

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos v estígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 77: 165-187, 2001.

facilitou sua confecção, distribuição e uso nos de Sesmarias” e os “Documentos Interessan­


entornos de São Paulo, principalmente nas tes”) para servir de base para a definição das
áreas urbanas. Valorizadas como mercadorias, áreas a serem amostradas e percorridas por
estas vasilhas produzidas para a venda entra­ prospecções arqueológicas preocupadas em
vam em circulação. Entretanto, deve-se ressaltar localizar antigos assentamentos da época em
a possibilidade de existir, dentro dos aldea- questão - as sesmarias - e fontes manuscritas
mentos, a produção de cerâmicas diferenciadas inéditas para auxiliar na compreensão da
destinadas à utilização exclusiva dos residentes demografía da população cativa da região.
do aldeamento. A existência de variações na Essas fontes manuscritas - o “Livro de Óbitos”
cerâmica em função de sua utilização é um e o de “Casamentos de escravos” - revelaram
comportamento bastante comum constatado informações inéditas sobre a composição étnica
entre vários grupos indígenas e não deve ser dos plantéis cativos em Jundiaí, seus casamen­
descartada nesta situação (Graburn 1979). tos interraciais e, principalmente, as transforma­
Já a produção cerâmica nas propriedades ções que os indígenas sofreram desde sua
rurais permanece mais individualizada e sujeita a captura nos sertões para utilização como mão-
variações idiossincráticas. Produzida para uso de-obra escrava, até seu paulatino processo de
doméstico, apresentaria maior adaptação a incorporação à sociedade colonial como
necessidades específicas de uso/consumo. pessoas livres ou alforriadas.
Identificada com sua cultura de origem ou A análise conjunta dos dados de origem
relacionada a novas articulações, a cerâmica arqueológica e documental possibilitou
doméstica continua apresentando uma maior articulação importante: através das fontes
diversidade morfológica, estilística e tecnológica. documentais foi possível buscar as origens
Concluindo, as informações obtidas através étnicas e socioculturais dos agentes envolvi­
do'conjunto de dados históricos e arqueológi­ dos e, a partir do contexto arqueológico,
cos nos proporcionaram formular a hipótese entender sua relação com o material cerâmico
sobre o que acreditamos ser as duas macro- produzido, definindo como, e em que propor­
divisões da cerâmica no século XVIII encontra­ ção, cultura material e identidade cultural,
da nas áreas de entorno de São Paulo: aquela atuaram naquele local. A análise dos vestígios
confeccionada nos aldeamentos e a das materiais retirados de um dos sítios escolhidos
propriedades rurais. No entanto, é necessário para ser escavado sistematicamente, o sítio
testar essa hipótese pesquisando os locais que Russo (datado em 300 A.P, ou seja, no ano
no passado foram aldeamentos, buscando 1700), revelou as grandes variações tecnoló­
encontrar semelhanças entre a cerâmica coleta­ gicas, morfológicas e estilísticas existentes na
da em seu interior com aquelas coletadas nas indústria cerâmica, reflexo da diversidade
propriedades rurais, e principalmente nas áreas étnica e sociocultural do período e das diferen­
urbanas da São Paulo antiga. ciações que a produção cerâmica local e
isolada propiciava.
Essa diversidade apontada pelas fontes
Considerações finais escritas é também confirmada pelos muitos
atributos caracterizadores da cerâmica encon­
A articulação do conjunto de dados históri­ trada neste assentamento e que estão atrela­
cos e arqueológicos sintetizados neste artigo, e dos a uma identidade cultural vinculada aos
que foram apresentados de forma plena na grupos portadores de cerâmica conhecida
dissertação de mestrado “A escravidão esqueci­ arqueológicamente como Tupiguarani. Além
da: a administração indígena em Jundiaí durante disso, existem evidências de que vários dos
o século XVIII”, permite afirmar com segurança a motivos decorativos deste sítio estão relacio­
existência de uma população indígena utilizada nados aos segmentos trazidos da África, já
como mão-de-obra escrava na vila de Jundiaí até que remetem a padrões utilizados naquele
pelo menos meados do século XVIII. continente, ou porque aparecem em sítios
Para atingir estes resultados foram utiliza­ arqueológicos do sul do Brasil em época que
das transcrições de documentos (“Repertório coincide com a chegada de escravos africanos

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasiieira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios i ateriais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rqu eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 165 87, 2001.

à região, e sem apresentar semelhança com a lado as generalizações usualmente emprega­


cerâmica pré-colonial brasileira. das na arqueologia brasileira, preocupadas
Tamanha variedade tecnológica, morfoló­ em buscar elementos comuns na cerâmica
gica e estilística, todavia, não é explicada “neo-brasileira”, e partir para uma descrição
apenas pela diversidade étnica existente no sistemática e exaustiva desse material. E
período, mas também por um modo de produ­ necessário um grau de detalhe que permita ter
ção cerâmica local, basicamente doméstica e o domínio completo de cada sítio em particu­
utilitária, restrita às propriedades rurais da lar e, sempre que possível, procurar obter
época. Nestes locais haveria: grande quantida­ informações que possibilitem um diálogo
de de produtores relacionados a contextos entre vestígios materiais e as fontes textuais.
culturais bastante diversos; um isolamento de Essa articulação é importante para poder
cada local de produção, que não implica em buscar, através das fontes documentais, as
maiores trocas ou em uma homogeneização de origens étnicas e socioculturais dos agentes
padrões tecnológicos, morfológicos e estilís­ envolvidos e, a partir do contexto arqueológi­
ticos e, por último, a incorporação de padrões co, entender sua relação com o material
novos, principalmente morfológicos e estilís­ cerâmico produzido, definindo como, e em que
ticos, da louça européia e da cerâmica africana. proporção, cultura material e identidade
Este modo de produção, que estaria cultural, estão atuando juntas. Com a amplia­
representado pelo sítio Russo, explicaria a ção das escavações e a sobreposição dos
grande diversidade da cerâmica encontrada trabalhos em áreas contínuas, será possível
nos sítios históricos do período colonial. Em montar um contexto mais amplo, onde elemen­
contrapartida, teríamos uma produção para tos comuns possam ser percebidos na cerâmi­
venda atestada pelos documentos e relatos da ca para, aí sim, começar a falar de característi­
época que indicam que componentes dos cas regionais - algumas das quais perduram
aldeamentos indígenas estariam direcionando até os dias de hoje.
parte do seu tempo e recursos na produção de Por fim, as informações fornecidas pelo
cerâmica destinada à venda nos entornos de conjunto de dados históricos e arqueológicos
São Paulo. Mas essa produção destinada à nos permitiram ir além da simples comprovação
venda não significaria a substituição da da presença indígena na “Villa de Nossa
produção oleira individual pela comercial: Senhora do Desterro de Jundiahy”. Elas nos
ambas coexistiriam e podem ser encontradas possibilitaram reunir elementos sobre aspectos
dentro do mesmo sítio arqueológico. da inserção, transformação, influência e
Assim, as informações obtidas principal­ continuidade sociocultural indígena até as
mente através do conjunto de dados arqueo­ últimas décadas do século XVIII que, prova­
lógicos acabaram por resultar em uma reflexão velmente, se estendem a outros núcleos
que aponta para a possibilidade de existirem coloniais paulistas mais antigos.
duas grandes divisões na maneira de produzir
cerâmica na província de São Paulo durante
as últimas décadas do século XVIII e início Agradecimentos
do XIX. Mas essa reflexão sobre a possível
divisão entre uma produção cerâmica local e a Uma série de pessoas contribuíram com
comercial não pode ser aplicada indistinta­ comentários e sugestões para a construção
mente a qualquer ponto do território brasilei­ deste artigo. Entre elas estão os Professores
ro. Contextos culturais e históricos diversos Paulo A. D. De Blasis, Paulo Zanettini, Pedro
acabam por produzir um material cerâmico Paulo Abreu Funari, André Jacobus, Paulo
diferenciado decorrente de interações étnicas Vicentini, Erika M. Robrahn-González e Marta
ou modos de produção distintos. Diante Heloisa Leuba Salum, o Sr. Romoaldo Russo e
dessa grande diversidade, devemos deixar de Flavia Prado Moi.

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
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ABSTRACT: This article presents some of the results collected by the thesis
“The forgotten slavery: the administration of indian people in Jundiaí in 18th
Century” Here we focus on the “neo-Brazilian” ceramics and its interpretative
possibilities within the “Paulistas” territories context in the colonial period.

UNITERMS: Historical Archaeology - Colonial São Paulo - Indigenous


administration - African slavery - Cultural interaction - Ethnic identity -
Ceramic - “Neo-Brazilian” ceramic.

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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 10 de outubro de 2000.

187
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

OS NOVELOS DE FIBRAS DO ABRIGO RUPESTRE


SANTA ELINA (JANGADA, MT, BRASIL):
ANATOMIA VEGETAL E PALEOETNOBOTÄNICA

Gregorio Cardoso Tápias Ceccantini*


Luciana Witovisk Gusselia*

CECCANTINI, G.C.T. Os novelos de fibras do abrigo rupestre Santa Elina (Jangada, MT,
Brasil): anatomia vegetal e paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

RESUMO: O Abrigo Rupestre Santa Elina rica em Jangada, MT, Brasil, é


formado por uma dobra calcária da Bacia do Paraguai e apresenta sedimentos de
sucessivas ocupações humanas nos últimos 6.000 anos. Esses sedimentos
possuem vestígios vegetais bem conservados em quantidade, como carvões,
madeiras, macro-restos vegetais, fibras e artefatos de fibras vegetais, principal­
mente nas camadas mais recentes. Artefatos de fibras enroladas semelhantes a
ninhos de pássaros, referidos como novelos ou maranhas foram estudados
histológicamente por meio de técnicas de anatomia vegetal e identificados com
base em uma coleção de referência de material lenhoso da região e materiais de
herbários. As fibras foram identificadas como sendo de caules de lianas lenhosas
do gênero Aristolochia, provavelmente da espécie A. esperanzae O. Kuntze,
família Aristolochiaceae. Diversas espécies de Aristolochia, conhecidas como
papo-de-peru ou milhome, são usadas como plantas medicinais em várias partes
do mundo para muitas finalidades, sendo que também são apontados os usos
como repelentes ou amuletos contra cobras. Os novelos arqueológicos podem ter
tido algum desses usos e são indicadores de ocorrência de formações florestais,
provavelmente indicando condições ecológicas semelhantes às atuais.

UNITERMOS: Fibras vegetais - Paleoetnobotânica, arqueobotânica -


Aristolochia, Aristolochiaceae - Anatomia vegetal - Anatomia da madeira -
Anatomia do lenho.

Introdução ou arqueobotânica. Isso se deve, em parte, pela


escassez de materiais vegetais preservados em
No Brasil ainda não existe uma cultura de sítios arqueológicos brasileiros e, em parte, pelo
interação entre a Arqueologia e a Botânica e pouco interesse que os botânicos demonstraram
quase inexistem trabalhos de paleoetnobotânica no passado pelos problemas arqueológicos, mesmo
para os materiais que ocorrem em abundância,
como é o caso dos carvões de madeira. Assim, há
(*) Departamento de Botânica da Universidade Federal poucas informações arqueológicas obtidas a partir
do Paraná - UFPR. de vestígios vegetais, bem como são pequenos o

189
CECCANTINI, G.C.T. Os novelos de fibras do abrigo rupestre Santa Elina (Jangada, MT, Brasil): anatomia vegetal e
paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77: 189-200, 2001.

desenvolvimento metodológico e a experiência Cuiabá, MT (15,23° S, 56, 48°W) (Fig. 1: 1). O


para lidar com materiais dessa natureza. (Ribeiro abrigo é formado por dois paredões de calcário
1993:37-56, Ceccantini 2000). dolomítico, sendo que o paredão sul, que recobre
Apesar de a situação exposta acima ser o o abrigo possui mais de 50 m e inclinação de 75°
caso da maioria dos sítios arqueológicos brasilei­ (Fig. 1:2). Ele forma uma grande área protegida
ros, exceções existem e apontam para um cenário de cerca de 70 m de comprimento por 5 m de
promissor. Bons exemplos são os sambaquis do largura e cerca de 6 m de profundidade (Fig. 1: 3).
norte do litoral do Rio de Janeiro, com o estudo Esses paredões são ricamente ornamentados por
de carvões realizado por Scheel-Ybert (2000: pinturas com figuras e sinais com várias cores
111-138; 2001: 471-480) e o do Abrigo Rupestre (Vialou e Vialou, 1989: 34-53).
Santa Elina, no Mato Grosso, com diversos O Sítio tem sido escavado há quinze anos,
trabalhos em andamento (Vialou & Vialou). sendo reconhecidas três fases de ocupação
O Abrigo Rupestre Santa Elina apresenta distintas. Vialou et al. (1995:655-661) o conjun­
muitas possibilidades para estudos botânicos, pois to superior (I) é datado de até 7151-6673 anos
as condições de preservação dos vestígios vegetais Cal AP, apresenta sedimentos pulverulentos,
são excepcionais e esses ocorrem em grande blocos calcários pintados com pigmentos
quantidade e variedade. Nas escavações têm sido vermelhos, ossos, conchas e grande quantidade
encontrados folhas, frutos, sementes, fragmentos de macro-restos vegetais, como frutos, folhas,
de madeira e carvão, bem como artefatos compos­ fragmentos e estacas de madeira e grande
tos de fibras vegetais, principalmente nos níveis quantidade de carvões. O conjunto intermediário
mais recentes (Vialou etal. 1995: 655-661). Os (II) é composto de sedimento arenoso, com
carvões, as estacas de madeiras, parte dos frutos e plaquetas calcárias retocadas e grande quantida­
os artefatos de fibras já foram estudados por de de osteodermas e fragmentos de ossos de
diversos especialistas (E. Taveira, R. Scheel-Ybert, megafauna, sendo datado de 7.175 a 11.997 anos
G. Ceccantini) e trabalhos a esse respeito encon­ Cal AP. O conjunto inferior (III) apresenta uma
tram-se em fase de publicação (Vialou & Vialou). alternância de camadas de areia grossa e blocos
Dentre os diversos tipos de vestígios vegetais líticos, contendo ainda madeira alterada, sendo
destacam-se numerosos artefatos de fibras. O datado de até 23.000 anos Cal AP.
trabalho de Taveira (2000) analisou cuidadosa­
mente esses objetos, relacionando diversas
categorias de materiais fibrosos, como fios, Material e métodos
cordas, dobraduras, nós, enodados, trançados que
deviam compor objetos como cestos, sandálias, O material arqueológico
estojos penianos. Para a maioria dos materiais
foram demonstradas as formas de confecção e as O material estudado consiste de conjuntos
afinidades culturais, entretanto, para materiais de fibras vegetais enoveladas, lembrando ninhos
referidos como “fibras vegetais intrincadas” ou de pássaros, medindo de cinco a oito centímetros
“maranhas”, a autora não pôde obter muitas de diâmetro, aqui tratados como “novelos”
informações. Assim, considerando a boa conser­ (Figuras 4A e 4B). Foram preparados para
vação e a indisponibilidade de informações investigação microscópica 40 novelos, coletados
etnológicas, o objetivo desse trabalho é de nos anos 1991, 1993 e 1996. Esses materiais
analisar anatomicamente esses materiais de estavam distribuídos de forma mais ou menos
natureza desconhecida e fornecer elementos para aleatória no sítio juntamente com outros materi­
a sua interpretação etnobotânica e paleoambiental. ais vegetais. Os materiais analisados pertenciam
às quadras 21B, 25A, 26A, 27A, 28A, 28B, 29C,
36A, 39A, 40A, nas camadas mais superficiais (z
Localização e características do = 26 a 212 cm), na camada denominada CCP
sítio arqueológico (camada contra a parede), nas camadas 2, 3, e
um deles, na base de uma fogueira, no nível dos
O Abrigo Rupestre Santa Elina situa-se no blocos. Os materiais encontravam-se armazena­
município de Jangada, a cerca de 100 km de dos no MAE-USP em grupos, dentro de sacos

190
paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

1 - Localização do Abrigo Santa Elina.


2 - Planta de corte transversal da escavação do sítio, mostrando as paredes que formam o abrigo. Modificada do original elaborado
por K. Shapazian no ano 2000.
3 - Planta de corte longitudinal da escavação do sítio, mostrando níveis recentes, onde se encontravam as fibras. Modificada
CECCANTINI, G.C.T. Os novelos de fibras do abrigo rupestre Santa Elina (Jangada, MT, Brasil): anatomia vegetal e

do original elaborado por K. Shapazian no ano 2000.


CECCANTINI, G.C.T. Os novelos de fibras do abrigo rupestre Santa Elina (Jangada, MT, Brasil): anatomia vegetal e
paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

plásticos, numerados segundo o caderno de Para a montagem das lâminas permanentes,


campo. Cada novelo foi aqui designado com o utilizou-se Bálsamo do Canadá. Alguns materi­
número do conjunto no caderno de campo ais mostraram-se frágeis ao acetato de butila e à
acrescido de uma letra para diferenciação de cada montagem em Bálsamo do Canadá sintético, por
novelo. Os materiais preparados para estudo isso, a resina de montagem foi substituída por
foram: 260, 286, 294, 297, 298 (A), 299, 301 (B), Euparal, tornando-se desnecessária a lavagem
303, 305 (A, B), 306, 308, 310, 313, 316, 317, em acetato de butila.
318, 321, 322, 323, 529 (A-R), 531 e 543.
O material de referência
A preparação histológica
As lâminas histológicas foram estudadas e
Os novelos de fibras vegetais apresentam comparadas com a coleção de referência de cerca
diversos estados de conservação e não foi de 100 espécies de madeira elaboradas para a
encontrado na literatura um protocolo para sua região do Abrigo Santa Elina por G. Ceccantini,
preparação histológica. Assim, procederam-se M. H. Fernandez, R. Scheel e M.E. Solari.
diversos testes quanto à hidratação, amolecimen­ Adicionalmente, após a determinação em nível de
to, corte, desidratação e montagem, realizando- gênero, coletaram-se, para comparação, segmen­
se adaptações para cada material a partir das tos de caule de Aristolochia spp em exsicatas dos
técnicas usuais de corte (Kraus e Arduin 1997:117- herbários MBM e UPCB das espécies citadas para
118). Iniciaram-se as tentativas como se se tratasse o MT por Dubs (1998:26-27).
de material vegetal foliar ou caulinar fresco, Os materiais examinados de herbário estão
havendo adaptações por tentativa e erro. Priorizou- listados no Anexo, ao final desse trabalho.
se a preparação à mão livre em vez de inclusão em
meio de montagem, de forma a produzir um
protocolo rápido que permitisse o estudo rápido de Resultados e discussão
um maior número de materiais. Macerações
celulares foram feitas pelo método de Franklin A natureza das fibras
modificado (Kraus e Arduin 1997:117-118).
De cada novelo retirou-se uma pequena A maioria dos materiais selecionados pôde
amostra (~1 cm), que foi fixada entre segmentos ser preparada para histología e apresentava sua
de isopor de cerca de 3 cm, e cortada à mão livre estrutura anatômica conservada. Os materiais
transversal e longitudinalmente com lâminas de 305B, 317, 323, 386, 543 não puderam ser
barbear. Os cortes foram realizados a seco, pois estudados, pois se dissolviam na preparação.
qualquer tipo de hidratação anterior ao corte A preparação manual não apresenta grandes
provocava a fragmentação do material. Os cortes dificuldades técnicas, mas careceu de adaptação
obtidos foram então hidratados em água destila­ da metodologia específica. Essa preparação
da, sendo em seguida clarificados em hipoclorito mostrou-se muito viável para a análise de fibras
de sódio (5%) por alguns minutos. O material arqueológicas bem conservadas. Não foi neces­
mostrou-se resistente a até cinco minutos nessa sário embeber o material em meios de inclusão,
solução. Após várias lavagens em água destilada, o que acelera muito os trabalhos. O mais
estes foram corados em fucsina básica aquosa importante nesse caso foi não hidratar o material
(1%), por aproximadamente três minutos, em antes de cortar e realizar uma clarificação
seguida, lavados em água destilada e corados em branda. Chamou a atenção o fato de as macera­
solução aquosa de azul de astra (1%), por seis a ções de fibras arqueológicas demorarem muitos
dez minutos. Ao final, os cortes foram lavados, dias para ocorrer, ao contrário do material de
novamente, em água destilada. referência que se macerava na solução de
Para manter a integridade dos cortes e da Franklin em apenas um dia.
dupla coloração, reduziu-se a série de desidrata­ A primeira idéia sobre a natureza dos
ção etílica. Partindo-se da água destilada e novelos era que esses se tratavam fibras vegetais
passando, rapidamente, os cortes para álcool de folhas de gramíneas ou palmeiras. Constatou-
absoluto e, em seguida, para acetato de butila. se com as preparações histológicas que as fibras

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CECCANTINI, G.C.T. Os novelos de fibras do abrigo rupestre Santa Elina (Jangada, MT, Brasil): anatomia vegetal e
paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77: 189-200, 2001.

dos novelos não eram folhas desfiadas, como se perfuração simples. As pontoações são grandes,
pensava a princípio, e sim partes do caule de areoladas, alternas, circulares, elípticas até
plantas lenhosas, seguramente lianas (cipós). alongadas (2f). As fibras xilemáticas podem ser
Isso é evidenciado pela presença de uma estru­ septadas ou não septadas, com pontoações
tura típica de caule em crescimento secundário areoladas distintas. Traqueídes estão presentes. O
(lenho), composto por vasos e fibras de xilema parênquima axial é raro, paratraqueal escasso e
dispostos em cunhas no caule. Cada fibra do difuso. Cristais prismáticos e drusas foram
novelo, ou simplesmente fibra, corresponde a encontrados nos raios parenquimáticos de células
uma cunha do xilema do caule. Adicionalmente, eretas (Figs. 2d, 2e).
a estrutura observada apresenta diferenciação A estrutura anatômica observada coincide
endarca, evidenciando que se trata de caule com a estrutura típica de Aristolochia sp. Confor­
(Figs. 2c e 2d). Essa conclusão modificou a me o estudo de Carlquist (1993: 341-357) e a
maneira com a qual esse material estava sendo análise das espécies que ocorrem MT, há grande
entendido: o que parecia inicialmente se tratar de variação da estrutura entre as espécies de
material fibroso meramente enovelado, que até Aristolochia, e essa variação inclui as caracterís­
poderia ser resultante da atividade de pássaros, ticas do material arqueológico de Santa Elina. As
na verdade consistia de um material desagregado espécies Aristolochia usadas para comparação
intencionalmente já que somente cunhas forma­ sempre apresentam porosidade difusa, vasos
das de fibras de xilema e vasos foram observa­ geralmente solitários (Figs. 3a, 3b, 3e, 3f) e
das, havendo apenas resíduos de raios paren- placas de perfuração simples. As pontoações são
quimáticos entre eles. Esses raios parenqui- areoladas, circulares a alongadas, alternas e
máticos não aparecem inteiros, mas podem ser grandes (Figs. 3d, 3h). Apresentam fibras
evidenciados em algumas seções transversais e septadas e não septadas, com pontoações
longitudinais (Figs. 2d, 2e). Deduz-se que se areoladas distintas e traqueídes. Apresentam
tratava de raios bastante espessos e frágeis, o que raios multisseriados largos (>4 células de
explicaria a sua ocorrência vestigial e presença espessura), formados por células eretas, geral­
de cunhas isoladas formadas apenas por fibras e mente contendo cristais prismáticos e/ou drusas
vasos de xilema. (Figs. 3c e 3g). O parênquima axial é difuso.
Pode-se imaginar como os caules teriam São poucas as características anatômicas
sido preparados para se apresentarem com a disponíveis para a distinção entre as espécies de
forma final de novelos. Podem ter sido prepara­ Aristolochia por caules de diâmetro muito
dos por meio de esmagamento com algum tipo pequeno (< 5 mm). Algumas das características
de raspador (talvez lítico) que macerasse os que se revelaram úteis são o número de pólos de
raios, que são tecidos frágeis, com paredes protoxilema e de feixes vasculares, bem como a
celulares finas e pouco lignificadas. Poderiam ter forma desses feixes quando vistos em corte
sido esmagados por raspagem do caule movi­ transversal (Figs. 3a, 3b, 3e, 3f). O material
mentando-o longitudinalmente sobre uma arqueológico assemelha-se a duas espécies do
superfície dura. Há cortes histológicos com gênero, A. ridicula N. E. Brown e A. esperanzae
vasos deformados (Fig. 2c), que evidenciam que O. Kuntze, mas as características anatômicas
houve esmagamento. Centenas de artefatos observadas assemelham-se de forma mais clara à
líticos foram encontrados no sítio, e diversos estrutura de A. esperanzae O. Kuntze (Fig. 4).
deles poderiam ser adequados para esse tipo de Essa última espécie ocorre no Estado e foi encon­
preparo. Também poderia ter sido empregado trada em área de floresta decídua próxima ao sítio
algum tipo de objeto, como um pente, ou arqueológico, sendo a espécie mais provável para o
espinho, que perfurasse os caules e ajudasse a material arqueológico (Ceccantini, no prelo (a);
desfiá-los. Entretanto, nenhum artefato assim foi Dubs 1998: 26-27).
encontrado no sítio. As plantas da família Aristolochiaceae são
Todos os novelos estudados apresentam o lianas herbáceas ou lenhosas, sendo agrupadas
mesmo padrão anatômico e consistem no mesmo em sete gêneros, com cerca de 600 espécies,
material botânico, apresentando porosidade distribuídas principalmente em florestas de
difusa, vasos exclusivamente solitários, placas de regiões tropicais, subtropicais e temperadas de

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paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

Fig. 2 - Morfología dos nóvelos arqueológicos.


(a, b) - Aspecto geral de nóvelos.
(c) - Corte transversal, mostrando aspecto geral do lenho, porosidade difusa e vasos deformados.
(d) - Corte transversal, mostrando residuos de raio parenquimático (setas), células de parénquima
axial e xilema primário.
(e) - C orte lo n g itu d in a l tangencial, m ostrando crista is p rism á tico s em restos de raio
parenquimático (setas) e fibras.
(f) - Corte longitudinal tangencial, mostrando pontoaqóes intervasculares alternas, areoladas,
elípticas a alongadas. Escala: a, b - 5cm; c = 200 pm; d, e, f = 100 pm.

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paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

Fig. 3 - Anatomia de caules jovens de Aristolochia spp.


(a, b, c, d) - A. ridícula: (a, b) - corte transversal, mostrando aspecto geral da madeira, poros idade
difusa e raios largos; (c) - corte longitudinal, células de parênquima pouco contrastadas, contendo
cristais prismáticos e drusas (setas); (d ) - corte longitudinal tangencial, parede dos vasos com pontoações
alongadas.
(e, f, g, h) - A. esperanzae: (e, f) - corte transversal, mostrando aspecto geral de feixes vasculares,
porosidade difusa e raios largos; (g) - corte longitudinal, células de parênquima pouco contrasta­
das, contendo cristais prismáticos e drusas (setas); (h) - corte longitudinal tangencial, mostrando
parede dos vasos com pontoações alongadas. Barras de escala: a, e = 500 mm; b ,f= 200 pm; c, d, g,
h = 100 pm.

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paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

quase todo o mundo (Barroso 1978: 47-49, antidiabético e antidiarréico pela culturas Créole,
Mabberley 1997: 55-56, Capellari Jr. 2001: 1- Palikur e Wayãpi da Guiana Francesa.
34). O gênero Aristolochia possui cerca de 500 Além de referências como plantas medici­
espécies, sendo que cerca de 60 ocorrem no nais, existem citações de espécies tóxicas ou
Brasil (Barroso 1978: 47-49) e 14 são citadas mesmo usadas como veneno para pontas de
para o Estado de Mato Grosso (Dubs 1998: 26- flechas (Pio Corrêa, 1975; Garavito, 1990;
27). As diversas espécies podem ser conhecidas Mabberley 1997: 55-56).
popularmente por diversos nomes no Brasil: A literatura não só aponta usos medicinais e
papo-de-peru, jarrinha, mil-homens, milhome, de caráter tóxico, mas também significados
cipó-milome, flor-de-cachimbo, patito, buta, rituais principalmente associados a cultura
anhangá-puturi, angelicó, calunga, urubu-caá Iorubá e ao culto afro-brasileiro do Candomblé
(Cointe 1947: 377-488, Pio Corrêa 1975, Braga (Camargo, 1985: 99-101; Verger, 1995: 635).
1976: 39-40 e 392, Lima et al. 2000: 33-55, Os efeitos farmacológicos citados se justifi­
Capellari Jr. 2001: 1-34). cam pela presença de diversos metabólitos
secundários, especialmente ácido aristolóquico e
alcalóides aporfínicos. Além desses podem ocorrer
Aspectos etnobotânicos de terpenóides, flavanas, saponinas (Hoehne 1939:
Aristolochia 104-108, Hoehne 1942, Grenand et al., 1987,
Robinson 1991: 322-323, Cronquist 1988: 283).
A plantas da família Aristolochiaceae são Um ponto em comum às diversas descri­
conhecidas como espécies medicinais desde a ções de Aristolochia é a presença de odor forte
antiguidade, sendo reportados seus efeitos e desagradável, principalmente nas flores.
terapêuticos por Dioscorides. A palavra Aristolo­ Esses odores têm caráter picante, aliáceo e
chia significa em grego “bom parto” (“aristos” = canforado (Braga 1976: 39-40, Pio Corrêa
excelente; “lochios” = parto) (Hoehnel942). 1975). Provavelmente, estão relacionados à
Esse significado pode ser originado de relações presença de óleos essenciais voláteis, deriva­
simbólicas com a genitália feminina. Por um dos de fenilpropanóides (asarona, elemicina,
lado, há o aspecto das suas flores que lembram a safrol, eugenol) monoterpenos e sesqui-
posição do feto humano no corpo feminino, por terpenos (Grenand et al. 1987). Esse dado
outro, o efeito que possui na motilidade uterina, pode ser importante para interpretar o uso
que pode tanto estimular a menstruação ou desse material.
partos, como levar a abortos (Hoehne 1942,
Uphof 1959, Pio Corrêa 1975, Braga 1976,
Interpretação dos materiais fibrosos:
Garavito 1990, Mabberley 1997: 55-56).
uso e ecologia
Há numerosas referências sobre uso medici­
nal de Aristolochia. Para suas espécies são
apontados muitos efeitos, sendo que, no Brasil, O Abrigo Santa Elina apresenta grande
os mais comuns são como estimulante, sedativo, riqueza de materiais fibrosos conservados, sendo
emenagogo, diurético, febrífugo, anti-séptico, que aqueles derivados de palmeiras, como
sudorífico, antibiótico (Braga 1976: 39-40, cestaria, sandália, estojos penianos, apresentam
Cointe 1947: 377-488, Pio Corrêa 1975, Simões detalhado estudo etnográfico no qual são
et al. 1989: 50-51). Para a América do Norte, descritos usos, técnica de preparações e afinida­
também são referidos muitos usos medicinais, des culturais (Taveira 2000). Esses materiais
incluindo ação analgésica, anticonvulsiva, anti- foram relacionados à cultura Umutina, de grupos
reumática, vermífuga, especialmente para A. indígenas Bororo, que habitam a região, entre­
serpentaria L. (Moerman 1998). Além dos usos tanto não foi possível para a autora interpretar o
apontados, Garavito (1990) apresenta dezenas de significado e uso dos novelos, que nesse traba­
referências sobre outros usos medicinais para lho são referidos como “maranhas” ou “fibras
espécies da Colômbia, por exemplo, como vegetais intrincadas”. A identificação botânica
convulsionante e purgante. Já Grenand et al. precisa do material pode sugerir alguma interpre­
(1987: 1-569) aponta usos como febrífugo, tação.

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paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

Observando-se a aparência do material dos Conclusões


novelos, chegou-se a pensar que esses pudessem
ter sido usados como fonte de fibras têxteis, mas Os macro-restos vegetais arqueológicos
não foi encontrado nenhum artefato com esse fibrosos e enovelados (novelos) do Abrigo
tipo de material, nem referência que demonstras­ Rupestre Santa Elina, tratados na literatura por
se esse uso em qualquer lugar do mundo. Assim “maranhas” ou “fibras intrincadas” consistem em
parece pertinente que o material tenha tido feixes, contendo fibras e elementos de vaso do
algum outro tipo de uso para justificá-lo em xilema secundário do caule de plantas trepadeiras
tamanha quantidade no sítio. A uniformidade da do gênero Aristolochiá, família Aristolochiaceae.
espécie utilizada para os 35 objetos estudados Os novelos provavelmente são da espécie Aris-
(apenas Aristolochiá) é um indicativo de que tolochia esperanzae O. Kuntze, que é a espécie
esses novelos tinham uma finalidade específica. com maior semelhança morfológica ao material
Uma vez que o Abrigo Santa Elina era uma arqueológico. Essa espécie, bem como outras
área de habitação humana, chamam a atenção as espécies de Aristolochiá, é usada por sertanejos e
referências etnobotânicas que apontam Aristolo- indígenas como plantas medicinais e repelentes de
chia como antiofídico. Tanto para combater os cobras, que podem ter sido os usos dos novelos
efeitos de suas picadas, como repelentes, ou pelas populações que habitaram o sítio arqueológi­
mesmo amuletos (Pio Corrêa, 1975, Garavito co. A presença de Aristolochiá no sítio sugere que
1990, Moerman 1998, Grenand et al. 1987). Pio havia formações florestais nas imediações do sítio.
Correa (1975) aponta ainda que os sertanejos
acreditavam que o cheiro de Aristolochiá
narcotizava as cobras, ao ponto aceitar que
Agradecimentos
caules das plantas junto a objetos de uso diário
(arreios, colchões, botas) seriam capazes de
protegê-los de desgraças. Comunicações pesso­ À Dra. Verônica Angyalossy Alfonso, da USP,
ais de mateiros no Paraná também indicam o São Paulo, pelo apoio e confiança; à Dra. Agueda
cipó-milhome (A. triangularis, A. paulistana) Vilhena-Vialou e ao Dr. Denis Vialou do MNHN
como repelente de cobras para passar nas pernas. de Paris, pela acolhida em sua equipe; ao Sr. Gert
Somando-se os relatos sobre o odor forte e Hatschbach e equipe do MBM de Curitiba, pelo
desagradável das plantas e as citações como auxílio na identificação dos materiais da coleção de
repelente, é possível sugerir que os novelos no referência; à Dra. Nanuza Luíza de Menezes da
Abrigo Santa Elina teriam sido usados como USP, São Paulo, pela sugestão que auxiliou na
repelente doméstico para cobras. Isso justificaria identificação do material; a Mário Henrique
a grande quantidade e a dispersão desses Fernandes, da UFPR, Curitiba, bem como Luciane
artefatos no sítio. Não é impossível imaginar que Kamase e Paulinho do MAE-USP, todos pela
a convicção da qualidade dos efeitos das plantas assistência geral em campo e/ou laboratório;
tenha origem no seu uso por populações indíge­ ao Prof. Antônio Salatino da USP, pelas idéias
nas. Além dessa possibilidade, o uso medicinal para discussão sobre Aristolochiaceae; ao Dr.
não pode ser descartado, uma vez que em Balthazar Dubs, Suíça, por compartilhar informa­
diversas culturas tradicionais do mundo, espéci­ ções da Flora do MT; ao Museu de Arqueologia e
es de Aristolochiá são reconhecidas como Etnologia da USP (MAE-USP), pelo empréstimo
plantas medicinais ou de efeito farmacológico. do material e uso de suas facilidades; aos her­
Do ponto de vista paleoecológico, os bários do Museu Botânico Municipal de Curitiba
novelos encontrados sugerem que havia comuni­ (MBM) e da Universidade Federal do Paraná
dades florestais associadas ao Abrigo rupestre, (UPCB) por permitirem a retirada de material das
talvez de forma semelhante ao que ocorre hoje, exsicatas para histologia; à FAPESP e Ministère
uma vez que a maioria das espécies de Aristolo- des Affaires Etrangères de France, pelo suporte
chia ocorre em áreas florestais. financeiro em campo.

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paleoetnobotânica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

ANEXO
Material examinado em herbários

Os materiais examinados de Aristolochia J.M. 534; A. melastoma Manso ex Duch.,


spp estão depositados nos herbários UPCB e Hatschbach, G. 19311; A. odoratissima L.,
MBM. São listados abaixo os nomes das Hatschbach, G. 49086; A. paulistana Hoehne,
espécies estudadas, seguidos do coletor do Lima, R.X. 216; A. ridicula N.E. Brown, UPCB
espécime e número ou número no herbário: 26238; A. ridicula N.E. Brown, Hatschbach, G.
Aristolochia claussenii Duchartre, Hatsch- 63852 & Pott, A., Barbosa 1995; A. stomachoides
bach, G. 40761; A. elegans Mast., Cervi, A.C. Hoehne, Irwin & Soderston 1964; Hatschbach,
6107; A. esperanzae O. Kuntze, Hatschbach, G. G. 23524; A. triangularis Cham., Capellari &
62140 & Silva 1995; Ceccantini 1343 & Femandez; Rodrigues 1989; Lima, R.X. s/n°, UPCB 20694;
Hatschbach, G. 24230; A.fim briata Cham., A. urupaensis Hoehne, Hatschbach, G. 33322 &
Kozera, C. 36; A. gigantea Mart. et Zucc., Koczicki 1973; A, warmingii Mast., Hatschbach,
Moreira .F., H s/n°; A. macroura Gomez, Silva, G. 33279 & Koczicki 1973.

CECCANTINI, G.C.T. Plant anatomy and palaeoethnobotany at Santa Elina shelter (Jangada,
MT, Brazil). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 189-200, 2001.

ABSTRACT: Santa Elina shelter is located at Jangada County, Mato Grosso


State at the North of Paraguay basin, Western Brazil. It is formed by a limestone
folding and reveals sediments from the last 6,000 years. Those sediments are very
rich in plant vestiges very well preserved comprising wood pieces, charcoal, plant
organs and fibers. Ravel like artifacts formed by plant fibers were analyzed by
standard plant anatomy methods and identified by comparison to a reference
collection and stems from herbaria. The fibers have been identified as stem parts
from Aristolochia, probably A. esperanzae O. Kuntze, Aristolochiaceae. Many
species of Aristolochia, called “snakeroof ’ are referred as medicinal plants all
around the world. They are used for many medical purposes and suggested as
snake repellents and snake bites remedy. The occurrence of Aristolochia in the
archaeological site suggests presence of forests and palaeoecological conditions
similar to our time.

UNITERMS: Plant fibers - Palaeoethnobotany, archaeobotany - Aristolochia,


Aristolochiaceae - Plant anatomy, wood anatomy, fiber balls, ravel.

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Recebido para publicação em 14 de maio de 2001.


Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 201-211, 2001.

FONTES SOBRE A ORIGEM DA MOEDA:


APRESENTAÇÃO CRÍTICA

Maria Beatriz Borba Florenzano*

FLORENZANO, M.B.B. Fontes sobre a origem da moeda: apresentação crítica. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 201-211, 2001.

RESUMO: Este artigo pretende apresentar de uma maneira crítica a docu­


mentação - arqueológica e literária - hoje disponível com relação às origens da
moeda cunhada e, ao mesmo tempo, apontar os caminhos que permitem um
maior esclarecimento com relação a este tema.

UNITERMOS: Origem da moeda - Invenção da moeda - Numismática grega


- Cunhagem monetária grega.

O tema da criação da moeda no mundo invenção e da difusão deste instrumento de


grego foi sempre objeto privilegiado de estudo troca.
por parte de numismatas, arqueólogos e historia­ Nossa intenção neste artigo é, pois, apresen­
dores. Sujeita a múltiplas interpretações devido à tar de uma maneira crítica a documentação -
falta de uma documentação sistemática, esta arqueológica e literária - hoje disponível com
questão suscita, ainda hoje, inúmeras polêmicas relação aos primordios da moeda e apontar as
entre os estudiosos. direções que podemos olhar para um esclareci­
Do seu aprofundamento, no entanto, mento com relação a este tema.
depende o nosso conhecimento a respeito do Dois momentos diferentes devem ser ressalta­
fenômeno monetário nas sociedades clássicas e a dos nos primordios da cunhagem das moedas: o
nossa compreensão sobre a atuação da moeda e primeiro, aquele em que a moeda foi criada na Ásia
sobre o papel que a ela atribuía o homem antigo. Menor e o segundo, a sua subsequente adoção e
A definição da cronologia inicial da introdução difusão entre as cidades gregas do continente.
da cunhagem monetária, por exemplo, é fator Com relação às fontes escritas, há duas
fundamental para a definição das relações entre a tradições principais que se registram: uma que
criação da moeda e uma conjuntura política, posiciona o surgimento da moeda de ouro e prata
social e econômica precisa. É preciso ter em na Ásia Menor, entre os lídios e outra que atribui
mente que é a partir da compreensão dessa a Fídon, tirano de Argos a cunhagem das
conjuntura que depende a nossa reflexão sobre a primeiras moedas de prata na cidade de Egina
natureza da moeda antiga e sobre as razões da (vide ao final deste capítulo a transcrição dos
documentos traduzidos ao português). Note-se,
que à exceção de Heródoto (século V a.C.), e
também de Xenófanes de Cólofon (século VI
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade a.C.), citado por Póllux (século II d.C.), todas as
de São Paulo. demais fontes são posteriores ao século IV a.C.

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É justamente Heródoto (1,94 - doc.10 punções em formatos geométricos variados:


abaixo) quem registra que forám os lídios os retângulos, triângulos, quadrados. Em uma
primeiros a cunhar moedas de ouro e de prata. perspectiva adotada comumente de que a adoção
Esta tradição ganhou um novo alento entre os da emissão de moedas está diretamente vincula­
especialistas modernos desde que foram encon­ da ao desenvolvimento da atividade comercial,
tradas moedas de feição bastante rudimentar em esta hipótese é corroborada ainda pelo fato de
um depósito do templo de Artemis em Éfeso, que há documentação escrita e arqueológica a
pela equipe de arqueólogos do Museu Britânico respeito da difusão do comércio egineta, corintio
no início do século XX. e ático nos séculos VIII, VII e VI a.C. Da mesma
Também a tradição que registra a introdução forma, o testemunho de Aristóteles a respeito
da moeda por Fídon é muito forte desde a das reformas dos pesos, das medidas e das
Antigüidade e mereceu bastante atenção dos moedas introduzidas por Sólon em 594 a.C. (AP,
estudiosos. Este tirano da cidade de Argos X - doc. 11 abaixo) na cidade de Atenas ficaria
estaria inserido em um contexto mais amplo de confirmado, pois que já nessa época Atenas
reformas e conquistas no Pelopbneso, que produzia moedas de prata.
incluía não apenas a introdução da moeda como Este é o quadro tradicionalmente proposto e
também reformas ponderais e de medidas. que a partir da década de 1950 começou a ser
Inicialmente coloca-se a questão da datação da fortemente questionado à medida em que se
tirania de Fídon. Datas entre çs séculos VIII e aprofundavam os estudos da documentação
VII a.C. foram sugeridas, mas a mais segura é a material: as séries monetárias propriamente
que coloca sua atuação na primeira metade do ditas, as encontradas na Ásia Menor e as séries
século VII a.C., sendo o predecessor imediato eginéticas, atenienses e corintias; os tesouros
das dinastias de tiranos de Corinto e Sicione, que monetários, ou seja os grupos de moedas
ao subirem ao poder entre 660-650 a.C. provo­ diferentes, mas associados entre si em um
caram a queda de Fídon (Will 1955:344 ss. e achado; e os contextos arqueológicos em que
Hammond, Oxf.CD 1992:811). De acordo com a foram achadas moedas e tesouros.
documentação escrita, Fídon teria recolhido os Vejamos, em primeiro lugar, qual é a
espetos de ferro e com eles feito uma dedicação documentação proveniente da Ásia Menor já que
no Heraion de Argos e então teria cunhado as todos os especialistas ainda hoje estão de acordo
moedas de prata. Assim, a tradição registra a de que foi nessa região em que apareceram por
passagem de uma forma de dinheiro, os espetos primeira vez as moedas cunhadas.
de ferro, para a moeda universal, de prata. Com As únicas moedas desse período provenientes
efeito, os arqueólogos encontraram já no século dessa região que possuem um contexto arqueológi­
XIX, em suas escavações do templo de Artemis co definido são aquelas escavadas nos anos 1904-5
em Argos, um maço de espetos de ferro e uma pelo Museu Britânico no templo de Ártemis em
barra também de ferro, ambos dedicados à Éfeso. As escavações foram conduzidas por
divindade. Interpretando o documento arqueoló­ Hogarth e a publicação das moedas ficou a cargo
gico - espetos e moedas mais antigas de Egina - de B.V. Head, grande nome da Numismática grega
à luz da documentação escrita, parecia tudo (Hogarth 1908). É fato conhecido de todos a
muito bem estabelecido desta maneira. Ficava dificuldade que estes primeiros escavadores
fortalecida a hipótese de que as moedas teriam tiveram em seus trabalhos já que a antiga Éfeso
aparecido na Ásia Menor por primeira vez em estava situada em uma região alagadiça e muitas
tomo do século VIII a.C. e que em seguida vezes foi necessário trabalhar com bombas para a
teriam sido adotadas na Grécia continental em retirada da água das trincheiras. Ainda que este seja
primeiro lugar por Egina, seguida de Atenas e um fato que possa depor contra uma boa leitura
Corinto. Fator importante nesta construção da estratigráfica do sítio, as escavações mais recentes
adoção da moeda cunhada é a semelhança física da década de setenta e oitenta das equipes austría­
entre as peças da Ásia Menor e gregas: todas cas vem comprovando muitas das conclusões já
trazem no reverso um quadrado incuso. Com obtidas no início do século XX.
efeito, o reverso dessas moedas não tem carim­ Em uma estrutura denominada Base Central
bado uma imagem, mas sim um ou vários ou Base A que foi identificada como núcleo das

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fundações do templo arcaico de Ártemis, foram colunas para o templo de Ártemis em Éfeso
encontradas, entranhadas na construção, noventa (Heródoto, I, 92).
e três moedas de electrum (liga de ouro e prata), Em um artigo em 1951, Jacobsthal (JHS:
de tipos monetários variados e pesos variados. 86-95) datou o material não monetário da Base
Fato importante é que neste conjunto havia Central do Artemísion ao século VII a.C. em
discos de metal sem qualquer figuração no geral, com exceção de quatro estatuetas femini­
anverso ou no reverso, discos apenas estriados nas minúsculas de electrum que deveriam ser
em uma das faces e com punções na outra e datadas do final do VII e início do VI a.C.,
discos com carimbo de figuras (leão, pata de oferecendo assim a data final de fechamento do
leão, galos, bode, besouro, foca, grifo, veado, depósito. As escavações austríacas revelaram
touro, cabeça masculina) em uma das faces e estatuetas do mesmo tipo em versões maiores e
punções na outra. A impressão causada nos portanto com traços mais visíveis e associadas a
arqueólogos responsáveis pelas escavações e outras estatuetas femininas de marfim do tipo
transmitida por Head é que este conjunto de ‘hawk goddess’. De acordo com as análises
peças refletia as fases da própria invenção da estilísticas comparativas e com outros contextos
moeda: primeiro apenas discos sem nada, depois arqueológicos datados no Mediterrâneo todas
com estrias e finalmente com representações estas estatuetas são nitidamente pós-dedálicas e
figuradas. Parecia também que por serem de portanto não mais antigas do que 600 a.C..
tipos variados, estas moedas teriam sido oferen­ Algumas datas fixas portanto podem ser
das de cidades variadas para o grande centro de assim destacadas. O depósito da base central
culto de Ártemis da Ásia Menor, em Éfeso. (Base A) do Artemísion em Éfeso possui
Entretanto, estudos técnicos identificaram que os material datado de todo o século VII, a sua data
mesmos cunhos foram empregados para a de fechamento deve ser situada ao redor de 600
realização dos punções das diferentes moedas, a.C.; a Base B é, com toda probabilidade, a
mesmo das estriadas (Weidauer 1975). Portanto, fundação da estrutura para a qual Creso contri­
elas foram fabricadas em uma mesma oficina, e buiu nos anos 550 a.C. É portanto correto
concomitantemente ou pelo menos em um afirmar que todas essas moedas encontradas na
espaço de tempo reduzido. Base A e na Base B, reputadas como as primei­
Esse depósito na Base Central do Artemí- ras moedas jamais cunhadas, foram fabricadas
sion, incluía também outros objetos como uma em uma época anterior a 550 a.C. e com muita
grande variedade de jóias, artefatos de âmbar e probabilidade anterior a 600 a.C..
pequeníssimas estatuetas de marfim e de De acordo com Stanley Robinson estas
electrum. Os arqueólogos ingleses encontraram moedas devem remontar no máximo a 630 a.C.
também uma segunda base mais recente do que a se considerarmos pelo menos uma geração para a
Base Central, batizada de Base B. Em um muro sua fabricação (Robinson 1951). Não é mais
entre a Base A e a Base B foi encontrado um possível afirmar hoje, no entanto, que estas
pote de cerâmica bastante simples com mais 17 peças mostram fases diferentes e progressivas da
moedas de electrum dos mesmos modelos invenção das moedas já que, como viemos de
daquelas encontradas na Base A (Holloway dizer, é segura a conclusão de que várias delas
1984:17). De acordo com Head, o contexto foram fabricadas com as mesmas ferramentas
arqueológico permitia datar este pote ao final do (Weidauer 1975). Outros autores tentaram subir
período A. Hoje, do ponto de vista dos estudos mais estas datas partindo de estudos estilísticos
de cerâmica, este mesmo modelo de vasilha é das representações nas próprias moedas. Entre­
encontrado em contextos variados que datam de tanto, estes estudos são inconclusivos pois estas
todo o século VII a.C. As escavações austríacas primeiras moedas parecem ter sido fabricadas
recentes, permitiram uma datação mais precisa sem muita técnica e portanto possuem um estilo
da Base B à época de maior difusão da cerâmica de difícil definição na arte arcaica. Concreta­
protocoríntia e coríntia transicional e recente, mente, as representações gravadas em várias
qual seja 620-580 a.C. (Bammer 1991). A delas podem tanto datar de fins do século VI
tradição escrita registra igualmente que Creso, a.C. quanto da época micênica! (Holloway
rei lídio (c. 560-546 a.C.) teria contribuído com 1984:6) Não é impossível que novas escavações

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sejam realizadas e tragam à luz estas mesmas tocante ao metal empregado é também considera­
moedas em contexto anterior aos anos 630 a.C. da como um grande passo na concepção e no
Entretanto, de acordo com a documentação estabelecimento de uma cunhagem regular,
existente hoje não há qualquer fundamento para controlada pelo Estado. O electrum, era de fato
se afirmar que as moedas tenham sido criadas na um metal de avaliação muito complicada uma vez
Ásia Menor anteriormente a essa data. que era provavelmente uma liga natural de ouro e
A respeito destas emissões deve-se concluir prata e, portanto, a proporção entre um metal e
igualmente, de acordo com as evidências que outro fugia do controle de quem fabricava estas
possuímos, que elas foram emitidas por indiví­ peças. A prata, ao contrário, era encontrada em
duos. Com efeito, várias trazem inscrições estado muito mais puro, o que facilitava tanto ao
nominais, como ‘sou o sema (insígnia) de Fanes’ emissor quanto ao usuário o controle do valor de
ou então o que podemos transcrever como cada peça. Por esses motivos, aceita-se normal­
RKALIL, ou ainda VALVEL. Não possuímos mente a precedência das moedas de electrum da
concretamente nenhuma evidência de que estas Ásia Menor, com relação às mais antigas moedas
fossem peças batidas por algum dos Estados da do continente grego.
Ásia Menor, ainda que esta seja uma hipótese Partindo destes pressupostos, de que modo
possível no tocante às peças que não possuem podemos definir a cronologia e o significado da
inscrição, hipótese que tem atraído os especialis­ adoção das moedas em época arcaica na Grécia?
tas (Kraay 1976:23-25). E possível, por exemplo, Os numismatas tem levado a sério a definição de
que a moeda com a representação de uma foca cronologia por meio da análise específica e
seja de Focéia, cujos tipos posteriores eram de técnica do documento material. Deixando as
fato imagens de focas. fontes escritas de lado - que de resto como se
Com relação à adoção da cunhagem de percebe pelos textos arrolados ao final deste
moedas na Grécia propriamente dita é ‘universal­ capítulo, são contraditórias e posteriores aos
mente’ aceito pelos especialistas - numismatas e acontecimentos e portanto eventualmente
historiadores - que esta tenha ocorrido na interpretativas - as análises de séries monetárias
seqüência da criação das moedas na Ásia Menor e conhecidas e o estudo dos tesouros monetários
que não tenha sido uma adoção imediata mas têm oferecido algumas chaves de interpretação
antes que tenha transcorrido algum tempo entre a bastante interessantes. De modo geral, tem-se
criação da moeda na Ásia Menor e sua adoção na trabalhado do ponto de vista cronológico,
Grécia. Os argumentos que fundamentam essa reconstruindo-se as séries monetárias das
posição são de várias ordens. Inicialmente, primeiras cidades a bater moedas - Egina,
costuma-se levar em conta o fato de Heródoto Atenas e Corinto - , da época mais recente para a
mencionar os lídios como os criadores da moeda. mais antiga; avançando-se no tempo, de trás para
Mas, são consideradas também outras tradições frente, poderíamos dizer. Nesse sentido, os
escritas como o fragmento de Aristóteles que estudos caracteróscopicos têm se revelado de
menciona Hermodice, mulher do rei da Frigia extrema valia, apontando para conclusões
como criadora das moedas (doc. 9 abaixo) e bastante consistentes.1
também a tradição conservada em Póllux que
situa, entre vários lugares, a origem das primeiras
moedas em algum lugar na Ásia Menor (dr>c.5 (1) A caracteroscopia é uma técnica de análise numis-
abaixo). O estudo do material monetário é, nesse mática inicialmente sistematizada por J.B.Colbert de
Beaulieu em Traité de Numismatique Celtique, vol 1,
contexto, também de fundamental importância.
M éthodologie,1972. Implica um estudo aprofundado das
De fato, quando se observa detalhadamente as imagens monetárias no maior número possível de
moedas mais antigas de Egina, Corinto ou Atenas exemplares de sorte a permitir a identificação dos cunhos
é visível a semelhança com as moedas da Ásia (os carimbos) que gravaram as imagens em cada moeda.
Menor no tocante ao reverso incuso, mas também A identificação dos cunhos permite estabelecer uma
associação entre os diferentes reversos e anversos ligando
é sensível o aperfeiçoamento técnico ocorrido umas séries a outras Os estudos caracteroscópicos
nesse mesmo tipo de reverso: a regularidade dos permitem estabelecer com bastante segurança a seqüên­
punções, o emprego de um único punção para cia relativa das várias séries monetárias, o volume de
cada tipo e assim por diante. A mudança no cada emissão e, em última análise, o ritmo de cunhagem

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Por outro lado, os estudos da composiçã» tirano da cidade, or uparam Zancle do outro lado
dos tesouros de moedas arcaicas também têm do estreito entre a Itália e a Sicília, mas então,
revelado associações entre moedas que permitem traíram Anaxilas, fazendo uma aliança com
o traçado de uma certa contemporaneidade entre Hipócrates tirano de Gela, e assenhoraram-se
várias emissões. As evidências apresentadas por sozinhos de Zancle. Em 488 a.C. foram expulsos
alguns destes tesouros foram bastante valoriza­ por Anaxilas. Nos anos que controlaram Zancle,
das tendo em vista a presença de moedas para as os sâmios bateram moedas com tipos caracterís­
quais possuímos datação mais segura. Há, com ticos de sua terra natal. Estas séries são, portan­
efeito, algumas datas muito precisas e definitivas to, datadas de 493 a 488 a.C. (Kraay 1976:213).
para a Numismática grega do período arcaico. A Essas datas servem para a definição de
primeira refere-se a dois depósitos votivos cronologias para vários tesouros monetários de
encontrados selados nas fundações da Apadana época arcaica. É natural concluir-se que moedas
de Dario I em Persépolis. Uma inscrição encon­ sistematicamente encontradas associadas com
trada no mesmo contexto registra a realização essas peças datadas devem ter uma data de
dos depósitos entre 517-514 a.C. Entre outros fabricação e/ou circulação próxima destas.
objetos, algumas moedas fazem parte desse Tomando cada uma das três cidades que
depósito: uma peça de Abdera, cidade fundada inicialmente emitiram moedas na Grécia,
em 544 a.C. (a moeda é, portanto, posterior); vejamos como a documentação pode ser articula­
moedas emitidas por Creso (como já dissemos da para se criar um quadro referencial mais
devem ser datadas de 560 a 546 a.C.) e também amplo a respeito da adoção da cunhagem.
uma moeda de Egina que os estudos caracteros-
cópicos situam não entre as primeiríssimas
moedas de Egina, mas entre aquelas que fazem Atenas
parte das primeiras séries mais volumosas (série
‘iia’; cf. Holloway 1971). Os estudos de associações de cunhos
A segunda data também muito precisa é a realizados nas emissões mais antigas de Atenas
data da destruição de Síbaris, colônia grega do permitiram estabelecer, com clareza, toda a
sul da Itália, por sua rival política Crotona, em seqüência das primeiras moedas, as Wappen-
510 a.C.(Heródoto, V, 44). Ainda que colônias münzen (moedas heráldicas) e a passagem desta
de Síbaris que provavelmente receberam os categoria de moeda para aquela das moedas que
refugiados depois da derrota, tenham emitido se tomariam típicas de Atenas com a representa­
moedas em nome dos exilados, é bastante seguro ção da deusa Atena e de sua coruja, as assim
datar as emissões da cidade propriamente dita ao chamadas ‘corujas’. Sobre as Wappenmünzen é
período anterior à sua destruição em 510 a.C.. preciso inicialmente chamar a atenção para o
Finalmente a terceira data considerada fato que estudos físicos da prata empregada em
segura refere-se à data das emissões monetárias sua fabricação, atestaram que o metal não é
dos sâmios que se refugiaram em Régio, na proveniente das minas do Láurion na Ática como
Sicília, depois da revolta jônica contra os persas é o caso da prata empregada para a fabricação
(494 a.C.). Estes sâmios, instados por Anaxilas, das ‘corujas’. Outro fato de interesse é que estas
moedas não possuem qualquer identificação que
permita atribuí-las a Atenas. Por terem tipos tão
variados poderiam inclusive pertencer a vários
de moedas de oficinas específicas. Trata-se de uma
centros emissores diferentes. O fato de terem
m etodologia capital para o conhecimento das moedas da
Antigüidade, uma vez que contorna a dificuldade sido encontradas, mormente, na Ática é que leva
imposta pela possível refundição de peças. Nesse sentido os especialistas a vê-las como produtos de
associa-se com proveito aos estudos de numismática Atenas. Mas, resta a dúvida: quais foram as
experimental, que concluem que um cunho de anverso (o autoridades emissoras? O Estado ou as diferen­
cunho fixo, na bigorna) fabricado de acordo com a
tes famílias aristocráticas como o nome Wappen­
tecnologia antiga, pode bater até 10 000 exemplares e o
cunho de reverso (o cunho móvel que recebe o golpe do
münzen parece implicar e como quer a interpre­
martelo) pode emitir até 16 000 exemplares. Cf também tação tradicional? Uma das Wappenmünzen,
Kraay 1976: 18-19. situada pelo estudo caracteroscópico no final da

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linha das associações de cunho, é justamente a esse contexto. Quem, afinal introduziu a cunha­
moeda que traz uma cabeça de Atena de um dos gem em Atenas? Pisístrato foi o primeiro a bater
lados e a coruja do outro. Esta moeda seria, as Wappenmünzen no meio do século? Foram os
portanto, a última das Wappenmünzen , começan­ aristocratas antes da tomada do poder por
do-se em seguida a emissão das ‘corujas’. Estas Pisístrato que emitiram estas moedas e em
primeiras ‘corujas’ são tecnicamente relacionada seguida Pisístrato implantou a cunhagem de
às Wappenmünzen, através do modelo de disco ‘corujas’? Foi Hípias que adotou a emissão de
monetário empregado e do modelo do quadrado ‘corujas’ mais para o final do século? Ou terá
incuso do reverso. Com a ajuda dos tesouros sido Clístenes, que em 508/7 iniciou a emissão
monetários, e a constatação do volume das de ‘corujas’ como medida complementar de suas
emissões tem-se tentado datar todas essas séries, reformas democráticas? Finalmente, a moeda é
relacionando-se ao que conhecemos a respeito da produto da tirania ou da democracia?
história de Atenas no século VI a.C. O primeiro A última proposição a esse respeito é feita
fato a ser fixado é que o primeiro grupo de por R. Ross Holloway que retoma algumas
‘corujas’, é datado por suas associações em conclusões anteriores de Seltman e Kraay. Para
tesouros, do último quartel do século VI a.C. Com este autor (1999), a adoção de moedas em
efeito, vários são os tesouros que permitem esta Atenas foi promovida por uma aristocracia rural
datação; o principal, no entanto, é o tesouro de da Ática que escolheu, de acordo com cada
Asyut cujo enterramento é datado de 480-475 a.C. família o emblema a aparecer em suas moedas
e que continha 162 ‘corujas’ de Atenas dos tipos (Wappenmünzen). A falta de um poder centrali­
subseqüentes às Wappenmünzen. Este tesouro zado mais forte favoreceu este tipo de comporta­
está composto predominantemente por moedas mento. A evidência nova apresentada por
gregas (867 moedas de prata) datáveis da segunda Holloway é o achado de um cunho de bronze
metade do século VI a.C. Se então pudermos provavelmente de Wappenmünzen, em um
situar aproximadamente o início da emissão de depósito votivo datado dos séculos VII e VI a.C.,
‘corujas’ em tomo de 530-525 a.C. as Wappen­ no Sounion, localidade da Ática. Para o autor, o
münzen devem distribuir-se pelas décadas fato de esta ferramenta própria da fabricação de
anteriores possivelmente até 560-550 a.C. moedas ter sido dedicada em uma área rural é
Mas, a datação por meio dos tesouros não é um forte indicativo de que a fabricação de
exata e permite uma certa flexibilidade, fazendo Wappenmünzen dava-se no campo e não em
com que os estudiosos deslizem ligeiramente Atenas (Holloway 1999:12).Ainda de acordo
suas datas entre os anos 570/60 a.C. e as guerras com Holloway, quando Pisístrato retomou de
médicas em 480 a.C. Alguns cuidados, entretan­ seus dois exílios e estabeleceu um govemo mais
to, têm sido tomados: não é aceitável, por duradouro nos anos 540 a.C., introduziu uma
exemplo, comprimir muitas emissões em poucos cunhagem centralizada representada pelas
anos nem deixar enormes vazios sem emissões. primeiras emissões de ‘corujas’ que são emis­
Assim, se de um modo geral as primeiras sões pouco volumosas (três séries), mas que
‘corujas’ podem ser datadas do último quartel do teriam durado durante todo o período da tirania e
século VI a.C., não é aceitável propor uma data início da democracia de Clístenes. O início do
para as Wappenmünzen logo no início do século século V teria presenciado um aumento conside­
VI, ou no século VII a.C., pois isto implú aria rável de emissões, aproveitando o crescimento
em longos espaços de tempo sem qualquer da produção de prata nas minas do Láurion e em
moeda e também dissolveria o relacionamento vista de preparativos para o enfrentamento dos
que existe do ponto de vista técnico entre as persas (Holloway 1999:13). Esta interpretação
últimas Wappenmünzen e as primeiras ‘corujas’. do Prof. Holloway é um exemplo de como a
No nosso entender a implicação mais exigüidade das fontes obriga o arqueólogo/
importante da cronologia da adoção da cunha­ numismata a trabalhar. É sem dúvida uma
gem por Atenas é o estabelecimento de um interpretação engenhosa, mas, no nosso enten­
contexto histórico que explique esta adoção. der, necessita de mais evidências confirmatorias.
Infelizmente, com os dados que possuímos é Com relação a Atenas é indispensável ainda
ainda impraticável dizer com exatidão qual foi uma avaliação a respeito dos testemunhos de

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Aristóteles (AP, X) e de Andrócion (Plutarco, Jones 1993:27, n.39). Nesse contexto, como
Sólon, 15- doc. 12 abaixo). De acordo com estas entender que estes autores estejam referindo-se a
fontes, Sólon teria promovido várias mudanças uma mudança exclusiva no peso das moedas?
nas medidas de capacidade de peso e nas moedas Nómisma, com efeito, significa também, aquilo
como parte das reformas efetuadas para contor­ que é corrente, convencionalmente aceito. E
nar as crises sociais do início do século VI a.C.. certo que antes da introdução da moeda existia
Argumenta-se que se Sólon pode realizar um sistema de pesos metálicos convencional­
mudanças na cunhagem de Atenas, é porque esta mente aceitos, segundo os quais se calculavam
já existia há algum tempo, talvez até no século muitos dos valores e é deste sistema que decorre
VII a.C. As mudanças, de acordo com as duas a palavra nómisma empregada pelos autores do
passagens, se referiam à alteração de peso da século IV a.C.. Assim, Sólon, muito provavel­
moeda, sem uma correspondente alteração do mente, procedeu a uma reforma dos pesos
valor facial. Entretanto, é fato, que a análise convencionalmente aceitos como medidas de
ponderal das séries iniciais de moedas atenienses valoração de bens e não necessariamente a uma
não apresenta qualquer mudança de peso. Ao reforma monetária.
contrário, o peso é constante demonstrando
bastante controle técnico (Kroll e Waggoner
1984:327). Assim, alguns autores pensam que Egina
Atenas utilizava as moedas eginéticas, mais
pesadas, e que por obra de Sólon foi introduzida O caso da cunhagem das moedas eginéticas
a nova cunhagem de moedas propriamente é muito semelhante ao das moedas de Atenas. As
ateniense. Entretanto, como vimos, a reconsti­ evidências dos tesouros monetários e dos
tuição das séries monetárias e o estudo dos estudos caracteroscópicos apontam para uma
tesouros não nos autoriza a subir tanto assim a cronologia do início dessas emissões no segundo
data da adoção de moedas em Atenas. quartel do século VI a.C. Em um dos depósitos
Temos, portanto, um problema de concor­ votivos da Apadana de Persépolis (517-514
dância entre fontes escritas e materiais que a.C.), foi encontrada uma moeda de Egina do
merece ser tratado. Não se pode simplesmente tipo ‘iia \ que de acordo com as associações de
descartar o testemunho de Aristóteles e de cunho representa as primeiras emissões mais
Andrócion como mera invenção, pois, são volumosas da cidade. O tipo ‘i’ é pouco denso já
considerados testemunhos sérios e, além disso, que para a sua cunhagem foram utilizados menos
com toda probabilidade, as leis de Sólon cunhos. O posicionamento relativo dessas
estavam acessíveis aos autores que escreveram emissões e a data oferecida pelo depósito em
no século IV a.C. (Kroll e Waggoner 1984:332). Persépolis autorizam uma data em tomo de 560
No meu entender, a dúvida é resolvida através da para a emissão das primeiras moedas eginéticas.
compreensão dos termos empregados por estes Esta data é corroborada pela composição de
textos. Ora, tanto um quanto outro menciona outros tesouros monetários como os de Mit
reformas no nómisma. Ora, vimos já anterior­ Rahineh e Demanhur, achados no Egito. Nestes,
mente como este termo custou a ser empregado moedas eginéticas da categoria 4iia’ estão
para denominar explicitamente a moeda cunha­ associadas às moedas da ocupação sâmia de
da. Com efeito, este é um termo que apenas a Zancle, datadas de 493-488 a.C.. Evidentemente,
partir de meados do século V a.C. é entendido se for considerado que os tesouros podem ter sido
como moeda cunhada. Mencionamos também formados ao longo de anos, e estarem compostos
como as moedas adotaram em sua origem os por partes mais antigas, e outras mais recentes,
nomes de pesos como estater, dracma, óbolo. essas moedas de Egina poderiam ter sido deposi­
Também as contas e os inventários dos bens dos tadas antes de outras consideradas mais recentes.
templos e dos santuários, registram dracmas e Mas, como existe uma recorrência de associações
estateres mencionados indiferentemente ao lado em vários tesouros (ver o quadro de tesouros mais
de objetos, artefatos, de ouro e prata fazendo abaixo) é possível - como no caso das moedas de
com que nós não tenhamos uma noção clara se Atenas - chegar a datas aproximativas para o
são de fato moedas ou pesos metálicos (Melville início da cunhagem em Egina.

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Se a documentação monetária autoriza uma dos, hoje conservado no Cabinet de Médailles da


cronologia para o início da cunhagem em Egina Biblioteca Nacional em Paris, constatou-se a
em tomo de 560 a.C., a fonte escrita supõe uma recunhagem2 de um tipo pertencente à segunda
data que pode ser levada até o século VIII a.C.. emissão de moedas corintias sobre uma das
A tradição derivada de Éforo coloca Egina como últimas Wappenmünzen de Atenas (Kraay
a primeira cidade a bater moeda e associa este 1976:81). Moedas deste mesmo tipo corintio
fato à tirania de Fídon. É necessário lembrar aqui foram usadas como disco monetário para
que as atribuições feitas por Éforo de invenções recunhagens de moedas de Metaponto no sul da
a personagens históricos eram consideradas Itália, datadas do período pós-destruição de
anacrônicas já na Antigüidade (Brown, NC Síbaris em 510 a.C. Assim, ficam associadas
1950, apud Kroll e Waggoner 1984:335). moedas corintias com as séries de Wappen­
Inicialmente é relevante o fato de que a cronolo­ münzen e com moedas com datas relativamente
gia para a ação de Fídon como tirano de Argos é seguras como as de Metaponto. Pode-se,
bastante controversa: varia entre a segunda portanto, pensar em uma data em tomo de
metade do século VIII e a primeira do VII a.C. meados do século VI para o início da cunhagem
(Hammond, OxfCd, 811). Em seguida, como de moedas de Corinto, já que a sua segunda
explicar que Fídon, sendo tirano de Argos, bateu série, em 510/500 a.C., já estava fora de uso a
moedas em Egina? Sem dúvida, como no caso de ponto de ser recunhada em Metaponto.
Sólon, Fídon foi também um legislador que Individualmente, cada um dos dados que
promoveu reformas sociais na época de forma­ acabamos de arrolar com relação à origem da
ção e definição do Estado na Grécia, reformas moeda, não estabelece nenhuma cronologia
que incluíram mudanças nas medidas (Heródoto, absoluta segura. Todos juntos, porém, montam
VI, 127). O fato de as moedas eginéticas um quadro referencial em que concretamente
manterem seu aspecto antiquado mesmo nas dois marcos podem ser estabelecidos. Io.) As
emissões do século V, a popularidade que tinham primeiras moedas foram criadas por cidades
essas moedas em época clássica chegando a gregas da Ásia Menor em tomo de 630-625 a.C.;
circular tanto por todo o Peloponeso que foram 2o.) Estas primeiras moedas foram provavelmen­
chamadas por Póllux (9.74) de ‘nómisma te emitidas por iniciativa de particulares; 3o.) À
peloponésio’, o fato de Fídon ter dedicado os época do reino de Creso na metade do século VI
espetos no santuário de Hera em Argos e de estes a.C. a moeda na Ásia Menor já era monopólio do
estarem à mostra ou pelo menos registrados Estado; 4o.) A cunhagem de moedas foi adotada
como bens do santuário, sem dúvida contribuí­ na Grécia continental durante a primeira metade
ram para a construção de uma versão, já na do século VI a.C.. Egina provavelmente foi a
Antigüidade, a respeito da primazia das moedas primeira cidade a fazê-lo de acordo com uma
eginéticas e da função de Fídon na sua criação.
De acordo com a documentação material, as
moedas eginéticas podem de fato ter sido as (2) A recunhagem é uma técnica bastante comum na
primeiras as serem cunhadas na Grécia, mas não Antigüidade, por meio da qual se aproveitava uma
moeda de outra localidade (ou da mesma localidade, mas
no século VII, muito, menos no VIII a.C..
fora de uso) como disco monetário. A falta de metal
precioso era, sem dúvida, uma das razões que levaram os
Estados antigos a aproveitar numerário de outras cidades
Corinto para fabricar suas próprias moedas. A necessidade de
transformar numerário estrangeiro em m eio circulante
legal pode ter sido outra razão. O fato é que muitas
As emissões de Corinto são, entre as emis­ dessas recunhagens foram mal feitas: o disco provavel­
sões das três cidades que iniciaram a cunhagem mente não foi devidamente aquecido ou o golpe no
na Grécia a de compreensão menos complicada, cunho não foi suficientemente forte deixando, então, o
pelo menos do ponto de vista cronológico. Também tipo subjacente visível, permitindo, hoje, o estabeleci­
mento de cronologias relativas muito seguras. Cf. Le
no caso dessa cunhagem, foram realizados
Rider, G. ‘Contremarques et surfrappes dans 1’Antiquité
estudos caracteroscópicos que permitiram o grecque’ em Dentzer, J.M. et alii, La Numismatique
estabelecimento de uma seqüência relativa das Antique.Problèm es et Méthodes. Nancy-Louvain
séries iniciais. Em um dos exemplares analisa­ 1975:27-46.

208
FLORENZANO, M.B.B. Fontes sobre a origem da moeda: apresentação crítica. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 201-211, 2001.

interpretação possível das fontes textuais seguida da Frigia., ou Erictônio e Lico pelos Atenienses,
por Atenas e por Corinto, que inauguraram suas ou os Lídios como diz Xenofonte ou os naxianos
emissões em tomo de 560-550 a.C. segundo a opinião de Aglostenes.” Póllux, IX,
Podemos também afirmar com certeza que a 83; século II d.C.
introdução da moeda nas cidades-estado gregas 6. “...os eginetas foram os primeiros a cunhar
está relacionada à constituição de um Estado moeda, conhecida como eginética depois deles.”
característico, à definição dos contornos da Eliano, Varia Historia, XII, 10; século II-III d.C.
pólis, e ao poder exercido neste contexto. É 7. “...pois que Fídon, rei de Argos, foi o
sintomático, que seja o século VI - século das primeiro a cunhar moedas de ouro, em um lugar
tiranias - a época da introdução da cunhagem. É da Argólida chamado Eubéia” (Etymologicum
importante notar como, também na Sicília, o Magnum, s.v. Euboikon nomisma; século X-IX
período de introdução e de maior volume da d.C.)
cunhagem e de maior cuidado artístico com a 8. “íon, que governava a terra da Tessália,
gravação dos cunhos monetários é o período de foi o primeiro...a fazer do ouro moeda.” Lucano,
florescimento das tiranias (entre o último quartel VI, 401-405. Século I a.C.
do século VI e a primeira metade do século V 9. “...e dizem que Hermodice, mulher de
a.C.). Como bem assinala Holloway (2000, Midas, rei da Frigia, foi de rara beleza, mas
inédito) a emissão de moedas tem a ver com o também sábia e hábil e que foi a primeira a
controle, com o poder instituído muito mais do cunhar moeda em Cyme.” Aristóteles, fr. 611, 37
que com qualquer aspecto econômico, de Rose; século IV a.C.
crescimento comercial ou de aprofundamento de 10. “Os lídios foram os primeiros entre os
relações de mercado. A moeda é fruto da pólis homens, até onde vai o nosso conhecimento, a
grega, é resultado de transformações profundas cunhar e a usar moedas de ouro e prata, e também
no pensamento grego e na maneira de se medir e foram os primeiros a vender mercadorias a varejo.”
de se avaliar coisas e serviços. A moeda é um Heródoto, I, 94, 1; meados do século V a.C.
instrumento de poder e de manipulação do 11. “Ao que tudo indica, tais foram, então, as
poder; como elemento constitutivo da pólis disposições populares de sua legislação. Efetuou o
grega servia à tirania e ao poder democrático. cancelamento das dívidas anteriormente à legisla­
ção, mas o aumento dos pesos e medidas e das
moedas foi depois. 2. Na sua época, com efeito, as
Documentos escritos medidas tomaram-se maiores do que as fidonianas,
sobre a origem da moeda na Grécia como também a mina, pesando anteriormente
setenta dracmas, foi completada em cem. A
1. “...e ele inventou as medidas que são primitiva unidade monetária era a didracma. Fixou
conhecidas como de Fídon e também os pesos e também pesos relacionados às moedas, de modo
a moeda, esta última de prata e em alguns outros que sessenta e três minas, tinham o peso do talento,
metais.” Éforo, frag. 115; século IV a.C. com as três minas distribuídas pelo estáter e pelos
2. “...e Éforo diz que a moeda de prata foi demais pesos.” Aristóteles, Constituição de Atenas,
cunhada pela primeira vez em Egina, por Fídon.” capítulo X; século IV a.C.; referindo-se às reformas
Éforo, frag. 176; século IV a.C. de Sólon em 594 a.C.
3. “... e Fídon de Argos fixou as medidas 12. “...o aumento das medidas e do poder de
oficiais, idealizou os pesos e cunhou moeda de compra do nómisma. Porque ele fez com que a
prata em Egina.” Marmor Parium, 30, derivado mina correspondesse a cem dracmas, e antes
de Éforo; datas de 1580 a 260 a.C. eram apenas setenta dracmas; assim, pagando-se
4. “...e Fídon de Argos foi o primeiro a a mesma quantidade mas de um valor inferior,
cunhar moeda em Egina; depois de ter emitido aqueles que tinham dívidas saíram-se amplamen­
moeda, ele recolheu os espetos e os dedicou a te beneficiados e os que aceitaram esses paga­
Hera de Argos.” Orion, Etymologicum, s.v. mentos também não perderam.” Plutarco, Vida
obelós; século V d.C. de Sólon, 15; citando o testemunho de Andró-
5. “...se Fídon de Argos foi o primeiro a cion, (político ateniense, 410-340 a.C.) referin-
cunhar moeda, ou Demodice, consorte de Midas do-se às reformas de Sólon em 594 a.C.

209
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Tesouros IGCH Data Wappm. VI vn iia iib iic

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Sakha (Egito) 1639 c.500-490 2+

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Tarento (Itália) 1874 c.500-490

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Benha (Egito) 1640 c.490-485

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Asyut (Egito) 1644 C.475 155 63 53

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São Paulo, 11: 201-211, 2001.

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Gela (Sicilia) 2066 2+

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Anatolia - Sul 1177 c.480-475

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Acróp. - Atenas 480 30

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Zagazig (Egito) 1645 dep.470 3+ 4+

-
Apadana 1 /8 9 517-514
en

Sambiasi (It.) 1872 C.520

SO
Ciclades c. final s.VI

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Rahineh (Egito) 1636 c.500

SO
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Demanhur (Egito) 1637 c.500-490


Matala (Creta) c.500-490 68
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Istmia c.475
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Mt.Bubonia (Sic.) 2071 c.475-470

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Líbano Holl, 1999 C.480

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Decadracma Holl, 1999 C.460+C4

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Ásia Menor 1165

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Eubéia 530-10

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Eleusis 520-500

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Selinunte C.490 23
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FLORENZANO, M.B.B. Fontes sobre a origem da moeda: apresentação crítica. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia,

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FLORENZANO, M.B.B. Fontes sobre a origem da moeda: apresentação crítica. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia,
São Paulo, 77 : 201-211, 2001.

FLORENZANO, M.B.B. The origins of coinage: archaeological and literary sources. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77: 201-211, 2001.

ABSTRACT: The goal of this article is to present all the sources - material
and literary - concerning the invention of coinage by the ancient Greeks. The
documents are presented systematically with the intention of pointing out all
possible interpretations.

UNITERMS: Invention of coinage - Ancient Greek coinage - Greek Numis­


matics.

Referências bibliográficas

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RBN, CXLV: 5-15. Fribourg, Office du Livre.
2000 Remarks on the Taranto Hoard o f 1911.
‘M anuscrito’.

Recebido p ara pu blicação em 18 de dezem bro de 2001.

211
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 213-225, 2001.

QUEM ERAM OS GREGOS*

Jonathan M ark Hall**

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São


Paulo, 11: 213-225, 2001.

RESUMO: Partindo do princípio de que o conceito de etnicidade envolve a


percepção interna que cada membro de um grupo tem de si e do grupo ao qual
pertence e não necessariamente o que os outros pensam do grupo; e que um
grupo étnico define-se não pela soma de diferenças objetivamente obser­
váveis mas por apenas aquelas diferenças que os membros do grupo, eles
próprios, percebem como diferenças significantes, Jonathan Hall, neste artigo,
pretende mostrar por quais caminhos os gregos antigos construíram a sua
própria identidade. O papel desempenhado por Heródoto nesta construção é
destacado pelo Autor.

UNITERMOS: Etnicidade grega - Identidade cultural - Heródoto -


Jônios - Dórios.

Estamos tão acostumados hoje em dia a - historiador da Antigüidade na Universidade


enxergar a Grécia antiga como o berço da de Cambridge - nota: “Não provoca surpresa o
civilização Ocidental que, freqüentemente, fato de que durante o século XIX e a primeira
esquecemos como essa apropriação de um parte do XX, europeus e americanos educados
ancestral cultural - por vezes relutante - é em uma tradição clássica achavam absoluta­
recente. Aprendemos que os gregos criaram as mente natural cantar ‘A glória que foi a
bases políticas, artísticas, culturais, educacio­ Grécia’, como o fez Edgar Alian Poe em sua
nais filosóficas e científicas em que se funda­ Ode a Helena”. Em sua visita atribulada a
menta a cultura ocidental. Como Paul Cartledge Atenas em novembro de 1999, o ex-presidente
Clinton modificou o famoso aforismo de Percy
Shelley ao proclamar : “Somos todos gregos
não por causa dos monumentos e das memóri­
(*) Palestra proferida no Departamento de História
da FFLCH/USP, no dia 19 de junho de 2001. Tradu­ as, mas porque o que começou aqui há dois mil
ção de Maria Beatriz Borba Florenzano. e quinhentos anos acabou por abraçar, depois
(* * ) P rofessor de História Antiga do Departamento de todas as lutas sangrentas do século XX, o
de História da Universidade de Chicago - EUA. mundo todo.” Mas, afinal, quem foram os
Professor visitante do Programa de Pós-graduação
gregos?
em Arqueologia do M AE/USP durante o mês de junho
de 2001. Agradecem os à FAPESP a oportunidade da Esta questão foi colocada há quase
estada deste professor entre nós e o incentivo para a setenta e cinco anos por Sir John Linton
publicação desta palestra. Myres em uma conferência sua da tão presti-

213
HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

giosa série Sather Lectures da Universidade de descendência, linguagem, religião e costu­


da Califórnia em Berkeley, na primavera de mes. Os classicistas, ele argumentava, aceita­
1927. Designado o primeiro Wykeham profes­ ram rapidamente a definição, porque “os testes
sor de História Grega da Universidade de propostos por Heródoto são aqueles aceitos
Oxford em 1910, Myres não era um historiador pela moderna antropologia”, mas, de fato, para
de gabinete. Com efeito, por sugestão de Sir Myres, toda a documentação disponível
Arthur Evans, filiou-se em 1893 à British sugeria que os gregos não eram uma popula­
School o f Archaeology em Atenas e no ano ção única, homogênea, mas sim um povo todo
seguinte iniciou uma escavação em Chipre. misturado de origens muito disparatadas.
Durante a primeira guerra mundial, foi despa­ De uma perspectiva moderna, um dos
chado pela British Admiralty à Dodecanese aspectos mais surpreendentes da tese de
onde suas incursões militares na costa da Myres é a sua fundamentação nos princípios
Anatólia valeram-lhe o apelido de ‘O Barba- da pseudo-ciência hoje completamente
negra do Egeu’ e, eventualmente, o comando desacreditada, a crâniometria. Partindo da
em chefe da Inteligência Britânica em Atenas. caracterização da paisagem grega, com suas
Afora os seus interesses arqueológicos pequenas e fragmentadas planícies costeiras e
(Myres publicara a coleção de antigüidades do com sua dependência na comunicação maríti­
Museu Cipriota e a coleção Cesnola do ma (o que implica em uma necessidade e
Metropolitan Museum o f Art) Myres era também em uma facilidade para o movimento
igualmente fascinado por Geografia Histórica e populacional), Myres argumentava que a
por Antropologia, campos em que, com Grécia tinha sido habitada, desde a Idade do
freqüência, reconhecia sua dívida intelectual Bronze, por uma população mista. Esta teria
ao classicista e antropólogo de Cambridge, Sir tido como origem os tipos mediterrânicos de
James Frazer. cabeça alongada associados às costas meridi­
No início de suas conferências, que foram onais do Mediterrâneo do Marrocos à Pérsia e
publicadas em 1930, Myres - como muitos os tipos alpinos-armenóides de cabeça larga,
estudiosos da História grega antes e depois principalmente distribuídos por todo o cintu­
dele - debruçou-se sobre uma das poucas rão montanhoso que vai dos Alpes ao Hindu-
definições de helenidade que os gregos nos Kush. Com o passar do tempo, o elemento
deixaram. O historiador Heródoto relata que na alpino-armenóide teria aumentado nesta
primavera de 479 a.C. - depois de que os mistura, mas não antes de ter ocorrido uma
gregos puseram em fuga a marinha persa em infiltração dos tipos de cabeças alongadas
Salamina mas antes de sua vitória final em provenientes do norte, de além do cinturão
Platéia - circularam rumores que os atenienses das montanhas centrais da Europa, os quais
estavam considerando a possibilidade de teriam se misturado aos tipos alpinos-arme­
abandonar a aliança grega e de passar para o nóides. Esta diversidade física poderia ser
lado dos persas. Heródoto conta que em uma identificada em outros tipos de evidências
tentativa de acalmar o ruído, os atenienses como a mistura de elementos indo-europeus e
negaram que tivessem qualquer intenção de não indo-europeus no idioma grego, a fusão
concluir um trato com o inimigo e ofereceram entre as divindades olímpicas ‘loiras’ com as
duas razões para isso. Em primeiro lugar, divindades da natureza mais morenas, freqüen­
tinham sido forçados a procurar a vingança temente femininas. E, ainda, na interpenetração
contra aqueles que haviam destruído suas de diferentes tipos de cultura material tal como
estátuas e seus templos. Em segundo lugar, a que Myres chamava de cultura cretense
tratava-se de uma questão de helenidade - neolítica da cestaria a qual ele, em última
‘isto é, nosso sangue comum, nossa língua análise, fazia derivar da África do Norte ou
comum, nossos lugares comuns de culto e de como a cultura de vasilhame vermelho (red
sacrifícios e outros costumes similares’. ware) da antiga Idade do Bronze das Cíclades
Diferentemente de outros historiadores, Myres e da Ásia Menor ou ainda como a cultura do
questionava a veracidade histórica desta vasilhame pintado (painted-ware culture)
definição tão direta de helenidade em termos própria da Tessália, representada principal­

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HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

mente pelos jarros globulares encontrados no sicismo no século V a.C.: ‘de uma ances-
sítio de Dímini. tralidade híbrida, o povo grego de época
Que a Grécia tivesse recebido uma série de clássica chegou a estar constituído de tipos
ondas de migrantes não era àquela época muito próximos, quase de puro sangue’.
nenhuma novidade. Palavras e elementos não Myres estava interessado apenas em
indo-europeus no idioma grego eram tipicamen­ fatores supostamente objetivos que podiam
te explicados como sobreviventes de um ser observados externamente. Com efeito,
substrato lingüístico sobre o qual os invasores debruçou-se sobre a evidência do que ele
indo-europeus impuseram sua própria lingua­ chamou de ‘memória folclórica’, considerando
gem. Apenas um ano depois das Sather tais tradições como genuínas reminiscências
Lectures de Myres, o arqueólogo norte- históricas. Se o mito narrava estórias a respei­
americano Cari Blegen e o filólogo J.B. Haley to de heróis com nomes aparentemente não
publicaram um artigo no American Journal o f gregos como Pélops ou Arquésio que supos­
Archaeology no qual argumentavam que os tamente haviam chegado à Grécia três gera­
recém chegados indo-europeus haviam trazido ções antes da Guerra de Tróia, então, isto
com eles novos itens culturais tais como casas devia indicar uma época de imigração vinda do
em forma absidal, enterramentos em cista leste nos anos ao redor de 1260 a.C. E as
realizados em túmulos individuais e uma lendas a respeito de Cadmo que chegara em
cerâmica diferente, cinza encerada ‘miniana’. uma data anterior ainda, vindo da Fenicia a fim
Ainda que demorasse uma outra década até que de fundar a cidade de Tebas e aquelas a
Georges Dumézil elaborasse a sua teoria sobre a respeito de Dânao chegando do Egito para
estrutura tripartite dos mitos e da religião indo- assumir o reino em Argos, deveriam, similar­
européia, acreditava-se comumente, àquela mente, ser entendidas como referências a um
época, que as divindades olímpicas representa­ período ainda mais antigo de imigração ao
vam um estrato mais recente na história religio­ redor de 1400 a.C. Myres engenhosamente -
sa dos gregos, que haviam sido sobrepostas a ainda que equivocadamente - havia classifica­
uma base rígida de espíritos e de deusas-mãe. do os heróis do mito de acordo com gerações
Mas, Myres pensava de forma diferente de seus de trinta anos e até mesmo utilizou este
contemporâneos a respeito de um item bastante sistema para criar datas na cronologia ainda
importante. Para estes últimos, os gregos eram mal compreendida da cultura material da Idade
aqueles novos invasores que vinham de fora e do Bronze. Hoje, nossa tendência é ver os
que haviam trazido o discurso e as crenças mitos como tentativas das populações de
indo-européias e novos artefatos e formas tempos históricos de legitimação e de explica­
culturais à Península grega. Para Myres, por ção das circunstâncias do presente por meio
outro lado, os gregos tinham surgido no solo de uma referência ao passado; passado que
grego e isto era o resultado de seleção natural. poderia ou não ser fictício. E, como o que tem
Os gregos, diz ele, “conseguiram a unidade que de ser explicado ou legitimado no presente é
usufruíram em sua grande época, graças a sempre uma realidade em mutação, tradições
controles regionais bastante austeros que diferentes e novas acabam entrando no
eliminavam, selecionavam, favoreciam qualida­ vocabulário mítico, co-existindo - por vezes
des, faculdades e aspirações em uma população até em contradição com - as variantes anterio­
diversificada e heterogênea....na última crise, foi res. De fato, não há razão para supor que a
esta mesma diversidade e mistura caótica que figura de Pélops tenha se desenvolvido em
se tomou o mais potente estímulo na luta para qualquer outro lugar da Grécia a não ser no
‘bem viver’”. Assim, enquanto os outros próprio Peloponeso, que toma o seu nome.
historiadores falavam na ‘chegada’ dos gregos, Aliás, suspeita-se, ainda hoje, com bastante
Myres argumentava que os gregos estiveram freqüência, que Dânao e Cadmo não tenham
sempre no processo de se ‘tomarem’ gregos, sido vistos pelos habitantes da Grécia como
ainda que ele acreditasse que isto tivesse sido imigrantes do Leste até o século V a.C.
conseguido durante os séculos que imediata­ O que falta em todas estas análises e
mente precederam a época do ápice do clas- interpretações é a perspectiva de quem está

215
HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

dentro do grupo. Com efeito, considera-se um Argos ou Acaia. O nome Helas é encontrado na
princípio cardinal do pensamento antropológi­ Ilíada, mas a área à qual este nome se refere é
co desde pelo menos os anos 1960, que o extremamente limitada. No livro IX, o velho
conceito de etnicidade envolve muito mais a Fênix relembra as proezas de sua juventude e
percepção interna de cada membro de um reconta como havia fugido da casa de seus pais
grupo. O grupo étnico é, assim, definido não em Helas e havia se dirigido para a corte do rei
pela soma de diferenças objetivamente obser­ Peleu na vizinha Ftiótida. Esta e outras passa­
váveis mas por apenas aquelas diferenças que gens tomam claro que Helas aqui define uma
os membros do grupo, eles próprios, percebem área relativamente pequena, ao redor do vale do
como diferenças significantes. E esta idéia não rio Espérquio na Grécia central (Fig. 1). Na
é uma invenção da era pós ‘melting pot’: já em Odisséia, entretanto, Helas parece ter sido
1912, o grande sociólogo alemão Max Weber imaginada como uma área já muito maior.
definira os grupos étnicos como ‘os grupos Menelau deplora o destino do filho de Ulisses,
humanos que mantêm uma crença subjetiva em Telêmaco, enquanto este viaja ‘através da
sua descendência comum .... sem importar se Hélade e do coração das terras argivas’.
uma relação objetiva de sangue existe ou não”. Enquanto isso, Penélope orgulha-se que a fama
Assim, minha preocupação hoje, não é com o de seu marido, Ulisses, espalha-se também
que nós pensamos que os gregos eram mas ‘através da Hélade e do coração das terras
com o que eles pensavam que eram. Ao mesmo argivas’. Mas o destino de Telêmaco não seria
tempo que concordo com a conclusão de tão terrível se ele tivesse tido intenção de visitar
Myres de que os gregos estavam ‘sempre no somente o vale do Espérquio e a cidade de
processo de vir a ser’ eu proponho que este Argos. Da mesma forma, o elogio de Penélope,
processo não havia sido concluído antes do se tomado no sentido literal, poderia ser uma
período clássico e que os critérios em que os forma de gabar-se da reputação do marido. Ao
gregos fundamentavam sua auto-identificação contrário, parece claro que esta fórmula foi
transformaram-se de acordo com a época. empregada para abranger a Grécia em geral,
Aparentemente, há poucos grupos étnicos onde Hélade é a Grécia central, ao norte do
através da História que não tenham expressado istmo de Corinto e o coração das terras argivas
sua auto-consciência comum por meio de um é o Peloponeso, uso atestado ainda muito
nome coletivo. A razão disto não é difícil de posteriormente em Demóstenes e em Plínio, o
determinar. A etnicidade depende de catego- Velho (Fig. 2). Uma ampliação da abrangência
rização, ou seja, da habilidade em dividir o geográfica de ‘Helas’ aparece ao final do século
mundo entre ‘nós’ e ‘eles’. E a categorização é VII a.C. quando o poeta espartano Alemão
muito melhor operacionalizada quando há descreve o troiano Paris como ‘um mal para
nomes. É, portanto, surpreendente que os Helas, produtora de homens’. Mas, mesmo
nomes que os gregos utilizaram para designa- então, outros fragmentos poéticos do período
rem-se a si mesmos - Helenos - e a terra que sugerem que Helas pode ter indicado apenas
habitavam - Helas - aparecem relativamente uma porção principal da Grécia, com exclusão
tarde nas fontes textuais. As nossas mais de muitas das ilhas do Egeu (Fig. 3). Teremos
antigas obras sobreviventes são provavelmente que esperar pela poesia de Xenófanes em
os poemas épicos homéricos: a Ilíada que se meados do século VI a.C., para encontrar o
acredita tenha adquirido mais ou menos a forma primeiro emprego do termo Helas significando
que conhecemos hoje ao final do século VIII sem ambigüidades o que chamaríamos de Grécia
a.C. ou talvez no transcorrer do início do século - ou então para ser mais precisos - o Mundo
VII a.C. e a Odisséia cuja composição é prova­ grego. Encontraremos o mesmo padrão com
velmente de uma geração mais tarde. Nos dois relação ao termo ‘helenos’ que não é empregado
poemas os gregos que sitiam a cidade de Tróia para designar os gregos em um sentido abran­
são coletivamente denominados aqueus, gente e coletivo antes do século VI a.C.. Na
argivos, dânaos - aparentemente de modo poesia pós-homérica mais antiga, os gregos são
intercambiável - mas não helenos. E sua terra chamados de pan-helenos; termo que implica em
de origem é referida não como Helas mas como pluralidade muito mais do que em unidade.

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Fig. 3.

Que o século VI a.C. tenha sido um helenos, representados por um herói epônimo
período crucial para a cristalização da identida­ chamado Heleno que, por sua vez, era visto
de grega é também sugerido pela tradição como o pai ou como o avô destes grupos
genealógica encontrada em um poema frag­ constitutivos.
mentário denominado Catálogo de Mulheres Há duas razões pelas quais pode-se supor
que, se acredita, foi composto na primeira que Heleno não havia sido concebido original­
metade do século VI a.C.. O poema registra mente como o ancestral de Éolo, Doro, íon e
que o herói Heleno teve três filhos, Doro, Xuto Aqueu. Em primeiro lugar, enquanto o termo
e Éolo, e que Xuto teve como filhos, Aqueu e ‘helenes’ não indicava, como vimos, o povo
íon. Esta árvore familiar funciona para fazer a que chamamos de gregos até pelo menos o
relação dos principais grupos populacionais século VI a.C., a literatura mais antiga reconhe­
da Grécia entre si e para criar uma identidade ce a existência dos outros grupos: os dórios e
helénica mais abrangente. Os eólios, represen­ os jônios aparecem uma única vez nos poemas
tados pela figura epônima de Éolo eram as homéricos e o poeta Hesíodo que escreveu no
populações que habitavam as regiões da início do século VII a.C. registra que o seu pai
Grécia central, a Tessália e a Beócia juntamente havia migrado para a Grécia central vindo da
com a faixa norte do litoral da Anatólia. Os cidade eólia de Cime na Ásia Menor. Em
dórios, representados metaforicamente por segundo lugar, há uma intrusão na genealogia
Doro, habitavam partes do Peloponeso, as da figura de Xuto, filho de Heleno e pai de íon
ilhas do sul do Egeu, incluindo Creta e o e de Aqueu. Por que deveriam íon e Aqueu ser
sudoeste da Ásia Menor. Os jônios, simboliza­ vistos como os netos e não como os filhos de
dos pela figura de íon, ocuparam Atenas e a Heleno e por que não há uma população ‘xutia’
Ática, a ilha de Eubéia, as ilhas Cíclades e a na Grécia que fosse representada por Xuto? A
costa central da Anatólia. Por fim, Aqueu melhor explicação é que os jônios e os aqueus
representava os aqueus que haviam se estavam ansiosos para estabelecer laços de
estabelecido - pensava-se - ao longo da costa parentesco entre si por meio da figura comum
sul do Golfo de Corinto. Juntos, eólios, dórios, de Xuto antes que tivessem percebido ou
jônios e aqueus podiam ser vistos como sentido qualquer afinidade maior com eólios

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ou dórios. Isto, por sua vez, sugeriria que a santuário oracular de Apoio em Delfos. Além
genealogia apresentada no Catálogo de disso, pode não ser acidental que as elites
Mulheres constitui o produto final de um tessálias começaram a obter muitas vitórias
processo gradual por meio do qual populações nos Jogos Olímpicos em tomo da metade do
originalmente independentes procuraram século VI a.C.. No início do século V a.C ./a•
estabelecer laços étnicos entre si acrescentan­ participação nos jogos Olímpicos estava »
do os nomes de seus ancestrais à mesma restrita àqueles que podiam alegar descendên­
árvore familiar e eventualmente traçando uma cia helénica e é, portanto, totalmente possível
descendência comum até Heleno. A identidade que foi na órbita trans-regional dos jogos que
helénica foi construída de forma agregativa a identidade helénica surgiu, na medida em
por meio da percepção de similaridades com que as elites dórias, jônias e aquéias começa­
grupos de pares. ram a forjar relações de parentesco fictícias
As evidências fragmentárias que possuí­ com os eólios da Tessália. Este tipo de registro
mos a respeito deste período provavelmente agregativo, não podia ser nunca inteiramente
nunca revelarão com qualquer certeza os inclusivo: a associação em um clube apenas
motivos e os agentes que estiveram por trás assume significância e kudos se para outros a
da criação da auto-consciência grega no entrada for negada. Uma outra razão para
século VI a.C., mas os tessálios do centro- suspeitar o envolvimento dos tessálios é que
oeste da Grécia são sem dúvida os suspeitos alguns de seus vizinhos - como, por exemplo,
mais óbvios. Em primeiro lugar, a tradição os parrásios e os magnésios que parecem ter
derivava a descendência de Heleno do herói tido um relacionamento de dependência com
tessálio Deucalião. Em segundo lugar, os relação aos tessálios - não eram considerados
tessálios que se viam como eólios originais helenos porque seus ancestrais epônimos não
podiam derivar sua própria descendência do estavam em uma linha direta de descendência
filho mais velho de Heleno. Os tessálios de Heleno e, de fato, não há nenhum registro
tinham desde o século VII a.C. sido o poder de vencedor nos Jogos Olímpicos nesse período
dominante no Conselho que administrava o que fosse parrásio ou magnésio (Fig. 4). Há,

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entretanto, outros grupos que hoje considera­ muitas das práticas das elites - gerou uma
ríamos como gregos, aos quais não se atribuía visão negativa dessa região. A palavra
- no século VI a.C. - uma descendência ‘bárbaros’ - tanto o adjetivo quanto o subs­
helénica, entre eles, os etólios da Grécia tantivo - registrada apenas ocasionalmente
ocidental e os arcádios do Peloponeso central. antes da invasão, entra agora no uso comum
Mais recentemente, os especialistas têm para designar não apenas os persas mas todos
sugerido com freqüência que um sentimento os outros grupos de não-gregos, sem qualquer
de auto-consciência verdadeira, de helenidade, diferenciação. Na tragédia e na comédia grega,
surgiu apenas depois da invasão dos persas e os personagens bárbaros assumem um papel
a sua derrota na Grécia nos anos 480-479. A mais central e são em geral representados
evidência examinada até o momento parece como cruéis, sem moderação, covardes, servis
refutar esta hipótese. Muitos gregos, ainda e afeminados.
que nem todos, procuraram uma unidade Na Ática, os pintores de vasos também
comum em termos de parentesco compartilha­ mostram uma nova fascinação em pintar guerrei­
do, pelo menos duas gerações antes da ros bárbaros, e adaptam esquemas iconográficos
invasão dos persas. Entretanto, é verdade que anteriormente empregados para representar
a invasão persa teve um efeito na forma como grupos não gregos como as Amazonas, adicio­
os gregos se enxergavam. Tendo incorporado nando traços característicos gregos.
as cidades gregas da Ásia Menor em seu Diante dos estereótipos no teatro e nas
Império em meados do século VI a.C., no início artes, os gregos começam a especular mais a
do V a.C., os persas voltaram a sua atenção respeito de sua própria identidade. Começam a
para a Grécia. O golpe na Ática, em 490 a.C., foi perguntar-se o que, afinal, torna os bárbaros
revertido por Atenas na Planície de Maratona, tão estranhos. O que quero dizer é que se a
mas em apenas seis anos o Rei persa Xerxes já identidade grega foi construída de forma
estava realizando preparativos para uma agregativa por meio das similaridades entre
invasão em larga escala da Grécia tanto por grupos de pares, ela era agora definida em
terra quanto por mar. Conquistando a Trácia termos das diferenças percebidas e em oposi­
aos poucos e em seguida a Macedônia, Xerxes ção a grupos externos de bárbaros. Esta
chegou à Tessália em 480 a.C.; depois de mudança no mecanismo definidor da auto-
superar a resistência espartana no desfiladeiro consciência grega permitiu uma maior inclusão
das Termopilas, avançou para capturar a que agora podia abranger grupos como os
própria Atenas a qual os atenienses haviam arcádios ou os etólios, mas também requeria
optado por abandonar. O esforço de defesa, que a especificidade grega fosse imaginada em
estruturado por uma coalizão de apenas uma termos mais concretos que uma simples
meia dúzia de cidades sob a liderança de afinidade genealógica.
Esparta, ofereceu pouca esperança ou qual­ Diferentemente dos autores de peças, seus
quer otimismo. Entretanto, a habilidade em contemporâneos, Heródoto não tinha idéias
escolher as táticas a serem empregadas e uma negativas em relação aos não-gregos - muito
boa dose de sorte permitiram que a marinha mais tarde, o próprio Plutarco viria a acusá-lo
grega obtivesse uma vitória decisiva sobre os de ser amigo dos bárbaros - ao contrário, suas
persas em Salamina e, na primavera seguinte, Histórias são muito mais do que uma simples
as forças gregas venceram o enorme exército narrativa a respeito das causas e dos eventos
persa em Platéia. A libertação da ameaça de ligados à invasão persa. Na verdade, é possí­
invasão persa parece ter desencadeado uma vel afirmar que esta obra é uma meditação a
atitude completamente nova dos gregos em respeito da natureza da própria identidade
relação ao Oriente. Nos século VII e VI a.C., o grega e por isso talvez valha a pena retomar à
Oriente era um objeto de fascinação exótica definição de identidade grega que Heródoto
para os gregos, ou pelo menos nas elites coloca na boca dos atenienses e com a qual
gregas, mas a invasão persa e a ascensão dei início a esta palestra. Esta definição que
concomitante da democracia em várias cidades tem quatro aspectos - descendência, língua,
gregas - prática que servia à marginalização de religião e costumes - é ainda aceita como a

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principal (ou pelo menos a mais válida) as informações oferecidas pelas inscrições
definição grega de helenidade. Entretanto, eu oficiais e por alguns grafites eventuais.
concordaria com Myres que nenhum destes Conhecemos, por isso, as variadas formas em
traços teria sido identificável por si só para os que eram escritos os diferentes dialetos. Mas,
gregos do século V a.C. e que esta definição é, como os sinais do alfabeto são muito menos
portanto, uma parte de um projeto intencional numerosos do que a quantidade de sons
de Heródoto mais do que uma simples reflexão vocálicos que podem ser produzidos oralmen­
a respeito das atitudes suas contemporâneas. te, é muito possível que os dialetos fossem
Vejamos o que nos revela em primeiro muito mais diferentes em suas formas orais do
lugar a descendência. Como vimos, a idéia de que podemos imaginar a partir de suas formas
que os gregos poderiam ser unificados por um escritas. Certamente, a evidência comparativa
mesmo parentesco já tinha trânsito corrente no não nos autoriza a considerar, com segurança,
século VI a.C. quando era expressa de forma o fato de que todos os que falavam dialetos
figurada por meio da genealogia no Catálogo gregos poderiam compreender-se mutuamente
das Mulheres. Notamos também, por outro e, portanto, assumir uma afinidade étnica.
lado, que a ligação dos heróis epônimos Éolo, Mesmo em nossos dias, os que falam dialetos
Doro, Ion e Aqueu era uma invenção relativa­ na Itália são, com freqüência, incapazes de
mente recente e que estes grupos constituti­ compreender uns aos outros: alguns milaneses
vos tinham tido uma existência anterior mais afirmam que compreendem melhor o espanhol
ou menos independente talvez por um par de do que o dialeto siciliano. E, portanto, prová­
séculos. Além disso, lembramos que apesar de vel que um residente de Atenas, uma cidade
Heródoto narrar episódios do início do século cosmopolita que abrigava muitos residentes
V a.C., ele está fazendo o seu relato mais ou estrangeiros, possuísse uma facilidade maior
menos meio século depois. Com efeito, não apenas para compreender a fala dos outros. Mas, um
Heródoto viveu por todo o período em que as fazendeiro que vivia isolado em algum cantão
hostilidades entre Atenas e E sparta chega­ da Arcádia pode ter tido muita dificuldade em
ram ao ápice logo depois do final da guerra reconhecer uma similaridade lingüística entre o
contra os persas, como também ele sobreviveu seu dialeto e os demais. O que é interessante é
em pelo menos dois anos à deflagração da que até onde vai o meu conhecimento, Heródoto
Guerra do Peloponeso, conflito entre as duas é o primeiro autor a fazer referência a uma
cidades e seus respectivos aliados. Tanto única língua ‘grega’, sugerindo que, anterior­
antes quanto durante a guerra, Atenas procu­ mente a ele, nem todos os gregos pertences­
rou galvanizar o apoio entre suas aliadas sem a uma única comunidade lingüística.
apelando a uma descendência jónica comum Agora, com relação à religião. Tendemos
enquanto Esparta chegava a resultados nos dias de hoje a considerar as crenças e as
similares promovendo sua herança dórica. Esta práticas religiosas dos gregos a partir de uma
retórica bipolar entre jônios e dórios militava perspectiva comparativa, por meio da qual a
contra a crença da filiação a uma única família sua estrutura e o seu conteúdo são contrasta­
grega. dos com as tradições judaico-cristãs e com a
Em segundo lugar, vejamos a questão da teologia islâmica. Entretanto, tal como no caso
língua. Do mesmo modo que os italianos não da linguagem, a religião no mundo grego
falavam italiano antes do ‘Risorgimento’, os operava essencialmente no nível da cidade-
gregos do século V a.C. também não falavam estado, o que implica que crenças e práticas
‘grego’. Ao contrário, cada região e cada podiam variar de região para região. Na
cidade-estado tinha o seu próprio dialeto do planície argiva, na Grécia do sul, por exemplo,
grego. Considera-se normalmente que esses a deusa Hera, que é para nós tão conhecida da
dialetos eram inteligíveis entre si, mas, na epopéia homérica como a esposa sofrida de um
ausência de registro literário de como os Zeus bastante namorador, era cultuada como
gregos se com unicavam com os que não uma virgem que presidia os ritos da agricultura
falavam o grego - e muito menos com os que e da fertilidade, enquanto na própria cidade de
falavam dialetos - tudo o que possuímos são Argos, o culto de Afrodite, praticado em um

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pequeno santuário próximo ao famoso teatro babilónicos, libios e, sobretudo, egípcios -


da cidade, aparenta ter um aspecto marcial é manter os hábitos dessas populações não
muito diferente da deusa sensual cultuada gregas como um espelho, onde os gregos
pelas cortesãs de Corinto. Com efeito, Heródoto pudessem olhar e perceber aquilo que eles
não faz qualquer menção em sua definição de próprios tinham em comum entre si. Quando
helenidade às crenças comuns, apenas aos Heródoto descreve como os homens egípcios
santuários e aos sacrifícios, mas aqui também ficam em casa tecendo enquanto suas mulhe­
a comunhão grega de culto não pode ter sido res vão ao mercado, ou como as mulheres
totalmente evidente. Os Mistérios eleusínios egípcias urinavam em pé enquanto os homens
eram supostamente restritos àqueles que o faziam de cócoras, sua intenção não é a de
podiam entender a língua grega (o que poderia disseminar conhecimento científico a respeito
incluir os que falassem o grego correntemente, dos hábitos egípcios, mas sim convidar a sua
mas que de fato nem eram gregos) e a partici­ audiência e os seus leitores a contemplar o
pação nos jogos olímpicos era, como já que finalmente dá uma coerência aos seus
mencionamos, limitada àqueles que podiam próprios hábitos e às suas próprias práticas
alegar descendência helênica. Mas, este tipo coletivas.
de restrição não parece ter sido aplicada a Mesmo assim, eu acredito que Heródoto
Delfos, onde até o rei lídio, Creso, podia faz mais do que simplesmente ampliar os
consultar o oráculo. No início do período critérios que definem a helenidade. Quando
arcaico, oitenta e cinco por cento das dedica­ analisados à luz das Histórias em geral, salta à
ções em metal no santuário de Hera na ilha de vista que a estes quatro ingredientes de
Samos são de fabricação médio-oriental ou helenidade não é dado o mesmo peso. De fato,
egípcia. No santuário de Hera em Peracora, nas eles são apresentados em ordem crescente de
proximidades de Corinto, três quartos do importância. Assim, são os costumes, segui­
material metálico são de origem fenícia. A dos das práticas religiosas e da linguagem os
proveniência de um artefato não identifica itens que mais atraem Heródoto quando ele
necessariamente o seu doador, mas porcenta­ descreve as populações que não são gregas.
gens tão altas como estas não devem ser As noções de descendência é dada, compa­
simplesmente explicadas como o resultado de rativamente, pouca atenção. Heródoto nos
comércio e de trocas ainda que estas ativida­ diz, por exemplo, que os cáunios da Ásia
des sejam responsáveis por parte destas Menor, apesar de possuirem a mesma língua
oferendas. De um outro lado, há evidências de e de reconhecerem a mesma origem que
que as comunidades de culto muitas vezes seus vizinhos, os cários, são diferentes deles
separavam os gregos ao invés de uni-los. Diz- porque os seus costumes e modos de vida são
se que a sacerdotisa de Atena Polias na diferentes. Ao contrário, os côlquios, do litoral
acrópole ateniense tentou impedir que o rei leste do Mar Negro são, na realidade, egípcios:
espartano Cleômenes oferecesse sacrifícios, a esta conclusão ele chega não apenas com
alegando que ele era um dório e uma inscrição base na aparente similaridade física entre as
do século V a.C. proveniente de um santuário duas populações, mas porque os côlquios
da ilha jônica de Paros também proíbe o praticam a circuncisão e trabalham o linho tal
acesso aos estrangeiros dórios. como os egípcios.
Ao descrever os costumes dos persas e O mesmo parece aplicar-se aos próprios
dos citas, Heródoto salienta o fato de que gregos. Heródoto observa que apesar de
estes não erigiam estátuas, altares ou templos reivindicar o nascimento puro, os jônios da
aos deuses. Parece querer dizer que as práticas Ásia Menor são todos misturados já que
religiosas persas e citas eram assim diametral­ descendem não apenas de ancestrais jônios
mente opostas àquelas dos gregos e, com como também de dórios e de populações não
efeito, um dos propósitos das digressões gregas como os abantes, os minios, os dríopes
etnográficas por vezes bastante longas de e os pelasgos. É evidente que se os jônios
Heródoto - não apenas a respeito dos persas e possuem uma origem misturada, fica difícil
citas como também a respeito dos lídios, sustentar que os próprios gregos, coletiva­

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mente, constituem um único grupo de descen­ Grécia ocidental os quais, apesar de original­
dência e esta é a razão pela qual sempre se mente bárbaros, haviam se helenizado por meio
sugere que Heródoto está de alguma maneira do contato com os gregos da vizinha Ambrácia.
‘indeferindo’ as verdadeiras credenciais Se pensarmos que bárbaros podiam tornar-se
gregas dos jônios. O desprezo que Heródoto gregos ao adotar os costumes gregos, então
tem pelos jônios da Ásia Menor é bastante alguns gregos poderiam ser considerados
evidente em sua obra, entretanto, não são ‘mais bárbaros’ por conta de seu modo de vida
estes os únicos a terem a pureza de sua mais atrasado. Tucídides nos fala que mesmo
descendência questionada por este autor. em seus dias, os habitantes de Locris Ozólia,
Heródoto nos diz que os atenienses - que da Etólia e da Acamânia na Grécia ocidental
também se consideravam jônios quando lhes ainda carregavam as armas em público, prática
interessava - eram originalmente uma popula­ que havia sido comum entre todos os gregos,
ção não grega de pelasgos que ‘aprenderam o mas, que naquela época era encontrada apenas
grego quando se tornaram helenos’. Conside­ entre as populações bárbaras.
rando que, com toda a probabilidade, Históri­ Resta-nos perguntar porque os gregos
as foi uma obra dirigida a uma audiência de começaram a ver-se mais em termos de costu­
atenienses, esta afirmativa dificilmente pode mes e de cultura do que em termos de paren­
implicar um insulto étnico. Com efeito, a crença tesco. Até um certo ponto, as antigas explana­
de que os atenienses eram pelasgos antes de ções genealógicas de helenidade tinham
serem gregos combina perfeitamente com sobrevivido à sua utilidade funcional. Por um
outro mito de origens que os atenienses lado, elas não eram suficientemente inclusivas:
professavam - quando não se faziam passar os gregos sem dúvida haviam percebido que
por jônios - de que eram autóctones, de que os arcádios que lutaram tão bravamente pela
nunca haviam deixado o seu território e que liberdade da Grécia na invasão persa não
eram descendentes de Erecteu, aquele que podiam reivindicar qualquer descendência de
havia nascido da terra. Para os atenienses, o Heleno. Por outro lado, não havia nada que
mito de autoctonia era mais uma fonte de garantisse a exclusividade destas explanações
orgulho do que um motivo para vergonha: este genealógicas. Os cidadãos de Argos no
mito os marcava como uma das populações Peloponeso mantiveram uma neutralidade
mais antigas da Grécia e privilegiava a crença bastante rigorosa durante o conflito com os
em uma igualdade primordial fazendo derivar a persas e Heródoto nos diz que isto se deveu a
descendência mais do próprio território ático uma missão diplomática que os persas envia­
do que de progenitores humanos diferencia­ ram a Argos na qual eles pleiteavam uma
dos. As conclusões parecem, então, muito descendência comum já que Perses, o ances­
claras: para Heródoto, era a cultura comum que tral epônimo dos persas, era filho do herói
definia o que era ser grego, muito mais do que argivo Perseus. A reivindicação pode nos
a descendência compartilhada. parecer hoje ridícula, mas a verdade é que, na
Sendo ou não Heródoto o primeiro a Grécia antiga, o parentesco fictício servia
formular essa definição de helenidade mais tipicamente como a linguagem da diplomacia.
voltada para o lado cultural, trata-se de uma Também a crescente polarização do mundo
concepção atestada com cada vez maior grego - que resultou em última instância na
freqüência em outras obras do final do século guerra do Peloponeso - facilitou a crença em
V e do século IV. a.C.. Tucídides, por exemplo, uma única comunidade de parentela. Há razões
questiona se os gregos estavam originalmente suficientes, no entanto, para se acreditar que
relacionados uns aos outros: segundo este Atenas tenha contribuído de maneira decisiva
autor, foram tribos originalmente independen­ à formulação desta nova definição de heleni­
tes que assumiram o nome de helenos por meio dade que se fundamentava em um critério mais
de contatos com os filhos de Heleno e não por cultural.
descendência destes. Tucídides também Em primeiro lugar, o século V a.C. presen­
apresenta um paralelo para o caso ateniense ciou a ascensão da democracia radical em
em sua descrição dos argivos anfílocos da Atenas. Mais do que uma simples extensão

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dos privilégios e das obrigações políticas a reunido uma imensa quantidade de riqueza
uma camada masculina mais abrangente, a devido à sua hegemonia sobre aliados que
democracia - que significa literalmente o poder pagavam um alto tributo e a sua força econô­
das pessoas comuns - representava a vitória mica atuava como um imã poderoso sobre
do cidadão comum sobre as elites que eram, intelectuais e artistas bem como sobre merca­
como vimos, elites fascinadas com o Oriente a dores e artesãos. Na oração fúnebre para os
ponto de ter importado e imitado produtos e primeiros tombados na Guerra do Peloponeso,
práticas orientais. Profissão de afinidades Péricles enfatizou os valores e as característi­
genealógicas são difíceis de discernir, mas cas que faziam de Atenas uma cidade única e
transgressões orientalizantes por parte das proclamou que ela provia uma paideusis para o
elites podiam ser verificadas de forma melhor resto da Grécia. A palavra paideusis é freqüen­
na esfera cultural, assegurando à cultura o temente traduzida por ‘educação’, mas o seu
papel de fronteira de controle entre helenismo sentido verdadeiro inclui as tradições e os
e barbárie. Antes das guerras persas, importa­ valores culturais que são transmitidos de
ção ou imitação direta de artefatos orientais geração em geração por meio da educação.
criavam itens de prestígio cuja dificuldade de Atenas emerge como a escola da Grécia - uma
aquisição marcava seus proprietários atenien­ ascendência intelectual comemorada no
ses como membros de uma elite trans-regional. famoso afresco de Rafael intitulado ‘A escola
Depois das guerras persas, no entanto, tais de Atenas’ de 1510-1511. O uso do critério de
itens foram adaptados nas mãos dos artesãos cultura no lugar do critério de descendência
atenienses. Artefatos de cerâmica, de metal ou para a definição de helenidade permitiu aos
mesmo vestimentas foram transformados nas atenienses suplantarem Esparta como a cidade
mãos de hábeis artífices. Assim, sem uma elite paradigmática por excelência. Platão chamaria
que os utilizasse com exclusividade, sem os Atenas de ‘prefeitura’ da Grécia e no túmulo
traços orientais por demais marcantes, esses de Eurípides, Atenas era descrita como a
itens foram simultaneamente democratizados ‘Helas da Hélade’. Entretanto, a formulação
ao mesmo tempo em que foram helenizados. mais explícita desta hegemonia cultural
Em segundo lugar, ainda que o mito da ateniense foi feita por Isócrates em um de seus
autoctonía conferisse uma antiguidade discursos - o Panegírico - escrito em torno
prestigiosa aos atenienses e justificassem o de 380 a.C.: “A nossa cidade ultrapassou de
seu sistema democrático, era incompatível com tanto os outros homens, no que diz respeito à
a genealogia grega mais antiga que colocava sabedoria e à expressão, que seus alunos
os atenienses no interior de um grupo jónico tornaram-se professores de outros. O resulta­
mais abrangente. De fato, se os atenienses do é que o nome de helenos não mais indica
eram descendentes da terra, não podiam então uma afiliação étnica mas sim uma disposição.
ser jônios e, portanto, não podiam ser original­ Com efeito, aqueles que se chamam helenos
mente helenos, como deixa bem claro o relato são aqueles que compartilham nossa cultura
de Heródoto a respeito das origens pelasgas (paideusis) mais do que uma herança biológica
dos atenienses. Assim, os atenienses não comum.” Em outro discurso, escrito nos anos
podiam afirmar com certeza que eles eram da 350 a.C., Isócrates descreveu Atenas como a
mais pura origem helénica como talvez os única cidade verdadeira da Grécia, enquanto
espartanos acreditavam ser nesse período. Tebas, Esparta e Corinto aparecem como meras
Mas os espartanos não podiam competir no aldeias.
domínio cultural. Esparta, ainda que poderosa Como freqüentemente acontece, quase
militarmente, tinha adotado conscientemente toda a nossa documentação escrita vem de
uma ideologia arcaizante que isolava os Atenas e, portanto, não podemos considerar
cidadãos do mundo exterior tanto quanto que esta definição cultural de helenidade
possível. A prata cunhada era proibida, a fosse necessariamente aceita por todos os
adoção de práticas não espartanas era mal demais não-atenienses. Com efeito, para a
vista e estrangeiros eram com regularidade maioria da população das cidades fora de
deportados. Atenas, em contraste, tinha Atenas, outros imperativos mais mundanos

224
HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

tais como a subsistência e a defesa eram, ancestrais. Os papiros dos séculos III, II e I a.C.
provavelmente, muito mais importantes do parecem indicar que os trácios foram gradual­
que a preocupação em definir um sentido de mente absorvidos à população grega do Egito
identidade grega que, com freqüência, tinha ptolemaico e Diodoro, historiador do século I
pouca relevância prática no cotidiano. Entre a.C., observa que, em seus dias, a população
as elites não atenienses, entretanto, suspeita- indígena da Sicilia aprendeu o grego, adotou os
se que a definição de helenidade não era costumes gregos e tomou-se praticamente
fundamentalmente questionada. A potência indistinguível do restante da população grega
das capitais culturais é que em um período da ilha. O seu contemporâneo mais jovem,
relativamente curto a sua propaganda consci­ Dionisio de Halicamasso, definia a helenidade
ente torna-se auto-sustentada. Tais ‘centros como o falar a língua grega, praticar o modo de
culturais’ servem, assim, como protetores da vida grego, reconhecer os deuses gregos e
autenticidade cultural cuja contestação é, por empregar leis razoáveis. O que é notável nesta
definição, não autêntica. definição é não apenas a similaridade em
Certamente, no mundo multi-cultural relação à caracterização criada por Heródoto,
inaugurado pelas conquistas de Alexandre, o mas também a omissão pouco discreta da lista
Grande, a descendência era um critério de da descendência. Sir John Myres estava certo:
helenidade sem sentido. Os gregos do período os gregos estavam sempre no processo de
helenístico, eram aqueles que haviam se tornarem-se gregos, mas os estágios cruciais
beneficiado de uma educação grega, que nesta evolução ocorreram não nas brumas
falavam o dialeto de Atenas (pelo menos no escuras da proto-história, mas no próprio
contexto formal) e participavam da vida do período que, para nós, define a glória da
Ginásio, independentemente da origem de seus Grécia.

HALL, J. Who were the Greeks. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São
Paulo, 11: 213-225, 2001.

ABSTRACT: The main goal of this article is to trace the ways followed by
the Greeks in building up their own identity. The Author assumes that ethnicity
is very much a matter of internal perceptions and that the ethnic group is
defined not by the sum of objectively observable differences but only by
those differences that members themselves regard as significant. The role of
Herodotus in this construct is stressed by the Author.

UNITERMS: Greek Ethnicity - Cultural Identity - Herodotos - Ionians -


Dorians.

R ecebido p a ra pu blicação em 15 de dezem bro de 2001.

225
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 227-242, 2001.

LESION LITICA CRANIANA POR LEISHMANIASIS EN


MAKAT-TAMPU DURANTE EL IMPÉRIO INCA:
SIGLOS XV-XVI, VALLE DEL BAJO RIMAC, PERU

Alfredo José Altamirano Enciso*


João Soares Moreira*
Mauro C.A. Marzochi*

ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana


por Leishmaniasis en Makat-tampu durante el império inca: siglos XV-XVI, valle
dei Bajo Rímac, Peru. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11:
2 2 7 -2 4 2 , 2001.

RESUMO: Evidências paleopatológicas de destruição da mucosa facial em


antigas populações humanas do Perú sugerem a presença de Leishmaniose
Mucosa (LM) em grupos agrícolas que viveram próximos à área endêmica de
LTA entre os séculos XV-XVI. Este estudo foi dividido em duas fases: 1)
Através de lâminas de raios X e tomografia axial do crânio, foi definido o
padrão de forma mucosa em crânios humanos em sete pacientes (seis homens
e uma mulher com mais de 35 anos de idade), selecionados do Centro de
Pesquisa Hospital Evandro Chagas (Fiocruz), com história clínica e destruição
do maciço facial, principalmente a cavidade oro-nasal. Todos causados por
Leishmania (V.) braziliensis', 2) Um material arqueológico bem preservado,
constituído de 241 crânios, procedente do cemitério inca de Makat-tampu,
vale do Baixo Rímac, foi analisado e comparado. Este se encontra no Depar­
tamento de Antropologia Física do Museu Nacional de Antropologia, Ar­
queologia e História, Lima, Perú. Segundo a observação e descrição anátomo-
patológica, foram identificados cinco casos (quatro homens e uma mulher
acima de 30 anos de idade) com destruição naso-palatina compatíveis com
LM. A freqüência desta lesão mucosa (2.07%) pode sugerir que havia uma alta
prevalência de infecção pelo complexo L. braziliensis em períodos pré-
hispânicos e confirmou nossas hipóteses.

UNITERMOS: Paleopatologia - Leishmaniose - Incas - Paleoepide-


miologia - Perú.

Introducción del subgénero Viannia, 1 del subgénero


Leishmania y 1 híbrido. Ellos son Leishmania
(L.) amazonensis, L.(V.) braziliensis, L.(V.)
En el Perú existen 6 agentes etiológicos de
guyanensis, L.(V.) lainsoni, L.(V.) peruviana y
leishmaniasis tegumentaria americana (LTA): 4
el híbrido L. braziliensis-peruviana (Davies et
al. 2000, 1995; Llanos-Cuentas et al. 1999). La
espúndia (lesiones de mucosa - LM) y la uta
(*) Centro de Pesquisa Hospital Evandro Chagas/ (lesiones cutáneas - LC) son los principales
Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ. problemas de salud pública, causadas por L.

227
ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: siglos X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do Museu de A rq u eo lo g ia e
E tnologia, São Paulo, 11: 227-242, 2001.

braziliensis y L. peruviana, respectivamente. fundamentalmente en el esqueleto del m acizo


facial en el antiguo Perú no habían recibido la
Ambos poseen áreas epidemiológicas defini­ debida atención por la carencia de bases m etodo­
das, formas clínicas diferentes y vienen lógicas consistentes (Lombardi 1994; Merbs
afectando endémicamente a la población rural 1992; Ortner 1992; A llison 1984; Ubelaker
andina desde tiempos remotos (Altamirano 1982; M oodie 1927, 1923). Por otro lado, el
2000; Davies et al. 2000, 1997; Dujardin et al. estudio tom ográfico en pacientes actuales de
evolución clínica de LM con lesión ósea también
2000; Llanos-Cuentas & Davies 1992; Rodríguez
había sido descuidado (Moreira 1994, Marsden
1992; Lumbreras & Guerra 1985; Herrer 1977; 1986, Rey 1973, Pessóa & Barretto 1948,
Weiss 1928; Escomel 1919). Asimismo, utiliza­ Villela et al. 1939, Klotz & Lindenberg 1923,
remos LM para la leishmaniasis de forma Splendore 1912). Esto indució abordar un
mucosa. tratamiento m etod ológico más fino y construir
la definición del patrón patológico analítico y su
Este artículo se concentra en el estudio de
diagnóstico diferencial.
una población campesina prehistórica del valle 2) Las interpretaciones anátom o-patológicas
del Bajo Rímac llamado los Makat-tampu o de los huacos mochicas con deformaciones nasal
Makatambo (MT) que vivieron bajo el dominio y labio superior comprendían, entre 1895 y 1920,
Incaico (Vide Fig. 1). Los cráneos analizados se a la mutilación punitiva, lepra, lupus eritematoso,
sífilis y verruga (Virchow 1895a, 1895b; Ashmead
encuentran en el Departamento de Antropo­
1900, 1910; Tello 1908, 1938). Entanto que otro
logía Física del Museo Nacional de Arqueología, grupo defendía la hipótesis de uta o espundia
Antropología e Historia de Lima (MNAAH). El (Jiménez 1896; Palma 1908; Arce 1913, 1916;
trabajo de campo se realizó entre enero y marzo Weiss & Rojas 1961; Vide Figs. 2 y 3), discutién­
de 1999. dose polémicamente en los primeros congresos de
Nuestra hipótesis de trabajo plantea que un salud pública de Lima. Desde entonces, Rabello
(1925, 1923) y más tarde Pessóa y Barretto
segmento poblacional del antiguo Perú que vivió (1948), atribuyeron que el origen de LTA habría
en la región costeña durante el imperio de los ocurrido en el Perú y desde allí migró a la
Incas (siglos XV-XVI después de Cristo) y Amazonia brasileira en el siglo XIX (Costa 1992).
dedicado eminentemente a actividades agrícolas Sin embargo, aquellos estudios normativos no se
próximo al área de transmisión de LTA desarrolló preocuparon del contexto arqueológico del dato
empírico ni las correlaciones cronológicas y
el patrón epidemiológico rural, siendo su
estilísticas del sistema Larco (1948) y menos del
prevalencia alta debido al enorme dinamismo del auxilio del método iconográfico (Quilter 1997;
campesino hacia la floresta y los Andes. Arsenault 1992/93; Cordy-Collins 1991; Urteaga-
Durante el imperio de los Incas ocurrieron Ballón 1991, 1993; Weiss 1984; Donnan 1978;
diversos movimientos sociales conocidos entre otros), constituyendo erróneamente un
como el sistema político-social mitmaq. Este consenso en las ciencias bio-médicas.
3) Los primeros cronistas españoles vieron
sistema consistía em transladar grandes
en funcionamiento algunas instituciones de la
grupos humanos o “colonos” hacia áreas estructura social del Tawantisuyo (1470-1532
distantes del imperio para el control adminis­ D.C.). Ellos, al internarse en los valles cálidos de
trativo y la producción económica. Muchos de la yunga occidental andina y en el territorio
ellos fueron destinados para funciones amazónico, describieron que los indios conocían
vulgarmente a esta enfermedad com o uta y los
agrícolas principalmente de ají, coca, frutales,
españoles com o “cán cer de los A ndes" (Pizarro
maíz y tubérculos (Espinoza 1997, Rostworowski 1571, Santillán 1572, Loayza 1586, Pesce 1951,
1992, Lastres 1951). Sin embargo, sobre el Lastres & Cabieses 1959). Sin embargo, sus
problema de la salud pública y enfermedades descripciones anátom o-patológicas son vagas
infecciosas entre los mitmaq poco es conocido por no haber sido médicas. Es posible que tanto
debido a la dificultad de definir arqueológica­ indios com o europeos sufrieran de sus dramáticos
síntomas y para controlar el mal practicaban,
mente estos grupos humanos.
com o hipótesis, una “terapia” de intervención
Así, el presente estudio paleopatológico severa, mutilando el área afectado y empleaban
surge de la reflexión de 3 tipos de problemas una farmacopea herbaria empírica de la etnome-
encontrados en la revisión de literatura, siendo dicina andina.
estas:
Tanto las evidencias osteo-patológicas
1) Las evidencias paleopatológicas de LTA, como la cerámica con representaciones de
com o datos empíricos diretos, registrados enfermedades constituyen, bajo contexto

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tampu durante el im perio inca: sig lo s X V -X V I, valle del Bajo R ím ac, Peru. Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 2 2 7-242, 2001.

LTA.

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tampu durante el im perio inca: sig lo s X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do Museu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia. São Paulo. 11: 227-242, 2001.

agricultores desde
períodos remotos.

Material y Métodos

Existen dos
conjuntos de material
óseo. El primero está
constituido de 130
pacientes confirmados
de LTA de forma
mucosa y estudiados
en el Centro de Pesqui­
sa Hospital Evandro
Chagas (CPq-HEC),
Fiocruz, Rio de Janeiro.
Realizamos el estudio
endoscópico de las
vias aéreas digestivas
superiores y seleccio­
namos 7 casos de LM
con lesiones liticas del
macizo facial. Se
tomaron examenes
radiológicos para-
nasales y placas
radiográficas y tomo-
grafía axial computa-
Fig. 2 - Representación sugestiva de LTA de form a mucosa en la rizada con intervalos
cerámica Mochica, siglos I-VII después de Cristo. Su antigüedad es de medio centímetro en
casi 1,000 años antes del imperio Inca. 2 normas: anterior y
basal (oral), para cada
arqueológico, únicos documentos de carácter caso. En el exámen otorrinolaringológico
autóctono y “sui generis” para estudiar la (ORL) se utilizó el espejo de García, espéculo
presencia de focos endémicos de enferme­ nasal, ópticas tópicas de 0 y 90 grados y
dades, permitiendo su reconstrucción paleoe- espátulas descartables para la observación
pidemiológica en este segmento del proceso directa del revestimento mucoso de las
histórico y regional andino. A partir de la cavidades nasal y oral (Moreira 1994). Esta
década de 80 surge la Nueva Paleoepide- muestra representa el 5,38% y se compone de 6
miologia que se sustenta de 3 pilares: el hombres y 1 mujer adulta, mayores de 35 años
contexto arqueológico o biocultural, la incor­ de edad, de condición humilde y estaban
poración de técnicas biomédicas modernas y el ligados a actividades agrícolas durante su
contraste analítico del diagnóstico diferencial infancia y adolescencia. Este estudio duró
(Mendonça de Souza 1995; Buikstra & Cook aproximadamente 24 meses, entre 1998-99
1992, 1980; Ortner 1992; Weiss 1984; Ubelaker (Altamirano et al. 1999).
1982; Ortner & Putschar 1985; Zimmerman & El segundo grupo es el material arqueológi­
Kelley 1982). Asimismo, la cerámica Mochica, co. En esta etapa, nos concentramos en los
elaborada casi 1,000 años antes del desarrollo cráneos del Laboratorio de Antropología Física
de los Incas, refuerza la hipótesis epidemio­ del MNAAH, Lima, entre enero y marzo de
lógica de su presencia basicamente entre 1999. Así, fue elegido la muestra de Makat-

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ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: sig lo s X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 77: 2 2 7-242, 2001.

patológicos seguimos la metodología


de Ubelaker (1989).
En la tercera etapa realizamos la
comparación con los parámetros
establecidos en la primera etapa. En la
paleopatología ósea el método básico
es la observación macroscópica y la
descripción detallada de lo anormal.
Cada caso paleopatológico con
sospecha de enfermedad infecciosa
fue comparado a las lesiones patoló­
gicas modernas de LM, siguiendo el
enunciado propuesto por Buikstra &
Cook (1980, 1992: 42), el cual trans­
cribe la siguiente premisa:
“A doença antiga em questão é
suficientemente similar a uma
doença moderna para que a seme­
lhança de padrões signifique que as
mesmas são relacionadas”.
También, hemos tenido mucho
cuidado en descartar las pseudopa-
leopatologías que podían distorcionar
nuestra investigación (Gomide 1999).
Fueron considerados como “anor­
males” y patológicos las perdidas
óseas con reabsorción periosteal y
nos concentramos en las lesiones
liticas de las cavidades nasal y oral,
principalmente el palato, ya que la LM
Fig. 3 - Un caso actual de LTA de forma mucosa causa­ destruye el borde posterior del
do p o r el p a rá sito L.(V.) b ra zilien sis. Secuelas de palatino. Los casos detectados en el
destrucción ósea ocurren en los cornetes inferiores y el CPq-HEC evidencian que el proceso
paladar duro. metastàtico destructivo surge desde
el interior de los cometes medio e
inferior de la cavidad nasal que puede ser
tampu por haberse detectado algunos casos izquierdo o derecho hacia el fondo de la
compatibles y aplicamos el método paleopa- cavidad oral como producto de infección
tológico. Luego, describimos los casos que sobreagregada y granulomatosa, produciendo
presentaban señales de destrucción de la osteomielitis o lesiones liticas (Altamirano
cavidades nasal y oral, y descartando otros que 2000). Estos rasgos constituyen los posibles
tenían alteraciones tafonómicas. Se tomaron indicadores de LTA.
fotos y slides de la posible casuística. Además,
realizamos la búsqueda de fichas y registros de
procedencia en el centro de catalogación y El cementerio de Makat-tampu
registro del MNAAH. Otros criterios para
escoger este sitio fueron la conservación del Las minas de Makat-Tampu o Makatambo
material, poseer contexto arqueológico, tratarse se encuentran en la margen izquierda del valle
de un grupo agrícola y su proximidad al área del Rímac, a unos 15 Km del Océano Pacífico y
endémica de LTA. Asimismo, para la estimación al noroeste del complejo Maranga (Ericksen
de la edad y del sexo de los cráneos paleo- 1951, Shady 1982). Localizado a 137 m.s.n.m.,

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ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: siglos X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do Museu de A rq u eo lo g ia e
Etnologia. São Paulo, / / : 227-242, 2001.

en la cuadra 50 de la Avenida Argentina que la contemporaneidad de estos contextos


une Lima y El Callao, Departamento de Lima y funerarios. Así, los datos de la paleopato-
en la costa central del Perú. Fue excavado por logía sin la información de las prácticas
Julio Espejo Núñez y el personal del MNAAH, mortuorias pueden introducir errores en su
entre noviembre de 1944 y enero de 1945. interpretación.
Actualmente este sitio ha desaparecido Asimismo, la cultura material incluía
integramente. herramientas de madera, semillas de algo­
El valle del Rímac es uno de los mayores dón, calabaza, hojas de coca, frijol, lúcuma,
de la costa central. En su desembocadura tiene maíz (tuzas o corontas), pepas de pacae,
una extensión irrigable de 25 km de este a papa, zapallo, fragmentos de carrizo o
oeste. El sector norte se une con la cuenca del quincha, y huesos de pescado y camélidos.
río Chillón o Carabayllo y en el sur, un gran Además, se hallaron fragmentos de tejido
ramal llamado río Surco llegaba hasta Chor­ llano y enrrollado, cerámica fina de los
rillos y Armatambo. Forma una cuenca joven, estilos Nievería del Horizonte Medio, tiestos
de fuerte pendiente y en épocas de intensas sencillos y decorados con pintura tricolor
lluvias (verano) producen deslizamientos e (negro, blanco y rojo) de los estilos Chancay,
inundaciones que afectan los poblados de Huancho, Ichimay e Inca del estilo Cuzco
Barba Blanca, Chosica, Huinco, Matucana y polícromo. Sobre esta información se des­
Tamboraque. prende que los MT eran básicamente agri­
El sitio, compuesto de 2 montículos de cultores que vivieron desde el Horizonte
barro (A y B), fue construido en las técnicas Medio hasta la ocupación del imperio de los
de adobitos y adobón. El montículo A tenía Incas y la vida cotidiana estaba ligada al
una altura entre 3-4 m y el B entre 2,50-3,50 control de los canales en área de densa
m. Ambos, con abundante relleno de cantos vegetación.
rodados, grava y arena, y pertenecían al
complejo hidráulico Maranga. Las 2 trin­
cheras y 7 cáteos demostraron que la Resultados
estructura interna estuvo regularmente
intacta y tenía varios niveles de cons­ Los resultados obtenidos son:
trucción. 1) El estudio paleopatológico, que partió
En el Montículo A, las paredes de de la revisión de 241 cráneos procedente del
adobón eran de forma trapezoidal, ancho en la sitio arqueológico MT, Lima, reveló que 5
base (1,20 m) y angosto en la parte superior casos humanos (C-6, C-10, C-16, C-18 y C-28)
(0,60 m). Para unir estos adobones emplearon presentaban lesiones liticas en el palato y
argamasa de barro. Los muros fueron sinuo­ reacción ósea periosteal compatibles a LTA de
sos en la periferia y formaban esquinas forma mucosa. Asimismo, 22 hombres y 9
irregulares. Esta técnica arquitectónica mujeres tenían otras alteraciones cefálicas
permitía soportar los frecuentes fenómenos distribuidas en: periodontitis (10), traumatismo
de terremotos y temblores, propios de la (10), criba orbitalia (6), osteoma (2), “goela-de-
costa central andina. El interior de las casas lobo” o “fenda-de-lobo” (1) y trepanación (1).
tenían estuco de barro fino y pintura amarillo. Además, existen casos con dupla y triple
De igual manera, sucedía con las plataformas lesión {Vide Tabla 1).
ubicadas al interior de los cuartos. Ericksen 2) El Caso 6 (C-6) es un masculino de 35 a
(1951) revela que los entierros humanos 45 años de edad. Presenta una lesión litica en
proceden del montículo B, donde fueron el hueso palatino, formando una curvatura
encontrados en posición flexionada, sentada, suave, de borde redondeado u ondulante que
con envoltorio textil simple e indica un patrón contornea el hueso y exhibe vascularización.
funerario local. Además, había un osario que La lesión viene de adentro hacia afuera.
caracterizaba al grupo popular perteneciente a Ausencia de cornetes nasales. Por otro lado,
la ocupación Inca. No hay información sobre presenta fractura de la espina nasal anterior
las áreas de enterramiento, sus dimensiones y incluyendo destrucción parcial del maxilar,

232
ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M .C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: sig lo s X V -X V I, valle del Bajo R im ac, Peru. Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 2 27-242, 2001.

TABLA 1
Relación de cráneos patológicos del sitio Makat-tampu, Lima
C em en terio M akat-T am pu
Sexo Edad P atologías
(C la v e M T )

C -01, A F -0 7 7 , M A P /1537 M M 35-40 a. Traumatismo nasal

C -02, A F -139, M A P/35-B F 18-25 a. P seudopatología

C -03, A F -142, M AP/511 F 30-40 a. Criba orbitalia

C -04, A F -161, M AP/483 F 30-40 a. Criba orbitalia


Ó
o
iri

A F -1 7 2 , MT M 30-40 a. No es patología

C -06, A F -366, M A P /1529 M 35-45 a. LTA

C -07, A F -398, M A P /1544 M > 50 a. No es patología


00
O

A F -417, M A P/316 F 35-45 a. Criba orbitalia


ó

C-09, A F -5 1 1, 1/326, MT M ± 50 a. Traum atism o

C -10, A F -538, M A P/98, MT M ± 50 a. LTA

C - l l , A F -171, 1/3500, MT M ± 50 a. Traum atism o

C -12, A F -1634 (959), MT F 40 -5 0 a. Enfermedad periodontal

C -13, A F -1 9 6 3, M T/13301 M 40-50 a. Traumatismo y periodontitis

C -14, A F -2055, M T /13267 M 40 -5 0 a. Criba orbitalia y traumatismo

C -15, A F -2 0 7 2, M T /13810 M 40 -5 0 a. O titis

C -16, A F -2 0 8 3, M T /13760 M > 50 a. LTA

C -17, A F -2 0 9 9, M T /13384 M 45-50 a. LTA (?)

C -18, A F -2 1 2 3, M T /13828 M 4 0-50 a. LTA y periodontitis

C -19, A F -2 1 7 4, M T /11538 M 4 0-50 a. Criba orbitalia y traumatismo

C -20, A F -2 2 0 1, M T /240 M 4 5-55 a. No es patología

C -21, A F -2 3 4 2, M T /11918 M 40 -5 0 a. Periodontitis y traumatismo

C -22, A F -2 4 1 4, M T /13333 F 45-55 a. Caries y traumatismo (?)

C -23, A F -3 2 4 2, M T /13816 F 45-55 a. PCM (?), traumatismo

C -24, A F -3 2 7 8, M T /13739 M 4 0 -5 0 a. Periodontitis (piorrea?)

C -25, A F -3 3 5 5, M T /1145 M 4 0 -5 0 a. O steom a

C -26, A F -3 4 0 3, M T /3696 M 35-45 a. Periodontitis y traumatismo

C -27, A F -3927, M A P/682 F 25 -3 0 a. “G oela-de-lobo”

C -28, A F -3 8 7 7, M AP-691 F 2 5-30 a. LTA

C -29, A F -5 0 8 3, M T /21266 M 35-40 a. O steom a y periodontitis

C -30, A F -4 5 3 6, M T /11261 M 30-35 a. Trauma y trepanación

C - 3 1, A F -108, MT/141 M 12-16 a. Criba orbitalia y periodontitis

TOTAL 22M /9F 31 individ. Estado patocen ótico

233
ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Ad
tampu durante el im perio inca: siglos X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do M useu de A rqu eólo i
E tnologia. São Paulo, 11: 227-242, 2001.

esta parte carece de reacción periosteal. El ondulante y reabsorción ósea periosteal que
borde de la lesión es “redondeado”, recto y se extienden por el borde destruido. Esta
fino (Vide Fig. 4). lesión viene de adentro hacia fuerta y afectó a
3) El caso 10 es otro masculino de ± 50 los cornetes nasales. Presenta fractura nasal y
años de edad. Exhibe lesión osteolitica del destrucción total del vómer post-mortem con
palatino izquierdo con reborde redondeado, reborde fino y recto. Muestra, además, fuerte
desgaste de los segundos premolares
y total obliteración de los alveolos
molares.
4) El caso 16 es masculino >50
años de edad. Este cráneo presenta
lesión litica del palato que erosionó la
espina nasal posterior premortem.
Muestra reborde suave, ondulante y
redondeado con leve reacción ósea
periosteal. Destrucción del seno
maxilar derecho con reacción ósea
periosteal que perforó la base de la
orbita derecha y alveolos de molares
y premolares obliterados. Los incisi­
vos cayeron post-mortem. El arco
zigomàtico izquierdo y mastoides
derecha están fracturados post­
mortem. Coloración verde en la
superficie alveolar de molares dere­
chos obliterados. El borde es “redon­
deado” y ondulante.
5) El caso 18 es un masculino de
40-50 años de edad. Expone lesión
litica extensa abarcando los senos
maxilares y destrucción parcial del
palatino con reabsorción periosteal
de borde ondulante y redondeado;
obliteración alveolar de molares por
periodontitis. Presenta una apófisis
mastoides izquierda fracturada
postmortem de borde fino y recto,
espina nasal izquierdo y cóndilos
fracturados postmortem y ambos
cóndilos también fracturados post­
mortem.
6) El caso 28 es femenino de 25-
30 años de edad. El cráneo exhibe una
lesión litica en forma de “U” abierta
localizado en el borde posterior del
palatino con reabsorción ósea, este
Fig. 4 - Lesión litica localizada atribuida a LTA en borde es ondulante, redondeado y la
cráneo masculino mayor de 50 años de edad procedente lesión emerge de adentro hacia
de Makat-tampu, caso C-16, AF-2083, MT/13760. La afuera, afectando los cornetes
lesión ósea se inicia desde el borde posterior del palato nasales. Los cornetes se han perdido
y posee vascularización de los rebordes. postmortem. Sólo existen los raigones

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ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: sig lo s X V -X V I, valle del Bajo Rím ac, Peru. Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 2 2 7-242, 2001.

de los 2 primeros molares por fractura post­ techos de caña o quincha. Este valle era el más
mortem. rico de la costa central debido a la cantidad de
7) Tales procesos osteoliticos, localizados restos arquitectónicos de barro, canales y
entre las suturas interpalatina y maxilo- campos de cultivo descritos por Middendorf
palatina, formando um arco de bordes sinuo­ (1894).
sos con vascularización que partió desde los En el siglo XVI, la ecología humana del
cometes nasales inferior y medio posterior valle del Bajo Rímac comprendía un extenso
hacia afuera, serían evidencias de quistes bosque de algarrobos, caña-bravas, chilcos,
metastáticos y de una enfermedad infecciosa huarangos, lúcumos, molles, paltos y pacaes,
que comprometió seriamente el revestimiento entre otros, que llegaba hasta las estribaciones
mucoso compatible a LTA. de los cerros de Ate, Vitarte, Huachipa,
8) Esta casuística representa el 2,07% del Lurigancho y Comas que permitía la vida de
conjunto, distribuidos en 4 hombres y 1 mujer. venados (Odocoileus virginianus), camélidos
Estos son adultos mayores de 30 años de edad {Lama glama), perros (Canis fam iliaris),
con problemas dentarios, manifestando princi­ zorros {Pseudolopex sechurae), monos,
palmente perdida de molares, caries y perio­ tigrillos, fauna volátil, batracios, roedores,
dontitis que alcanzaron hasta la cavidad pulpar. serpientes y lagartijas, entre otros. Además,
Un caso fue dudoso C-17 (Vide Tabla 2). los hombres vivían de la agricultura, artesanía,
pesca y mantenían una compleja red de
canales de irrigación, hechos de cantos
TABLA 2 rodados y barro, y en sus margenes crecían
Representación sexual de la serie
Makat-tampu con destrucción copiosamente plantas de caña o carrizo y
ósea sugestiva a LTA quincha (Rostworowski 1978). Asimismo, este
valle mantenía diversas zonas fangosas y
Sexo M u e str a LTA %
lagunas en el litoral donde puede haber vivido
M asculino 169 4 1,65 una abundante cantidad de mosquitos y
F em en in o 72 1 0,41 flebotomíneos que atormetarían cotidianamen­
te la vida de los agricultores. Actualmente, el
D udoso - 1 -
bosque de Lima se ha fragmentado formando
TOTAL 241 5 2 ,0 7 relictos principalmente en las zonas de Ñaña,
Chosica y Matucana, donde pululan tales
insectos hematófagos.
Com entario
Los incas, al mando de Tupac Yupanqui,
conquistaron a los valles del Rímac, Chillón y
Según la revisión de literatura no existían Lurín hacia 1470 aproximadamente, incorporan­
trabajos de paleopatología ósea concerniente do al dios Pachacamac en el panteón Tawan-
a LTA en la prehistoria peruana (Lombardi tinsuyo. Para el control del valle, instalaron 4
1994, Verano 1992, Cockbum 1988, Allison tambos, siendo Makat-Tampu uno de aquellos
1984). Su antigüedad estuvo refrendada por la centros administrativos. Consecuentemente,
copiosa iconografía de la cultura Mochica, miles de hombres y sus familias fueron transía-
siglos I-VII D.C. Mas esta evidencia indirecta dados al valle de Lima y convertidos en
no era suficiente. Así, nuestro estudio paleo- esclavos o mitmaq para la ejecución de
patológico sugiere la posibilidad de LTA de labores agrícolas. La craneometría efectuada
forma mucosa en una población agrícola que por Ericksen (1951) señaló que estos grupos
vivió en el valle bajo del Rímac durante la procedían de la región chaupiyunga del valle
instalación administrativa del imperio Inca, Chillón (Macas y Zapán). No obstante, en la
siglos XV-XVI. En aquellos tiempos, este mayoría de los sitios de pescadores y agricul­
territorio albergaba unos 150,000 habitantes tores del Rímac aparece un tipo de cerámica
(Rowe 1946). Tales pueblos indígenas estaban ampliamente difusa denominado Huancho
asentados en la vera de los ríos y canales (Iriarte 1960). Las poblaciones humanas
donde construyeron sus casas de adobón con ligadas con esta cerámica procedían de la

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ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA. J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: siglos X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do M useu de Arqueologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 227-242. 2001.

sierra de Lima, probablemente de Yauyo y marcas. Ellos administraban el agua desde la


Huarochiri que llegaron juntos con los Incas. bocatoma, distribución, reparación y hasta la
De todos modos, se demuestra el modelo limpieza de las acequias. La importancia de los
social y político del control de grupos mitmaq canales rebasaba el aspecto económico y
tanto horizontal como vertical para el dominio muchos entierros humanos fueron deposita­
de su extenso territorio (Espinoza 1990). Por dos próximo a estas estructuras hidráulicas
tanto, los grupos asentados en el bajo Rímac, como en Maranga.
incluyendo los hombres de MT, formaron parte Este sistema de canales implicó desde
de la esfera administrativa Inca para cultivar fines del período Intermedio Temprano (siglos
las tierras del sol, anteriormente propiedades VI-VII D.C.) el incremento demográfico en el
de Pachacamac (Newman 1947, Bueno 1992). valle, y como consecuencia construyeron la
Asimismo, este valle comprendía a los ciudadela de Cajamarquilla que permitió su
señoríos de Armatambo, Carabayllo, Chucuito, articulación económica tanto con las pobla­
Herbay, Huancho, Limatambo, Lati, Vitarte, ciones serranas como las costeras. Sin embar­
Maranga, Ñaña y Puruchuco, que anteriormen­ go, había una vieja rivalidad política por el
te estaban organizados en comunidades o dominio del valle bajo del Rímac que se
marcas bajo el control político de los Ichimay intensificó en la época Inca entre los señoríos
(Rostworowski 1978, Bueno 1992). En este de Lima (Ichimay) y los de Canta y Yauyos. Y
valle vivían poblaciones mayormente agricul­ así, MT fue ocupado continuamente hasta el
tores y también tenían pescadores, artesanos Horizonte Tardío (siglos XV-XVI). El cemen­
y comerciantes al servicio de un señor (Ramirez- terio estudiado, asociado a la última ocupa­
Horton 1982). Estos grupos a la llegada de los ción, permitió inferir que el control del agua era
españoles tenían una organización sociopo- estresante y producía tensión social.
lítica en pachacas. Es decir, en grupos de La patocenosis de MT confirmó que
aproximadamente 1,000 habitantes. Se confor­ aquellas poblaciones sufrieron diversos
maban tanto por mitmaccuna o yacuaz (grupos transtornos traumáticos probablemente debido
foráneos) y huariccuna (grupos nativos de a las luchas comunitarias para el control del
estas tierras). A la vez, estaba dividida en elemento líquido, produciendo lesiones naso-
territorios o marcas, cada territorio era relativa­ frontales y mutilaciones, las trepanaciones
mente autosuficiente, tenía su propio centro fueron una de las implicancias terapéuticas de
público y templo o huaca, donde se realizan estos traumas. Por la presencia de hiperostosis
diversas actividades económicas y religiosas. porótica y criba orbitalia se desprende la
Cada sector del valle tenía su acequia principal exposición a infecciones, produciendo diver­
y otros subsidiarios bajo el control de un sas enfermedades diarreicas y anémicas
“señor de pachaca” con la correspondiente (Altamirano 1994). Asimismo, la frecuencia de
población campesina (Shady 1982). Los caries dentaria y periodontitis son indicadores
curacas locales rendían tributo a Taulichusco, de deficiente higiene bucal y dieta hiperca-
quien era el “Señor del valle” o huaranga con lórica, produciendo abscesos, piorrea, quiste y
residencia en Pachacamac y administraba la sarros. Por otro lado, la higiene de los alimen­
provincia de Lima durante el imperio Inca. tos no parece haber sido buena, y asimismo,
Los hombres yungas se dinamizabrn hacia los cuyes, perros, roedores, mosquitos y
las lomas, chaupiyungas y florestas donde piojos convivían dentro o en la periferia de sus
tenían campos de cultivo, corrales, chozas y aldeas.
criaban llamas (Rostworowski 1992). El contex­ Respecto a las lesiones liticas de la región
to biocultural de la marca de MT confirma que naso-palatina observadas en los 5 casos (C-6,
eran grupos agrícolas y subían a las quebra­ C-10, C-16, C-18 y C-28) de MT, permiten
das donde tenían chacras y controlaban sugerir una compatibilidad para LTA de forma
rebaños de camélidos. Así, la vida cotidiana mucosa. Asimismo, el diagnóstico diferencial
transcurría ligada al control de una serie de de estas lesiones también puede confundirse
canales, considerados ríos, como los de con esporotricosis, hanseniasis, mieloma
Maranga, Surco y Huatica que irrigaban otras múltiple, paracoccidoidomicosis, sífilis,

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ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: sig lo s X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 2 2 7-242, 2001.

tuberculosis y traumatismo (Altamirano 2000, económicas de la espundia. Nuestro estudio


Ortner 1992, Verano 1992). Empero, la caracte­ confirma que los campesinos incas conocían a
rística esencial de esta lesión litica para LM es la LTA. Si confirmada su prevalencia elevada,
que ella emerge del interior del hueso palatino los citados autores podrían estar correctos.
y cometes nasales, siendo el reborde óseo de Sobre el problema de las mutilaciones
forma ondulante, suave, homogéneo y con como acto curativo en los cráneos de MT, el
reabsorción periosteal, tal como fueron análisis revela la ausencia de marcas de corte
observados en la muestra del CPq-HEC en el esplacnocráneo. La discusión de esta
(Altamirano et al. 1999). Asimismo, en este cuestión también está limitada por la carencia
período arqueológico no se tenían drogas de tejido cutáneo en la muestra estudiada. Sin
específicas para detener el mal, por tal motivo embargo, diversos estudios confirman las
los enfermos de aquellas épocas habrían prácticas quirúrgicas y mutilaciones por
alcanzado severidad de casos como la muestra aquellos pueblos y en MT tenemos el ejemplo
observada. El tratamiento endovenoso a base del caso C-30, hombre de 30-35 años de edad,
de tártaro emético o terapia antimonial para que había sobrevivido a una trepanación del
casos de LM recién empezó en 1911 con los cráneo. Tales operaciones delicadas, elabora­
trabajos de Gaspar Vianna en Rio de Janeiro das por médicos andinos o hampicamayoc, se
(dTJtra e Silva 1915). realizaban con muchas destreza y maestría,
Por otro lado, la frecuencia de 2,07% de la pudiendo también haber sido realizados como
muestra de MT constituye um problema de recurso terapéutico para LTA.
interpretación de cementerio arqueológico. En síntesis, nada sabemos sobre la
Este alto porcentaje de lesiones mucosas paleopatología ósea de LTA en períodos
comprometiendo la estructura naso-palatina anteriores a la dominación Inca y menos sobre
puede sugerir que había una alta prevalencia otros sitios contemporáneos al imperio de los
de LM por leishmania del complejo L.(V.) Incas. La reconstrucción de la paleoepi-
braziliensis “in extenso” durante la ocupación demiología de LTA en el territorio andino es
Inca en el bajo Rímac. Ya que el comportamien­ compleja y esperamos seguir hurgando en esta
to clínico de LTA es básicamente piel y raras tarea. Finalmente, nuestro estudio abarcó
las infecciones óseas (Marzochi et al. 1999). solamente una parte reducida del inmenso
Por tanto, esta tasa sugiere la probabilidad que territorio dominado por el Tawantinsuyo y
habían muchos individuos con la infección esperamos contribuir al conocimiento de la
utósica. historia antigua del valle del Rímac.
Además, refuerza la hipótesis de que esta
población agrícola se desplazaba a áreas de
transmisión de LTA en la sierra de Lima o a la Conclusiones
región amazónica, donde serían picados por
flebotominos infectados, para el intercambio 1) Según los parámetros y diagnósticos
de coca, ají y otros productos serranos, o para utilizados en este estudio, la serie esqueletal
trueque de plumas de guacamayo, de monos y del sitio Makat-tampu, Lima, reveló que 2,07%
plantas medicinales, tal como describen los presentaron características compatibles a LTA
estudios arqueológicos y etnohistóricos. Sin de forma mucosa. Existiendo dos grupos de
embargo, a pesar de la densa población estas lesiones:
humana asentada en este valle, la muestra
- En la cavidad oral, exponen destrucción
estudiada constituye una parte muy reducida. parcial y/o total del borde posterior del hueso
Entretanto, se puede sugerir la hipótesis de palatino que puede ser leve o profundo en forma
grupos migrantes o mitmaq que diseminaron la de “U ” abierta, forma ondulante hasta la sutura
LTA a diferentes regiones del imperio. Le cruciforme con reabsorción ósea y vasculitis.
Incluso, afectó la espina nasal posterior, la base
Moine & Scott Raymond (1987), basados en
del esfenoides y los alveolos dentarios.
estudios etnohistóricos, fundamentan que la - En la cavidad nasal, presentan destrucción
expansión Inca para la amazonia estuvo parcial y/o total de los cornetes nasales inferior
limitada por las consecuencias políticas y y m edio, ausencia de vómer, com prom etiendo el

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ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M.C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu -jurante el im perio inca: siglos X V -X V I, valle del Bajo Rím ac, Peru. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia . São Paulo, 11: 227-242. 2001.

seno maxilar por efectos secundarios con mas, otitis, periodontitis y traumatismo, y
reacción ósea periosteal que en casos severos posiblemente tuberculosis y paracocci-
perforó la base de una de las órbitas. dioidomicosis.
2) Los resultados sugieren que la preva-
lencia de LM era alta en el valle bajo del Rímac.
Agradecimientos
El antiguo hombre peruano podría haber
adquirido el mal durante su desplazamiento a
la región yunga (Huarochiri y/o Canta) y la Este trabajo no hubiera sido posible sin la
floresta amazónica (Huánuco, Pasco y/o valiosa colaboración de la Dra. Sheila Men­
Junín). Este modelo continúa ocurriendo en la donça de Souza, por la amabilidad y sugeren­
actualidad. Sobre las infecciones cutánea y cias puntuales en la corrección del texto final y
muco-cutánea solamente tenemos las referen­ Dra. Keyla F. Marzochi, por su cariño, apoyo
cias iconográficas del arte mochica, la etnohis- logístico y emotivo en el Centro de Pesquisa
toria y la investigación filológica, reforzando el Hospital Evandró Chagas, Fiocruz, Rio de
presente estudio. Janeiro. Asimismo, a la Escola Nacional de
3) Alternativamente, la ausencia de una Saúde Pública de la Fiocruz que fue el alma
correlación positiva entre el traumatismo facial mater durante mis estudios de doctorado. En
(mutilación) y las lesiones sugestivas con LTA Lima, tuvimos la asesoría de los Drs. Gino
forma mucosa permite plantear dos hipótesis: Lombardi y Uriel García. Asimismo, de la Dra.
Hilda Vidal, jefe del Departamento de Antropo­
- Si hubiera mutilación en el rostro de los logía Fisica y de la arqueóloga Elba Manrique
enfermos de MT, no quedaron marcas de corte
del MNAAH, Perú, quienes permitieron el
en el tejido óseo, a diferencia de las trepana­
ciones craneanas. acceso al material paleopatológico.
- La alta frecuencia de traumatismos Finalmente, este estudio es consecuencia
encefalo-craneano de los MT debía ser conse­ del proyecto “Estudio de Leishmaniasis en
cuencia de la fuerte tensión social causada por el Poblaciones Humanas del Antiguo Perú y su
dominio Inca en el valle del Rímac, produciendo
Influencia en el Proceso Cultural Andino” (SG-
una alta violencia por conflictos inter-cam-
p91.134). Se inició en 1992, tuvo apoyo del Dr.
pesinos por el control del agua y la tierra.
Roberto Briceño-León y soporte financiero del
4) La patocenosis de Makat-tampu, Programa Especial de Investigaciones y
además de lesiones sugestivas a LM, com­ Entrenamiento en Enfermedades Tropicales
prendía otras como: abscesos dentarios, UNPD/Banco Mundial/OMS, CONCYTEC
caries, criba orbitalia, “goela-de-lobo”, osteo- (Perú) y CNPq (Brasil).

ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M .C.A. Lytic skull lesion by


Leishmaniasis at Makat-Tampu during the Inca Empire: XV-XVI centuries, Rímac
Valley, Peru. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 227-242,
2001.

ABSTRACT: Paleopathological evidence of mucosal alteration deforming


human population of ancient Peru suggests the presence of mucosal leishma­
niasis (LM) in the agricultural population living near the endemic area between
XV-XVI centuries. The pathological anatomy studies was divided in two
phases: 1) pattern of mucosal form in human crania was defined among
selected patients, from the Research Center Hospital Evandro Chagas (Fiocruz),
with clinical history and destruction of the facial bones, principally oro-nasal
cavity. Seven cases were selected. All caused by Leishmania (V.) braziliensis:
6 men and 1 woman with age up to 35 years old. X-ray pictures and axial
tomography of the cranium were performed in order to define the pathologic
pattern in the bones; 2) archaeological material was analyzed and compared in

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ALTAMIRANO, A.J.E.; MOREIRA, J.S.; MARZOCHI, M .C.A. Lesión litica craniana por Leishmaniasis en Makat-
tampu durante el im perio inca: sig lo s X V -X V I, valle del Bajo Rim ac, Peru. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 11: 22 7 -2 4 2 , 2001.

241 skulls from the Department of Physical Anthropology of the National


Museum of Anthropology, Archaeology and History, Lima, Peru. Material was
well preserved and we identified five cases (4 men and 1 woman) with age up
to 35 years old presenting naso-palatine destruction, compatible with mucosal
form defined by clinical casuistic. It proceeded from the Inca cemetery of
Makat-Tampu, Rimac Valley. The rate of mucosal lesions (2.07%) compatible
with ML may suggest that there was a high prevalence of L. braziliensis
complex infection in the pre-hispanic times and confirm our hypothesis. This
study was based on biocultural focus, aiming to reconstruct the quotidian life
of the agricultural population of the Rimac valley during the Inca occupation.

UNITERMS: Paleopatology - Leishmaniasis - Incas - Paleoepidemiology


- Peru.

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R ecebido pa ra pu b licação em 15 de outubro de 2001.

242
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 2 4 3-260, 2001.

‘MEANING IN A BORORO JAGUAR SKIN’

Gordon Brotherston*

BROTHERSTON, G. ‘Meaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de Arqueologia


e E tnologia, São Paulo, 11: 243-260, 2001.

RESUMO: Este artigo propõe analisar e interpretar uma pele de jaguar


bororo exposta na Mostra Brasil +500 em São Paulo no ano de 2000. De
acordo com o autor, este tipo de pele pintada conhecida como Adugo biri
demanda muito mais atenção por parte dos especialistas do que recebeu até o
momento. Trata-se, com efeito, de um texto visual, representando e correla­
cionando números com bastante sofisticação incorporando paradigmas da
cultura bororo e desafiando o especialista na sua decodificação. Analisando a
pele à luz do que conhecemos a respeito da cultura bororo, o autor oferece
uma contribuição importante à compreensão da complexidade da “mentali­
dade” deste grupo.

UNTTERMOS: Bororo - Simbolismo do jaguar - Adugo biri - Etnoastronomia


- Etnomatemática.

The Mostra organized in São Paulo in 2000 American vertebrates, notably mammals and
to mark the most recent 500 years of Brazilian birds, their behaviour and anatomy (1893).
history had the fortunate effect of bringing He was helped in his work by an expert
together and repatriating (if only temporarily) skinner of animals later employed by Wallace
exquisite artifacts that are otherwise housed ( ‘N atterer’s hunter Luiz’; Wallace 1889:77).
today in museums in Coimbra, Copenhagen, In the case of the jaguar skin acquired from
Vienna, Dresden, Berlin and other European the Bororo, we may assume that the skinning
cities. Prominent among* these artifacts was a had already been done by them since its
jaguar skin, 130 cm in length, acquired by inside surface is intricately decorated with
Johann Natterer during his sojourn in the native designs in red and black, being of
interior of Brazil (1817-35), which is reported to the kind known in their language as Adugo
have reached Vienna before 1823 (Fig. 1; Kann biri.1
2000). It was obtained from the eastern Bororo, Bom not long after Natterer returned to
centrally placed as they are in Matto Grosso, Europe, the Bororo chief Ukeiwaguuo, of the
between the Paraguay and Amazon river
systems. Already then, these people were being
harried by badly-behaved prospectors of (1) Within the last few decades, a further skin of this
European extraction. kind has been donated by the Bororo to the Museu
A forerunner of Darwin and Wallace, Rondon at the UFMT, Cuiaba (catalogue number 89/
N atterer pioneered research into South 002.526). The triangle/losange shape o f its units and its
name (Ikuie adugo - face/eye/star painting) connect it
with the night sky; and in introducing a characteristic
assymetry (9 9 9, 9 9 9; 9 9 9, 9 10 10) it correlates
(*) U niversity o f E ssex, Inglaterra; Stanford synodic and sidereal moons with the night sky number
U n iversity, EUA . eleven, in the formula; (27 x 3) + 29 = 110.

243
IT. 2 4 3 -2 6 0 , 2 0 0 1 .

Fig. 1 - The Natterer jaguar skin (after Kann & Riedl Dorn 2001: 246-7). Thanks to Johannes Newath for his help in tracking down this source.
BROTHERSTON, G. 'M eaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo,
BROTHERSTON, G. ‘M eaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo,
11: 2 4 3 -2 6 0 , 2 0 0 1 .

Pawoe clan, decided to collaborate with the volume Le Cru et le cuit (1964), it is a Bororo
Salesian missionaries, who began to arrive in his narrative (WS 198-209) that provides the basic
territory towards the end the 19th century, in reference and foundation myth as M 1. Indeed,
order to record native knowledge ever more many have wished to link the binary preference
threatened by invaders from outside. A funda­ of L évi-Strauss’s whole Structuralist
mental corpus of Bororo narratives recounted by philosophy to his understanding of Bororo
Ukeiwaguuo, many of which focus on the figure logic and social practice. At any event, the
of the jaguar, was published by Colbacchini in effects of this interpretation are overwhelming
1925, along with an Italian translation.2 in such cases as Maybury-Lewis’s Dialectical
Ukeiwaguiio’s scholarly impulse was continued Societies, and play a key role in the detecting of
by Akirio Bororo Kejewu,3 better known to many ‘dialectical’ opposition between notions of wild
as the resistance leader Tiago Marques and social, lower and higher, instinct and soul,
Aipoburéu, who before his death in 1958 guided random and reasoned, and so on in Crocker
Colbacchini’s Salesian successors Albisetti and (1985:280), Viertler (1991) and others. In Maira
Venturelli in compiling the monumental Enciclo­ (1976), the Brazilian writer-anthropologist Darcy
pédia bororo (1962-1976. = EB). Volume 2 Ribeiro extended the Bororo binary model to
contains his narratives, which differ intricately cover the Tupi, among whom Akirio comes to
from Ukeiwaguiio’s; and a good selection of be numbered; indeed, Ribeiro went so far as to
those published here and previously appears in say that Akirio was the true author of the book:
English in Wilbert and Simoneau (1983; = WS). “Tiago Marques Aipoburéu...é quem o escre­
Besides Akirio’s narratives (vol.2), the Enciclo­ veu” (Sá 1993:84; see also Sá 1997).
pédia reproduces painted jaguar skins - Adugo Over the last two decades, important work
biri - of the kind found by Natterer, describing in on Bororo astronomy and concepts of space­
detail their significance and the circumstances of time has been done by Stephen Fabian (1982,
their production (vol.l, pp. 356ff; 229ff). 1992, 1998). Living in Garças and Meruri, Fabian
As for readings of this evidence, narrative has been able to show how exactly the Bororo
and visual, by outsiders, the Bororo are perhaps continue to observe the sky and how intricately
second to none in native America, in terms of its movements are correlated with social practice.
the systemic considerations they have Going beyond the bounds of Structuralism, he
provoked. In Tristes tropiques (1955), Claude has been concerned with the validity of astrono­
Lévi-Strauss made quite clear the profound mical observation in its own right, and something
effect that living among and conversing with not necessarily reducible to mentalistic patterning.
the Bororo had had upon him, an effect then Yet only in the Enciclopédia - the work of
transmitted through his book on to large areas the Bororo themselves in the person of Akirio
of western thinking, in the first instance - do we find concerted attention paid not just
particularly with regard to the intellectual to the conceptual structures and mentalité of
capacity of peoples whom Montaigne had the Bororo but to the visible language manifest
famously characterized as having yet to be in and on their artifacts, and to its wider
taught the A.B.C. (Essais 1.31). Lévi-Strauss’s relevance and significance. When not ignored
subsequent four-volum e m asterw ork by the Structuralists as ‘non-oral’, this langua­
Mythologiques (1964-71) sets off from and ge has been read according to that philoso­
insistently returns to the Bororo. In the first phy’s principles of non-referentiality.4 It is

(2) The variants in the 1942 Portuguese version of (4) See, for exam ple, Lévi-Strauss 1964:246-7. I am
these texts are com mented on by Baldus. Later thinking here o f his analyses of designs made by
versions are also found in ‘Bôe bacarô. Algumas other members o f the G e-Bororo fam ily, the
lendas e notas etnográficas da mesma tribo [Bororo]’, Caduveo, w hose sites o f occurence (e.g. face-
in Rondon 1948; and in Fabian 1992. painting) are comparable with those o f the Bororo
(3) Akirio contributed w idely to preserving Bororo discussed here. O f particular interest is his apprecia­
know ledge: see his contributions to toponym y in tion o f their formal logic and intricate asym m etries:
Drum m ond 1965. see Ribeiro 1980.

245
BROTHERSTON, G. ‘Meaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo,
11: 2 4 3 -2 6 0 , 2 0 0 1 .

epitomized in the kind of framed and hence The skins prepared for this ceremony are
textual statement found on the Natterer skin. the Adugo biri, a term which means both
Considering it in the detail its formal com­ ‘jaguar skin’ and ‘painted skin’; the one
plexity demands suggests other epistemo- collected by Natterer is an especially fine
logical approaches, helps to neutralize the example. The designs on the inner surface are
constraint of imported western paradigms, and normally drawn, with the aid of a ruler, in two
in turn points to little-considered areas of colours, red and black, obtained from urucu or
tropical American logic and philosophy. At the achiote dye (nonogo) and charcoal (irogodu).
same time, placing it in context allows for its This pair of colours, red and black, is used to
highly condensed numerical and formal logic - distinguish between the Bororo subclans and
its ‘truth’ in this sense - to be drawn out into is said to have adorned the skin, when new­
the larger field of cosmogony and society. born, of Adugo’s twin sons, the Bakororo-
doge, who guard the west and east entrances
of the settlement. The format characteristic of
Jaguar and its skin the Adugo biri designs is a central column
with glyph-like units arrayed to either side,
As the material source of the Natterer skin, which, physically highlighted in the Barege
the jaguar Adugo plays multiple roles in Ekedodu parading of the skin, effectively
Bororo cosmogony and society. A figure of correlates vertebrate anatomy with the east-
fun that can be fooled even by a grasshopper west layout of the Bororo settlement. In so
(WS 166), he is also the founding father of the doing, it comes brilliantly to exemplify Bororo
people. Before the arrival of the ‘Brazilians’, he notions of bodily and social reconstitution,
was the most feared predator and enemy, and likewise available in the Portuguese term for
yet can be lover and kin. Intensely telluric, he the feast (refeição; cf. Plitek 1978; Viertler
travels through the sky, and has an undeniable 1991).
astronomical dimension (Fabian 1992). Invol­ The corpus of Adugo biri designs to
ved with all eight clans, he has a special which the Natterer skin belongs may be read
relationship with the ‘first’ of them, whose as a small yet highly resonant compendium of
name Badajebage Xebeguiuigue is glossed Bororo and Amazonian culture more generally.
‘constructors of the village’ (Fabian 1982:298). Since they are found elsewhere in the daily life
The logic embodied in the Bororos’ of the Bororo, the designs are as it were
relationship with Adugo underlies many of framed and re-represented here in the Barege
their rituals and ceremonies, most of all the Ekedodu ceremony, as in a reflexive intellectual
celebration known as Barege Ekedodu. statement anticipated in the double meaning of
Described at length in the Enciclopédia (EB Adugo biri (jaguar/painted skin).5 For the
1:229ff), this ‘feast of the wild’ is staged to Adugo biri lexicon draws on images that adorn
honour the hunter who kills a jaguar single- musical instruments (akodo), textiles (aroia),
handed, as a way of compensating the rela­ penis sheaths (ba era), palm-fibre fans (ba-
tives of a Bororo who has recently died (‘como kureu), and body and face painting in general
retribuição aos parentes de algum finado, por (iaroe e-tawujedu, boe e-ejiwu)', and these
ocasião da morte do mesmo’). It involves images in turn are explicitly acknowledged to
feasting, women and men dancing in pairs, have been derived from the markings on the
songs sung in honour of the jaguar, and the skin, scales and feathers of other species,
elaborate decorating of the inner surface of its primarily the jaguar. Hence, the Adugo biri
skin. Held at a 45 degree angle, the painted
skin is then paraded along the east-west path
that separates the moities of the settlement,
(5) The term has now com e to mean writing as such,
and kicked from behind. It becomes the focus
an analogy also seen in B orges’s remarkable story ‘La
of the song ‘Animal skin that speaks’ (Barogo escritura del d ios’, in which a Maya priests ‘reads’ a
biri batarureu) which plays on the multiple jaguar skin. For other tropical American exam ples o f
significance of the jaguar adugo. the painted jaguar, see Schultz 1962.

246
BRO THERSTON, G. ‘M eaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo,
11: 2 4 3 -2 6 0 , 2 0 0 1 .

come to epitomise a whole philosophy of


origins and social practice, in which the jaguar
features large as both founding father and the
sky spirit embattled with sun and moon.
Listed as eleven, in alphabetical order, in
the Enciclopédia bororo, the actual Adugo
biri designs are minutely classified in terms of
provenance and clan affiliation.6 Several fall
into obvious pairings with respect to skin-
cover source and type of patterning. They are
all defined by one or other of two suffixes
which, though phonetically close as atugo and
edugo, point to categorical difference. O f the
eleven listed, eight belong to the first category Fig. 2 - Aije adugo: a) source o f glyph unit in
and three to the second. jaguar fur.

atugo: Aije, Aroe eceba oiaga, Aroia, Ato,


Bokodori bo,* Enogujeba, Kurugugwa oiaga,
Okoge bakororo
(*) in two colours, red and black (coreu akirireu
& kujagureu)

edugo: Burego dureuge, Iwara arege,


Kogaekogae doge

Heading the Enciclopédia list o f designs


in the first category (atugo) is the Ai-je, which
adorns the vibrating musical instrument o f that
name, the ‘bull-roarer’ (zunidor in Portu­
guese), and it belongs to the Aroroe clan. Its
unit consists o f a rounded square with an
inner fourfold division, quite in the style o f a
Maya hieroglyph, said to represent the
markings on a jaguar skin (Fig. 2). It is read as
the monstrous roaring sound produced by the
instrument in imitation of a large feline (ai-).
Socially, the fours recall the 4+4 clan structure
of the Bororo settlement, to either side o f the Fig. 2 - Aije adugo: b) typical Adugo biri o f
sun’s east-west path, and (in the example Aije type.
given in the Enciclopédia) the more complex
12+12 arithmetic of the sub-clans. In similar
fashion, the Aroia design derives (etymo-
logically at least) from textiles and in fact
(6) Given the special significance o f the number
eleven , in the Adugo sky narrative and on the interweaves, in decidely textual fashion, both
Natterer skin itse lf (see b elow ), it is tempting to atugo and edugo motifs (the example in the
think that it also signifies as the sum o f this list. The Enciclopédia combines Ato with Burego - see
ex isten ce o f designs other than those in the actual below).
E n ciclo p éd ia catalogue make this unlikely, however:
The remaining six designs that have the
see for exam ple the skin (p.228) that has Iwara
Arege m otifs in the upper area and Burego m otifs in
atugo suffix fall readily into three pairs, in
the lower. A prelim inary account o f rainforest terms of both form and zoological origin. The
arithmetic is included in Closs 1985. tail feathers (oiaga) of the Aroe eceba or

247
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Xerae (harpy eagle) and the Kurugugwa


(caracarai hawk), the pair of predators proper
to the Apiborege clan who helped Adugo
banish sun and moon from the sky, are defined
in flag-like units that laterally invert left to
right, fall into upper and lower halves (Fig. 3a),
and may intimate the principle of diagonal
correspondence also basic to the placement of
clans and sub-clans within the settlement. The
pair of feathered birds is complemented by the
carapaced turtle and armadillo (Ato, Bokodori),
and two scaly fish (Enogujeba, Okoge). The
designs characteristic of each of these further
pairs are no less susceptible to the same order
of logical and arithmetical analysis, especially
the armadillo whose clearly-defined body
bands prompted the latinate epithet ‘novem-
cincta’ and serve to align countable units
horizontally (Fig. 3b). Together they invite us
to explore the story common to the vertebrate
Fig.3a - Feather. Aroe eceba oiaga (eagle).
life-forms whose boundary with the world is
scale, carapace, feather and, first and last, the
fur of the singular jaguar.
The three Adugo biri designs that have
the edugo rather than atugo suffix stand out
visually as different from the first. They all
have glyph-units that consist of a vertical pair
of isoceles triangles touching at their apexes,
which gives them an ‘X ’-like appearance, and
which are arrayed horizontally in rib-like rows
(Figs. 4, 5). They derive from the body and
face paintings of the sky spirits: the Burego
and Kogaekogae, who revealed the names of
the stars, and the Iwara Arege who ‘measure’
and tell their identities (WS 51-4. Iwara may be
the rod or ruler used in painting the Adugo biri;
in the sky, it aligns the three stars or young
herons of Orion’s Belt, Bace iwara arege). All
three belong to the Badajebage Xebeguiugue
clan, to whom the star names were revealed.
The three edugo designs are distinguished
one from another by the type of triangles they
respectively have. The Burego triangles are Fig. 3b - Carapace. Ato (turtle).
solid, while the other two types are hatched. In
the Iwara Arege design this hatching normally
runs along the diagonal formed by the two
triangles from lower right to upper left (\); in specifically identified as being of the Kogae­
that of the Kogaekogae it runs along one or kogae type, since the hatching in its triangles
other diagonal (\, /) (Fig. 6a, b). runs parallel to either diagonal of the X units.
The Natterer skin can be confidently Although such a skin is not illustrated in the
placed in the edugo group, and may be Enciclopédia (perhaps because of its close

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Fig. 4 - Buregodurege edugo. Fig. 5 - Iwara arege edugo.

Fig.6 - Double triangle or ‘X ’ units: a) Iwara arege; b) Kogae kogae; c) variant o f b); d) variant o f b).

similarity to the Iwara arege design), the cross- emphasizes the bargain made with the sky
hatching typical of it is found on other Ko- spirits that there be more jaguars to hunt, the
gaekogae objects that are illustrated, for beast feared yet desired as anagnorisis. Fully
example the wind instrument wari (p. 51). Of in line with Bororo ideas of reconstitution, the
all the Adugo biri known, or that have been aroe version points rather to the material skin
reproduced, this Kogaekogae example is that will clothe and protect the soul on its
perhaps the most magnificent. journey beyond death, that will indeed re-
According to the Enciclopedia, the embody and re-articulate that soul, complete
Bororo have mutually non-exclusive expla- with teeth and claws, necklace and crown. In
nations of what the Barege Ekedodu ceremony the ceremony, the one who hangs the skin
means, and of the particular significance of the from his neck also wears the jaguar's teeth and
Adugo biri within it (EB 1:235). These expla- claws. Hence the visual and numerical interest
nations belong to shamanic modes of thought. evinced by the Adugo biri corpus, in the
or philosophical traditions, identified in that longer story of the vertebrate body and its
source by the terms bari and aroe. The former coverings. Likewise, the central column and

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anatomical format recall the body-frame thanks Numerically, and set in pairs as they are,
to which Meri the sun was able physically to the caves or holes explored by Adugo’s bride
reconstitute his brother the moon Ari, after the correspond to the head orifices - the sites of
latter had been torn apart by Adugo. the senses (ears, eyes, nostrils) that she
Further insight into just these Bororo needs fully to identify her future husband,
notions of precedent, numerical and con­ the ‘speaker’ and owner of the singular
ceptual, is offered in the accounts of how the mouth (commemorated in the Barege ekedodu
jaguar became the forefather of the tribe, and song of the ‘onça falador’). Moreover, in the
how he put the sun and moon to flight. For in classic proportion 7/9, the orifices of the
his foundational role, Adugo both engenders whole body might be insinuated in the
the hero Twins known as the Bakororo-doge, penetration of Adugo’s bride that goes on in
who clear for the Bororo their space on earth, the caves, first thanks to his predecessors,
and matches himself against the celestial bodies who do not inseminate, and then to him, who
of the sun-moon (Meri-doge), and the stars. does.
These stories are told in two sequences, which The other narrative about the jaguar
belong respectively to the terrestrial and celestial Adugo (WS 55-6) casts him as the first of
registers, and intricately cross-reference. eleven creatures, rather than the last of seven,
The first narrative (WS 174-86) concerns again all vertebrates, who encounter the
the role of Adugo as father of the hero twins powerful figures of sun (Meri) and moon (Ari),
Bakororo-doge (Bakororo and Itubore), who known jointly as the Meri-doge. These two,
rid the world of excessively dangerous beasts. sun and moon, have many dealings with
Installed as the western and eastern guardians j'aguars, and each is owner of a decorated
of the Bororo settlement, these two effectively jaguar skin made by the other, kept in the areas
initiate the system of eightfold clans arranged reserved for the clans Badajebage Xebe­
in moieties: Xera to north, Tugarege to south guiugue and Badajebage Cobuguiugue (WS
at the perimeter, and the inverse at the center, 42). Around the village perimeter, these clans
in the men’s house. Adugo’s wife is the occupy the Xera side of the west and east
daughter of the Bororo hunter Akaruio doorways, guarded by Adugo’s twin sons
Bokodori, of the ^adajebage Xebeguiugue Bakororo and Itubore; the finer jaguar skin
clan, who instituted the feasts held in honour belongs to the senior twin, Bakororo of the
of jaguars (WS 110-1). As we saw, when new west and the Badajebage Xebeguiugue clan.
born, their twin sons - half jaguar and half This clan also has the exclusive right to use
human - have fine red and black stripes proper names based on the words for sun and
imprinted on their skin; they also display the moon.
double triangle markings of the sky people. In the story of the eleven creatures, Adugo is
In marrying Adugo, Akaruio’s daughter attacked by the Meri-doge luminaries for having
inverts Bororo matrilocal custom by travelling to once devoured the moon, an act which obliged
her husband’s home. This home is named by him the moon’s brother, the sun, to reconstruct his
as the last of a series of seven caves, and she body from the remains laid out on a framework
takes seven nights to get there, sleeping with the anatomy (WS 24-7). The restitutive powers
occupants of each of the previous caves along displayed by Meri in this regard enable him
the way. Feline (note the ai element discussed elsewhere to endow humans and other creatures
above) and wolverine, each occupant has with body parts, including teeth and digits.
progressively less black in his skin, the jaguar In being attacked and put to flight, the
having the finest and most variegated skin of all: jaguar Adugo is specifically identified as the

1 Ipocereu (black tayra) 2 Ai meareu coreu (black forest cat)


3 Okwa (small wolf) 4 Rie (big wolf)
5 Aigo (puma) 6 Aipobureu (jaguatirica)
7Adugo (jaguar)

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father of the Twins, those who guard the Embodied arithmetic


horizons between which Meri-doge are here said
to be travelling on their celestial journey. The Deriving as they do from a range of natural
first three of the eleven creatures that Adugo phenomena and conventionalized social
leads are himself plus two of the four feline cave- indicators, the Adugo biri designs constitute
dwellers who knew the Twins’ mother before he what demands to be acknowledged as a textual
did, an inversion of sequence. There follow six corpus, a series of visual statements that are
birds, including the eagle-hawk pair comme­ framed and reflexive and which intricately
morated in the Adugo biri, and the heron ‘night cross-reference. Whatever their natural origin
lord’, a known constellation. Then, finally, comes may be or have been, the glyph units ranged
the pair monkey and caiman, designated as in them demand to be counted arithmetically in
‘upper’ and ‘lower’, the caiman (Uwai) also being their own right, in sets and groupings that are
a constellation. Put to flight, each of the eleven is predetermined by the particular format, and
commemorated in turn in the verse of a song, in which vary from ceremony to ceremony
subgroups marked by pauses: (compare, for example, the two armadillo
Adugo biri in the Enciclopé­
dia, pp.234 and 236).7 In this
1 Adugo (jaguar) process, there is an obvious
play with expectation, in the
2 Aipobureu (jaguatirica) 3 Aigo (puma) sense of introducing a variant
4 Kurugugwa (hawk) 5 Aroe Eceba (harpy eagle) into an otherwise symmetrical
6 Toroa (sparrow hawk) 7 Baruguma (little hawk) pattern, and with styles of
8 Bace (heron) 9 Kidoe (parakeet) counting, serial and cumu­
lative, and with squaring and
10 Aroe pai (monkey) 11 Arogwai (caiman) multiplication generally.
For example, the Aroe
Adugo’s eleven, including as they do eceba oiaga design that
known constellations, have been proposed as reflects the tail markings of the harpy eagle
a kind of zodiac (Fabian 1982), and it is the sets its units either side of the middle column,
case that that number is repeatedly associated and in upper and lower areas. Facing left, the
with the night sky throughout tropical Ame­ units to the left mirror, i.e. laterally invert,
rica (Brotherston 1992:66-7). those to the right, which face right, and
In both stories, Adugo appears with thereby affirm a pattern of diagonal correspon­
other vertebrates in sequences that involve dence, upper left to lower right, and upper
counting and numerical logic. As the last and right to lower left. Yet upon inspection the
then the first, Adugo is singular in each case, mirroring proves to be not quite symmetrical,
in what otherwise tends to be an enumeration since in the former of the two diagonals the
in pairs. Then, for their part, these pairs form inner vertical line becomes the outer (or vice
subgroups according to shifts and pauses in versa; Fig. 3a):
the narrative, and to what we know or are
told, here and elsewhere, about their skin left right
covering, diet and habits, and the taboos that upper 4 3 3 3
govern the hunting of them. Among the lower 3 3 4 3 [i.e. not 3 4]
eleven, the three felines and the subsequent
three pairs of birds constitute a subgroup of
nine, to which the final pair, after the shift in
location, is added as a kind of coda: the egg- (7) The efforts o f outsiders (b a ra e ) to understand the
m ultiple m eanings o f the Barege Ekododu ceremony
laying caiman and the near-human monkey,
and its artifacts are som etim es satirized during the
‘low’ and ‘high’ in the vertebrate story. As cerem ony itself, in pantom ime interludes that feature
we saw, skin covering (scale, feather, fur) is a caricatures o f inquisitive early European explorers
principal source of the Adugo biri designs. (EB 1:233).

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Again, the turtle’s carapace Atu atugo 1]


(Fig. 3 b) establishes a norm of four units in left: 2(5x3) = 30 = X5 x 2
each of four rows in each of four areas (i.e. 4 x = 7x9
4 x 4 or 43), only then to modify it in three of right: 2(5 + 5 1/2+ 6) =33 = X I1 x 1/2
the areas - upper left and right, lower right -
through the addition of an extra unit in one of Beside having a clear elegance in its own
the rows (4th, 1st and 3rd respectively): right, this formulation invokes ciphers reso­
nant in Bororo culture. The fives to the left are
the digits of the hand and foot that Meri
left right formed for earthly humans; the eleven to the
upper 4 5 right are the bodies led by Adugo that Meri
4 4 chased from the sky. The intervening 7 and 9
4 4 correspond to the orifices of the human head
5 4
and body.
lower 4 4 In the Kogaekogae design drawn on the
4 4
Natte ,kin (Fig. 1), logic and arithmetic
4 5
4 4 follow the same lines, and there are even
coincidences between actual totals and
number-groups of units (notably the prime
This kind of logic is taken further in the number 11), and between the styles in which
arrangement of X units in the Iwara arege -they are added (serial, cumulative) and mul­
design (Fig. 5), where the reading is horizontal, tiplied. Yet the Kogaekogae design is far more
across pairs of ribs, three in the upper area and complex, thanks in part to its characteristic use
three in the lower. The left side is quite regular, of two kinds of differently-hatched X units.
and proposes a pattern of three fives, upper Also, here there are eight rather than six pairs
and lower; and the right side is irregular, since of ribs (three upper, five lower), and larger
two of the six ribs there increase this number totals that range from 7 on a single rib to 22 on
to 51/2 and another two ribs increase it to 6: a pair. There are even variant forms of the X
unit, and a fraction that is less than half.
Starting with format and distribution of rib
left right
totals of X-units, regardless of which type
upper 5 6
they are, and of fractions, the following
5 6
5 5V2
Number-Group scheme can be established:
lower 5 5
5 5 ’A r ib s totals o f X units
5 5
left right
upper A 8 10
This means that the lowest total on any one B 9 11
C 11 11
rib is 5 and the highest on any pair is 11. These
term numbers are then seen to be developed, to lower D 8 11
E 10 11
left and right respectively. The fives to the left F "7 11
are counted cumulatively, i.e. through all the G 7 9
numbers up to and including five, to give twice H 9 11
15 (1+2+3+4+5), in what may be called ‘sigma’
count, in line with the Greek letter which may
indicate this kind of addition (X). Meanwhile, Through simple addition, the grand total
the right half produces half the sigma count of of all X units on the 16 ribs is 154. That neither
the higher number, 11. The sum of the two this number nor the framework design is
halves is 63, the product of 7 and 9, the interve­ random is immediately suggested by two
ning odd numbers between 5 and 11. Hence: concomitant formulae. First, the total of the

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highest and most populated Number Group, teeth, and their decimal sets of fingers (WS
11, exactly equals that of all the other numbers 155). Thanks largely to the Bororo, binary
put together: logic became the basis for Levi-Strauss’s
Structuralism; as for decimals, digits form the
2] base of Bororo counting nomenclature (Fabian
(7 x 2 )+ (8+ 2)+ (9 x 3 )+ (10x2) = 77 = 1 1 x 7 1992:232)
Just as the even numbers correspond to
Second, the grand total is the product of projections of the human body, so the odd
the lowest total on any one rib (left F or G) number 9 corresponds to its orifices and
multiplied by the highest total on any pair of stands in a special ratio to the 7 of the head
ribs (C): orifices. Indeed, just as in the Iwara arege
design examined above (1), 9 and 7 here
3] multiply to produce the sum of the inter­
7x22=154 mediary divisible numbers:

In both equations, the main factors are the 4]


prime numbers 7 and 11, which serve as lower (8 x 2 )+ (9 x 3 )+ (10x2) = 7 x 9
and upper terms for the full flush of five
numbers 7, 8, 9, 10, 11, being the only primes in Finally, the question of surface and
that range. With respect to the skin’s material dimensions, and how it may relate to the other
source, they are of course precisely the two equation stated above: 7 (lowest total on any
primes we saw operative in the Adugo stories one rib) x 22 (highest total on any pair of ribs)
of the caves and the sky respectively. = 154 (grand total). When the Adugo biri skin
Their clear conceptual resonance in these is placed on a human body in the Barege
cases may encourage us to consider in similar Ekedodu ceremony, its inscribed ribs undergo
terms the intervening numbers, even (8, 10) a lateral inversion: what is left and right for the
and odd (9), and further to explore the notion observer becomes right and left for the wearer.
of numerical construction as such, in the At the same time, the pairs of ribs inscribed on
prolonged analogy between numbers with the flat two-dimensional surface curve protec­
their factors and the body with its parts. tively around those of the wearer. Given the
Coincident with the format itself (the eight coherence of the arithmetical statement made
rows of ribs), 8 indicates the number of clans by the grid design so far, along with the
in the Bororo settlement. Doubled to 16 (left A concept of this inversion, it is perhaps not too
and D) in the binary progression for which bold to recall that the formula shown above to
Bororo logic is renowned (2..., 23, 24), it also produce the grand total of units, 7 x 22 = 154,
brings anatomy into play. For in the Barege can correspondingly be inverted. For, expres­
Ekedodu ceremony, the person who bears the sed as 22/7, or ?, it produces a rounding of the
jaguar’s skin is also adorned with its teeth and ribs into the third dimension, shaping them
claws, tokens of the body which in the aroe into the cylindrical thorax shield. An equi­
reading of the ceremony is to be protected and valent argument is proposed by Fabian when
even reconstituted. Multiplying in pure binary he speaks of ‘squaring the circle’ of Bororo
progression in the human adult, teeth reach space-time (1992:163)
just the total established in the upper right
area, that is, 32, or 25 (for good measure the
total of teeth in a child’s mouth, 28, is given in Cross-matching
the matching area upper left). As for the
human equivalent of the claws, they are The analysis made so far of Natterer’s
correspondingly specified in the other pair of Kogaekogae text has been entirely based on
even numbers, the 10s (right A, left E). When Number Groups, on the sheer grouping and
strengthening the beaks of birds, Meri goes on distribution of X units within the rib format,
to endow humans with their binary sets of without regard for the type of X unit involved.

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The next stage means distinguishing between The association between the two types of
the two types of unit it uses, those whose X unit, on the one hand, and the primes 7 and
hatching points upwards to either left (= X\) or 11, on the other, is in fact developed in the
right (= X/; Fig.6b). From the start, we may actual totals of these units found in the upper
confirm that, although they are intricately and lower areas, diagonally to left and right.
distributed between the Number Groups and to For the totals of X\ units to upper left and
left and right in the upper and lower areas (as lower right relate to both the square and the
we shall see), each of the two types of hatched sigma count of the smaller main prime, 7.
X unit totals 77, in an exquisite complement to Completing the pattern, the X/ totals to upper
the Number-Group formula established above right and lower left give the sigma count of the
(see 2): larger main prime, 11, reaching that total again
via squares, and multiples to the power, of all
5] the smaller primes (2,3, 5), as well as the sigma
X/: 7 + 8 + 9 + 10+ 10 + 11 + 11 + 11=77 count of the intervening 9. Always adding
X\: 7 + 8 + 9 + 9 + 11 + 11+ 11 + 11=77 only like with like, strictly within the four areas
of the grid this produces:
Overall, the general direction of the
hatching in the units (on the exceptions, see 6] X\
below) corresponds to their respective posi­ left right
tions on the ribs to right and left in the upper
and lower areas, in the diagonal cross that upper: 28 = 17
echoes that of the X unit itself.
lower: 7 42 = 7 + 42 = 49 = 72
all: Z7 + 72 = 77 = 7 x 11
left right
upper X\ X/ i.e. \1 X/
lower X/ X\ 1\ left right
upper: 32 = 25
Introducing a subtle variation, the hat­ lower: 25 = 52 11
ching in one of the five ribs in each of the ±9 = 32
lower areas fails, however, to cross-match with =34 11 = 34 + 11 = 45 = 19
that of the three in the respective upper area,
right to left and left to right, in the pattern all: 34 + 32 = 66 = 111 + 11 = 7 7 = 11 x7
established by the X design. The exceptional
fifth ribs (left G, right D) highlight the primes 7 In other words, the disposition of the two
and 11, again, and in so doing implicitly types of X units complements the Number-Group
associate the X\ unit with seven and the X/ disposition at every stage. What it adds is the
unit with eleven. notion of cross matching, explicit in the hatching
in the two types of units themselves, and which
Reichel-Dolmatoff has convincingly related, at
r ib s to ta ls o f X units one level, to tropical American notions of gender
left right relations between male and female, and human
\ / procreation (1981:22). In social terms, it may be
upper A
o
*
*

8* usefully compared with the layout and exogamy


B 9 11 (*) the two outermost of the Bororo village, whereby the Xera and
C 11 11 X u nits have in verse Tugarege moieties to north and south are each
lower D / \ hatching in low er and divided into lesser and greater parts, creating the
E 8 /I I upper triangles respec­
F
possibility of more intricate cross-matching
10 11 tiv e ly
G 7 11 (* * ) b e g in n in g s o f a
(Fig, 7). Finally, it becomes the means for
H \7 9* further X unit in n er­ expressing the arithmetic of the sky also inherent
9 11 most (Fig. 6 c, d) in this superb example of an Adugo biri.

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ESQUEMA DAS UNIÕES MATRIMONIAIS


Itybúre (leste)

Metade dos Metade dos


EÇeráe Tçgarége

Linha cheia: unioes preferenciais


Linha interrompida: uniões toleradas
Linha dupla: uniões lícitas entre membros da mesma metade
Sub-clãs da METADE DOS ÇÇERÁE:
1. Baádç Jebáge Cçbugiwúge Cçbugiwúge; 2. Baádç Jebáge Cçbugiwúge B$e E-iadadawúge;
3. Baádç Jebáge Cçbugiwúge Cebegiwúge; 4. BçkçdÇri Çõeráe Cçbugiwúge; 5. Bçkçdçri
Çõeráe Bçe Ç-iadadawúge; 6. Bçkçdçri Çõeráe Cebegiwúge; 7. Kíe Cçbugiwúge; 8. Kíe
B$e E-iadadawúge; 9. Kíe Cebegiwúge; 10. Baádç Jebáge Cebegiwúge Cçbugiwúge;
11. Baádç Jebáge Cebegiwúge B$e E-iadadawúge; 12. Baádç Jebáge Cebegiwúge Cebegiwúge.
Sub-clãs da METADE DOS TVGARÉGE:
24. Páiwçe Cçbugiwçge; 23. Páiwçe B^e E-iadadawúge; 13. Páiwçe Cebegiwúge; 22. Api-
bçrége Cçbugiwúge; 21. Apibçrége B$e E-iadadawúge; 20. Apibçrége Cebegiwúge;
19. Arórçe Cçbugiwúge; 18. Arórçe B^e E-iadadawúge; 14. Arórçe Cebegiwúge; 17. Iwagúdu-
dóge Cçbugiwúge; 16. Iwagúdu-dóge Bçe E-iadadawúge; 15. Iwagúdu-dóge Cebegiwúge.

Fig.7 - Clan cross-matching (EB 1: 450).

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Bodies of the sky solar-lunar entity Meri-doge, Adugo’s anta­


gonist. For the synodic cycles of sun and
The Kogaekogae type of Adugo biri moon first coincide after 8 solar years, which
identifies those who named the bodies of the equals 99 lunations (plus almost one night),
sky. For that reason, its complex arithmetic the period as such being commemorated in the
might be expected to invoke those bodies, no Greek term octaeteris. A yet more exact
less than terrestrial anatomy and clan. Thanks coincidence occurs after 19 solar years or 235
to the work of Fabian and others, there can be lunations, the so-called Metonic cycle which
no doubt about the sophistication of Bororo in Christendom still serves as the arithmetical
astronomy as such. basis for calculating the date of Easter (which
Guarded by Bakororo to the west and falls on the first Sunday after the first full
Itubore to the east, the very axis of the Bororo moon after the Spring equinox). In the Kogae­
village commemorates the ‘sun’s path’ (as it is kogae design, the first cycle or octaeteris is
called, Meri etawara; WS 95), travelled by the incorporated into the second (Metonic) cycle
sun, moon and planets. Over the course of the as 8+ 11 = 19.
tropical year, the sun, the brightest of them all, As the cipher of the sky jaguar, the eleven
rises and sets, to north and south along the has multiple resonance in this equation, once
east and west horizons, in positions likewise again in a style characteristic of shamanism. In
commemorated in the layout of the Bororo the dimension of years, it mediates between 8
settlement (Fabian 1992:163) and, in the case and 19 as the equivalent of 136 moons, and in
of the June solstice, in the bonfires of the male astronomical fact coincides with the sunspot
initiation ceremony Akiri doge. When viewed cycle (which the Bororo may or may not be
in plan, the solstice pattern, widely recognized pointing to here). In lunations, it is a factor of
in tropical American astronomy, is also the octaeteris, which amounts to 11 x 9 moons
reflected in the very design of the edugo ‘X ’ (traditionally, eleven periods of human ges­
unit. The central or midday moment as such is tation). Yet again, in the dimension of nights or
specified in ‘Adugo’s bride’, when Adugo days, eleven is the epact, that is, the difference
wrestles with his future father-in-law from between twelve completed lunations (354
dawn until exactly noon: nights) and the year (365 days).
Several accounts are known (Fabian
1992:134) of how the Bororo, through the
northern southern Badajebage clan, learned the star names from
so lstice solstice
one of their number, a boy abandoned at night
sunrise x X
in the forest. They tell how the Kogaekogae
village/n oon
spirits hissed their greetings to the stars
(ikuieje, ‘faces’, ‘eyes’) as they appeared, in
sunset x X sequences which tend to intercalate the inner
and outer planets, Venus and Mars, with
Reading the X units as years, on these stars proper, in the fashion of this list (WB
grounds, alerts us to the unique and striking 47-54):
status of one of the eight rib rows (D). Unlike
any other (G includes variant Xs), it has X- Jekurireu; Venus
units whose hatching always goes in the same Akiri-doge; Pleiades
direction (X/), on both the left and the right Bace Iwara Arege (Heron); Orion’s belt
sides. It reads: Pari Burea-doge (Emu); Southern Cross
Tuwagou
7] Kudoro (macaw); Pavo
8 + 11 = 19 [years] Bika Joku; Mars
Jeriguigui (turtle)
The formulation could hardly be more Upe (turtle)
resonant in terms of Meri, the sun, and the Bokodori Jari Paru Kado Jebage

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BROTHERSTON, G. ‘M eaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo,
11: 2 4 3 -2 6 0 , 2 0 0 1 .

Of the identifiable constellations, the pair lived).8 For their part, the phases of the
of turtles is of especial interest. Initially synodic moon have a rhythm of just over 29
identified with Corvus, the turtle Jeriguigui nights; yet in sidereal time it takes the moon
was later linked to Orion, in the opposite half nearer 27 nights to regain its position relative
of the sky, a transposition discussed by Lévi- to a given constellation. The distinction is
Strauss when relating this story to the foun­ clearly registered in tropical American texts,
dation myth (Mj) of his Mythologiques strikingly in the Barasana sky chart which
(1964:51,235). Since then, in a brilliant piece of pairs the steps the moon makes along the two
field work and detection, Fabian (1992:147-8) respective paths, 29 in that of its synodic
has been able to show that each of the turtles phases - a crescent and full moon - and 27 in
(Jeriguigui, Upe) names two constellations in a that of the stars - a star inset into a crescent
gamut which stretches over just less than half moon - (Hugh-Jones 1983:187).
the sky, from Orion (Right Ascension 5) to The difference in kinds of time corres­
Scorpio (Right Ascension 16). This arran­ ponds to an inversion in celestial movement.
gement in halves that hinge on Scorpio echoes For while sun and moon move regularly, day
that found in other tropical American systems, and night, from east to west horizon, their
for example in the Rio Negro and among the apparent movement with respect to the stars,
Kogi, and even in Mesoamerica. In all these over lunations and years, is in the other
cases, the other hinge is effectively the direction, from west to east. For this reason, it
Pleiades, the Akiri-doge whose heliacal rising is of major importance to note the direction
after their disappearance in May is commemo­ that sun and moon are said to be travelling in
rated in the June solstice ceremony, during the when they encounter the sky jaguar’s eleven.
dry season, when fires are lit in order to slow The text specifically states that they are
the progress of the constellation through the moving from west to east, rather than the
sky. expected east to west (WS 55-56). In other
The correlation of the Pleiades with the words, their path across the sky is not from
June solstice is widely understood as the the horizon of their risings to that of their
marrying of two orders of time, solar and settings, but through the stars; that is, they
stellar, synodic and sidereal. Bororo nar­ journey back along the ecliptic, or zodiac,
ratives make the distinction as such between pointed to by Fabian. In the case of the moon,
these two orders of celestial time, saliently in the regressive motion, night by night, is very
the bargain that Meri the sun made with the clear, certainly to the Bororo.9
heron, the Night Lord who is a constellation In astronomical terms, the story of the sun
(WS 38-40). There, sun and star is each and moon’s involvement with the eleven
shown to have owned its own time, synodic creatures led by the jaguar, who include
and sidereal, a ‘diachrony’ according to known constellations, must, then, refer to their
Crocker (1985:347). Fabian speaks of them as sidereal rather than their more obvious syno-
successive ‘layers’ of time (1992:145), and
takes the idea further when observing that
the Akiri-doge ceremony ‘synchronizes ( 8 ) Since Natterer went to Brazil, the rising o f the
astronomical, ecological, and social time, Pleiades has advanced nearly three days in the
calendar year; since the Bororo links with the Inca
links the realms of nature, society, and the
postulated elsewhere by Fabian (1998), it has
spirit world, and highlights the significance advanced no less than ten days. Known as the
of astronomical observations in Bororo Precession o f the equinoxes and detectable in other
culture’ (1992:133). tropical Am erican system s (Brotherston 2 0 0 0 ), this
The solar year of the solstice is in fact slippage may arguably be what the Akiri-doge fires
are meant to counter-act, in ‘slow ing d ow n ’ the
slightly shorter than the stellar year of the
advance o f the Pleiades.
Akiri-doge’s heliacal rising, a difference which (9) ‘Há várias explicações dadas pelos xamãs dos
over time produces a steady slippage of the espíritos, acerca do caminho seguido pela lua para
one against the other (so that the synchroni- voltar ao ponto inicial de sua viagem i.e. ao oriente’
city noted by Fabian can never be very long (EB 1:9).

257
BROTHERSTON, G. ‘M eaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia , São Paulo,
11: 2 4 3 -2 6 0 , 2 0 0 1 .

die phases. In this regard it is also worth cycles that amount to exactly half the cipher
recalling that of the jaguar’s twin sons, the eleven:
senior one Bakororo guards the west, not the
east. In just this sidereal context, the design of 9]
the X units on the Kogaekogae skin is best 14 + 54 + 82 = nights of V2 plus two plus three
understood as its two constituent triangles. moons = 5V2 or n/2 sidereal moons
For the Kogaekogae spirits who hiss the
names of the constellations, as they rise over Finally, the other prime number con­
the eastern horizon, are said to do so having secrated on the Kogaekogae skin, 11, is
the two types of hatched ‘triangles’ painted suggestive of a sidereal cycle com ple­
on their faces. In the case of the Kogaekogae mentary to the m oon’s, that of Mercury.
skin, the totals produced by these triangles The identity of the ‘M oon’s follow er’ (Ari
appear to correspond to the nights of sidereal reaiwu) is uncertain though there is no
time, just as the totals of X units (or double reason why it should not be M ercury
triangles) correspond to theyears of solar (Fabian 1982:286; 1992:144). In terms of
time, above all when we take into account the astronomical orbit, the kind of body best
variant X\ units at the ends of rows A and G qualified to be a lunar companion is a
(where the hatching in the upper triangle goes planet, and of the planets the inner ones,
in the opposite direction to that in the lower Venus and Mercury, which (like the moon
triangle: see Fig. 6c). and unlike the outer planets) pass between
The layout of the 77 X\ units in question is earth and -sun. And of the two, M ercury is
as follows: the more likely, since Venus is typically
named and celebrated in its own right for its
upper: 28 brilliance and size, and because M ercury’s
lower: 7 42 phases approximate those of the moon far
more closely. In synodic time, Mercury
In terms of constituent triangle units, these Xs takes just under four moons (118 nights) to
yield: complete a cycle (116 nights), and in
sidereal time, at <88 nights, it takes just
8] over three moons (82 nights); Venus’s
all triangles triangle \ variant triangle / cycles are many times longer and less
coincident.
7x2 7x2=14 One way of accounting for the second
28x2 27x2=54 2 type of irregularity in the count of X units on
42x2 41x2=82 2 the Kogaekogae skin - the incipient extra unit
150 innermost in rib right A (Fig. 6d) - would be
to see in it a reflection of this other sidereal
As we saw, the X\ unit is to 7 what the period, a complement to that of the moon. If
X/ unit is to 11, and an implicit link between so, the cycle is expressed via the principle of
7 and the moon is made in ‘Adugo’s bride’ Number Group and the upper prime eleven,
insofar as its absence, night after night, rather than via the principle of hatched
prevented her from seeing the occupants of triangles within the X\ unit and the lower
the seven caves. That the reference here prime 7, used for the moon. For the extra unit
becomes in fact the nights of the sidereal in rib right A potentially raises the group
moon is borne out by the fact that each of total of the elevens from 77 to just under 88,
the three totals of \ triangles matches its <44 plus 44, upper and lower. When doubled
cycle, especially the final 82. For it is pre­ as triangles, in the fashion of the sidereal
cisely after 3 cycles that the sidereal moon, moon units, this almost-88 would produce
of 27.3 nights, fully occupies an extra night. something between 175 and 176, an upper <88
The three instalments of \ triangles cor­ and a lower 88, a good approximation of two
respond, then, to totals of sidereal moon sidereal Mercury periods.

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BROTHERSTON, G. ‘M eaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do M useu de A rqueologia e E tn ologia, Sao Paulo,
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Triangles in Number Group 11: prompt the desire to understand and decode.
That it might be just random as a numerical
left right statement is rendered impossible by the
upper < 22 series of interlocking equations involving
22 Number Groups and the two types of X unit
22 22
(2, 3, 4).
lower 22 The ‘decoding’ is best done in the terms it
22 itself proposes initially, as the skin of an
22 animal which plays a foundational role in the
terrestrial and celestial registers of Bororo
22 cosmogony, and which features pre-eminently
in the Barege Ekedodu ceremony during which
In proposing this last reading, however, such painted skins are made, paraded and
we should stress that, in contrast to every­ worn. In this way, meaning inherent in the
thing suggested hitherto, it is not directly actual performance of the ceremony can be
supported by a known corresponding Bororo correlated with the key jaguar narratives. This
narrative or perception. correlation highlights the significance of a
logic which is in part but by no means exclu­
* sively binary, and of an order of numeracy not
normally associated with lowland South
At the very least, the Bororo jaguar skin America. Pertinent to the attempt to unders­
brought to Vienna by Natterer demands more tand human cultural history, this Bororo
recognition as a visual text than it has statement raises questions of epistemology, of
received hitherto. Deploying and correlating how best to read. It is a configuration where
numbers with considerable sophistication, it relevance is the valency of its numbers and
embodies paradigms of Bororo culture, while where ‘truth’ exists insofar as it is embodied
its very format and patterning of variables and lived.

BROTHERSTON, G. ‘Meaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de Arqueo­


logia e Etnologia, São Paulo, 11: 243-260, 2001.

ABSTRACT: This article proposes the analysis and interpretation of a


Bororo jaguar skin exhibited at the Mostra in São Paulo organized in 2000 to
mark the most recent 500 years of Brazilian history. The Author shows how
this painted skin known as Adugo biri demands more recognition as a visual
text than it has received hitherto. Deploying and correlating numbers with
considerable sophistication, it embodies paradigms of Bororo culture, which
prompt the desire to understand and decode. Analysing this skin in the light
of what we know about the Bororo culture, the Author contributes to our
understanding of the complexity of this group’s “mentality”.

UNITERMS: Bororo - Jaguar symbolism - Adugo biri - Ethnoastronomy -


Ethnomathematics.

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BROTHERSTON, G. Meaning in a Bororo jaguar skin’. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo,
11: 2 4 3 -2 6 0 , 2 0 0 1.

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260
Estudos de Curadoria
Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 263-274, 2001.

AN ARCHAEOLOGICAL VIEW OF THE


AMAZONIAN ETHNOGRAPHIC COLLECTIONS AT THE
NATIONAL MUSEUM OF RIO DE JANEIRO, BRAZIL:
REVIEWING FUNCTION

Marcia Bezerra de Almeida*

BEZERRA DE ALMEIDA, M. An archaeological view o f the Amazonian ethno­


graphic collections at the National Museum of Rio de Janeiro, Brazil: reviewing
function. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 263-274,
2001.

RESUMO: As coleções etnográficas do Museu Nacional do Rio de Janeiro


reúnem mais de 25000 peças coletadas desde o século XIX até os dias de hoje.
Seu estudo oferece à Arqueologia caminhos potencialmente úteis para a
análise e interpretação da cultura material. Para este artigo foram selecionadas
peças pertencentes a grupos indígenas da Amazônia, em especial os artefatos
elaborados sobre ossos de animais, que nos permitem formular questões ao
registro arqueológico.

UNITERMOS: Coleções etnográficas - Museu Nacional do Rio de


Janeiro - Arqueologia - Ossos de animais.

The pioneers of modem museums - the Marked, among other things, by the
so-called curiosity offices - gathered since the expansion of nationalism and by discussions
16th century all sorts of objects that called to surrounding the issues of human evolution,
people’s attention, motivated by interests in 19th century witnessed - mainly in Europe -
the Renascence of Greco-Roman antiquities. the emergence of museums with a clear
Being incessantly visited between the second anthropologic character (Stocking Jr. 1985).
half of the 18th century and the late 19th century, The practice of collecting served nationalistic
the Americas, were truly bams of exotic Durposes - mainly from 1880 - , when market
objects for collectors from all over Europe and colony disputes, the decline of evolutio­
(Ribeiro 1986). nist ideas, and the diminishment of the belief
in technology, stimulated the search for ethnic
identity.
That century saw the emergence of
(*) Researcher /Departm ent o f Anthropology Museu
sciences like anthropology, ethnology, socio­
Nacional do Rio de Janeiro USP/CNPq. Doutoranda
da Área Interdepartamental de Arqueologia do Museu logy, linguistics, and chemistry. According to
de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Ribeiro (1986: 104), the collecting practices of
Paulo. the late 19th century attempted to “avoid the

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BEZERRA DE ALM EIDA, M. An archaeological view o f the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: reviewing function. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo,
11: 2 6 3 -2 7 4 , 2 001.

loss not only of the culture of native peoples task as archaeologists, we are constantly
who they thought were condemned to extinc­ making use of analogies, otherwise, according
tion, but also of what we could find in these to Hodder (1982), how is it that we would be
artifacts regarding the origin and evolution of able to promptly identify some artifacts as
mankind.” stone axes, and arrow points? The problem,
The interest of anthropology in object still according to Hodder, is to believe that
collections secured in museums was left aside objects and past and present societies, similar
for a long period. Cantwell and Rothschild in some aspects, are similar in others. We need
(1981) believe there are two reasons accoun­ to be cautious not to fall in a “deterministic
ting for that. First, the moving of anthropology uniformitarianism” (p. 26).
to the academic realm would have separated The establishment of ethnographic
anthropologists from collections, and second, parallelisms however, widens the researchers’
the considerable emphasis given to fieldwork. horizons. To Gould (1978), ethnographic
They quote Fenton when asserting that models can furnish verifying hypotheses
“anthropology was nurtured in museums and relatively free of ethnocentric biases. It is
matured in universities”. To Laurie (Stocking necessary to choose the ways of making those
Jr. 1985), museums came to have such an models operational. Discontinuos models, for
irrelevance to anthropologists that many of instance, presuppose analogies between areas
them were formed without ever have entered a which environment and adaptation of human
museum. The work with collections was seen societies are similar, though distant in space or
as a lesser activity, considered “woman’s time. Continuous models refer to areas where
work” or “armchair anthropology” (Cantwell & continuity between prehistoric and contem­
Rothschild, op. cit: 580). Thus, it was up to porary populations can be evidenced. To
archaeologists and curators to take on the task Schiffer (1987: 363), ethnoarchaeology, as
of studying the material culture accumulated in other sub-disciplines, has been furnishing
museums. general principles extremely interesting for the
Lately however, symbolic anthropology has understanding of the ambiguities of the
been developing an interest on the variety of archaeological record . On the other hand,
possibilities of study retained by material Hodder believes ethnoarchaeology became
culture. Besides anthropologists, archaeolo­ more related to anthropology and ethnohis-
gists have also begun to research ethnographic tory, and this can end up making the former
collections willing to test hypotheses about lose its independence. According to him, “as
historic and prehistoric artifacts (Kaplan 1981 ). ethnoarchaeology becomes more like anthro­
As asserted by Deetz, “material culture is pology and ethnohistory, and as it needs to
that segment of man’s physical environment, incorporate the methods of these adjacent
which is purposely shaped by him according disciplines more fully, its independent exis­
to a culturally dictated” (1977: 7). This material tence comes under threat - at least in its
realm is by excellence archaeology’s object of present form. In its place we are likely to find
study, which long ago invests in ways that material culture studies sitting astride many
would permit a wider understanding of socie­ disciplines, and a different ethnoarchaeology
ties through this physical dimension. of ethnic groups and with an archaeological
From the 70’s on, several of. these ways dimension to ethnohistory.” (Hodder 1987:
were proposed and have been successfully 117).
applied. In this manner, the main purposes of In his most recent publication “Archaeo­
experimental archaeology, middle-range theory, logical Process - An Introduction” (1999),
ethnographic analogy, and ethnoarchaeology Hodder asks if two contexts can be really
are to make a link, a “bridge”, between the compared against each other, mainly when
archaeological record in the present and the dealing with formal analogies. The solution
past system that produced it. would be the identification of the context and
Amongst those, analogy is the reasoning its boundaries - interpreted by the archaeo­
form most used by archaeology. In our daily logist - and the recognition of similarities and

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Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: reviewing function. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo,
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differences within the contexts (Hodder 1999: important descriptions not only regarding the
48). Gould (1990) believes that ethnoarchaeo- fauna, but also concerning the relationship
logy must explore the relations between etic between observed populations and the
and emic interpretations, saying that “one of environment. Because it deals with this
the most important roles of ethnoarchaeology relationship in present populations, ethnozoo-
in the development of acceptable ideas about logy (Bezerra de Almeida 1998a) has also
human past is to inform archaeologists about contributed to our work, allowing us to re­
kinds of ideas that are not possible through its orient some questions, but, above all, furni­
evaluation in relation to such conditions in the shing a data base to the construction of
real world” (p. 15). According to him, it is models to be tested by archaeology.
necessary to order variables that he divides in The ethnographic collections of the
the ones tied to ecology, economy, and ethnology sector of the National Museum
technology, and those relating to the symbolic represent a rich source of information for
domain. ethnoarchaeology. Assembling, among others,
Ethnographic collections allow compa­ artifacts and adornments made out of animal
risons with archaeological material in relation bones by populations of several parts of the
to the first variables, and the ones dealing with world, this collection has allowed us to
the symbolic character of material culture. improve our studies.
Nevertheless, we should accentuate that such Altogether, there are 28.000 pieces of
aspects can be linked between each other. “In native origin, of which an expressive part is
small societies technology is inseparable from from the Amazonic region. Our purpose is to
spiritual or ancestral involvement in the establish a functionalist analysis, since we
process of production.” (Tilley 1999: 59). agree with Leach when he says that “functio­
The data resultant from studies, under nalism as a social theory is now something of
ethnoarchaeology’s view serve as base to the a fossil in the history of ideas, but as an
formulation of hypotheses and also as empiri­ analytical approach it retains its importance in
cal material against which hypotheses elabora­ the understanding of objects” (Leach 1996:
ted from other reasoning can be tested (Koby- 41). In the first stage of our work we analyzed
linski 1991). around 200 artifacts, all elaborated from animal
As Hodder (1982) affirms, our dependence bones. For this brief presentation, we are
in other societies, behaviors, and forms of going to concentrate on some of the ones
thought is extremely vast ( p. 27). Thus, related to Amazonic groups.
ethnographic collections are potentially useful Extensively found in Brazilian archaeolo­
to the archaeologist. Such collections, even gical sites, rodents - as agoutis (Dasyprocta
though badly documented in many cases, spp) and capybaras (Hydrochoerus hydro-
constitute a valuable physical support for the chaeris) - are animals still consumed in Brazil
archaeological research, contributing to the re­ (Bezerra de Almeida 1998a). Ethnobiological
dimensioning and reorientation of our working studies (Posey 1986) showed their inclusion in
hypotheses. the diet of contemporary populations of the
Our choice for studying the ethnographic Amazonic region as well as the hunting
collections of the National Museum of Rio de techniques for their capture - that include the
Janeiro arose from the necessity of widening so-called “garden hunting” (Linares 1971).
the horizons of our studies of faunal remains Horticulturist groups utilize their own fields to
found in Brazilian prehistoric sites. We are attract and capture small and medium sized
looking for investigating all the possibilities rodents.
that could furnish us with more information for Regarding their skeletons, the most
a better understanding of the interaction frequent elements in the archaeological samples
between prehistoric populations and zoo- are mandibles and teeth, mainly incisors,
cultural systems. usually found separated from their mandibles.
Ethnohistorical sources, for instance, have Our zooarchaeological research does not
been largely utilized. The narratives offer us register, so far, the usage of these elements

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BEZERRA DE ALM EIDA, M. An archaeological view of the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: review ing function. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo,
11: 2 6 3 -2 7 4 , 2 001.

outside the alimentary and adornment (as The chisel is a kind of plane used for
necklaces, for instance) contexts. Ethnographic scraping, smoothing, and drilling shell, wood,
collections allow us to see that teeth, as well as and bone. A tooth of agouti, capybara, paca
mandibles, were utilized basically in three forms: (Cuniculus paca) or peccary (Tayassu
as scarificators, as chisels, and as earrings. pecary) is attached in the extremity of a
Scarificators are instruments for bleeding the wooden staff. It can be simple, with a single
skin, strengthening this way, the body. They are capybara tooth (Photo 1 - piece n. 1) as the
formed by a small wooden staff in whose extremity ones made by the Bororo, or double, with
it was attached the animal teeth (Ribeiro 1988). I teeth on both extremities of the staff. It
selected six examples: one made out of an agouti resembles, in its form, to the Txikao scarifi­
tooth by the Txikao group, also used as a chisel cator, previously described. Another kind of
(Photo 1 - piece n. 2); two fish mandibles used as chisel is utilized by the Mura-Piraha, that
escarificator by Ipurina and Kayapo groups simply use a peccary or agouti mandible as
(Photo 3); and a gourd slab with encmsted fish they are, for smoothing wood used to make
tooth, from the Bororo group (Photo 4). bows and arrows (Photo 2).

Photo 1 - 1 = chisel - Bororo; 2 = scarificator - Txikao; 3 = earlobe - Kayabi.

Photo 2 - 1 = mandible o f peccary used as chisel - Mura - Piraha; 2 = mandible


o f agouti used as chisel - Mura - Piraha.

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BEZERRA DE ALM EIDA, M. An archaeological view of the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: reviewing function. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo,
11: 2 6 3 -2 7 4 , 2 0 0 1 .

Photo 3 - Fish mandibles used as chisel - Ipurinã


and Kayapó.

The Kayabi earrings are used in the Photo 4 - Gourd slab with encrustred fish
earlobes. They are made of a wooden staff tooth used as chisel - Bororo.
with two agouti teeth attached to one extremi­
ty, between which they put wax, giving it a
chisel-like appearance (Photo 1 - piece n. 3). ting variety. Out of a group of 38 pieces, 19 are
Its form is similar to that of the Bororo chisel double points attached to bamboo stems
and the Txikao scarificator (Photo 1). (Photo 6); 10 are double points made in such a
The arrow points (Photos 5 and 6), also way that the distal extremity remains pronoun­
made out of animal bones, display an interes- ced, they are called “flecha fisga” (fishing

Photo 5 - 1 and 2 = arrow point = attachment bones. See the n. 2 with the epiphyses
- Meinaku; 3 = arrow point = fishing spear - Bororo.

Photo 6 - Arrow point = double points.

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BEZERRA DE ALM EIDA, M. An archaeological view o f the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: review ing function. R evista do M useu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo,
11: 2 6 3 -2 7 4 , 2 0 0 1.

spear), and are used for hunting and fishing generally the radius, is cut in both extremities,
among the Bororo (Photo 1 - piece n. 3); and 7 then wax is applied as a diaphragm in the
are of bone attachments (Photo 5 - pieces n. 1 interior of the tube. In the Tukano example
and 2). These ones are constituted of mammal (Photo n. 7 - piece n. 1), they are decorated
or bird epiphyses cut in one of their extremities with beetle wings. There are at least 10 different
and sharpened in the other for the attachment types of flute described in Amazonia.
of a bamboo stick. They are used for hunting A different ensemble includes three
bigger animals. In one of them, we still have artifacts manufactured out of long mammal
the diaphysis, which allowed us to identify it. bones. They are sharpened at their distal
It is a right mammal tibia made by the Meinaku extremity. The functions attributed to them are
group (Photo 1 - piece n. 2). They are from different, despite the similarity of their physi­
distinct origins within Amazonia. cal characteristics. The first one, from an
Another ensemble of bone made artifacts occidental Amazonic group, is described as an
constitutes of flutes from the groups Tukano awl (Photo 10 - piece n. 1), and is used among
and Maku (Photo 7 - pieces n. 1 and 2), Bacairi, other things, to perforate the lower lip, earlo­
Arawete, and Erigpatsa (Photo 8 - pieces n. 1, bes, and nasal membrane. Another one, made
2, and 3), and Karaja (Photo 9). They are made out of a long monkey bone by the Bororo, is
basically the same way. A long bird bone, described as an implement for scratching the

Photo 7 - 1 = flute decorated with beetle wings - Tukano; 2 = flute - Maku.

Photo 8 - 1 = flute - Bacairi; 2 = flute - Arawete'; 3 = flute - Erigpatsa.

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BEZERRA DE ALM EIDA, M. An archaeological view o f the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: reviewing function. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo,
11\ 2 6 3 -2 7 4 , 2 0 0 1 .

system - including the


making of the points and
their specific usage,
besides the investigation
of the relationships
between hunted animals
by each kind of arrow, and
the animals used in making
of such arrows (see
Photo 9 - Flute - Karaja.
MacGhee 1996).
The flutes are artifacts
head (Photo 10 - piece n. 2). And at last, an sufficiently evident from the standpoint of its
awl related to the Maue group, is decorated recognition in the archaeological record.
with incisions (Photo 10 - piece n. 3). Interesting of mentioning is their similar
Finally, an extremely singular group of building techniques and the fact they are
artifacts: an axe whose blade is a bone plaque originated from distinct groups. In an archaeo­
(probably of a large aquatic mammal), from the logical analysis, it is almost certain that they
Ipurina groups (Photo 11). A monkey cranium would have been attributed to a same culture.
used as a globular rattle by the Karajas (Photo In the case of the three artifacts made out
12). A small container made out of bone, of long sharpened bones, they would likewise
described as used for drinking water by ill have been identified as awls in the archaeo­
people, from the Tikuna group (Photo 13 - n. 1). logical samples, and serve as an example of a
And a fragment of a monkey cranium cap used different functional attribution, or double
as a spoon, by the Mura-Piraha groups (Photo function. They still show that even with the
13 - piece n. 2). collector’s register it is difficult to define
These artifacts may be rearranged in other uses.
categories according to the methodological Finally, the last group of artifacts. The
procedures chosen for the research (Ribeiro 1986). Ipurina axe, certainly a ceremonial object,
In the first group we can see the differen­ within the context of its cultural system can be
tiated use of the same raw materials (loosen or studied as a globular rattle, in the light of
even unloosen teeth), and the making of symbolic approaches that privilege discus­
similar artifacts by different groups, used also sions around the metaphors of material culture
in different ways. (Tilley 1996). Lastly, the bone utilized, without
The arrows group, furnish us with any sort of alteration for drinking and eating
elements for the study of the technical purposes.

Photo ¡0 - 1 = awl; 2 = used to scratehs head - Bororo; 3 = awl - Maué.

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BEZERRA DE ALM EIDA, M. An archaeological view o f the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: reviewing function. R evista do M useu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo,
11\ 2 6 3 -2 7 4 , 2 0 0 1 .

by Brazilian archaeologists. The scarce


existing studies deal with the ceramic materials
(Andrade Lima 1986), although Brazilian
archaeology has much to gain with the study
of those collections.
For research in the Amazonie region, the
information resulted from specific analyses
of these collections can be extremely advan­
tageous, mainly concerning regions such as
the Rio Negro area, where archaeology has
been recognizing a continuity between
prehistoric and contem porary populations
(Neves 1999). It is widely known that the
archaeological record of Amazonie sites
gives excessive privilege to ceramic mate­
rials. However, the analysis of artifacts made
out of different materials is equally impor­
tant, once they often give clues to the

Photo 11 - Axe with blade made o f bone - Ipurina.

We do not intend to know how the


prehistoric groups thought, but what they
did and how they did is our main preoccu­
pation.
Here we briefly presented a small portion
of this 28.000 specimen collection that we are
currently studying. What strikes us the most Photo 12 - Globular rattle made o f monkey cranium
is the little attention given to these collections - Karajd.

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BEZERRA D E ALM EIDA, M. An archaeological view o f the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: reviewing function. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo,
11: 2 6 3 -2 7 4 , 2 0 0 1 .

Another question is the establishment of


seriated and chronological sequences based
solely in ceramics. It cannot account for the
ethnic and linguistic plurality in Amazonia.
This search must be careful, once that due to
its fluid and polymorphic character, the
recognition of ethnicity in the archaeological
record is not an easy task. According to Diaz-
Andreu (1999),1 archaeology cannot study
ethnic identity in isolation of other types of
identification as gender, religion, and status,
among others.
The Amazonic collections, as we briefly
saw here, reinforce the necessity of a syste­
matic ethnoarchaeological study in the
Photo 13 - 1 - container made o f bone used to region. The material expose singularities of
drink water - Tikuna; 2 = fragment o f monkey different social groups, similarities of artifacts
cranium used as spoon. produced in different cultural systems, and
the use of similar artifacts in different con­
texts. Finally, we wanted to show the vast
understanding of the relationships of these
array of possibilities in the study of diverse
populations and their environment.
archaeological issues having as object this
Besides, the studies in the region have been
kind of collection.
increasing in the last years, as well as the
number of prehistoric sites presenting faunal The interpretation of material culture by
remains (Roosevelt 1999). archaeology is a contemporary activity (Tilley
Moreover, the discussions about multi­ 1996). The study of ethnographic collection is
ethnicity in that region and the support of an experience both contemporary and as
ethnographic data can bring to this issue, have such, alive and fascinating for the archaeo­
been provoking positive practical results in the logist.
Xingu (see Heckenberger 1996) and Rio Negro
(see Neves 1998) areas, as well as in the pioneer
work by Wiist( 1983, 1987/89, 1990, 1994) among Acknowledgments
the Bororo. To some researchers, as Roosevelt,
the “ethnographic projection” is truly a problem, To the Department of Anthropology of
due to the impact of the conquest over native the National Museum; to Fátima Regina
populations that would had made it impossible Nascimento (and her team), curator of the
for the drawing of comparisons between contem­ collections of the Ethnology Sector at the
porary native societies. However, ethnohistory National Museum; to Dr. Hélio Vianna,
has been showing that such an impact happened professor of Ethnology at the National
in different ways within that region (Porro 1996), Museum; to the archaeologist Lilian Thomaz
what makes it viable for comparisons in determi­ for the photos. To the archaeologist Alfredo
ned areas. Minetti of Indiana University.

(1) Lecture “N acionalism o e Etnicidade”, Museu de


Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo. 19th N ovem ber, 1999. São Paulo.

271
BEZERRA DE ALM EIDA, M. An archaeological view o f the Amazonian ethnographic collections at the National
Museum o f Rio de Janeiro, Brazil: review ing function. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo,
11: 2 6 3 -2 7 4 , 2001.

BEZERRA DE ALMEIDA, M. An archaeological view of the Amazonian ethno­


graphic collections at the National Museum of Rio de Janeiro, Brazil: reviewing
function. R evista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 263-274,
2001.

ABSTRACT: From the last decades of the ninetheenth-century to the


present, amateur’s expeditions and researchers during their fieldworks,
collected more than 25.000 objects that form the ethnographic collections at
the National Museum of Rio de Janeiro. The study of the techniques and
meanings attached to these objects, enriches the interpretation in archaeo­
logy. We assume that the study of the material culture of the Amazonian
indians enables us to formulate more questions to the archaeological record.

UNITERMS: Ethnographic collections - National Museum of Rio de


Janeiro - Archaeology - Animal bones.

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Recebido para publicação em 23 de novembro de 2000.


Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tn ologia, S. Paulo, 11: 2 7 5-282, 2001.

MAE-USP AMPHORA COLLECTION:


VESSELS AND INSCRIPTIONS

Pedro Paulo A. Funari*

FUNARI, P.P.A. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do


Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 275-282, 2001.

RESUMO: O Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São


Paulo possui uma coleção de ánforas, com cinco selos e três peças anepigrá­
ficas. Após uma introdução geral, há um catálogo de selos (quatro ródios e
um de Cnido) e de ánforas (duas greco-itálicas e uma grega). O artigo conclui-
se com um comentário sobre estas ánforas como evidência arqueológica.

UNITERMOS: Selos de ánforas - Rodes - Cnido - Ánforas greco-itálicas.

Amphorae were an important form of vessel was in use in the Minoan and My­
trade-packaging in the ancient world. They cenaean periods but Greece did not adopt the
were used for transporting liquid commodities, typical amphora shape until the seventh
usually wine, olive-oil and fish sauces. They century B.C.. Amphorae from different cities
were used first and foremost as containers for developed their own distinctive forms, per­
long distance commerce and supply. Ampho­ mitting the easy recognition of their contents
rae provide us a direct witness of the move­ in the market (cf. Funari 1985a).
ment of foodstuffs, important for both econo­ The handles of Greek amphorae were often
mic and cultural reasons. The study of these stamped, referring to producing estates, names
vessels is also made easier by the existence of of ephors and months, being certificates of
a substantial body of epigraphic information, capacity, guarantee of weight of contents for
as many bear stamps impressed in the clay both taxation and consumer information (Grace
before firing and/or painted inscriptions 1949). The evidence of the stamps indicates
written after firing (Peacock and Williams 1986: that amphorae from Rhodes and Knidos were
2). Amphora, in Greek “a vessel for transport exported from the homeland to the colonies
with two handles” (Funari 1987), was first in and settlements around the Mediterranean
use in the Palestine in the fifteenth century basin. Greek settlement and trade in southern
B.C. The Canaanite jar travelled extensively Italy and Sicily led to the development, around
outside the Palestine region, soon reaching the later fourth and early third centuries B.C.
Greece. The biconical form of the Canaanite of the so-called Greco-Italic amphorae (Will
1982). The fabric of most amphorae is coarse
and mineral and rock inclusions are rife. Large
(*) Departamento de História do Instituto de vessels were usually built up in stages, smaller
F ilosofia e Ciências Humanas da Universidade ones were produced as ordinary pottery. All
Estadual de Campinas. the amphorae required to have its mouth

275
FUNARI, P.RA. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 2 7 5 -2 8 2, 2001.

sealed, being usual different stoppers, like Knidos are ubiquitous (more than 60%) and
cork or fired clay closures. those from Rhodes are not negligible (more than
Amphora studies has been developing 20%) (Grace 1952:517). They also reached Italian
since the nineteenth century, most notably markets in large numbers. Most amphorae were
since the 1970s (Funari 1985b). The main probably unstamped and it is hard to know the
specialised areas are classification and typo­ proportion of stamped to unstamped amphorae.
logy, petrography and epigraphy, usually of Usually, Rhodian and Knidian stamps bear two
particular amphora types. The study of names, one referring to the owner and the other
amphorae has been important for the economic to an eponymous magistrate, dating the amphora
and social interpretation of the ancient world, and the wine. Rhodian amphorae usually bear
as they provide a plethora of data on the two stamps, on the top of each handle, with the
ancient economy, society, habits and culture. following data: a date given by the name of the
Amphorae provide unique information on such eponymous magistrate (epi+ name in the geniti­
subjects as commodities movements and ve), name of the Rhodian month (after 275 B.C.),
cultural habits, being directly linked to iden­ another name in the genitive, probably referring
tity. Amphora studies have contributed to a to the authorised manufacturer. The stamp is
better understanding of the ancient world circular, with the symbol of the city, a rose, in its
(Garlan 1986:7), particularly through the core, although sometimes it is rectangular, other
publication of gazetteers of potteries (Empe- images being also possibly present (Grace 1961:
reur and Picon 1986), catalogues of inscrip­ 12; Grace and Savvatianou -Petropoulakou 1970:
tions (Empereur 1982, Empereur and Guimier- 279,293; Van der Werff 1977: 34; Debibour 1979:
Sorbets 1986, cf. Funari 1997: 85-86) and other 271). Stamps from Knidos bear the name of a
efforts to publish and study corpora (Funari magistrate and of the authorised manufacturer
1994). This way, it is possible to produce an (Grace 1961: 12). Stamps from the two cities
informed analysis of ancient society: w ir ts ­ change after 146 B.C., when the Romans intro­
chaftliche Prozesse sind nicht selten in eine duce the names of two controlling officials
nahezu naturgestzlische Rhetorik gekleidet (Grace 1961:20).
worden. Was im Grunde erforderlich ist, ist
eine soziale Geschichte der ökonomischen Catalogue of stamps
Sphäre, wie es die soziale Geschichte des l .E A
‘sozialen’ gibt (Wellkopp 1998: 182). AAAIO Y
The aim of this paper is to produce a
Size o f the stamp: 5.0 x 1.8 cm.
catalogue of amphorae and amphora stamps in Shape o f the stamp: rectangular.
the stores of the Museu de Arqueologia e Fabric: buff.
Etnologia da Universidade de São Paulo. This Dating: after 275 B.C.
Museum stores two Greco-Italic amphorae and Number: M AE-USP 64/11.18, donated by the Italian
governm ent.
a Greek one, as well as five stamps, four from
Producing area: Rhodes.
Rhodes and one from Knidos. Find place: Italy.
Description o f the shard: handle o f a Rhodian
amphora, the diameter o f the rim is calculated to be
Stamps from Rhodes and Knidos 12.8 cm and the angle o f the stamp in relation to the
neck is 21degrees (Fig. 1).
The reference to the Rhodian month
Wine was an important commodity exchan­
SaAiocr in the genitive indicates that the stamp
ged during the Hellenistic period (Grace 1961: 14)
was prouuce after 275 B.C., when months were
and Rhodian and Knidian wine were widely
introduced in the Rhodian amphorae.
exported, as they were cheap. Wines from
Rhodes and Knidos were important in several 2 [A ]P II[T O ]K A A E Y I
markets, being Knidian some 65% of the more Second mark: P (1 x 1 cm)
than 40,000 amphora stamps found at Athens Size o f the stamp: 3.2 cm.
and Rhodian more than 85% of the 90,000 stamps Shape o f the stamp: circular.
found at Alexandria. At Delos, stamps from Fabric: grey.

276
FUNARI, P.RA. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 2 7 5 -2 8 2, 2001.

Dating: beginning o f the second century B.C. 11.6 cm and the angle o f the handle in relation to
Number: M A E -U SP 6 4 /11.32., donated by the Italian the neck is 21 degrees (Fig. 2).
govern m en t. The stamp refers to a Rhodian manu­
Producing area: Rhodes.
Find place: Italy.
facturer called Aristokles, who was active in
Description o f the shard: handle o f a Rhodian the last fifty years before Roman rule, from 146
amphora, the diameter o f the rim is calculated to be B.C., enabling us to date it in the first half of

Fig. 1.

Fig. 2.

277
FUNARI, RRA. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 77: 2 7 5 -282, 2001.

the second century B.C. (Grace 1952: 526; Dating: between 220 and 180 B.C.
Number: M AE-USP 75/1.42, donated by U.T.B.
Grace and Savvatianou-Petropulakou
M eneses.
1970:327). Producing area: Rhodes.
Find place: Delos.
3. [X]0[K P]A TEY X Description o f the shard: handle o f a Rhodian
amphora, the angle o f the handle in relation to the
S ize o f the stamp: 3.4 cm.
Shape o f the stamp: circular. neck being 11 degrees (Fig. 4).
Fabric: grey, whitened surface, reddish in core. A Rhodian manufacturer called Prato-
Dating: betw een 275 and 180 B.C. phanes is well known to be active between 220
N um ber: M A E -U S P 7 5 /1 .4 1 , d on ated by U .T .B . and 180 B.C. (Grace 1952: 529; Grace and
M en eses. Savvatianou-Petropoulakou 1970: 294).
Producing area: Rhodes.
Find place: D elos. 5. A T A 0IN O Y
Description o f the shard: handle o f a Rhodian KNIAIN
amphora, the diameter o f the rim is calculated to be am phora
13.4 cm and the angle o f the handle in relation to Size of the stamp: 5.6 x 1.6 cm.
the neck is 15 degrees (Fig. 3). Shape o f the stamp: rectangular, with a depiction o f a
We know two different Rhodian manu­ Knidian amphora.
facturers called Sokrates, one active in the Fabric: red.
Dating: mid second century B.C.
period between 275 and 180 B.C. and another
Number: M AE-USP 75/1.43, donated by U.T.B.
one between 146 and the end of the second M eneses.
century B.C. Considering the angle of the Producing area: Knidos.
handle, an earlier date is proposed (Grace 1952: Find place: Delos.
530; Grace and Savvatianou-Patropoulakou Description of the shard: handle of a Knidian
1970: 302). amphora, the angle o f the handle in relation to the
neck being 10 degrees (Fig. 5).
4. E n inP A T O O A N A manufacturer Agathinos is known to
riA N A M O Y be active sometime before and after the
Size o f the stamp: 3.9 x 1.9 cm. Roman intervention in 146 B.C. (Grace 1952:
Shape o f the stamp: rectangular. 530; Grace and Savvatianou-Patropoulakou
Fabric: grey, whitened surface, reddish in core. 1970:294).

Fig. 3.

278
FUNARI, P.P.A. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 2 7 5 -2 8 2 , 2001.

Fig. 5.

279
FUNARI, P.RA. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11\ 2 7 5 -2 82, 2001.

Catalogue of wine amphorae Fabric: buff.


Dating: 350-250 B.C.
1. G raeco-Italic amphora Number: M AE-USP 64/9.6, donated by the Italian
governm ent.
Size: height, 40 cm; rim diameter, 14 cm; neck, 7 Producing area: Italy.
cm, diameter, 8,5 cm; body width, 21 cm. Find place: Toscanella, Tumb o f the Velinii (Italy).
Shape o f vessel: pear-shaped. D escription o f the vessel: triangular rim, c y ­
Fabric: grey. lindrical neck and carinated shoulder, ovoid
Dating: 350 -2 5 0 B.C. handles are attached b elo w the rim and on to the
Number: M AE-USP 64/9.5, donated by the Italian shoulders, body pearl-shaped and has a short solid
g overn m en t. spike (Fig. 7).
Producing area: Italy.
Find place: C astiglioncello (Livorno, Italy).
3. Greek amphora (fragment)
Description o f the vessel: triangular rim, cylindrical
neck and carinated shoulder, ovoid handles are Size: height, 69.5 cm; neck diameter, 12 cm; spike
attached below the rim and on to t,he shoulders, body h eight, 10.5 cm.
pearl-shaped and has a short solid spike (Fig. 6 ). Shape o f vessel: cylindrical body.
Fabric: red.
2. G raeco-Italic amphora Dating: fifth to fourth century B.C..
Number: M AE-USP 64/11.3, donated by the Italian
Size: height, 48 cm; rim diameter, 12 cm; neck, 12
govern m en t.
cm, diameter, 8,4 cm; body width, 19.8 cm.
Producing area: Greece.
Shape o f vessel: pear-shaped.
Find place: Palermo, Punic necropolis (Italy).
Description of the vessel: cylindrical body with a
rounded shoulder and long, rod-like handles, and a
short and stumpy spike (Fig. 8 ).
Graeco-Italic amphorae are also known as
Républicaine 1, Lamboglia 4 and Peacock and
Williams class 2 (Peacock and Williams 1986:
84-85; criticism of the term “Graeco-Italic” in
Manacorda 1986). Graeco-Italic amphorae are
at once Hellenistic Greek and Republican
Roman and are the result of the coalescence of
Roman and Hellenistic worlds and the sprout
of mass markets. Objects of trade became
standardised and the wine amphorae were
produced in several Mediterranean areas
during the period between the end of the
fourth century B.C. until the mid second
century B.C. (Will 1982). The two Graeco-Italic
amphorae at the MAE-USP represent two
different standards, even though both are
within the range of the smaller containers.

Conclusions

The few amphorae and amphora stamps


stored at the MAE-USP are a small sample
of a most ubiquitous archaeological artefact
found in the M editerranean. The stamps are
from Greek cities and are clear evidence of
the importance, during late Hellenistic
times, of municipal control of the produc­
Fig. 6. tion and trade in wine. They also reveal the

280
FUNARI, P.P.A. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 77: 2 7 5 -2 8 2, 2001 .

Fig. 7. Fig. 8.

continuing im portance of city state institu­ changes in the M editerranean and by their
tions until the Roman intervention in 146 materiality these amphorae are odd eviden­
B.C. The Greek style amphora in a Punic ce of the social life in the ancient world.
context is an indication that despite rival­
ries, wine trade was, since earlier times,
putting in contact different peoples. The Acknowledgments
so-called pan-M editerranean G raeco-Italic
amphorae represent a new phase in the I owe thanks to the following colleagues:
developm ent o f trade and m anufacture, as Jean-Yves Empereur, Haiganuch Sarian, J.A.
they were produced in several areas scatte­ Van der Werff, Elizabeth Lyding Will, David
red around the large M editerranean basin, Williams, as well as to Célia Maria Cristina de
containing standardised volum es of suppo­ Martini. The ideas presented here are my own
sedly sim ilar quality wines. They bear and for which I alone am therefore res­
witness to econom ic, social and cultural ponsible.

281
FUNARI, P.RA. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 2 7 5 -2 82, 2001.

FUNARI, P.P.A. M AE-USP amphora collection: vessels and inscriptions. Rev. do


Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 275-282, 2001.

ABSTRACT: The Museu de Arqueologia e Etnologia of the São Paulo


University has an amphora collection of five amphora stamps and three amphorae.
After a general introduction, there is a catalogue of stamps (four Rhodian and
one Knidian) and amphorae (two Graeco-Italic and a Greek one). The paper
concludes with a comment on these amphorae as archaeological evidence.

UNITERMS: Amphorae stamps - Rhodes - Knidos - Graeco-Italic amphorae.

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a catalogu e o f stamps. BAR, Oxford. 3 3 8 -3 5 6 .

Recebido p a ra p u b lica çã o em 12 de ju n ho de 2000.

282
Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

FIGURINHAS FEMININAS SÍRIAS E IRANIANAS


NO ACERVO DO MAE/USP

Alessandra Cristina Monteiro de Castro Trigo*

TRIGO, A.C.M.C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev.


do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

RESUMO: Neste artigp a autora propõe um cadastro atualizado das


figurinhas femininas sírias e iranianas do acervo do MAE-USP. Lida com as
questões de contexto arqueológico em que foram encotradas, problemas da
cronologia e da interpretação da divindade (?) representada. Ao final do artigo
há uma tentativa de interpretação da função social destas figurinhas.

UNITERMOS: Terracotas femininas - Médio Oriente Antigo - Síria Antiga


- Irã Antigo - Magia feminina.

Introdução Perfazendo um total de três, as peças


provenientes da Síria entraram nesta Institui­
ção doadas pelo Professor Marianno Carneiro
O Museu de Arqueologia e Etnologia da
da Cunha, em 1972, formando parte da coleção
Universidade de São Paulo (MAE/USP) possui
número oito. Essas peças têm como número de
em seu acervo arqueológico algumas figurin­
registro os seguintes códigos: 72/8.5; 72/8.6; e
has femininas de terracota provenientes da
72/8.7.2 As duas primeiras encontram-se em
Síria, Oriente Próximo, e do Elam,1 atual Irã. exposição no setor Mediterrâneo do próprio
Configura-se, assim, a presença de peças Museu. A última encontra-se disponível na
originárias do Médio Oriente e do Oriente sua Reserva Técnica. Para todas elas, possuí­
propriamente dito. mos dados iniciais quanto ao local de origem,
a cronologia e o tipo de estatueta; estão
identificadas como representações da deusa
Ishtar.
(*) Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq de
janeiro de 1997 a dezembro de 1999, sob orientação da As nove peças provenientes do Elam,
Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano, que mais precisamente do sítio arqueológico da
muito contribuiu para a produção deste artigo. cidade de Susa, deram entrada no Museu em
(1) N om e dado pelos sumérios e acadianos aos seus
vizinhos da porção sudoeste do Irã. O fim do mundo
elamita se deu por volta de 640 a.C. quando de sua
conquista pelo rei assírio Assurbanipal. (2) Ver item II - C atálogo deste texto.

283
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn ologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

vários momentos. Inicialmente, foi feito um escavada pelo geólogo e pesquisador britâni­
depósito pelo Sr. Edgardo Pires Ferreira, em co William Kennett Loftus. Em seguida, entre
1971, do qual constavam cinco peças, 1884-86, o casal francês Mareei e Jane Dieulafoy
catalogadas na coleção número cinco trabalhou na região. Em 1894, o ministro da
daquele ano: 71/5.1; 71//5.2; 71/5.3; 71/5.4; e França, na Pérsia, elaborou um acordo inter-
71/5.5.3 govemamental que garantia ao seu país a
No ano seguinte, um outro depósito de exclusividade da pesquisa arqueológica do
três peças foi realizado pelo mesmo Edgardo local. Disto resultou a criação da Missão
Pires Ferreira, peças que juntamente com Francesa na Pérsia que recebeu vários nomes,
outras constituíram a coleção número quatro: entre eles o de Delegação Arqueológica do Irã
72/4.1; 72/4.2; e 72/4.3.4 Ainda neste mesmo (Mecquenem 1980: 2-4). Durante as duas
ano, o Professor Marianno Carneiro da Cunha grandes guerras mundiais, as pesquisas
realizou a doação de mais uma peça desta arqueológicas foram suspensas e somente em
mesma proveniência que integrou a coleção 1946, sob a direção de Roman Ghirshman,
número oito: 72/8.3.5 As peças 71/5.1; 72/4.1 e foram retomadas (http://www.iranica.com/
72/4.3 também estão expostas no setor articles/v7f313.html).
Mediterrâneo e as outras encontram-se O Museu do Louvre é o maior depositá­
conservadas na Reserva Técnica do MAE/ rio dos resultados de mais de trinta anos de
USP. pesquisas realizadas nessa região, possuin­
As fichas catalográficas referentes às do um grande acervo desses “pequenos
peças procedentes do primeiro depósito do monumentos” de material comum, de caráter
Sr. Pires Ferreira forneceram dados relativos à popular e, quase sempre fragmentado, o
sua proveniência, ao local de origem, ao tipo que vem desencorajando as publicações
de peça e à sua cronologia. As provenientes sistem áticas. Entretanto, segundo o pesqui­
do segundo depósito também abordam os sador Pierre Amiet, este material está
mesmos tipos de dados. A exceção é a peça conservado e disponível para estudo
72/8.3, doada pelo Professor Marianno. A (Spycket 1992: IX).
obtenção de seus dados descritivos exigiu Com a coordenação de Roman Ghirshman,
pesquisa no livro de tombo do acervo do foi empreendida uma pesquisa rigorosa de
MAE/USP. escavação do grande canteiro estratigráfico A,
A confirmação dos dados das fichas aberto ao norte da Ville Royale. A abertura
catalográficas relativas a cada figurinha desse canteiro permitiu identificar a cronologia
feminina exigiu demorada pesquisa, tendo a partir do final do III milênio até a época
em vista a escassa bibliografia especializada Sassânida, século VII da nossa era. À exceção
disponível em nosso país. Não obstante, de alguns curtos períodos de submissão a
contatos realizados com instituições interna­ Sumer e à Babilônia, a originalidade da produ­
cionais via e-mail e diretamente com a ção susiana é visível e merece um estudo de
Universidade de Tel-Aviv (Israel), con­ longa duração.
substanciaram as informações aqui ofereci­ Segundo os dados de fichas cata­
das. lográficas inicialmente conservadas no
Serviço de Documentação do MAE/USP, as
figurinhas femininas são provenientes de
Breve histórico das escavações em Susa Susa, escavadas por Ghirshman, na década
de 1960, no sítio denominado Ville Royale.
Na segunda metade do século passado, de Sabe-se que este pesquisador trabalhou
maneira assistemática, a região de Susa foi principalmente com os níveis datados do II
milênio antes da era cristã.
A Ville Royale é uma das quatro partes
definidas pela equipe de Dieulafoy. As
(3) Idem.
(4) Idem. outras três são a Apadana, a Acrópole e o
(5) Idem. Donjon (Mecquenem 1980: 3). Nesta área

284
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn o lo g ia , São Paulo, 77: 283-299, 2001.

escavada encontram -se os vestígios de uma franceses e próxima de Susa). Note-se que a
cidade. Durante os trabalhos na Ville partir deste nível, apesar de as estatuetas
Royale, Ghirshman, além do canteiro A, serem ainda encontradas dispersas pelas ruas,
abriu outro canteiro de escavação denomina­ tem início alguma concentração em locais
do B. Aberto posteriormente ao A e de sagrados, especialmente das estatuetas
dimensão muito inferior, o canteiro B corres­ femininas segurando crianças.
ponde no nível VII, o mais antigo deles, à De acordo com Spycket (1992: 233), as
época do início da Dinastia Shimashki. Nos figurinhas mais avantajadas nos quadris
níveis VI e V, que apresentam uma produção encontradas nos níveis A X e A IX devem ser
homogênea, encontram-se paralelos com o classificadas como puramente elamitas (e não
poço oito da Acrópole (Spycket 1992: 36 - neo-elamitas como os pesquisadores conside­
37,237). raram) ou seja, que as mudanças de estilo
Ghirshman definiu com bastante seguran­ identificadas não implicam em descontinuidade
ça a estratigrafía do canteiro B que vai da III da tradição elamita.
Dinastia de Ur, Isin-Larsa/ Shimashkki/ fim do Apresentamos a seguir a tabela cronoló­
III e início do II milênio, separando-se do gica elaborada por Spycket (1992: 232) com
canteiro A que corresponde à I Dinastia as diferentes datações propostas pelos
Babilónica, Shakkanakku/séculos XIX - XVI. especialistas. Observamos, entretanto, que
Esta classificação, porém, ainda exige, segun­ em nosso catálogo, adotamos a cronologia
do Spycket, novas investigações de campo de Spycket.
(Spycket 1992: 36).
As escavações estratigráficas dos cantei­
ros A e B apresentam os elementos mais
importantes para a datação das nossas Tabela comparativa das diversas cronologias
figurinhas de terracota, pois estas foram (Spycket 1992) das camadas estratigráficas da
encontradas em grande número nesses locais Ville Royale
(Spycket 1992: 230). Steve - Gasche - Stolper - Carter Spycket
De Meyer (1980) (1984) (1992)
Problemas com a cronologia 1000
A IX A IX A IX
1100
A Ville Royale de Susa apresenta uma
X
estratigrafía complexa, cuja cronologia - X X
assim como indicada pela bibliografia consul­ 1200
tada - é ainda motivo de debate. As esta­ XI
tuetas femininas de terracota foram encontra­ 1300

das em praticamente todos os níveis estra-


1400 XI XII
tigráficos. XI
Nota-se a partir do nível A XV a fragmen­ 1500
tação de estatuetas e sua dispersão pelas XII XII XIII
ruas em lugares públicos. Não há, como em 1600
XIII XIII
outras épocas e locais do Mediterrâneo
XIV
antigo, uma concentração de estatuetas em 1700 XIV
túmulos e locais sagrados. Este fato é regis­
trado pelos pesquisadores também nas XV XIV XV
camadas A XIV e A XIII. Nesta última, é 1800
BV XV BV
notável o aumento do número de estatuetas
1900
encontradas. B VI BV B VI
A partir da camada A XIII os especialistas 2000
puderam identificar paralelos de achados B VII B VII
arqueológicos entre a Ville Royale e Tchoga 2100 B VI
Zanbil (localidade escavada igualmente pelos BVII

285
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tnologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

CATÁLOGO

Figurinhas de Hamã, Síria

Estatueta feminina de terracota clara bege rosada


trazendo brincos, colar e adorno de cabeça; abaixo do
umbigo duas linhas pontilhadas. Braços apenas
indicados por duas protuberâncias.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a da
m odelagem , com aplicação posterior de olhos e
umbigo. Perfuração de olhos, umbigo, orelhas e
adorno de cabeça, incisões indicando algum tipo de
vestimenta abaixo do umbigo. A peça está bem
conservada, fragmentada nos pés.
Cronologia: Bronze M édio ou Sírio Antigo (ca. 1970
- 1750 a.C.).
Ref. bibliográfica: Barrelet, FRTMA, 1968: 76.

1. MAE/USP, 72/8.5
P rocedên cia: Hamã, Síria.
Dim ensões: 14,0 x 4,5 x 2,8 cm.

Estatueta feminina de terracota clara trazendo colar e


adorno de cabeça; abaixo do umbigo algumas linhas
marcadas. Braços sustentando os seios.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a da
m odelagem , com aplicação posterior de olhos e
umbigo. Perfuração de olhos, umbigo e adorno de
cabeça, linhas indicando algum tipo de vestimenta
abaixo do umbigo. A peça está bem conservada.
Cronologia: Bronze M édio ou Sírio Antigo (ca. 1970
- 1750 a.C.).
Ref. bibliográfica: Barrelet, FRTMA, 1968: 76.

2. MAE/USP, 72/8.6
P rocedên cia: Hamã, Síria.
D im ensões: 13,3 x 3,3 x 2,3 cm.

286
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev ido Museu de A rqueologia
e E tn ologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Estatueta fem inina de terracota clara trazendo colar e


adorno de cabeça. M ãos sustentando os seios.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a da
m odelagem, com aplicação posterior de olhos e
umbigo. Perfuração de olhos, umbigo, orelhas e
adorno de cabeça. A peça está bem conservada.
Cronologia: Bronze M édio ou Sírio Antigo (ca. 1970
- 1750 a.C.).
Ref. bibliográfica: Barrelet, FRTMA, 1968: 76.

3. MAE/USP, 72/8.7
P rocedên cia: Hamã, Síria.
Dim ensões: 9,0 x 2,8 x 1,6 cm.

Estas três peças, 72/8.5, 72/8.6 e 72/8.7,


acompanhando-se a obra de Barrelet, FRTMA,
1968: 76, podem ser atribuídas, com probabili­
dade, aos níveis estratigráficos a partir do J8 e
por todo o H.

287
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USR Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn o lo g ia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Figurinhas de Susa, Irã

Estatueta fem inina de terracota clara, não foi


removida toda a borda do molde. Tem a mão esquerda
sustentando os seios.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a moldagem,
apresentando os detalhes do rosto bastante ressalta­
dos. Seu estado de conservação é precário, m esmo
assim, aproxima-se das figurinhas 343, 354 do
catálogo de Spycket. A peça apresenta pontos de
ferrugem acima da cabeça e na base que se encontra
fragmentada.
Cronologia: final do III e início do II milênio: III
Dinastia de Ur (2150-2000 a.C.) - Isin/Larsa (2020-
1800 a.C.) - Dinastia de Shimashki - início dos
Sukkalmah.
Ref. bibliográfica: Spycket, LFS, 1992: 69-70.

4. M A E /U SP, 72/8.3
P rocedên cia: Susa, Irã.
Dim ensões: 11,0 x 2,9 x 2,2 cm.

Salvo exceções, as figurinhas modeladas


desaparecem depois dos primeiros séculos do
II milênio dando-se preferência à' produção
moldada. Uma inovação na produção cerâmica
é o uso de engobo durante o II milênio antes
de Cristo. Na categoria das figuras moldadas
ou modeladas, as femininas nuas são predomi­
nantes (Spycket 1992: 36).
Spycket (1992: 64) assinala a existência de
dois moldes cujo modelo de figurinha correspon­
de à série representada pelo tipo número 343,
ainda que sejam menores do que esta peça. Estes
estão preservados no Museu do Louvre (345) e
na Coleção Babilónica de Yale. Exemplares
semelhantes foram descobertos no sul da
Mesopotâmia, em Larsa, Uruk e Ur.
Realizando-se uma comparação entre as
dimensões das peças que constam na
obra de Spycket com as do nosso
museu, percebem-se suas similaridades. Fonte: Spycket, A., 1992 (343, 344).

288
TRIGO, A.C.M .C . Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do M useu de A rqueologia
e E tn ologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Os Sukkalmah possivelm ente com eça­


ram a reinar enquanto as Dinastias de Isin e
de Larsa lutavam pela supremacia e m anti­
veram -se no poder durante quatro séculos
paralelamente à I Dinastia Babilónica
depois do primeiro século kassita. Este
período cobre particularm ente os níveis
estratigráficos de XV a XIII do canteiro A.
No canteiro B, nível VI, foram encontrados
dois exemplares dessa época (Spycket,
números 508 e 673). Durante o tempo dos
Sukkalmah, as figurinhas m asculinas são
mais numerosas do que as femininas. E
importante observar que a utilização dos
moldes permitiu uma generalização das
“figurinhas-placas” concebidas de acordo
com o princípio da frontalidade (Spycket
1992: 84). Essa peça de número 71/5.3
(MAE/USP) é semelhante à encontrada no
F o n te: Spycket, A., 1992 (345). catálogo de Spycket indicada pela num era­
ção 430 e seu molde de número 431.

Estatueta fem inina de terracota avermelhada com


presença de engobo. Apresenta as mãos juntas abaixo
dos seios, adorno de cabeça, colar.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a mol-
dagem . Encontra-se fragmentada logo abaixo das
mãos e aproxima-se das figurinhas 430 e 431 do
catálogo de Spycket.
Cronologia: primeira metade do II m ilênio a.C.: I
Dinastia Babilônica - início dos Kassitas - os
Sukkalmah.
Ref. bibliográfica: Spycket, LFS, 1992: 88.

5. MAE/USP, 71/5.3
P rocedên cia: Susa, Irã.
D im ensões: 5,1 x 3 ,0 x 1,8 cm.

789
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Fonte: Spycket, A., 1992 (508 e 673).

Fonte: Spycket, A., 1992 (430 e 431).

290
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn o lo g ia, São Paulo, 77: 283-299, 2001.

Estatueta fem inina de terracota ocre com presença de engobo.


Apresenta as mãos sustentando os seios, adorno de cabeça,
colar e uma faixa cruzando o tórax da direita para a esquerda.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a moldagem.
Encontra-se fragmentada um pouco abaixo do umbigo e
aproxima-se das figurinhas 9806 e 981 do catálogo de Spycket.
Cronologia: segunda metade do II milênio: época médio
elam ita (1 5 0 0 - 1000 a.C.).
Ref. bibliográfica: Spycket, LFS, 1992: 161.

6. MAE/USP, 71/5.4
P rocedên cia: Susa, Irã.
D im ensões: 8,7 x 5,8 x 2,6 cm.

Fonte: Spycket, A., 1992 (980).

(6) A peça número 980 é uma das poucas que foi encontrada
inteira. Sua localização estratigráfica se dá no nível arqueoló­
gico A XIII. Esta figurinha faz parte de uma longa série de
estatuetas femininas nuas com o quadril delgado, sustentando
os seios e apresentando os quatro dedos bem definidos
(Sp yck et 1992: 157). Fonte: Spycket, A., 1992 (981).

291
TRIGO, A.C.M.C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Estatueta fem inina de terracota bege rosada. Apre­


senta as mãos sustentando os seios, adorno de cabeça,
colar e duas faixas cruzando o tórax: uma da direita
para a esquerda e outra da esquerda para a direita com
detalhes de linhas incisas. Entre os seios apresenta-se
um enfeite dessas faixas. Os dedos sob os seios se
apresentam muito bem definidos.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a mol-
dagem. Encontra-se fragmentada logo abaixo do
umbigo e aproxima-se da figurinha 1040 do catálogo
de Spycket.
Cronologia: segunda metade do II milênio: época
m édio-elam ita (1500 - 1000 a.C.).
Ref. bibliográfica: Spycket, LFS, 1992: 168.

7. MAE/USP, 72/4.3
P rocedên cia: Susa, Irã.
Dim ensões: 6,2 x 4,5 x 2,3 cm.

Fonte: Spycket, A., 1992 (1040).

(7) Esse exemplar é de Teheran e foi encontrado na


camada estratigráfica arqueológica A XIII, na área
oeste do canteiro (Spycket, 1992: 165).

292
Ar, \/i A F /T IS P Rev do Museu de A rqueologia
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do M A E / U br. Ke .
e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Estatueta fem inina de terracota bege. Apresenta as


mãos sustentando os seios e duas faixas cruzando o
tórax: uma da direita para a esquerda e outra da
esquerda para a direita com detalhes de linhas incisas.
Entre os seios apresenta-se um enfeite dessas faixas.
Os dedos sob os seios se apresentam muito bem
definidos. Presença de um pingente. Quadril bem
acentuado, um bigo feito posteriorm ente à m oldagem,
definição da região pubiana através de pequenas
esferas.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a molda­
gem . A argila se apresenta porosa de textura grosseira
e com pequenos grãos cinzas em toda a superfície.
Encontra-se fragmentada logo abaixo dos joelhos e é
acéfala. Aproxim a-se das figurinhas 1062 e 1074 do
catálogo de Spycket.
Cronologia: segunda metade do II milênio: época
m édio-elam ita (1500 - 1000 a.C.).
Ref. bibliográfica: Spycket, LFS, 1992: 172-174.

8. MAE/USP, 71/5.1
P rocedên cia: Susa, Irã.
D im ensões: 9,2 x 7,0 x 2,5 cm.

Fonte: Spycket, A., 1992 (1062).

F onte: Spycket, A., 1992 (1074).

293
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn ologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Cabeça de estatueta feminina de terracota creme.


Cabeça apresentando toucado elamita. Rosto muito
bem detalhado.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a moldagem.
Aproxim a-se das figurinhas 1085 e 1086 do catálogo
de Spycket. A figura está fragmentada logo abaixo do
p escoço.
Cronologia: segunda metade do II milênio: época
m édio-elam ita (1500 - 1000 a.C.).
Ref. bibliográfica: Spycket, LFS, 1992: 175.

9. MAE/USP, 71/5.5
P rocedên cia: Susa, Irã.
Dim ensões: 4 ,7 x 3 ,7 x 2,5 cm.

Fonte: Spycket, 1992 (1085). Fonte: Spycket, 1992 (1086).

294
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn o lo g ia , São Paulo, 77: 283-299, 2001.

Estatueta feminina de terracota clara. Apresenta as


mãos sustentando os seios e duas faixas cruzando o
tórax: uma da direita para a esquerda e outra da esquerda
para a direita com detalhes de linhas incisas. Entre os
seios apresenta-se um enfeite dessas faixas. Os dedos sob
os seios se apresentam muito bem definidos. Presença de
um pingente. Quadril bem acentuado, definição da região
pubiana através de pequenas esferas.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a moldagem.
A argila se apresenta porosa de textura grosseira e com
pequenos grãos cinzas e vermelhos em toda a superfí­
cie. Na parte anterior da peça a argila está avermelhada.
Encontra-se fragmentada acima dos joelhos e é
acéfala. Aproxima-se da figurinha 1136 do catálogo de
Spycket.
Cronologia: segunda metade do II milênio: época
m édio-elam ita (1500 - 1000 a.C.).
Ref. bibliográfica: Spycket, LFS, 1992: 181.

10. M A E/U SP, 71/5.2


P rocedên cia: Susa, Irã.
D im ensões: 9,5 x 8,2 x 2,0 cm.

Na camada estratigráfica A XIII percebe-


se uma transformação na mentalidade
popular refletida na mudança radical dos
tipos propostos pelas figurinhas. É provável
que essa modificação corresponda ao
grande número de material arqueológico
encontrado nesta camada. Essas mudanças
prolongam-se por A XII, onde pouco a
pouco o gesto das mãos juntas nas figuras
femininas nuas são substituídos pelas mãos
sustentando os seios. Estas transform ações
culminam em A XI.
Em Tchoga Zanbil, templo religioso da
região de Susa que teve sua expressão máxima
no século XIII a.C., também foram encontradas
figurinhas femininas semelhantes, nuas com as
mãos sustentando os seios E preciso notar,
porém, que neste sítio as figuras femininas
nuas são moldadas em terra porosa, diferente­
mente das de Susa.
Ressalta-se que as peças do período
M édio-Elam ita apresentam tamanhos
com patíveis com os do catálogo de Spycket
Fonte: Spycket, A., 1992 (1136). (1992: 145).

295
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do M useu de A rqueologia
e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 283-299, 2001.

Figurinhas de Susa, Irã


com problemas de classificação

Estatueta feminina de terracota bege. Apresenta as


mãos sustentando os seios e duas faixas cruzando o
tórax: uma da direita para a esquerda e outra da
esquerda para a direita com detalhes de linhas incisas.
Os dedos sob os seios se apresentam muito bem
definidos. Um bigo feito posteriorm ente ao m olde.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a moldagem.
A argila se apresenta porosa de textura grosseira. A
figura apresenta-se acéfala e fragmentada nos pés.

11. MAE/USP, 72/4.1


P rocedên cia: Susa, Irã.
D im ensões: 13,3 x 6,2 x 2,5 cm.

Estatueta fem inina de terracota clara. Apresenta as


mãos juntas abaixo dos seios e uma faixa cruzando o
tórax da direita para a esquerda com detalhes de
linhas incisas. Apresenta algumas linhas na região do
quadril e com pequenos furos na superfície da peça.
Obs.: A técnica de fabricação utilizada foi a moldagem.
A argila se apresenta porosa, de textura grosseira. A
figura apresenta-se acéfala e fragmentada pouco
abaixo dos joelhos.

12. M A E /U SP 72/4.2
P rocedên cia: Susa, Irã.
D im ensões: 9,0 x 5,1 x 2,4 cm.

296
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn ologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

As peças número 72/4.1 e 72/4.2 apresen­ Função das figurinhas femininas susianas
tam problemas de identificação, pois não
encontramos correspondência exata em nenhu­
ma das obras consultadas. Na primeira peça, a De acordo com Contenau (apud Ghirsh-
combinação da posição dos braços e pernas man 1968: 11-13) as figurinhas babilónicas que
não corresponde a nenhum modelo pesquisado. representam a deusa com as mãos cruzadas
Na segunda peça, o corte na argila entre as sob os seios são mais antigas que as que os
pernas e os orifícios nos braços (provavelmente estão sustentando. Mais ainda, este pesquisa­
operados na argila ainda mole, mas depois da dor não acredita que esta seja a imagem de
moldagem) são detalhes que também não foram Ishtar e nem mesmo de nenhuma deusa do
registrados em nenhum catálogo consultado. panteão babilónico. Sobre representar uma
A classificação exata da peça 72/4.1 deverá mulher nua, ele vê, com razão, uma função
aguardar mais dados bibliográficos já que este talismànica e convida a ver nessas figurinhas
modelo talvez possa ser datado do I milênio, o ídolo-símbolo da fecundidade e da reprodu­
época para a qual não está disponível o catálo­ ção.
go correspondente em nossas bibliotecas. No As escavações de Susa, por serem tão
segundo caso (72/4.2) os detalhes diferen- longas e abrangerem os quinze níveis estrati-
ciadores podem eventualmente ser atribuídos a gráficos do sítio, possibilitam uma nova
uma idiossincrasia do artesão. Em nosso material interpretação para essas figurinhas. Pode ser
comparativo, a peça que mais se aproxima desta ampliado o conhe^'mento dos nomes de várias
última é a de número 877 de Spycket (1992: 148) divindades do panteão elamita, ainda que se
datada da segunda metade do II milênio, época continue igonorando as respectivas atribui­
Médio-Elamita. Essa peça foi encontrada em ções. Em Tchoga Zanbil, por exemplo, foi
1921 pela equipe de Mecquenem. identificado o templo da deusa Pinikir, graças
ao achado de tijolos com inscrições com o
nome dessa deusa. Neste local foram também
achadas figurinhas femininas de terracota que
representam uma deusa-mãe segurando uma
criança nos braços. Assim, admitiu-se ser essa
uma deusa da Procriação e da Fecundidade.
Num outro templo vizinho, foram encontrados
tijolos com inscrições com os nomes Shimut e
NIN-ali que formam um casal de deuses.
Juntamente com eles foram encontradas
figurinhas femininas da deusa nua sustentan­
do os seios.
De acordo com os achados das escava­
ções da Ville Royale, com datação com início
após 2000 a.C. até final da realeza elamita no
século VII a.C., as peças mais antigas são da
primeira metade do II milênio, e em sua maioria
são figuras femininas que se apresentam com
as mãos cruzadas abaixo dos seios. Parece ser,
pelas informações das escavações, que estas
peças mais antigas vão sendo progressiva­
mente substituídas pelas figurinhas femininas
sustentando os seios.
A maioria das peças encontradas está
fragmentada. São raros os momentos em que
se encontram estes fragmentos dentro de
Fonte: Spycket, A., 1992 (877). residências ou em outras unidades do gênero e

297
TRIGO, A.C.M .C. Figurinhas femininas sírias e iranianas no acervo do MAE/USP. Rev. do Museu de A rqueologia
e E tn ologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

nem mesmo em tumbas. A grande massa gravidez no mundo elamita, como no mundo
dessas peças, para não dizer a totalidade, são babilônico, está profundamente ligada à vontade
provenientes das ruas, ruelas e lugares da divina. A figurinha des„a deusa-mãe é muito
antiga vila. As figurinhas estão sempre encontrada nos templos da deusa Pinikir, que
quebradas (Ghirshman 1968: 12). parece ser a responsável pela realização da
A associação dessas figurinhas com o vontade de uma mulher ter uma criança e talvez
nome da deusa NIN-ali levou os estudiosos a recebesse essa imagem como oferenda votiva. Se
concluir que esta fosse, provavelmente, a esta hipótese for a correta, é exato que este
deusa de proteção da mulher durante a último grupo de figurinhas tinha um destino
gravidez. Na ocasião de uma gravidez, a muito preciso e que as que foram encontradas,
mulher manteria a imagem da deusa consigo e sejam provenientes de templos. Diferente seria,
depois do nascimento, como esta proteção pelo contrário, a variedade daquelas que repre­
passaria a ser supérflua, a imagem seria sentam as deusas sustentando os seios: elas
quebrada ou descartada. Isso justifica o &tío estariam nas casa das mulheres para assisti-las
de este ídolo sempre evocar o corpo de forma durante o período de gestação, sendo quebradas
muitas vezes acentuada, indicando o estado de depois do nascimento da criança.
maturidade (Ghirshman 1968: 12). A natalidade dentro da sociedade
A identificação da deusa sustentando os elamita, como na assírio-babilônica, foi certa­
seios convida a reconhecer uma diferença de mente muito elevada. Este fato pode explicar o
atribuição entre ela e uma outra imagem: a da grande número de fragmentos de figurinhas da
deusa com uma criança. Nas sucessivas camadas deusa nua sem a criança recolhidas pelas
estratigráficas, raramente foram encontrados missões francesas na superfície recente da
fragmentos de peças desta última personagem. A antiga vila de Susa.

TRIGO, A.C.M.C. Sirian and Iranian feminine figurines in the collections o f MAE/
USR Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 283-299, 2001.

ABSTRACT: This article intends to present twelve terracotta figurines


preserved in MAE-USR The author gives an up-to-date classification of this
material, considering provenience and chronology. The magic functions of
these figurines in Ancient Near Eastern Societies are algo considered.

UNITERMS: Feminine terracottas - Ancient Near East - Feminine Magic -


Ancient Syria - Ancient Iran.

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R eceb id o p a ra p u b lica çã o em 24 de m aio de 2001.

299
Estudos Bibliográficos
Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11\ 303-310, 2001.

CONTRIBUIÇÕES DA ETNO-HISTÓRIA PARA A


ARQUEOLOGIA DO NORDESTE DE MATO GROSSO DO SUL,
NA ÁREA IMPACTADA PELO GASODUTO BOLÍVIA-BRASIL

Gilson Rodolfo Martins*

Quando na primeira metade do século XVI Prezia (1988: 4) ao analisar o grupo


os primeiros conquistadores europeus chega­ lingüístico Macro-Jê sintetizou algumas
ram a Mato Grosso do Sul, encontraram características comuns às tribos filiadas a esse
algumas centenas de milhares de índios que aí tronco, as quais se apresentam a seguir:
viviam, há séculos, os quais estavam distribuí­ - “são m oradores do cerrado ou de áreas
dos por mais de uma dezena de tribos distintas de m ato aberto;
entre si. Das fontes históricas do século XVI, - possuem uma organ ização social
praticamente nenhuma faz referência aos com plexa, dividin do a com unidade em m etades
índios do nordeste sul-mato-grossense. Porém, ou clãs, divisão que é respeitada desde a direção
da aldeia, até a realização de festa s e rituais;
de acordo com os cronistas dos séculos
- não usam redes, dorm indo em esteiras ou
seguintes e com estudos etnográficos contem­ em estrados de varas;
porâneos, como, por exemplo, o Mapa Etno- - fa b rica m pou ca cerâm ica, desen vo lven d o
Histórico de Nimuendaju, editado em 1944, m ais a pintura co rporal e a arte p lu m á ria ”.
toda a área vizinha ao traçado do Gasoduto
O processo colonizador português, no
Bolívia-Brasil (Gasbol), entre os municípios de
Brasil, iniciou sua interiorização no final do
Ribas do Rio Pardo e Três Lagoas era habita­
século XVI. As bandeiras paulistas de André
da, hegemonicamente, pelos índios kaiapós
Leão e Nicolau Barreto, explorando o vale do
meridionais, hoje extintos. Segundo Schaden
Paraíba do Sul e as terras além da Serra de
(1954: 396) o território ocupado por esses
Mantiqueira, inauguraram, na última década desse
índios era o seguinte:
século, o fenômeno bandeirante. Entre 1600 e
“Grande extensão do noroeste do Estado
1620, diversas bandeiras terrestres partiram do
(SP), compreendida entre o rio Grande e o
planalto de Piratininga em direção ao ocidente
Paraná, bem como as áreas adjacentes do
colonial buscando duas mercadorias muito
triângulo mineiro, do sudeste de Mato Grosso
valorizadas no comércio mercantilista: os metais
e sul de Goiás, constituiu o habitat de uma
preciosos e cativos indígenas. Dessa forma, o
tribo jê, conhecida sob o nome de Kaiapó
início do século XVII é também o momento que
Meridionais. (...) Guerreiros denodados,
estabeleceu os primeiros contatos inter-étnicos
faziam-se acompanhar das mulheres nos
entre colonos europeus e as tribos orientais de
campos de luta, incumbidas de ficar atrás dos
Mato Grosso do Sul e do extremo-oeste paulista.
homens e passar-lhes as flechas à medida que
Em 1610, os jesuítas espanhóis iniciaram a
as gastassem. Além de arco e flecha, serviam-
catequese dos índios guaranis do Guairá, no
se de grandes cacetes, particularidade que deu
noroeste paranaense, intensificando a movi­
origem à designação de Ibirajara (“senhores
mentação colonial na bacia do Alto Paraná.
dos tacapes, na língua geral) com que os
Com isso, alterações substanciais ocorreram
Kaiapó e algumas outras populações figuram
na realidade étnica regional.
em textos antigos”.
A presença dessas duas frentes de expan­
sionismo colonial, embora rivais, debruçadas
sobre o mesmo objeto, implicou um afastamento
(*) Laboratório de Pesquisas Arqueológicas do
Departam ento de História do Cam pus Universitário
e diminuição dos aldeamentos indígenas nas
de Aquidauana da Universidade Federal de Mato proximidades do trecho sul-mato-grossense do
Grosso do Sul. rio Paraná. Nos anos seguintes à fundação da

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ação missionária, avolumaram-se as expedições general Luis de Céspedes Xeria, Governador do


preadoras oriundas de São Paulo, tanto sobre Paraguai, partiu de São Paulo em um comboio
as aldeias tradicionais como sobre as diversas fluvial que percorreu, pioneiramente, a rota
reduções guairenhas. As tribos guaranis ocupan­ fluvial Tietê/Paraná até o Guairá. No ano seguin­
tes do complexo fluvial Paraná/Paranapanema te, comandado por Raposo Tavares e Manoel
alteraram hábitos culturais e passaram a migrar Preto, ocorreu o grande e fulminante ataque
constantemente provocando a reacomodação bandeirante sobre as missões guairenhas
de outros grupos étnicos vizinhos, inclusive os provocando o êxodo maciço de índios dessa
do nordeste sul-mato-grossense. Os trechos região para o sul do Brasil e para Mato Grosso
abaixo, citados por Taunay (1922: 90), refletem a do Sul. Estima-se que mais de vinte mil índios
visão desse autor sobre a conjuntura inicial do tenham abandonado a região somente nesse
século XVII na área ocidental da colônia: episódio. Em seguida, as investidas sobre os
remanescentes índios guaranis guairenhos
“Em 1612 qu eixava-se o ca b ild o da
C iu dad Real, a m ais im portante das colôn ias foram feitas em todas as direções.
jesu ítica s do P equiry e Ivay ao govern ador de Em 1648, foi a vez das reduções do Itatim,
Buenos A ires, contando-lhe “la inquietud de los instaladas em Mato Grosso do Sul entre os
naturales, p ro m ovidas p o r los portu gu eses de la vales do Miranda e do Apa, serem atacadas
Villa de San P ablo en el Brasil, quienes los han
por Raposo Tavares. Os índios guaranis-
sen so ca d o y llevado m ás de 3 .0 0 0 com harto
itatins evacuaram a área e partiram em direção
p erju ricio de esta ciu dad”.
ao nordeste do Paraguai e serra de Maracaju.
Para o autor acima (op.cit.): “estavam os Em meados desse século, os núcleos coloniais
índios no maior alvoroço e ameaçavam espanhóis em Mato Grosso do Sul estavam
despovoar a região emigrando tumultuosa­ definitivamente abandonados.
mente além Paraná e além Iguassu”. Durante o ano 1676, o bandeirante paulista
Segundo Caldarelli (1993: 5), essa conjun­ Francisco Pedro Xavier, acompanhando as
tura histórica tem a seguinte implicação para a margens da rota Tietê/Paraná/Iguatemi e
pesquisa arqueológica: ultrapassando o planalto maracajuano, em Mato
“(...) a situ ação de instabilidade em que se
Grosso do Sul, invade e destrói Vila Rica dei
encontravam os indígenas, os quais passam a Espiritu Santo, no norte do Paraguai Oriental.
viver em h abitações p re cá ria s e com objetos Segundo Taunay (1951: 147):
num ericam ente reduzidos e fe ito s rapidam ente,
em sua m aioria com m aterial p erecível fá c e is de “Ao sertão da Vacaria que assim se chamava
serem p rodu zidos, j á que a extrem a m obilidade então o atual sul mato-grossense percorreram no
ca ra cterística da situação de conflito em que último quartel do séc. XVII diversas bandeiras.
viviam os indígenas, ob rig a va -o s a con stan te­ Em 1682, procurava Juan D iaz de Abdino
m ente aba n d o n ar seu s acam pam en tos e o b jeto s saber quantos seriam aqueles portugueses implanta­
dos nas vizinhanças das ruínas de Santiago de
p esso a is.
Jerez e soubera que os cabos paulistas eram Pascoal
Este fato explica porque é difícil a recupe­ M oreira e André de Zunega “que tenian ochenta
canoas en el rio de Botetey que entra à este dei
ração arqueológica dos assentamentos
P a ra g u a y ’’.
indígenas mais recentes, sendo mais facilmen­
te identificáveis os assentamentos pré- Na passagem do século XVII para o XVHI, a
coloniais, quando as populações que ocupa­ presença colonial luso-paulista estava consolida­
vam a área apresentavam maior densidade da em Mato Grosso do Sul, isto ao custo de cem
demográfica, permaneciam mais longamente anos de guerra genocida e de conquista territo­
nas aldeias e produziam uma cultura material rial. Porém, como atividade econômica, a partir de
mais diversificada e numericamente mais 1670, o bandeirismo de apresamento mostrou
expressiva do que a dos indígenas que as forte tendência ao declínio. A reorganização do
sucederam, em tempos históricos”. tráfico negreiro após a expulsão dos holandeses
A união das coroas ibéricas, entre 1618 e do nordeste brasileiro, o esgotamento dos
1648, fez da América do Sul uma única unidade “estoques” de índios guaranis “domesticados”
política. A pressão colonial sobre o interior do pelas missões, a resistência e a retirada dos
continente aumentava. Em 1628 o capitão- sobreviventes para regiões mais ermas, progres­

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sivamente inviabilizaram a ação bandeirante de rota seguida d esde A ra rita g u a b a vai assum indo,
apresamento nos padrões da economia colonial. cada vez mais, o caráter de via de trânsito
regular. O que estim ulava agora essa s ex p ed i­
Desse período histórico é muito improvável
ções, j á não era tanto o ânim o aventureiro, mas
a presença de vestígios arqueológicos na área a o lucro certo que p ro m e tia o com ércio com
ser impactada pelo gasoduto, sobretudo no esses rem otos sertões, distan ciados de qu alqu er
segmento abrangido por este estudo. As recurso, onde os p re ço s atin gidos p o r todos os
características dessa modalidade colonizadora artigos, a té m esmo de uso indispensável,
faziam com que não houvesse assentamentos p a re cem d estin a d o s a co m pen sar a b u n d a n te­

permanentes, seu caráter era mais destrutivo m ente todos os riscos da viagem ".

que construtivo. Os bandeirantes não aspira­ O tráfego fluvial regular entre São Paulo e .
vam ao povoamento nem à fixação nas áreas Cuiabá foi definindo-se paulatinamente. As
desbravadas. Sua relação com o espaço era de antigas rotas seiscentistas que seguiam
permanente movimentação, acompanhando preferencialmente pelos caminhos Paraná/
sempre o deslocamento estratégico dos indíge­ Ivinhema ou Tietê/Pardo/Aquidauana, tinham
nas em retirada para o interior. Acrescente-se vários inconvenientes para a nova modalidade
ainda o fato de que a cultura material bandeiran­ de trânsito que exigia mais segurança. Por volta
te, nos padrões do modelo europeu, é descrita de 1720, uma nova rota foi descoberta pelos
pelos historiadores como sendo elementar. irmãos Leme, segundo Holanda (1945: 97):
A crise do bandeirismo de apresamento, no
“D esejosos, talvez, de procurar passagem
fim do século XVII, não foi um fato isolado, ela mais breve para as minas, deliberaram aqueles
estava inserida na primeira crise geral no sistema sertanistas continuar em águas do Pardo, subindo
colonial português. A economia mercantilista a parte encachoeirada que fica além da barra do
lusa saiu profundamente enfraquecida da União Anhanduí, e chegaram, assim, ao ribeirão
Sanguesuga. Neste ponto, o divisor das bacias do
Ibérica. As guerras pela restauração, a forte
Paraguai e Paraná abrange apenas cerca de duas
concorrência estrangeira e o anacronismo do
léguas e meia de extensão e parece adm iravel­
modelo econômico, em resumo, provocaram o mente apropriado à varação das canoas".
esvaziamento monetário do Império português.
Em função disso, a dinastia bragantina promove A tradicional rota fluvial Pardo/Anhanduí/
e estimula a prospecção de metais preciosos no Aquidauana tinha o seu varadouro terrestre no
interior do Brasil. O setor bandeirante, estru­ atual município de Terenos, por onde passa o
turado para o sertanismo, facilmente adaptou-se traçado do Gasbol. Esta não foi totalmente
à nova realidade. Em 1693, os paulistas descobri­ abandonada, em 1726, por exemplo, foi a
ram ouro em Minas Gerais. Expulsos daí, em 1709, escolhida pelo governador da Capitania de São
no episódio da Guerra dos Emboabas, dez anos Paulo para ir a Cuiabá.
depois estavam inaugurando o garimpo cuiabano. Com a implantação da Fazenda Camapuã,
A expansão territorial e demográfica ainda na década de vinte do século XVIII, no
provocada pela mineração em Mato Grosso varadouro entre o rio Pardo e o rio Camapuã,
transformou essa região em um promissor oferecendo mais segurança e recursos aos
mercado colonial. Passadas as dificuldades viajantes, a nova rota passou a ser o caminho
dos primeiros anos de desbravamento, o oficial das monções por mais de um século.
processo de urbanização e administração foi Outros caminhos, menos usuais, existiam, entre
organizado com a visita de Rodrigo Cezar de esses podemos citar o do rio Verde, do Sucuriú
Menezes, Capitão-General e Governador da e alguns terrestres. Holanda (1945: 138) obser­
Capitania de São Paulo, em 1726, a Cuiabá. vou que:
A realidade anteriormente narrada estabele­ “E p re ciso acresce n ta r que numa n a veg a ­
ceu nova função histórica para o espaço sul- ção longa e sem p o rto seguro, era n ecessidade
mato-grossense. Essa região passou a ser a re strin g ir ao m ínimo qu alqu er con tacto com a
“espinha dorsal” do sistema viário fluvial para terra firm e. O breve varadouro de Cam apuã
correspon dia bem a essa n ecessidade. Um
Cuiabá. Podemos entendê-la a partir da seguinte
estabelecim en to perm an en te, em ta l situ ação,
análise de Sérgio Buarque de Holanda (1945: 93): perm itira evitar, ou ao m esm o diminuir, o risco
"G raças a tais circunstâncias, a n avegação de a ssaltos do gen tio C aiapó, que vagava nas
d o s rios continua a fa zer-se sem interrupções e a com arcas a leste do Pardo. ”

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Taunay (1981: 209) publicou o relato que D. O “Ciclo do Ouro” esgotou-se no final do
Antônio Rolim de Moura, Io Governador da século XVIII. A crise atingiu também o comér­
Capitania de Mato Grosso, fez de sua viagem de cio cuiabano e afetou intensamente o movi­
São Paulo para a Vila de Cuiabá, em 1751. Desse mento monçoeiro, reduzindo-se assim, drasti­
texto é interessante destacar a referência feita camente, o número de comboios fluviais. O
aos índios kaiapós no roteiro das monções: núcleo rural de Camapuã enfrentou forte
recessão. A região em foco neste estudo
“Três são as nações que costumam perseguir
aos viajantes deste caminho; a prim eira é a dos
refluiu ao semi-isolamento, ficando, portanto
caiapós; são forçosos e ligeiros, usam p o r armas entregue ao povoamento quase que exclusivo
de arco e flecha, e de porretes. Estes são uns paus, de índios kaiapós e, talvez, de alguns peque­
do tamanho de um covado, pou co mais ou menos, nos grupos de índios ofaiés-xavantes e
de uma parte redondos, p or onde lhe pegam; pela guaranis.
outra espalhados, como os paus de remos; enfeitam-
Na primeira década do século XIX, a
nos cobrindo-os com seus tecidos feitos de cascas
de árvore, de várias cores, à imitação de esteiras; economia mercantilista portuguesa ruiu. As
porém muito ajustados, e unidos aos paus: o seu atividades econômicas coloniais entraram em
m odo de p eleja r é atraiçoadam ente; tomando profunda recessão. Em Mato Grosso produzia-
sentido onde alguma tropa se arrancha, e parecen­ se para a subsistência. A inexistência quase
do-lhes que três partido, a vêm atacar quando
total, na região nordeste do estado, de estabe­
acham descuidada; porém, se a tropa tem algum
poder, se não resolvem a isso. O mais comum é
lecimentos agropastoris, em mais de trezentos
esperar o que saem do campo para caçar, esconden­ anos de colonização, foi propícia à preserva­
do-se de modo que não é fácil vê-los, p o r se ção da originalidade da paisagem vegetal. Em
pintarem de modo que ficam da cor do mato, e de 1826, uma expedição naturalista, comandada
repente darem sobre os que vão passando, pelo Barão de Langsdorf, navegou pelo antigo
atirando-lhes prim eiro com as flechas, e depois caminho das monções. O desenhista francês,
quebrando-lhes as cabeças com os porretes; o que
Hércules Florence, integrante da expedição,
feito, fogem logo, deixando a arma com que
fizeram a morte. Contra esses basta um pouco de iconografou diversas cenas da viagem e assim
cautela dos ranchos, e também que não saiam descreveu o estado de conservação das
menos de dois ou tres a caçar, e que estes se margens do Pardo (Florence 1977: 58).
recolham juntos, pois na retirada é que eles
“A tingim os a em bocadura do rio Pardo,
costumam mais dar os seus a ssaltos”.
célebre entre os paulistas, de um lado, pelos
As abordagens acima são claras ao perigos e canseiras que a í esperavam o viajante
mostrar que, apesar da intensa movimentação ao querer vencer a força de suas correntezas e
transpor numerosas cachoeiras e suas quedas: de
colonial, durante o século XVIII, na região de outro, afam ado p ela beleza das cam pinas em
intersecção do traçado do Gasbol sobre as que corre e que, oferecendo à vista, j á fa rta da
extintas rotas das monções, é improvável a m onotonia de ininterrom pidos m atos, vastas
existência de vestígios arqueológicos relacio­ perspectivas cortadas de outeiros, riachos e
capões (...).
nados a esse fenômeno histórico na área
impactada por esse gasoduto. Em toda a região No meio desses campos ao caçador
nordeste de Mato Grosso do Sul não houve facilmente se deparam veados, perdizes e
estabelecimentos fixos, exceto a Fazenda outros animais, cuja carne lhe enriquece a
Camapuã.1 A presença colonial, na área, mesa, aumentando destarte o prazer de
definia-se pela transitoriedade. atravessar tão bela região.”

(1) Em 17/4/2001, o autor deste artigo e a Sra. Maria


Margareth Ribas Escobar, Diretora do IPHAN - serão enviadas amostras para datação, bem com o
Instituto do Patrim ônio H istórico e A rtístico foram coletados depoim entos de antigos moradores
Nacional - em Campo Grande, localizaram a área do que tiveram a oportunidade de observar, antes da
assentamento da histórica Fazenda Camapuã, no dem olição definitiva, os segm entos restantes de
m unicípio hom ônim o e formalizaram o registro do estruturas das edificações originais. As coordenadas
local com o sítio arqueológico. Na superfície vistoria­ geográficas obtidas em um dos pontos examinados
da foram encontrados fragmentos de telhas, dos quais foram: 19° 3 1 ’ 52,8” s e 54° 0 3 ’ 4 9,0” w.

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A descrição anterior é, provavelmente, o em pregan do-se com o ca m aradas da tropa, e


último testemunho da integridade paisagística ou tros trabalhando a jo rn a l p a ra os o ra d o res de
districto. Tiveram um in spetor nom eado p e la
natural da área. A partir de 1830, a economia
presidên cia em 1838, o qual deixou de existir
imperial brasileira, impulsionada pela ascensão p o r fa lta de con sign ação p a ra o pagam en to do
da atividade cafeeira, recupera-se acelerada­ seu ordenado. ”
mente. A fronteira agropastoril expande-se
O primeiro Diretor Geral dos índios em
para o oeste. A valorização fundiária das
Mato Grosso, Joaquim Alves Ferreira, em seu
férteis terras do triângulo mineiro empurra a
relatório de 1848 localiza os índios kaiapós
pecuária extensiva, aí instalada, para além dos
(Ayala & Simon 1914: 91):
rios Paranaíba/Paraná. Em 1832, Joaquim
“ (...) entre os rios Paraná, Paranayba e as
Francisco Lopes, irmão do célebre “Guia
cabeceiras de São Lourenço e Taquary, uns
Lopes”, imortalizado no romance de Taunay, d esea ld ea d o s no d estacam en to nas m argens do
“A Retirada da Laguna”, fez sua primeira P iquiry: outros no p o rto de P aranayba. O utros
viagem exploratória nos campos e pastagens não têm residência certa. Vivem da caça, pesca,
do nordeste sul-mato-grossense e, em seguida, fru to s da terra; cultivam milho, arroz, m andio­
ca, batata, cana; fa b rica m algu m as rapadu ras;
aos “campos de vacaria”, na região Centro-sul
criam porcos, aves, gado-vacu m e cavalar. A
do estado. Dessa data em diante o fluxo m aior p a rte entendem e fa la m nosso idiom a (...)
migratório da pecuária, principalmente mineira, M uitos se ajustam ao serviço dos m oradores do
em direção a Mato Grosso do Sul, não mais distrito e viajantes. ”
cessou. Em poucas décadas o modelo pastoril
No fim do século XIX, os índios kaiapós
estava estruturado e abrangia boa parte da
meridionais estavam, praticamente, extintos em
extensão espacial focalizada por este estudo.
Mato Grosso do Sul. Algumas famílias sobrevi­
Sob o regime imperial redefiniu-se a
ventes, isoladas na condição de “índios de
política oficial de contato cultural com os
fazenda”, podem ter resistido mais alguns anos.
índios, visando-se assim atender às necessida­
A mestiçagem com a população local os fez
des da nova realidade. Ao estudar os relatóri­
desaparecer definitivamente. Schaden (1954: 396)
os das diversas gestões da Diretoria Geral dos
noticiou a existência dos últimos trinta índios
índios, em Mato Grosso, na segunda metade
kaiapós, vivendo, em 1910, a jusante da cachoei­
do século, Pina de Barros (1989: 210), assim
ra Água Vermelha, nas duas margens do rio
formula o quadro da época: Grande, isto é, entre os estados de São Paulo e
“A p o lítica in digen ista nortea-se p elo Minas Gerais, encerrando, talvez, mais de um
binôm io: defesa contra os índios e a p ro v eita ­ milênio de existência dessa cultura humana.
m ento de sua m ã o -de-obra. Com as m udanças
A identificação de uma zona de transição
estru tu rais o co rrid a s p e la decadên cia da
m in eração e com a con seqüente p ro lifera çã o étnica estabelecida por uma fronteira natural,
d a s a tivid a d es de su bsistên cia e auto-consum o, representada pelo traçado do rio Pardo e
p o r um lado, e a m pliação das fa zen d a s de adjacências, foi ressaltada por Martins (1992)
cria çã o de g a d o e cana-de-açúcar, p o r outro, como tendo sido a porção ao norte desse rio o
fo rja m -se fa c e ta s p articu la res nas relações
antigo habitat dos índios kaiapós meridionais
ín d io /co lo n iza d o res, no d ec o rre r do p erío d o
im p eria l em MT. P ara isso tam bém concorreu a
e, ao sul, o território Guarani - etnia esta, ainda
im p o ssib ilid a d e d e re p o siçã o da m ão-de-obra hoje presente nas regiões do sul do estado e
escrava, seja p e la queda do p o d e r aqu isitivo, representada pelas tribos Kaiowá e Nhandeva.
seja p ela in ibição de tráfico n e g re iro ”. Na passagem do século XIX para o século
O Cel. Ricardo José Gomes Jardim, presi­ XX, quando já não mais existiam índios
dente da província, em ofício ao Governo guaranis vivendo na margem direita do rio
Imperial, ao descrever o quadro etnográfico de Paraná, a montante do rio Ivinhema, os índios
Mato Grosso em seu relatório de 1846, assim se ofaié-xavantes ocuparam esse espaço, o qual é
referiu aos índios kaiapós (Jardim 1869: 350). abrangido atualmente, em parte, pela área do
reservatório da Usina Hidrelétrica Eng. Sérgio
“A a ld ea de Santa Anna do P aran ah iba
co n ta va de 150 a 160 índios ca ya p ó s de am bos
Motta (ex-UHE Porto Primavera), pescando,
o s sexos, que em igraram das aldêas de G oyaz caçando e acampando ao longo dos riachos e
em 1835, d a s qu aes m uitos se têm dispersado, baías onde deságuam os ribeirões Combate,

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Três Barras, Samambaia e outros, inclusive a partir da ocupação dessa região por fazendas,
montante do rio Pardo. As aldeias maiores após a Guerra do Paraguai (1864/70), esses
tinham casas em forma de cúpula, configuran­ índios foram paulatinamente obrigados a
do, assim, amplo círculo composto por cerca procurar refúgios em outras áreas ainda não
de 20 casas, com área central de terra batida impactadas pela expansão da fronteira agro­
para danças e disputas, caminhos para o rio e pastoril. Foi por isso que, então, eles migraram
para a roça; o sepultamento era efetuado em para os pantanais da margem direita do rio
local distante da aldeia (Ribeiro 1951). Paraná, entre os municípios de Anaurilândia e
O passado e o modo de ser dos índios Três Lagoas ou para os pantanais dos rios
ofaiés-xavantes, antes do contato com o Tabôco e Negro, no município de Aquidauana.
colonizador europeu é desconhecido. Não há No que diz respeito aos grupos que migraram
pesquisas arqueológicas e etno-históricas que para as margens do rio Paraná, os principais
revelem esse panorama. As primeiras informa­ roteiros obedeciam às bacias hidrográficas dos
ções concretas sobre a etnografía desses rios Anhanduí/Pardo, rio Verde e rio Ivinhema.
índios surgem em meados do século XIX, Entre outras conseqüências desse proces­
quando a expansão da fronteira agropastoril so pode-se destacar a instabilidade dos
brasileira em terras do então sul de Mato assentamentos, seja no tempo e/ou no espaço,
Grosso já era uma realidade irreversível. evidenciada, na primeira metade do século XX,
Assim, pressupõe-se que, no período citado principalmente, pela mobilidade permanente em
no parágrafo anterior, a fricção interétnica já busca de refúgios ambientais provisórios, na
deveria ter acarretado significativas alterações margem direita do rio Paraná, na região entre o
no modo de ser dos índios ofaiés-xavantes, baixo curso do rio Ivinhema e o rio Sucuriu, em
sobretudo no que diz respeito à questão da Mato Grosso do Sul.
cultura material desse povo. No entanto, é necessário considerar que
Somente no começo do século XX, com a as circunstâncias históricas impuseram a esses
ação de Rondon e de técnicos do SPI - índios a meta de territorializar uma nova área
Serviço de Proteção ao índio -, especialmente para a reprodução física e cultural do grupo.
de Curt Nimuendaju, é que surgiram os Entre outras localidades, na margem direita do
primeiros testemunhos confiáveis sobre as alto curso do rio Paraná, esse fenômeno
características etnográficas dos índios ofaiés- migratório/cultural ocorreu no interior da
xavantes. Nessa época, devido aos contatos imensa gleba de terra abrangida pela Fazenda
conflituosos, cada vez mais constantes com Boa Esperança, no século passado (XX).
elementos da sociedade envolvente, esse Nas últimas décadas, com a degradação
grupo indígena encontrava-se em franco ambiental acentuada pelo modelo econômico em
processo de desintegração tribal. vigor, a oferta ambiental de produtos naturais
Por inferência etnográfica baseada nos (caça, pesca e coleta) foi drasticamente reduzida,
relatos dos primeiros contatos entre índios o que obrigou os índios ofaiés-xavantes a
ofaiés-xavantes e “brancos”, esses índios, substituírem seu padrão tradicional de subsistên­
antes do contato, poderiam ser classificados cia por formas típicas da sociedade envolvente,
como uma sociedade integrante do tronco ou seja, sobretudo por pequena agricultura e por
lingüístico Macro-Jê, portadores de um modelo trabalho assalariado em fazendas da região.
econômico baseado quase que exclusivamente Atualmente, a população da Terra indígena
na caça, pesca e coleta de vegetais silvestres, Ofaié-xavante, ocupante de uma área adquirida
daí terem um comportamento espacial sobretu­ pela CESP-Companhia Energética de São Paulo,
do ambulante, obedecendo este à sazonalidade no município de Brasilândia/MS, lindeira com a
dos recursos naturais disponíveis. área citada na Portaria Demarcatória 264, de 28
De uma forma sintética, com os dados de maio de 1992, do Ministério da Justiça/
disponíveis, pode-se deduzir que antes da FUNAI, é composta por aproximadamente 60
segunda metade do século XIX, os índios pessoas, sendo que dessas, aproximadamente,
ofaiés-xavantes viviam na região hoje compre­ vinte índios são da etnia Ofaié-Xavante, e os
endida entre os municípios sul-mato-gros- demais da etnia Guarani ou mestiços de índios
senses de Rio Brilhante e Campo Grande. A ofaiés-xavantes com trabalhadores rurais.

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Os índios ofaiés-xavantes estão parcial­ grandeza na caracterização de uma sociedade


mente adaptados aos costumes dos “bran­ diferenciada da envolvente estão presentes
cos”, isto por força das circunstâncias que a entre o grupo, tais como a língua, a religião, a
eles foram impostas pelo modelo econômico mitologia e a auto-identificação enquanto
regional, o que, no entanto, não significa que comunidade indígena distinta das demais
o grupo perdeu sua identidade étnica e/ou a etnias existentes na geografia humana nativa
auto-estima. Valores culturais de primeira de Mato Grosso do Sul.

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Paulo: EDUSP. 1996 A rq u eo lo g ia do P lan alto M aracaju -
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1 9 4 5 M onções. Rio de Janeiro: Livraria-Editora M aracaju-1 a tra vés de an álise q u a n tita ti­
da Casa do Estudante do Brasil. va de sua indústria lítica. Tese (Doutora-

309
Estudos B ibliográficos - Ensaios. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia. São Paulo, 11: 303-310, 2001.

do em Arqueologia) Faculdade de Filosofia MELLO, P.J.C., RUBIN, J.C.R.


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MARTINS , G. R., KASHIMOTO, E.M. 114.
1995 Projeto arqueológico “Porto Primavera, SCATAMACCHIA, M.C.M.
M S”: relatório geral da etapa de levanta­ 199 0 A tradição p o licrô m ica no leste da
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em Arqueologia destinado à CESP. Campo ocu pação G u aran i e Tupinam bá: fo n te s
Grande: FAPEC-UFMS (não publicado). arqu eológicas e etn o-h istóricas. Tese
1997a Projeto Prospecção arqueológica na área a (Doutorado em Arqueologia). São Paulo:
ser diretamente afetada pelo Gasoduto Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Bolívia-Brasil em Mato Grosso do Sul - Humanas da USP.
trecho Terenos/Três Lagoas. Trabalho de SCHADEN, E.
consultoria científica em Arqueologia 1 9 5 4 Os prim itivos habitantes do território
destinado à PETROBRÁS. Campo Grande: paulista. Revista de H istória, ano V, 18:
FAPEC/UFMS. 385.
1997b Relatório de prospecção arqueológica na SCHMITZ, P.I.
área a ser diretamente impactada pelo 1993 Programa Arqueológico do MS - Projeto
Gasoduto Bolívia-Brasil em Mato Grosso Corumbá. P.I. Schm itz (Org.) Trabalhos
do Sul - Trecho Terenos/Três Lagoas. apresen tados no VI Sim pósio Sul-
Trabalho de consultoria científica em R iogran den se de A rq u eologia: N ovas
Arqueologia destinado à PETROBRÁS. Perspectivas (PUCRS, 2 a 4 de maio de
Campo Grande: FAPEC/UFMS. 1991). São Leopoldo: Instituto A nchie-
1 997c Relatório de resgate arqueológico na área tano de Pesquisas: 40-47.
a ser diretamente impactada pelo G aso­ SILVA, J.L.L. et. al.
duto Bolívia-Brasil em Mato Grosso do Sul 198 6 A í inscrições ru pestres de P aranaíba.
- Trecho Terenos/Três Lagoas. Trabalho Três Lagoas: Universidade Federal de
de consultoria científica em Arqueologia Mato Grosso do Sul (não publicado).
destinado à PETROBRÁS. Campo Grande: TATUMI, S. H.; MARTINS, G.R.; KASHIMOTO,
FAPEC/UFMS. E.M.; AYTA, W.E.F; WATAMABE, S.
1998 A rqueologia na área impactada pelo 199 8 T herm olum inescence dating o f archaeolo-
G asoduto Bolívia-Brasil: trecho Terenos- gical ceram ics collected from State o f
Três Lagoas/M S. R evista do Museu de Mato Grosso do Sul, Brazil. Radiation
A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 8: Effects & D efects in Solid, 146: 297-302.
8 7 -1 0 7 . TAUNAY, A. D'E.
1999a Resgate arqueológico na área do gasoduto 1 9 2 2 Na era das bandeiras. São Paulo:
Bolívia/Brasil em Mato Grosso do Sul. M elhoram entos.
Campo Grande: Editora da UFMS. 1951 H istória das ban deiras pau listas. São
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de Mato Grosso do Sul. Fronteiras: Revista 1981 R elatos monçeiros. São Paulo: EDUSP.
de História. Campo Grande, UFMS, 3 (5): VERONEZE, E.
5 1 -6 4 . 1 9 9 4 A ocu pação do P lan alto C entral B ra silei­
MARTINS G.R.; KASHIMOTO, E.M.; TATUMI, S.H. ro: o nordeste do M ato G rosso do Sul.
1 9 9 9 Datações arqueológicas em Mato Grosso Dissertação (M estrado em História)
do Sul. R evista do Museu de Arqueologia Centro de Educação e Humanismo da
e E tn ologia, São Paulo, 9: 73-93. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS.

R ecebido p a ra p u b lica çã o em 3 de ju n ho de 2001.

310
Estudos Bibliográficos: Resenhas - Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 311, 2001.

GASPAR, M. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000. 89 p.

Francisco Silva Noelli*

A vida cotidiana e a história dos povos que dominou a arqueologia dos sambaquis.
sambaquieiros finalmente receberam uma Junto com as novas abordagens de campo, um
síntese de divulgação devotada a “entender os de seus avanços mais importantes é a inversão
processos de manutenção- de um longevo do modo de conceber os povos samba­
sistema sócio cultural” (p.79), que perdurou quieiros, a partir de “uma certa ruptura com o
por mais de 5 mil anos. Trata-se da síntese das esquema de análise adotado desde os primei­
novas perspectivas que vêm ocupando alguns ros estudos de sambaquis”. Isto é, colocou de
pesquisadores brasileiros desde o final da lado o velho esquema de imaginar os constru­
década de 1980, quando o estudo dos samba- tores dos sambaquis como pessoas rudimenta­
quis passou por uma renovação teórica e res à mercê das ofertas dos ecossistemas e das
metodológica derivada da incorporação dos mudanças climáticas, procurando conceber a
principais avanços da Arqueologia internacio­ exploração dos recursos naturais baseada no
nal. A pequena obra é brilhante e essencial­ conhecimento profundo das peculiaridades
mente didática, onde Madu Gaspar dá uma dos nichos aquáticos e terrestres que formam
lição sobre a interpretação dos dados arqueo­ as paisagens costeiras do sul do Brasil.
lógicos, servindo como exemplo aos seus Também abandona a imagem estática e ideali­
pares, que ainda devem trabalhos similares zada sem uma adequada base de dados,
para outras regiões brasileiras. substituindo-a por uma imagem dinâmica.
Com um texto leve, livre de jargões e Madu considera que “traços culturais podem
antropológicamente orientado, a autora variar no tempo e no espaço, como de fato
conseguiu expor com riqueza de detalhes variam, sem que isso afete a identidade social
aspectos diversos sobre as pesquisas, a do grupo. Essa perspectiva percebe a cultura
ocupação do litoral brasileiro, as tecnologias como algo essencialmente dinâmico e perpetua­
para elaborar artefatos, a arte, os rituais mente reelaborado”.
funerários, o domínio do mar, o tempo de A perspectiva desse livro inaugura um
ocupação e atividades diversas, além de novo patamar para perceber aspectos da
levantar questões sobre territorialidade, história e da vida cotidiana, contribuindo
demografía, organização social, rituais e tipos definitivamente para estabelecer novos
diferentes de ocupação dos sambaquis. Essa parâmetros de pesquisa, a partir da perspecti­
leveza resulta da reflexão e da interpretação va que procura a diversidade dentro da
inteligente sobre uma vasta e detalhada gama estrutura que embasa a tradição cultural dos
de informações levantadas pela própria autora construtores dos sambaquis. Felizmente, esse
e por muitos outros arqueólogos que pesqui­ livro, que coroa uma etapa da produção
sam a ocupação humana do litoral centro-sul científica de Madu Gaspar, impõe um padrão
do Brasil (entre o Rio de Janeiro e o Rio científico mais elevado, mais sistemático,
Grande do Sul). mais detalhista e mais preocupado em apro­
A perspectiva adotada abandonou de vez fundar o conhecimento sobre a vida samba-
o formato etnocêntrico e meramente descritivo quieira.

R eceb id o p a ra p u b lica çã o em 15 de m aio de 2001. (*) Universidade Estadual de Maringá, PR.

311
Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 313-314, 2001.

WATKINS, J. Indigenous archaeology. American Indian values and scientific practice.


Walnut Creek (CA), Alta Mira Press, 2000, 234p., ISBN 0-7425-0329

Paulo De Blasis*

A arqueologia sempre foi uma disciplina em pesquisa arqueológica como na condução


de múltiplas facetas, tanto em termos científi­ de políticas envolvendo a pesquisa em terras
cos e culturais como políticos. O uso (e abuso) indígenas ou com vestígios e ancestrais
de prerrogativas arqueológicas no que con­ indígenas, relata, de modo franco, seu posi­
cerne ao passado ou às populações aboríge­ cionamento dinâmico sobre esses temas, nem
nes é bem conhecido, assim como também o é sempre isento de contradições e mudanças, e
o apoio que os arqueólogos direcionaram aos como foi possível lidar com os conflitos em
projetos coloniais implantados em todo o diferentes situações.
mundo a partir do século XVII. Entretanto, o livro não consiste apenas em
Nos Estados Unidos, uma jovem nação um relato pessoal, mas se trata de uma bem
independente expandiu-se sobre territórios estruturada análise desta questão nos Estados
antes pertencentes aos povos nativos. A Unidos. A primeira parte discorre cuidadosa­
arqueologia também esteve presente nesse mente sobre o que é relevante na legislação.
movimento, principalmente através da depreci­ Há muitas leis de proteção aos recursos
ação das capacidades daqueles povos e da culturais dos povos indígenas americanos. O
tentativa - tanto em termos conceituais como NAGPRA ( Native American Graves Protection
históricos - de segregá-los dos remanescentes and Repatriation A ct) confere aos povos
culturais de seu passado. nativos a custódia de todos os resquícios,
Apesar de tal postura não mais prevalecer especialmente os humanos, que estejam
entre os arqueólogos atualmente, a arqueolo­ comprovadamente relacionados, direta ou
gia entretanto parece ainda exercer uma culturalmente, aos pleiteantes, assegurando-
espécie de “atitude colonial” em relação ao lhes o direito de reenterrar seus ancestrais.
passado indígena americano. Com o crescente Mas como é possível aos povos indígenas (e,
despertar político das nações indígenas na realidade, também aos arqueólogos) provar
naquele país, entretanto, muitos conflitos têm que determinados vestígios, especialmente
vindo à tona, sendo esse o tema do livro em aqueles mais antigos, estão relacionados a um
tela. povo em particular? E, o que é mais importan­
Arqueologia Indígena é a expressão usada te, como conciliar a necessidade de tratar os
neste livro para denotar a arqueologia produzi­ ancestrais com a dignidade que eles segura­
da por povos nativos ou em seu interesse. O mente merecem com o interesse científico em
ponto de partida é a sua visão de mundo: a investigar os modos de vida e tradições dos
arqueologia indígena faz uso da história para povos nativos, interesse esse cada vez mais
construir a conexão entre o registro arqueoló­ compartilhado com as próprias nações indíge­
gico de uma região e etnografia (incluindo nas?
história oral, mitos e lendas) dos povos A segunda parte do livro destaca alguns
autóctones que vivem (ou viveram) ali. casos proeminentes, que são contextualizados
Neste livro, um desenvolvimento de sua e analisados. Abrangem desde os progressos
tese de doutorado, o autor, ele próprio um alcançados pelo povo Navajo em seus proce­
nativo americano com grande experiência tanto dimentos com os antropólogos (nos Estados
Unidos a arqueologia é parte da antropologia)
até o gerenciamento de um sítio público com
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universida­ sepultamentos comunais no Kansas. As
de de São Paulo. disputas referentes às pontas Clóvis e o

313
Estudos Bibliográficos: Resenha - Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11:-313-314, 2001.

“homem antigo” de Kennewick, datado entre No Brasil, por enquanto, tais questões não
9.000 e 11.000 anos atrás, são particularmente têm vindo a público, exceto de maneira ocasio­
interessantes e ilustram bem como os arqueó­ nal e pontual. Entretanto, não há dúvidas de
logos fundamentam seus argumentos quanto à que a situação pode mudar no futuro. Levanta­
inexistência de correlação entre esses vestígios mentos arqueológicos de caráter regional,
e os povos aborígenes, embora lendas, paisa­ como, por exemplo, aqueles realizados para
gem “significante” e territorialidade, entre fins de mitigação de impacto ambiental em
outras referências, sejam usadas para estabele­ obras de grande envergadura que atingem
cer a conexão. territórios ocupados, hoje e no passado, por
E o que tem a ver tudo isso com o conheci­ diversas sociedades indígenas, podem ser
mento indígena? De fato, tudo. Ainda que a utilizados, desde que corretamente instru­
maior parte das discussões atinentes ao mentados, para fins de negociação política. O
conhecimento indígena focalizem questões patrimônio arqueológico, mais do que apenas
tecnológicas e culturais relacionadas a políti­ um “recurso cultural recuperado”, pode se
cas desenvolvimentistas, os recursos arqueo­ converter em uma arma a mais, por exemplo,
lógicos são parte integrante da herança contra a habitual espoliação econômica e
cultural de uma nação. Com frequência, esses cultural das tradicionais populações ribeiri­
recursos compõem mitos e lendas, fazem parte nhas profundamente afetadas pela construção
da “história do povo daquele lugar”, e incluem dos grandes empreendimentos hidrelétricos.
soluções tecnológicas, ambientais e também Resta, no entanto, muita pesquisa a ser
adaptativas. Enquanto prática científica, a feita para estabelecer com mais consistência os
arqueologia conecta o conhecimento local aos ainda tênues laços entre as culturas arqueológi­
métodos tecnológicos e científicos. Exemplos cas do período imediatamente anterior à
do mundo todo vêm demonstrando que a chegada dos europeus e as sociedades indíge­
prática arqueológica tem um poder extraordiná­ nas contemporâneas. Sabe-se que, naquele
rio para estimular a experimentação e a integra­ período e também ao longo da época colonial,
ção cultural entre as tecnologias pretéritas e grandes movimentações populacionais tiveram
tradicionais e as modernas. lugar na maior parte do território brasileiro, e
Recomendo este livro bastante abrangente que os territórios hoje ocupados por determina­
às pessoas interessadas em tais assuntos ou dos grupos foram, no passado, ocupados por
em descrições pontuais da situação nos outras sociedades não diretamente relacionadas
Estados Unidos (e algumas breves observa­ com aquele grupo. Isto significa que a utilização
ções sobre o repatriação de vestígios arqueo­ política da informação arqueológica não deve
lógicos no Canadá, Austrália, Nova Zelândia e ser rasteira ou mesmo ingênua, e que um grande
Escandinávia). Ele pode ser encontrado na esforço de pesquisa é ainda necessário na
biblioteca do Museu de Arqueologia e Etnologia consolidação do que poderíamos chamar de
da Universidade de São Paulo (MAE-USP). história indígena.

R ecebido p a ra publicação em 21 de dezem bro de 2001.

314
Notas
Rev. do Museu d e A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 317-322, 2001.

ARQUEOLOGIA E EDUCAÇÃO: UMA PROPOSTA PARA O


ENGENHO SÃO JORGE DOS ERASMOS ( SANTOS, SP)*

Histórico do Projeto Trata-se do sub-projeto “Arqueologia, patri­


mônio Cultural e ação educativa”, coordenado
O Engenho São Jorge dos Erasmos é um pela Profa. Elaine F. Veloso Hirata, docente do
dos mais antigos empreendimentos agroindus- Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e
triais voltados para a produção de açúcar no integrado pela educadora do mesmo Museu,
Brasil, tendo sido implantado possivelmente Judith Mader Elazari e pela professora do
em 1534, em uma região que hoje está inserida ensino médio Jussara Moritz que prepara, no
na cidade de Santos (SP). Trata-se, portanto, momento, projeto de Mestrado sobre Arqueo­
de um marco relevante para o conhecimento da logia e Educação, centrado na experiência em
sociedade colonial brasileira, integrando-se andamento no Engenho dos Erasmos.
aos demais registros arquitetônicos da cidade. A justificativa da inclusão de um módulo
Por meio desses vestígios estão documenta­ voltado para a educação em um projeto arqueo­
dos em Santos momentos significativos da lógico decorre, em primeiro lugar, da perspecti­
construção da cultura brasileira. va de que a investigação arqueológica reveste-
As ruínas do Engenho estão sob a se de um significado muito mais amplo à medida
responsabilidade da Universidade de São que busca comunicar à sociedade, os propósi­
Paulo desde os anos cinqüenta e têm sido tos e sentidos de sua atuação. Um trabalho
objeto de intervenções de natureza variada desta natureza propicia à comunidade próxima
visando a sua preservação e o seu conheci­ ao sítio arqueológico a compreensão da
mento. Em 1966, a Profa. Margarida Andreatta, importância do conhecimento do passado,
pesquisadora do Museu Paulista, realizou favorecendo o seu envolvimento na tarefa
prospecções arqueológicas em áreas do fundamental da preservação do patrimônio.
Engenho quando então foram recuperados Em outra perspectiva, este subprojeto
fragmentos cerâmicos, restos de louça, evidencia uma grande preocupação com a
faiança, vidro e metal. situação atual da escola fundamental e média,
Em 1998, o Prof. Dr. Júlio Roberto Katinsky e propõe aos professores uma didática alterna­
foi indicado Gestor para Assuntos do Enge­ tiva, que parte da exploração e vivência do
nho dos Erasmos e, em maio de 1999, foi objeto, do concreto, como fundamento de um
firmado um convênio acadêmico entre a ensino ativo e participante. Trata-se de uma
Universidade de São Paulo e a Universidade pedagogia que estimula o aluno a percorrer
Católica de Santos para viabilizar ações uma trajetória análoga à do cientista, constru­
conjuntas voltadas para a pesquisa, proteção indo o conhecimento a partir da análise de um
e valorização do Engenho. conjunto de dados sobre o qual serão estabe­
No primeiro semestre de 2001, a FAPESP lecidas hipóteses e modelos interpretativos.
aprovou o Projeto “Engenho São Jorge dos
Erasmos - Estudos de Arqueologia da Paisa­
gem”, coordenado pelo Prof. José Luiz de A estruturação do projeto
Morais, do Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP. Este projeto abrange desde escava­
A partir desses pressupostos, a ação
ções arqueológicas no sítio e pesquisas em
educativa foi planejada e articulada em dois
laboratório até uma proposta de ação educati­
eixos principais:
va a ser implantada junto à comunidade local.
1. Treinamento e capacitação de p rofesso­
res da rede escolar, para que atuem com o agentes
m ultiplicadores neste processo de valorização da
(*) Este Projeto conta com o apoio financeiro da memória da sociedade brasileira e experim enta­
FAPESP. ção de novas práticas educativas;

317
Notas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 317-322, 2001.

2. Program ação de visitas orientadas às Estratégias


ruínas do Engenho dos Erasmos: por m eio do
contato direto com os v e stig io s arq u eológicos
e de uma proposta de reflexão sobre a preser­
a. Estabelecer programas de treinamento de
vação do patrim onio, a p articipação da professores do ensino fundamental e médio,
com unidade na con stru ção do con h ecim en to capacitando-os a um uso qualificado e dire­
h istórico pode com eçar a tornar-se urna cionado do Engenho (extrapolando, evidente­
realidade. mente, para outros monumentos) e inserindo-o
como recurso pedagógico privilegiado em seus
A estrutura básica do projeto articula-se
planejamentos de atuação educativa;
a partir da definição dos objetivos gerais,
b. Promover seminários e eventos volta­
previstos para uma ação a longo prazo e
continua, e objetivos específicos, passíveis dos para um público mais amplo divulgando a
de propiciarem resultados imediatos à medida importância deste monumento para o conheci­
que o programa seja desenvolvido; foram mento da formação histórica do Brasil;
c. Promover, durante as etapas de trabalho
também definidas as estratégias de ação,
arqueológico de campo, visitas orientadas à
responsáveis pela efetiva implementação do
projeto. área das ruínas , dando conhecimento aos
visitantes dos objetivos do trabalho em curso
e de sua importância no processo de preserva­
Objetivos Gerais ção da memória da sociedade brasileira;
d. Promover uma “Mostra Itinerante” de
1. Dinam ização do monumento, disponi-
painéis que relatem e informem sobre duas áreas
bilizando-o para uma ação educativa ampia,
profunda e renovadora, por m eio da experim en­
de conhecimento; a História e a Arqueologia;
tação de práticas educativas alternativas, e. Elaboração de um vídeo educativo,
baseadas no estudo dos objetos/artefatos com o realizado com a participação de alunos da
fundamento do processo de construção do escola envolvida, que possa comunicar a
con h ecim en to;
questão da pesquisa arqueológica, o significa­
2. Inserção do m onum ento em programas
de divulgação do patrimonio arqueológico e
do histórico do Engenho e propicie uma
histórico da Baixada Santista com o intuito de reflexão sobre as raízes coloniais de certas
promover o interesse da com unidade na situações do presente. Este vídeo ampliará
preservação e fruição desses bens, bem com o sobremaneira a abrangência do Projeto;
estim ular uma reflexão crítica sobre o m om ento f. Montagem de um “kit” educativo com
atual e sua relação com o passado colonial;
material arqueológico cedido por um período
3. Contribuir para que as atividades em
torno do Engenho possam articular e viabilizar pelos arqueólogos que escavaram o Engenho,
ações mais duradouras e efetivas da USP junto à e que será utilizado pelos professores em sala
Baixada Santista. de aula.
A temática específica suscitada pelo
projeto e que será abordada tanto nas ativida­
Objetivos específicos
des com professores e alunos quanto na
“Mostra” de painéis abrange tópicos referen­
1. Tornar acessível à comunidade não-
especializada os propósitos e os resultados do tes ao momento histórico em que está inserido
trabalho arqueológico realizado no Engenho, o Engenho São Jorge dos Erasmos e à pesqui­
inserindo-o. de uma forma dinâmica, no circuito sa científica desenvolvida a este respeito:
dos marcos históricos de Santos;
2. Contribuir para o aprimoramento da
formação dos professores de ensino infantil, Temas relativos à
médio e elementar através de cursos, seminários, história colonial do Brasil
workshops focados no uso de artefatos arqueoló­
gicos e da cultura material com o fontes docu­ 1. O significado do Engenho para o
mentais na área das ciências humanas;
conhecimento da História colonial brasileira;
3. Contribuir para a formação de especialis­
tas - seja em nível médio quanto em superior - 2. Os processos de produção e as redes de
que possam atuar nas in terfaces da Arqueologia distribuição do açúcar com ênfase para a
com a Educação. situação do SE brasileiro;

318
N otas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 77: 317-322, 2001.

3. Senhores e escravos: a sociedade Maria Ferreira”,1 localizada ao lado das ruínas


açucareira do SE; do Engenho e envolvem professores e alunos
4. A Arquitetura colonial no SE: casas, do ensino fundamental e médio. Trata-se de
engenhos e fortalezas; um projeto-piloto que potencialmente poderá
5. A reconstituição do Engenho dos ser aplicado em um grande número de unida­
Erasmos como modelo de unidade produtiva des de ensino. A proximidade do Engenho
açucareira no SE: levou alunos e professores a uma profunda
curiosidade e interesse, o que certamente foi
- Instalações, áreas especializadas de
produção; uma motivação importante, estimulando a
- Instrumentos de trabalho, equipamen­ aceitação entusiástica do Projeto.
tos e maquinárias; A definição e implantação do Projeto
- Áreas complementares de plantio de foram pensadas, desde o início, como uma
cana e lavouras de subsistência; tarefa conjunta: a equipe do MAE e os profes­
- Estruturas defensivas; sores planejariam, em função de uma avaliação
- Áreas de habitação e com outros fins diagnostica da realidade da escola, os objeti­
específicos. vos e metas, bem como as ações concretas
para a viabilização do Projeto. Para tanto,
previamente foram desenvolvidas atividades
Temas relativos à pesquisa
de capacitação dos professores no que diz
arqueológica e histórica
respeito ao uso da documentação material
1. As fontes arqueológicas e as históricas como fonte para o conhecimento de socieda­
como fundamentos documentais para o des passadas e atuais e a inserção desta
conhecimento da sociedade colonial brasileira; perspectiva no ensino fundamental e médio.
2. O trabalho do arqueólogo “do campo ao Durante os meses de maio e junho foram
laboratório” ; feitas as primeiras reuniões com a direção da
3. O trabalho do historiador: a exploração Escola para a definição das formas de ação
dos textos; conjunta. A dirigente de ensino foi contatada
4. A preservação da memória: as técnicas e deu o seu aval e apoio.
de conservação dos monumentos e artefatos; O processo de capacitação dos professo­
a responsabilidade das instituições e dos res foi estruturado previamente pela equipe do
indivíduos pela salvaguarda desses documen­ MAE a partir de experiências já realizadas de
tos; treinamento de docentes, envolvendo a
5. A divulgação dos resultados das utilização de um “kit” pedagógico composto
pesquisas por meio de veículos especializados de artefatos arqueológicos e etnográficos.
(publicações científicas) e via meios de Este conjunto de documentos materiais
comunicação de acesso mais direto pela apresenta múltiplas possibilidades de uso
comunidade leiga. como recurso pedagógico ao apresentar ao
aluno uma simulação do trabalho do arqueólo­
go enquanto cientista social.
O Projeto: resultados iniciais
(maio a dezembro de 2 001) Worshop

As atividades do Projeto vêm sendo O primeiro trabalho conjunto com a equipe


desenvolvidas em parceria com a EE “Gracinda de professores da EE “Gracinda Maria Ferreira”

(1) A equipe da EE “Gracinda Maria Ferreira” inclui: Guimarães, Iracema Elaine de Oliveira, Lilian
Marli Marques de Freitas Rodrigues (Diretora), G onçalves de Oliveira (Coordenadora do grupo de
Luciana Rosa Bertaglinoli (Vice-Diretora) e os professores), Liliane Dias dos Anjos, Maria C eleste de
professores Andréa Rodrigues Candeia, Andréa Jesus Mendes, Maria de Fátima L. Pereira Miziard e
Losada Santamaria Sim ões, Carmen Lúcia Dantas Vladimir Coelho.

319
Notas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 317-322, 2001.

foi em um workshop, realizado no dia


6 de julho de 2001. Nesta ocasião foi
realizada a experimentação do “kit”
pedagógico do Serviço Educativo do
MAE. O encontro reuniu 32 professo­
res que participaram das seguintes
atividades:
1. A presentação do Projeto;
2. V isita monitorada às ruínas do
E ngenho;
3. O ficina experim ental para con ­
tato com o “k it” p e d a g ó g ic o ,
composto de um conjunto de do­
cum entos materiais arqueológi­
cos e etnográficos (Fig. 1);
4. D iscussão e avaliação das
potencialidades do uso deste
material em sala de aula.

Curso “Arqueologia: uma experiên­


cia educativa junto ao Engenho São
Jorge dos Erasmos”

Dando continuidade ao trabalho,


realizou-se um curso dedicado aos
professores da EEPSG “Gracinda
Maria Ferreira” com duração de 50
horas, distribuídas em leituras progra­
madas preparatórias, aulas teóricas e
práticas e orientação final para a
elaboração, como trabalho de aprovei­
tamento, de um projeto pedagógico a
ser aplicado em sala de aula, a partir da Fig. 1 - Professores da EEPSG “Gracinda Maria Ferreira
exploração educativa do Engenho. m anuseando e analisando objetos arqueológicos do
As atividades desenvolveram-se “K it” pedagógico do SE/MAE.
de acordo com o seguinte cronograma:
iii. Arqueologia e Educação; Educação
1. Leituras programadas: Patrimonial; Museus;
20/08 a 20/09/01 iv. A “civilização do açúcar” e a sociedade
colonial brasileira;
2. Aulas teóricas e práticas:
v. Engenhos de açúcar no Brasil colonial;
21/09/2001 - das 8:00 às 17:00 h.
vi. Engenho dos Erasmos: ontem e hoje.
22/09/2001 - das 8:00 às 17:00 h.
06/10/2001 - das 8:00 às 17:00 h. As aulas teóricas e práticas - incluindo
atividades de campo junto às ruínas (Fig. 2) -
As leituras programadas foram feitas pelos foram dirigidas para o aprofundamento dos
professores a partir de uma seleção de textos temas da bibliografia fornecida previamente e a
organizada pela equipe do MAE com o discussão das formas de aproveitamento das
objetivo de introduzir os alunos nos principais evidências arqueológicas como ponto de partida
temas relacionados a: para a definição de um projeto para a escola.
i. Arqueologia: métodos e técnicas (introdução);
É importante ressaltar que a proposta
ii. Arqueologia Histórica: parâmetros inicial levada aos professores pressupunha a
básicos e tendências atuais; participação de todas as disciplinas em um

320
N otas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 11: 317-322, 2001.

Fig. 2 - Professores da EEPSG “Gracinda Maria Ferreira” em visita às ruínas do


Engenho São Jorge dos Erasmos.

projeto integrado e multidisciplinar. Houve, Ensino, da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da


assim, uma adesão de docentes de todas as Universidade de São Paulo), e o Grupo Inter-
áreas, cada qual adequando os seus conteú­ disciplinar de Cooperação em Vídeo Olhar
dos curriculares na construção de um núcleo Periférico, integrado por Sílvio Luiz Cordeiro,
comum de problemas que pudesse articular a Danilo Concilio e André Costa, dentre outros
ação educativa com harmonia. profissionais, encarregou-se deste trabalho,
Como trabalho final, cada grupo apresen­ assessorado pela equipe do MAE.
tou um projeto por escrito; em uma reunião A realização do vídeo está envolvendo
final - já durante o mês de dezembro - foram diretamente alunos da EE “Gracinda M.
expostos todos os projetos e , a partir destes Ferreira”, que vêm, sistematicamente, desde
produtos foram definidas as linhas principais dezembro de 2001, participando de oficinas de
do projeto a ser implantado na escola em 2002. educação audiovisual orientadas pela equipe
do Olhar Periférico.
A realização deste vídeo está se configu­
Vídeo Educativo
rando quase como um projeto desdobrado do
projeto educacional inicial.
A elaboração de um vídeo educativo foi
pensada com o intuito de ampliar o público a
ser atingido pelo Projeto, possibilitando aos “K it” pedagógico
professores da Escola diretamente envolvida na
experiência piloto e a outros interessados em A elaboração do “kit” pedagógico reunin­
outras escolas, o acesso a conteúdos já do documentos arqueológicos oriundos das
trabalhados pela equipe e passíveis de serem prospecções arqueológicas realizadas nas
experimentados e aplicados em sala de aula. ruínas do Engenho está em andamento. Trata-
A verba para a execução do vídeo (R$ 9. se de um conjunto de artefatos, textos de
745,00) foi conseguida junto ao Programa auxílio ao professor e cartazes, que poderá ser
SIAE/ 2001 (Sistema Integrado de Apoio ao utilizado em sala de aula e permite que o

321
N otas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 77: 317-322, 2001.

projeto tenha seu raio de aplicação muito No momento, o projeto está envolvendo
ampliado. Também neste caso, a equipe do diretamente sete classes do ensino fundamen­
MAE vem discutindo com os professores a tal e médio e os professores responsáveis -
forma ideal para este material didático. nove, incluindo a área de Humanas (História,
Geografia), Exatas (Matemática, Física) e
Biológicas (Ciências) - vêm implementando as
Síntese final atividades e participam de reuniões mensais de
acompanhamento e avaliação com a equipe do
MAE.
Nos primeiros dias de aula, em fevereiro,
está programada uma fase preparatória, O conteúdo curricular da escola incorpo­
rou os temas a serem tratados no projeto com
voltada para a visitação das ruínas por todas
as classes da escola, por pais de alunos e a concordância da dirigente escolar da região;
interessados da comunidade vizinha. Busca-se por outro lado, está sendo definida uma sala
despertar a atenção para o monumento e da escola para sediar o projeto.
propiciar o contato direto com as ruínas que Este projeto foi apresentado na III Semana
são uma referência importante no imaginário de Museus, realizada pela Pró-Reitoria de
da população dos arredores. Os alunos Cultura e Extensão da Universidade de São
deverão registrar as informações e impressões Paulo em agosto de 2001.
que possuem sobre o Engenho até então e
reunirão novos dados decorrentes do reconhe­
cimento do local; depois da visita, os dois Elaine F. Veloso Hirata**
registros deverão ser discutidos e analisados Judith Mader Elazari***
juntamente com os professores. Jussara M oritz****

(**) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universi­


dade de São Paulo.
(***) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universi­
dade de São Paulo, Serviço Técnico de M usealização,
Área de Educação.
(****) Museu de Arqueologia e Etnologia da
R ecebido p a ra pu blica ção em 3 de dezem bro de 2001. Universidade de São Paulo. Estagiária.

322
Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11'. 323-325, 2001.

O ENGENHO SÃO JORGE DOS ERASMOS -


IMAGENS DA REDESCOBERTA

Introdução que desvende as narrativas por trás do objeto


arquitetônico, possibilitando uma amplitude de
compreensões e questionamentos acerca da
No contexto do sub-projeto Engenho dos história do lugar onde moram (Fig. 2).
Erasmos: Arqueologia, Patrimônio e Ação
Educativa, coordenado pela Prof\ Dr3. Elaine
Farias Veloso Hirata (MAE-USP), a participa­
ção do grupo de estudos audiovisuais Olhar
Periférico permitiu a elaboração do projeto de
um vídeo-documentário sobre o Engenho, para
ser incluído no material didático desenvolvido
no MAE-USP (Fig. 1).

Fig. 2 - Frame extraído do material gravado


durante a oficina de vídeo realizada no
Engenho dos Erasmos com alunos da EEPSG
Profa. Gracinda Maria Ferreira.

Ruínas de um velho Engenho

Fig. 1 - Silvio Cordeiro e André Costa, do grupo


de estudos au d io visu a is O lhar P eriférico, Próximo à cachoeira do rio S. Jorge, no
coordenadores da oficina de Vídeo. Frame Morro da Caneleira, em Santos, ficam as ruínas
extraído do material gravado no Engenho dos do velho Engenho São Jorge dos Erasmos.
Erasmos. Restos desta vetusta construção ainda
resistem ao tempo: algumas paredes de
alvenaria em pedra e cal, muros de contenção e
O trabalho videográfico propõe o envol­ alicerces, sobretudo.
vimento de jovens da comunidade na elabora­ Apesar da sua atual situação, passados
ção do roteiro e nas gravações, realizando para mais de quatro séculos, as ruínas ainda
isto uma Oficina de Vídeo com um grupo de oferecem generoso campo de estudo. O
alunos da escola vizinha ao Engenho, a Escola conjunto arquitetônico dos Erasmos está
Estadual Profa. Gracinda Maria Ferreira. assim entre as nossas mais antigas constru­
O objetivo geral é promover a redescoberta ções, remontando aos primeiros anos da
das ruínas através da educação do olhar, colonização efetiva destas terras pelos portu­
permitindo que se ultrapasse o tom contempla­ gueses e correspondendo à introdução da
tivo e o reconhecimento do monumento apenas manufatura do açúcar no Brasil.
enquanto vestígio de um passado remoto; indo A organização de toda a logística produti­
além, busca-se através da oficina com esses va - em tomo de um produto de grande
jovens o despertar de um olhar curioso e crítico, inserção nos mercados consumidores da

323
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 323-325, 2001.

Europa - foi uma estratégia que garantiu a que sejam também restaurados a memória e o
posse das novas terras para a constituição da interesse pela História junto à população.
própria colônia, pois exigiu o estabelecimento
de uma população permanente de colonos,
vivendo em vilas fundadas sob as determina­
ções régias, usufruindo um território dividido
em grandes latifúndios, cultivados pelas mãos
do índio e do negro escravizados.
O Engenho dos Erasmos teve sua origem
na iniciativa de Martim Afonso de Souza: por
volta de 1534, o donatário da Capitania de S.
Vicente, além de organizar o povoamento,
funda uma empresa junto a seu irmão Pero
Lopes e outros - os Armadores do Trato.
Entre eles, estava o flamengo Johan Van
Hielst, representante em Lisboa da casa
comercial da família Schetz, de Antuérpia. Fig. 3 - Frame extraído do material gravado
O Engenho do Governador, ou dos durante a oficina de vídeo realizada no
Armadores do Trato, cerca de 1540 - pouco Engenho dos Erasmos com alunos da EEPSG
tempo depois da ida de Martim Afonso para a Profa. Gracinda Maria Ferreira.
índia - é comprado pelo mercador flamengo
Erasmos Schetz e passa a ser conhecido como
Neste aspecto, cabe resgatar o que
Engenho S. Jorge dos Erasmos.
Trata-se, portanto, de um importante assinala Pierre Bourdieu acerca da história
inscrita nos objetos, “objetivada”, e a história
testemunho do período da própria instalação da
feita o corpo, “atuante”.
colônia. Seu estudo poderá contribuir para a
melhor compreensão dos diversos aspectos Do mesmo m odo que o escrito só escapa
ao estado da letra m orta p elo ato de leitura, o
envolvidos no início da colonização do Brasil,
qual supõe uma atitu de e uma a ptidão p a ra ler
entre eles - talvez o de maior alcance até os e para decifrar o sentido nele inscrito, também a
nossos dias - o esforço de um povo em história objetivada, instituída, só se transform a
conquistar terras distantes, mobilizando em ação histórica, isto é, em h istória “a tu a d a ”
duramente outras gentes, pelo trabalho que e atuante, se fo r assum ida p o r agentes cuja
história a isso os predispõe e que, p elo s seus
aqui engendrou a formação do Povo Brasileiro.
“in vestim en tos” anteriores, são dados a
in teressar-se p elo seu funcionam ento e dotados
das aptidões n ecessárias p a ra a p ô r a funcionar.
Um testemunho vivo: o processo Bourdieu (1989:83)
participativo de criação do documentário
A questão que se coloca é de que manei­
ras as próprias pessoas, antes mesmo das
O sítio arqueológico histórico do Engenho instituições, podem construir relações com o
dos Erasmos já foi tombado em todas as ins­ objeto-monumento no tempo. Estas relações
tâncias (IPHAN, CONDEPHAAT, CONDEPASA). estão sempre mudando e deixando suas
Nos últimos anos, a restrição das visitações marcas. O aspecto atual das ruínas representa
para atender aos requisitos da conservação muito do abandono do sítio, mesmo num
reforçou a distância das ruínas do dia-a-dia da momento em que se reconhecia seu valor na
população do local, restando somente entre os nossa História. Por pouco os vestígios não
mais velhos algumas lembranças e histórias desapareceram. O desafio é discutir as manei­
que relacionam o cotidiano da comunidade ras pelas quais a comunidade pode apropriar-
com a área (Fig. 3). se dele de fato, tornando-o um testemunho
É sabido, no entanto, que o estudo, a vivo, reconhecendo no objeto uma história
restauração e a preservação do monumento que se faz ainda contínua e não engessada no
como patrimônio histórico não se realizam sem passado.

324
Notas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 323-325, 2001.

Nesse sentido é que se insere a proposta dos diversos vestígios, materiais e imateriais.
de participação dos jovens alunos na Oficina Através das imagens, no processo de constru­
de Vídeo, estimulando-os para uma redes- ção lúdica deste documentário, desenvolve-se
coberta das ruínas e sua apropriação através uma redescoberta.
de um olhar videográfico. Esse contato com a
linguagem audiovisual vem permitindo traba­
lhar ludicamente com aspectos da arqueologia,
da história e da arquitetura, bem como discutir
as questões relativas à conservação e o
usufruto pelas gerações do nosso patrimônio
cultural (Fig. 4).
As diversas atividades com os jovens vêm
se realizando no próprio sítio arqueológico: uma
Oficina de Vídeo entre as ruínas, provocándo­
se a percepção deste espaço, um mergulho. O
mote para o desenvolvimento das atividades no
processo participativo de criação do docu­
mentário foi a sugestão de uma metáfora com o
trabalho arqueológico: a escavação do sítio,
atrás de possíveis vestígios, é como a escava­ Fig. 4 - Frarne extraído do material gravado
ção da memória, atrás das lembranças da durante a oficina de vídeo realizada no
história da presença humana no lugar. Uma Engenho dos Erasmos com alunos da EEPSG
metáfora estimulando a percepção do contexto Profa. Gracinda Maria Ferreira.

Referências bibliográficas

GAMA, R. BO URDIEU, P.
1983 Engenho e Tecnologia. São Paulo: Livraria 1989 O Poder Simbólico. Lisboa: Difusão Edito-
Duas Cidades. rial Ltda.

André Costa*
Silvio Cordeiro*

(*) Grupo de estudos audiovisuais


R ecebido p a ra p u b lica ção em 3 de dezem bro de 2001. Olhar Periférico

325
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 327-329, 2001.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA


ARQUEOLÓGICA NA ÁREA URBANA DE BARUERI

O objetivo do projeto Levantamento das área de contato geológico e, secundariamen­


estruturas arqueológicas do antigo aldea­ te, morfológico. Nessa área, o rio, entre
mento de Barueri é pesquisar e resgatar os outros de expressão variada, forma um
vestígios arqueológicos resultantes desta grande meandro: correndo inicialmente para
ocupação que permaneceram sob o pavimento oeste, volta-se para o norte ao penetrar nas
urbano atual. A área, que hoje é conhecida superfícies cristalinas. O aldeamento sediou-
como Aldeia, tem sido ocupada de forma se justamente a jusante do ponto em que o rio
contínua desde o século XVI (sem levar em se volta para o norte, junto à margem direita,
conta possíveis ocupações anteriores), e as sobre um nítido terraço (73Om) a cavaleiro
evidências do antigo aldeamento, dpós terem do rio, em local fronteiro à desembocadura
sofrido constantes interferências antrópicas è do afluente Barueri. Enquanto a margem
naturais, foram totalmente destruídas. Não esquerda, nesse trecho, é baixa, dada a
existe atualmente nenhuma evidência superfi­ deposição de sedimentos carreados pelo
cial que testemunhe o processo de ocupação Barueri, a margem direita é alta, a barranca
do local, com exceção da capela, que constitui do rio correspondendo ao talude do terraço
o único elemento relacionado ao antigo atualmente trabalhado pelas águas.
aldeamento jesuítico. Abrigado de possíveis inundações em
Trata-se de uma área culturalmente virtude de sua localização sobre o terraço,
descaracterizada, na qual o levantamento das Barueri pôde, entretanto, usufruir de todas as
estruturas arqueológicas do antigo aldea­ vantagens da contigüidade do rio, tanto que,
mento corresponde a uma atitude importante certamente, deve ter tido um atracadouro
no sentido de ter como objeto de estudo uma para o qual se descia por intermédio de uma
área urbanizada, cujo potencial como fonte de breve e íngreme ladeira a partir da praça”
informação histórica já tinha sido descarta­ (Petrone 1995:145).
d o .1 Além destes aspectos considerados, as
O sítio enfocado está localizado no topo construções realizadas pelos jesuítas na época
de uma colina, às margens do rio Tietê, em um da fundação da Aldeia de Barueri deveriam
setor onde o rio foi desviado em decorrência seguir o disposto nas Leis das índias, mas
de obras de retificação do seu leito. deve-se levar em conta toda sorte de fatores
O padrão de ocupação do antigo aldea­ que possam ter impedido o projeto inicial. A
mento corresponde àquele que tem sido localização das estruturas levantadas vai
observado na maioria das aldeias do período fornecer dados sobre a relação entre a inten­
pré-cabralino, que se encontram em terreno ção inicial e o efetivamente ocorrido.2
alto, com ampla vista dos arredores e nas O resgate da cultura material, através de
proximidades de cursos d ’água. pesquisas arqueológicas sistemáticas, permiti­
A respeito da caracterização geográfica, rá destacar a importância do município de
“Barueri localizou-se justo na área em que o Barueri para o desenvolvimento da história
Tietê abandona a faixa sedimentar para brasileira, fundamentada na preservação dos
penetrar na zona cristalina, portanto numa vestígios físicos que constituem um elo

(1) Não estam os utilizando o termo arqueologia (2) Uma referência iconográfica é a planta da aldeia
urbana, mas reconhecem os a especificidade do meio de Carapicuíba feita de acordo com o levantamento
urbano, bem com o o envolvim ento da pesquisa feito em 1937, onde o autor reproduz a planta de
arqueológica realizada na cidade e a relação com a uma Aldeia Jesuítica projetada de acordo com as Leis
com unidade. das índias.

327
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 327-329, 2001.

importante para o entendimento do passado e O aldeamento situa-se no ponto final de


a valorização das tradições ainda existentes. navegação do Alto Tietê, que só volta a ser
O resultado da pesquisa vai possibilitar navegável a partir do atual município de Itu, o
que o município de Barueri possa conhecer, e que faz com que Barueri seja a etapa inicial do
estabelecer a partir deste conhecimento, uma trecho terrestre que demanda para o oeste.
política de gerenciamento do patrimonio Além disso, existe uma vasta documentação
arqueológico, visando o seu uso social e o referente ao caminho dos indígenas - o
aproveitamento dentro de projetos de turismo Peabiru - que levaria às minas situadas no
cultural. Este último está situado entre as território espanhol de outrora (o lendário El
atividades que vêm se destacando como urna Dorado - que não era senão as minas de prata
das principais fontes de geração de recursos de Potosi). Se o antigo aldeamento tiver sido
económicos e para a arqueologia significa urna instalado às margens dessa trilha indígena,
forma de garantir a manutenção da integridade poderemos, através das pesquisas arqueológi­
do patrimonio cultural. cas, constatar ocupação anterior à chegada
A caracterização histórica mostra a origem dos europeus.
da ocupação da região com o estabelecimento Do ponto de vista conceituai considera­
do aldeamento indígena, que teria sido funda­ mos que todas as atividades e ações do
do pelos jesuítas em 1560, não existindo Homem deixam algum tipo de marca ou de
documentação sobre uma ocupação indígena vestígio no solo de atuação, cuja análise
anterior. Dados sobre a seqüência da ocupa­ possibilita a reconstituição da dinâmica social
ção humana no atual município de Barueri passada. Acreditamos que com a aplicação de
poderão ser levantados posteriormente com a uma metodologia de levantamento e com
ampliação da área da pesquisa arqueológica. técnicas de escavação apropriadas para áreas
O estudo dos aldeamentos paulistas passa, urbanas será possível recuperar os remanes­
também, pela análise do processo de ocupação centes das estruturas do antigo aldeamento.
da terra comandado pelos europeus, pela O levantamento prévio realizado sobre os
utilização da mão-de-obra nativa - através, na aldeamentos de São Paulo e especialmente o
maioria das vezes, de uma “escravidão” disfar­ de Barueri, mais a análise antropológica sobre
çada, pela sobrevivência de uma série de hábitos, o comportamento e a relação dos grupos
atividades e atitudes, caracterizando o elemento indígenas envolvidos com os religiosos
étnico típico dos arredores de São Paulo. responsáveis pelo aldeamento, permitiram os
Outra preocupação, sempre presente nos primeiros questionamentos teóricos a serem
estudos referentes aos aldeamentos dos testados em campo.
primeiros séculos, é o do contingente indígena A possibilidade da utilização da documen­
que teria passado por esses núcleos de tação textual vem reforçar os dados para a
aculturação, da quantidade de nativos vindos interpretação do registro arqueológico. Neste
através dos descimientos do sertão e do caso, este reforço de informação será funda­
próprio contato entre os bandeirantes e os mental, uma vez que os vestígios do antigo
missioneiros da América Espanhola. Como já é aldeamento foram sendo destruídos sistemati­
sabido, o Aldeamento de Barueri aparece camente ao longo dos anos pela instalação das
sempre como o mais importante em termos de novas comunidades e pela ação natural do
concentração demográfica, mas deve-se levar clima.
em conta que poderiam existir dois núcleos As prospecções serão iniciadas nas áreas
populacionais distintos em Barueri, o que nos não construídas, nas proximidades da capela,3
leva a crer que a diversidade étnica era bastan­ local que poderia ter sido o centro do aldea­
te elevada. mento. A localização dos alicerces das cons-
A importância da área está no fato de ela
ter sido o palco da convivência de represen­
tantes de várias tribos, ou mesmo nações (3) A capela de Nossa Senhora da Escada também
indígenas, trocando elementos culturais entre será alvo de intervenção arquitetônica de restauro
si e com os europeus. após a conclusão da pesquisa arqueológica.

328
N otas - Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, II: 327-329, 2001.

truções, ou de vestígios de taipa, vão determi­ Esta postura em relação à história e ao


nar a orientação da decapagem, pois a propos­ patrimônio é importante, porque, mesmo existin­
ta é expor ao máximo as estruturas que indi­ do uma legislação federal que garanta a integri­
quem o plano original do estabelecimento. dade do patrimônio arqueológico, somente o
Para a concretização do projeto uma envolvimento da própria comunidade pode
seqüência de atividades será realizada: assegurar a sua conservação. Defendemos a
inclusão, em qualquer projeto de pesquisa
1 - Levantam ento da docum entação textual
e iconográfica sobre o processo de ocupação do arqueológica, de ações relacionadas com a
município de Barueri; divulgação, conservação e uso social dos sítios
2 - Levantamento dos vestígios arqueológi­ trabalhados. Daí a necessidade de realizar, desde
cos e etnográficos do antigo aldeamento na área o início da pesquisa, um trabalho de divulgação e
urbana não edificada;
conscientização sobre o valor do patrimônio
3 - Levantamento dos vestígios arqueológi­
cos e etnográficos do antigo aldeamento na área arqueológico, visando a concretização das
urbana edificada; propostas e a sua manutenção futura.
4 - Divulgação do andamento do trabalho: É exemplar a posição da Prefeitura Munici­
palestras e publicações; pal de Barueri e da comunidade do bairro da
5 - Elaboração de um programa educativo
Aldeia, de buscar a origem da sua história no
junto às escolas do município;
6 - Elaboração de um programa de gestão e registro arqueológico, ainda que atualmente
gerenciam ento do patrimônio cultural municipal. não exista mais qualquer vestígio superficial. O
convênio realizado entre a Prefeitura Munici­
A pesquisa em área urbanizada tem que pal de Barueri e o Museu de Arqueologia e
contar com a participação e colaboração da Etnologia da Universidade de São Paulo é o
comunidade que, no caso de Barueri, tem responsável pela execução do projeto.
mostrado um interesse em recuperar aspectos O trabalho de parceria entre os órgãos
de sua história. oficiais e a universidade, visando a devolução
A elaboração de um programa de gestão e do conhecimento à comunidade, faz com que a
gerenciamento do patrimônio cultural munici­ arqueologia cumpra o seu papel social na
pal, através tanto da evidenciação de estrutu­ participação das políticas públicas culturais.
ras desaparecidas, quanto da revitalização de
edifícios ainda existentes, seria um outro
caminho possível para a construção de uma Maria Cristina Mineiro Scatamacchia*
memória histórica sobre Barueri. Cie ide Franchi**

Referências bibliográficas

PETR O NE, P. SAIA, L.


1995 A ld e a m e n to s P a u lis ta s . São P a u lo ; 1995 M o ra d a P a u lis ta , S ão Paulo: Ed. P ers-
E d u sp . p ectiva, 3a ed ição. C oleção D ebates.

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universida­


de de São Paulo
(**) Museu de Arqueologia e Etnologia da U niversi­
dade de São Paulo. Pós-Graduação em Arqueologia,
Recebido p a ra publicação em 15 de dezem bro de 2001. D outoram ento.

329
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 77: 331-346, 2001.

RESUMOS DE TESES E DISSERTAÇÕES


DO MAE/USP, 2001

ABSTRACTS OF PHD DISSERTATIONS AND MASTERS


THESES OF MAE/USP, 2001

ARAÚJO, A stolfo Gomes de M ello - Teoria e M étodo em Arqueologia Regional: Um


Estudo de Caso no Alto Paranapanema, Estado de São Paulo. Tese de Doutorado.

RESUMO: É apresentada uma proposta teórico-metodológica visando a


implementação de um trabalho de Arqueologia Regional em uma área de 1.440
km2. Uma estrutura da teoria em Arqueologia é proposta, sugerindo como o
encadeamento de diferentes corpos teóricos pode ser operacionalizado de
maneira a permitir resultados satisfatórios. São discutidos os diferentes
aspectos que compõem um trabalho de levantamento arqueológico, tais como
o tratamento de sítios em superfície, os aspectos que influem na interceptação
e detecção de sítios em subsuperfície e as implicações que diferentes abor-
dagems geoarqueológicas podem ter no entendimento dos padrões de
distribuição dos sítios na paisagem. Uma breve discussão da natureza da
classificação em Arqueologia é também realizada, antecedendo a apresentação
e análise dos resultados obtidos.

ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello - Theory and Method in Archaeology: A Case Study
at Upper Paranapanema River, State o f São Paulo. PhD Dissertation.

ABSTRACT: This dissertation presents a theoretical and methodological


framework aiming at the implementation of a regional archaeology program in
an area covering 1.440 km2. Archaeology theoretical structure is discussed,
and an operational rationale linking the different theoretical bodies is sugges­
ted. The different aspects influencing a regional program of survey are
presented, as the treatment of surface sites, the detection and interception of
buried remains, and the implications of different geoarchaeological approa­
ches in the understanding of site distribution patterns. A brief discussion on
the nature of archaeological classification is also presented.

KORMIKIARI, Maria Cristina Nicolau - Norte da Africa Autóctone do Século III ao I


A .C.: As Imagens Monetárias Reais Berberes. Tese de Doutorado.

RESUMO: O trabalho se propõe estudar as cunhagens dos reis berberes


da África do Norte na Antigüidade. Entre a IIa Guerra Púnica e a ascensão de

331
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 77: 331-346, 2001.

Augusto em Roma, urna sèrie de dinastias autóctones emitiram numerário


próprio com seus retratos cunhados nos anversos das moedas e com
legendas púnicas e latinas. A iconografia destas peças, incluindo a
caracterização dos reis, liga-se mormente ao imaginário líbico-púnico. O
caráter essencial destes reinos, baseados na força guerreira e mágica de
seus chefes e no jogo de alianças políticas internas e externas, e a relação
com os “súditos” - as populações semi-nômades e sedentárias berberes - ,
mas também com as cidades fenicio-cartaginesas e berberes, e, por fim,
com as duas potências estrangeiras que dominaram a região ao longo do
século, Cartago e Roma, são abordados com o objetivo de delimitarmos os
receptores dessas cunhagens reais, e assim entendermos melhor o dis­
curso político por detrás das imagens monetárias.

KORMIKIARI, Maria Cristina Nicolau - Autochthonous North Africa from 3rd to 1st
Centuries B.C.: Monetary Images From the Berber Kings. PhD Dissertation.

ABSTRACT: This research aims at studying North A frica’s royal


Berber coinage in Antiquity. Between the Ilnd Punic War and the
principate of Augustus in Rome, a series of Berber kings coined money
of their own. They stamped their portraits on the obverse of the coins
and used Punic and Latin inscriptions. The coinage’s iconography is
mostly linked with Berber-Punic cultural substract. The essential
character of these reigns, based on their chiefs’ military and magical
strength, their internal and external alliances, their relationship with the
subjects - sem i-nom ads and sedentary Berbers - , and, finally, the
interaction with the two foreign powers that ruled over the country for
centuries, Carthage and Rome, are treated so to find the receptor of
those royal coinages. In this way, the political discourse can be better
u n d e rsto o d .

SILVEIRA, Maura Imázio da - “Você É o Que Você Come”: Aspectos da Subsistência no


Sambaqui do Moa-Saquarema/RJ. Tese de Doutorado.

RESUMO: A presente tese consiste no estudo do Sambaqui do Moa -


Saquarema/RJ, com enfoque na questão da alimentação e suas relações
com o sistema sociocultural dos grupos que o habitaram, tendo como
objetivo utilizar a alimentação como mais um componente para entender
aspectos da identidade sociocultural dos grupos sam baquieiros. Foram
utilizados procedimentos que podem ajudar na compreensão e na inter­
pretação de dados obtidos através de estudos zooarqueológicos que
visem resgatar aspectos culturais, além de contribuir no enfoque m eto­
dológico. Os resultados apontam para a predominância das atividades de
pesca em relação à coleta de moluscos e à caça, corroborando o modelo
proposto por Figuti (1994/5) sobre as estratégias de subsistência dos
grupos sam baquieiros.

332
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

SILVEIRA, Maura Imázio da - “You Are What You Eat”: Subsistence Aspects at the
Sambaqui o f Moa-Saquarema/RJ. PhD Dissertation.

ABSTRACT: This dissertation describes the study of the p re­


histórica! shell midden called “Sambaqui do M oa” in Saquarema, State
of Rio de Janeiro, focusing on the question of food and its relation­
ships with the social and cultural system of the groups that lived there,
with the aim of using food as yet another factor for understanding the
social and cultural identity of the pre-historical shell midden builders.
We have developed procedures which may help in understanding and
interpreting data obtained from zooarchaeological studies aiming at
recovering cultural aspects, and may also contribute to the m ethodo­
logical approach. Our results point to the predom inance of fishing over
collecting shellfish or hunting, which corroborates the model of subsis­
tence strategies for pre-historical shell midden building groups pro­
posed by Figuti (1994/5).

AGUILAR SANTOS, Ruben - A Noção de Valor no Período Patriarcal. Tese de Doutorado.

RESUMO: O Presente estudo procura estabelecer uma proposta sobre a


“Noção de Valor no Período Patriarcal”. Sendo que a Bíblia, livro sagrado do
judaismo, é a única fonte direta sobre a historicidade da época patriarcal, foi
necessário justificar essa realidade com fontes arqueológicas, principalmente
tabletes de argila, vestigios das nações do Antigo Oriente Médio.
A historicidade da época patriarcal é comprovada utilizando documen­
tos arqueológicos, que dão testemunho da origem do povo hebreu, da sua
chegada à terra de Canaã com as migrações amoritas, pela relação de
nomes pessoais e toponímicos, pela análise do cenário ou ambiente
geográfico onde se desenvolveu a cultura patriarcal e pelas características
de nômades e de semi-nômades que os identificavam.
A análise dos textos bíblicos, com o recurso das fontes arqueológicas,
principalmente os documentos mesopotâmicos, permite conhecer a organi­
zação social do povo hebreu, cujo núcleo central é a família. A norma de
conduta dos patriarcas encontra-se na “aliança”, um pacto entre a divinda­
de e Abraão como representante do povo hebreu. A especificação mais
importante dessa “aliança” é que Deus promete fazer da descendência de
Abraão uma grande nação e proporcionar-lhe a terra das suas peregrina­
ções. É em estrita obediência aos preceitos dessa “aliança” que os hebreus
atribuem valor aos objetos e às instituições sociais praticadas pelos
patriarcas. A “aliança” é então um modelo ou exemplo de relacionamento
social. Assim, com base na “aliança”, os patriarcas criaram mecanismos de
transferência de bens. Mediante a análise dos textos judaicos, chegamos à
conclusão de que no ambiente patriarcal havia três esferas econômicas onde
se verificava a circulação de riqueza: a esfera de subsistência, de prestígio e
de direito. A forma de integração econômica entre os hebreus é de reciproci­
dade, que se manifesta em cada uma das instituições e práticas que acontecem
nas esferas econômicas. O intercâmbio de bens de valor executado mediante a
reciprocidade cria um ambiente característico do mercado de presentes.

333
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

AGUILAR SANTOS, Ruben - Notion of Value in the Patriarchal Period. PhD Dissertation.

ABSTRACT: This study aims at establishing a proposal about the “Notion


of Value in the Patriarchal Period”. Since the Bible, sacred book of the Judaism,
is the only direct source on the historicity of the patriarchal time, it was necessary
to justify that reality with archeological sources, mainly clay tablets, tracks of
the nations of Old Middle East.
The historicity of the patriarchal time is proven, using archeological
documents, that give testimony of the origin of the Hebrew people, of their
arrival to the land of Canaan with the migrations of the Amorite, by the
relationship of personal names and toponymies, by the analysis of the
scenery or geographical atmosphere where the patriarchal culture grew and by
the characteristics of nomads and semi-nomads that gave them identity. The
analysis of the biblical texts, combined with archaeological sources, mainly
the Mesopotamic documents, allows one to know the social organization of
the Hebrew people, whose central nucleus is the family. The norm of conduct
of the patriarchs is ruled by the “alliance”, a pact between the divinity and
Abraham as representative of the Hebrew people. The most important spe­
cification of that “alliance” is that God promises to make of Abraham descents
a great nation and of providing them the land of their pilgrimages. It is in strict
obedience to the precepts of that “alliance” that the Hebrews attribute value
to the objects and the social institutions practiced by the patriarchs. The
“alliance” is then a model or an example of social relationship. Like this, based
in the “alliance”, the patriarchs created mechanisms of transfer of goods and
commodities. By the analysis of the Jewish texts, we approached the conclu­
sion that in the patriarchal atmosphere there were three economical spheres
where the wealth circulation was verified: the spheres of subsistence, of
prestige and of right. The form of economical integration among the Hebrews
is of reciprocity that it shows in each one of the institutions and practices that
happen in the economical spheres. The exchange of goods of value executed
by the reciprocity creates a characteristic atmosphere of the gift market.

NAVARRO, Alexandre Guida - O Retomo de Quetzalcóatl: Contribuição ao Conhecimento


do Culto da Divindade a Partir do Registro Arqueológico de Chichén Itzá, M éxico.
Dissertação de Mestrado.

RESUMO: Esta pesquisa tem como objetivo o estudo de uma divindade


maia: Quetzalcóatl/Kukulcán. Trata-se de reunir elementos que. corroborem
para o entendimento do culto a partir da cultura material, dos documentos
escritos pelos espanhóis após o processo de Conquista, no século XVI e um
documento maia, o Códice de Dresden. O sítio arqueológico que nos serve de
objeto de estudo é Chichén Itzá, localizado na Península do Iucatã, México,
por conter um número maior de vestígios materiais com representação da
divindade. Nosso objetivo é, num primeiro momento, desmistificar conceitos
cristãos aplicados ao culto pelos missionários espanhóis e, num segundo,
demonstrar sua importância em Chichén Itzá. Acreditamos que o culto de
Quetzalcóatl tenha sido responsável pelo empreendimento de grande parte
das construções arquitetônicas deste centro urbano.

334
Notas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

NAVARRO, Alexandre Guida - The Return of Quetzalcóatl: Contribution to the Knowledge


o f the D eity ’s Cult Through Material Evidence o f Chichén Itzá, M exico. Master
T hesis.

ABSTRACT: This study of the Maya deity Quetzalcóatl/Kukulcán aims a


better understanding of the cult of this deity through the archaeological evidence
and written documents by the Spaniards after Conquest (16th century), and also
the Maya Dresden Codex. The archaeological site studied here is Chichén Itzá in
the Yucatan Peninsula, Mexico, where the largest archaeological corpus of
material evidence concerning this deity can be found. The analysis of this urban
center led us to conclude that the cult of Quetzalcóatl is linked to most buildings
and to military conquest of other areas, in disagreement with Spanish missionary
and most of the 20th century literature on the subject.

MARTINS, Cristiana Bertazoni - O Papel do “Dinheiro Primitivo” na Economia Inca.


Dissertação de Mestrado.

RESUMO: Essa pesquisa teve como objetivo identificar e catalogar


sistematicamente os objetos que serviram como ‘dinheiro primitivo’ na área
andina durante o período conhecido como Horizonte Tardio, que vai de 1476 a
1534 d.C. Após este primeiro passo, tentamos precisar em quais esferas
sociais estes objetos circulavam e que papel desempenhavam em cada uma
delas, definindo, assim, o seu funcionamento em um sistema de valor deter­
minado e específico. O tema da pesquisa se justifica basicamente por dois
motivos: (a) a forma insatisfatória, e muitas vezes superficial, com que os
trabalhos a respeito da economia incaica tratam a questão do dinheiro; (b) o
costume - ao nosso ver equivocado - de entender o ‘dinheiro primitivo’ por
meio de conceitos alheios à realidade do antigo Peru. Para a realização dessa
pesquisa foram utilizadas como fontes principais as crônicas espanholas
escritas durante os séculos XVI e XVII. Sempre com o cuidado de não cair em
anacronismos, fato comum quando se trata de pesquisas a respeito da
economia nas sociedades consideradas arcaicas. Esperamos com este tra­
balho poder contribuir para uma compreensão mais ampla do ‘dinheiro
primitivo’ e da noção de valor entre os Incas.

M ARTINS, Cristiana Bertazoni - The Role o f “Primitive M oney” on Inka Econom y.


Master Thesis.

ABSTRACT: The scope of this research is to systematically classify and


identify the objects that served as ‘primitive money’ in the Andean region
during the period known as the Late Horizon, which covers the years 1476
through 1534 A.D. We tried to indicate how these objects circulated within the
various social spheres and the role they played in each one of them, in order
to determine their function in a system that had definite and specific values.
The reasons to decide on this theme were basically two: (a) the inadequate
and often superficial way which money is dealt with in the existing works on

335
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11\ 331-346, 2001.

Inka economy; (b) the general understanding of ‘primitive money’ by means


of concepts which are not appropriate to the reality of ancient Peru. This
research was based on chronicles written by Spaniards during the XVI and
XVII centuries. Throughout this work, we were careful not to fall into ana­
chronism, since that usually happens in researches on economy about the so
called archaic societies. We hope that this work may be a contribution to a
better understanding of ‘primitive money’ and notion of value in the Inka
society.

KLOKLER, Daniela Magalhães - Construindo ou Deixando um Sambaqui? Análise de


Sedimentos de um Sambaqui do Litoral Meridional Brasileiro - Processos Forma-
tivos. Região de Laguna-SC. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: Nossa pesquisa tem como objetivo o estudo dos processos


de formação de um grande sambaqui localizado no município de Jaguaruna-
SC. Acreditamos que o hábito de construir faz parte da identidade cultural
sambaquieira, e a partir dessa hipótese procuramos evidências de um
processo de construção intencional de uma estrutura elevada a partir dos
vestígios faunísticos que compõem a matriz sedimentar do sítio. Nossos
resultados permitiram a caracterização do processo de acumulação das
diferentes camadas estratigráficas como ocorrência simultânea e derivada do
ritual funerário com lentes de sedimento orgânico representando festins
rituais em homenagem aos mortos cobertas por depósitos de camadas de
moluscos.
Consideramos o sítio Jabuticabeira II um sambaqui com função funerária,
que, provavelmente, serviu de palco para festins cerimoniais em honra aos
membros mortos das comunidades que habitavam a região da Lagoa de
Camacho à época.

KLOKLER, Daniela Magalhaes - Building up or Abandoning a Sambaqui? Analysis o f


the Sediments from a Southern Brazilian Coast Shellmound. Master Thesis.

ABSTRACT: Our research has as its goal the analysis of the formation
processes of a large shellmound located at the Jaguaruna region, State of
Santa Catarina-Brazil. We assume that the construction habit is part of the
sambaqui cultural identity and from this hypothesis we are looking for
evidences of an intentional building process of an elevated structure based
on the faunal remains which are the basis of the site matrix. The results allow a
characterization of the accumulation process of e fferent strata occurring
simultaneously to the mortuary ritual with covering sheets of organic layers
representing ritual feastings in honor of the dead and successive deposition
of layers of mollusk valves.
We consider the Jabuticabeira II site a shellmound with funerary
function which most probably served as a site of ritual feastings in honor
of the deceased community members that inhabited the Camacho area at
that time.

336
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

TEIXEIRA, Ivana Lopes - O Discurso Narrativo nos Baixos-R elevos Imperiais


Romanos: a Coluna de Trajano. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: O objetivo deste trabalho é discutir aspectos da narração na


arte romana do período imperial, através da análise de elementos artísticos e
da técnica escultória, utilizando como documento material a Coluna de Trajano
- componente do complexo arquitetônico do Fórum de Trajano, em Roma.
Selecionaram-se para estudo os relevos da Coluna Trajana, que apresentam
uma narrativa visual das campanhas de guerra do Imperador na Dácia (atual
Romênia). Os relevos - uma faixa narrativa contínua - cobrem o corpo da
Coluna da sua base até o topo. A base está assentada sobre uma câmara
também coberta de relevos - que serviu de túmulo ao Imperador - e o topo da
Coluna sustentava uma estátua de bronze de Trajano. Até então, as colunas
eram utilizadas exclusivamente como suportes para a estatuária. Este material
permite a abordagem de questões relativas à tradição textual (fontes escritas)
e material (fontes materiais) nas sociedades antigas; às relações entre texto e
imagem; à discussão entre poder político e arte de Estado, e como esses
diferentes discursos refletem formas de pensamento e compreensão do mundo
por parte destes povos.

TEIXEIRA, Ivana Lopes - The Narrative on the Roman Imperial R eliefs: Trajan’s
Column. Master Thesis.

ABSTRACT: This work aims at discussing aspects of narration in Roman


art of the imperial period, through the analysis of artistic elements and of the
sculpting technique, using Trajan’s Column - component of the architec­
tonic complex of the Trajan Forum at Rome - as material document. We
selected for study the reliefs of the Trajan’s Column which offer a visual
narrative of the Emperor’s warfare in Dacia (Romenia). The reliefs - a
continuous narrative strip - cover the column’s body from basis to top. The
basis seats on a chamber also covered by reliefs - having served as the
tomb of the Emperor - and the top formerly lodged a bronze statue of
Trajan. Till that time, columns were but supports for statuary. This material
permits an approach to questions related to textual tradition (written sour­
ces) and material tradition (material sources) in ancient societies, or relations
between image and text, and the discussion between political power and
State art, and how these diverse discourses reflect forms of thinking and
comprehending the world.

MONZANI, Juliana Caldeira - A Transição da Idade do Bronze para a Idade do Ferro


na Grécia: Uma Nova Perspectiva de Estudo. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar os resultados obtidos por


um ampio projeto arqueológico voltado para a protohistória da Grécia - The
Minnesota Messenia Expedition (UMME) - no intuito de verificar a perti­
nência e alcance da metodologia adotada no estudo das sociedades sem

337
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 11: 331-346, 2001.

registro escrito. A UMME selecionou a Messênia como região a ser abordada


e o sítio de Nichoria para uma escavação total, em um estudo cujos parâme­
tros cronológicos abordam desde o Neolítico até a época atual. O Projeto visa,
assim, conjugar o estudo extensivo de uma área à escavação intensiva de um
sítio. Para tanto foi necessária a adoção de novas metodologias: a interdis-
ciplinaridade e a busca de novas tecnologias para identificar vestígios. A
abordagem proposta pela Universidade de Minnesota conjuga o levanta­
mento de superfície, a interdisciplinaridade em arqueologia, a escavação
intensiva e a publicação total da pesquisa, propondo novos métodos para a
Arqueologia Grega e disponibilizando um conhecimento que permite o
desenvolvimento de outras linhas de estudo arqueológicos e, no futuro, de
comparação entre as diversas regiões da Grécia em qualquer período de sua
história.

MONZANI, Juliana Caldeira - The Transition from the Bronze to the Iron Agein Greece:
a N ew Perspective o f Study. Master Thesis.

ABSTRACT: The aim of this work is to analyze the results obtained from
an extended archaeological project on the protohistory of Greece - The
University of Minnesota Messenia Expedition (UMME) - with the intent of
verifying the pertinence and range of the adopted methodology to the study
of societies with no written records. UMME selected the region of Messenia
and the site of Nichoria for a complete excavation, in a study which chrono­
logical parameters extend from the Neolithic to the present. The project aims at
associating the extensive study of a region to the intensive excavation of a
site. In order to do this, it was necessary to adopt new methodologies:
interdisciplinarity, and the search for new technologies to identify vestiges.
The approach used by the University of Minnesota combines the surface
survey, the interdisciplinarity in archaeology, the intensive excavation, and
the complete publishing of the research. This approach proposes new me­
thods for Greek archaeology and makes available a cèrtain type of knowledge
that allows the development of other trends of archaeological study and, in
the future, the comparison between several regions of Greece at any time in its
history.

GUIMARÃES, Márcia Barbosa da Costa - O Espaço e a Organização Social do Grupo


Construtor do Sambaqui Ibv4, Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: A partir da análise intra-espacial, foi possível identificar áreas


de atividades desenvolvidas pelo grupo que ocupou o sambaqui IBV4, Cabo
Frio, RJ, durante o período entre 3850 ±140 a 3680±40 B.R Relacionam-se a
atividades cotidianas (refugo alimentar, edificação de construções e confec­
ção de artefatos líticos), bem como a atividades rituais (sepultamentos). Dois
pólos foram identificados, tendo como base o modelo proposto para o
sambaqui IBVI: o centro foi espaço específico para o desenvolvimento das
atividades rituais, de descarte e construção de habitações, enquanto a

338
N otas — Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 77: 331-346, 2001.

confecção de artefatos lascados desenvolveu-se, preferencialmente, na


periferia.
A partir da análise quantitativa, foi possível determinar que o sambaqui
apresenta três momentos distintos na sua ocupação, evidenciados através de
quedas abruptas na freqüência do material arqueológico.
Estas ocupações apresentam diferenças entre si. A camada I representa a
chegada do grupo que dá início à ocupação/construção do sambaqui; a
camada II, de ocupação, é a mais densa; e a camada III representa os níveis
finais da ocupação e o abandono do sambaqui pelo grupo construtor. Todas
as camadas indicam que o sambaqui foi ocupado por grupos pertencentes a
um mesmo sistema sociocultural.
O arranjo do microespaço do IBV4 demonstrou uma concepção de espaço
verticalizado e, nesse sentido, o grupo construtor apresentou, nos três
períodos ocupacionais, preocupação em construir uma plataforma regula­
rizada, através da dispersão do material proveniente da área de concentrações
(central), visando ocupar os espaços adjacentes a ela.
A existência de etapas de fabricação de artefatos, bem como de atividades
relacionadas à prática cotidiana nos conduziu a reiterar a função habitacional
para o sambaqui IBV4.

GUIM ARÃES, Márcia Barbosa da Costa - Space and Social Organization Among the
Sambaqui Builders at the Ibv4 Site, Cabo Frio/RJ. Master Thesis.

ABSTRACT: Starting from the intrasite analysis, it was possible to identify


areas of activities developed by the group that occupied the sambaqui IBV4,
Cabo Frio, RJ, during the period among 3850±160 to 1920±40 B.R These
activities are linked to daily activities (food rejects, constructing of buildings
and making of lithic artifacts), as well as rituals (burials). Two poles were
identified, having as basis the model proposed for the sambaqui IBV1: the
center was the specific space for ritual activities, of discarding and building of
houses, while the making of chipped artifacts grew preferentially in the
periphery.
Starting from the quantitative analysis it was possible to determine that the
sambaqui presents three different moments in its occupation evidenced
through abrupt falls in the frequency of the archaeological material, which we
are considering as possible evidences of abandonment. These occupations
present differences amongst themselves, with the layer II being the one of
denser occupation. The layer I represents the arrival of the group that start the
occupation/construction of the sambaqui and the final levels of the layer III, the
abandonment by the building group. All of the layers indicate that the sambaqui
was occupied by groups belonging to the same social cultural system.
The arrangement of the IBV4 microspace has demonstrated a conception
of verticalized space, and in that sense, it presented, in the three occupational
periods, preoccupation in building a regularized platform, through the disper­
sion of the material from the area of concentrations aiming at occupying the
adjacent spaces.
The existence of stages of production of artifacts, as well as that activities
related to the daily practices led us to reiterate the habitational function for the
sambaqui IBV4.

339
N otas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

SAN TO S, Maria do Carmo Mattos M onteiro dos - A Problemática do Levantam ento


Arqueológico na Avaliação de Impacto Ambiental. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: O levantamento arqueológico é considerado, aqui, momento


fundamental da pesquisa arqueológica ligada à Gestão de Recursos Culturais
(GRC), uma vez que é a partir dos seus resultados que poderão ser avaliados
impactos sobre os recursos arqueológicos e posteriormente propostas medidas
de gestão desses recursos. O levantamento arqueológico desenvolvido no âmbito
da Avaliação de Impacto Ambiental reveste-se, assim, de grande significado na
proteção do patrimônio arqueológico nacional.
A problemática do levantamento arqueológico desenvolvido no âmbito da
Avaliação de Impacto Ambiental é analisada a partir do exame das possibilida­
des oferecidas pela legislação vigente (ambiental e de proteção do patrimônio
cultural e arqueológico) e das principais questões metodológicas que inter­
ferem diretamente na acuidade do levantamento arqueológico, seguindo-se
para a identificação das principais questões enfrentadas no desenvolvimento
de alguns projetos durante a última década. Finaliza-se com a discussão das
diretrizes elaboradas pelo órgão gestor do patrimônio cultural nacional
(IPHAN) para o desenvolvimento da pesquisa arqueológica ligada ao licencia­
mento ambiental, priorizando-se os aspectos relativos ao levantamento
arqueológico.

SANTOS, Maria do Carmo Mattos Monteiro dos - The Question o f the Archaeological
Survey on Environmental Impact Assessm ent. Master Thesis.

ABSTRACT: Archaeological survey is considered a fundamental stage of


Cultural Resource Management (CRM) research. Survey results interfere
directly on the evaluation of impacts on archaeological resources and on
management decisions. That’s why survey developed in Environmental
Impact Assessment has great significance to the protection of national
archaeological heritage.
The discussion of archaeological surveys developed in CRM studies
starts with the analysis of the possibilities offered by environmental and
cultural protection laws, considering the main questions of survey me­
thodology that directly affect the reliability of its results. The main pro­
blems faced during the development of some projects on the last decade in
Brazil are analyzed and, finally, the guidelines proposed by Brazilian
heritage governmental agency (IPHAN), for the development of the
archaeological research linked to environmental assessment, are dis­
cu ssed .

BAR BO SA, Paula Nishida - Estudo Zooarqueológico do Sítio Mar Virado Ubatuba-SP.
Dissertação de Mestrado.

RESUMO: Sob o ponto de vista zooarqueológico, buscamos observar


os padrões de pesca e coleta no sítio Mar virado (SP). Para realizarmos

340
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

essa pesquisa, analisamos amostras faunísticas provenientes de coletas


seletivas e coletas de sedimento por coluna, que nos possibilitaram
observar a real representatividade das espécies encontradas no sítio. Além
disso, realizamos uma comparação entre esses dois métodos de coleta de
amostras que nos propiciou uma breve discussão sobre a necessidade de
estratégias de amostragens antes das escavações em sítios arqueológicos. •
Parte fundamental de nossa pesquisa foram as contribuições obtidas
através da Antropologia Marítima, que nos permitiu ampliar o nosso
quadro interpretativo do sítio Mar Virado, bem como a importância de se
observar os aspectos singulares que envolvem as sociedades insulares e
seu ambiente.

BARBOSA, Paula Nishida - Zooarchaeological Analysis of the Mar Virado Site,


Ubatuba-SP. Master Thesis.

ABSTRACT: In this research we discuss our data from the Maritime


Anthropology model perspective, considering some singularities that
involve insular societies and their environment. To observe these aspects in
the archaeological record, we studied the fishing and gathering patterns,
using a zooarchaeological analysis of the faunal samples that provide us
with a real representation of the species found in the Mar Virado archaeo­
logical site. The impact of different sampling strategies in the analysis is
also discussed.

RODRIGUES, Robson Antonio - Cenários da Ocupação Guarani na Calha do Alto


Paraná: Um Estudo Etnoarqueológico. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: No período pré-colonial brasileiro, as situações estabelecidas pela


interação humana com o ambiente possibilitaram a criação de espaços favo­
ráveis ao desenvolvimento da economia e da reprodução cultural de diferentes
grupos étnicos. Por meio de recentes pesquisas arqueológicas, pode-se obser­
var que na área banhada pela calha do Alto Paraná, numerosos contingentes
humanos, associados a grupos Guaranis, transitaram de forma significativa.
Tendo como fator os cursos dos rios em suas migrações pelo interior do
continente, encontraram condições para organizar estratégias que viabilizassem
a ocupação e expansão de sua cultura. Novos aspectos dessa ocupação
territorial foram observados, principalmente quanto à diversidade dos padrões.
Observa-se que os laços de parentesco estão ligados à ocupação espacial,
sendo que as melhores terras são associadas às aldeias mais extensas. O
complexo sistema econômico deste grupo étnico baseava-se na caça, pesca,
coleta e, sobretudo, numa agricultura de floresta. As datações apontam para
uma ocupação que se inicia por volta dos séculos V e VI. A análise indica uma
fronteira cultural e ambiental bem definida. No predomínio dos sedimentos da
bacia do Paraná, o relevo toma-se mais suave e colinar. Associada às florestas
ciliares, próximas às margens dos rios principais, constata-se uma variação de
evidências arqueológicas ligadas à população Guarani.

341
N otas - Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 331-346, 2001.

RODRIGUES, Robson Antonio - Sceneries o f the Guarany Occupation at the Upper


Parana: An Archaeological Study. Master Thesis.

ABSTRACT: In Brazilian precolonial period, conditions for human


interaction with the environment made possible the occupation of favorable
spaces for the development of the economy and the cultural reproduction of
different ethnic groups. Through recent archaeological researches, it can be
observed that in the upper Paraná numerous human communities, associated
to Guaranis, occupied the area in a significant way. Following the rivers in
their migrations towards the interior of the continent, they found conditions
for organizing strategies that made possible the occupation and expansion of
their culture. New aspects of this territorial occupation were noticed, mainly
the diversity of the patterns. It is observed that kinship is linked to the spatial
occupation, and the best lands are associated to the most extensive villages.
The complex economic system of this ethnic group was based on hunting,
fishing, collecting, and above all on agriculture established on forests.
Thermoluminescent datations show an occupation that begins in the Vth
and Vlth centuries. The analysis indicates a very defined cultural and
environmental frontier. On the sediments of Paraná basin, the area comprises
smooth, convexo-concave slopes.
Associated to riparian vegetation, adjacent to the banks of the main
rivers, a variation of archaeological evidences related to the Guarani po­
pulation is verified.

NAJJAR, Rosana Pinhel Mendes - Catequese em Pedra de Cal: Estudo Arqueológico de


uma Igreja Jesuíta (Nossa Senhora da Assunção - Anchieta/ES). Dissertação de
Mestrado.

RESUMO: Esta dissertação foi fruto de uma pesquisa arqueológica realizada


na igreja jesuítica de Nossa Senhora da Assunção, localizada no município de
Anchieta, Espírito Santo. A partir dos dados advindos das escavações realiza­
das, de fontes históricas primárias e de pesquisa bibliográfica, pretendeu-se
desvelar como os assentamentos jesuíticos do litoral brasileiro participaram do
projeto de colonização portuguesa em nosso país, sendo, ao mesmo tempo,
produtos e produtores deste processo. Para tal, pesquisou-se o programa
construtivo da Ordem e os partidos arquitetônicos dele derivados. Na busca
dos objetivos acima apontados, a pesquisa arqueológica considerou o comple­
xo arquitetônico, que data do século XVI, como um super-artefato construído
intencionalmente pela Companhia de Jesus. Partindo-se deste princípio, a
edificação estaria, ela própria, prenhe dos valores e significados relativos à
ordem religiosa que a construiu e, portanto, da sua relação com o projeto
colonizador português. Como resultado das pesquisas, além de se contextualizar
historicamente uma série de elementos arquitetônicos, revelados pelas escava­
ções, presentes na Igreja de Nossa Senhora da Assunção, esboçou-se um modelo
de como se deu a implantação e evolução das aldeias jesuíticas no litoral bra­
sileiro. Assim, o presente trabalho se insere no bojo das pesquisas realizadas no
campo da Arqueologia Histórica em nosso país que, a partir de uma perspectiva
interdisciplinar, visam a consolidar essa disciplina enquanto uma ciência social.

342
N otas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

NAJJAR, Rosana Pinhel Mendes - Catechesis in Limestone: Archaeological Study o f a


Jesuitic Church (Nossa Senhora da Assunção - Anchieta/SP). Master Thesis.

ABSTRACT: The present thesis the outcome of the archaeological


investigations carried out at the Church of Nossa Senhora da Assunção,
in Anchieta, Espírito Santo State. To conduct this study various data
sources were used including archaeological data, historical documents
and bibliographical survey. The objective is to understand how the
jesuits’ settlements, along the Brazilian coast, took part in the Portuguese
colonization in our country, being at the same time, the products and the
producers of this process. To explore this goal fully, the jesuits’s cons­
tructive design and the related architectural features are analysed. In order
to achieve these objectives, the architectural complex, of the 16th century,
is considered as a superartifact, which was intentionally designed by the
Companhia de Jesus. As a result of this, the building is embedded with
symbolism concerned to the religious order responsible for its cons­
truction and, therefore, to the relation between the jesuits and the Portu­
guese colonizing project. The data recovered during the excavations
allowed the historical contextualization of a series of architectural elements
and also provided information to outline a model to explain the establi­
shment and the transformations of the jesuits’ villages along the Brazilian
coast. The present study could be placed, consequently, in the scope of
the Brazilian Archaeology, following the researches developed from a
interdisciplinary perspective which contributes to the consolidation of the
Historical Archaeology as a social science.

SILVA, Sergio Francisco Serafim Monteiro da - Um Outro Olhar Sobre a Morte:


Arqueologia e Imagem de Enterramentos Humanos no Catálogo de Duas Coleções
- Tenório e Mar Virado, Ubatuba, São Paulo. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: As escavações realizadas por arqueólogos do IPH e MAE/USP


em Tenório (1969- 1971) e Mar Virado (desde 1990), dois sítios conchíferos
n ã o -s a m b a q u is do litoral Norte do Estado de São Paulo, resultaram na
formação de duas coleções museológicas a partir dos enterramentos en­
contrados. Esta dissertação revisou o sistema de registro e os contextos de
campo e de laboratório dessas coleções, tomadas como exemplos para um
catálogo sistemático de enterramentos humanos.
A Parte I apresenta as principais bases teóricas e metodológicas da
arqueologia da morte, terminologias e classificações para a descrição de
enterramentos humanos em contexto arqueológico e uma revisão das pes­
quisas arqueológicas sobre sítios pré-históricos brasileiros com enter­
ramentos. A Parte II mostra a pesquisa arqueológica no litoral de São Paulo e
Ubatuba e o resumo das escavações em Tenório e Mar Virado. A Parte III
apresenta os métodos laboratoriais aplicados nas duas coleções. A Parte IV é
o catálogo dos enterramentos humanos, com esqueletos e materiais funerários
associados dos dois sítios. As Partes V à VII apresentam as considerações
finais, bibliografia e dados ainda não publicados de cadernos de campo,
mapas, plantas, diários de campo e outros documentos.

343
N otas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

As imagens fotográficas compõem um guia para os trabalhos de campo e


laboratório e constituem dados de referência visual para a reconstituição de
antigas e novas pesquisas arqueológicas, indicando o potencial analítico-
interpretativo dos dados funerários.

SILVA, Sergio Francisco Serafim Monteiro da - A Glance Upon Death: Archaeology and
Human Burial Imagery from Two Sites - Tenório and Mar Virado, Ubatuba, SP.
Master Thesis.

ABSTRACT: This thesis presents a revision and a description of two


museological collections of funerary remains as they were recovered in the
field and kept in the laboratory - aiming at a systematic catalogue. It refers to
preparation of human skeletal remains, associated funerary materials and their
record sistems - visual documentation - for the study of specific problems in
archaeology of death of Tenório and Mar Virado, two non-sambaqui sites at
northern coast-line of São Paulo state. Tenório was excavated in 1969-1971
and Mar Virado since 1990 by archaeologists of Instituto de Pré-História and
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
Part I presents the principal theoretical and methodological basis of the
archaeology of death and terminologies and classifications for description of
human burials in archaeological context and a review of archaeological
researches about Brazilian prehistoric sites with burials. Part II shows the
archaeological research in coast-line of São Paulo and Ubatuba and it is the
report of excavations in Tenório and Mar Virado. Part III presents laboratory
methods of cleaning, identification, reconstruction, sex, age and inventory
with photographs and sketches for treatment of fragmentary skeletal remains
in two museological collections. Part IV is the catalogue of human burials -
human bones and associated funerary materials - of the two sites: the attitu­
des of skeletons of 56 burials excavated are described and revised with 377
figures. Parts V to VII present the final considerations, bibliography and
unpublished data of field notebooks, maps, plants, field diary and other
documents. Photographic images provided data for this study and made a
guide to field work and constituted visual reference data in reconstruction of
old and new field archaeological researches.
The main idea in this thesis is emphasizing the three component elements
in human burials - the corpse, grave and associated funerary materials - and
their visual record systems with their problematic. The secondary objective of
this study is indicating the analytical-interpretative potential of skeletal
collections using one catalographic method.

FERNANDES, Suzana Cesar Gouveia - Estudo Tecnotipológico da Cultura Material das


Populações Pré-Históricas do Vale do Rio Turvo, Monte Alto, São Paulo e a
Tradição Aratu-Sapucaí. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: As pesquisas sistemáticas em sítios pré-históricos do Estado


de São Paulo têm por objetivo principal enriquecer e intensificar os questio-

344
Notas - Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 331-346, 2001.

namentos a respeito da cultura material e do modo de vida das populações


indígenas antes do contato.
O Sítio Arqueológico de Água Limpa - situado no Município de Monte
Alto, no vale da Serra do Jabuticaba!, norte do Estado de São Paulo - vem
demonstrando o quanto a sistematização, tanto das pesquisas de campo
quanto de laboratório, podem resultar em informações valiosas sobre as
populações que ocuparam o Vale do Rio Turvo no período pré-histórico. Em
Água Limpa, novos dados referentes à interação das populações do planalto
com o meio-ambiente têm merecido pesquisas exaustivas por parte dos
profissionais envolvidos. Em particular, os contextos de sepultamentos e
restos alimentares têm se mostrado distintos, servindo, portanto, como
elementos de comparação com outros sítios.
Na presente dissertação, nosso objetivo de estudo foi a totalidade dos
vestígios cerâmicos e líticos das campanhas de escavação dos anos de 1993 e
1994, analisados em função de suas características tecnológicas e tipológicas
- a Tecnotipologia. Consideramos ser a união destes dois fatores, aliados à
distribuição e cronologia dos vestígios arqueológicos no sítio, a melhor forma
de compreender as etapas de confecção, emprego social, uso e descarte da
cultura material produzida no vale do Rio Turvo.
Posteriormente, procuramos comparar os dados obtidos neste sítio de
interior com informações a respeito da Tradição Aratu-Sapucaí. Tal confronto
é de fundamental importância, pois as indagações e questionamentos sobre as
tradições têm se intensificado proporcionalmente ao crescimento das pes­
quisas nos estados do sudeste do Brasil.
Estipuladas tais tradições, fruto de pesquisas extensivas realizadas em
grande parte do território brasileiro e cujo objetivo era levantar numericamente
os sítios arqueológicos, ao mesmo tempo em que se buscava estabelecer
elementos comuns entre a cultura material, cabe à nova geração de arqueó­
logos o questionamento destes dados, lançando, quem sabe, respostas
inovadoras para as antigas configurações culturais.

FERNANDES, Suzana Cesar G ouveia - Material Culture from Prehistoric S ocieties in


Monte Alto, SP, and the Aratu-Sapucai Tradition. Master Thesis.

ABSTRACT: The main goal of systematic research on archaeological sites


in the State of São Paulo (Brazil) is to get a better understanding of the
material culture and the ways of life of native indigenous populations before
the European contact.
The Água Limpa Site, located in Monte Alto county, northern São Paulo,
has provided, through laboratory and field research, important information about
the prehistoric settlers of the Turvo Valley. New data related to their interaction
with the surrounding environment, specially from burial and food residue
contexts, show expressive differences in comparison to other known sites.
This thesis presents a study of the ceramic and lithic remains collected in
excavations in 1993 and 1994. Technological and typological attributes were
analyzed. We consider that the combination of technotypological analysis
with chronological and distributional patterns of the vestiges allows a better
understanding of the manufacture, social use and discard of the material
culture produced in the Rio Turvo Valley.

345
N otas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 77: 331-346, 2001.

Data obtained in this inland site was compared with information from the
Aratu-Sapucai Tradition. This comparison is very important, since there is an
increase in inquiries on the use of the tradition concept in Brazilian archaeo­
logy, stimulated by the growth of research in the southeast.
Traditions were established after years of extensive research throughout
Brazil with the goal of identifying archaeological sites and finding common
material culture traits among them. The questioning of these data is a task for
the younger generation of Brazilian archaeologists in an attempt to propose
innovative ways to understand old cultural configurations.

PORTO, Vagner Carvalheiro - Subsídios para o Estudo do Culto de Héracles na Sicilia:


Uma Análise da Iconografia Monetária. Dissertação de Mestrado.

RESUMO: Esta pesquisa tem por objetivo estudar as representações de


Héracles nas moedas cunhadas nas cidades siciliotas dos séculos V ao III
a.C., a fim de contribuir para o conhecimento dos cultos ligados a esse herói
grego na Sicilia. A partir deste estudo, procuraremos entender um pouco mais
sobre a sociedade e sobre a cultura da Sicília Antiga. Para tanto, analisaremos
as moedas com representações de Héracles que foram cunhadas na Sicília, em
especial aquelas das cidades de Siracusa, Selinunte, Agrigento, Himera e Gela.
Pretendemos inseri-las em seu contexto de produção e uso.

PORTO, Vagner Carvalheiro - The Study of Herakles’ Cult in Sicily: The Contribution of
M onetary Iconography. Master Thesis.

ABSTRACT: The main goal of this thesis is to study the image of Herakles
on Siciliot coinage in order to contribute to the knowledge of the cults of this
Greek hero in Ancient Sicily. Our intention is also to throw more light on
Ancient Sicily society and culture. Our research will focus mainly the coina­
ges produced by Syracuse, Selinus, Akragas, Himera and Gela between the
Vth and the Illrd centuries B.C. The coins shall be approached in view of their
contexts of production and use.

346
R e v ist a d o M u s e u d e A r q u eo l o g ia e E tn o l o g ia d a
U n iv e r s id a d e d e S ã o P a u l o

Regulamento Artigos e Estudos de Curadoria

Objetivos - Os textos (30 páginas no máximo, incluin­


do tabelas, mapas e ilustrações) podem ser es­
A Revista do Museu de Arqueologia e Et­ critos em português, inglês, espanhol, francês
nologia - USP (Rev. MAE), de periodicidade ou italiano.
anual, destina-se à publicação de trabalhos ori­ - Serão fornecidas gratuitam ente 20 se­
ginais inéditos, versando sobre Arqueologia, paratas.
Etnologia e Museologia, com ênfase em África, - O texto deverá obedecer o seguinte pa­
América, Mediterrâneo e Médio-Oriente. Excep­ drão:
cionalmente, poderão ser aceitos trabalhos já pu­
a) 65 caracteres por linha; 55 linhas por página.
blicados, para republicação em português.
b) A primeira folha deverá conter: 1) título
C onstituição (português e inglês); 2) nome dos autores e
instituições a que pertencem ; 3) um resumo
bilingüe (inglês/português) de, no máximo, 10
A Rev. MAE é constituída pelas seguintes
linhas, contendo objetivos, metodologia e resul­
seções:
tados; 4) unitermos (palavras-chave).
- Artigos: trabalhos de pesquisa
- Estudos de Curadoria: levantamentos e co­ c) As figuras devem ser enviadas de prefe­
mentários sobre acervos arqueológicos e etnográ­ rência em mídia eletrônica ou originais em papel.
ficos; estudos sobre peças e coleções; estudos Na elaboração das figuras, gráficos, tabelas, e
de conservação e documentação fotografias (estas somente em branco e preto)
- Estudos Bibliográficos: ensaios e rese­ deve-se levar em conta as dimensões úteis da
nhas Revista (18 x 27cm) a fim de que, no caso de
- Notas: projetos e resultados preliminares redução, não se tornem ilegíveis; este material
de pesquisa deve ser enviado juntamente com o disquete,
devidamente acondicionado.

d) Escalas gráficas deverão ser sempre utili­


Instruções aos autores zadas em lugar de escalas numéricas.

e) As notas, numeradas na ordem em que


- Os originais devem ser enviados ao editor
aparecem no texto, devem estar situadas no fi­
em disquetes de formato MS - DOS, até 31 de
nal do arquivo, juntamente com os agradecimen­
maio do ano da publicação. Estes deverão ter
tos, apêndices, legendas das figuras e tabelas.
sido digitados através do processador de textos
MS-Word, em equipamento padrão IBM - PC ou f) As notas de rodapé não deverão conter
compatível. No mesmo disquete, um segundo referências bibliográficas. Estas deverão ser
arquivo deverá conter nome, endereço, e-mail, inseridas no próprio texto, entre parênteses, re­
telefone e/ou fax dos autores e, ainda, informa­ metendo o leitor à bibliografia. Ex.: (Barradas
ções sobre a versão e programa utilizados, caso 1968:120-190).
não tenham sido aqueles aqui indicados. O ma­
terial enviado deverá incluir uma cópia impressa g) A bibliografia seguirá a ordem alfabética
e não será devolvido. pelo sobrenome do autor citado em primeiro lugar.
Exemplos: Estudos bibliográficos
BOCQUET, A.
1 9 7 9 Lake bottom archaeology. S cien tific A m e­ - a) ensaios: 15 páginas, no máximo.
rican, 2 4 0 (2): 56-75.
- b) resenhas: 5 páginas, no máximo.
FOLEY, R. A.
1981 O ff site archaeology: an alternative approach
for the short sites. I. Hodder, G; Isaac and N. Notas
Hammond (Eds.) Pattern o f the P ast Studies
in H on or o f D a v id L. C larke. Cam bridge,
Cambridge University Press: 157-183.
- 4 páginas, no máximo.
SANOJA, M.; VARGAS, I.
19 7 8 A ntigas form aciones y m odos de producción
ven ezo la n o s. Caracas: M onte Avila Edito-
res.
Regulations a) A page has 55 lines of 65 characters each.
b) The first page should contain: 1) the title
of the work; 2) the names of the authors and the
institutions to which they belong; 3) a bilingual
Aims
abstract (Portuguese/English) having no more
than 10 lines, containing aims, methodology and
The Revista do Museu de Arqueologia e Et- results. The Editors will prepare the abstract in
nologia (Rev. MAE) publishes (anually) original Portuguese for foreign authors; 4) uniterm s
works, not published elsewhere, on archaeology, (keywords).
ethnology and museology, with emphasis on Afri­ c) Drawings should be sent in electronic
ca, America, Mediterranean Europe and Middle media or original printings. In preparing dra­
East. Exceptionally, translations into Portuguese wings, graphs, tables and (black and white)
of papers already published may be considered. photographs, the working dimensions of Rev.
MAE (18 x 27cm) must be kept in mind so that
O rganization upon reduction, they do not become illegible.
d) Graphical scales should always be used
The Rev. MAE will have the following sec­ instead of numerical ones.
tions: e) Footnotes and references, numbered in the
order of appearance, should be gathered at the
- Articles: research works
file’s end, with acknowledgements, appendices
- Curatorship Studies: surveys and comments
and figure-and table captions.
on archaeological and ethnographical material;
f) Footnotes should not contain bibliogra­
studies of artifacts and collections; studies of
phical references. These should be inserted in the
conservation and documentation
text between parenthesis, sending the reader to the
- Bibliographical studies: essays and reviews
bibliography. For instance: (Barradas 1968:120-180).
- Notes: research projects and preliminary
g) The references should follow the alpha­
reports
betical order (firstnamed author).

Examples:
Instructions to the authors
BOCQUET, A.
The originals should be sent to the editor, in 1979 Lake bottom archaeology. Scientific Am eri­
MS - DOS formatted diskettes, before May 31 of can, 240 (2): 56-75.
the publication year, preferably as files of MS - FOLEY, R. A.
Word, in standard equipm ent IBM - PC, or 1981 O ff site archaeology: an alternative approach
for the short sites. I. Hodder, G; Isaac and
compatible. A second file should contain name,
N. H am m ond (E d s.) P a tte rn o f the P a st
address, e-mails, telephone and/or fax number, as S tu d ie s in H o n o r o f D a v id L. C la rk e.
well as information about the word processor Cam bridge, Cam bridge U n iversity Press:
employed. This material will should contain one 1 5 7 -1 8 3 .
printed copy and will be not sent back to the SANOJA, M.; VARGAS, I.
1978 Antigas form aciones y modos de producción
authors.
venezolanos. Caracas: Monte Avila Editores.

Articles and Curatorship Studies Bibliographical Studies

- a) essays: 15 pages at most.


- The articles (30 pages at most, including
- b) reviews: 5 pages at most.
tables, maps and illustrations) may be written in
Portuguese, English, Spanish, French or Italian.
- 20 offprints will be provided free of charge. Notes
- The text should conform to the following
pathern: - 4 pages at most.
GRAFNGYA

Editoração Eletrônica:
F ábio B a tista d o s S an tos

Tratam ento de Im agem :


J o sé Luiz de M ah allw es C astro N eto

Secção de Produção Gráfica e Audio-Visual

Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE


U n iv e r s id a d e d e São P aulo
Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
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M u se u d e A r q u e o l o g ia e E tn o lo g ia
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Vice-Diretor: Prof. Dr. José Luiz de Morais

Conselho Deliberativo: Profa. Dra. Paula Montero


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Prof. Dr. Murillo Marx
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Sr. José Vinhote Costa
Sra. Cleide Franchi

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