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R ev ista do M useu

de
A rq u eo lo g ia e Etn olo g ia

U n iv e r sid a d e de São Paulo

N s 11 2001
REVISTA DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

Comissão Editorial

Maria Beatriz Borba Florenzano


Maria Christina de Souza Lima Rizzi
Maria Cristina Mineiro Scatamacchia
Maria Isabel D'Agostino Fleming
Paulo De Blasis

Editora Responsável

Maria Isabel D'Agostino Fleming

Conselho Editorial

Ana Mae Tavares Barbosa Lux Vidal


Antonio Porro Maria Luiza Corassin
Augusto Titarelli Maria Manuela Carneiro da Cunha
Aziz N. Ab'Saber Maria Margareth Lopes
Carlos Serrano Niède Guidon
Fábio Leite Noberto Luiz Guarinello
Felipe Tirado Segura Oscar Landmann
Gabriela Martin D'Ávila Pedro Ignácio Schmitz
Igor Chmyz Pedro Paulo Abreu Funari
Jacyntho Lins Brandão Roberto Cardoso de Oliveira
José Antonio Dabdab Trabulsi RudolfWinkes
Kabengele Munanga Solange Godoy

Pede-se permuta
We ask fo r exchange

Av. Prof. Almeida Prado, 1.466


Cidade Universitária - São Paulo, SP
CEP 05508-900 - FAX 3818-5042 - 3818-4888
ISSN 0103-9709

R ev ista do M useu
de
A rq u eo lo g ia e Etn o lo g ia

U n iv e r s id a d e de S ão Pau lo

publicação anual

N 2 11

2001

S ão P a u l o , B rasil
Capa: p ele de onça bororo coletad a por Natterer. In Kann, P.; Dorn, R. D ie
oesterreichische Brasilien-E xpedition 1817-1836. W. Seipel (Ed.) D ie E n tdeck­
ung d e r Welt, D ie Welt d e r E ntdeckung: O esterreich isch e Forscher, Sammler,
Abenteurer. Viena, KHM: 217-255. 2001.
Sumário

ARTIGOS

3 Margarita Díaz-Andreu - Nacionalismo y Arqueologia: el contexto


político de nuestra disciplina

21 Lúcio M. Ferreira - “Um Bando de Idéias Novas na Arqueo­


logia” (1870-1877)

35 Johnni Langer - Os sambaquis e o Império: escavações,


teorias e polêmicas, 1840-1889

55 Mário Sérgio Celski de Oliveira - De Guaratuba a Babitonga: uma contri­


Norberto Olmiro Hom Filho buição geológico-evolutiva ao estudo
da espacialidade dos sambaquianos no
litoral norte catarinense

77 Andrea Lessa - Reflexões preliminares sobre a questão


João Cabral de Medeiros da violência em populações construto­
ras de sambaquis: análise dos sítios
Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ)

95 Adriana Schmidt Dias - Sistema tecnológico e estilo: as implica­


Fabíola Andréa Silva ções desta interrelação no estudo das
indústrias líticas do sul do Brasil

109 Paulo Jobim Campos Mello - Possibilidades de interpretação da cadeia


Sibeli Aparecida Viana operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT)

125 Astolfo Gomes de Mello Araújo - Arqueologia da região de Rio Claro:


uma síntese

141 Denise Pahl Schaan - Os dados inéditos do Projeto Marajó


(1962-1965)

165 Walter Fagundes Morales - A cerâmica “neo-brasileira” nas terras


paulistas: um estudo sobre as possibili­
dades de identificação cultural através
dos vestígios materiais na vila de
Jundiaí do século XVIII

189 Gregório Cardoso Tápias Ceccantini - Os novelos de fibras do abrigo rupestre


Luciana Witovisk Gussella Santa Elina (Jangada, MT, Brasil):
anatomia vegetal e paleoetnobotânica

201 Maria Beatriz Borba Florenzano - Fontes sobre a origem da moeda:


apresentação crítica

213 Jonathan Mark Hall - Quem eram os gregos


227 Alfredo José Altamirano Enciso - Lesión litica craniana por Leishmaniasis
João Soares Moreira en Makat-tampu durante el império
Mauro C.A. Marzochi inca: siglos XV-XVI, valle dei Bajo
Rímac, Peru

243 Gordon Brotherston - ‘Meaning in a Bororo jaguar skin’

ESTUDOS DE CURADORIA

263 Mareia Bezerra de Almeida - An archaeological view of the Amazo­


nian ethnographic collections at the
National Museum of Rio de Janeiro,
Brazil: reviewing function

275 Pedro Paulo A. Funari - MAE-USP amphora collection: vessels


and inscriptions

283 Alessandra Cristina Monteiro de Castro - Figurinhas femininas sírias e iranianas


Trigo no acervo do MAE/USP

ESTUDOS BIBLIOGRÁFICOS

303 Gilson Rodolfo Martins - Contribuições da Etno-História para a


arqueologia do nordeste do Mato
Grosso do Sul, na área impactada pelo
gasoduto Bolivia-Brasil

311 Francisco Silva Noelli - Resenha: GASPAR, M. Sambaqui:


arqueologia do litoral brasileiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 89 p.

313 Paulo De Blasis - Resenha: WATKINS, J. Indigenous


archaeology. American Indian values
and scientific practice. Walnut Creek
(CA), Alta Mira Press, 2000, 234p.,
ISBN 0-7425-0329

NOTAS

317 Elaine F. Veloso Hirata - Arqueologia e Educação: uma pro­


Judith Mader Elazari posta para o Engenho São Jorge dos
Jussara Moritz Erasmos (Santos, SP)

323 André Costa - O Engenho São Jorge dos Erasmos -


Silvio Cordeiro imagens da redescoberta

327 Maria Cristina Mineiro Scatamacchia - Considerações sobre a pesquisa arqueo­


Cleide Franchi lógica na área urbana de Barueri

331 Resumos de teses e dissertações do


MAE/USP, 2001
Contents

ARTICLES

3 Margarita Díaz-Andreu - Nationalism and Archaeology: the poli­


tical context of our discipline

21 Lúcio M. Ferreira - “A whole bunch of new ideas in


Archaeology” (1870-1877)

35 Johnni Langer - The shellmounds and the Empire:


excavations, theories and contro­
versies, 1840-1889

55 Mário Sérgio Celski de Oliveira - From Guaratuba to Babitonga: a


Norberto Olmiro Hom Filho geologic-evolutionary contribution to
the study of the spatial distribution of
the shell mound builders on the northern
coast of Santa Catarina

77 Andrea Lessa - Preliminary thoughts about the occu­


João Cabral de Medeiros rence of violence among the Brazilian
shellmound builders: analysis of the
skeletons from Cabeçuda (Santa Catarina)
and Arapuan (Rio de Janeiro) sites

95 Adriana Schmidt Dias - Technological systems and style: the


Fabíola Andréa Silva implications of this interrelationship in
the study of lithic industries of southern
Brazil

109 Paulo Jobim Campos Mello - Possibilities of interpretation of the


Sibeli Aparecida Viana operational sequence for the stone tool
production - Pedreira site (MT)

125 Astolfo Gomes de Mello Araújo - Archaeology from Rio Claro region: a
synthesis

141 Denise Pahl Schaan - The unpublished data of the Marajo


project (1962-1965)

165 Walter Fagundes Morales - The “neo-Brazilian” ceramics in the


Paulista territories: a study on the
possibilities of cultural identification
on archaeological remains from eigh­
teenth century Jundiaí village

189 Gregório Cardoso Tápias Ceccantini - Plant anatomy and palaeoethnobotany


Luciana Witovisk Gussella at Santa Elina shelter (Jangada, MT,
Brazil)

201 Maria Beatriz Borba Florenzano - The origins of coinage: archaeological


and literary sources
213 Jonathan Mark Hall - Who were the Greeks

227 Alfredo José Altamirano Enciso - Lytic skull lesion by Leishmaniasis at


João Soares Moreira Makat-Tampu during the Inca Empire:
Mauro C.A. Marzochi XV-XVI centuries, Rimac Valley, Peru

243 Gordon Brotherston - ‘Meaning in a Bororo jaguar skin’

CURATORSHIP STUDIES

263 Marcia Bezerra de Almeida - An archaeological view of the Amazo­


nian ethnographic collections at the
National Museum of Rio de Janeiro,
Brazil: reviewing function

275 Pedro Paulo A. Funari - MAE-USP amphora collection: vessels


and inscriptions

283 Alessandra Cristina Monteiro de Castro - Sirian and Iranian feminine figurines in
Trigo the collections of MAE/USP

BIBLIOGRAPHICAL STUDIES

303 Gilson Rodolfo Martins - Ethnohistoric contributions to the


archaeology of northeastern Mato
Grosso do Sul - Brazil

311 Francisco Silva Noelli - Review: GASPAR, M. Sambaqui:


arqueologia do litoral brasileiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 89 p.

313 Paulo De Blasis - Review: WATKINS, J. Indigenous


archaeology. American Indian values
and scientific practice. Walnut Creek
(CA), Alta Mira Press, 2000, 234p.,
ISBN 0-7425-0329

NOTES

317 Elaine F. Veloso Hirata - Archaeology and education: activities


Judith Mader Elazari at the Engenho São Jorge dos Erasmos
Jussara Moritz (Santos, SP - Brazil)

323 André Costa - The “Engenho São Jorge dos Erasmos”


Silvio Cordeiro - Images of a rediscovery

327 Maria Cristina MineiroScatamacchia - Notes on the archaeological research at


Cleide Franchi the urban area of Barueri (S.P. - Brazil)

331 Abstracts of PhD dissertations and


masters theses of MAE/USP, 2001
Artigos
Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

NACIONALISMO Y ARQUEOLOGIA:
EL CONTEXTO POLITICO DE NUESTRA DISCIPLINA

Margarita Díaz-Andreu*

DIAZ-ANDREU, M. Nacionalism o y Arqueologia: el contexto político de nuestra


disciplina. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

RESUMO: Neste artigo discute-se como as identidades atuais e, concreta­


mente, a nacionalista influem na forma como pensamos sobre o passado.
Argumentarei que não se pode entender o trabalho arqueológico fora de seu
contexto sócio-político, no qual as identidades desempenham um papel
crucial. A emergência da Arqueologia como uma disciplina profissional esteve
intimamente relacionada com o êxito do nacionalismo como uma opção
política que levaria à criação do Estado moderno, passando, desta forma, de
uma atividade erudita a uma disciplina profissional. Farei um contraste entre a
prática arqueológica desses dois últimos séculos com os diversos períodos
pelos quais passou o nacionalismo. Terminarei argumentando que, apesar
dessas mudanças, esta ideologia política ainda mantém sua importância e
ilustrarei minha hipótese referente à integração das comunidades indígenas e
o patrimônio de seu passado.

UNITERMOS: Arqueologia e política - Nacionalismo - Patrimônio -


Indígenas.

Toda disciplina científica tiene una historia En un plano más concreto, para la historio­
tras de sí que determinados miembros dentro grafía de cada país existen obras más específi­
de la comunidad científica se han dedicado a cas de carácter general o particular como las
investigar y describir. Quien se interesa por el de Alessandro Guidi (Guidi 1988) o Marcelo
pasado de la arqueología puede acudir a las Barbanera (Barbanera 1998) en Italia, Emst
magníficas obras de carácter general produ­ Wahle en Alemania (Wahle 1950, 1951), Pedro
cidas por Glyn Daniel (Daniel 1975), Amaldo Funari (Funari 1992) en Brasil, Ignacio Bemal
Momigliano (Momigliano 1955 (1950), Bruce (Bemal 1979) y Luis Vázquez León en México
Trigger (Trigger 1989), o Alain Schnapp (Vázquez León 1996); Chakrabarti (Chakrabarti
(Schnapp 1993) por citar a los más conocidos. 1988) en India, etc. Todas estas historias de la
arqueología, sin embargo, adoptan una óptica
internalista, es decir, que fundamentalmente
(*) Departament o f A rchaeology, U niversity o f discuten qué autor dijo qué cosa en qué época
Durham, South Road, Durham DH1 3LE, Reino y lo que sus ideas supusieron para el progreso
U nido. de la ciencia. La visión que estos autores

3
D IA Z-A N D R EU , M. N acionalism o y Arqueologia: el contexto p olítico de nuestra disciplina. Rev. do M useu de
A rqu eologia e E tn o logia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

ofrecen se podría caricaturizar como la de una unos años fundamentalmente en lengua


lucha heróica llevada a cabo por valientes y inglesa (ver bibliografía final). En concreto mi
sabios intelectuales/arqueólogos (pocas objetivo será describir cuál es la relación entre
arqueólogas suelen salir en estas historias) en la arqueología como disciplina científica y la
su conquista del Conocimiento sobre el ideología política del nacionalismo. Intentaré
pasado. De vez en cuando aquí y allí en los explicar hasta qué punto ambas están conecta­
textos surgen comentarios sobre el papel das, cómo es posible trazar una conexión entre
político que tuvo la arqueología en momentos el surgimiento del nacionalismo y un cambio
de crisis, fundamentalmente durante regímenes radical en el estudio del pasado arqueológico.
totalitarios tipo el Nacional Socialista en A partir del éxito del nacionalismo como teoría
Alemania o el fascista en Italia. La impresión política a finales del siglo XVIII, la arqueología
que dan estas obras es que esta relación con dejó de ser una actividad secundaria para
la política es conyuntural, que nunca tuvo convertirse en un quehacer profesional. La
gran importancia en el desarrollo de la arqueo­ nueva importancia que adquirió el conoci­
logía como teoría política. miento sobre el pasado llevo al estado-nación
Si acudimos a otros disciplinas humanís­ a proveer las subvenciones necesarias para
ticas como la historia, sin embargo, encontra­ crear y mantener un cuerpo profesional, para
mos otro posicionamiento. Como R. Kühnl que se la arqueología se impartiera como una
observa: disciplina más en las universidades, para que
Un libro de historia nunca se limita a la
se abrieran museos especialmente dedicados a
narración aséptica a la información neutral de la exposición de los objetos antiguos y se
los hechos. La mera selección de los datos por sí promulgaran legislaciones con el objetivo
misma requiere un juicio sobre lo que es esencia o proteger la labor arqueológica y el estudio del
no. Toda exp osición histórica contiene, exp lícita pasado. Una vez que haya aclarado esta
o im plícitam ente, una interpretación esp ecífica
relación entre la ideología política del naciona­
de las causas, de los factores condicionantes y de
las fuerzas que llevaron o impidieron un lismo y la institucionalización de la arqueo­
determinado desarrollo histórico... Es decir, que logía, entonces realizaré una reflexión sobre la
una ‘científicam ente pura’ exp osición histórica relación entre el desarrollo de las ideas en la
no existe, dado que todos los discursos y arqueología - fundamentalmente el histori-
exp licacion es tienen im plicaciones políticas.
cismo cultural todavía de tanta influencia - y
(Kühnl 1 9 8 5 ).1
el contexto político en el que se éste se dió.
En estos últimos años también en la
historia de la arqueología ha habido autores
que han adoptado una actitud más crítica La nación y el pasado
(Mora 1998, Patterson 1995). Estos, sin dejar a
un lado el desarrollo de las ideas tan habitual La primera pregunta que habré de respon­
en los investigadores citados más arriba - der para explicar mi hipótesis sobre la relación
puesto que el conocimiento sobre como éste entre la arqueología y el nacionalismo es
se transformó también es importante - han porqué el pasado es relevante para este último.
prestado una mayor atención al contexto Si acudimos al libro de Alain Schnapp (1993) o
socio-político en el que se ha producido el a autores como Richard Bradley (Bradley 1996,
devenir histórico de la arqueología. En este 1998) en ellos queda claro que el estudio del
artículo mi intención será centrarme precisa­ pasado se ha producido desde épocas muy
mente en ese contexto, sintetizando de esta anteriores a la emergencia de dicha teoría
manera ideas que he desarrollado en varios política, que la memoria histórica ha estado
trabajos publicados por mí misma desde hace presente desde periodos tan antiguos como el
neolítico europeo, las primeras sociedades con
escritura, las épocas clasicas griegas y roma­
(1) Todos los textos cuyo original se halla en otro nas y el medievo. Incluso se puede sospechar
idioma han sido traducidos por la autora de este que esta importancia del pasado estaba
trabajo. presente incluso antes, entre cazadores-

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A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11\ 3-20, 2001.

recolectores (Layton 1989b). Pero pese a caso que aquél otro adoptado por los movi­
reconocer esta trascendencia del conocimiento mientos pre-románticos que también se desar­
sobre el pasado y a veces incluso de los rollaron en aquel siglo (Smith 1976). La racio­
restos de cultura material provenientes de él, nalidad adquirió un puesto fundamental en este
lo cierto es que solamente a partir de los siglos siglo. Ideas como ‘utilidad’, ‘ciudadanía’,
XIV y XV fue cuando por primera vez a ‘nación’, etc. comenzaron emplearse con cada
determinados individuos de la sociedad se les vez mayor frecuencia (Mora 1998).
permitió especializarse de una manera más A partir del último tercio del siglo XVIII en
definitiva y continuada en el estudio del el plano político las ideas de la ilustración
pasado y de sus restos materiales. Fue en este comenzaron a dar fruto en una serie de revolu­
momento cuando se produjo una transforma­ ciones: la de 1776 que dió paso a la indepen­
ción radical en este interés que serán las dencia de los Estados Unidos de América, la
primeras raices que al cabo de tres siglos de 1783 en Holanda, la de 1789 en Francia, las
terminarán llevando a la definitiva aceptación posteriores en diversos paises europeos y en
de la arqueología como diciplina científica. toda Latinoamérica que se saldaron con la
En los siglos XIV y XV se produjo en independencia de prácticamente todo el
Europa un cambio de tipo social y político que continente americano en las primeras décadas
llevaría a la larga a la aparición del estado del siglo XIX. En todos estos países, la
moderno. En esta Europa en transformación las racionalidad ilustrada llevada a su conse­
élites comenzaron a interesarse por los objetos cuencia lógica, empujaría a las clases medias a
antiguos de una manera nunca conocida antes, rechazar a los gobernantes que no resultaran
ni siquiera durante el periodo romano, momento útiles para la nación. Es decir, por primera vez
en el que las estatuas griegas habían atraído se hacía posible contestar la legitimidad
gran atención. Lo que las élites renacentistas política del sistema que había reinado en la
buscaban en las antigüedades era simbolizar su práctica totalidad del mundo occidental desde
poder con metáforas diferentes a las que se la caida del imperio romano: la monarquía y el
habían empleado en época medieval. En su sistema social al que éste iba a asociada en el
lucha contra el poder eclesiástico el lenguaje de que la cada vez mayor clase media tenía poca
la antigüedad - sobre todo de la antigüedad cabida. Pero si la monarquía había sido hasta
clásica - cobró una importancia nunca antes aquel momento la base del estado, a partir de
experimentada. De esta forma dejó de ser ahora un nuevo concepto debía ponerse en su
ocasional que un individuo poderoso acudiera lugar y este fue el de nación.
al pasado como forma de mostrar su posición ‘Nación’ era una palabra de origen latino
en la sociedad, como había pasado en Babilo­ que se había empleado tanto en latín como en
nia, Grecia o Roma (Schnapp 1993). A partir del las lengua romances derivadas del mismo
siglo XIV y XV en primer lugar en Italia, este desde la época romana. Significaba lugar de
tipo de argumentación empezó a ser por así origen, tanto el pueblo, la región, comarca o el
decirlo un requerimiento y por ello las élites país. Este uso tan amplio quedó restringido a
políticas comenzaron a emplear a su servicio a partir de finales del siglo XVIII, cuando el
anticuarios que les proporcionaran el prestigio término empezó a emplearse fundamentalmente
que ellos necesitaban (Rosenberg 1990). Esta para referir al territorio estatal. Es necesario
moda que se inició en Italia fue más tarde aclarar en este punto, sin embargo, que los
copiada por el resto de los países europeos a especialistas en el estudio de nacionalismo
partir de los siglos XV y XVI (Schnapp 1993), distinguen dos tipos fundamentales de
pues la nueva expresión de autoridad permitía a definición de nación que se relacionan con los
las élites de todos ellos reivindicar el poder dos tipos principales de nacionalismo: nacio­
secular y dejar definitivamente atrás el código nalismo cívico o político por una parte y por la
político medieval. Tras los problemas religiosos otra nacionalismo cultural o étnico.
del siglo XVII, durante la ilustración del siglo El nacionalismo que surgió en la revolu­
XVIII el lenguaje basado en lo clásico adquirió ción francesa de 1789 (por escoger a la más
de nuevo una gran importancia, mayor en todo famosa de todas las revoluciones mencionadas

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anteriormente) fue el nacionalismo cívico o ca, donde los nuevos estado-nación claramen­
político. En realidad somos nosotros los que te incluso superaron en tamaño a los euro­
ahora lo denominamos así, pues en aquel peos. Salvo excepciones - y el caso de
momento el término nacionalismo ni siquiera Dinamarca es el único que se me ocurre y de él
estaba en uso, ya que sólo se tiene documen­ me ocuparé más adelante - sólo será en estos
tado a partir de 1812 en Francia y 1836 en países donde veamos surgir la arqueología
Inglaterra (Huizinga 1972: 14). Lo que sí que se profesional, una arqueología en un principio
empleaba en aquel momento con gran énfasis centrada en el estudio de lo clásico, lo que
era el concepto de ‘nación’. Para el nacionalis­ dificultará su éxito en América.
mo cívico o político el término ‘nación’ estaba Este criterio de tamaño es el que permitiría a
unido a los conceptos heredados de la ilustra­ la larga el éxito de las ideas nacionalistas de tipo
ción neoclásica que ahora se asociaron unificador tanto en Italia como en Alemania.
íntimamente con la nación: ciudadanía, territo­ Pero la creación de estados nuevos a partir de
rio, derechos y deberes iguales para todos los naciones supuso un cambio radical en el
ciudadanos, educación universal e ideología nacionalismo. Hasta entonces era el estado el
cívica (Smith 1991: 9-10). La importancia de la que había dado lugar a la nación. A partir de la
historia antigua como modelo donde aprender unificación de ambos países, cabía la posibi­
sobre la sabiduría del pasado que ya habíamos lidad de que fuera la nación la que diera lugar al
visto que empezó en el siglo XVIII se afianzó estado. Las unificaciones de Italia y Alemania
ahora. Pero además la nueva consideración en 1870 y 1871 evidenciarían un cambio radical
dada a la educación implicó la apertura de en el nacionalismo, puesto que el nacionalismo
museos donde exponer objetos provenientes de cívico o político daría paso al nacionalismo
la antigüedad clásica y esto llevó a la necesidad cultural o étnico. Este provenía de las ideas pre-
de tener profesionales que se ocuparan de ellos románticas del siglo XVIII (Smith 1976) en las
y por tanto a la de incluir la arqueología entre que ‘nación’ se asoció con ideas en principio
los saberes impartidos en la universidad o en muy diferentes. La justificación para la unión de
las escuelas de educación superior. Es decir, el países como Italia o Alemania no podía ser otra
nacionalismo cívico llevó a la instituciona- que la existencia de unas características comunes
lización de la arqueología. Ya no eran los pocos que fusionaban de forma natural a una serie de
anticuarios de siglos anteriores pagados por pueblos de manera que hacían legítima la defensa
reyes, nobles o personas con medios econó­ de su existencia como nación y por tanto su
micos. Ahora era el estado el que se ocupó de derecho a exigir la independencia política.
subvencionar a un cuerpo profesional de Los rasgos comunes que unían a la nación
arqueólogos. La arqueología pasó de ser una étnica o cultural podían ser de variados tipos:
actividad que sólo unos pocos con medios o en primer lugar una cultura similar demostrada
apoyados por personas con ellos se podían en costumbres semejantes y/o idioma compar­
permitir a ser considerada como una disciplina tido, además de en algunos casos una misma
científica dotada con cada vez un mayor religión o misma etnia o raza; y en segundo
número de profesionales. una descendencia común. Para todo ello la
Pero como la nueva nación política tenía historia propia de cada nación tenía un papel
que ser coherente con los principios de fundamental legitimador. Si hasta entonces la
utilidad ilustrados, en un primer momento sólo subvención del estado había estado volcada
los estados de gran tamaño lograron ser fundamentalmente a la arqueología clásica, a
aceptados como naciones; las unidades partir de ahora en Europa habría otras épocas
políticas de pequeña dimensión eran juzgadas - la prehistórica y la medieval - que empeza­
como contrarias al buen hacer político y por rían a cobrar un papel central. La situación en
tanto se les denegaba el carácter de nación. America, sin embargo, no podía ser sino
Estas ideas, por tanto, restringieron el número diferente. Las poblaciones anteriores a la
de naciones posibles a unas pocas localizadas conquista no tenían nada que ver con las
fundamentalmente en Europa occidental - élites que gobernaban los países, que eran de
Francia, Gran Bretaña, España... - y en Améri­ origen europeo. Ante esto la respuesta

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mayoritaria sería la de ignorar este tipo de nes particulares también darían lugar a mu­
arqueología, negando un pasado histórico a seos. Una de las que fue a parar a manos
las poblaciones indígenas y restringir el relato particulares fue la adquirida por Sir Hans
histórico nacionalista a la época a partir de la Sloane, quien compró al estado de la Toscana
colonización realizada por sus antepasados la colección de obras clásicas amasada
europeos. En América - como luego en durante tres siglos por la familia italiana
Australia - la arqueología se confinaría como Medici (Pomian 1990: 42). Sloane dejó la
una rama dentro de la antropología, es decir, colección en manos del estado británico, quien
no incluida dentro de los estudios históricos. en 1753 decidió abrir un museo, resultando
La excepción a esta actitud se encontraría en todo ello en la apertura del Museo Británico en
México, donde el discurso nacionalista desde 1759. Estas tendencias neo-clásicas ilustradas
un principio se apropió del indigenismo. Así fueron continuadas y agrandadas por el primer
que tras un primer momento fracasado por las nacionalismo cívico. Es así como en plena
turbulencias políticas del país durante gran revolución francesa en 1793 el estado francés
parte del siglo XIX, principalmente en el XX decidió la apertura del Museo del Louvre
las élites políticas comenzarán la subvención (Gran-Aymerich 1998). He de señalar aquí que
sistemática del estudio de cierto pasado el otro tipo de nacionalismo, el étnico o
precolombino, el de las grandes civilizaciones cultural, pese a que ya he apuntado antes sólo
del valle de México y del Yucatán. tuvo éxito a partir de 1870, estuvo presente
desde un principio y llevó también a la crea­
ción de museos. Un ejemplo fue el Museo de
La institucionalización de la Monumentos Nacionales abierto igualmente
Arqueología y los problemas de la Prehistoria en París, donde se exhibían monumentos
góticos y renacentistas. La comparación entre
Como he explicado en la sección anterior el el devenir de éste y el del Louvre, sin embargo,
surgimiento del nacionalismo - en un primer es significativa. Mientras que para el último no
momento del nacionalismo de tipo cívico - dejaron de llegar obras, entre otras circuns­
como teoría política llevó a la instituciona­ tancias por las campañas de Napoleón Bona-
lización de la arqueología. La primera prueba parte, los encargados del Museo de Monu­
de que esto ocurrió fue la creación de museos, mentos Nacionales no hacían más que lamen­
aunque como siempre podemos buscar tarse por la falta de una sede adecuada y por el
precedentes anteriores. El ímpetu adquirido desinterés general que la institución provo­
por el estudio de la antigüedad clásica y la caba (Gran-Aymerich 1998: 38). En otros
importancia conferida a los objetos provenien­ países, sin embargo, sí que estos museos
tes de la misma habían llevado ya en el siglo dedicados a las antigüedades del país tuvieron
XVIII a la aparición de un preocupante merca­ más éxito. Este fue el caso de Dinamarca,
do de antigüedades centrado en la ciudad de donde el Museo Nacional se creó en 1807 o en
Roma. La desaparición de obras iba contra el México donde el Museo Nacional abrió sus
bien común, contra la educación del ciudada­ puertas en 1825 (para cerrarlas al poco tiempo,
no, y así en aquella centuria, en fecha tan pero esa es otra historia) (Florescano 1993).
temprana como 1733, se crearía el primer A la creación de museos siguió la profe-
museo de arqueología abierto al público, el sionalización de los arqueólogos - que
Museo Capitolino (al que más tarde se unió significativamente a lo largo del siglo XIX
también en Roma en Pió Clementino en 1771) dejan de llamarse anticuarios - y la creación de
(Arata 1998).2 Por otra parte ciertas coleccio­ instituciones que justificaban su labor. Así en
1821 se creó en Francia la École de Chartes
donde se enseñaría arqueología - o más bien
una de sus ramas, la paleografía (Schnapp
(2) En realidad otro m useo abierto al público en fecha
más temprana, el Ashm olean de Oxford de 1683,
1996: 53). Esta institución se copiaría en otros
parece que incluía en sus colecciones algunas antigüe­ países como en España, donde la Escuela de
dades (Sim ock 1984). Diplomática abriría sus puertas en 1856 (Peiró

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D IA Z-A N D R EU , M. N acionalism o y Arqueologia: el contexto p olítico de nuestra disciplina. Rev. do M useu de
A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

Martín & Pasamar Alzuría 1996). En Francia el vivían entre las antigüedades de un pasado
Comité de Estudios Históricos, que se dedi­ supuestamente glorioso. La esencia de la
caría a la protección y restauración de los nación quedaba simbolizada en este pasado de
monumentos históricos vió la luz en 1834 piedras con inscripciones rúnicas y de túmu­
(Schnapp 1996: 54). La creación de Comisiones los prehistóricos. Fue esta situación la que
de Monumentos en Francia en 1830 tuvo llevaría a Dinamarca a crear el primer Museo
igualmente su reflejo en España aunque años Nacional en el que las antigüedades propias -
más tarde, en 1844 (Díaz-Andreu 1994). En este y no las clásicas - cobraron una importancia
último país sólo sería en 1868 cuando el no conocida en otro país. Para el museo se
Cuerpo Facultativo de Archiveros y Biblio­ contrataron a expertos que intentarían ordenar
tecarios incluyó en su nombre el de los las colecciones, con el resultado por todos
anticuarios (que sólo a partir de 1900 se conocidos de la elaboración del sistema de las
denominarían oficialmente como arqueólogos). tres edades establecido por Thomsen (Gráslund
Toda esta institucionalización aludida 1981), que posteriormente se exportaría a otros
hasta ahora se refiere fundamentalmente a los países (Bóhner 1981, Rodden 1981, Sórensen
estudios clásicos y acaso - pero con menor 1998, etc.). También fue en Dinamarca donde
éxito - los medievales. La prehistoria, sin se crearía la primera cátedra universitaria para
embargo, tuvo dificultades para conseguir el la enseñanza de la prehistoria en 1855, ocupa­
mismo nivel que el de sus por entonces da por Worsaae en la Universidad de Copen­
hermanas mayores. Hay diversas razones que hague (Sórensen 1996: 34).
impidieron la rápida institucionalización de la La prehistoria, además, tenía otros proble­
prehistoria (Schnapp 1993: 321). En primer mas que impidieron su pronta instituciona­
lugar se daba una prioridad absoluta a las lización. Uno de ellos fue la conexión estable­
fuentes escritas y éstas lógicamente sólo cida entre la arqueología y el arte, que prove­
valían a partir de la época protohistórica. Esto nía de la importancia de los objetos artísticos -
se debía principalmente a la poca sofisticación las estatuas y los monumentos - en la época
que los estudios sobre cultura material habían premoderna. Si para enorgullecerse de sí
adquirido a excepción, quizá, del estudio de misma la nación tenía que tener un pasado
monedas y obras de arte antiguas, ninguna de glorioso, éste se simbolizaba mejor en objetos
las dos de carácter prehistórico. Para que la de arte y no en pequeños fragmentos rodados
prehistoria se aceptara hubo que desarrollar de cerámica de ininteligible significado para el
los métodos tipológico, tecnológico e imponer no especialista. Es significativo que en la
el criterio estratigráfico como forma de ordenar creación de la Escuela de Diplomática en 1856
el material. Esto sólo se fue logrando a lo largo referida más arriba la arqueología se definiera
del siglo XIX. No es casualidad que uno de los como aquella ciencia que estudiaba las obras
países donde se dieron varios de los pasos de arte y de la industria bajo el exclusivo
más importantes para ello fue Dinamarca. Una aspecto de su antigüedad (Peiró Martín &
serie de derrotas militares provocaron a Pasamar Alzuría 1996: 146). Los intereses
principios de la centuria no sólo la pérdida creados a lo largo del siglo XIX impedirían de
definitiva de la flota que hasta entonces había alguna manera el desarrollo de los estudios
sido el orgullo del país sino además de gran prehistóricos. Esta importancia dada a los
parte de su territorio. Esto haría que las monumentos explica también que en toda
desmoralizadas élites políticas y las clases América sólo en aquéllos países donde
medias buscaran justificar la existencia de existían grandes edificaciones precolombinas
Dinamarca en otro tipo de razones. Se acudió es donde se produjera un primer desarrollo de
entonces a la arqueología, a la que tanta la arqueología propiamente americana. Es decir,
importancia se le había dado en el memorable esto ocurrió fundamentalmente en México
siglo XVII (Klindt-Jensen 1975, Randsborg (Bernal 1979), en el sur de los Estados Unidos
1994, Schnapp 1993). En contraste con aquel, (Welsh 1998) y en cierta manera en Perú, país
lo único que le quedaba a Dinamarca era el donde se promulgó - aunque sin demasiado
solar patrio, la tierra, donde los campesinos éxito - una primera legislación relacionada con
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las antigüedades en 1811, apenas conseguida tóricas (1912-1939) supondría un primer


la independencia y se abrió un museo nacional intento de institucionalización de la prehistoria
en 1826 (Bonavia 1984: 110, Chávez 1992: 43-4). con sede en el Museo de Ciencias Naturales
En el resto de los países americanos o la en Madrid y dirigida como subdirector primero
arqueología no se desarrolló o si lo hizo, como y luego director por el Catedrático de Geología
he explicado más arriba, fue sólo en su ver­ de la Facultad de Ciencias de Madrid, Eduardo
tiente no americana, dando lugar a especialis­ Hernández-Pacheco. Esta situación también
tas en arqueología bíblica y clásica, siendo era frecuente en América como lo muestra el
ejemplos de esto tanto Estados Unidos ejemplo de Argentina - al que se le podrían
(Patterson 1991) como Canadá (Trigger 1981). añadir muchos otros. En aquel país hacia
Un tercer obstáculo que la arqueología principios de siglo Gustavo Politis e Irina
prehistórica tuvo que superar para que su Podgorny nos relatan cómo los objetos
institucionalización se permitiera fue el que se prehistóricos (indígenas) iban a parar al museo
aceptara su versión frente a la ofrecida por la de Ciencias Naturales de la Plata (Podgorny
Biblia. Desde los primeros siglos del cristianis­ 1997, Politis 1995).
mo los intelectuales habían intentado compa­ Pero que mientras que en el viejo mundo,
tibilizar las fuentes clásicas con aquélla central como veremos en el próximo apartado, la
a la doctrina cristiana. Así a lo largo del prehistoria se trasladó del campo de las
medievo y las centurias que le siguieron una Ciencias Naturales al de la Historia hacia
mezcla de héroes troyanos e hijos y nietos de principios del siglo XX - aunque hay persis­
Noé habían logrado poblar todo el mundo tencias posteriores como es el caso de Portu­
conocido y fundar todas las ciudades de cierto gal (Díaz-Andreu 1997a) - en la mayoría del
prestigio. Fue contra esta historia mítica que nuevo mundo los estudios prehistóricos, es
por repetida pasó a tomarse como cierta contra decir precolombinos, continuarían en las
la que los primeros prehistoriadores tuvieron Ciencias Naturales y el paso que darían sería
que luchar. El problema no fue fácil, puesto hacia la antropología. La razón para esto se
que muchos de ellos eran fervientes creyentes. hallaría en el evolucionismo del siglo XIX. En
Los largos debates entre la prehistoria, el el caso de las sociedades donde existía una
evolucionismo social derivado del biológico discontinuidad evidente entre los restos
de Darwin a partir de su obra El origen de las prehistóricos que simbolizaban el pasado de
especies publicada en 1859 no se resolvieron las poblaciones indígenas coetáneas y las
en ocasiones hasta ya entrado el siglo XX poblaciones “civilizadas” blancas que las
(Trigger 1989). Esta falta de aceptación de la dominaban, la arqueología sirvió para justificar
arqueología prehistórica como parte de la el status quo existente (Kuper 1988). La cultura
historia es lo que explica que en la práctica material indígena era semejante a la encontrada
mayoría del mundo occidental ésta se institu­ en las rebuscas arqueológicas tanto en los
cionalizara dentro de las Ciencias Naturales. Es países colonizados (o de reciente indepen­
decir, los objetos prehistóricos no iban a parar dencia) como en aquellos mismos. Es decir,
en la mayoría de las ocasiones a los museos que siguiendo una lógica evolucionista se
arqueológicos sino a los de Ciencias Naturales podía inferir que en contraste con las pobla­
y fue en las facultades de Ciencias donde en ciones europeas - y sobre todo aquellas más
muchos casos se comenzó a impartir la docen­ rubias del norte de Europa - que habían
cia de la prehistoria. Los ejemplos de esto son llegado a la cima del progreso conocido hasta
múltiples. El primero que citaré será el de entonces, las poblaciones indígenas no habían
Francia, donde la prehistoria se enseñaba en la evolucionado, se habían quedado atrasadas.
Facultad de Ciencias de Toulouse por Cartailhac Como el progreso tecnológico se asociaba con
hacia principios de siglo (Boule 1921), y donde el progreso social y moral (no hemos de
ésta formaría parte del Instituto de Paleon­ olvidar que el siglo XIX fue el de la Revolución
tología Humana creado en 1910 con sede en Industrial llevada a cabo fundamentalmente
París. También en España la Comisión de por las clases medias, de las «que provenían los
Investigaciones Paleontológicas y Prehis­ arqueólogos), era evidente que desde el punto

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de vista moral las poblaciones indígenas eran y deberes ya no estarían necesariamente


igualmente reprobables. Todo esto se unía con unidas al concepto de nación - aunque sí al de
la consideración que de ellas se tenían de la nación democrática. La nación comenzó
inferiores tanto desde un punto de vista ahora a basarse fundamentalmente en la
genético como cultural. En un primer momento esencia que la justificaba, que podía ser por
se pensó que su misma postergación ante el una parte una cultura o una raza o una lengua
progreso iba a llevar ineludiblemente a su en común y en todo caso por la otra, un
extinción y esto llevó a la creación de museos pasado común. Esto llevó a que el pasado
a los que fueron a parar tanto objetos etnográ­ propio - medieval o prehistórico -, por
ficos como arqueológicos (Bowler 1992; contraposición al clásico, adquiriera progresi­
McGuire 1989; McGuire 1992; Trigger 1980). En vamente mayor importancia. El cambio difícil­
un segundo momento, cuando se hizo eviden­ mente se podría haber dado en Italia, donde el
te que estas poblaciones no iban a desapare­ pasado propio se confundía con lo clásico y
cer - por lo menos en masa - la continuación ello permitió la continuación del subdesarrollo
de las colecciones se justificó como una forma de los estudios prehistóricos (Guidi 1996). Por
de aumentar la escasa información disponibles ello no ha de extrañamos que fuera en Alemania
sobre estos grupos supervivientes de una donde se produjera esta transformación.
época anterior. En todo caso, estos museos Los términos empleados por las publica­
junto con la labor de arqueólogos y antropólo­ ciones arqueológicas durante la mayoría del
gos justificaban la creencia de que era deber siglo XIX para significar un conjunto de
de las naciones civilizadas - o del estrato de la personas unidas bajo el mismo poder político
sociedad civilizado en el caso de las naciones y con una serie de rasgos comunes fueron los
americanas - de ayudar a los más atrasados a de ‘nación’ o ‘pueblo’ o ‘raza’ (sin que tuviera
desarrollarse. De esta forma la colonización este último término las connotaciones biológi­
quedaba legitimizada. cas que luego más tarde adquiriría durante el
El paso de la prehistoria desde las Ciencias mismo siglo XIX y fundamentalmente en el
Naturales a la Elistoria sólo ocurriría a finales del XX). Varios ejemplos es estos usos bastarán:
siglo XIX y fundamentalmente en el siglo XX y en 1797 el inglés John Frere describía unos
será Alemania la que tendría un protagonismo bifaces paleolíticos como “armas de guerra,
fundamental en este cambio. Este se funda­ fabricadas y usadas por un pueblo que no
mentó en el surgimiento de una teoría arqueoló­ utilizaba metales” (Daniel 1975: 31). O en 1847 el
gica, el historiei smo cultural, también estuvo arqueólogo danés Jens Worsaae aludía de una
unido al auge del nacionalismo étnico o cultu­ manera un tanto ilógica en sus Primeras
ral. Esta teoría tendría tanto éxito que, pese a antigüedades de Dinamarca que “aunque se
que ha experimentado una evolución interna, reconocía ahora generalmente que nuestro país
todavía sigue vigente y es practicada por la nativo se ha habitado por varias razas diferen­
gran mayoría de los arqueólogos y arqueólogas tes, todavía se supone que todas estas antigüe­
sin excepción de país, lengua o hemisferio. dades debían haber pertenecido a solo uno y
único pueblo’ (Daniel 1975: 39). La palabra
‘nación’ se empleó fundamentalmente en los
El nacionalismo étnico o cultural y el países de lenguas romances, pero ya en el siglo
historicismo cultural en arqueología XIX la encontramos en países de lenguas
germánicas. Así el británico Richard Colt Hoare
La unificación de Italia y Alemania en 1870 decía refiriéndose al túmulo megalítico irlandés
y 1871, como he explicado más arriba, transfor­ de New Grange que todavía no era conocido “a
mó radicalmente el carácter del nacionalismo, qué nación se podría razonablemente atribuir la
de tal manera que si el nacionalismo cívico no construcción de tal singular monumento”
desapareció, vino a integrarse dentro del (Daniel & Renfrew 1988:19-20).
nacionalismo de tipo étnico o cultural. Es decir, Estos términos de ‘nación’, ‘pueblo’ y
a partir de ahora características como la ‘raza’ fueron sustituidos por el de ‘cultura’ a lo
educación universal o la igualdad de derechos largo del siglo XIX y fundamentalmente en el

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XX (Díaz-Andreu 1996a) y ello se hizo en el que los arqueólogos contribuyeron en muchos


contexto del cada vez mayor éxito del naciona­ casos como miembros del ejército - en el que
lismo étnico o cultural. He de apuntar, sin la palabra ‘cultura’ fue rápidamente aceptada
embargo, que en Francia, donde el nacionalis­ en la arqueología prehistórica. Como he dicho
mo cívico siguió teóricamente en boga durante antes fue Gordon Childe el primero en definirla
más tiempo que en ningún otro lado, junto al de una manera más sistemática en 1929,
término ‘cultura’ se empleó - y emplea - con aunque sólo lo hizo de una manera casi
gran asiduidad el de ‘civilización’. El uso del podríamos decir indirecta. Según Childe:
término ‘cultura’ había resurgido ya antes de Encontramos ciertos tipos de restos -
la unificación alemana (ver ejemplos en Díaz- vasijas, útiles, ornamentos, ritos de enter­
Andreu 1996) pero para su aceptación dentro ramiento, plantas de casas - que constantem ente
del vocabulario arqueológico especializado fue se encuentran asociadas. A tal com plejo de
fundamental el desarrollo en las ciencias características regularmente asociadas denom ina­
remos un ‘grupo cultural’ o sim plem ente una
antropológicas de la teoría del historicismo
‘cultura’ (Childe 1929: V-VI).
cultural, de los Kulturkreise o círculos cultura­
les formulada por Frobenius en 1898 (Zweme- Lo que vemos aquí, por tanto, es que el
mann 1983: 31) cuya traducción a la arqueo­ término ‘cultura’ vino a significar algo así
logía se realizaría por Gustaf Kossinna en 1911. como una ‘nación ya desaparecida’. ‘Nación’
La primera definición del término de pasaba a ser un término empleado únicamente
cultura arqueológica, sin embargo, sólo se para época moderna. Para momentos anteriores
produciría en 1929 y ésta vendría de Gordon a partir de ahora se utilizaría ‘cultura’. Entre
Childe. Pero antes de continuar mi relato paréntesis quizá sea importante aludir a que al
dentro de la arqueología creo que es importan­ mismo tiempo que esto estaba ocurriendo en
te preguntarse porqué esta idea surgida en arqueología en antropología la palabra ‘cultu­
Alemania tuvo tanto éxito en el resto de ra’ que como hemos visto había comenzado a
Europa. Para responder á esta cuestión creo emplearse en 1898 se sustituyó hacia los años
que debemos reflexionar sobre el contexto veinte por la de ‘tribu’ o la de ‘grupo étnico’
político en el que esta difusión se produjo: la (Jenkins 1997). Los arqueólogos decidieron,
primera Guerra Mundial. Por una parte ésta sin embargo, no emplear ‘etnia’ para referirse a
supuso el fracaso rotundo de la internaciona- culturas, puesto que como el catalán Pere
lización de las clases trabajadoras pretendida Bosch Gimpera afirmaba hacia los años treinta,
por los seguidores de Marx. Los obreros de era preferible emplear el término ‘etnia’ para
cada país lucharon por su nación y no por la los grupos citados en las fuentes escritas,
causa común del proletariado. A este apoyo de mientras que para los grupos arqueológicos él
las masas al nacionalismo habría que añadir prefería seguir usando el término ‘cultura’.
otro hecho que tendría especial importancia La introducción del término ‘cultura’ en la
para el desarrollo del mismo. Eric Hobsbawm arqueología vino acompañada por un recono­
(Hobsbawm 1990) apunta la relevancia que cimiento de la prehistoria como el origen de la
tuvieron los acuerdos de guerra para la nación y esto llevó a que su estudio pasara
definitiva imposición del nacionalismo como primero en Alemania, y más tarde en muchos
teoría política. El criterio nacional fue emplea­ otros países por influencia germana, de las
do en estos acuerdos para redefinir el mapa Ciencias Naturales a las facultades de historia.
político de Europa lo que llevó no a unir España es un buen ejemplo de esto. En aquel
diversas unidades políticas en nuevas nacio­ país se concedió en 1922 la primera cátedra
nes - como había ocurrido en el caso de oficial de estos estudios, la llamada de Historia
Alemania y de Italia - sino a separar estados Primitiva del Hombre, en la facultad de Madrid.
como el imperio Austro-Húngaro en diversas No de forma casual ésta fue creada para un
naciones, en algunos casos casi inventadas alemán, Hugo Obermaier, al que el principio de
como fue el caso de Yugoslavia. la I Guerra Mundial había sorprendido en
Fue en este contexto de auge del naciona­ España impidiéndole por razones evidentes su
lismo en el que los arqueólogos vivían - y al vuelta a París donde trabajaba en el Instituto

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de Paleontología Humana al que antes me he arqueología italiana (Guidi 1996: 112-5; Torelli
referido. El otro catedrático que de forma extra­ 1991), seguiría al término de la misma.
oficial había estado enseñando prehistoria era En cuanto al empleo de un nombre colecti­
Pere Bosch Gimpera en Barcelona, y su cátedra vo la arqueología ayudó a buscar un pasado a
se encontraba en la sección de Historia dado determinados etnias, llamadas ahora culturas o
que oficialmente se llamaba de Historia civilizaciones en arqueología, que formaban
Antigua y Media hasta 1933 en la que el parte o la práctica totalidad de la nación. En
nombre cambió al de Prehistoria. Pero lo que ocasiones los datos arqueológicos actuaron
me interesa resaltar de Bosch Gimpera es que como una proyección aparentemente nada
éste se había recibido su educación en arqueo­ problemática de lo actual hacia épocas anterio­
logía en Alemania (Díaz-Andreu 1995a) y su res, impresión ofrecida por la práctica de llamar
admiración por la arqueología de aquel país a los grupos desaparecidos con el mismo
perduró toda su vida (Bosch Gimpera 1980). La nombre que los modernos. Esto pasó en el
influencia de la arqueología alemana en países caso de los alemanes (Wiwjorra 1996), y los
como Canadá (Trigger 1981) o Estados Unidos eslavos (Raczkowski 1996: 207, Shnirelman
(véase los apellidos de Kroeber y Kluckhohn 1996). En la mayoría de las ocasiones, sin
(Kroeber & Kluckhohn 1952)) indica esta embargo, las etnias actuales se basaron en
misma influencia al otro lado del Atlántico. culturas o civilizaciones pasadas conocidas
La adopción de una nueva teoría, la del con nombres diferentes al grupo contempo­
historicismo cultural, estuvo también apareja­ ráneo. Un ejemplo de esto se dió en la recién
da a un aumento significativo en la utilización creada república de Turquía en 1923, para cuya
de la arqueología para fines políticos. Esta se base histórica su dirigente, Kemal Atatürk,
produjo en naciones con independencia quiso ver la civilización sumeria e hitita, de tal
política - ahora interesadas en crear un manera subrayando que desde un pasado
nacionalismo de masas - y en otras en las que remoto Turquía había estado caracterizada por
ésta era reclamada y cuyo futuro indepen­ una variada composición étnica (Ózdogan
diente se había hecho posible al aceptarse el 1998: 116-7). También se emplearon culturas
nacionalismo definitivamente como argumento prehistóricas de forma semejante. Así en
al fin de la I Guerra Mundial. Como el concepto Portugal el catedrático de arqueología y
de nación cultural o étnica estaba basado, conservador del Museo Nacional de Arqueo­
lógicamente, en el de comunidad étnica logía, Manuel Heleno (1894-1970), en una
seguiré los criterios de Anthony Smith (1991: conferencia de prensa dada en 1932 y que tuvo
21) para definirla para explicar este punto. gran impacto posterior reclamaba la cultura
Estos son: la existencia de un nombre colecti­ megalítica como el origen de la nación portu­
vo; de un mito de origen común; de memorias guesa, creencia todavía muy extendida entre
históricas compartidas; de uno o más elemen­ gran número de intelectuales (Fabiáo 1996: 96-
tos diferenciadores de cultura común; una 97). En cuanto al periodo medieval cristiano,
asociación con un lugar de origen específico; éste fue el que más éxito tuvo por lo general en
y finalmente un sentimiento de solidaridad todas las naciones europeas (Olmo Enciso
entre sectores significativos de la población. 1991; Pohl 1997), pero ver (Díaz-Andreu
Siguiendo estos puntos intentaré aclarar de 1996b).
qué forma la arqueología se implicó en el Todo lo explicado en el párrafo anterior
nacionalismo de tipo étnico o cultural tanto lleva al segundo atributo, el del mito de origen
antes pero sobre todo después de la primera común para el que la historia en lo referente a
Guerra mundial, tendencia que, pese a la los momentos más recientes y para los anterio­
terrible complicidad de la arqueología alemana res la arqueología proveyeron de datos. En
durante la segunda gran confrontación Polonia, basta ver los títulos de los artículos
(Amold 1990, Amold & Hassmann 1995, publicados por von Richthofen y por Kostrzewski
Bollmus 1970, Kater 1974, Losemann 1977), para inferir su contenido nacionalista (Raczkowski
aunque ver Junker (Junker 1998a, Junker 1996: 205-6). Pero además de artículos acadé­
1998b), y en cierta manera también de la micos - y de otros múltiples publicados en

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periódicos de gran tirada cuyo estudio todavía símbolos materiales políticamente efectivos y
no se ha realizado en la mayoría de los no es casualidad que en este periodo de
países en esta época los arqueólogos se entreguerras se viera por primera vez una
lanzan a publicar obras de tipo más general inversión estatal importante para la excavación
pensadas para llegar a un público más amplio. sobre todo de sitios señalados para el discur­
En México, por ejemplo, aparece en 1916 el so nacionalista. Lo que pretendía el estado-
libro Forjando Patria publicado por el arqueó­ nación era crear un paisaje nacional propio,
logo mexicano Manuel Gamio. Si acudo al caso fijar una memoria histórica compartida por
de España, que es el que más conozco, son de todos los miembros de la nación. Así determi­
este momento la Prehistoria Universal y nados yacimientos claves en el discurso
Especial de España del Padre Carballo de nacionalista que en algunos casos ya habían
1924; la más importante Etnologia de la llamado una cierta atención hacia las últimas
Península Ibérica de Pere Bosch Gimpera décadas del siglo XIX pero sin tener gran
originalmente publicada en catalán en 1932, y repercusión a largo plazo como Alésia en
que pese a su nombre significativamente Francia o Numancia en España, ahora volverán
trataba de prehistoria, o la conferencia sobre a ser el centro de atención. La historia de las
“España” dada por el mismo autor en plena excavaciones en este último yacimiento es
Guerra Civil española; o las enciclopedias que buen ejemplo. Tras algún intento anterior que
empezaron a hacerse populares en estos acabó en monumentos a medio construir o de
momentos, como la del tomo producido por el tamaño claramente deficiente, en 1905 un
discípulo del último, Luis Pericot, sobre potentado de la ciudad más cercana decide
Historia de España. Geografía histórica costear la erección de uno a la altura de las
general de los pueblos hispanos. Tomo I. circunstancias en memoria de los caídos en
Epocas primitiva y romana en 1934. Numancia. Significativamente se logra que sea
Estas publicaciones de carácter general y el rey quien lo inaugure, pero cuando éste
de las más concretas derivadas de los trabajos acude se encuentra con que apenas unos
arqueológicos tuvieron un impacto mayor que pocos días antes un arqueólogo alemán, Adolf
el puramente académico, pues su contenido Schulten, ha comenzado la primera excavación
llegó a un público más general, reforzando por seria del sitio. Aquello constituyó tal escán­
tanto la creación de la memoria histórica dalo que terminó en la prohibición al alemán de
compartida de la que hablaré en el próximo realizar sus investigaciones en el cerro tras lo
párrafo. Las ideas expresadas por la arqueo­ que éste revierte su esfuerzo a la búsqueda de
logía se recogieron, como varios autores han los campamentos romanos que habían sitiado
estudiado (Podgomy 1994, Ruiz Zapatero & la ciudad. Para los trabajos sobre el yacimiento
Alvarez-Sanchís 1997) en los manuales se crea una comisión dirigida por el prestigio­
escolares. Además el trabajo de los artistas so arqueólogo José Ramón Mélida, quien de
hará que el eco del trabajo arqueológico llegue forma reveladora calificará su labor como un
mucho más lejos. Así la influencia ejercida por “deber nacional” (Díaz-Andreu 1995b: 44-5,
las obras ibéricas de la Edad del Hierro y Jimeno & Torre 1997). Numancia será uno de
etnográficas principalmente africanas en los yacimientos que más dinero reciba desde
cuadros como Las señoritas de Aviñón de entonces hasta la guerra civil (Díaz-Andreu
Pablo Picasso (Walther 1993: 37-40), o la del 1997b). Otros dos ejemplos de excavaciones
arte precolombino en los frescos producidos con claras connotaciones nacionalistas
por Diego Rivera en México (Kettenmann bastarán para dejar clara la utilización de la
1997), producirán un efecto mucho mayor y arqueología en la fijación de la memoria
más duradero que el que los arqueólogos histórica. En México fue igualmente en este
habrían podido tener por sí mismos. periodo es cuando comienza la exploración
El trabajo de los arqueólogos - y de las sistemática de yacimientos como Teotihuacán
primeras arqueólogas que empiezan a encon­ por Manuel Gamio (Brading 1988) y en Polonia
trar trabajo por estos años (Díaz-Andreu & el yacimiento de Biskupin encontrado en 1933
Sprensen 1998) - ofrecía al nacionalismo comenzaría a tener una importancia inmensa a

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nivel propagandístico dentro de un ambiente supuso de alguna manera la teorización de


cada vez más influido por el nacionalismo una serie de tendencias que ya se estaban
previo a la II Guerra Mundial (Raczkowski produciendo en la época anterior, sobre todo
1996). Los resultados obtenidos por la arqueo­ desde 1870, y la aceptación que hoy en día
logía, por tanto, sirvieron - y todavía sirven en aún tiene es reflejo a mi entender de el éxito
muchos casos - para retrotraer al pasado los que todavía mantiene el nacionalismo étnico
elementos diferenciadores de la cultura común y cultural y que hacen explicables en la
de la nación. Así el nacionalista catalán Prat de actualidad a un nivel político unificaciones
la Riba quiso ver rasgos fonéticos propiamen­ como la alemana y desafortunadas guerras
te catalanes ya en la escritura ibérica prerroma­ como la yugoslava y a un nivel más arqueo­
na en su libro de 1906 La Nacionalitat Catala­ lógico problemas como los que resaltaré en
na., o los arqueólogos que trabajaron en la última sección de este trabajo.
Numancia hablarían de la valentía y bravura
del espíritu español. El alto nivel de civiliza­
ción que parecía demostrar el yacimiento de Un largo camino por recorrer:
Biskupin en Polonia se empleó como prueba el desafío de la pérdida de la inocencia política
del progreso que ya mostraba la nación
incluso en época prehistórica (Raczkowski Habría otros temas que podrían ser
1996). desarrollados en un trabajo de esta índole
La arqueología también proveyó a la igualmente vinculados con el nacionalismo de
historia de cada nación con lugares de origen tipo étnico o cultural y que se refieren a la
específicos. En el periodo de entreguerras, época posterior a la última gran confrontación
durante e inmediatamente después de la y a los años que estamos viviendo. Estos
segunda Guerra Mundial, esta búsqueda de otros puntos a tratar se refieren a la utiliza­
los lugares de origen pobló las publicaciones ción de la arqueología por el nuevo imperia­
de arqueología de mapas con flechas en las lismo posterior a la segunda Guerra Mundial,
que se trazaban el camino seguido por determi­ fundamentalmente por parte de Estados
nados pueblos. No es difícil ver una conexión Unidos (Evans & Meggers 1973, Gassón &
entre estas teorías y la situación política del Wagner 1994: 127-8, Patterson 1986: 13-14,
momento, lo que han estudiado autores como Schávelzon 1988, Schávelzon 1989), o al
John Chapman para el caso de Marija Gim- reciente debate sobre quién tiene prioridad, si
butas (Chapman 1998). Esta relación la encon­ los arqueólogos y arqueólogas que han
tramos explícitamente indicada por algunos de dominado durante estos dos últimos siglos, o
los que vivieron en aquella época (Hawkes & si los indígenas que reclaman el derecho al
Hawkes 1943). Más tarde, sin embargo, las control de “su” pasado (Layton 1989a,
flechas fueron desapareciendo para dar lugar a 1989b). Este último asunto tiene conse­
hipótesis sobre transmisión de ideas por una cuencias que van mucho más lejos de los que
incierta aculturación. Hoy en día, con los algunos han querido ver y por tanto me
análisis de ADN, otro tipo de flechas están detendré brevemente en esta cuestión antes
volviendo, aunque en un mismo artículo éstas de dar fin a la discusión sobre nacionalismo y
sirvan para justificar cosas muy diferentes en arqueología que vengo desarrollando en este
el caso de los vascos y en el de los pueblos artículo.
anatólicos. Como he explicado en otro lugar (Díaz-
Como sinopsis de lo dicho en estos Andreu 1998) la retórica aplicada por las
últimos párrafos resaltaré de nuevo que la comunidades indígenas está lejos de estar
arqueología, al adoptar la teoría histórico conectada con un sistema de valores que no
cultural que todavía es predominante en ha variado con la colonización, como así
gran parte del mundo, suministró al naciona­ parecen propugnar aquéllos - incluidos
lismo el pasado, las Edades de Oro, que arqueólogos y arqueólogas profesionales -
mostraban su importancia y los símbolos que las defienden. Muy al contrario de esto
que éste necesitaba. El historicismo cultural opino que estamos ante un ejemplo más de

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A rqu eologia e E tn o lo g ia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

globalización, en este caso referente a la forma resolver, pero cuya confrontación es inevi­
de expresar la identidad, en concreto la étnica table, como así parecen demostralo la creciente
y nacional (pero también otras como explicaré politización de congresos internacionales de
en el próximo párrafo) de la forma tal y como la arqueología como el World Archaeological
sociedad occidental lo ha estado haciendo Congress (Colley 1995, Funari & Podgorny
estos dos últimos siglos, buscando y definien­ 1998, Ucko 1987).
do una o varias Edades de Oro que funda­ Terminaré haciendo una reflexión sobre si
mentan el presente. Lo que estamos presenci­ los arqueólogos y arqueólogas son conscien­
ando, a mi entender, es un movimiento por tes de la implicación política de su quehacer
parte de los indígenas hacia la elaboración de científico y sobre la importancia, en todo caso,
la historia de sus comunidades con una que tiene el que lo sean. La gran mayoría se
finalidad que nos es conocida, la de establecer resiste a admitir tal relación entre una discipli­
un pasado que las legitimice. Del éxito que les na que consideran - correctamente - científica
ha supuesto la adopción del discurso naciona­ y la política, aunque en la literatura publicada
lista son prueba las nuevas legislaciones en en lengua inglesa (como bien se puede ver en
países como Estados Unidos o Australia que la bibliografía que cito en este artículo) hay
han limitado en gran manera el trabajo arqueo­ cada vez una mayor apertura hacia estos
lógico (Hubert 1989). Es decir, sólo cuando temas. Las alusiones al patriotismo tan fre­
estas comunidades han abandonado su propio cuentes en el siglo XIX y que hacían tan
lenguaje para adoptar el nuestro nacionalista evidente el carácter nacionalista de la arqueo­
es cuando sus reivindicaciones han podido ser logía desaparecieron hace ya bastante de las
entendidas por el mundo occidental. Este publicaciones, aunque ciertas reminiscencias
ahora ya no les reconoce un carácter simple­ se pueden encontrar todavía en los prólogos
mente tribal sin más, como así se hacía en el de volúmenes cuyo contenido parece clamar a
pasado, sino más bien uno propiamente étnico la más pura objetividad. Es decir, es verdad
al nivel de cualquier otra etnia occidental y que ya no es tan explícita tal relación, pero
como tal, por tanto, se hace obvio el derecho esto no significa que no exista. Por otra parte
que tienen a reclamar un territorio propio y el cabe preguntarse si la arqueología que hoy en
control sobre el mismo - incluyendo la gestión día está defendiendo las muchas veces justas
de los restos arqueológicos. reivindicaciones de las poblaciones indígenas
El problema, sin embargo, no es tan fácil sabe distinguir entre el uso político de la
puesto que tiene implicaciones mucho mayo­ arqueología durante estos dos últimos siglos y
res. Las comunidades indígenas no son las la retórica elegida para tales reclamaciones. No
únicas que están exigiendo el derecho a la estoy defendiendo la necesaria priorización de
historia y a los restos materiales del pasado, la lectura arqueológica o la de los intereses de
ya que existen otros grupos que también lo grupos económicos frente a otras lecturas de
hacen: los New Age travellers (Finn 1997), los comunidades indígenas o de otros. Pero lo que
druidas (Chippindale et al. 1990), o las ecofe- está en juego es la validez del discurso
ministas que quieren ver en £atal Hóyük u arqueológico - y, siguiendo a Eco (Eco 1990)
otros yacimientos como símbolos de un poder todavía pienso que ésta la tiene - y tal validez
femenino perdido (Conkey & Tringham 1995, dependerá en parte de lo conscientes que
Hodder 1998, Meskell 1998). Por las mismas seamos de las condiciones que han hecho y
razones que la arqueología profesional tiene siguen haciendo posible la arqueología
derechos o que ahora se empieza a aceptar que profesionar y esto no sólo pasa por una
las comunidades indígenas también los tienen, revisión historiográfica, sino también por su
estas otras comunidades unidas por otro tipo contraposición con voces alternativas. No es
de identidades que no la académica, étnica y/o posible hacer arqueología sin hacer política, y
nacional, también los deberían tener. Los aceptarlo y actuar éticamente en consecuencia
conflictos de intereses que todo esto está nos pondrá en una situación a mi entender más
suponiendo representan actualmente un reto ventajosa para afrontar el desafío que esto
muy gravera la arqueología que no será fácil supone.

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A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 3-20, 2001.

Agradecimientos la International School in Archeologia. Mis


notas producidas para aquella ocasión fueron
Este artículo constituye el resumen de mis más tarde completadas en mi viaje a Brasil en
conferencias dadas en agosto de 1999 en noviembre de 1999, organizado por el Prof.
Siena, Italia, donde fui invitada por el Prof. Funari mediante una beca de la FAPESP para
Nicola Terrenato a impartir docencia en el dar conferencias en las universidades de São
Curso de Arqueología y Teoría organizado por Paulo, Campinas y Joinville.

DIAZ-ANDREU, M. N ationalism and A rchaeology: the p olitical con text o f our


discipline. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 3-20,
2001 .

ABSTRACT: This article discusses how present identities, and in parti­


cular nationalism, influence the way in which we think about the past. As I will
argue, archaeological endeavour cannot be understood outside its socio­
political context in which present identities play a crucial role. The emergence
of archaeology as a professional discipline was closely related to the success
of nationalism as a political option to sustain the modem state. Archaeology
was, thus, transformed from an erudite enterprise to a professional discipline
in a specific political context ruled by the success of nationalist ideology. I will
contrast archaeological practice with nationalism in its various periods. .
Despite changes in nationalism, it still maintains its importance in an analysis
of current developments in world archaeology. In this light I will discuss the
integration of indigenous communities into the management of the past.

UNITERMS: Archaeology and politics - Nationalism - Heritage - Natives.

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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 5 de a b ril de 2001.

20
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

“UM BANDO DE IDÉIAS NOVAS”


NA ARQUEOLOGIA (1870-1877)*

Lúcio M. Ferreira**

FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias Novas na Arqueologia” (1870-1877). Rev. do


Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

RESUMO: O objetivo deste artigo é o de discutir a articulação da Arqueo­


logia Imperial com um campo de saber e de poder. A partir desta articulação,
levanto algumas questões sobre as relações entre a prática arqueológica, o projeto
político Imperial e o Evolucionismo.

UNITERMOS: Arqueología - Brasil Imperial - Saber - Poder - Evolu­


cionismo.

Há uma rarefação de estudos sobre a 2001; Pinõn 2000).1 Com este artigo gostaria de
História das Ciências Humanas e das Idéias no contribuir para o debate. Valendo-me das
Brasil. Tome-se, por exemplo, a exigüidade de Revistas do Instituto Histórico e Geográfico
análises sobre a História da Arqueologia brasilei­ Brasileiro (IHGB), pretendo analisar a Arqueolo­
ra (Cf. Barreto 1992, 1999; Meggers 1985; gia conforme ela foi praticada em sua articulação
Souza 1991; Prous 1992; Funari 1989, 1991, com o projeto político Imperial e o evolucio­
1994, 1995, 2000; Pinõn 2000). Nem mesmo as nismo. Por outra, tento entender os usos políti­
obras de referência sobre a História das Ciências cos da Arqueologia num contexto em que a
no Brasil abordam a disciplina (Cf. Azevedo estabilização do sistema monárquico de domina­
1956, Ferri e Motoyama 1979-81, Miceli 1989). ção começava a apresentar suas primeiras
Nesta seara de evidente carência faltam pesqui­ fissuras.
sas mais amplas sobre a Arqueologia oito-
centista, momento de constituição institucional e
epistêmico da disciplina (Ferreira 1999, 2000, (1) Durante o século XIX, a Arqueologia foi praticada
por diferentes instituições situadas em diferentes
contextos regionais: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1838), O Museu Nacional (1808), o Instituto
(*) À memória de meu primo, mais amigo do que primo, Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
Fabrício Ronaldo Menezes. (1868), o Museu Paraense Em ílio G oeldi (1866), o
(**) M estre em História pela UNICAMP. Professor Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Alagoano
de História do C olégio Dom B osco, Americana, SP. (1869) e o Museu Paulista (1895).

21
FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 11\ 21-33, 2001.

Assim, na primeira parte deste artigo, que se detecta nas páginas da Revista, na
procuro demonstrar como a disciplina foi verdade, é a produção de um saber sobre o
justaposta r um campo de saber e de poder, Brasil. O Instituto foi um fórum privilegiado de
integrando a. rede de conhecimentos tecida pelo onde se falava e se olhava o país. Lançando mão
IHGB. Na segunda, intenciono dissecar o de uma série de disciplinas, o IHGB visava
conjunto discursivo específico em que esteve legitimar “cientificamente” a manutenção do
inserida a Arqueologia, direcionando o escalpelo projeto político centralizador da Monarquia,
no sentido de examinar as condições de apareci­ confeccionando uma rede de informações sobre
mento de seu objeto (Foucault 1986, 1995). A as diversas províncias e encaminhando propostas
perspectiva é a de analisar a disciplina enquanto que visavam viabilizar a exploração econômica
positividade, enquanto uma prática que, ao do território nacional. Tal assertiva clarifica-se
imbricar-se com outros saberes, estipulou ao se rastrear o cenário social, político e econô­
critérios classificatórios sobre o teor civiliza- mico da quadra histórica em questão.
cional das sociedades indígenas, postulou para Em primeiro lugar, apresentavam-se os
elas um lugar social na identidade da Nação e problemas advindos com a Guerra do Paraguai
forneceu elementos para a definição de uma (1864-1870). É bastante provável que este
política indigenista de integração. conflito tenha acirrado as tensões geopolíticas
nas áreas de fronteiras. O que pediria, muito
mais do que nas décadas de consolidação e
A produção de um saber sobre o Brasil estabilização do regime Monárquico, um maior
conhecimento destas regiões, das instituições
Como se sabe, o evolucionismo, juntamente provinciais que as resguardavam e das popula­
com o positivismo, foi arma de justificação ções que as habitavam. Nesse âmbito, deve-se
intelectual e científica - como então se pretendia lembrar que, historicamente, as áreas circunscri­
- para a implantação da República. De acordo tas ao Rio Prata foram palco de diversos confli­
com Silvio Romero (1986: 23), o “bando de tos entre a Monarquia e as Repúblicas latino-
idéias novas”, ambientadas no Brasil a partir de americanas (1825-28; 1850-52). O domínio
1870, mostrou o sofisma do Império em toda a geopolítico destas regiões era crucial para o
sua nudez. Não se deve supor, porém, que o Império, pois possibilitaria sua exploração
Estado Imperial não se valeu da “arma republica­ comercial por meio do monopólio da navegação
na” como tática para continuar “sofismando”, no Rio Prata, ponto de contato com as Provínci­
como estratégia para os embates políticos que as do Sul. Em segundo, a inadiabilidade da
então se travavam. O Museu Nacional,2 por abolição da escravatura ameaçava solapar o
exemplo, um dos bastiões da Monarquia, regime produtivo assentado na grande proprieda­
reconhecidamente comungou com o evolu­ de, organizado juridicamente com a Lei de
cionismo (Schwarcz 1989, 1993; Lopes 1997). Terras de 1850. Como conseqüência, prenuncia­
Quanto ao IHGB, pelo menos no campo da va desatar um dos laços do sistema de domina­
Arqueologia, o uso do modelo efetuou-se a partir ção nacional, a aliança Coroa-Grande Lavoura
de 1873. Contudo, é preciso filtrá-lo no discurso de Exportação. A lei do Ventre Livre (1871),
arqueológico, demarcando-o no interior de um medida estratégica que visava protelar a defla­
diálogo “interdisciplinar” em que o IHGB gração deste impasse político, foi decretada num
intercruzou dados e métodos. momento em que as lavrouras agroexportadoras
Com efeito, não se pode considerar os textos se expandiam para as novas áreas de fronteiras.
arqueológicos dissociando-os dos outros Urgia, p irtanto, definir uma política indigenista
conjuntos discursivos articulados pelo IHGB. O capaz tanto de assegurar uma mão-de-obra
alternativa aos braços africanos, quanto de
desobstruir as áreas agricultáveis do domínio das
populações indígenas (Ferreira 1999, 2000;
(2) Notar que no frontispicio do primeiro volume dos
Arquivos do Museu Nacional figura como sócio
Pinõn 2000). Capaz de sanear os caminhos para
correspondente o naturalista Charles Darwin. Cf. o progresso da civilização Imperial. Por último, e
Arquivos do Museu Nacional, Vol I, 1876. não menos importante, o ■■•'«cava-se o problema

22
FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (187 0 -1 8 7 7 ). Rev. do Museu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 77: 21-33, 2001.

das raças, da complexa formação étnica da Ao contrário de uma visão amplamente


população brasileira, marcada pelo trabalho difundida, durante o século XIX, as Humanida­
escravo e pela existência de sociedades indíge­ des não se encontravam completamente cindidas,
nas. Problema de difícil solução para os intelec­ circunscritas pelos limites de seus objetos,
tuais do IHGB, que planejavam construir uma seccionadas na região delimitada por seus
identidade nacional pautada sob o conceito de métodos. O que se pode notar, pelo menos no
civilização; e intentavam ancorá-la numa cultura interior de uma instituição oficial como o IHGB,
ilustrada, fixá-la numa História linear e conti- é a tentativa de enfeixá-las numa rede episte­
nuísta, Magistra Vitae, de onde os heróis e os mológica, de tomá-las intercambiáveis, de
acontecimentos políticos do passado transmitiri­ alargá-las em múltiplas visões e falas.3 No
am exemplos para as gerações futuras; assegurá- interior desta ambiciosa tentativa em esboço,
la numa memória que reuniria personagens e mesmo as ciências naturais foram estreitadas às
eventos dispersos no tempo e no espaço, que humanidades nesta rede de sabei es lançada sobre
aglutinaria as diferenças culturais plantadas no o Brasil. Veja-se, por exemplo, a participação do
território nacional. Em suma, estes intelectuais IHGB no projeto meteorológico dos Professores
ocupavam-se com a tecelagem de uma auto- Carlos Weyprecht e Wilzek, o qual objetivava a
imagem, uma representação da Nação a ser criação de estações científicas nas latitudes do
veiculada para o conjunto mais amplo dos Brasil (Cf. RIHGB, 39: 403, 1876). Na ocasião
Estados europeus e para as elites do país. em que o projeto foi elaborado, os intelectuais
A prática arqueológica, de fato, articulándo­ do Instituto ressaltaram a sua relevância para os
se num espaço de interpositividades, ajudou a estudos antropológicos e arqueológicos (Cf.
propulsar efeitos de poder que pretendiam RIHGB, 39: 406, 1876). Exemplo mais eloqüen­
costurar as cissuras do Estado Imperial. Integran­ te, contudo, foi a formulação do Plano para se
do-se, por meio das expedições científicas, com Escrever a História, Geografia, Etnografía e
a Geografia, a Geologia e a História Natural, a Estatística de cada uma das Partes do
Arqueologia promoveu a composição de um Império (tomo 40: 437-39, 1877). O objetivo
maior conhecimento do espaço da Nação. pareçe claro: montar corpora que pudessem
Participou do olhar e do registro sobre as fundamentar um saber sobre o país. Particular­
possibilidades de exploração econômica dos mente interessante é a inclusão da estatística.
territórios, de suas riquezas naturais, sejam Esta técnica matemática, aplicada às popula­
aquelas latentes no interior de jazidas, sejam ções - entre as quais, obviamente, incluíam-se
aquelas manifestas e que afloravam à superfície. as indígenas -, serviria para mensurar e conta­
Do olhar e do registro que vigiavam e fiscaliza­ bilizar os seus movimentos, o número de mortos,
vam as províncias, suas instituições e os fluxos de doentes, a fecundidade de suas produções,
de suas populações, que esquadrinhavam seus os focos de tensão social etc.. Em suma, serviria
contornos físicos para confeccioná-los numa à confecção de um saber sobre o Estado e suas
cartografia identitária. Integrando-se com a populações (Foucault 1994a, Kapalgan 2000).
Antropologia e a Historiografia, a Arqueologia
produziu discursos sobre as sociedades indígenas
a fim de resgatar a gênese da Nação, de construir (3) É provável que uma análise sobre o Museu Nacional,
um saber sobre seus diversos povos, passíveis de delimitada no mesmo período, encontre uma outra rede
serem o corolário de um processo histórico de saber e poder. O Museu Nacional estava subordinado
ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
continuísta e encabeçado por uma “civilização
Públicas. Destinava-se ao estudo da História Natural,
branca”. Saber que formulou modalidades de particularmente a do Brasil, “sobretudo em suas
controle sobre estas sociedades ao ocupar-se aplicações à agricultura, indústrias e artes”. Suas seções
com a definição de uma política indigenista de englobavam variados domínios: Antropologia, Zoologia
integração. Saber que, ademais, tinha nítidos Geral e Aplicada e Paleontologia Animal: Botânica Geral
e Aplicada e Paleontologia Vegetal; Mineralogia,
objetivos geopolíticos ao dirigir-se às popula­
Geologia e Paleontologia Geral. Havia também uma
ções indígenas fronteiriças, no intuito de garantir seção de Arqueologia anexada ao Museu. Cf. Decreto n.
o poder do Estado Nacional sobre estes espaços 6.116 de 9 de fevereiro de 1876. Arquivos do Museu
ainda não definidos, não coagulados. Nacional, Voi I, 1876.

23
FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tnologia, São Paulo, II: 21-33, 2001.

Parafraseando De Certeau (1979), pode-se presidiu as Províncias de Goiás, Pará e Mato


dizer que pesquisas arqueológicas são realizadas Grosso (1863-68), o que lhe facultou a oportuni­
a partir de um locus de produção sócio-econômi- dade de realizar pesquisas de campo sobre os
co, político e cultural. Situada no suporte grupos indígenas entranhados nos sertões do
institucional do IHGB, a prática arqueológica Brasil. Realizou diversas viagens pelo Norte e
pôde ser aplicada, sobretudo, sobre as popula­ Nordeste do Brasil, cujos frutos trouxeram, além
ções indígenas, embora, como foi visto, tenha de pesquisas em Arqueologia e Antropologia,
atuado num campo de saber e de poder mais descrições geográficas e geológicas, considera­
abrangente. O exame da emergência de seu ções administrativas e econômicas acerca de
objeto, de sua posição numa formação discur­ diversas localidades. Acresce a isso seu plano de
siva, talvez possibilite o discernimento dos colonização dos indígenas. Vieira Couto acredi­
critérios segundo os quais estes povos indígenas tava que os indígenas eram aptos à civilização.
foram avaliados. Defendia a integração do “elemento indígena” à
sociedade brasileira por meio do trabalho, como
mão-de-obra alternativa aos braços escravos. Sua
O IHGB e a Arqueologia Evolucionista: idéia era a de formar “soldados intérpretes” que
Selvagens e Phases de Civilização chefiariam os aldeamentos indígenas.
O segundo autor é Antonio Manoel Gonçal­
Após 1870, com a aclimatação das idéias ves Tocantins. Este engenheiro industrial
positivo-evolucionistas em solo nacional, o objeto formado pela Universidade de Gand, na Bélgica,
de estudo da Arqueologia englobou uma tríade de atuou sobretudo na província do Pará.5 Ali foi
problemas: qual a origem das sociedades indíge­ secretário da Repartição de Obras Públicas. Em
nas? os indígenas seriam autóctones ou teriam 1880, executou, a serviço do Império, uma longa
imigrado de um outro continente? é possível exploração do rio Trombetas (PA) e seus
avaliar o grau de civilização das sociedades confluentes. Estudioso do Tupi, Tocantins travou
indígenas? Mais do que um corpus organizador inúmeros contatos com grupos indígenas do
da disciplina, estas perguntas emergiram de Pará. Os resultados de suas pesquisas aparece­
relações de força precisas, partircularmente as que ram pela primeira vez, nas páginas da Revista do
recortaram a questão das raças e da identidade IHGB, em 1876, quando publicou o seu Relíqui­
nacional. Resultaram da inserção da Arqueologia as de Uma Grande Tribo Extinta (RIHGB, 39:
num espaço de interpositividades, o qual lhe 51-64, 1876). Neste ensaio, o autor descreve e
permitiu criar dispositivos para uma política analisa os vestígios cerâmicos da Ilha do
indigenista de integração e fundar um regime Pascoval (PA), situada próxima à de Marajó
discursivo que classificou as sociedades indíge­ (PA). Tendo como pressuposto esta análise
nas. Princípios e signos que legitimaram e empírico-descritiva, investiga o cotidiano da
definiram o lugar a ser ocupado pelos indígenas
na rígida hierarquia do Estado Imperial.
Um conjunto de textos de dois autores 36: 563, 1873; 5a Sessão em 7 de julho de 1876.
permite demarcar a vigência da Arqueologia RIHGB, 39: 377-86, 1876 (leitura de O S elvagem );
evolucionista nolHGB. O primeiro é José Vieira 8a Sessão em 18 de agosto de 1876. RIHGB, 39: 400,
Couto de Magalhães, o Barão de Corumbá, que 1876 (leitura da obra Com parações entre o Guarani e
o Tupi antigos, Guarani fa la d o no P aragu ai e o Tupi
em 1873 publicou o seu Ensaio de Antropologia
falado no A m azonas). Para m aiores detalhes
(1873), texto do qual resultou O Selvagem (1935 biobibliográficos sobre Vieira Couto, Cf. D icionário
[1876]), obra que figurou na Exposição Univer­ B iobibliográfico de H istoriadores, G eógrafos e
sal da Filadélfia (1876).4 José Vieira Couto A ntropólogos B rasileiros. Rio de Janeiro, IHGB,
1993: 5 3-55.
(5) Tocantins foi admitido còm o sócio do IHGB em
1873. Cf. 13a Sessão em 5 de dezembro de 1873.
(4) Vieira Couto participou ativamente das pesquisas RIHGB, 36: 604, 1873. Detalhes biobibliográficos
arqueológicas e antropológicas do IHGB. Ali suas obras podem ser conferidos no D icionário Biobibliográfico de
eram freqüentemente lidas e comentadas durante as H istoriadores, Geógrafos e Antropólogos Brasileiros.
reuniões. Cf. 4a Sessão em 25 de julho de 1873. RIHGB, Rio de Janeiro, IHGB, 1993: 171-72.

24
FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (187 0 -1 8 7 7 ). Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

sociedade que fabricou as cerâmicas. Tenta De fato, ainda que representem um pequeno
responder às seguintes perguntas: “Que povo foi conjunto, tais textos merecem ser estudados, até
este? A que grau de civilização chegou? Qual foi porque a recepção da Arqueologia ao evolucio­
a sua maneira de viver? Qual a sua origem?” nismo permanece como uma análise ainda a ser
(RIHGB, 39: 51, 1876). Em seu segundo ensaio, feita pelos estudiosos da História da disciplina
Manoel Gonçalves efetua uma análise filológica no país. Sob este aspecto, tanto em José Vieira
e antropológica sobre a Tribo Munducuru Couto, quanto em Manoel Gonçalves Tocantis,
(RIHGB, 40: 10-161, 1877). Descreve as notam-se os enunciados da teoria. O primeiro,
pinturas rupestres dos ancestrais da “tribo”, as em seu Ensaio de Antropologia (1873: 408 -
quais ele compara com as “tradições” ainda grifos meus), assevera:
vivas. Investiga também os primeiros contatos
“(...) a anthropologia demonstra que o homem
culturais realizados entre os Munducurus e os physico passou sempre d ’um período mais atrazado
colonizadores quinhentistas, objetivando extrair p a ra um mais adiantado (...)”
exemplos para a formulação de uma política O segundo, em Relíquias de uma Grande
indigenista destinada às regiões de Belém (PA) e Tribo Extinta (1876: 52 - grifos meus), afirma,
“(...) alguns artefactos cerâm icos que aqui
adjacências.
tem sido descobertos, e outros que ainda existem
Poder-se-ia objetar que estes textos seriam enterrados, são, por assim dizer, as únicas
insuficientes para caracterizar a disciplina, que reliquias que restam d ’esta tribo, hoje totalmente
o seu diminuto conjunto teria sido um aconteci­ extincta. Porém, con siderações de alto valor
mento fugaz no interior da trajetória da Arqueo­ prendem os produ tos cerâm icos ao estudo dos
povos primitivos e aos das diversas phases de sua
logia brasileira, reles acontecimento fadado a
civilisação (...)”
permanecer em silêncio na memória deste
saber. Contudo, deve-se considerar, em primei­ Ora, a partir destas citações, e dos comen­
ro lugar, que o IHGB já praticava pesquisas tários já feitos sobre estes textos, pode-se
arqueológicas desde 1839, conforme se pode averiguar a configuração específica em que a
aquilatar no primeiro tomo de sua Revista (Cf. Arqueologia evolucionista do IHGB esteve
Ferreira 1999). De maneira que, tais textos, disposta. Com efeito, a disciplina inseriu-se
analisados como parte integrante da produção num espaço de interpositividades que a articu­
arqueológica da instituição, configuram uma lou com a Geologia, a Antropologia, a Filologia
reordenação epistemológica, pois, antes de e a Historiografia. Constituindo-se no espaço
1873, o evolucionismo não fundamentava a definido por estes saberes que lhe foram
positividade da Arqueologia (Cf. Ferreira 2000, coetáneos, a Arqueologia pôde formular
2001). Em segundo lugar, as obras de Vieira hipóteses sobre a origem dos indígenas e
Couto e Gonçalves Tocantis inscrevem-se no criterizar sobre o teor civilizacional de seus
mesmo solo espistêmico que orientou as variados grupos.
pesquisas dirigidas por outras instituições. O Integrando-se com a Geologia, a Arqueolo­
exame destes textos, portanto, oferece a gia evolucionista instituiu uma intermediação
oportunidade de se cotejá-los com outros com dois conceitos. O primeiro é o de artefato.
conjuntos discursivos, notadamente, no que se Conceito nuançado que engloba duas facetas
refere ao período em questão, com os do Museu indissociáveis: ele é uma materialidade física, é
Nacional. Em terceiro lugar, após 1870, um composto por uma matéria-prima que diz do
evento demonstra que a Arqueologia praticada que ele é feito - portanto, um problema a ser
pelo IHGB gozava de um certo prestígio no deslindado pela Geologia; é ao mesmo tempo
quadro das pesquisas arqueológicas internacio­ uma atividade humana de transformação, o
nais. Trata-se do Congresso Internacional dos trabalho de confecção de uma matéria-prima
Americanistas (Cf. RIHGB, 39: 369, 1876), que o materializa, é uma tecnologia que permite
realizado em Luxemburgo, em 1877. O IHGB a exploração do meio-ambiente - portanto, um
foi convidado para participar da Comissão de problema a ser pesquisado também pela
Organização, cabendo-lhe versar sobre a Antropologia. Para se ter uma idéia de como os
Antigüidade do Homem Americano (Cf. artefatos passam a ser um dos focos de análise
RIHGB, 39: 403, 1876). da Arqueologia, veja-se como o Museu Nacio-

25
FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tnologia, São Paulo, 77: 21-33, 2001.

nal preocupou-se em ordená-los e classificá-los:6 geográfica do sítio arqueológico. Dava-se


Charles F. Hartt (1876a) descreveu e analisou o ênfase à sua situação topográfica, suas
material lítico conservado no Museu, além de dimensões, sua forma e sua localização no
tecer considerações sobre tangas de cerâmica quadro de um meio-ambiente mais amplo. A
indígenas (1876b); Domingos Soares Ferreira tarefa, portanto, era a de caracterizar a posição
Pena (1877) fez o mesmo com os vestígios do sítio no interior de uma estrutura geográfica
cerâmicos dos sambaquis do Pará; Ladislao Neto e geológica (Cf. Rath 1871: 289, Wiener 1876: 4-
(1877), por sua vez, escreveu alguns apontamen­ 7). Este determinismo geográfico permitiu, em
tos sobre tembetás. primeiro lugar, o entendimento da função do
O outro conceito é o de sítio arqueológico. sítio arqueológico. Era o imperativo constrin­
Ao lado dos artefatos, este é o objeto empírico gente da natureza, a força irredutível do meio-
fundamental da Arqueologia evolucionista - ambiente, os caprichos das oscilações e ciclos
como ainda o é da Arqueologia pré-histórica ecológicos que conduziam as sociedades
contemporânea. Sem ele, não se poderia angariar indígenas na escolha de suas moradias.
os artefatos, pois estes agora estão sobretudo Ladislao Neto (1876b), por exemplo, enfatizou
“enterrados”. Não basta colecioná-los quando que os sambaquis do Sul do Brasil eram
eles, por obra do acaso, aparecem na superfície.7 estações de pesca, locais de ocupação esporá­
Os sítios arqueológicos são os depositários dos dica das tribos do interior, que fugiam do
tesouros, das “relíquias” do passado que jazem, minuano do inverno em busca de temperatura
intocadas em seu mutismo, nos arquivos da terra. mais amena e da pesca farta do litoral. Tal
As jazidas arqueológicas devem agora ser conclusão foi alicerçada pela análise dos
compulsadas, devem ser escavadas para que vestígios arqueológicos e pela observação
delas se retirem os resíduos de uma sociedade antropológica. Havia ali muitas espinhas de
“extinta”. Somente assim poder-se-á lê-los, fazê- peixe, artefatos de pedra e “louça” semelhan­
los falar, dirigindo-se aos signos que neles tes aos encontrados no interior. Restos de
estão depositados. Não foi à revelia, portanto, fogueiras confirmam, além disso, um hábito
que Karl Rath (1871) instou o IHGB para que o comum destas tribos sertanejas: quando vão
acompanhasse em seus estudos sobre os aos rios pescar, sobretudo à noite, os índios
sambaquis existentes no interior do país. Desta costumam se aconchegar ao fogo. Domingos
importância conferida aos sítios arqueológicos Soares F. Pena (1876) concordou com Ladislao
surgiram as pesquisas sobre os “montes de Neto. Os sambaquis do Pará também serviram
conchas” concretizadas por Charles Wiener às ocupações sazonais. Vindos do interior das
(1876) e Domingos Soares Ferreira Pena (1876).8 densas florestas, os índios, esquivando-se da
As regras de uso destes conceitos umidade sufocante do verão, desciam para o
possibilitaram à Arqueologia o desdobramento litoral, acompanhando o movimento decres­
de algumas análises. Tratava-se, inicialmente, cente das águas e a imigração dos animais.
de descrever a composição geológica e Assentavam ali suas “malocas” temporárias.
Também aqui os artefatos e a Antropologia
lastraram a conclusão. Os materiais toscos dos
(6) Esta preocupação com o ordenar e o classificar sambaquis mostram bem que estes índios eram
podem ser averiguadas no Art. 1 do Decreto n. 6.116 de selvagens, viviam da caça, não conheciam nem
9 de fevereiro de 1876. Cf. Arquivos do Museu Nacional, ao menos os rudimentos da agricultura. Daí
Vol I, 1876.
(7) Antes de 1870, os artefatos eram solicitados aos
estes índios serem impingidos pela implacabi­
sócios correspondentes do IHGB. Cf. 108a Sessão em 20 lidade da natureza, migrando de uma região
de julho de 1843. RIHGB, 5: 382, 1843; 146a Sessão em para outra, enterrando seus mortos ao sabor
18 de março de 1846. RIHGB, 8\ 152-55, 1846; 148a das idas e vindas, misturados entre as conchas
Sessão em 30 de abril de 1846. RIHGB, 8: 289, 1846. amontoadas, sob o chão que dormiam. A
(8) Para se medir a importância que os sítios arqueoló­
“repugnância” deste costume, sem dúvida,
gicos passaram a ter, vale a pena citar uma frase de
Wiener: “... o humilde sambaqui tem para a sciencia
mostra que o povo que deu origem aos
universal a mesma importancia que a majestosa sambaquis é realmente selvagem. Em segundo
pyramide do Egypto ou do M éxico...” (1876: 20). lugar, as observações geológicas dos sítios

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FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (18 7 0 -1 8 7 7 ). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

arqueológicos embasaram a fixação de uma portanto, para deixá-los viverem nos extensos
cronologia sobre o povoamento do Brasil. Ora, territórios do Norte e Centro-Oeste sem colo­
os artefatos estão agora encravados num nizá-los. O Estado Imperial deveria, assim,
depósito sedimentar, instalados num tempo tomar para si a tarefa de salvá-los de sua
geológico. Os artefatos, agora, estampam um subjugação brutal à natureza, deveria incluí-
calendário. Podia-se, portanto, determinar a los no plano da civilização, deveria ensiná-los
antigüidade da tribo tomando-se por base a a plantar e a colher os frutos da terra, os frutos
camada geológica em que eles se encontravam. do trabalho agrícola. As amplas fronteiras
Assim, Wiener (1876) calculou que os samba- teriam que ceder ao ímpeto do progesso,
quis tinham dois ou três séculos. Domingos teriam que render-se à monocultura do café ou
Soares Ferreira Pena (1876: 86) resolveu não de outros gêneros. Era preciso, portanto,
fixar uma cronologia, pois, segundo ele, os integrar os indígenas e suas terras aos interes­
sambaquis estavam extremamente erodidos ses administrativos e econômicos do Império.
devido à ação eólica e do relevo. Vieira Couto Era preciso formular uma política indige­
(1873: 409), por sua vez, datou a primeira nista que encaminhasse o “processo civilizador”
imigração para o Brasil no período da “Pedra (Elias 1993, 1994). Até porque alguns povos
Polida”, mais especificamente no “Paleolítico detinham costumes abjetos. Seus ancestrais, por
Superior”, de acordo com os instrumentos meio da tradição oral, haviam-lhes irremediavel­
localizados “nos mais antigos sedimentos da mente transmitido por herança. Wiener (1876: 17
época quaternária”. Deste modo, esta imigra­ e segs.), por exemplo, a partir do exame das
ção situar-se-ia “mais ou menos a cem mil anos evidências ósseas fornecidas pelos esqueletos
atrás” (1873: 409). Sendo os selvagens filhos humanos, mostra como alguns deles estavam
da imigração, efetuada depois que transpuse­ friáveis, calcinados e incompletos. Só poderiam
ram, em outro continente, o primeiro estágio da ser então restos de refeições, pois a carne
civilização, Vieira Couto lamenta a ausência de humana era muito apreciada pelos índios dos
coleções de artefatos no Brasil. Estas, se sambaquis, eram eles um povo “que via em seu
ligadas a suas devidas estruturas geológicas, semelhante somente um objecto de alimenta­
se não coletadas erradamente, permitiriam o ção”. Seus banquetes, cujo prato principal era a
estabelecimento de uma cronologia mais carne dos inimigos, satisfaziam o apetite do ódio
segura da imigração originária. e a extradiordinária fome de vingança de que
As análises empírico-descritivas dos eram possuidores (Pena 1876: 88). Mas há
artefatos seguiam princípios similares aos feitos outros costumes “repugnantes”. Os índios dos
no campo da História Natural e da Geologia. sambaquis enterram os seus mortos no mesmo
Tentava-se isolar, por meio do pormenor descriti­ solo onde dormem, entre vestígios alimentares
vo, as identidades e diferenças dos artefatos - (espinhas de peixes e conchas), no meio do lixo
assim como se procedia com a natureza das e o mais perto possível do pai, irmão, mãe, filho
plantas e dos animais (Cf. Netto: 1876a), com as e mulher do falecido. Se o Império quer cons­
formações geológicas e geográficas (Cf. Derby: truir sua identidade nacional sob o signo do
1877). Feita esta tarefa, podia-se avaliar o grau progresso e da civilização, se quer realmente
de civilização dos indígenas. Já se viu como confeccionar uma auto-imagem digna de ser
Domingos Soares Ferreira Pena (1876), combi­ exibida para suas elites e para as Nações euro­
nando determinismo geográfico e análise dos péias, deve integrar os índios à civilização.
artefatos, classificou os indígenas como selva­ Deve, fazendo-os conviver com os brancos,
gens, povos ignorantes do saber agrícola. Neste incutir-lhes costumes nobres. Contudo, nem tudo
ponto, as análises de Ferreira Pena convergem está perdido. Manoel Gonçalves Tocantins
com as de Vieira Couto (1873: 407). Também (1876), estudando o cotidiano da sociedade que
este autor, após longa descrição dos vestígios, produziu as “relíquias” da “cultura marajoara”,
percebeu que alguns deles indicavam a existên­ analisando-as meticulosamente, enfatizou que o
cia de populações que não passaram por nenhum povo que as fabricou era “bastante adiantado na
período de civilização, que não conheceram nem indústria cerâmica” (p. 60). Pode-se levá-las para
ao menos a agricultura. Não haveria razões, as grandes Exposições Universais, festas do

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FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 77: 21-33, 2001.

trabalho e do progresso (nas palavras de seus estudos craniométricos, pôde organizar o


Schwarcz 1998), onde elas mostrarão que o primeiro Curso de Antropologia do Museu
Império possui uma gênese histórica fundada Nacional (Lacerda 1877). Foi assim, também,
sob uma cultura sofisticada. Nem tudo está que Vieira Couto (1873, 1935) pretendeu
perdido. Algumas tribos sujeitar-se-ão com interpretar os Tupis do ponto de vista físico e
mais facilidade às normas de uma política moral. Partes de um mesmo processo, os
indigenista. Afinal, já estão habituadas ao corpos dos Tupis, suas medidas morfológicas
labor e ao esmero industrial. e características físicas, forneceriam os
Com efeito, esta articulação entre a Arqueo­ indícios para o estudo de sua moral, as provas
logia e a Geologia só pode ser entendida plena­ de sua perfeição ou imperfeição intelectual.
mente considerando-se a inclusão da Antropolo­ Ora, se os Tupis migraram de outro continente
gia nesta dimensão discursiva. O que se constata quando estavam na primeira fase da civiliza­
é que a Arqueologia e a Antropologia, percorren­ ção, resta buscar na compleição de seus
do um mesmo campo de manifestações empíri­ corpos e na linha recuada de seu passado - o
cas, não foram praticadas em domínios estan­ qual pode ser perscrutado nos registros
ques e hierarquizados, sulcadas em momentos arqueológicos e geológicos -, o estágio de
diferenciados da abordagem sobre as popula­ evolução em que se encontram suas popula­
ções indígenas, cada qual em sua démarche. ções, habitantes do “Grande Sertão Interior”,
Ao contrário, pode-se dizer que a Arqueologia, isolados na vida bucólica das florestas
entre 1870 e 1877, teve uma relação simbiòtica tropicais. Isolados dos intercâmbios com a
com a Antropologia. Ela não surgiu, como no “cultura branca”, ocidental, civilizada.
espaço europeu, da Filologia, onde esteve Nesta perspectiva de caracterização
subordinada sobretudo à História (Bandinelli cultural das sociedades indígenas, no bojo
1994; Funari 1998, 1999b). Nem tampouco foi deste trabalho de esquadrinhamento de suas
concebida como simples subsidiária da Antro­ populações, também a Filologia foi utilizada.
pologia, como em seus desdobramentos iniciais Conhecendo-se os dialetos indígenas, os
na América do Norte ( Funari 1998). fonemas e regras sintáticas de sua linguagem,
Daí a presença, nesta formação discursiva, da pode-se entender os mitos de sua cultura,
Antropologia Física - o estudo comparatativo pode-se demonstrar como sua visão cos­
das raças, a classificação morfològica das mológica, sua visão do tempo, possuem
raças indígenas.9 Dá-se início, no Brasil, à formas primárias de percepção e explicação do
utilização de uma tecnologia de poder, a mundo. Formas fetichistas. A Filologia, assim,
craniometria, por meio da qual a categoria raça,
sofreu uma irrupção de temporalidade. Serviu
medida em suas “falsas dimensões” (Gould
para se mensurar o tempo, o limiar que separa
1981), legitimou a conformação de identidades
os selvagens da civilização. Se os artefatos,
e fundamentou num “discurso verdadeiro” os
enquanto documentos, permitem a inferição de
racismos oficiais (Foucault 1988, 1994a, 1994b,
um calendário e do grau cultural dos indíge­
1999; Jones 1997; Marx 1998; Milles 1989;
nas, também seus dialetos apontam para um
Patterson 1997; Trigger 1990). Foi assim que
passado distante e selvagem, confirmado pela
Batista Lacerda (1876a, 1876b), com base em
observação do presente, pela Antropologia.
Os indígenas, de fato, são selvagens. Não
somente seus artefatos e suas línguas reve-
(9) Antes de 1870, Lund havia praticado uma espécie de
lam-no: ao contrário das civilizações meso-
frenologia, comparando os crâncios fossilizados que ele
descobriu em Lagoa Santa (MG) com crânios egípcios. americanas, não há no Brasil grandes monu­
Cf. Carta Escrita de Lagoa Santa ao Sr. Primeiro mentos arquitetônicos (Cf. Magalhães 1873:
Secretário do Instituto. RIHGB, 4: 80-7, 1842. Martius, 501).
em sua metodologia antropológica para os estudos das A Antropologia Física e a Filologia,
“raças vermelhas”, sugeriu a análise comparativa das
atuando em rede com os discursos Antropoló­
raças. Cf. Como se Deve Escrever a História do Brasil.
RIHGB, 6: 389-411, 1844. Gonçalves Dias também,
gico e Arqueológico, possibilitaram a averi­
antes de 1870, já lia literatura antropométrica. Cf. Brasil guação da origem dos indígenas. Assim,
e Oceania. RIHGB, 30: 5-271, 1867. Manoel Gonçalves Tocantins, em seus estu­

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FERREIRA, L.M . “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1 8 70-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

dos sobre a Tribo Munducuru (1876), argu­ os vestígios arqueológicos e a “atual” organi­
menta sobre a especificidade da Língua e dos zação social de uma tribo, elas deveriam
traços anatômicos do grupo. Daí ter ele desanuviar sua origem nebulosa e a sua phase
levantado a hipótese poligenista para explicar civilizacional. Deveriam interpretar os eixos de
o surgimento das sociedades indígenas. Se contato com os remanescentes da “tradição”,
seus grupos são a prova empírica dos diferen­ os elos de continuidade entre o presente e o
tes centros de criação da humanidade, trata-se passado. A Historiografia, dispondo destes
de determinar seu teor civilizacional. Neste dados, tentaria enredá-los num discurso
sentido, também em Gonçalves Tocantins, os universal e indiviso que apagaria todas as
dialetos têm o mesmo valor documental que os diferenças e descontinuidades. Procuraria
artefatos. Se a indústria cerâmica da população construir um sujeito coletivo coroado, se
de um sambaqui do Pará representa um estágio possível, por uma sociedade evoluída, ante­
avançado de civilização, não é o que se passados da nobreza Imperial, da elite ilustra­
depreende da linguagem dos Munducuru. da que impulsionava a marcha civilizatória da
Seus mitos, se comparados com os registros Monarquia brasileira.
rupestres de seus ancestrais - ou por outra, se Entretanto, a Arqueologia evolucionista -
comparados com os testemunhos arqueológicos e a Antropologia - do IHGB não conseguiu
-, mostram toda a primitividade e insipiência de comprovar traços de cultura indígena elabora­
suas concepções sobre o mundo, revelam uma da. Nas palavras de Vieira Couto, que soaram
humanidade na infância, em seus primeiros como um desabafo, ou como um lamento, a
passos em direção à civilização. Também em Pré-História brasileira, ao contrário da das
Gonçalves Tocantins, a Arqueologia e a Antro­ vizinhas Repúblicas latinas, não revelou
pologia se regulam num mesmo jogo de relações nenhum grande monumento, nenhuma sobran­
discursivas. Assim é que, a partir das evidências ceira pirâmide erguida no seu vasto território.
arqueológicas, ou seja, valendo-se dos fragmen­ Pelo contrário, a Antropologia e a Arqueologia
tos cerâmicos, ele procurou reconstituir a evolucionista demonstraram empiricamente -
organização social da tribo semi-avançada, como se pretendia - que os indígenas são
remontar o seu cotidiano. Suas próprias pergun­ selvagens. Frustraram a tentativa de repre­
tas indicam este objetivo: “Como viveram eles? sentá-los na imagem de uma Nação que se
A que grau de civilização chegaram?”. queria civilizada. Os grupos indígenas, deste
Embora os indígenas tenham sido defini­ modo, foram excluídos do discurso histo­
dos como pertencentes a uma tribo, a um riográfico. Só interessavam, agora, como
grupo arraigado a um tronco filológico- elemento de riqueza, como possível mão-de-
cultural, simultaneamente foram incorporados obra sucedânea aos braços escravos. Eles
num discurso teleologico que os reuniu num agora são definitivamente selvagens, primiti­
mesmo bloco histórico. E aqui se destaca a vos. Suas sociedades, como que refletidas
articulação da Arqueologia e da Antropologia num gradiente, no máximo possibilitariam a
com o projeto historiográfico do IHGB. Projeto apreensão de uma maior ou menor evolução
que supunha a existência de um telos que cultural. Quiçá algumas estariam numa fase
guiava o processo histórico de uma Nação mais avançada do processo histórico-evo-
destinada ao progresso e à civilização; que lutivo da humanidade. Os selvagens, deste
primava por uma ontologia da profundidade, modo, deveriam ser integrados à Nação pelas
uma leitura que realçasse na História da Nação mãos benfazejas do Estado Imperial, represen­
um reecontro do presente com o passado, tantes da civilização nos trópicos. Neste
representado, quem sabe, por uma cultura sentido, talvez se possa entender a radica­
elaborada, perdida em algum período longín­ lização de alguns pronunciamentos de intelec­
quo, em algum momento civilizacional das tuais ligados ao IHGB. Roberto Armiño, por
sociedades indígenas. Nesta tarefa, a função exemplo, via na introdução das máquinas a
da Arqueologia e da Antropologia não seria vapor uma forma de “libertar as raças de cor”
tanto a de atentar para a singularidade cultural (Cf. RIHGB (37): 390, 1874). As raças de cor
de cada grupo indígena. Tomando como vetor (obviamente aqui se incluem os negros)

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FERREIRA. L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1870-1877). Rev. do Museu de A rqu eologia e
E tnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

deveriam ser libertadas! A política indigenista Conclusão


de integração transformou-se numa forma de
libertação. Era preciso livrar estes povos das Os estudos das relações históricas entre a
amarras da escravidão selvagem das matas, Arqueologia e o Estado apresentam-se, hoje,
orientá-los através da topografia das ferrovias, como um dos principais campos de pesquisa da
este símbolo tão caro da civilização e do disciplina (Diaz-Andreu 1996, 1999). Teorias
progresso. Arqueológicas, historicamente, quase sempre
Mas, pensando bem, esta radicalização estiveram a serviço da dominação social (Hodder
ainda é suave. Num momento em que os 1992, Shanks and Tilley 1987), e o debruçar-se
indígenas eram escravizados e exterminados
crítico sobre os seus materiais históricos tem
com alguma sistematicidade, Armiño foi
revelado os vínculos estratégicos da disciplina com
pedagógico. Procurou integrar os indígenas ao
a formação de Estados-Nações e identidades
Estado Imperial através da educação pelo
sociais e históricas (Haber 1999, Daniel 1981,
trabalho. Trabalho pontuado ao ritmo do
Jones 1997, Funari 1999a, Patterson 1997), com o
tempo de produção dos “brancos”, não mais
Imperialismo e o Colonialismo (Rodrigues 1991;
ao “som da mão-de-pilão”, mas ao do apito
Trigger 1984, 1990; McGuire and Navarrete 1999).
regular das ferrovias. Antes da aclimatação do
Escrever a História da Arqueologia Imperial em
evolucionismo, houve, contudo, propostas
suas correlações com campos de saber e poder,
menos pedagógicas, mais belicistas. Francisco
portanto, pode servir tanto para o entendimento da
A. Varnhagen, historiador e conselheiro oficial
constituição de sua constituição epistêmica, quanto
do Império, recomendou o extermínio de todos
para a compreensão dos mecanismos por meio dos
os indios “não mansos” (Ferreira 2001) como
quais se fabricaram interpretações racistas e
forma de desobstruir o caminho do Brasil rumo
à civilização. Décadas depois da proposta de elitistas da identidade brasileira.
Armiño, o evolucionista Von Ihering, do O que é tanto mais importante na medida
interior do Museu Paulista, retomou o debate. em que os embates e enfrentamentos do
Seguindo a marcha militar de Varnhagen, presente liberam um certo número de imagens
sugeriu o extermínio sistemático dos Kaiagang do passado. A festa identitária da Comemora­
(Cf. Ihering 1911), dos selvagens que estorva­ ção dos 500 anos do Brasil, cuja celebração
vam o progresso da Nação. Estranho cons- reforçou os três componentes de “nossa”
traste este entre um historiador, um Diretor de Nação imaginada (Anderson 1986) - identidade
Museu e um engenheiro! lusa, católica e cordial -, tratou a Marcha
E a história se repete, com variações. Tem- Indígena 2000 a cassetetes e bombas de “efeito
se um exemplo mais recente do uso do evolucio­ moral” (Cf. Folha de São Paulo, 23/04/2000: 3-
nismo para “civilizar” o Brasil. Hélio Jaguaribe 12). Indígenas de etnias diversas continuam a
(1994), decano cientista político e ex-ministro da ser exterminados (Cf. Antenore 1999, Natali
Ciência e Tecnologia do Governo Collor (1990- 1999); são freqüentes, ademais, as denúncias de
92), um dos principais conselheiros de Femando assassinatos de seus líderes (Cf. Informe do
Henrique Cardoso na campanha à presidência CIMI, n. 423: 2 p.) e de abuso sexual de índias
de 1994, propôs, nas entrelinhas de um dos Yanomâmis por soldados do Exército brasileiro
seus artigos, uma “limpeza étnica” entre os (Cf. Folha de São Paulo, 22/10/2000: 12). Os
índios. Sob a justificativa de que a maoiria deles conflitos pela demarcação das terras têm
- somente “200 mil almas” ! - vive em pleno motivado os indígenas a invadir fazendas (Cf.
paleolítico, outros poucos no neolítico. E, Folha de São Paulo, 26/08/2000: 13) e a
conseqüência inevitável, “o destino histórico seqüestrar pescadores que adentram suas
do índio brasileiro é deixar de ser índio e se reservas (Cf. O Estado de São Paulo, 7/08/2000:
tomar um cidadão brasileiro”. Curiosa perma­ 15). Por outro lado, na via da ação legal, os 350
nência a se observar ao longo da História mil indígenas que sobreviveram ao extermínio
brasileira esta tentativa de integrar o “velho” ao pressionam o Governo Federal por um novo
“novo”, de forma a que as rupturas sejam estatuto que os liberte da tutela da Funai
evitadas. Hélio Jaguaribe, como conselheiro (Fundação Nacional do índio) (Cf. Folha de
oficial, lembra Varnhagen. São Paulo, 12/11/2000: 5-6); organizam cartas-

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FERREIRA, L.M. “Um Bando de Idéias N ovas na A rqueologia” (1 870-1877). Rev. do M useu de A rqu eologia e
Etnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

protesto contra telenovelas que veiculam Agradecimentos


estereótipos culturais sobre os seus povos (Cf.
Folha de São Paulo, 19/11/2000: 14). A integra­
ção política dos indígenas à Nação, questão À FAPESP, por financiar esta pesquisa.
que de certa forma lastrou as condições de Aos amigos e colegas que me ofertaram seus
possibilidade para a Arqueologia Imperial, é um textos (alguns inéditos) e leram as primeiras
problema ainda insolvido. Tudo parece indicar versões deste artigo, ajudando-me a melhorá-lo:
que a Arqueologia brasileira, no futuro, terá de Margarita Diaz-Andreu, Célia Maria Marinho
fundar suas pesquisas nos termos dos conflitos de Azevedo, Pedro Paulo Abreu Funari,
do presente - não poderá deixar de assistir aos Francisco Noelli, David Nogueira, Ana Pinõn,
deslocamentos, diferenças e transformações Margareth Rago, José Alberione dos Reis.
destas imagens do passado que se projetam e Pelas minhas próprias idéias aqui argumenta­
reiteram no presente. das, contudo, sou o único responsável.

FERREIRA, L.M. “A whole bunch o f new ideas in Archaeology” (1870-1877). Rev. do


Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 21-33, 2001.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the articulation of the


Imperial Archaeology related to knowledge and power. From this articulation
some matters are raised about the relationship between the archaeological
practice, the Imperial political scheme and the Evolutionism.

UNITERMS: Archaeology - Imperial Brazil - Knowledge - Power - Evolu­


tionism.

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Rev. do Museu d e A rqu eologia e Etnologia, S. Paulo, 11: 35-53, 2001.

OS SAMBAQUIS E O IMPÉRIO: ESCAVAÇÕES,


TEORIAS E POLÊMICAS, 1840-1889*

Johnni Langer**

LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêm icas, 1840-1889.


R evista do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

RESUMO: O artigo analisa as primeiras investigações sobre sítios litorâ­


neos, ocorridas durante o reinado de D. Pedro II.

UNITERMOS: Sambaquis - Mito e Arqueologia - Barbárie e civilização.

De todos esses monumentos sepulcrais não há arqueológicos, que receberam seu primeiro
mais vestígio. Mas, sem dúvida alguma, poderíamos debate ainda no Setecentos, prosseguindo
reencontrá-los através de escavações. Heinrich
suas discussões por todo o século seguinte. A
Schliem ann, ftaca, o P eloponeso e Tróia, 1869.
principal polêmica levantada inicialmente a
respeito dos sambaquis foi se tinham sido
Um dos aspectos mais pitorescos da
construídos pelo homem ou acidentalmente
Arqueologia é sua característica de estudar,
pela natureza.
muitas vezes, o entulho de uma cultura. No
O frei Gaspar de Madre de Deus, em seu
Brasil, esse papel também não seria diferente.
livro Memórias para a história da capitania
Nosso imenso litoral brasileiro foi habitado por
de São Vicente (1797), descreveu o processo
diversas populações indígenas em seu passa­
do pré-cabralino. No período de colonização
portuguesa, essas mesmas regiões foram alvo
de interesses econômicos, como a exploração
Tupi-guarani: Tambá, conchas e Qui, monte.
da cal de sambaquis.1 Interessantes sítios Testemunha de bandos recoletores e pescadores do
litoral. Apresenta-se com o uma pequena colina
arredondada, constituída quase que exclusivam ente
por carapaças de m oluscos. Os sambaquis podem
(*) Este artigo é a m odificação do capítulo “O lixo de chegar a 30m de altura e provavelm ente filiam -se a
nossos antepassados”, de nossa tese de doutorado em várias fases, ainda que indubitavelm ente constituam
História: M ito e ruína, a arqu eologia no B rasil uma única tradição. Sinônimos: Sernambi, casqueiro,
im pério. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, concheiro, ostreiro (Souza 1997: 115). Os sambaquis
novem bro de 2000. são incomuns, se comparados a outros sítios indíge­
(**) Universidade Federal do Paraná. Pós-Graduação nas, por três m otivos principais: primeiro, porque
em H istória, Doutoram ento. possuem m uitos vestígios de alimentação; em
(1) Sam baqui - Acum ulação artificial de conchas de segundo, porque existia uma convivência entre vivos
m oluscos, tradicionalmente considerados vestígios da e mortos muito grande - os mortos eram sepultados
alim entação de grupos humanos (Prous 1992, p. no m esm o espaço cotidiano do sítio; e terceiro,
204), mas que atualmente são considerados edifica­ porque “foram o grupo que deixou a maior quantidade
ções intencionais. Sítio arqueológico cuja com posição e diversidade de testemunhos de sua permanência no
seja predominante de conchas. A origem da palavra é território b rasileiro.” (Gaspar 1999: 160).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
g ia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

de formação dos sambaquis ou ostreiras: litorâneas. A polêmica estava estabelecida. Um


seriam resultado da acumulação de mariscos comitê, que ficou conhecido por Lejre Comis-
coletados pelos indígenas, servindo para sion, foi criado em 1847 para tentar chegar a
cemitérios e nos quais “acham-se machados, uma conclusão sobre o dilema. Além desses
pedaços de panelas quebrados e ossos de dois especialistas citados, participaram os
defuntos.” (1953: 46). A maioria dos escritores geólogos J. Forchammer e H. Orsted. Neste
desta época acreditava, erroneamente, que mesmo ano, Steenstrup iniciou uma troca de
esses montes conchíferos teriam sido forma­ correspondência com Peter Lund, em Minas
dos naturalmente, sendo a opinião de frei Gerais, que durou até 1852.2 Para Lund era
Gaspar uma exceção significativa. evidente que as acumulações de conchas
Até a metade do Oitocentos, o assunto existentes no litoral brasileiro eram similares às
não despertou maiores atenções dos intelectu­ da Dinamarca, e que foram produzidas pela
ais brasileiros. Algumas rápidas referências ao presença humana. Com isso, os pesquisadores
assunto foram feitas por Vamhagen, em três nórdicos se viram obrigados a mudar de
momentos diferentes. No primeiro, o historia­ opinião, um fato consolidado em 1851, quando
dor encontrava-se vasculhando os arquivos Worsaae escavou um sambaqui na Jutlândia,
paulistas em 1840, seguindo o levantamento descobrindo diversos indícios que apontavam
documental proposto pelo Instituto nesta para a artificialidade do sítio (Bahn 1996: 90).
época. Visitando um sambaqui em Cubatão, Curiosamente, em nosso país essa correspon­
encontrou crânios e ossos humanos, mas dência de Lund foi praticamente desconhecida.
questionou a origem artificial proposta por Todos os debates realizados posteriormente
Madre de Deus (Vamhagen 1840: 525). Nove no Brasil sobre o assunto fundamentavam-se
anos depois, suas concepções começaram a no reconhecimento científico dinamarquês a
mudar. Agora as ostreiras foram apontadas respeito da artificialidade dos vestígios
como possíveis resquícios de antigas civiliza­ conchíferos, desconhecendo esse intercâmbio.
ções, restos de monumentos de outras gera­ Após Vamhagen, o Instituto seria agracia­
ções (1849: 372). Ao final dos anos 40, outros do com uma série de estudos arqueológicos, a
estudiosos lançaram esforços para o estudo partir de 1864, tratando dos vestígios arcaicos
desses restos, como Carlos Rath e Freire do litoral. A origem deste material não viria de
Alemão, este último autor de um estudo seus sócios ou membros, e sim de uma figura
chamado Memória sobre a Pirâmide do totalmente externa à elite carioca. Um misterio­
Campo Ourique do Maranhão. Vamhagen so conde, de origem francesa, deixaria seu
voltaria ao assunto em sua História do Brasil nome marcado nos anais da instituição por sua
(1854), desta vez comparando nossos sítios ousadia e determinação.
com outras regiões do mundo, como vestígios
da Dinamarca, norte da Europa, ilhas do Egeu
e Antilhas. Na realidade, o intelectual estava As aventuras de um conde arqueólogo
bem atualizado durante os anos 50, conhecen­
do as pesquisas desenvolvidas principamente Em mais uma sessão promovida pelo
nos países nórdicos. Instituto, em novembro de 1864, o futuro
A Dinamarca foi uma das pioneiras nos marquês de Sapucaí promoveu a leitura de uma
estudos pré-históricos, recebendo um grande carta enviada para a secretaria de estado do
impulso após a obra sistematizadora de Império. Poderia ser mais uma correspondência
Thomsen. Desde 1827, um zoólogo chamado
Japetus Steenstrup investigava os sambaquis
da região escandinava, denominados kõkken-
mõddingers, considerando os mesmos como (2) A Biblioteca Real da Dinamarca possui duas cartas
do intercâmbio entre Lund e Steenstrup, escritas em
formados naturalmente. Durante os anos 40, o
dinamarquês, datadas de 28/3/1847 e 11/3/1,852, com
arqueólogo Jens Worsaae defendia uma as referências: NKS 3460, 4 e NKS 2677, 2 IV
posição contrária, estabelecendo que estes (conforme bibliografia enviada pela arquivista Palie
montes seriam obra de antigas populações Ringsted, Manuscrit Department).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de Arqueolo-
gia e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 35-53, 2001.

sem maiores alardes ou comprometimentos. onde encontrou restos de diversos sambaquis,


Porém, a mesma consistia em um relatório da denominados pelo conde de amas de coquil-
descoberta, em Santa Catarina, de ossos e lages.
outros vestígios instigantes. Seu autor, o Com auxílio de um jovem francês, identifi­
conde de La Hure,3 solicitava ao IHGB o seu cou as conchas do local como da espécie
parecer sobre esse encontro. chamada de berbigão. Sua primeira conclusão,
Este pesquisador francês residiu no Brasil, comparando com os montes de concha
tratando de assuntos relacionados com artificiais da Dinamarca, foi de que esses
agricultura, plantação de algodão, criação do restos eram provenientes de diferentes
bicho-da-seda e colonização. No começo dos habitantes da região com o passar do tempo.
anos 60, realizou expedições corográficas pelo La Hure observou que existiam no mesmo
interior paulista. Seus primeiros livros publica­ monte diferentes camadas de estratificação e
dos, L ’Empire du Brésil (Paris) e Le Mexique de espécies conchíferas, comprovando épocas
(Douai, ambos de 1862), forneciam dados alternadas de ocupação. Escavando quase um
abrangentes destes dois países: geografia, metro e meio do sítio, encontrou três esquele­
estatística, indústrias, história e sociedade. tos humanos adultos, dos quais realizou uma
Nesta época também publicou, em Douai pormenorizada descrição de suas característi­
(França), um opúsculo de quatorze páginas, cas físicas, comentando o estado de conserva­
denominado Les peuples du Brésil avant da ção dos dentes e a proeminência das mandíbu­
découverte de l ’Amérique (1861), iniciando las. Junto aos restos humanos, deparou com um
seu interesse pela pré-história brasileira. machado de pedra, cacos cerâmicos e objetos
A carta-relatório de Hure, datada de 16/08/ líticos. Uma pedra trabalhada, de origem
1864 e enviada de Dona Francisca (SC), deve granítica, foi reproduzida em um detalhado
ter surpreendido o ministro imperial. Utilizando desenho no relatório. As dimensões de cada
terminologias arqueológicas extremamente face e suas equivalências em milímetros,
técnicas e atualizadas, o conde estava muito à apresentadas no croqui, atestam a sagacidade
frente de seu tempo, superando as limitações do conde em estudos arqueométricos.
dos intelectuais cariocas. O local investigado Sem dúvida, La Hure apresentava uma
foi a baía de Saí, em São Francisco do Sul (SC), formação especializada, não somente ao citar
autores dinamarqueses, como Worsaae e
Steenstrup, mas também ao descrever dados
obtidos empíricamente. Detalhes de escavação
(3) Infelizm ente carecem os de m aiores inform ações
e dos vestígios não foram ignorados, pelo que
biográficas sobre o m isterioso conde. Um dos poucos
historiadores que mencionou este arqueólogo, José podemos considerá-lo um arqueólogo moder­
Bittencourt, referiu-se ao m esm o com o “especialista no, oposto ao modelo de antiquário brasileiro
em epigrafia internacionalm ente con h ecid o” (1997: exemplificado em Manuel Porto Alegre. Como
235). Não sabem os que fontes foram utilizadas para já mencionamos, o conde enviou os esquele­
afirmar tal declaração. Consultando a maioria das
tos e objetos junto com o relatório para o
obras especializadas desta época, desde enciclopédias
até livros de arqueologia francesa, não encontramos ministro, esperando serem examinados pelo
uma única citação referente ao pesquisador. Atendo- Instituto ou doados para o Museu Nacional.
se apenas à documentação disponível - manuscritos e No final de setembro de 1864 o ministro
im pressos disponíveis no Brasil (Biblioteca Nacional) José Barroso enviou, no mesmo dia, uma carta
e Estados Unidos (Biblioteca do Congresso) -
para o presidente do IHGB e uma resposta para
encontramos algumas pistas úteis. Sua aproximação
com o Brasil não era apenas científica ou comercial. o investigador francês. Ao primeiro incluiu o
C orrespondências dem onstram um relacionam ento relatório original, solicitando um “parecer
direto com o imperador, a quem dedicou sua obra sobre o valor ethnographico e histórico da
L 'E m pire du B résil. Em sua carta endereçada ao descoberta” (Barroso 1864), enquanto para
m inistro José Liberato Barroso, identificou-se com o
Hure agradeceu a oferta, aceitando a continui­
vice-cônsul dos Estados Pontificiais. Também alguns
m anuscritos com provam essa ligação com assuntos dade de seus trabalhos.
diplom áticos, nom eado m inistro do interior da Advindo o primeiro mês do ano de 1865,
França (Hure 1864b, 1865d, 1870, 1877, 1887, s.d.). novamente o conde remeteu um relatório para

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

o ministro. Infelizmente esse material foi colonização européia, realizados por uma
perdido. Segundo Barroso, La Hure pron­ mesma raça e com os mesmos padrões alimen­
tificou-se a explorar qualquer ponto do tares.
Império, caso fosse julgado conveniente. 2. Os sambaquis brasileiros são análogos
Findando janeiro, desta vez o conde enviou da aos da Dinamarca, ilhas Canárias e Antilhas,
própria capital uma carta para Fernandes seja pela maneira como foram formados
Pinheiro (então secretário do Instituto). O teor (sobreposição de conchas), como pelos
da missiva foi muito obscuro, em parte devido vestígios encontrados: ossos de peixes e de
ao nosso desconhecimento da carta anterior. animais terrestres, cinzas e carvão de madeira,
No mês seguinte, o ministro imperial recebeu cerâmica espessa, utensílios de pedra. Na
outro relatório, este com 30 páginas, tratando análise das diversas camadas5 dos sambaquis
das pesquisas do conde. investigados é que percebemos todo o
pioneirismo do conde. Para ele, as camadas
seriam sucessivas e distintas umas das outras,
A origem das ostreiras apresentando uniformidade e separadas por
cinzas, carvão e pequenas conchas. Mas no
Com o sugestivo título de Considérations limite entre as camadas, o pesquisador perce­
sommaires sur VOrigine des amas de coquil- beu uma diferenciação, apresentando um maior
lages de la côte du Brésil, o pesquisador número de cinzas e restos de peixes. Sua
francês inaugurou as modernas pesquisas dos interpretação para esse fato seria de que no
vestígios litorâneos em nosso país. O prefácio período em que os moluscos apresentavam-se
do trabalho procurou demonstrar a extensão escassos, as populações litorâneas dedicaram
geográfica dos sambaquis, desde o Pará até a maior tempo para a pesca. Ainda em relação à
extremidade do Rio Grande do Sul. A importân­ dieta alimentar dos sambaquieiros, observou a
cia principal no estudo destes locais seria a presença de um pequeno número de ossos de
possibilidade de resgate da “plus ancienne animais silvestres no sambaqui, interpretados
race d ’hommes du Brésil.” (Hure 1865: 1). Em como simples passatempos, sem maiores
seguida, o trabalho foi dividido em três partes. preocupações de subsistência.6
A primeira era referente aos resultados obtidos Outra fonte de alimentação destes povos,
empiricamente em Santa Catarina, que para segundo Hure, seria a carne de prisioneiros de
Hure foram muito positivos e que poderiam guerra. Nas camadas centrais de um sambaqui
enunciar inicialmente algumas conclusões: da lagoa de Saguaçu (SC), encontrou ossos
1. Os sambaquis foram originados pela humanos espalhados e partidos, misturados a
mão humana. Colocando-se entre os partidári­ ossos de peixe. As fraturas dos ossos indicari
os da origem artificial destes montes conchí­ am a finalidade de extrair o tutano. Também
feros, Hure contestou aqueles que atribuíam
os mesmos aos índios Guarani. Outras etnias
proto-históricas, como os Carijó de Santa (5) C am adas - Superposição de estratos, de com posi­
Catarina, foram também excluídas da possibili­ ção natural ou artificial. Estrato, horizontal ou não,
dade de terem sido as originadoras dos com características próprias, numa estratificação.
montes.4 Apresentando-se completamente Leito ou estrato de rocha maciça, em depósito
natural. Estrato - Camada geológica ou cultural. É
recobertos por vegetação, arbustos e outros
com posto por sedim entos minerais e evidências
detritos, os sambaquis seriam anteriores à culturais. O mesmo que capa, nível, depósito. Cf.
Souza 1997: 32, 52.
(6) Até pouco tempo, a coleta de m oluscos era
considerada a maior fonte de subsistência dos
(4) Atualmente consideram-se dois períodos de sambaquieiros. Porém, pesquisadores acreditam que a
formação dos sambaquis sul-brasileiros: os realizados principal fonte de alimentação do grupo era a pesca,
pelos sam baqu ieiros (de 5.000 a 1.000 anos atrás) e mesmo no início da ocupação dos sítios. As numero­
as aldeias e acampamentos dos grupos Tupi-guarani sas conchas parecem estar mais associadas à uma
(1000 anos atrás até a chegada dos portugueses). Cf. estratégia de construção do aterro do que a uma dieta
Figuti 1999: 198. alimentar (Gaspar 1999: 165, Figuti 1999: 201).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

uma mesma mandíbula apresentava-se partida velhos debates difusionistas, como por
em dois fragmentos. Estes esqueletos diferen- exemplo a colonização dos escandinavos na
ciavam-se dos outros ossos humanos encon­ América. Mas sem necessariamente identificar
trados, sem características de sepultamento. a origem dos ameríndios no Velho Mundo,
Para o francês, só poderiam ter sido descarna­ atentou para as conexões filológicas entre os
dos e expelidos após a refeição. A questão do dois continentes, citando Hugo Groetius e seu
canibalismo é um tema complexo. As crônicas livro De Origine gentium Americanarum
e a bibliografia apontam para uma antropofagia (1642). Grotius foi um dos iniciadores da
americana com propósitos sempre ritualísticos, hipótese de que a América foi colonizada
seja com caráter familiar (endocanibalismo, pelos nórdicos, popularizada no Oitocentos
ingestão tradicional das cinzas) ou dos por Rafn. Do mesmo modo, Hure não deixou de
inimigos (exocanibalismo, digestão da carne). elaborar alguns comentários favoráveis às
Mas alguns registros modernos em sambaquis analogias entre as palavras, costumes e
também parecem confirmar as mesmas conclu­ hábitos dos povos intercontinentais desenvol­
sões de Hure e, apesar de raros e isolados, não vidas por Grotius.
podem ser descartados.7 Apesar desta conexão lingüística, era
3. O povo que construiu os sambaquis do muito claro para este arqueólogo a origem
Brasil habitou em sua superfície. Além dos migratória do índio brasileiro: seria provenien­
vestígios encontrados na escavação, Hure te da Ásia, berço da Humanidade. Em uma
recorreu à etimologia para comprovar essa extensa nota ao texto, Hure enumerou os
afirmativa. Sambaqui seria uma derivação da autores que constataram as similitudes entre
palavra taba, aldeia em tupi, originando çaba os indígenas da América do Norte e do Sul.
quig. Uma conclusão errônea, pois a proce­ Desta maneira, a filologia tornou-se um
dência correta é: tamba, marisco e qui, amon­ instrumento precioso no auxílio do resgate
toado. De qualquer maneira, suas teorias da histórico. É uma importante aliada do difusio-
formação geológica dos sambaquis e de sua nismo, desde autores setecentistas até intelec­
utilização como habitação estavam corretas: tuais como Emile Âdet, Varnhagen, Warden,
sedimentos de terra e areia acumularam-se em entre outros. Essa conexão entre as descober­
volta dos restos conchíferos com o passar do tas empíricas e sua interpretação dentro de
tempo, originando as elevações dos samba­ modelos clássicos tornou-se um procedimento
quis. Hure acreditava que a povoação indígena semelhante ao realizado desde o início da
no Brasil foi originada pelo norte - hipótese arqueologia moderna. Hure não fugiu a esse
muito aceita pelos acadêmicos brasileiros comportamento. Mas o que o diferenciou de
nesta época - e se estabeleceu aos poucos antiquários como Porto Alegre foi a importân­
pelo litoral, criando e habitando os montes de cia concedida aos vestígios materiais, em
lixo marinho. relação às similitudes filológicas.
Neste ponto, novamente recorreu às A principal preocupação de Hure, seguin­
semelhanças existentes entre nossos samba­ do seu texto, foi procurar mostrar as evidências
quis e os da Dinamarca, uma idéia sobre a qual que os sambaquis foram habitações indígenas.
o arqueólogo Worsae já havia se pronunciado. O costume de viver em regiões aquáticas,
Essas similitudes seriam independentes ou preservando-se do ataque de animais ferozes e
teriam alguma relação cultural direta? O conde de outros agrupamentos humanos, seria uma
francês não teve dúvida, recorrendo aos prática observada também na antigüidade
européia. Mas nos sítios brasileiros, com
vestígios de madeira praticamente escassos,
(7) A rqueólogos m odernos encontraram evidências saber qual a estrutura de habitação utilizada
muito similares às de Hure: crânios isolados, ossos deve ter intrigado muito nosso pertinaz investi­
quebrados e raspados, misturados com numerosos
gador. Segundo suas observações empíricas, os
ossos de peixe e cinzas de fogueira, o que comprova a
existência de antropofagia entre os sambaquieiros do sambaquieiros não utilizavam cabanas de
nosso litoral (Prous 1992: 218). Sobre a com plexa madeira, mas somente habitações provisórias
questão do canibalism o brasileiro ver Ram inelli 1996. semelhantes a choupanas, para o abrigo do sol

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia , São Paulo, 11: 35-53, 2001.

e chuva/ Com relação ao uso de grandes conjuntamente com uma proposta de continui­
fogueiras e de canoas talhadas ao fogo, mostrou- dade das suas pesquisas. Finalmente, após dez
se também muito correto. Um outro detalhe meses do primeiro contato, foi emitido um
curioso, que preocupou La Hure, foi a questão do parecer pelo engenheiro Guilherme Such de
odor exalado pelos sambaquis. Afinal, os indíge­ Capanema,10 que não concordou com diversos
nas habitavam em cima de verdadeiros lixos pontos da memória. A etimologia da palavra
orgânicos. Para o sábio francês, os moradores sambaqui foi a primeira questão contestada.
deste locais deveriam utilizar muito a fumaça das Quanto à idade desses vestígios, o parecerista
fogueiras para atenuar as condições odoríferas.9 acreditava que seriam proto-históricos, ou
A segunda parte da memória tentou determi­ seja, fabricados no período colonial ou mesmo
nar a época em que teriam sido realizados os ainda em uso. A analogia com os vestígios
sambaquis, baseados em estudos de Arte, dinamarqueses do mesmo modo recebeu
Filologia, Geologia, Etnografía e História. Apesar críticas negativas. Capanema explicou a origem
de não mencionar objetivamente uma datação, dos sambaquis por motivos geológicos,
Hure calculou corretamente que os sambaquiei- desprezando sua origem humana, pois não
ros deveriam ser mais antigos que os povos acreditava em uma grande antigüidade para
megalíticos europeus, ou seja, mais de três mil eles. E também citou semelhanças entre
anos atrás. A origem asiática dos povos america­ morfologia craniana das culturas açorianas
nos foi apresentada como a mais provável, mas o com os ameríndios e mesmo com o mito da
conde também mencionou a possível inclusão de Atlântida. Apesar de todas as suas pondera­
elementos brancos (semíticos) no Novo Mundo, ções, julgou que o Instituto deveria aceitar os
entre os séculos VIH e IX d.C. objetos encontrados pelo conde. Percebemos
A parte final do relatório consistiu na uma nítida desatualização do barão de Capa­
descrição pormenorizada de cada objeto nema, pois o assunto não era novidade - ao
encontrado, identificados por suas respectivas menos na Revista do IHGB, a exemplo das
camadas estatigráficas. Esse certamente foi o antigas opiniões de Vamhagen, que já relata­
momento mais significativo de toda a investi­ mos.
gação de Hure, que realizou um processo O conde francês enviou diversos outros
descritivo muito complexo para os padrões livros, documentos e manuscritos de sua
brasileiros de sua época. autoria para o Instituto. Três memórias merece­
ram pareceres especiais, respectivamente
tratando sobre Geografia, Arqueologia e
A resposta do Instituto Geologia. Em setembro de 1865, Giacomo
Rabaglia e Manoel Oliveira efetuaram uma
La Hure insistia que seu relatório sobre análise sobre o trabalho Exploration du Rio
sambaquis fosse examinado pelo IHGB, Parahyba. A maior questão apresentada por
Hure era referente às denominadas pedras à
écuelles, que considerava formações naturais
originadas pela erosão aquática. Na realidade,
(8) Apesar de raras, foram observadas estruturas de
cabanas com fundos e delimitações por estacas,
chegando inclusive algumas habitações a possuir sete
metros de diâmetro. La Hure deve ter observado (10) G uilherm e Schuch de Capanem a, barão de
sedim entos de cor escura e compactados, comuns nos Capanem a - engenheiro e físico brasileiro (Minas
sambaquis catarinenses, que indicam também a Gerais 1824 - Rio de Janeiro 1908). Formado na
utilização de choupanas sem apoio de postes cavados Escola Politécnica de Viena, foi professor da Escola
(Prous 1992: 211). Politécnica do Rio de Janeiro e do Museu Nacional.
(9) “Pode-se imaginar o cheiro que exalava desse Participou da Com issão científica de exploração
material, mas a percepção do que é um cheiro (1856), e da Carta Itinerária do Império (1871).
agradável ou desagradável varia de cultura para cultura. Chefiou a Comissão de Introdução do Sistema
Um grupo que vivia da exploração do mar, pescando e M étrico, e instalou as primeiras estações m eteoro­
catando m oluscos rotineiramente, certamente deveria lógicas no Brasil. Foi o fundador da Sociedade
ter o olfato bastante acostumado aos odores que Brasileira de Estatística e do Instituto P olitécnico
exalam desses animais.” (Gaspar 1999: 163). Brasileiro. Cf. Grande Larousse 1998: 1135.

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g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 35-53, 2001.

tratavam-se de bacias de polimento,u utiliza­ interessante aos anseios econômicos do


das pelas populações pré-históricas nas momento. A reação da imperial academia para
margens dos rios. A comissão, apesar de com a memória sobre a cidade perdida da
apresentar alguns conhecimentos sobre Bahia, por exemplo, foi reservada. Dos quatro
Geologia, não conseguiu formar uma conclu­ relatórios do conde de La Hure enviados ao
são definitiva sobre o assunto. O grande Instituto, os relativos à pré-história mostraram-
mérito apontado na memória do conde foi o de se muito mais morosos para terem juízos
apresentar pesquisas em uma região desco­ publicados na Revista. Enquanto os pareceres
nhecida do Brasil (Gabaglia 1865: 309). que tratavam de Geologia foram impressos em
Outra memória geológica da região do rio menos de um mês, o de sambaqui levou cinco
Paraíba foi examinada por Saldanha Filho em e o da cidade perdida dez meses.12 Apesar de
novembro de 1866. Este novo trabalho manus­ envolver algumas polêmicas, o tema da
crito de Hure, que foi o único publicado pela Geologia mostrava-se dentro de um panorama
Revista, descrevia as formações e decomposi­ muito mais tranqüilo. E envolvia um interesse
ções das rochas de diorito. Um trabalho muito imediato aos anseios da elite: a transformação
meticuloso e extremamente técnico. Quanto ao de bens naturais em recursos econômicos.
parecer de S. Filho, baseava-se nas pesquisas Uma das metas do IHGB era ampliar as frontei­
do barão de Capanema, demonstrando certas ras do conhecimento das províncias, tornando
restrições teóricas para as conclusões do o espaço territorial mais acessível. Conhecen­
conde francês. Mas como os outros pareceres, do melhor seus minérios, suas matas, seus
reconhecia a importância destes estudos em rios, o Império estaria viabilizando a ciência
locais ermos para a ciência nacional (Filho enquanto instrumento de conquista das
1866:421). potencialidades naturais, uma tarefa que para a
Se de um lado temos pareceres não muito Arqueologia do momento estava descartada.
otimistas sobre suas pesquisas, por outro, Depois de uma intensa atividade de
ocorreu um grande interesse pelas possibilida­ correspondência, o conde La Hure cessou seu
des econômicas dos mesmos. Desde 1865, intercâmbio com o Instituto após 1867. O
Hure solicitava ao ministério imperial e ao pesquisador francês continuou seu contato
IHGB subsídios para as custosas investiga­ com membros da elite carioca, a exemplo do
ções de campo, não sendo em nenhum momen­ imperador D. Pedro II. Mas seus vínculos com
to atendido. Mesmo suas proveitosas propos­ o passado pré-histórico se desvaneceram. A
tas encaminhadas não surtiram efeito: relatóri­ tarefa de esquadrinhar nosso passado litorâ­
os, levantamentos de plantas e seções geoló­ neo passaria para as mãos de outros investiga­
gicas, desenhos, mapas, determinação de dores.
posições geográficas, observações meteoro­
lógicas, etnológicas, levantamento de inscri­
ções rupestres (Hure 1865). A década das escavações
A grande temática dos trabalhos apresen­
tados - investigações arqueológicas - não O início da nova década também refletiu
estavam recebendo maiores atenções por parte um posicionamento diferente do Instituto para
dos intelectuais brasileiros durante os anos 60. com o tema dos sambaquis. Pela primeira vez,
O único trabalho de Hure impresso na Revista foi publicado um estudo sobre esses sítios
versava sobre Geologia, um assunto bem mais

(12) Entrada dos re latórios de H ure no IHGB (E);


(11) B acias de polim ento - Vestígios humanos P u blicação dos p a re c e re s (P):
utilizados sem m odificação intencional. Rochas 1 - Sam baquis (E - 10/2/1865; P - 16/6/1865)
granulosas, ricas em sflica, em cujos afloramentos 2 - C idade P erdida (E - 21/6/1865; P - 12/4/1866)
localizados perto da água os homens esfregavam as 3 - E xploração do rio P araíba (E - 18/8/1865; P -
pedras que desejavam polir, provocando a formação de 1 5 /9 /1 8 6 5 )
amplas depressões alongadas ou circulares bem polidas, 4 - Rochas do D esengano (E - 10/10/1866; P - 8/
por vezes com sulcos alongados (Prous 1992: 64). 1 1 /1 8 6 6 )

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gia e E tn ologia, São Paulo, 77: 35-53, 2001.

arqueológicos, Noticia ethnologica sobre um ção, o geólogo germânico lamentou a falta de


povo que já habitou a costa do Brasil (1871), verbas e incentivo público para as escavações
do geólogo Carl Rath.13 Não deixa de ser de campo, uma atitude que já havia sido
curiosa uma questão: porque o IHGB publicou tomada por La Hure em 1866.
este estudo de Rath, e não o de La Hure, seis Esse fato perpetuou-se por toda a nova
anos antes? Os dois intelectuais pareciam década, não ocorrendo patrocínio para pesqui­
estar bem envolvidos com a elite da capital, sas arqueológicas por parte do IHGB. Porém,
mas alguns indícios apontam para uma especi­ os sambaquis continuariam a despertar
al posição do estudioso alemão. A partir dos interesse de seus membros, como foi o caso do
anos 40, Rath publicou algumas considerações engenheiro barão de Capanema. Em 1874,
sobre sambaquis na revista Brasilia, de publicou o artigo “Die sambaquis oder mus-
Petrópolis, bem como em jornais europeus. chellugel brasilien” (Petermann’s Mitheilun-
Importantes membros do Instituto, como gen, Gotha, Alemanha), que foi reproduzido na
Capanema e Freire Alemão, devem ter tomado revista Ensaios de Sciencia (março de 1876).
conhecimento dessas publicações, mesmo Em relação ao seu parecer sobre a memória de
porque Rath não enviou originalmente o seu La Hure, escrita dez anos antes, não percebe­
artigo de 1871, sendo reimpresso pelo Instituto mos muitas modificações. Em nenhum momen­
em alguma publicação paulista. to Capanema aludiu sobre a antigüidade
Outros fatores, como a conjuntura desta desses vestígios, preferindo citar exemplos de
década, reforçaram a escolha entre as duas fabricações similares nos tempos contemporâ­
memórias aludidas. Como sabemos, os anos 70 neos. A diferença entre as camadas estrati-
foram o período em que as novas idéias, gráficas de cada sítio - uma prova de diferen­
métodos e teorias científicas entraram definiti­ tes momentos cronológicos - foi apontada
vamente em nosso país. O artigo de Rath, como resultado de processos naturais: na
comparado com o de Hure, era muito pequeno, mesma época em que um grupo criou aleatoria­
com apenas seis páginas. Não apresentou mente esses depósitos de lixo, a natureza teria
detalhes ou descrições muito longas, apenas feito várias camadas de terra. Essa sua inter­
conclusões parciais baseadas nas experiências
pretação contrariava as corretas idéias de Hure
pessoais do autor. Para o geólogo alemão, não
e Rath, que apontavam diferentes períodos
havia dúvida que os sambaquis foram cons­
para cada nível dos sambaquis. Outro erro de
truídos por antigos indígenas, uma idéia
Capanema foi considerar os vestígios de
reforçada pelo encontro de artefatos líticos
fogueiras entre as camadas como sendo
junto a ossadas humanas no litoral brasileiro e
antigas queimadas na vegetação do local.
em sítios semelhantes nas Guianas. Outra
Apesar de sustentar uma origem artificial
grande diferença entre esses dois pesquisado­
para a estrutura dos sambaquis, o barão
res foi de que o texto de Rath não apresentava
contrariava todas as teorias vigentes sobre
nenhuma filiação ao ideário difusionista, sendo
sua funcionalidade. Em relação aos ossos
muito mais apropriado ao novo contexto
vivenciado na Revista. Em sua última observa­ humanos nos sítios, cuja existência ele mesmo
confirmou, afirmou *que seriam muito raros,
simples restos abandonados do mesmo modo
que as conchas: “reduzimos assim á sua
(13) Não temos informações mais detalhadas sobre
singela expressão natural o sambaqui, que
esse pesquisador, autor de algumas obras sobre
corografia e aspectos geográficos das províncias de
teve de servir para tanta produção fantástica,
São Paulo e Paraná. Rath voltou ao tema dos ora sendo diques, ora trincheiras, outras vezes
sambaquis no livro Algum as p alavras ethnologicas e mausoléus, e até construcções para o culto.”
p a leo n th o lo g ica s a respeito da provín cia de São (Capanema 1876: 85). Os especialistas moder­
P aulo (São Paulo: Typographia de J. Skler, 1875), e nos concordam que os sambaquis foram
no artigo “D ie sambaquis oder muschellugelgraber
erigidos com finalidades específicas de
brasiliens”. Globus, Illustrierte zeitung fu r laender
und volkerk B rau n sch ew eig, 26 (13): 193-198, 1874. construção, não sendo apenas restos de
Essas duas fontes não existem nos principais acervos alimentação dos agrupamentos, mas também a
brasileiros. maioria destes sítios não foram especializados

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gia e E tn ologia, São Paulo, 77: 35-53, 2001.

como cemitérios ou habitações, sendo antes revista Bulletins de la Societé d ’Anthro-


uma mescla de ambos (Figuti 1999: 159-167, pologie de Paris, por exemplo, publicou um
Prous 1992: 216). resumo do artigo de Rath (.Revista 1871),
Em todo caso, temos de considerar as efetuado por Abbé Durand em 1874. Definiti­
idéias de Capanema em relação aos outros vamente, o tema despertava grandes interes­
pesquisadores do período. Percebemos que ses tanto pela comunidade internacional,
havia uma tendência deste autor em criticar quanto pelos investigadores nacionais.
investigações estrangeiras.14 No início de seu Durante uma incursão pelo Rio Grande do Sul,
artigo, afirmou que o mais famoso geólogo os naturalistas Ladislau Neto e Carl Schreiner
oitocentista, Charles Lyell, teria cometido um realizaram algumas pesquisas em vestígios
grave erro ao conceder uma origem civilizada dessa natureza, no ano de 1873. Com base
aos sambaquieiros paulistas. E as teorias já nestes estudos iniciais, Neto organizou uma
comentadas do barão sobre a funcionalidade série de problemáticas em torno do assunto,
dos sítios eram contrárias aos estudos de Hure encarregando o estudioso Carl Wiener de
e Rath - ambos de origem européia. Capanema realizar escavações em Santa Catarina. As
foi um pesquisador preocupado em dar conti­ principais preocupações do então empossado
nuidade a uma linha de investigação nacionalis­ diretor do Museu Nacional diziam respeito a
ta, originada durante os anos 40, e que credita­ indícios que esclarecessem a origem dos
va muitos erros aos exploradores vindos de fora sambaquis - como vestígios de fogueira e a
do país. Do mesmo modo que o antiquário posição dos esqueletos dentro das camadas
Manoel Porto Alegre entre 1840-1850, Capa­ dos sítios. Deste modo, Wiener publicou o
nema esperava encontrar as respostas para artigo Estudos sobre os sambaquis do sul do
nossa pré-história em uma geração perdida, e Brazil, o primeiro da estreante Archivos do
não em simples restos de lixo indígena, opondo- Museu Nacional, de 1876. A escolha não foi
se, deste modo, aos anseios de estrangeiros de modo algum casual, demonstrando o
muito mais preparados tecnicamente na recupe­ interesse da instituição pelo patrocínio da
ração de relíquias arqueológicas. Arqueologia. Em seus seus trabalhos de
campo, Wiener foi acompanhado por Schreiner,
do Museu Nacional, Frederico Muller,15
As pesquisas do Museu Nacional professor do Desterro, e Martiniere, filho do
vice-consul francês. A composição desta
O interesse pelos polêmicos sítios litorâne­ equipe também refletiu o envolvimento da elite
os se estendeu pelos anos seguintes. A erudita das províncias em tomo de temas pré-
históricos.
O relatório-artigo de Wiener foi dividido
em quatro partes, tratando a primeira do
(14) Capanema foi um típico cientista oitocentista, ambiente geográfico, da forma e dimensões
cujas teorias já estavam estabelecidas em sua mente, dos sítios, enfim, da estrutura dos sambaquis.
antes m esm o de realizar investigações de campo, que
foram muito poucas. Caso tivesse escavado diversos
sambaquis, teria percebido os vestígios típicos de
qualquer sítio desta natureza, contrariamente às suas (15) Wiener se refere a Frederico Muller com o
interpretações. M esm o Rath já havia notado esse lecionando em Florianópolis. No primeiro número do
padrão sambaquieiro, do m esmo modo que Hure muito A rchivos (quadro pessoal do Museu Nacional), ele
antes: “N o fundo e centro d ’estes outeiros (...) aparece com o naturalista viajante. Maria Margaret
encontramos sempre ossadas humanas, e junto a ellas Lopes (1997: 101) cita o intelectual com o F ritz
acha-se não pequeno numero de armas e utensílios de . M uller e morando na cidade de Blumenau. Cientista
pedras, com o sejam, machado, pontas de lança, alem ão (1 8 21-1897), em igrou para o Brasil em 1852,
frechas, cunhas, virotes, argolas, massas, pilões, mãos dedicando-se à agricultura em Blumenau. Manteve
de pilões, pedras chatas e côncavas (...) um povo correspondência assídua com Darwin e Haeckel.
antiquissimo do Brasil reuniu no espaço de muitos D escreveu numerosas plantas, insetos, m oluscos e
annos as cascas d ’estes crustáceos que com ia, para crustáceos. Escreveu em 1864 o livro Für D arwin,
entre ellas sepultarem os seus irmãos m ortos.” (Rath em defesa do darwinismo. Conf. Grande Larousse
1871: 2 8 8 ). 1998: 4 1 1 7 .

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gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

Pelas terminologias empregadas, o investiga­ que levou o geólogo a afirmar que seriam
dor demonstrou ser um naturalista particular­ vestígios de canibalismo: “a carne humana era
mente familiarizado com Geologia e Paleon­ provavelmente mais apreciada do que qualquer
tologia. E justamente nesta parte foi o momen­ outro alimento.” (1876b: 17).
to em que citou os anteriores trabalhos de O investigador germânico não soube
Rath e Hure. Do primeiro, criticou dados de examinar atentamente os vestígios que encon­
localização litorânea dos montículos, e do trou, faltando experiência arqueológica para
segundo, detalhes sobre vegetação cobrindo escavar os diversos montículos. Muitas vezes,
os sambaquis. Wiener ainda classificou os sepultamentos primários16 podem ter sido
sítios morfológicamente em trincheiras, colinas fragmentados com a erosão ou deslocamento
e montes regulares; e segundo suas disposi­ das camadas geológicas. A falta de outros
ções internas, em irregulares, túmulos e os tipos de ossos animais pode ter sido ocasiona­
destituídos de divisão interna. da pela ausência de mais escavações por parte
Na seção dedicada aos objetos humanos de Wiener. Um arqueólogo mais preparado,
recuperados pela expedição, percebemos as como foi o caso de La Hure, percebeu que os
limitações deste autor nas questões arqueoló­ sambaquieiros alimentavam-se de peixes,
gicas. Wiener descreveu cada objeto encontra­ moluscos, pequenos mamíferos e aves,
do, mas sem fornecer sua localização nas conforme a época de escassez de alimentos -
respectivas camadas e sítios, um procedimento um dado obtido pelo exame estratigráfico.
que o conde de La Hure havia feito de maneira Quando o conde francês encontrou ossos com
bem competente. Sem os dados espaciais dos indícios de canibalismo, estes estavam além de
artefatos, o registro, a Arqueologia é destituí­ despedaçados, quebrados e com cortes
da de seu principal método de trabalho, que transversais, indicando seu descarnamento,
diferencia os cientistas de qualquer escavador misturados com cinzas e ossos de outros
comum. animais. Além disso, Hure diferenciou clara­
Na síntese final, o artigo estabeleceu mente sepultamentos de vestígios antropofá-
algumas conclusões divergentes com as gicos no mesmo sítio, estes últimos apontados
opiniões reinantes até então, e, em outros por ele como indícios de exocanibalismo.17
aspectos, conservou algumas especulações.
Sobre a época em que foram levantados esses
montes conchíferos, Wiener foi totalmente (16) Sepultam ento prim ário - Aquele em que o
contrário a uma remota datação, considerando- morto foi sepultado sem receber qualquer tratamento
prévio de descarne ou cremação e também não foi
os com poucos séculos. Nesse momento, o
exumado e reenterrado algum tempo depois da morte
geólogo contrariou Lund, Rath e Hure (defen­ (W esolosky 1999: 193). Enterram ento direto - se o
sores de umn data pré-diluviana para os corpo é colocado diretamente de encontro à terra,
sambaquis), aaseando-se em considerações do sem uso de urnas ou receptáculos (Souza 1997: 49).
astrônomo e naturalista Emmanuel Liais sobre (17) Tradicionalm ente, os historiadores e antropólo­
gos sempre consideram os vestígios de antropofagia
calcificação das conchas. Ora, sabemos muito
com o ritu alísticos, seja para a ingestão de mortos da
bem que tanto Wiener, quanto Liais e Capa- mesma tribo, com o para inim igos externos. Mas,
nema, estavam estreitamente ligados ao atualmente, algumas pesquisas m eticulosas apontam a
Museu Nacional e ao IHGB, e ambos conside­ ocorrência de canibalism o com o dieta alim en tar em
ravam que os montículos eram recentes. casos extremos - com o a falta de outras alternativas
de alimento, ocasionadas por secas ou catástrofes
Existiria alguma relação entre os resultados
naturais. O melhor exem plo é com a antiga tribo dos
destas pesquisas com pressupostos ideológi­ Anasazi, no sul dos EUA. Sem nenhuma tradição
cos da elite imperial? Mais adiante surgem religiosa ou social contendo esta prática, foram
algumas pistas que esclarecem essa questão. encontrados restos de ossos quebrados, descarnados e
Como já afirmamos, Wiener classificou os misturados a cinzas - exatamente com o Hure
descreveu os vestígios nos sambaquis catarinenses.
sambaquis em diversos tipos, encontrando em
Além disso, exam es de laboratório em excrem entos
alguns destes - os irregulares - mais ossadas provaram a ingestão de carne humana. A estratigrafia
humanas do que de animais. Todos esses deste sítio Anazazi apontou um grande período de
corpos ficaram depositados em fragmentos, o seca, relacionado a conflitos violentos e ao colapso

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Baseado em suas errôneas interpretações, Ladislau Neto, não apresentou nenhuma


Wiener logo elaborou uma série de hipóteses novidade ao panorama das pesquisas sobre o
etnocêntricas. Os mais antigos sambaquis, os assunto, pelo menos, o que já havia sido
de forma irregular, teriam sido habitados por resgatado por Hure e Rath, sendo, inclusive,
“bipedes carnivoros,” que se alimentavam dos bem inferior em resultados empíricos. Repre­
seus semelhantes, e em cuja convivência ainda sentou uma tentativa do Museu Nacional em
não haveria leis sociais. A partir do momento entender o próprio acervo, composto em
em que a individualidade física foi respeitada, grande parte por material sambaquieiro, assim
surgiu a moral, o progresso e a ordem, acaban­ como de sistematizar as pesquisas destes
do com a antropofagia. Os sambaquis transfor­ importantes sítios. Porém, devido à falta de
maram-se em túmulos, locais para resguardar a preparo do comissionado, esta meta transfor­
memória dos mortos: “a primeira pedra de tudo mou-se em uma expectativa sem maiores
quanto a civilisação tem podido erigir de sucessos.
grande e bello (...) recorda-se aos viventes por Mas, apesar disso, o artigo abriu uma série
um monumento, primitivo, é verdade, mas que de discussões, inaugurando uma nova fase
se toma um dos mais curiosos para a historia nas investigações brasileiras. Ao escavar
da humanidade.” (1876b: 18). Neste momento, sambaquis no Pará, por exemplo, o naturalista
não estamos distantes das idéias de Ladislau Ferreira Pena18 já estava conhecendo o
Neto, do qual o geólogo foi subordinado, ou trabalho de Wiener, nesse mesmo ano de 1876.
das metas do Instituto. O sambaqui como um Os resultados destas investigações também
primitivo indício de civilização, um marco logo foram publicados pelos Archivos, mas
grandioso e visível do passado separado da seu autor não esperava alcançar nenhum
bárbarie, cuja forma atesta um desenvolvimen­ resultado sistematizador, e sim uma espécie de
to intelectual dos antepassados do Império guia para os futuros pesquisadores. A quanti­
brasileiro. O típico antagonismo na imagem dade de montículos conchíferos ainda visíveis
indígena - geralmente representado pelo eixo nesta época era bem elevada, motivando Pena
Botocudo/Tupi - apareceu aqui na forma de a elaborar um extenso mapeamento dos locais.
duas fases distintas dos restos litorâneos. Mesmo não apresentando maiores conheci­
Por último, Wiener fez rápidos comentários mentos arqueológicos, ao descrever os
sobre os instrumentos líticos dos sambaquis. objetos e condições estratigráficas encontra­
Como tinha encontrado muitos instrumentos das, este naturalista não demonstrou os
polidos e pouquíssimos por lascamento, mesmos erros de interpretação da comissão
concluiu erroneamente que na América existiu oficial do Museu Nacional. Baseado em suas
uma idade da pedra polida antes da lascada. descobertas, Ferreira Pena discordou de
Uma idéia influenciada pela obra de Couto de Wiener, concluindo que existiram sepultamen-
Magalhães, e endossada por Emmanuel Liais. tos de corpos inteiros nos montículos, e
Este trabalho de Wiener, financiado por principalmente, que os indígenas não “comiam
carne humana como quem come mariscos e
peixes, nem mesmo para satisfazerem a fome, e
seguramente nenhum delles jámais vio no seu
do sistem a Chaco. Conf. Walker 1997: 26. Do semelhante um simples objecto de alimenta­
m esm o modo, na região de Ardèche (França), indícios ção!” (1876: 95). Somente os selvagens mais
apontam práticas canibais dos Neandertais há
100.000 anos atrás: “Cut marks on the bones could
have been made only by sharp flin ts.‘The skulls had
been smashed open and limb bones hab been broken (18) D om ingos S oares F erreira Pena - Naturalista,
apart, presum ably to extract nutritious brain tissue nasceu em (Mariana) Minas Gerais e faleceu em 9 de
and remove marrow. Only the hand and foot bones, janeiro de 1888. Professor da Escola do Pará, sócio
which contain no marrow, remained intact. Cut do IHGB, foi incumbido em 1863 de explorar os rios
marks indicate that tendons had been severed Tocantins e Amapú, em com panhia do engenheiro
(necessary for limb rem oval), the thigh m uscles J.R. Moraes Jardim. Foi o primeiro diretor do Museu
rem oved, and in at least one case a tongue taken Paraense Em ílio Goeldi e naturalista viajante do
o u t.” A rch aeology 1999. Museu Nacional. Cf. Blake 1883: 233-234.

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ferozes seriam canibais, aproveitando a carne defendia um pensamento semelhante - os


dos inimigos, mortos em rituais. restos conchíferos eram artificiais mas não
Um assunto que despertou a atenção de monumentos - foi também um adversário de
Pena, assim como de todos os anteriores Neto na mesma instituição, o médico João
pesquisadores de sambaquis, foi a questão do Lacerda. Essas rivalidades pessoais no
cheiro exalado por estes sítios. Para o referencial Império pareciam estar relacionadas com
evolucionista destes eruditos, causava certo interpretações diferentes sobre a pré-história,
desconforto a imagem de indígenas habitando, o que pode ser percebido na arqueologia
comendo e sepultando sobre lixo orgânico! Já na brasileira até nossos dias. Alguns estudiosos
difícil questão da origem e idade dos montes modernos (Souza 1997, Lima 1999-2000: 287)
paraenses, Ferreira Pena elaborou algumas declararam que houve, a partir de 1870, uma
hipóteses baseado em dados etnológicos. Os divisão quanto à origem dos sambaquis, entre
depósitos de conchas teriam tido início no os defensores do naturalismo e o artificialismo.
século XIV, através do povoamento de tribos Mas, na realidade, a grande maioria dos
vindas do Peru. Nesta questão, o trabalho do pesquisadores das duas últimas décadas do
investigador paraense não ia contra o estabeleci­ Império admitiu o homem como fabricante de
do por Wiener. Percebemos uma outra linha de tais montes. O único defensor da corrente
pensamento, justamente em um pesquisador naturalista no Império, mas com publicações
externo ao Museu Nacional, o já comentado somente no período republicano, foi Herman
Barão de Capanema, que foi adjunto de Geologia Ihering, diretor do Museu Paulista.
desta fundação até 1876, quando se exonerou. Em meados dos anos 70, Carl Rath entre­
Justamente neste ano, em que também gou ao imperador um minucioso relatório sobre
surgiu o primeiro número do Archivos, Capa­ suas descobertas. Levando D. Pedro II a
nema lançou com João Barbosa Rodrigues a acompanhá-lo em suas escavações nos
revista independente Ensaios de Sciencia. casqueiros do rio Santana, em Santos, “onde
Estes dois eruditos foram alguns dos maiores recolheu um grande bloco com um sepultamen-
desafetos de Ladislau Neto, então diretor do to e vários objetos” (Souza 1991: 63). Outras
Museu. Wiener, Neto e Pena foram partidários pesquisas in loco também ocorreram durante
do sambaqui como forma artificial de constru­ esta década, como as comissões de Roquete
ção, utilizada geralmente para enterros funerá­ Pinto ao sul do Brasil, e Charles Hartt na
rios. Já para o barão de Capanema, os montí­ Amazônia, ambas financiadas pelo Museu
culos nada significavam, e seu artigo implicita­ Nacional; e as do naturalista João Barbosa
mente discordava deste grupo, além de ser Rodrigues,20 que possuía uma opinião muito
uma crítica velada a ele: “sabios de cacos de pessoal e atípica sobre os montículos.
potes, geologos e anthropologos improvisa­ No terceiro volume da Ensaios de Scien-
dos.” (1876: 81).19 Outro intelectual que cias (1880), Rodrigues demonstrou estar bem
familiarizado com a bibliografia escandinava
sobre o assunto. Examinando os sambaquis da
Amazônia, acreditou que suas semelhanças
(19) O barão de Capanema possuía muito prestígio no
Império. Foi amigo de infância do imperador e
com os existentes na Dinamarca não eram
cunhado de Manoel Porto Alegre (Lopes 1997: 138), somente coincidências estruturais. Com isso,
este também muito envolvido com arqueologia durante
as décadas de 40 e 50. Capanema continuou suas
escavações em sambaquis até o início do século XX,
mas depois do artigo de 1876, não publicou nenhum (20) João Barbosa R odrigues - Botânico brasileiro
material sobre pré-história. Saindo do Museu Nacional, (São Gonçalo do Capivari MG 1842 - Rio de Janeiro
continuou como membro da comissão de geografia do RJ 1909). Explorou durante três anos e m eio o rio
IHGB até final do Império. Ocasionalmente, com o no Am azonas, realizando trabalhos de Botânica,
período de 1884-1889, voltou a ocupar a com issão de Arqueologia, Antropologia e Etnografia. Foi diretor
arqueologia. No final do século, Capanema investigou do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1890 a 1909).
uma misteriosa inscrição-petróglifo relacionada a um Publicou Iconografia das orquídeas do Brasil; R elação
sambaqui de Antonina (PR), que considerava uma obra das novas palm eiras. Cf. Grande Larousse, 1998:
da arte humana (Leão 1919: 238). 50 9 5 .

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqu eolo­
g ia e E tnologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

os antigos indígenas da Amazônia seriam mais ou mesmo outros tipos de resquícios. Com um
que simples bárbaros, produtores de cerâmica cérebro tão pequeno e inferior, o habitante dos
e utensílios de pedra - do mesmo modo que os sambaquis não poderia ter feito nada de
povos nórdicos. Uma idéia bem diferente de grandioso, muito menos monumentos arqueo­
praticamente todos os outros pesquisadores lógicos - a exemplo do que pensavam Wiener
do assunto. Mas uma questão intrigava o e Neto. A configuração dos montículos foi um
naturalista. O que seriam os ossos humanos mero acidente de acúmulo alimentar.21 Essas
dos montículos? Rodrigues não podia acreditar idéias de Lacerda foram ainda mais acentuadas
no canibalismo, nem mesmo nos sepultamentos em outro trabalho, surgido anteriormente na
primários. Afinal, um povo civilizado não iria Revista da Exposição (1882). Sem nenhuma
enterrar seus mortos no meio de lixo orgânico, e indústria e uma arte imperfeita, os samba-
muito menos devorá-los. Os corpos seriam quieiros teriam constituído a raça mais selva­
simples acidentes, pessoas que morreram e por gem, bruta e imperfeita que habitou o Brasil,
coincidência acabaram sedimentadas com os mais inferiores até do que os Botocudos.
restos de comida. Esta interpretação do natura­ Neste momento, percebemos uma idéia
lista nos permite verificar a quantidade de totalmente oposta à enunciada por Hartt.
especulações em tomo deste tipo de relíquia. Ao menos para os intelectuais, os restos
Em relação ao pensamento do período, o artigo conchíferos eram muito importantes para se
de Rodrigues foi praticamente ignorado, até entender nosso panorama indígena. Durante a
mesmo por seu colega Capanema. Os grandes Exposição Antropológica, realizada na sala
debates ainda giravam em tomo da revista do Lund, foi representada uma planta detalhada
Museu Nacional. de um sambaqui catarinense, ao lado de
conchas, fragmentos de carvão, mariscos,
ossos de animais e peixes. Além é claro, de
Os sambaquis nos anos 80 crânios humanos. Imaginar como teria sido a
vida nesses locais era muito instigante para
Em 1885, no sexto volume do Archivos, qualquer arqueólogo, e o diretor do Museu
foram publicados os resultados das pesquisas Nacional não seria indiferente a isso. Em seu
do então falecido Charles Frederic Hartt, que único trabalho a respeito do assunto - A
não foram muito diferentes das de Ferreira origem dos sambaquis, Revista da Exposição
Pena. Tendo como objetivo maior o registro de - , Ladislau Neto tentou criar uma imagem
alguns sítios, estudos mais detalhados e baseada em dados mais empíricos. A antiga
meticulosos foram deixados em segundo questão monumental foi deixada de lado,
plano. Este investigador encontrou ossos mesmo porque não havia indícios que apon­
humanos e de mamíferos nos sambaquis do tassem positivamente para isso. Também já
Pará, praticamente, os mesmos vestígios que não importavam detalhes como o estado
os sítios de outros locais do Brasil. Mas um civilizatório desses povos, devido ao consen­
detalhe em especial chamou a atenção do so em considerá-los aborígenes selvagens.
geólogo Hartt. Ao deparar com fragmentos de Baseado em suas viagens ao Rio Grande do
louça, considerou que estes indígenas haviam Sul, Neto acreditava que os depósitos litorâne­
dado um grande passo para a civilização, e no os foram criados durante o inverno por tribos
caso, seriam muito mais adiantados que os do interior. Ao fugir do frio, os indígenas
atuais Botocudos. viviam da pesca e da coleta de moluscos, no
Neste mesmo número do Archivos apare­ espaço de quatro meses, rendendo grandes
ceu outro artigo, O homem dos sambaquis, de provisões para o seu regresso ao interior. Ao
João Lacerda. As principais preocupações
deste médico-antropólogo foram um pouco
diferentes de seus predecessores. Em primeiro
(21) O arqueólogo Alfredo Mendonça de Souza
lugar, Lacerda considerava muito mais impor­ com eteu um equívoco ao citar João Lacerda com o
tantes os vestígios craniológicos dos samba- representante da corrente naturalista dos sambaquis
quieiros do que restos de sua manufatura lítica (1991: 69).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 77: 35-53, 2001.

escavar alguns sambaquis desta província, intelectuais generalizaram um suposto compor­


acreditou ter encontrado evidências desse fato: tamento que, na realidade, remete a um estere­
a maior quantidade dos ossos animais das ótipo presente no pensamento ocidental.
camadas eram de peixes do inverno. Por isso Tradicionalmente, o homem canibal esteve
mesmo considerava que os restos de fogueira associado com a figura do pagão, do estran­
seriam indícios decisivos para futuras pesqui­ geiro, do habitante das florestas, enfim, de
sas, além da posição estratigráfica dos esquele­ toda sociedade desvinculada dos princípios
tos. Essa imagem defendida por Neto parece, superiores da civilização européia: “as guerras,
antes de tudo, uma espécie de desvio funcional. a nudez, o canibalismo e a falta de centraliza­
As tribos indígenas não teriam feito os sítios ção política sempre foram costumes próprios
como parte de um processo natural da sua dos bárbaros.” (Raminelli 1996: 54).
cultura, mas antes, uma necessidade derivada Na América, essa forma de conceber seus
das condições climáticas. Uma maneira de habitantes não seria diferente. Desde a coloni­
minimizar a imagem “repugnante” de nossos zação, as imagens de antropofagia tiveram forte
ancestrais habitando montões de entulhos. apelo para o imaginário. Com o Renascimento, a
Neste momento percebemos que a maior própria imagem do Brasil foi muitas vezes
limitação nas teorias de todos os pesquisado­ confundida com o canibalismo, como na
res, até então, foi a falta de uma maior sistemati- iconografia cartográfica (p. 60). A influência do
zação, comparando os dados obtidos com os estereótipo camuflou ou superou a experiência
sambaquis de todo o país. Pequenos detalhes, fornecida pelos relatos empíricos, sedimen­
na maioria das vezes, eram superestimados, e tando a imagem do indígena do Brasil como um
outros, minimizados, originando hipóteses sem selvagem por natureza devorador de outros
maiores fundamentos. Wiener, por exemplo, não homens: “a difusão dos estereótipos do
encontrou esqueletos inteiros; Lacerda desco­ bárbaro e do demoníaco constitui uma forma de
nhecia achados de cerâmica neste sítios. Caso absorver a diversidade cultural encontrada no
estes dois pesquisadores tivessem levado em Novo Mundo. O índio seria integrado ao
conta as outras pesquisas publicadas até então, imaginário ocidental, recebendo portanto uma
ou teriam mudado de opinião, ou seriam menos classificação e um valor.” (p. 66). Sem condi­
categóricos. O único fato absolutamente aceito ções de entender as exóticas e diversificadas
pelos maioria dos eruditos brasileiros, durante formas sociais dos aborígenes, tanto o europeu
os anos 80, foi que os indígenas originaram renascentista quanto o arqueólogo do século
esses montículos nos tempos modernos. XIX generalizaram estereótipos que colocavam
Essa falta de sistematização também o homem europeu como um ser superior, livre
acarretou outras conseqüências. O artigo de das características animais do americano
Wiener, por ter sido publicado no Archivos, primitivo.
acabou sendo o mais conhecido trabalho Cada pesquisador adaptava estas imagens
nacional na Europa. Citando suas pesquisas, o tradicionais com suas próprias hipóteses, e
marquês de Nadaillac (L ’Amérique préhis­ com o tipo de material encontrado no meio do
torique, 1882: 55), considerou que todos os lixo indígena. Como Karl Koseritz, que, durante
antigos habitantes do Brasil foram antropófa­ a década de 80, foi um dos intelectuais mais
gos! Por sua vez, o professor G. Mullrr- atuantes na província gaúcha, realizando
Schiess (Dona Francisca, SC), forneceu muitos estudos sobre pré-história. Ele foi um
diversas informações para A. von Eye (Join­ perceptível defensor dos indígenas, para, os
ville, SC), autor do artigo Die Brasilianischen quais criou uma imagem extremamente positi­
Sambaquis (Zeitschrift fu r ethnologie, 1887: va. Acreditava que a antiga população pré-
531-533), levando a conclusões idênticas: do cabralina foi muito numerosa, com a tecnologia
mesmo modo que os Botocudos, os samba- lítica atingido um nível espetacular - demons­
quieiros foram uma raça canibal e selvagem. Já trado pelos restos de machados dos quais fez
comentamos que os resultados fornecidos por uma grande coleção. Suas descobertas
Wiener são contestáveis. A partir de interpre­ arqueológicas foram publicadas em diversos
tações errôneas dos dados estratigráficos, os artigos no jornal Gazeta de Porto Alegre, mais

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqu eolo­
g ia e E tnologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

tarde reunidos em alguns opúsculos. Particu­ erudito estrangeiro, residindo no sul do Brasil
larmente, um desses estudos foi reimpresso ao final do Império, que apostava no sucesso
pela Revista do IHGB em 1884. das colônias, nos ideais de superioridade
Koseritz dedicou-se ao estudo dos samba­ européia, no triunfo do homem moderno, enfim,
quis da Conceição do Arroio, que na realidade na evolução darwiniana.24 Um ideal não muito
foram investigados por sua equipe, composta distante das metas pretendidas pela elite
por Bischoff, Kehl e Helm. À medida que carioca, mantendo inclusive alguns mitos em
diversos objetos foram sendo encontrados nas comum.
camadas de conchas, o erudito alemão acredita­
va que seus fabricantes seriam de tribos
diversas das que então povoavam esta provín­ Entulho indígena, civilização e barbárie
cia. Um nítido contraste foi assim estabelecido.
De um lado, os autores prováveis dos samba­ “Devenir archéologue est, au niveau de
quis, e de outro os indígenas então contempo­ l’imaginaire des vocations, en projet ou en
râneos, sem vínculos com os montículos de regret, infiniment plus chargé que devenir
conchas, e a que era positivamente favorável. À ingénieur, életronicien ou médecin.” Jean-Paul
medida que as pesquisas de campo prossegui­ Demoulle, La préhistoire et ses mythes, 1982.
ram, foram encontrados vestígios pertubadores, Alguns intelectuais que tratamos concebe­
todos no interior de igaçabas sambaquieiras:22 ram os sambaquieiros como uma cultura
pérolas de vidro, chapas de cobre e de prata. bárbara, eminentemente selvagem e canibal.
Como bem sabemos, as populações indígenas Afinal, não poderia haver outra interpretação
não fabricavam o vidro nem metais antes dos para povos que habitavam e viviam sobre lixo
europeus. Isso demonstrava, para Koseritz, que orgânico. Mesmo dentro destes parâmetros
teria existido alguma espécie de vínculo entre o etnocêntricos, podemos perceber claramente
ocidente e nosso passado, bem antes do uma relação direta entre observação e inter­
tradicionalmente concebido. Assim, apelou para pretação da cultura material, que sobrevive
a hipótese de que navegantes fenicios estabele­ até hoje. Dados fósseis e vestígios materiais
ceram antigos contatos comerciais com os interpretados incorretamente ou parcialmente,
selvagens (1884b: 35). Em nosso século não foi muitas vezes ocasionando o surgimento de
realizado qualquer estudo sobre a instigante mitos arqueológicos.
questão da ocorrência dos mencionados Um exemplo muito conveniente foi com o
objetos. O diretor do Museu Paulista, Hermán mito das cidades lacustres na Europa. A partir
von Ihering, alegou que tais indícios seriam de 1853-1854, na borda de lagos suíços, foram
provas de um contato entre culturas andinas descobertos diversos fragmentos de madeira,
com as do Rio Grande do Sul (1895: 98). De cerâmica e utensílios, logo explicados como
qualquer maneira, é uma questão ainda sem restos de antigas palafitas neolíticas montadas
maiores aprofundamentos, e conseqüentemen­ sobre lagoas. Dentro do vigente esquema
te, sem solução.23 Koseritz foi um caso típico de evolucionista, não poderia ocorrer descoberta
mais oportuna. As réplicas de palafitas
expostas em museus, exposições e colégios
(22) Igaçabas - (do Tupi iga saba, lugar onde a água oitocentistas, passaram a simbolizar a vitória
cai). Pote de barro ou talha grande para a água, que humana sobre a barbárie, o triunfo da razão
serve para guardar outros gêneros. Urna funerária sobre as limitações da animalidade. Durante
indígena. Conf. Grande Larousse, 1998: 3069.
(23) André Prous m enciona a existência de instru­
m entos lítico s retocados (pontas de projéteis com
pedúnculos e aletas) em alguns sambaquis. Como a (24) Relação de alguns intelectuais de origem
presença de quartzo é difícil no litoral, existe a germânica, com residência permanente, que in vesti­
possibilidade de um antigo intercâmbio entre as tribos garam a pré-história sul brasileira durante o segundo
do litoral e do interior do Brasil (1992: 221). A Império: Herman Bruno Otto Blum enau, O. Tischler,
ocorrência de m etais também pode indicar um antigo A. Schnupp, H.J. M ueller, Theodoro B ischoff, R.
contato dos sambaquieiros com os Andes, mas as Hensel, A. von Eye, G. M uller-Schiess, Pedro Kehl,
d iferenças cronológicas tornam o assunto com plexo. Helm.

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

muito tempo habitando em escuras e tenebro­ de parâmetro para suas considerações sobre
sas cavernas, o moderno homem neolítico civilização ou barbárie. Assim, voltamos à
passou a construir casas expostas diretamente nossa comparação com o mito das cidades
a céu aberto e sobre as águas - um triunfo lacustres, onde os vestígios também funciona­
também do Homem sobre a natureza física. Já ram como mediadores de esquemas sociais,
em nosso século, o arqueólogo nazista principalmente a metáfora da escalada evolu­
Reinerth utilizou este mito para atrações tiva, separando o ser animal do homem em vias
turísticas no lago Constance (entre a Alema­ de progresso racional: “Aqueles objetos
nha, Suíça e Áustria) repletas de referências reintegrados pelo arqueólogo passam a
racistas: “la métaphore de 1’ascenseur appli- possuir novas funções e a exercer mediações
quée à la théorie des stades.” (Demoulle 1982: no interior das relações sociais em que foram
751). Em 1948, o especialista O. Paret demons­ inseridos.” (Funari 1988: 24). Um objeto
trou que estas palafitas ou casas lacustres escavado e interpretado pelo cientista não
jamais existiram. Na realidade, foram restos de tem, necessariamente, as funções originais a
habitações construídas diretamente sobre o ele atribuídas. Ao procurar o índice25 de um
solo, encobertos pela subida do nível das artefato, freqüentemente o pesquisador
águas nos tempos modernos. submete-se às condições sociais de seu
Resguardadas as devidas proporções, próprio tempo, afetando suas análises teóri­
este mito possui muita similaridade com nosso cas: “Là encore, on peut voir que 1’objectivité
presente tema. Os sambaquis brasileiros, de 1’observation, là oü 1’archéologie déploie la
razoavelmente explorados durante o Império, technique la plus convaincante, c ’est-à-dire
serviram de apoio a idéias divergentes entre si, sur le terrain de fouille, n’est pas le départ de
mas todas relacionadas com algum tipo de toute interprétation” (Demoulle 1982: 752).
imagem acerca do indígena, gerando dois Sendo sítios incomuns, os sambaquis
grupos principais de repercussão, o nacional e receberam conotações que os desvincularam
o internacional. O primeiro divide-se claramen­ de seus primitivos usos por parte dos indíge­
te em dois eixos interpretativos: os que nas (exceção paras as pesquisas do conde de
entendiam os sambaquis como monumentos, e La Hure). Adquiriram funções específicas,
outro que identificou os sítios como resquíci­ servindo para recuperação de um passado
os selvagens. Wiener foi representante dos idealizado pelos eruditos nacionalistas. Um
dois casos, pois acreditava que teriam existido dado que à primeira vista pode parecer insigni­
montículos com restos canibais, e os que ficante - a datação dos montes conchíferos
serviram para mausoléus. Esta última uma idéia para os tempos modernos - revela que a
seguida por Neto. Restos com algum indício de maioria dos investigadores preocupou-se em
civilização, portanto, essa monumentalidade desvincular esses sítios de uma pré-história
apontaria para outros povos interferindo na remota, resguardando as raízes brasileiras para
construção do lixo indígena. Aqui entram em outros tipos de vestígios. E necessariamente,
cena as considerações de Barboza Rodrigues, estabeleceram vínculos diretos com as recen­
apostando no contato viking, e as teorias de tes tribos oitocentistas. A relação entre
Karl Koseritz, perpetuando o mito fenicio. contexto arqueológico (artefatos, estratigrafía,
Quem radicalizou uma interpretação oposta foi escavação) e sua reconstituição foi afetada
o médico Lacerda, para quem os sambaquieiros
foram um povo inferior, imperfeito e canibal.
Para a academia internacional, as idéias de (25) ín dice - O artefato em sua materialidade indica
selvageria foram preponderantes, publicando (“dá indício de”) determinadas relações sociais, tanto
estereótipos genéricos sobre o indígena na sua produção com o no seu consumo: uma ponta de
brasileiro, principalmente como antropófago. flecha (esfera material) é índice de um domínio de
técnicas de lascamento e de uma prática social de
Sempre baseados nas pesquisas nacionais caça (contexto cultural). Ao m esm o tem po, os
sobre o assunto. artefatos medeiam, direcionam as relações humanas,
Ambos os eixos interpretativos cometeram impulsionando os agentes sociais a tomarem determ i­
erros na análise dos dados de campo, servindo nadas atitudes entre si (Funari 1988: 80).

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LANGER, J. Os sambaquis e o Império: escavações, teorias e polêmicas, 1840-1889. Revista do Museu de A rqu eolo­
g ia e E tn ologia, São Paulo, 11: 35-53, 2001.

pelas relações sociais em que estava inserido mento. Curiosamente, tanto esse estereótipo
o cientista: “A arqueologia nada mais é que seria identificado nos sambaquis, quanto
uma leitura, um tipo particular de leitura, na conotações típicas de grandes sociedades. Um
medida em que seu texto não é composto de caso único, onde a arqueologia brasileira
palavras mas de objetos concretos, em geral identificou em meio a entulhos, os dois lados da
mutilados e deslocados do seu local de balança do mundo ocidental: a civilização e a
utilização original.” (Funari 1988: 22). barbárie. Em ambos os casos, o imaginário estava
Identificado em muitos locais e em épocas ocultando a verdadeira identidade do aborígene,
diferentes, o bárbaro podia ser um negro africa­ criando novos valores, mais condizentes com a
no, australiano, ou um ameríndio. Sua natureza proposta máxima deste momento - o avanço
bestial e inferior serviu para propósitos colonia­ triunfal do europeu, máximo representante da,
listas e evangelizadores, durante o Renasci­ escala evolutiva.

LANGER, J. The shellmounds and the Empire: excavations, theories and contro­
versies, 1840-1889. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo,
11: 35-53, 2001.

ABSTRACT: The article analyses the first investigations about coastal


sites, in the reign of D. Pedro II.

UNITERMS: Sambaquis - Myth and Archaeology - Barbarian and


civilization.

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R ecebido para publicação em 24 de novem bro de 2000.

53
Rev. d o M useu d e A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 55-75, 2001.

DE GUARATUBA A BABITONGA: UMA CONTRIBUIÇÃO


GEOLÓGICO-EVOLUTIVA AO ESTUDO DA ESPACIALIDADE
DOS SAMBAQUIANOS NO LITORAL NORTE CATARINENSE

Mário Sérgio Celski de Oliveira*


Norberto Olmiro Horn Filho**

OLIVEIRA, M.S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição


geológico-evolutiva ao estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte
catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 55-75,
2001.

RESUMO: O trabalho apresenta uma abordagem geológico-evolutiva dos


sambaquis da planície costeira de Joinville cujos resultados indicam uma
possível rota para deslocamento de sambaquianos entre o litoral sul para­
naense e o litoral norte catarinense. O modelo paleogeográfico proposto e as
datações absolutas de sambaquis atualmente disponíveis convergem para o
canal do Palmital como região inicial de ocupação de Joinville por aquelas
populações de pescadores-coletores.

UNITERMOS: Sambaquis - Planície costeira de Joinville - Paleogeografia


- Quaternário costeiro.

No Brasil, há mais de um século tem-se demarcação territorial, dentro de um sistema


envidado esforços científicos para dar sentido social bem mais complexo do que se entendia
à cultura material herdada da sociedade anteriormente (Gaspar 2000, Lima 1999/2000).
sambaquiana. Restos esqueletais humanos, Estudiosos de processos evolutivos da
artefatos produzidos em osso, pedra e concha, planície costeira têm identificado uma relação
vestígios de cabanas, carvões de antigas direta entre a distribuição espacial dos samba­
fogueiras e a própria estruturação dos sítios, quis e oscilações do nível relativo do mar -
levam a supor que os sambaquis teriam sido NRM durante o Holoceno (Krone 1908,
espaço multifuncional associado a moradia, a Leonardos 1938, Bigarella 1954, Martin et al.
local de enterramento de mortos e até mesmo a 1984, entre outros). Recentemente, tem-se
debatido a necessidade de revisão dos
critérios utilizados para utilização dos samba­
quis como efetivos indicadores espaço-
(*) Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville - temporais fidedignos destas oscilações,
MASJ.
estimulando a retomada de pesquisas que
(**) Departamento de G eociências (Instituição
efetiva do Programa de G eologia e G eofísica Marinha melhor explicitem as razões culturais e as
- PGGM), Universidade Federal de Santa Catarina - técnicas de implantação dos sítios em áreas
UFSC. sujeitas a inundação pelas marés (Angulo &

55
OLIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

Lessa 1997, Martin et al. 1998, Lessa & paleogeográfico então proposto possui sobre
Angulo 1998). a interpretação de deslocamentos de samba­
Bigarella (1954) e Martin et al. (1984) quianos no litoral norte catarinense.
consideraram que quando associados a Geomorfologicamente, o litoral norte
estudos paleogeográficos, a determinação do catarinense insere-se no “setor sudeste -
substrato pode contribuir para a estimativa costões rochosos, laguna/barreira, man-
aproximada de um intervalo de tempo onde guezais” segundo a classificação de Silveira
teria sido construído o sambaqui. Como (1964); no “macrocompartimento litoral
exemplo, Martin et al. (1984) citaram samba- sudeste - litoral das planícies costeiras e
quis sobre depósitos eólicos, que somente estuários” segundo a classificação de Muehe
poderiam ter sido construídos após o NRM (1998) e no “compartimento I - litoral seten­
máximo holocênico para aquela região. Obvia­ trional” segundo a proposta para compar-
mente tal dedução possui uma resolução timentação do litoral de Santa Catarina de
temporal limitada, já que em termos de datação D iehl& H om Filho (1996).
absoluta “sambaquis situados em um só e A área de estudo ocupa aproximadamente
mesmo tipo de unidade morfológica ou 230km2, tendo como paralelos extremos
espacial, podem ter idades muito diversas” 26°06’47” e 26°20’48” e meridianos extremos
(Ab’Saber 1984). 48°50’46” e 48°43’34”, conforme Figura 1. A
Este trabalho apresenta resumidamente altitude máxima de 229m é verificada no Morro
alguns resultados obtidos em recente disserta­ do Boa Vista. Nesta área, Oliveira & Hoenicke
ção de mestrado (Oliveira 2000) cujo objetivo (1994) indicaram o então registro de 27 sítios
foi o de caracterizar os sambaquis da planície arqueológicos do tipo sambaqui.
costeira de Joinville segundo uma perspectiva A metodologia do trabalho incluiu proce­
geológico-evolutiva e uma abordagem conser­ dimentos específicos da pesquisa em planície
vacionista dos sítios. Especificamente, o costeira. A fotointerpretação foi direcionada à
trabalho refere-se às implicações que o modelo determinação das características gerais das

Figura 1 - Localização geral da área de estudo.

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OLIVEIRA, M .S.C .; HORN FILHO, N.O . D e Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

morfologías deposicionais e de afloramento Guerra e, segundo o próprio (Tiburtius 1996),


nas unidades geológicas e respectivos “aborrecido” com a impossibilidade de
contatos. Para a amostragem dos afloramentos escavar os sambaquis no Paraná, mudou-se
recorreu-se a tradagens manuais e descrição para Joinville onde sua ascendência germânica
de perfis. O controle altimétrico deu-se princi­ lhe garantiu ser “bem recebido pelos habitan­
palmente com base nas plantas cadastrais tes e por todos os prefeitos”.
1:2 .000. Tiburtius trabalhou por quase vinte anos
A amostragem do substrato dos sítios foi nos sambaquis de Santa Catarina, tendo
orientada na maioria das vezes à não tradagem publicado 13 artigos e com pelo menos outros
direta sobre os sambaquis, procurando-se 17 ainda inéditos. Em Joinville, escavou os
áreas marginais que permitissem visualizar sambaquis Morro do Ouro e Cubatãozinho,
faixas de contato do sítio com os depósitos além do “sambaqui” Itacoara. Apesar de
sedimentares. intitular-se um “individualista” (Tiburtius
Foram processadas 91 amostras dos 1996), sua parceria com João José Bigarella,
sedimentos coletados em 71 pontos de íris Koehler Bigarella, Alsedo Leprevost e
amostragem ao longo da área de estudo. Para a Arnoldo Sobanski, aproximou-o da metodo­
determinação das cores, cálculo dos teores de logia acadêmica. Segundo Beck (1974), o
matéria orgânica e de carbonatos e proces­ trabalho de Tiburtius significou uma transição
samento granulométrico dos sedimentos, entre os estudos amadores e os profissionais,
utilizaram-se os métodos descritos por Suguio “quase uma Arqueologia de salvamento,
(1973) e Martins et al. (1978). podendo a contribuição ser colocada ao
nível dos primeiros trabalhos profissionais
executados em Santa Catarina“.
Os Sambaquis da Coube ao Prof. Bigarella a inclusão dos
Planície Costeira de Joinville sambaquis de Joinville (Cubatãozinho, Morro
do Ouro, Rio Velho I e Rio Velho II e n.° 42,
Há mais de 120 anos os sambaquis de este último trata-se provavelmente do Samba­
Joinville vem despertando o interesse de qui Guanabara I), em uma sistemática aborda­
estudiosos de diversas disciplinas. gem geológica e paleogeográfica que, iniciada
Atribui-se a Virchow (1872), Wiener (1876) em seus pioneiros estudos na década de 40 no
e Steinen (1887) a publicação dos primeiros Paraná, persiste até hoje como referencial ao
trabalhos nos quais sambaquis de Joinville estudo da correlação dos sambaquis e evolu­
são referenciados (Fettback, Krelling, Schroe- ção litorânea (Bigarella 1946, 1949; Bigarella et
ders Goldberg, Miranda e “Joinville”), ainda al. 1954; entre outros).
no final do Século XIX. Piazza (1966) pesquisou o Sambaqui
Gualberto (1908) descreveu no início do Espinheiros I em 1964, mesmo ano em que
Século XX um grande sambaqui “da lagôa do elabora um mapa intitulado “Área de Joinville
Saguassú” ao lado do qual existiria uma - Cadastro dos Sambaquis - Lei n.° 3.924”,
estação pré-histórica, fazendo referência ainda onde localiza sítios de difícil acesso e que
ao grande número de sambaquis da região: “só somente voltariam a ser “atualizadas cadas-
em S. Francisco nós podemos contar para tralmente” 36 anos depois.
mais de 150 sambaquis” e a outras estações à No início da década de 70, dentro do
margem do rio Pirabeiraba. Programa Nacional de Pesquisas Arqueológi­
Oliveira (1944) informou ter encontrado cas - PRONAPA, Piazza (1974) apresentou
vários sambaquis mas nenhum “além de 10 uma nova distribuição dos sítios arqueológi­
quilômetros no vale do Itapocu”, fazendo cos para o litoral norte catarinense, onde
referência aos “casqueiros” do rio Cachoeira classifica os sítios em três fases pré-cerâmicas,
citados por Backheuser (1918). segundo critérios “ecológicos e arqueológi­
Guilherme Augusto Emílio Tiburtius (1892- cos”. O autor denominou de Fase Saguaçu
1985) conheceu seu primeiro sambaqui em aquela referente a 2 sambaquis com predomi­
Matinhos (PR), no último ano da 2a. Grande nância de Modiulus brasiliensis, ambos

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OLIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo lógico-evolu tiva ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 77: 55-75, 2001.

situados na Ilha do Gado em Joinville, tendo do Município, com fins de subsidiar a preser­
os outros sambaquis do município recebido a vação do patrimônio. Este inventário básico é
classificação de Fase Acaraí. posteriormente utilizado para análises da
Em balanço sobre a produção científica da morfometria e distribuição dos sítios em
Arqueologia Pré-Colonial no litoral norte Joinville (Oliveira & Hoenicke 1994, Oliveira
catarinense, Bandeira (1997) informa que 1996a, 1996b).
Piazza, com a colaboração de Afonso Imhof, Hom Filho (1997) defendeu tese de
pesquisou em 1970 o Sambaqui Rio Comprido doutoramento sobre os aspectos geológicos,
(inédito). No final da década de 60, as Profa. ambientais e evolutivos da Ilha de São Fran­
Anamaria Beck, Gerusa Maria Duarte e Maria cisco do Sul e arredores. Sambaquis de
José Reis elaboraram pesquisas no Sambaqui Joinville são incluídos sob uma perspectiva
Morro do Ouro (Beck et al. 1969). geoevolutiva.
O Sambaqui Morro do Ouro foi novamente A Figura 2 apresenta a distribuição
escavado em 1979 pelos Profs. Marilandi espacial dos 42 sambaquis mapeados por
Goulart, Margarida Andreatta, Afonso Imhof e Oliveira (2000) na planície costeira de Joinville.
Guilherme Naue, no Projeto “Tecnologia e Quase 60% dos sambaquis possuem altura
Padrões de Subsistência de Grupos Pescado- igual ou inferior a 4m (Tabela 1) e mais de 70%
res-Coletores Pré-Históricos”, com financia­ possuem volume igual ou inferior a 7.992,80m3
mento da Prefeitura Municipal, que na época (Tabela 2).
construía a Ponte de Trabalhador (Goulart Quanto à composição malacológica dos
1980). sítios, verificou-se que Anomalocardia
De 1980 a 1989, o próprio MASJ, então por brasiliana não foi identificada tão somente na
iniciativa de seu diretor, Arqueólogo Afonso amostra coletada no Sambaqui Ponta das
Imhof, desenvolveu o Projeto “A Pré-História Palmas, enquanto Crassostrea rhizophorae
de Joinville: Coletores e Pescadores” (inédito), esteve ausente somente nas amostras coleta­
com escavações no Sambaqui Ilha dos Espi- " das nos sambaquis Espinheiros II, Morro do
nheiros II e Guanabara I (Alves 1997). Amaral III e Morro do Amaral IV. A distribui­
O DNPM publicou em 1988 o mapa ção espacial das espécies predominantes
Geológico do Quaternário Costeiro dos indicou que cerca de 64% dos sambaquis
Estados do Paraná e Santa Catarina, realizados apresentam amostras principalmente constituí­
pelos Prof. Louis Martin, Kenitiro Suguio, das por Anomalocardia brasiliana, enquanto
Jean-Marie Flexor e Antonio E.G. de Azevedo. que cerca de 34% apresentam amostras com
Na metodologia desenvolvida pelos autores, predominância de Crassostrea rhizophorae.
os sambaquis possuem importância como Cerâmica foi observada ou é citada em
indicadores das oscilações do NRM, sendo bibliografia nos sambaquis Rio Sambaqui,
que 18 sambaquis de Joinville foram por eles Cubatão I, Cubatãozinho, Ilha do Gado II, Ilha
estudados sob a perspectiva geológica dos Espinheiros III, Lagoa do Saguaçu, Ilha do
(Martin et al. 1988). Mel II e Rio Velho II. Esculturas (’’zoólitos”)
Entre 1991 e 1992, a Fundação Cultural de são citadas em bibliografia para os sambaquis
Joinville financiou o Projeto “Pesquisa de Cubatãozinho, Rio Comprido, Rio Velho I e
Salvamento no Sambaqui Espinheiros II”, Morro do Ouro. No Sambaqui Espinheiros II,
coordenados pelos Profs. Marisa Coutinho há registro de fibras vegetais trançadas que
Afonso, Paulo De Blasis e Levy Figuti, tendo também foram observadas no Sambaqui
subsidiado várias publicações (Afonso & De Cubatão I. Este último ainda apresenta “esta­
Blasis 1994, Afonso 1999, Figuti 1993, Figuti & cas” de madeira ao longo do perfil do sítio e ao
Klõkler 1996). longo da margem do rio, paralelo ao sítio.
Em 1994, o MASJ em parceria com o Para a compreensão da inserção fisio-
Instituto de Pesquisa e Planejamento de gráfica dos sambaquis, a planície costeira de
Joinville - IPPUJ promoveu o recadastramento Joinville foi classificada por Oliveira (2000)
e divulgação das informações sobre os sítios como costa sedimentar do tipo estuarina.
arqueológicos aos órgãos de gestão pública Identificaramu-se nove unidades geológicas

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O LIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. D e Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

_____________________ LJ---------1________________ Jã - . " ^ T ____ ___ ______


Figura 2 - Distribuição espacial dos sambaquis na planície costeira de Joinville (adaptado de Oliveira, 2000)

1 - Rio Pirabeiraba 15 - Rua Guaíra 29 - Ipiranga


2 - Rio Bucuriúma 16 - Ilha do Gado I 30 - Morro do Amaral IV
3 - Rio Ferreira 17 - Ilha do Gado III 31 - Lagoa do Saguaçu
4 - Rio das Ostras 18 - Ilha do Gado II 32 - Morro do Amaral I NM
5 - Rio Sambaqui 19 - Ilha do Gado IV 33 - Rio Velho I *
6 - Tiburtius 20 - Ilha dos Espinheiros III 34 - Morro do Amaral II
7 - Rio Fagundes 21 - Rio Comprido 35 - Ilha do Mel II
8 - Ribeirão do C ubatão 22 - Ilha dos Espinheiros IV 36 - Morro do Ouro
9 - Ponta das Palm as 23 - Espinheiros II 37 - Ilha do Mel III
1 0 -C u b a tã o II 24 - Gravata 38 - Rio Velho II
1 1 -C u b a tã o I 25 - Ilha dos Espinheiros I 39 - Ilha do Mel I
1 2 -C u b a tã o III 26 - Ilha dos Espinheiros II 40 - Guanabara II
1 3 -C u b a tã o IV 27 - Morro do Amaral III 41 - Rio Riacho 0 1 2 3 4 5 km
14 - Cubatãozinho 28 - Fazendinha 42 - Guanabara I esodagranca-piqeçaouTM

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OLIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição geoló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

TABELA 1 depósitos paludiais estuarinos holocê­


Freqüência da altura dos 42 sambaquis em Joinville nicos e depósitos eólicos do Holoceno
Ponto Freqüência Freqüência e do Pleistoceno.
Altura (m) Depósitos paleoestuarinos foram
médio absoluta relativa
identificados em altitudes inferiores a
1,00 1— 1 4,00 2,50 24 5 7 ,1 4
2,5m com maior concentração na região
4,00 — 1 7,00 5,50 5 11,90 ao sul do rio Cubatãozinho e ao norte
7,00 — 1 10,00 8,50 8 19,05 do rio Comprido, constatando-se
10,00 — 1 13,00 11,50 1 2,38 recorrente presença de bancos conchí­
13,00 — 1 16,00 14 ,5 0 1 2,38 feros naturais.
16,00 — 1 19,00 17,50 3 7,14 Os depósitos eólicos apresentam-se
na forma de cobertura pouco espessa
Fonte: O liveira (2000).
principalmente no conjunto de ilhas da
porção sudeste da área de estudo, em
__________________ TABELA2______________
sua maioria recobrindo depósitos
Freqüência da dimensão volumétrica (MDS)
dos 42 sambaquis em Joinville paleoestuarinos. Dois corpos sedimen­
tares na Ilha dos Espinheiros e outra
,r, 3 Ponto Freqüência Freqüência
o ume (m ) médio absoluta relativa área contínua na Ilha do Mel foram
classificados como depósitos eólicos
< 1.100,00 10 23,81 pleistocênicos.
1.100,00 1— 1 7.992,80 4 .5 4 6 ,4 0 20 4 7 ,6 3 Quanto ao substrato geológico dos
7.992,80 — 1 14.885,60 11.439,20 2 4,76 sambaquis, 14% dos sítios foram
14.885,60 — 1 21.7 7 8,40 18.332,00 3 7,14 edificados sobre o embasamento
21.7 7 8 ,4 0 — 1 2 8.671,20 25.224,80 3 7,14 cristalino, 12% sobre depósitos flúvio-
2 8.671,20 — 1 35.564,99 32.118,10 1 2,38 lagunares, 34% sobre depósitos de
> 35.564,99 3 7,14 leques aluviais e 40% dos sambaquis de
Joinville foram construídos sobre
Fonte: O liveira (2000). depósitos eólicos, sendo que nestes
Obs.: MDS - Maior dimensão observável em superfície. últimos há recorrente associação com
depósitos paleoestuarinos.
(Quadro 1) subdivididas em três grupos
principais, sendo o primeiro constituído pelo
Considerações evolutivas sobre o
Embasamento Cristalino Pré-Camhriano e
Quaternário Tardio na área de estudo
elúvios associados, praticamente representado
por associações litológicas (gnaisse granu-
lítico e gnaisse bandado) do Complexo Granu- Após a Transgressão Cananéia que teria
lítico. Verificou-se um sistema principal de alcançado o máximo de 8±2m há 120.000 anos
falhas e fraturas com orientação preferencial AP, ocorreu uma fase regressiva marinha até
N20-30W, influenciando a rede de drenagem. 17.500 anos AP (quando o nível relativo do
No Sistema Deposicional Continental mar - NRM encontrar-se-ia 120-130m abaixo do
identificaram-se depósitos coluviais, de leques atual, segundo Corrêa et al. 1996) resultante
aluviais e fluviais, atribuindo-se estes últimos da última glaciação. A emersão da área de
ao Holoceno e os demais ao Quaternário estudo deu-se a partir de uma sucessão de
Indiferenciado. Destacam-se os depósitos de depósitos marinhos praiais recobertos por
leques aluviais que ocorrem ao longo de toda depósitos eólicos que mesmo bastante
a área de estudo, constituindo-se na principal dissecados pela rede de drenagem, provavel­
cobertura sedimentar ao norte do rio Cubatão. mente não permitiu a individualização de
No Sistema Deposicional Transieional identifi­ corpos lagunares de grandes dimensões.
caram-se depósitos flúvio-lagunares holocêni- Remanescentes desta regressão foram
cos (restritos à desembocadura do rio Cuba­ mapeados como depósitos eólicos pleisto­
tão), depósitos paleoestuarinos holocênicos, cênicos na Ilha do Mel e na Ilha dos Espinhei-

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O LIVEIRA, M .S.C.; HORN FILHO, N.O . D e Guaratuba a Babitonga: uma contribuição geo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Rev. do M useu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

__________QUADRO 1__________
Coluna Estratigráfica Simplificada
Era Período/ Época Unidade G eológica Caracterização Lito-Sedim entológica
Depósito paludial Lamas ricas em matéria orgânica. Correspondem, de maneira geral,
estuarino às áreas ocupadas pelos manguezais.
Areias finas, bem selecionadas, de coloração esbranquiçada. Ocorrem
D epósito eólico na forma de lençóis de reduzida espessura, recobrindo principalmente
depósitos paleoestuarinos.
Sedimentos síltico-arenosos, pobremente selecionados, normalmente
D ep ósito
apresentando matéria orgânica. Apresentam-se na forma de terraços
flúvio-lagunar
com altitudes normalmente inferiores a 3m.
H o lo cen o
Q A reias e sedim en tos síltico -a rg ilo so s, com cores tendendo ao
c U D ep ósito cinzento-am arelado. Am pla ocorrência de bancos con ch íferos
E A paleoestuarino naturais. O b servam -se recorrentes afloram en tos de d ep ósitos
paleoestuarinos e bancos conchíferos naturais sotopostos por outras
N T
unidades geológicas superficiais.
O E
D epósito fluvial Sedimentos variando de argila à cascalhos, predominando lamas.
z R
Areias finas soltas ou semi-consolidadas (eventualmente formando
ó N
P leisto cen o piçarras), de coloração bruno-amarelada, normalmente apresentando
I Á Superior
D epósito eólico
minerais pesados. Afloramento na forma de terraços, com altitudes
c R normalmente superiores a 4,5m .
A I Areias e lamas resultantes de ação de processos gravitacionais de encosta
Quaternário D ep ósito
O Indiferenciado de leque aluvial e retrabalhamento fluvial. Os leques apresentam-se coalescidos.
Depósitos incoerentes (normalmente síltico-argilosos) que sofreram
D epósito coluvial deslocamento na vertente por efeito da gravidade. Inclui eventuais
depósitos de tálus.
Gnaisse granulítico com intercalações de rocha meta-ultramáfica e
Embasam ento anfibolito;
PRÉ-CENOZÓICA Gnaisse bandado com intercalações de quartzitos, formação ferrífera,
cristalino
rocha meta-ultramáfica e anfibolito;
Diques de diabásio.

Fonte: O liveira (2000).

ros. A datação (TL) de 20.950 ± 2.000 anos AP de 10.200 ±100 anos AP, a partir de fragmentos
para o depósito da Ilha dos Espinheiros é de madeira imersos em lentes de cascalho e
significativa na medida em que confirma o areia (camada 2), pouco abaixo de inconformi-.
caráter remanescente daqueles sedimentos, dade erosiva que separava uma seqüência
retrabalhados, em fase terminal de um longo inferior rudácea-arenácea (camada 3) de uma
período de clima mais seco e de denudação superior constituída por camadas síltico-
intensa. argilosas (camada 1). Bigarella et al. (1975)
A partir de 17.500 anos AP, a elevação do consideraram que aquela madeira representaria
NRM variou a taxas de 0,6 a 2,0cm/ano, a idade de transição entre o regime de drena­
influenciado por alterações abruptas de gem semi-árido e o úmido, e que a parte
temperatura, principalmente entre 13.000 e superior da camada 3 corresponderia ao limite
10.000 anos AP, período conhecido como entre o Pleistoceno e o Holoceno.
Última Deglaciação e que poderia demarcar a De maneira geral, esta transição entre as
transição do Pleistoceno para o Holoceno épocas do Quaternário foi marcada por um
(Ab’Saber 1980, Roberts 1998, Suguio 1999). evento paleoclimático denominado de Ótimo
Aproximadamente 20 km ao norte do Climático (Idade Hipsitérmica), quando a
centro de Joinville (fora da área de estudo), temperatura média no planeta teria sido de 1 a
Bigarella (1971) descreveu um terraço no rio 2 °C superior a atual, e que Suguio et al. (1985)
Pirabeiraba, onde obteve a idade radiométrica e Suguio (1999) associam à glacioeustasia cujo

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São Paulo, 77: 55-75, 2001.

principal efeito na maior parte do litoral distais dos depósitos de leques aluviais
brasileiro teria sido uma elevação do NRM com (incluindo depósitos fluviais dos cursos
ápice há aproximadamente 5.100 anos AP. inferiores das bacias dos rios Cubatão,
Para Bigarella (1954), a construção dos Cachoeira, Pirabeiraba e Canela), encontravam-
sambaquis está estreitamente ligada à fase final se submersos. A Figura 3 constitui uma
da máxima transgressão holocênica, já que tentativa de representar esta espacialidade.
grandes áreas foram inundadas permanecendo, Deve-se salientar que aproximadamente há
contudo, uma condição batimétrica favorável ao 500m ao sul do Sambaqui Rio Riacho fotointer-
desenvolvimento da população malacológica pretou-se uma sucessão de tênues alinhamen­
nos extensos baixios em formação. Ab’Saber tos W-E. Embora o reconhecimento em campo
(1980) afirmou que o “páleo-índio terminar do seja dificultado pelo uso atual do solo (reflo-
litoral paulista já estava “associado a uma restamento por pinus), tais feições são passí­
geografia costeira em que havia restingas e veis de corresponderem a cristas praiais
campos de dunas, muitas barras livres e muitas indicativas das prováveis linhas costeiras da
águas livres marinhas, mas não existia man­ paleobaía em sucessão regressiva a partir do
guezal”. Mais tarde, (Ab’Saber 1984) refere-se a máximo pós-glacial.
esta paisagem “como reflexos da Transgressão Considerando-se unicamente a altitude da
Flandriana e ou uma pequena fase de regres­ base dos sítios (excluindo-se a possibilidade
são pós-Flandriana". de movimentos verticais crustais neotectô-
Segundo a curva proposta para o litoral nicos), é possível afirmar que há 5.100 anos
catarinense por Martin et al. (1988), o NRM AP todos os sambaquis mapeados na área de
ultrapassou o nível atual pela primeira vez no estudo que eventualmente existissem, cuja
Holoceno há cerca de 6.500 anos AP, elevan- base se assentasse em altitudes inferiores a
do-se até o máximo pós-glacial de 3,5m (há 3,5m, teriam sido afogados total ou parcialmen­
5.100 anos AP). Este máximo da Transgressão te, implicando provável abandono temporário
Santos (anteriormente denominada Transgres­ ou definitivo dos sítios (Figura 4).
são Flandriana) invadiu o Canal do Palmital, Na planície costeira de Joinville, 6 samba­
que ainda mantém herança paisagística na quis (Rio das Ostras, Tiburtius, Ponta das
forma de ria. Palmas, Rua Guaira, Lagoa do Saguaçu e
Ainda sobre o Canal do Palmital, mencio- Morro do Ouro) edificados sobre embasa­
na-se a possibilidade apresentada por Angulo mento cristalino poderiam, em tese, ter sido
(1992) de que ainda no Quaternário este braço iniciados antes de 5.100 anos AP sem terem
norte da Baía da Babitonga fosse o curso sido posteriormente submetidos aos efeitos
médio/inferior do rio São João (PR). Com erosivos da transgressão marinha pós-glacial.
orientação inicial NW-SE na Serra do Mar, o Além destes seis sítios, somente dois outros
rio São João executa uma radical mudança de (Ribeirão do Cubatão e Guanabara I) tiveram
quase 90° (SW-NE) para desaguar no litoral seus substratos atribuídos a altitudes superio­
paranaense, na Baía de Guaratuba. Para res a 3,5m e somente três sítios (Ilha dos
Angulo (1992) o desvio do curso original do Espinheiros II e Ilha do Mel I e III) apresentam
rio São João pode ter sido ocasionado por altitudes com possível implantação sob condi­
sobreposição dos depósitos de encostas da ções especiais anteriores há 5.100 anos AP.
Serra do Quiriri, que interromperam sua Tais avaliações não significam necessaria­
possível drenagem para a Baía da Babitonga. mente que os sítios citados sejam contemporâ­
Quanto ao máximo da Transgressão neos ou constituam-se nos mais antigos de
Santos em Joinville, é possível ainda inferir Joinville, já que poderiam também ter sido
submersão e retrabalhamento da maior parte edificados em outros momentos após o máximo
dos depósitos pleistocênicos então remanes­ transgressivo pós-glacial (desde que as
centes da fase regressiva anterior. As áreas condições ambientais permitissem acesso a
hoje ocupadas por depósitos paludiais fontes de subsistência e de material construti­
estuarinos, eólicos holocênicos, paleoes- vo), então em fase de emersão da planície
tuarinos, flúvio-lagunares e as partes mais como conseqüência da regressão marinha.

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Figura 3 - Configuração espacial hipotética da paleobaía da Babitonga na planície costeira de Joinville,


em época próxima ao NRM máximo pós-glacial (aproximadamente há 5.100 anos AP).

Esta fase seguinte é descrita por Suguio et 4.000 - 3.800 e entre 3.000 - 2.700 anos AP.
al. (1985), Martin et al. (1988) e Hom Filho Para Angulo & Lessa (1997) e Lessa et al.
(1997) a partir de uma descida do NRM com (2000) o declínio do NRM a partir do máximo
duas oscilações secundárias de alta freqüência pós-glacial deu-se de maneira suave e gradual,
(Martin et al. 1999) aproximadamente entre sem tais oscilações de alta freqüência.

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Esta fase regressiva é a responsável mentar na região de desembocadura do rio


principal pela formação das atuais feições Cubatão.
geomorfológicas da planície costeira de O meandramento do rio Cubatão acen­
Joinville. A descida do NRM deve ter se tuou-se e seus sedimentos e migração lateral
processado a partir de um eixo geral NE-SW, ampliaram sua área de desembocadura, sendo
como sugere o alinhamento aparente da maior os atuais depósitos flúvio-lagunares herança
parte dos depósitos paleoestuarinos na deste processo. Em algumas áreas foi também
porção centro-sul da área de estudo. O possível identificar depósitos paleoestuarinos
promontório e península da região da Vila da (e bancos conchíferos naturais em áreas mais
Glória (município de São Francisco do Sul) restritas, observáveis atualmente em situação
certamente influenciaram o transporte sedi­ de baixa-mar) sotopostos por depósitos

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fluviais e flúvio-lagunares, representando a Nas ilhas principais da planície costeira


progressiva dissecação dos depósitos sedi- de Joinville a indisponibilidade de testemunhos
mentares da paleobaia pela ação fluvial. de sondagem dificulta perspectivas paleogeo-
O perfil topogeológico na Figura 5 apre­ gráficas em detalhe. Com base na descrição dos
senta simplificadamente uma associação afloramentos analisados (com recorrente
vertical entre os sambaquis Ribeirão do observação de depósitos paleoestuarinos
Cubatão, Cubatão I e Cubatão III, e as unida­ sotopostos por areias sedimentologicamente
des geológicas existentes nesta área. associadas ao ambiente eólico, em grande parte
Mesmo não havendo datações absolutas, da porção centro-sul e sul da área de estudo e
chama a atenção uma possível co-visibilidade onde não foram constatados depósitos mari­
entre os sítios, condição esta importante para nhos praiais típicos), tentativamente vislumbra­
as relações sociais daquelas populações pré- se que os depósitos identificados estejam
coloniais, caso os três sítios arqueológicos relacionados em sua geogênese ao modelo
estivessem sendo ocupados simultaneamente. barreira de estuário / bacia lamosa proposto por
O isolamento espacial (Oliveira 1996b), altura Woodroffe (1992).
(18m) e altitude do Sambaqui Ribeirão do No litoral paranaense, Angulo (1992)
Cubatão parecem remetê-lo ao conceito de propôs que a maior parte dos depósitos
landmark apresentado por Gaspar & De Blasis sedimentares das ilhas da Cotinga e Rasa da
(1992), Fish et al. (1997), entre outros. Cotinga (interior da Baía de Paranaguá) é
Na porção central da área de estudo, o conseqüência da descida do NRM quando
período regressivo no Holoceno Médio “extensas áreas de fundos rasos transforma­
(caracterizado por uma grande variabilidade do ram-se progressivamente em planícies de
clima e pela ocorrência de climas geralmente maré e áreas emersas”. Tal mecanismo pode
mais secos que o atual, relacionados a uma ser também concebido para parte do substrato
ainda fraca insolação do verão no hemisfério das ilhas do Gado e dos Espinheiros, e mesmo
sul, segundo Turq et al. 1999) da mesma para o Morro do Amaral e Ilha do Mel. Consi­
maneira permitiu uma intensificação nos derando a herança da área de estudo como
processos de denudação com avanço dos interior de estuário onde o afogamento de
leques aluviais sobre as margens paleoes- vales fluviais foi processo importante no
tuarinas então em recuo. desenvolvimento das morfologias ao longo do

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tempo, não se descarta que estes “fundos associados, sugerem uma “paleo-ilha” de
rasos” tenham deltas em sua origem, comuns sedimentos continentais ou fluviais onde
em estuário de micro e mesmo de meso marés inclusive poderiam ter sido edificados os
(Petchik 1984). sambaquis Espinheiros I e II (Piazza 1966),
Em uma primeira aproximação, é possível posteriormente dissecada por depósitos
conceber nesta fase de regressão marinha do paludiais estuarinos holocênicos, a exemplo
Holoceno Médio/Superior, a emersão gradual do que ocorre na região do Palmital.
de tais ilhas pela descida do NRM em proces­ A construção de sambaquis nesta fase
so de sedimentação acelerado pela influência estaria favorecida, embora haja dificuldade em
do embasamento cristalino, o qual funcionava especificar tal momento já que o mapeamento
como armadilha para os sedimentos elásticos do substrato dos sítios não incluiu técnicas
terrígenos alimentados pelo sistema de adequadas para excluir a possibilidade de que
drenagem Velho/Cachoeira/Comprido/Iririú, e nesta área os sambaquis tivessem sido
os provindos por ação eólica dos depósitos construídos diretamente sobre depósitos
pleistocênicos remanescentes das ilhas dos paleoestuarinos. Parece recorrente, no entan­
Espinheiros e do Mel, os quais não foram to, que a base inicial tenha se processado sob
afogados pelo último máximo pós-glacial há depósitos eólicos mais interiorizados e tendo
5.100 anos AP, embora submetidos a intensos havido posterior avanço dos sítios em direção
processos erosivos. aos depósitos paleoestuarinos herdados da
Neste sentido, menciona-se o modelo paleobaía.
evolutivo regional proposto por Horn Filho A distribuição dos sítios nestas áreas de
(1997), uma vez que mesmo havendo alteração maior influência marinha remete à concepção
na litologia e cronologia dos depósitos das de Bigarella (1954) sobre a evolução da
ilhas de Joinville em relação aos mapeamentos paisagem e a situação dos sambaquis sobre os
anteriores, a paleogeografia ora proposta bancos de sedimentos. Estes sambaquis
confirma a ausência de retrobarreira lagunar de edificados sobre depósitos eólicos possuem
idade pleistocênica na área de estudo. como principal característica paleogeográfica
A granulometria dos depósitos mapeados uma espacialidade controlada pela morfologia
nas ilhas indica retrabalhamento eólico dos dos depósitos em relação aos paleoníveis da
sedimentos disponibilizados pelo sistema preamar e da baixa-mar, onde há época prolife­
regressivo (em cujas fontes devem ser incluí­ ravam bancos de moluscos. A configuração
dos os terraços pleistocênicos ao sul da área atual da distribuição dos sítios no limite entre
de estudo, no município de Araquari). Nesta depósitos eólicos e depósitos paludiais
condição de progradação da planície, barras, estuarinos, à época de edificação inicial dos
tômbolos e esporões orientados pela deriva sítios representaria (grosso modo) o limite
(possivelmente de sul para norte) devem ter entre os terraços arenosos e prováveis dunas
permitido ligações físicas (efêmeras ou não) incipientes com bancos areno-argilosos e
entre as ilhas. baixios síltico-argilosos da zona inter-marés da
As atuais “lagoas” do Saguaçu e do paleobaía.
Varador poderiam funcionar como estuários A altitude (3,5m) da provável base inicial
“cegos”, similarmente ao que ocorre com a sobre a qual teria sido construído o Sambaqui
Lagoinha do Leste, na Ilha de Santa Catarina Ilha dos Espinheiros II (próxima a depósitos
(Horn Filho et al. 1999). Entre estas ilhas e o pleistocênicos), bem como a datação mais
“continente” joinvilense, em pelo menos duas antiga disponível para o sítio (3.015+130 anos
áreas possíveis conexões estariam favoreci­ AP), sugerem que o mesmo represente a fase
das: a principal delas na região dos morrotes e inicial de ocupação da Ilha dos Espinheiros,
leques aluviais associados ao sistema de embora por critérios exclusivamente topográfi­
drenagem Santinho/Velho (ao sul da Lagoa do cos todos os sambaquis da ilha teriam condi­
Saguaçu), e uma possível ligação na região ções de serem construídos a partir de 3.600
dos Espinheiros, onde a presença de aflora­ anos AP, quando o NRM permitiria que suas
mentos do embasamento cristalino e depósitos bases inferidas pudessem estar emersas.

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Na região do Morro do Amaral, à época de Supõe-se que a continuidade da regressão


edificação inicial dos sambaquis Morro do marinha e ativação da sedimentação fluvial
Amaral I e II e do Sambaqui Rio Riacho, teria gradualmente permitiram o desenvolvimento de
havido condições para a existência de um manguezais sobre os bancos e baixios, estimu­
paleocanal entre a Lagoa do Saguaçu e o canal lando os sambaquianos à conquista de novos
do Ipiranga (onde atualmente observa-se o Rio territórios menos paludosos, então em emersão
Riacho e manguezais associados), significando na porção centro e sul da área de estudo.
uma hidrodinâmica favorável a uma ligação por Como tratado anteriormente, Angulo
depósitos arenosos menos efêmeros entre a (1992) concluiu que durante o máximo da
Ilha do Mel e o Morro do Amaral, em situação Transgressão Santos, a paleobaía de Guara­
de inexistência ou insipiência do Canal do tuba avançava no vale do rio São João,
Ipiranga. Esta deposição arenosa provavel­ formando junto com o rio Cubatãozinho (PR)
mente teria geogênese relacionada a remanes­ um eixo transversal à atual Baía de Guaratuba.
centes dos terraços pleistocênicos, hoje Martin et al. (1988) identificaram extensos
inexistentes nas áreas circunvizinhas ao Canal depósitos de sedimentos holocênicos poden­
do Ipiranga na área de estudo. do conter conchas de moluscos ao longo do
A partir de 2.500 anos AP, Hom Filho (1997) curso inferior do rio São João. Reitera-se
atribuiu o início da deposição intensa de também a alteração radical do curso do rio São
sedimentos paludiais em ambientes de baixa João a partir de um “cotovelo de falha”
energia que permitiram a formação de mangue­ (Bigarella et al. 1961), sendo que Angulo
zais. A individualização das ilhas do Gado e dos (1992) não descartou a possibilidade de que o
Espinheiros e das ilhotas do Canal do Palmital referido rio drenasse para a paleobaía da
está relacionada a esta última fase regressiva, Babitonga através do que hoje corresponde ao
também caracterizada pela ampliação da disse­ Canal do Palmital.
cação da rede fluvial sobre os depósitos Hom Filho (1997) cartografou amplo
paleoestuarinos e flúvio-lagunares como é afogamento do Canal do Palmital durante o
observado nos rios Iririú-Guaçu e Cubatão- máximo holocênico, evidenciando depósitos
zinho, respectivamente, além da esculturação estuarinos (correspondentes a depósitos
das planícies de maré pelos canais de maré paleoestuarinos) atualmente existentes como
existentes ao longo da área de estudo. resultado da regressão pós-glacial, na maior
parte da margem esquerda do Canal do Palmital.
A região entre o rio São João (PR) e o
A paisagem como herança: Canal do Palmital (SC) teria, portanto, condi­
Eixo São João / Palmital ções de oferecer em época holocênica caracte­
rísticas fisiográficas favoráveis ao desloca­
As considerações preliminares efetuadas mento de populações sambaquianas entre as
sobre alguns aspectos da evolução geológica e baías de Guaratuba e Babitonga, justificando
paleogeográfica da planície costeira de Joinville as possibilidades anteriormente levantadas
indicam que o sentido geral de regressão sobre o Canal do Palmital como área emissora
marinha após o máximo pós-glacial teria se inicial para a expansão da produção do territó­
processado preferencialmente a partir de um eixo rio “joinvilense” pelo Homem do Sambaqui.
principal geral N-S/O-E, e na porção sul da área Neves (1988) e Neves & Blum (1998)
de estudo uma tendência S-N/O-E (Figura 6). concluíram que os sambaquianos do Paraná e
Sobressai nesta tendência a possibilidade os do norte de Santa Catarina formariam um
de que o desenvolvimento das planícies de “bolsão” biológico, ou seja, haveria uma
marés com seus extensos bancos arenosos e homogeneidade genética entre aquelas socieda­
síltico-argilosos propensos ao desenvolvimen­ des, justificando tal similaridade por uma
to de bancos de moluscos tenha da mesma “lógica geográfica'” diante da contigüidade
forma se processado, sugerindo áreas prefe­ espacial das planícies costeiras “que realmente
renciais para ocupação antrópica no mesmo poderia ter facilitado a troca gênica entre os
sentido. grupos humanos” (Neves & Blum op. cit.).

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Figura 6 - Direção hipotética regressiva preferencial da linha de costa após o máximo transgressivo pós-glacial na
planície costeira de Joinville (Oliveira 2000).

A Figura 7 apresenta esta rota “facilitado- OceanoAtlântico, sendo que o vale do rio Saí­
ra de troca gênica”, denominada aqui de Eixo Guaçu (embora com alteração de curso médio e
São João / Palmital, o qual é sugerido comple- inferior durante o Holoceno), poderia ter
mentarmente à mais óbvia rota ao longo do servido de elo entre os dois eixos principais.

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Figura 7 - Mapa geológico sim plificado da planície costeira entre a Baía de Guaratuba (PR) e o norte da Baía da
Babitonga (SC ), com ênfase a uma possível rota (Eixo São João / Palmital) para deslocamento de populações
sambaquianas entre estes dois com plexos estuarinos do litoral sul-brasileiro. O percurso “foz do rio São João (PR),
Garuva, foz do rio Cubatão (SC )”, é inferior a 40km. Figura produzida a partir da sobreposição dos mapas em
escala 1:200.000 produzidos por Martin et. al. (7988) e informações de ROHR (1984), os quais subsidiaram a
indicação dos sambaquis, com exceção àqueles em território joinvilense.

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No que se refere à cronologia de desloca­ duras. No posterior período regressivo, o rio


mento, fundamental informação para o eixo Saí-Mirim teve sua desembocadura progressi­
proposto são as datações efetuadas por vamente deslocada para norte, até atingir sua
Martin et al. (1988) para o Sambaqui Saí-Guaçu posição atual.
(n.° 1) que em coleta de superfície apresentou Por outro lado, como segunda rota
5.040+210 anos AP e, principalmente, o possível para a ocupação inicial da Ilha de São
Sambaqui Palmital (n.° 2, no mapeamento dos Francisco do Sul, o intervalo de tempo entre as
referidos autores), cuja amostra da base foi datações dos sambaquis Palmital, Rio Pinhei­
datada em 5.420+230 anos AP, este último ros/8 e Forte Marechal Luz (superior a 1.000
correspondendo ao registro mais antigo até anos), permite também supor que a migração
agora disponível para todo o litoral catari­ poderia ter sido iniciada a partir da planície
nense. costeira de Joinville, servindo-se então de
Na Figura 8 são indicadas as datações eventual estreitamento no paleocanal do
disponíveis para o litoral norte catarinense. Linguado.
Estas poucas datações sugerem tendência de Considerações finais
ocupação norte-sul. As datações referentes Não obstante estar limitada pela escassez
aos sambaquis Forte Marechal Luz, 59, de datações absolutas ou análises geológicas
Conquista/B e Rio Pinheiros/8 permitem em detalhe, a perspectiva evolutiva que se
conceber pelo menos duas rotas para ocupa­ apresenta para a planície costeira de Joinville
ção inicial da Ilha de São Francisco do Sul. sugere os sambaquianos como uma sociedade
A primeira delas corresponderia a um altamente especializada no ambiente do
percurso pela faixa litorânea de Itapoá, cujo interior do Complexo Estuarino da Babitonga,
limite extremo sul (Figueira do Pontal) é coexistindo com extensos bancos arenosos e
separado da região de Capri na Ilha de São baixios síltico-argilosos, que devem ter
Francisco do Sul, atualmente, por um canal de orientado as ocupações iniciais dos samba­
profundidades máximas de lOm e extensão quis. Por este prisma, as últimas gerações
inferior a 2km (Kinak et al. 1999). sambaquianas possuíam práticas espaciais
Aquele canal seria uma limitação fisiográ- diferenciadas de seus antecessores “joinvi-
fica teoricamente transponível pelo Homem do lenses”, onde a intensificação dos bosques de
Sambaqui. Hom Filho (1997) destacou que manguezais é processo importante a ser
desde o Holoceno até hoje, na região norte da considerado.
Ilha de São Francisco do Sul, na interface baía/ Finalmente, considera-se oportuno que
oceano, tem sido recorrente a formação de seja retomada a pesquisa arqueológica nas
esporões arenosos devido à dinâmica das bacias do rio Piraí (afluente do rio Itapocu),
correntes de maré e atuação das ondas e dos onde há registros de sítios arqueológicos
ventos. Não obstante, deve-se destacar que por aparentemente diferenciados em relação aos
volta de 5.000 anos AP, o NRM encontrava-se sambaquis aqui mapeados (ora denominados
alto e as características do canal certamente de sambaquis fluviais, ora de jazidas paleoet-
estariam modificadas (Hom Filho op. cit.). nográficas; atribuídos aos Tupiguarani ou à
Na planície costeira de Itapoá, Souza et al. Tradição Itararé), que potencialmente podem
(1999) identificaram que no máximo da trans­ indicar área de transição mais recente entre as
gressão holocênica existiam também esporões ocupações planalto/litoral, ou território
ou ilhas-barreira ao norte e ao sul de Itapoá e, cronologicamente associado à tendência
ao norte, pelo menos três grandes desemboca­ norte-sul mais antiga.

70
O LIVEIRA, M .S.C .; HORN FILHO, N.O. De Guaratuba a Babitonga: uma contribuição g eo ló g ico -ev o lu tiv a ao
estudo da espacialidade dos sambaquianos no litoral norte catarinense. Re v. do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 55-75, 2001.

Datação mais antiga


Sambaqui Referência
(anos AP)

Saí-Guaçu 5.040+210 Martin et al. (1988)


Palmital 5.420+230 Martin et al. (1988)
Forte Marechal Luz 4.290+130 Bryan1 apud Bandeira (1997)
Rio Comprido 4.815+130 Prous & Piazza (1977)
Espinheiros II 2.970+60 Afonso & De Blasis (1994)
Ilha dos Espinheiros II 3.015+130 MASJ"
Morro do Ouro 4.030+40 MASS
Guanabara II 2.350+120 MASS
59 3.850+200 Martin et al. (1988)
Linguado/B 2.830 Prous & Piazza (1977)
Linguado/A 2.590 Prous & Piazza (1977)
Conquista/B 4.070 Prous & Piazza (1977)
Rio Pinheiros/8 4.580 Prous & Piazza (1977)
Rio Perequê/53 2.760+180 Martin et al. (1988)

1 Bryan, A. L. (1993) The Sambaqui o f Forte Marechal Luz, State o f Santa Catarina, Brazil Brazilian
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2 Conforme cópia de resultado de análise radiomètrica elaborada por iniciativa de Afonso Imhof
e de Walter Alves Neves.

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evolutionary contribution to the study of the spatial distribution of the shell
mound builders on the northern coast o f Santa Catarina. Rev. do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 55-75, 2001.

ABSTRACT: The paper presents a geologic-evolutionary approach to the


shell mound along the coastal plain of Joinville, whose results indicate a
possible route for the displacement of the shell mound builders between the
Paraná southern coast and the Santa Catarina northern coast. The paleogeo-
graphic model proposed and the absolute dating of the shell mounds curren­
tly available converge on the Palmital Channel as the region where the
occupation of Joinville by those fishers-gatherers first started.

UNITERMS: Shell mounds - Joinville coastal plain - Paleogeography -


Coastal Quaternary.

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REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE A QUESTÃO


DA VIOLÊNCIA EM POPULAÇÕES CONSTRUTORAS
DE SAMBAQUIS: ANÁLISE DOS SÍTIOS
CABEÇUDA (SC) E ARAPUAN (RJ)

Andrea Lessa*
João Cabral de M edeiros**

LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. Reflexões preliminares sobre a questão da violência em
populações construtoras de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan
(RJ). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 77-93, 2001.

RESUMO: O presente estudo teve como objetivo testar a hipótese preli­


minar de que os grupos construtores de sambaquis do litoral brasileiro, de
uma forma geral, não praticavam a violência física de forma recorrente. Foram
analisados 62 crânios provenientes do Sambaqui de Cabeçuda (SC) e 11
esqueletos do Sambaqui de Arapuan (RJ), buscando-se identificar as típicas
lesões associadas a episódios de violência. Também foi realizada uma revisão
bibliográfica sobre o tema, para populações litorâneas anteriormente estuda­
das, incluindo-se aí os dados relativos às lesões traumáticas pós-cranianas
observadas na amostra de Cabeçuda. As baixas prevalências observadas em
todas as amostras, ou a sua ausência (4,8% para o sambaqui de Cabeçuda e
0% para o sambaqui de Arapuan, por exemplo) confirmam a hipótese formu­
lada. Os resultados observados podem ser interpretados a partir de fatores
sócio-culturais, econômicos e ambientais, ou ainda de ordem metodológica.

UNITERMOS: Paleopatologia - Traumas agudos - Violência - Sam­


baqui.

Introdução acabou por inseri-la como uma das principais


preocupações no campo da saúde coletiva em
O notório crescimento da violência nas todo o mundo.
grandes metrópoles, tanto em países desenvol­ Este destaque, no entanto, não tem sido
vidos como em vias de desenvolvimento, dado apenas para estudos clínicos epidemio­
lógicos, mas também para estudos de violência
entre populações pré-históricas, principalmen­
te entre pesquisadores norte-americanos, os
(*) ENSP / FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisado­
ra Visitante. quais têm avançado no desenvolvimento
(**) ENSP / FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ. Aluno de teórico-metodológico para a sua identificação
E sp ecialização. em material arqueológico.

77
LE SSA A.; M EDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
— ^ 7 93 2 0 0 ? ° S SltK CabeÇUda (SC) C AraPuan (RJ)- R ev• do Museu de A rqueologia e Etnologia, São

No Brasil, entretanto, os estudos paleo- Com base nestas evidências, ainda


patológicos voltados para a violência ainda bastante frágeis, foi formulada uma hipótese
são raros, apesar de representarem uma preliminar de que os grupos construtores de
importante ferramenta para a verificação de sambaquis, de uma forma geral, não estavam
hipóteses sobre o modo de vida e organização envolvidos em atividades, ou não possuíam
social entre as sociedades pré-históricas. condutas, onde a violência física fosse um
Devido à importância de uma abordagem fenômeno recorrente.
paleoepidemiológica, a partir de amostras Para testar esta hipótese foram analisadas
numericamente representativas, os sítios do amostras de duas coleções esqueletais
tipo sambaqui, localizados no litoral sul/ alojadas no setor de Antropologia Biológica
sudeste do Brasil, constituem-se potencial­ do Museu Nacional do Rio de Janeiro: o
mente informativos para o estudo da violência. sambaqui de Cabeçuda (SC) e o sambaqui de
Embora existam outros tipos de sítios litorâne­ Arapuan (RJ), buscando-se identificar as
os na costa brasileira, como os acampamentos típicas lesões associadas à violência. Também
litorâneos, os sambaquis formam a grande foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o
maioria dos sítios conhecidos e estudados. tema para populações construtoras de sam­
Apesar do grande número de escavações baquis anteriormente estudadas.
sistemáticas nos sambaquis brasileiros, com Ainda que os resultados obtidos neste
muitos deles apresentando amostras esque- estudo representem uma primeira aproximação ao
letais representativas, pouquíssimos estudos tema, não devendo ser generalizados, a distância
voltados para as condições patológicas foram espacial e temporal entre as duas ocupações
desenvolvidos até o momento com o material permite uma visão menos restrita do fenômeno.
proveniente destes sítios, podendo ser citados Estudos posteriores deverão aprofundar o nível
os trabalhos de Neves (1984) sobre osteoar- das inferências a partir da análise de amostras
trites; Mendonça de Souza (1999) sobre mais representativas, agrupadas segundo uma
anemia e adaptabilidade; além de Ferigolo contextualização geográfica e cultural mais
(1987); Machado (1992); Mendonça de Souza específica, ajudando assim a construir um quadro
(1995); Silva & Mendonça de Souza (1999); mais consistente sobre o fenômeno de violência
Machado e Sene (2001); e Storto et al. (1999), entre populações construtoras de sambaquis.
sobre um conjunto mais amplo de patologias
ósseas.
Nestes últimos estudos fica evidente uma Contextualização
baixíssima prevalência, ou sua ausência, para
traumas agudos, sejam eles associados a Neste estudo, estão sendo considerados
episódios de violência ou a acidentes relativos sambaquis, especificamente, os sítios caracte­
a atividades cotidianas. Por outro lado, na rizados por depósitos homogêneos, nos quais
importante síntese realizada por Prous (1992) as conchas estão bem distribuídas em superfí­
sobre arqueologia brasileira, o autor admite cie e profundidade, formando a quase totalida­
desconhecer o registro de esqueletos apresen­ de da massa sedimentar. Estes sambaquis
tando pontas de flechas encravadas nos ossos stricto sensu distinguem-se, portanto, de sítios
em populações sambaquianas, sinal inequívo­ rasos cujas lentes de conchas estão dispersas
co de violência e normalmente apontado pelos no meio de uma matriz sedimentar composta
pesquisadores devido a sua raridade. O mesmo por elementos minerais, os quais foram
não acontece com outros tipos de sítios, como classificados como acampamentos litorâneos
os acampamentos litorâneos da Tapera - SC ou sítios paleoetnográficos. Apesar de as
(Silva et al. 1990), Itacoara - SC (Tiburtius, datações indicarem que os acampamentos
Bigarella & Bigarella 1951) e Alecrim II - SP litorâneos mais antigos foram contemporâneos
(Sakai 1981), nos quais, apesar de não terem dos sambaquis, sua distinta morfología -
sido realizadas análises paleopatológicas, foi admitida como uma das principais característi­
observada e descrita a situação acima mencio­ cas unificadoras - sugere tratarem-se de
nada. unidades culturais distintas (Prous 1992).

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC ) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

Os sistemas de construção dos sambaquis formando uma unidade geral que seria o
resultam na criação de um espaço tridimen­ reflexo não somente de um mesmo contexto
sional onde o volume que estes sítios podem ecológico, mas provavelmente também de um
alcançar é um aspecto marcante e intencional: mesmo tipo de organização social.
não poderiam jamais representar, simplesmen­
te, restos de lixo casualmente acumulados.
Teorias mais recentes propõem que os samba­ Sambaqui de Cabeçuda/SC:
quis constituem verdadeiros marcos espaciais litoral meridional do Brasil
e/ou territoriais - certamente imbuídos de uma
carga simbólica significativa - com grande O litoral meridional do Brasil é constituído
visibilidade e destaque na paisagem. Sua por extensas planícies litorâneas, cortadas
implantação, distribuição e os materiais que o ocasionalmente por prolongamentos da serra
compõem teriam sido deliberadamente ali do mar, estuários de rios que deságuam no
depositados como resultado de ações perti­ Oceano Atlântico, manguezais e lagunas
nentes ao sistema sócio-cultural em questão represadas pelos espigões das restingas, o
(Gaspar & De Blasis 1992, Gaspar et al. 1994). que torna essa região extremamente abundante
Esses grupos litorâneos apresentam uma em alimentos (Prous 1992).
certa unidade em razão da adaptação a um O sambaqui de Cabeçuda foi um dos
meio ambiente muito particular e do aparente maiores do Brasil, com 53.000 m2, localizándo­
isolamento em relação às terras interioranas, se entre as lagunas de Santo Antonio dos
das quais são separados por uma barreira Anjos e Imaruí, no município de Laguna,
montanhosa quase contínua, formada pela Estado de Santa Catarina. Até 1928, este sítio
Serra do Mar. Em conseqüência de uma encontrava-se praticamente intacto, mas a
geologia e de uma ecologia homogêneas, a posterior e contínua exploração do seu
economia e a tecnologia básicas evidenciam material conchífero para fabricação de cal e
numerosos pontos de convergência, o que não como material de aterro, ocasionou uma grande
impede que fácies culturais diversas tenham se destruição. Apenas a sua porção central,
desenvolvido no espaço e no tempo (Prous medindo 20 metros de altura, permanecia
1992). intacta no momento em que se iniciou sua
São marcantes, entretanto, os indícios de escavação, em 1951 (Castro Faria 1955, 1999).
uma unidade ideológica simbolizada pela Uma datação radiocarbônica obtida entre
presença peculiar de zoolitos bastante elabora­ dois e três metros de profundidade, coincidindo
das. Prous (1972) realizou um estudo minucio­ com a primeira concentração de esqueletos,
so sobre 166 esculturas, representando quase forneceu idade de 4.120 ± 220 AP (Putzer 1957).
o total de peças recuperadas. Essas peças A sua estrutura estratigráfica mostrava
foram encontradas em sambaquis localizados conchas limpas de bivalves (Anomalocardia
desde o Estado de São Paulo até o Rio Grande brasiliensis), lentes contendo ossos de peixe,
do Sul, e foram confeccionadas em rocha dura principalmente bagres e miraguaias, ossos de
e local, mostrando que os zoolitos foram aves e de pequenos mamíferos, carvões e
fabricados na mesma região em que foram pequenos blocos de granito e diabásio. Além
encontrados. Sua morfología, além da repre­ das fogueiras há, também, fogões bem cons­
sentação zoomorfa, apresenta outra caracterís­ truídos, com pedras, mostrando espessas
tica uniforme: a presença de uma cavidade com lentes de carvão, que indicam o uso daquele
aparência de recipiente. sítio como habitação e com uma ocupação
O autor conclui que, apesar de se tratar do prolongada. A relação de objetos encontrados
primeiro estudo sobre o tema, tudo indica que inclui partes de artefatos para pesca e caça,
os zoolitos estudados não tinham uma função tais como pontas em osso, arpões e anzóis;
utilitária, mas possivelmente, uma razão social. objetos para moagem, quebra ou trituração
Apesar de serem percebidas variações regio­ como quebra-cocos, almofarizes e batedores;
nais, destaca-se a grande extensão (mais de além de grandes blocos de pedra cortados em
1300 Km) do litoral onde são encontrados, diabásio (Castro Faria 1955).

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 77-93, 2001.

Com relação aos sepultamentos, os Devido a processos tafonômicos, os


primários se encontravam logo abaixo da esqueletos recuperados nos sítios não foram
superfície, cerca de 30 cm de profundidade, considerados apropriados para datação. A
sucedendo-se às dezenas. A distribuição cronologia relativa foi estabelecida com base
estratigráfica dos achados confirma que os nos trabalhos de Herédia, no sambaqui de
sepultamentos concentravam-se em dois Amorins, datado de 3530±30 AP (Bezerra
conjuntos de maior densidade, respectivamen­ 1995).
te entre dois e três metros de profundidade, e A fauna encontrada assemelha-se às
entre seis e oito metros de profundidade demais dos sambaquis da região, havendo
(Castro Faria 1955). predomínio das bivalves Anomalocardia
A morfologia dos esqueletos não apresen­ brasiliana e Lucina pectinata. A fauna
ta mudanças significativas, levando a que se ictiológica está representada por espinhas,
tenha trabalhado, até o momento, com a mandíbulas e otólitos, bem como por placas
hipótese de continuidade biológica, ou seja, mastigadoras, placas faringeanas e dentes de
de que o sítio tenha sido ocupado por um seláqueos trabalhados ou não. A fauna
único grupo humano (Mendonça de Souza terrestre não foi identificada.
1995). A coleção de esqueletos humanos que O material cultural coletado foi classificado
constitui o acervo do sambaqui de Cabeçuda como adornos pessoais, confeccionados de
apresenta-se em diferentes condições de vértebras; armas fabricadas a partir de frag­
preservação, em função das condições de mentos rochosos e seixos rolados; fogueiras;
inumação, da pressão das camadas superiores, e utensílios líticos, como almofarizes, percu­
das variações das condições microambientais tores, quebra-cocos, raspadores e cortadores
devido à pluviosidade, acidez e variações confeccionados com material malacológico
térmicas, e do seu acondicionamento na (Bezerral995).
reserva técnica (Mendonça de Souza 1990,
1995).
Fundamentação teórica

Identificação dos marcadores de violência


Sambaqui de Arapuan/RJ:
litoral central do Brasil
A identificação dos marcadores de
violência tem sido realizada com relativa
O litoral central do Brasil é caracterizado facilidade através de indicadores específicos,
por duas formações, uma delas identificada sugeridos a partir de estudos epidemiológicos
como o litoral das restingas, lagunas, e clínicos e em material arqueológico, tais como
baixadas, que ocupa o trecho do litoral norte as fraturas em depressão no crânio; fraturas na
de São Paulo até Cabo Frio. Nele, as restingas face, principalmente dos ossos nasais; as
ou cordões litorâneos são extensos, fechando fraturas nos terços médios e distais dos
ou isolando braços de mar que vão formar cubitos; e a presença de pontas de projétil
lagunas. Para o interior, a planície é constituída encravadas nos ossos (Steinbock 1976, Ortner
por baixadas, entre as quais a mais extensa é a & Putschar 1985, Merbs 1989, Walker 1989;
baixada da Guanabara, que antecede a Serra do Lessa 1999).
Mar, disposta paralelamente à costa (IBGE Estes indicadores, apesar de serem
1977:4-10). específicos, não são oS únicos, pois outros
O sambaqui de Arapuan está situado tipos de fraturas, como as fraturas no tórax,
neste trecho, em região alagadiça, entre o Rio podem eventualmente ser associadas a golpes,
Guapi e o Canal de Caioba, no Município de considerando-se as interpretações biome­
Guapimirim, no Recôncavo da Baía de Guana­ cánicas, o contexto cultural e a observação de
bara, Estado do Rio de Janeiro. Possui uma uma alta prevalência das lesões acima relacio­
área circular de 2000 metros quadrados e 4,5 nadas.
metros de altura, e seu estado de conservação Apesar de pouco comum no registro
é considerado regular (São Pedro 1999). arqueológico, também são considerados sinais

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

de violência os traumas provocados por articula com os metacarpos, e em caso de


decapitação, escalpo, canibalismo e desmem­ queda e tentativa de sustentação do corpo
bramento. receberia a maior parte da força de impacto,
Nas sociedades modernas, um grande provocando uma fratura na articulação ou na
número de fraturas de crânio está relacionado diáfise.
com acidentes, principalmente automobilísti­ As pontas de projétil, por sua vez, têm
cos, ainda que predominem as causas relacio­ sido regularmente associadas a episódios de
nadas à violência, principalmente entre os 15 e violência (Jurmain 1991, Lambert 1997, Walker
50 anos (Gurdjian 1973). Entre as populações 1997, Smith 1997, Maschner 1997, Keeley
pré-históricas, a agressão interpessoal também 1997). A localização e a trajetória de penetra­
tem sido apontada como a principal causa das ção do projétil podem informar sobre a estraté­
fraturas de crânio (Walker 1989, Wilkinson gia de ataque, indicando fuga da vítima ou
1997, Martin 1997, Lambert, 1997, Robb 1997 emboscada quando a penetração ocorreu pela
Smith 1997), ainda que acidentes pudessem parte posterior do corpo ou ainda de cima para
ocorrer com relativa freqüência, principalmente baixo, e indicando um ataque frontal quando a
entre grupos que ocupavam ambientes com penetração ocorreu pela parte anterior do
relevo irregular ou montanhoso, ou que corpo, considerando que a vítima estava em pé
tivessem práticas culturais que incluíssem as (Lessal999).
escaladas regulares e a incursão em terrenos A menos que o grupo em questão tenha
perigosos. sido vítima de um massacre generalizado, as
Estudos clínicos epidemiológicos indicam lesões ocasionadas por agressões físicas
que, de uma forma geral, a cabeça e o pescoço devem apresentar um padrão sexual e etário,
são as regiões mais atingidas durante lutas e dependendo sempre da situação que motivou
agressões interpessoais, podendo haver uma a atitude agressiva.
considerável variação relacionada ao contexto
sócio-cultural de onde emergiu o conflito. Sob
o ponto de vista estratégico, a cabeça e Metodologia
especialmente a face, são alvos atrativos
porque o ferimento pode ser muito doloroso, O presente estudo teve como objetivo
imobilizando temporariamente a vítima. Por testar a hipótese de que, de uma forma geral, o
outro lado, os ferimentos nestas regiões modo de vida dos grupos construtores de
provocam sangramento e hematomas aparen­ sambaquis não envolvia comportamentos
tes, os quais atuariam como símbolo visível da violentos recorrentes.
dominação do agressor (Walker 1997). Para testar esta hipótese preliminar, foram
As fraturas de face, geralmente provo­ analisados 62 crânios provenientes do samba-
cadas por esmagamento, podem ser associa­ qui de Cabeçuda e 11 esqueletos provenientes
das à violência principalmente quando o do sambaqui de Arapuã, buscando-se identifi­
indivíduo não apresenta outras fraturas car os típicos sinais de agressão física, além de
ocasionadas por queda acidental, uma vez que outros tipos de traumas agudos. Os autores
dificilmente este tipo de acidente provocaria mantêm como fundamento metodológico a
apenas uma lesão nos nasais ou na maxila, desconsideração das lesões peri-mortem, que
regiões de menor probabilidade de impacto não apresentam sinais de remodelação óssea, e
(Lessa 1999). portanto apresentam diagnóstico inseguro. De
As fraturas nos terços médio e distal nos qualquer forma, não foram observadas lesões
cubitos, denominadas de fraturas de “parry”, deste tipo nas amostras estudadas.
têm sido atribuídas à elevação do antebraço Também foram considerados os resultados
em defesa de um golpe (Ortner & Putschar obtidos para estudos de traumas agudos em
1985, Merbs 1989, Jurmain 1991, Webb 1995). amostras anteriormente analisadas, além do
A ausência de fratura no rádio homolateral registro de esqueletos com pontas de flecha
descarta a possibilidade de fratura ocasionada encravadas nos ossos, verificados através de
por queda, uma vez que este osso é o que se revisão bibliográfica.

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

Apenas indivíduos adultos foram analisa­ possível estimar a idade e sexo dos indivíduos,
dos, admitindo-se que a expressão da violên­ uma vez que se apresentavam incompletos e
cia sobre crianças e adolescentes só seria muito fragmentados. Apesar de o seu estado
observada em casos muito específicos de de conservação não ser considerado ideal para
violência doméstica contra estes segmentos, análise, esta amostra foi incluída porque
ou em caso de guerra ou massacre. nenhum estudo paleopatológico havia sido
A observação de outros tipos de traumas realizado sobre a sua totalidade, e porque o
agudos foi realizada porque, além dos sinais caráter preliminar deste estudo permite a
típicos, algumas fraturas primariamente associa­ utilização de dados cujo significado deve ser
das a acidentes também podem ser, eventualmen­ relativizado, conforme discutido mais adiante.
te, consideradas como sinalizadores de episódios A identificação das lesões foi feita a partir
de violência. As fraturas na região do tórax são da observação de neoformação, ausência e/ou
as mais sugestivas, já que podem ser o resultado destruição ósseas, e de solução de continuida­
de golpes diretos ocorridos durante confrontos de nas estruturas anatômicas, além de suas
corpo-a-corpo. Para que a associação entre conseqüências morfológicas, como anomalias
fraturas primariamente consideradas acidentais e de textura, forma e/ou tamanho (Lessal999).
episódios de agressão possa ser feita, no entanto, Além da técnica de observação visual
é necessário, em primeiro lugar, o suporte da macroscópica, foi utilizada a radiologia (inci­
existência de uma expressão epidemiológica dência Antero-posterior e perfil) como técnica
significativa dos típicos traumas violentos, além complementar para o estabelecimento de um
de uma contextualização e de uma análise diagnóstico seguro.
biomecánica que permita associar as armas As lesões localizadas no crânio foram
utilizadas e as táticas de luta com essas fraturas. medidas com paquímetro manual com precisão
A análise dos traumas agudos já havia de até 0,5mm, e sua localização tomou como
sido realizada anteriormente na amostra do referência as suturas cranianas.
sambaqui de Cabeçuda (Ferigolo 1987, Men­
donça de Souza 1995), sem que tivesse sido
dada, no entanto, atenção especial aos sinais Revisão bibliográfica
de violência, e sem que houvesse sido aplica­
da uma metodologia mais refinada para a sua Traumas agudos nas populações construtoras
identificação, onde são consideradas peque­ de sambaquis: possíveis sinais de violência
nas depressões totalmente remodeladas no
crânio, provavelmente causadas por um golpe Os estudos de paleopatologia óssea em
desferido com pouca intensidade ou que tenha grupos construtores de sambaquis ainda são
atingido a vítima de raspão. pouquíssimos apesar do grande número de
Por este motivo, foram revistos os 62 sítios escavados, sendo inexistentes os
crânios desta amostra que se encontravam em estudos voltados especificamente para a
bom estado de preservação. Os esqueletos violência. Na bibliografia existente, as amos­
pós-cranianos destes indivíduos não foram tras analisadas apresentam poucos casos de
revistos neste estudo, sendo utilizados os traumatismos agudos associados ou não
dados já existentes (Ferigolo 1987, Mendonça diretamente a agressões. Ocorre, no entanto,
de Souza 1995). A estimativa de sexo dos um registro de uma ponta de flecha encravada
indivíduos foi realizada em trabalho anterior no esqueleto, sinal mais evidente de violência,
por Mendonça de Souza (1990). sem que estudos paleopatológicos tivessem
Na série proveniente do sambaqui de sido realizados no material.
Arapuan, foram analisados os ossos cranianos Dentre os estudos paleopatológicos
e pós-cranianos de todos os indivíduos realizados, podemos citar o sambaqui de
adultos recuperados. O trabalho foi iniciado Cabeçuda (SC), onde Ferigolo (1987) observou
individualizando-se cada esqueleto nos as seguintes fraturas em dois esqueletos: um
sepultamentos múltiplos. Foram identificados deles apresentava mandíbula com alteração
11 adultos, duas crianças e dois fetos. Não foi pós-traumática, verticalização do ramo e calo

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de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São
P aulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

ósseo na região sinfisária, além de severas No Sambaqui da Tarioba, localizado no


alterações degenerativas pós-traumáticas no município de Rio das Ostras, Machado & Sene
úmero e na ulna. No outro indivíduo, foi (2001) não observaram traumas agudos nos 17
observada uma ulna com fratura consolidada indivíduos recuperados.
no terço distai. Finalmente, Storto e colaboradores (1999)
O mesmo material foi analisado por analisaram 37 indivíduos adultos provenientes
Mendonça de Souza (1995) e, além das lesões do sambaqui Jaboticabeira II, localizado no
acima descritas, foram observadas: duas município de Jaguaruna (SC), tendo sido
vértebras, uma cervical e outra dorsal, com observado apenas um indivíduo que apresen­
traço de fratura, tendo a segunda um acunha- tava uma fratura envolvendo dois tarsos.
mento do corpo; dois rádios direitos com Apesar do grande número de sambaquis
fraturas bem remodeladas junto à extremidade estudados, com todos eles tendo apresentado
proximal; dois úmeros com deformidades enterramentos com amostras numericamente
sugestivas de arrancamento do epicôndilo; e variáveis (Prous 1992), nenhum outro caso
um metatarsiano com fratura bem remodelada típico de violência foi registrado, como as
da diáfise. duas pontas de flecha encravadas nos ossos,
No sambaqui da Beirada, localizado no acima descritas. Este dado parece ser bastante
município de Saquarema (RJ), entre os 32 significativo, uma vez que a sua ocorrência
esqueletos analisados, foi observada uma motiva a publicação, mesmo na ausência de
fratura de “parry” em uma ulna esquerda, estudos paleopatológicos, justamente por
apresentando a não união dos fragmentos constituir-se caso raro.
afetados e pseudoartrose, em um indivíduo
masculino com cerca de 39-44 anos de idade
(Machado, 1992). Foi observada também uma Resultados da análise paleopatológica
ponta serrilhada, confeccionada sobre esporão
de arraia (provavelmente Aetobatus narinari), No sambaqui de Arapuan não foram
encravada verticalmente entre as costelas de observadas lesões associadas a episódios de
um indivíduo feminino adulto (Kneip 1994). violência. Dentre os 11 indivíduos adultos
Machado e colaboradores (Kneip et al. analisados, um apresentou uma fratura de
1995) analisaram os remanescentes ósseos de metatarso.
9 indivíduos adultos do sambaqui de Saqua­ Dos 62 indivíduos analisados do sambaqui
rema (RJ), localizado no meio de um canteiro de Cabeçuda, três apresentaram lesões no
de obras. O pequeno número de esqueletos e crânio (4,83%), sendo todos do sexo masculino.
as más condições de preservação óssea
limitaram o estudo, tendo sido observadas
evidências de antigas fraturas na diáfise de um Descrição das Lesões
fêmur e de um úmero esquerdos em um Sambaqui de Cabeçuda
indivíduo masculino.
Num estudo preliminar em 10 esqueletos - Crânio n° 1704 (Fig. 1)
adultos do sambaqui Forte Marechal Luz (SC), Indivíduo masculino. A presenta lesão
Silva & Mendonça de Souza (1999) observa­ circular superficial no osso parietal direito a
ram em um indivíduo de sexo indeterminado 3,5 cm da sutura sagital e a 8,5 cm da sutura
uma fratura no quinto metatarso, com seqüela lambdoidal, com diâmetro de 0,3 cm. Possui
de soldadura da falange. as bordas arredondadas, sem linhas de
No sambaqui Zé Espinho, localizado em fraturas irradiadas, e no seu interior há
Guaratiba (RJ), onde foram recuperados 22 neoformação óssea com superfície irregular.
esqueletos, mas não foi realizada análise Não apresenta processo infeccioso nas
paleopatológica. Kneip (1987) observou mais áreas adjacentes.
uma vez a existência de uma ponta confeccio­ - Crânio n° 1825 (Figs. 2 e 2a)
nada sobre esporão de arraia, encravada entre Indivíduo masculino. Apresenta lesão
as costelas de um indivíduo adulto feminino. oval, localizada no osso parietal direito,

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de sambaquis: análise dos sític Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de Arqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

Fig.l - Crânio n° 1704, Sambaqui de Cabeçu­ Fig.2 - Crânio n° 1825, Sambaqui de Cabeçu­
da. Indivíduo masculino apresentando fratura da. Indivíduo masculino apresentando fratura
em depressão associada à violência. em depressão associada à violência.

pouco profunda, a 4,5 cm da sutura lambdoidal


e a 2,0 cm da sutura sagital, com 1,0 cm de
largura por 1,6 cm de comprimento. As bordas
da lesão encontram-se arredondadas e não há
linhas de fratura irradiadas; no seu interior
podem ser observadas neoformação óssea e
porosidade que atinge o nível da diploe,
compatíveis com processo final de cicatriza-
ção, não havendo sinais de processos
infecciosos a sua volta.
- Crânio n° 1837 (Fig.3; 3a)
Indivíduo masculino. Apresenta uma
depressão pouco profunda no parietal direito,
localizada a 1,0 cm da sutura sagital e a 5,5 cm
da sutura lambdoidal. Tem formato oval e mede Fig. 2a - Crânio n° 1825, Sambaqui de Cabe­
1,6 cm por 1,0 cm. çuda. Detalhe da lesão.
A região adjacente apresenta-se bastante
irregular com extensa neoformação óssea
Sambaqui de Arapuan
sugerindo um processo infeccioso. A própria
lesão apresenta superfície irregular, com
neoformação óssea, e suas bordas não Sepultamento n° 13
apresentam arestas agudas e não há linhas de Sexo indeterminado. Fratura de metatarso,
fraturas irradiadas. lado indeterminado, apresentando desvio dos
Esta lesão não apresenta o padrão fragmentos proximal e distai, ao longo do eixo
observado para as fraturas em depressão longitudinal.
devido à irregularidade da superfície. É
possível que ela esteja relacionada a um
trauma agudo, no entanto, a ocorrência de um Discussão
processo infeccioso obriga a especulação de
outra etiologia para a mesma. Uma vez que o Entre os oito sambaquis citados no presen­
diagnóstico apresenta-se impreciso, esta te trabalho, em 3 deles (37,5%) foram observa­
lesão não foi incluída na quantificação dos das as típicas lesões relacionadas a episódios
dados. de agressão. As baixas prevalências observa­

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Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

das para essas lesões em cada uma das amos­ grupos, constituindo-se eventos esporádicos, o
tras, ou a sua ausência, no entanto, constituem- que confirma a hipótese proposta (Quadro 1).
se um dado muito mais informativo, indicando Apenas a título de comparação entre as
que os episódios de violência provavelmente prevalências observadas, podem ser citados
não ocorriam de forma recorrente entre esses como exemplos dois estudos específicos sobre
violência, um em ambiente semelhante e outro
em ambiente totalmente distinto ao dos grupos
construtores de sambaquis:
Em um estudo diacrônico realizado por
Lambert (1997), foram analisados esqueletos
provenientes de 30 cemitérios de grupos
caçadores-coletores que viveram no litoral,
junto ao canal de Santa Bárbara, no Estado da
Califórnia (EUA), durante um período que

S A M B A Q U I DE C A B E Q U D A
C R À N IO N° 183 7
M U S E U N A C IO N A L - RJ
■■■ lini a i a mji iw s i x m :iI.jl.-ji"

Fig. 3 - Crânio n° 1837, Sambaqui de Cabeçu­ Fig. 3a - Crânio n° 1837, Sambaqui de Cabe­
da. Indivíduo masculino apresentando fratura çuda. Detalhe da lesão.
em depressão associada à violência.

QUADRO 1
Prevalência de traum as agudos associados à violência nos sambaquis citados neste estudo
Número de indivíduos
Sítio adultos analisados Número de % Referências
ou recuperados indivíduos com lesão bibliográficas
Arapuan 11 0 0 Bezerra 1995, São Pedro 1999

Cabeçuda 62 3 4 ,8 Castro Faria 1955, Mendonça de


Souza 1990, 1995

Beirada 32 2 6,2 Machado 1992, Kneip 1994

Saquarema 9 0 0 Kneip 1995

Forte Marechal Luz 10 0 0 Silva & Mendonça de Souza 1999

Zé Espinho 22 1 4 ,5 Kneip 1987

Tarioba 17 0 0 Machado & Sene 2001

Jaboticabeira II 37 0 0 Storto et al. 1999

T otal 200 6 3

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de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

variou entre 6.000 a.C. até 1800 A.D. Dos 753 Com relação às lesões no crânio acima
crânios analisados, 17% , na maioria pertencen­ citadas, sua morfologia (pequenas depressões
tes a indivíduos do sexo masculino, apresenta­ ovais) e grau de letalidade (lesões superficiais,
vam lesões provocadas por golpes. O estudo sem comprometimento da tábua interna e com
demonstrou que nos cinco períodos cronológi­ total recuperação) permitem associá-las a
cos considerados, o número de lesões foi golpes que tenham atingido a vítima apenas de
constante, apontando a violência como um raspão, ou que tenham sido desferidos com
comportamento normal entre aqueles grupos. instrumentos rombudos pouco pesados, como
O mesmo não foi observado em um estudo bastões de madeira ou osso, ou com pequenas
realisado por Lessa (1999) em esqueletos pedras. No entanto, bastões de osso são raros
recuperados no cemitério Solcor-3, localizado no nos registros arqueológicos, com alguns
deserto de Atacama, Chile. Foram estudados exemplares encontrados em sítios de Joinville
dois períodos culturais distintos: o primeiro como Conquista, Morro do Ouro e Rio Velho, e
anterior à influência do estado altiplânico interpretados como propulsores (Prous 1992).
Tiwanaku sobre os grupos atacamenhos; e o Os artefatos próprios para o arremesso de
segundo coincidente com esta influência. Foi pedras a longa distância, por outro lado, são
observado um significativo aumento de lesões desconhecidos para as populações litorâneas.
associadas à violência entre os homens jovens De qualquer forma, faz-se necessário nestas
durante o período de interação entre os dois reflexões iniciais, observar que o registro
povos - 47% -, contra apenas 5,8% observado arqueológico de bastões de madeira deve ser
no período anterior. Os resultados foram inter­ relativizado em função dos problemas de
pretados como o resultado da emergência de preservação, especialmente acentuados nos
tensão social na população de São Pedro de sambaquis. Como bem afirma Prous (1992),
Atacama, em virtude do notório processo de raramente são encontrados artefatos que
hierarquização, e do rearranjo das relações sociais tivessem sido confeccionados sobre pedra ou
intragrupais e entre os grupos atacamenhos e os osso. As pedras, por sua vez, podem ser arre­
grupos que integravam a secular rede de trocas messadas manualmente, desde que a uma curta
entre o deserto, a costa e outras regiões. distância do seu alvo, o que estaria mais compa­
As baixas prevalências observadas neste tível com as brigas domésticas ou intragrupais.
estudo, além da total ausência de informações Por outro lado, as agressões físicas que resulta­
etnográficas para grupos construtores de ram nestas lesões podem ter sido provocadas
sambaquis, que poderiam fornecer dados por outros grupos, com aparato bélico distinto
referentes às táticas e armas empregadas em daquele observado para grupos sambaquianos.
confrontos ou castigos, invalidam qualquer Já as pontas de projétil, universalmente
tentativa de associação direta entre as demais reconhecidas pelos arqueólogos como parte
fraturas observadas nestas amostras e possí­ integrante de uma arma e abundantemente
veis episódios de agressão. encontradas em sambaquis, foram sem dúvida
Apenas três indivíduos foram contabi­ utilizadas por esses grupos com finalidade
lizados como portadores de leões associadas à bélica, como bem atestam os dois esqueletos
violência na amostra de Cabeçuda: um indiví­ observados por Kneip (1987, 1994).
duo apresentando fratura de “parry” observada E interessante notar que os dois indivíduos
por Ferigolo (1987) e Mendonça de Souza afetados eram do sexo feminino, sugerindo que
(1995); e dois indivíduos apresentando lesões os ataques ocorreram dentro ou perto dos
em depressão no crânio, observadas neste limites do núcleo habitacional, considerando-se
estudo. O indivíduo que apresenta lesão na a teoria tradicional de que os homens explora­
mandíbula, observada pelos autores supra­ vam áreas mais distantes em busca da caça.
citados, não foi incluído, apesar de as lesões na Segundo Chagnon (1992), baseado em estudos
face constituírem um indicador específico de etnográficos, a violência proveniente do uso de
violência, uma vez que ele apresenta também arco e flecha é mais freqüentemente observada
fraturas em outros ossos, compatíveis com em confrontos ou guerras entre grupos com
episódio de acidente. parentesco distante, sugerindo, neste caso,

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LESSA , A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

uma rixa intergrupal. Por outro lado, uma vez oferecia alimentos cuja estabilidade poderia
que as duas pontas foram confeccionadas influenciar de maneira decisiva na mobilidade e
sobre material marinho, é bastante provável que na densidade populacional dos grupos huma­
os ataques tenham partido de outros grupos nos. A coleta acrescida de produtos marinhos
litorâneos, ficando praticamente descartada a garantiria um alto grau de previsibilidade do
possibilidade de ataques por parte de grupos alimento, com recursos altamente concentrados,
do interior. facilmente coletáveis por todos os segmentos
Os resultados observados neste estudo humanos com um mínimo de gasto energético.
podem ser interpretados a partir de fatores Além disso, os locais escolhidos para assenta­
sócio-culturais, econômicos e ambientais, ou mento tendem a ser próximos a correntes
ainda de fatores extrínsecos de ordem meto­ ascendentes ou estuários, os quais são alta­
dológica. O caráter preliminar deste trabalho, no mente produtivos em termos de pesca.
entanto, dificulta a justificativa de concessão de Hassan (1881), ao comparar a forma de
um peso maior a qualquer um destes aspectos, subsistência entre agricultores e caçadores-
sendo possível, inclusive, que tenham atuado coletores, enfatizou que os últimos são capazes
de forma conjugada, em diferentes níveis, de de formar grupos sedentários e com alta
acordo com as diversas fácies culturais que densidade populacional somente em condições
compõem o sistema sambaquiano. excepcionais, quando são ocupadas regiões
Dentre os aspectos acima citados, no onde os recursos são abundantes e concentra­
entanto, a questão da complexidade do sistema dos, citando como exemplo a costa noroeste da
sócio-cultural destes grupos vem ganhando América do Norte. Este autor refere-se também
destaque nas discussões mais recentes, onde ao fato de a disponibilidade de proteína animal,
não há mais espaço para as antigas perspecti­ abundante nos recursos marinhos, ser o mais
vas teóricas onde os construtores de samba­ acentuado fator limitante para o aumento da
quis eram vistos como pequenos grupos densidade populacional humana.
coletores-caçadores que ocupavam estes Analisando a questão sob outra perspecti­
sítios apenas sazonalmente. va, em um trabalho realizado por Neves (1988)
Tenório (1995) argumenta que a maior sobre paleogenética dos grupos pré-históricos
dificuldade em se aceitar a postulação de uma do litoral sul do Brasil, os resultados demons­
ocupação sazonal para os grupos litorâneos tram um alto grau de similaridade biológica
reside na ausência de adornos ou elementos de entre homens e mulheres, concluindo que as
importância ritual, elaborados a partir de unidades exogâmicas de matrimônio encon-
matéria-prima marinha, em sítios de mesma tram-se representadas numa mesma aldeia,
antiguidade localizados no interior. Pois, parece favorecendo o desenvolvimento de um
pouco provável que grupos viessem ao litoral conúbio interno.
em determinadas épocas do ano, sem levarem O autor argumenta que a relação entre
de volta quaisquer elementos litorâneos. Ao exogamia intra-sítio e exogamia interaldeia está
mesmo tempo seria incompreensível que sítios atrelada à demografia. Para haver a possibilida­
litorâneos não apresentassem objetos elabora­ de, portanto, de a estrutura social dos grupos
dos a partir de materiais encontrados no interior. locais dos construtores de sambaquis ter
A autora afirma ainda que, embora Prous desenvolvido um sistema de metades, clãs ou
(1992) cite a presença de raros artefatos líricos linhagens exogâmicas complementares dentro
relacionados ao interior em sítios litorâneos, da própria aldeia, é necessário que a demografia
este autor aceita que estes indícios represen­ desses grupos tenha ultrapassado os limites
tam apenas contatos esporádicos e não podem convencionalmente aceitos para bandos de
ser interpretados como sítios complementares caçadores-coletores, sem o que, a articulação
de pesca e coleta. de todo esse sistema não seria viável.
Por outro lado, estudos ecológicos como Este alto grau de densidade populacional
os de Yesner (1983, 1986 apud Tenório 1995), teria fornecido a base para a emergência de um
revelaram que o litoral não só era extremamente sistema sócio-cultural e ideológico bastante
rico em recursos protéicos, como também complexo.

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões prkíiVninares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

Gaspar (1992), em um estudo realizado para sobre o trabalho. Essas construções monu­
sítios na região do Rio de Janeiro, relacionou as mentais não teriam sido feitas de forma
diferentes classes de tamanho observadas com aleatória, mas obedeceram, com certeza, a um
as características ambientais consideradas projeto ideologicamente determinado.
significativas para a estratégia de implantação Mais uma vez argumentando a favor da
(altura, visibilidade, distância de água potável, emergência de uma complexidade sócio-
proteção contra o vento), constatando a existên­ cultural e ideológica entre os grupos samba­
cia de dois conjuntos de sítios bem definidos. quianos, Lima (1999/2000, 2000) refere-se aos
Segundo a autora, essa ordenação dos zoolitos, artefatos altamente elaborados, que
sítios em classes de tamanho evidencia uma exigem grande talento para a sua produção e
dimensão sociológica ordenadora do sistema configuram trabalho especializado, cuja
sócio-cultural, que aponta para a existência de organização transcende a unidade doméstica,
uma hierarquia entre sítios. assim como sinaliza o surgimento de indivídu­
Lima (1999/2000, 2000) refere-se à expansão os com funções e status diferenciados,
populacional dos grupos sambaquianos, a qual exercendo maior poder e controle.
teria se traduzido na diminuição da distância Diante deste quadro que sugere a existên­
entre os assentamentos, determinando uma alta cia de lideranças institucionalizadas, faz-se
densidade de sítios nas áreas lagunares, e que necessário supor que um sistema sócio-
decerto esta distribuição no ambiente atendeu a cultural e ideológico pode ter atuado como
hierarquias1 intra e intergrupais, cabendo regulador das diferenças e dos conflitos inter-
àqueles com maior prestígio e poder as implan­ populacionais, sem que os indivíduos tives­
tações mais estratégicas para fins de controle sem que, ou quisessem, recorrer ao uso da
territorial, bem como os locais mais favorecidos violência física sistematicamente.
em recursos alimentares, hídricos e minerais. Uma outra tentativa de interpretação
Referindo-se aos monumentais sambaquis poderia passar por questões econômicas, mais
localizados na região de Santa Catarina, com pragmáticas, que não devem, no entanto, ser
dezenas de metros de altura, a mesma autora avaliadas isoladamente, mas como parte de um
afirma que as motivações em geral aventadas produto multifatorial.
para a sua construção, como a procura por Uma vez que os sambaquis encontram-se
lugares mais arejados e protegidos contra concentrados em ambientes altamente produti­
insetos, são evidentemente simplistas, ou vos e que permitem a exploração simultânea de
mesmo ingênuas. A magnitude do fenômeno vários nichos ecológicos, dificilmente a aquisi­
envolveria, inequivocadamente, hierarquia, ção de recursos, fator muitas vezes discutido nas
prestígio e não-igualitarismo, demostrando o interpretações sobre violência em populações
controle de uma elite sobre os recursos e pré-históricas (ver, por exemplo, Carneiro 1992,
Larsen, 1999), seria um motivo para intensos e
freqüentes combates entre os grupos litorâneos.
(1) Ressaltamos que o termo “hierarquia” deve ser Por outro lado, as disputas por território e
visto com cautela quando empregado para populações recursos entre grupos construtores de samba­
construtoras de sambaquis, uma vez que não dispo­ quis e grupos interioranos parece pouco
mos, até o momento, de dados arqueológicos que provável em função da limitação geográfica
comprovem a existência de uma estratificação social
imposta pela Serra do Mar, com relevo escar­
bem definida, além de um sistema político centraliza­
do, tal com o nas “chefias” e nos “estados”.
pado e coberta por uma vegetação tropical
Os processos de estratificação social e centralização exuberante, a qual teria atuado como uma
política, inclusive, são apontados na literatura barreira poderosa para o deslocamento desses
especializada com o um dos fatores que promovem grupos em sentido transversal à costa.
conflitos e guerras entre populações pré-históricas. Em apenas três pontos uma topografia
Não pretendemos, com esta observação, classificar os
grupos sambaquianos dentro de qualquer categoria
mais suave ao longo de vales facilita a trans­
sócio-política. Apenas, admitimos a existência de posição dessa barreira, e eles certamente
uma organização com plexa, com posições de funcionaram como vias de comunicação entre
ascendência e liderança dentro do grupo. o litoral e o interior: os vales dos rios Jacuí,
LESSA , A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São
Paulo, 11: 7 7 -9 3 , 2001.

Itajaí e Ribeira. As evidências disponíveis, no excede a dois metros, não devendo representar,
entanto, parecem sugerir muito mais estratégi­ portanto, um ponto de observação estratégico.
as oportunistas de penetração nesses vales Não devem ser descartadas, por outro
por parte de grupos que já estavam bem lado, as rixas intragrupais, de ordem pessoal,
estabelecidos e com um sistema de subsistên­ ou ainda os conflitos domésticos, comuns em
cia consolidado em ambientes costeiros, que qualquer sociedade. No caso dos grupos aqui
propriamente deslocamentos sistemáticos estudados, questões relacionadas a aspectos
ligando diferentes zonas ecológicas para fins ideológicos, de caráter êmico, podem ter
de exploração sazonal (Lima 2000). forjado um comportamento pouco agressivo, já
O mesmo raciocínio parece correto no que esses grupos poderiam ter desenvolvido
sentido inverso, sendo pouco prováveis as outros mecanismos para resolução dos seus
investidas dos grupos interioranos até o litoral conflitos internos, como as competições e as
para a exploração sazonal de recursos marinhos. lutas rituais. Essas inferências, neste caso,
Quanto às investidas para ocupação constituem-se especialmente especulativas
permanente de território, os dados arqueológi­ devido à total ausência de dados etnográficos
cos disponíveis não apontam para a penetração para esses grupos.
de sistemas sócio-culturais totalmente distintos De qualquer forma, aponta-se mais uma vez
nas camadas de ocupação. Gaspar (1995) afirma para a possibilidade de que padrões sócio-
que alguns sambaquis apresentam cerâmica nos culturais e ideológicos específicos, mais
últimos níveis de ocupação, sendo, no entanto, complexos e sofisticados do que inicialmente
pouco provável que a presença deste material propostos para os grupos construtores de
indique a ocupação do sítio por outro grupo sambaquis, possam ter mantido o seu funciona­
cultural, já que a cerâmica é acrescentada à mento e o equilíbrio interno e externo, mesmo
totalidade dos materiais encontrados sem que na ausência de coerção ou violência física.
ocorram modificações significativas. Segundo a Fatores de ordem metodológica, como o
autora, dificilmente grupos ceramistas relegari­ mau estado de preservação de algumas
am ao segundo plano todos os seus costumes amostras, além de a maior parte delas consti­
- vida em aldeia sem acumulação de restos tuir-se numericamente pouco representativas,
alimentares, eventualmente horticultura, aparato podem ter subestimado os resultados encon­
tecnológico distinto etc. - para se adequarem trados. Apenas mediante a análise futura de
totalmente aos hábitos dos grupos litorâneos, outras coleções, além de uma revisão nas
mantendo apenas a sua cerâmica. amostras já estudadas, buscando-se específica
Ainda que muitas interpretações possam e minuciosamente os sinais de violência,
ser aventadas para o fato de os grupos poderemos confirmar a situação de equilíbrio
sambaquianos terem construído grandes que parece apontar para esses grupos.
montes, alguns deles chegando à incrível Convém reiterar que este trabalho não
dimensão de 20 ou 30 metros de altura, é pretende caracterizar os grupos construtores
pertinente expor a proposição de Tenório de sambaquis como “povos pacíficos”, que
(1995), que acredita na possibilidade de esses viviam em permanente estado amistoso entre si
assentamentos terem uma função estratégica e com os demais grupos. Apesar de a violência
defensiva, pois o sítio localizado numa eleva­ física não parecer ser parte inerente a este
ção, além de possibilitar que o inimigo seja sistema, estudos futuros podem apontar para
visualizado, permitiria uma melhor defesa. eventos violentos pontuais, que assinalem
Os resultados iniciais aqui observados, no processos temporários e específicos.
entanto, não apóiam esta proposição, uma vez Ainda que os grupos em questão tenham
que, para que os montes tivessem sido cons­ sido contextualizados de forma abrangente, e
truídos com uma finalidade defensiva, seria ainda que esta hipótese preliminar tenha sido
necessário que os ataques ocorressem com formulada sem nenhum recorte espacial ou
certa freqüência, constituindo-se uma ameaça temporal específicos, não se pretende aqui
real ou potencial para o grupo. Por outro lado, ignorar deliberadamente as possíveis varia­
muitos sambaquis apresentam altura que pouco ções inerentes aos sub-sistemas que compõem

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LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
Paulo, 11: 77-9 3 , 2001.

o que denominamos genericamente de grupos O pequeno número de sítios que foram


construtores de sambaquis. submetidos a análises paleopatológicas,
Não se trata de concordar ou discordar da muitos contando com uma amostra em mau
perspectiva teórica baseada na concepção de estado de conservação e composta por
que todos os sítios que apresentam associação, poucos indivíduos, confere à nossa análise um
num mesmo espaço, de moradia, de cemitério e caráter preliminar. Embora ainda seja cedo para
de descarte de restos alimentares e industriais, fazer inferências mais abrangentes quanto à
foram construídos por grupos vinculados à questão da violência entre grupos construto­
mesma tradição cultural (Gaspar 1994/95, 1995). res de sambaquis, a variação geográfica e
Apenas com os dados arqueológicos e temporal que abrangeu o estudo obriga a uma
paleopatológicos disponíveis até o momento, e reflexão sobre o significado dos resultados
sem a possibilidade de uma contextualização apresentados.
mais complexa que penetre nos aspectos Ainda que os estudos futuros venham a
simbólicos desses grupos, torna-se impossível confirmar mais uma vez a hipótese aqui
a tentativa de identificação de possíveis formulada, a ausência de uma contextualização
variações quanto à interpretação e aplicação, mais complexa, proveniente principalmente dos
por parte deles, do que é entendido por nós dados etnográficos, deixará sempre uma lacuna
como violência física. com relação à forma como esses grupos
equilibravam os momentos de tensão social,
inter ou intragrupais, invariavelmente existen­
Conclusões tes em qualquer sociedade, em maior ou menor
grau.
A hipótese inicial formulada neste
trabalho foi confirmada a partir da observação
de baixas prevalências para traumas agudos Agradecimentos
diretamente associados à violência. A inter­
pretação para esses resultados pode estar A Dr3 Sheila Mendonça de Souza (ENSP/
relacionada a fatores sócio-culturais, econô­ FIOCRUZ) pelas críticas e sugestões dadas
micos e ambientais, ou ainda a fatores durante a elaboração do trabalho; a Dr3 Maria
metodológicos, que podem ter atuado em de Lourdes Lemos, pelas fotos que ilustram
conjunto ou isoladamente. este trabalho.

LESSA, A.; MEDEIROS, J.C. de. Preliminary thoughts about the occurence of violence
among the Brazilian shellmound builders: analysis of the skeletons from Cabeçuda
(Santa Catarina) and Arapuan (Rio de Janeiro) sites. Rev. do Museu de Arqueo­
logia e Etnologìa, São Paulo, 11: 77-93, 2001.

ABSTRACT: This research was to test the initial hypothesis that shellmound
builders of brasilian seashore were not usually involved in physical violence. Sixty
two skulls from the Cabeçuda site (Santa Catarina) and eleven skeletons from the
Arapuan site (Rio de Janeiro) were analysed in order to search for typical lesions
that could be associated to episodes of violence. A revision about this topic in
the littérature was also performed, including the post-cranial traumatic lesions data
observed for the Cabeçuda Site. Low prevalence (4.8 %) for the Cabeçuda
skeletons, and the absence of violent trauma for the Arapuan skeletons, confirm
the proposed hypotesis. Socio-cultural, economic and environmental factors
could explain this behaviour, although methodological factors cannot be excluded.

UNITERMS: Paleopathology - Acute trauma - Violence - Shellmound.

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LE SSA , A.; MEDEIROS, J.C. de. R eflexões preliminares sobre a questão da violência em populações construtoras
de sambaquis: análise dos sítios Cabeçuda (SC) e Arapuan (RJ). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São
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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 20 de ju n ho de 2001.

93
Rev. d o M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11'. 95-108, 2001.

SISTEMA TECNOLÓGICO E ESTILO:


AS IMPLICAÇÕES DESTA INTER-RELAÇÃO NO
ESTUDO DAS INDÚSTRIAS LÍTICAS DO SUL DO BRASIL

Adriana Schmidt D ias*


Fabíola Andréa Silva**

DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistema tecnológico e estilo: as implicações desta interrelação no
estudo das indústrias líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 11: 95-108, 2001.

RESUMO: A partir da avaliação dos conceitos de sistema tecnológico e


estilo, analisaremos a noção de estilo tecnológico e as suas implicações no
estudo de indústrias líticas. Paralelamente, refletiremos sobre a sua aplica­
bilidade no estudo dos conjuntos líticos das Tradições Umbu e Humaitá,
tomando como referência dois estudos de caso.

UNITERMOS: Arqueologia Sul-brasileira - Tecnologia litica - Estilo -


Caçadores- coletores.

Sistema tecnológico e estilo que podem se influenciar mutuamente e, neste


caso, constituir o sistema tecnológico propria­
O uso do conceito de sistema tecnológico mente dito; e 3) do sistema tecnológico em sua
implica na compreensão de que as técnicas inter-relação com outros sistemas culturais.
desenvolvidas por uma dada sociedade não Nas últimas décadas, os estudos sobre os
são elementos isolados, mas estão constituí­ sistemas tecnológicos têm se desenvolvido,
das sistemicamente. Segundo Lemonnier (1992: principalmente, a partir de dois enfoques
5-9), podemos entender este caráter sistêmico distintos. O primeiro entende que os sistemas
das técnicas a partir de três níveis distintos: 1) tecnológicos são o resultado de estratégias
da técnica em si, no sentido de que ela se adaptativas, inter-relacionadas com as limita­
constituiu na inter-relação de elementos como ções e possibilidades do meio natural e as
matéria, gestos, energia, objetos e conheci­ demandas da organização sócio-econômica
mento; 2) das diversas técnicas ou conjuntos das populações. O segundo concebe os
técnicos desenvolvidos por uma sociedade, sistemas tecnológicos como uma construção
social resultante de escolhas tecnológicas
culturalmente determinadas.
Na primeira perspectiva - inspirada pelos
(*) Departamento de História e NUPArq/Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul.
pressupostos da Antropologia Econômica, da
(**) Departamento de História da U niversidade Ecologia Cultural e da Antropologia Ecológica
Luterana do Brasil, Canoas, RS. - os sistemas tecnológicos são analisados

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D IA S, A .S ., SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas. do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

como um meio a partir do qual os homens sobre as técnicas corporais foi, segundo
viabilizam sua existência frente ao meio Lemonnier (1992:1), o inspirador desta que se
natural. Neste sentido, a investigação volta-se poderia chamar de “antropologia dos sistemas
para o entendimento das inter-relações entre tecnológicos”. Neste trabalho, Mauss reflete
os sistemas tecnológicos e aspectos como sobre a arbitrariedade cultural de nossos
disponibilidade ou escassez de matérias- comportamentos mais casuais, definindo o
primas, características físicas dos materiais, corpo como o “primeiro e mais natural objeto
atribuições funcionais a que se destinam os técnico e, ao mesmo tempo, meio técnico do
objetos, e organização e eficiência das popula­ homem” ([1935] 1974: 217). Depois dele, os
ções na ação e exploração do meio natural. trabalhos descritivos e comparativos de Leroi-
Trabalhos como os de Meillassoux ([1967] Gourhan ([1943] 1984, [1945] 1984) e as refle­
1978), Godelier (1971) e Rappaport (1968) são xões de Lévi-Strauss (1976, 1986) sobre o
exemplos deste enfoque teórico, a partir do caráter sistêmico das técnicas constituíram-se
qual os sistemas tecnológicos são analisados em referência obrigatória nestes estudos.
como o resultado de coerções que se originam Em nosso trabalho, pretendemos discutir
do meio natural e do tipo de organização da um aspecto dos sistemas tecnológicos que
produção e que afetam, por sua vez, os demais vem sendo desenvolvido, principalmente,
aspectos da vida social como o ciclo ritual, as pelos pesquisadores vinculados a esta
relações políticas e de parentesco, entre segunda vertente teórica por nós destacada
outros (Lemonnier 1992: 14-17). acima. Ou seja, trata-se da idéia de que os
Quanto à segunda perspectiva, os siste­ sistemas tecnológicos estão relacionados com
mas tecnológicos são analisados, em contra­ os sistemas de representação social e se
posição, como um produto e um recurso de constituem como um local de manifestação
criação e manutenção de um ambiente natural e estilística. Neste caso, a noção de estilo
social, simbolicamente constituídos. A investi­ tecnológico torna-se um conceito fundamental
gação está voltada para o entendimento da para o entendimento dos conjuntos tecnoló­
relação destes sistemas com os demais gicos de diferentes grupos culturais, podendo
sistemas de representação social. Neste ser definido como o “modo como as pessoas
sentido, a tecnologia é entendida como signo realizam o seu trabalho, incluindo as escolhas
e, portanto, carregada de significados e pode feitas por eles no que se refere aos materiais e
ser definida como o corpus de artefatos, às técnicas de produção” (Reedy & Reedy
comportamentos e conhecimentos transmiti­ 1994: 304) . A noção de estilo tecnológico
dos de geração a geração e utilizado nos permite compreender o estilo não apenas como
processos de transformação e utilização do um padrão material que se manifesta na
mundo material.1 Em outras palavras, a tecno­ morfología e decoração dos artefatos, mas,
logia passa a ser definida como um “fato social também, como algo que é inerente e subjacente
total” que não tem apenas uma dimensão aos processos de produção a partir dos quais
material ligada à esfera tecno-econômica, mas estes aspectos visuais são uma resultante.
que está simultaneamente vinculada a aspec­ Cabe ressaltar que este conceito deriva de
tos da organização social (por exemplo, um debate mais amplo sobre os fenômenos
relações de gênero, idade ou étnicas) e estilísticos que vem sendo travado entre
interrelacionada com as esferas da mitologia, vários pesquisadores de diferentes filiações
cosmología e religião (Pfaffenberger 1988). teóricas. As discussões estão longe de
Esta concepção de tecnologia está profunda­ alcançar um consenso, podendo-se constatar
mente enraizada na tradição desenvolvida por que o estilo não é um fenômeno unidimen­
autores como Mauss, Leroi-Gourhan e Lévi- sional, integrando várias concepções e, ao
Strauss. O artigo seminal de Mareei Mauss mesmo tempo, apresentando uma multi-
funcionalidade nos diferentes contextos sócio-
culturais. Há pesquisadores que investigam
(1) Adaptado de Schiffer & Skibo (1987:595) e como o estilo pode estar relacionado a proces­
L em onnier (1 9 9 2 :1 ). sos de difusão a partir de estudos comparati­

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D IA S, A .S.; SILVA, F.A. Sistem a tecnológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

vos, com uma dimensão histórica e regional nestes padrões são explicadas, principalmente,
(Davis 1983, Stahl 1991). Outros, estão interes­ em termos dos processos de difusão e migra­
sados em compreender a relação dos aspectos ção. O estilo, entre os arqueólogos tradicio­
estilísticos com a organização social (Amold nais, pode ser lido na forma do artefato e
1983), com a identidade social e individual variações morfológicas nos conjuntos artefa-
(Wiessner 1983), com os valores sociais e tuais são interpretadas como resultantes da
religiosos (David et al. 1988), com os contex­ ação de grupos étnicos diferentes. A ordena­
tos de ensino-aprendizagem (Roe 1995), com a ção de artefatos em tradições, fases ou
cosmología (Layton 1987), com as estruturas indústrias passa pela noção de que quanto
cognitivas (Washburn 1983) e com as estraté­ maior a proximidade cultural, maior será a sua
gias de poder (Pauketat & Emerson 1991). semelhança estilística. Também a funcionalida­
Finalmente, alguns autores voltam-se a de dos artefatos é definida a partir da forma,
investigar como o estilo pode estar subjacente mas não é levada em consideração na interpre­
ou inserir-se nos processos de produção da tação das semelhanças e diferenças dos
cultura material (Gosselain 1992, Dietler & conjuntos. Neste sentido, estilo e função são
Herbich 1989). esferas dicotômicas sendo que a primeira é
Estas diferentes perspectivas analíticas e sempre explicada em termos do contexto
explicativas sobre a categoria estilo comparti­ histórico-cultural e/ou etnicidade e a segunda
lham, no entanto, alguns princípios básicos: 1) em termos de ação física.
que o estilo refere-se a um determinado modo A discussão sobre a relação entre estilo e
de fazer algo ou alguma coisa; 2) que este função adquiriu novas conotações a partir do
modo de fazer implica em escolhas dentre enfoque processualista, sendo ilustrada no
possibilidades alternativas; e 3) que é próprio debate desenvolvido entre Sackett (1977, 1982,
de um determinado tempo e lugar (Hegmon 1986, 1993) e Binford (1986, 1989) quanto à
1992). variabilidade das indústrias líticas e a sua
Nosso interesse reside na discussão sobre relação com o conceito de estilo. Suas pers­
a inter-relação entre sistema tecnológico e pectivas originaram-se a partir da reflexão
estilo, mais precisamente, como esta discussão crítica de ambos os autores quanto à variabili­
tem sido levada a cabo no que se refere às dade dos conjuntos líticos do Paleolítico
indústrias líticas e como ela pode ser incorpo­ Médio e Superior europeu, interpretados
rada para problematizar o estudo das Tradi­ tradicionalmente dentro de uma perspectiva
ções líticas do sul do Brasil. taxonômica-classificatória, a partir dos traba­
lhos de François Bordes (1988, 1992).
Para Binford (1962), a variabilidade dos
Estilo e indústrias líticas conjuntos de artefatos deve ser compreendida
tendo em vista a função contextual primária
O debate em tomo da aplicabilidade do destes, a partir de uma concepção sistêmica de
conceito de estilo para o estudo de indústrias cultura. Sua variabilidade diz respeito ao seu
líticas é de longa data na Arqueologia e não papel nos subsistemas tecnológico, social e
encontrou consenso até o presente. As ideológico que compõem o sistema cultural
divergências derivam de orientações teóricas total. Dentro desta perspectiva, os artefatos
diferenciadas e centram-se, principalmente, na podem ser classificados em três grupos pela
questão da variabilidade dos conjuntos líticos sua relação com a função: tecno-econômicos,
em sua relação com estilo, função e etnicidade. sócio-técnicos e ideo-técnicos. Os artefatos
Para a arqueologia tradicional, o estilo é tecno-econômicos têm sua função primária
sempre um código diagnóstico de tempo, lugar relacionada ao ambiente físico, sendo sua
e etnicidade. A interpretação das semelhanças variabilidade explicável em termos adaptativos.
e diferenças nos padrões morfológicos de Os artefatos sócio-técnicos correspondem a
artefatos costuma ser feita em termos de elementos materiais, cujo contexto funcional
unidades histórico-culturais com conotações principal é o subsistema social, funcionando
étnicas e as mudanças ao longo do tempo como um meio extra-somático de articulação

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

dos indivíduos entre si em grupos coesos fa to re s ] podem o ferecer um ar de fa m ilia rid a d e


capazes de, eficientemente, manterem-se e aos conjuntos de artefatos que sugerem um
estilo étnicam ente sign ificativo (Sackett 1982:
manipularem a tecnologia. Qualquer padrão de
106).
mudança nesta categoria de artefatos é
relacionada a alterações na estrutura social. Para o autor, o estilo não se reduz à forma
Por fim, os artefatos ideo-técnicos têm como final dos artefatos, mas está presente na
contexto funcional primário os componentes escolha de um tipo particular de lasca como
ideológicos do sistema social. Seriam itens que suporte de um artefato, na forma de desgaste e
significam ou simbolizam racionalizações quebra que este sofre durante o uso, entre
ideológicas do sistema social e promovem um outros aspectos que possuem significância
meio simbólico no qual os indivíduos são étnica.
enculturados, enquanto participantes do Sackett (1986: 630) considera que a
sistema social. Qualquer mudança nesta principal distinção de seus pontos de vista
categoria de artefatos é compreendida como com relação a Binford diz respeito à concepção
reflexo de mudança social. Atravessando distinta de ambos autores sobre onde reside o
todas estas classes gerais de artefatos, estão estilo. Para Binford, o estilo reside em um
as características formais que podem ser domínio formal distinto e fechado em si mesmo
chamadas de estilísticas que não são direta­ - algo acrescentado ou acessório (adjunto) à
mente explicáveis em termos da natureza da forma essencial ou instrumental que o artefato
matéria-prima, da tecnologia de produção ou ocupa. Para Sackett a noção de estilo não é um
da variabilidade da estrutura tecnológica e domínio diferente da forma, mas sua qualidade
social do sistema cultural. Suas propriedades latente e inerente a qualquer variação artefa-
formais têm por função proporcionar ao grupo tual, na medida em que a forma é constituída
identidade e reconhecimento social, compreen­ de escolhas feitas pelo artesão, consciente­
dendo-se qualquer mudança de estilo como mente ou não, de um amplo espectro à sua
produto de mudança sócio-cultural. O estilo é disposição. Estas escolhas determinam a
concebido enquanto uma forma acessória variação isocréstica (2) e são ditadas pela
(adjunct form), cujas qualidades formais têm tradição na qual o artesão foi enculturado
por função promover uma base simbólica de como membro de um grupo social. Por ser
identidade de grupo, associada a itens não limitada socialmente, a variação isocréstica
utilitários da cultura. traduz-se em noções de design peculiares a
Sackett (1982: 82-93) considera que o certos lugares e tempos, sendo diagnostica de
enfoque processual sobre estilo peca por uma etnicidade. Estilo e função são noções comple­
visão funcional extrema, ao entendê-lo como mentares e as variações isocrésticas podem
um elemento não utilitário da variação formal, ser vistas em sentido amplo, abrangendo
funcionando simbolicamente como um tipo de desde a cadeia operatoria que dá origem ao
iconologia social para identificação de grupos artefato até seu uso e descarte.
humanos. Estilo, para Binford, corresponderia Portanto, estilo e função são aspectos
a características formais que não podem ser complementares que determinam a morfologia
explicadas em termos de natureza da matéria- dos artefatos e as características das cadeias
prima ou da tecnologia, residindo em um operatorias que lhes dão origem. O aspecto
segmento muito restrito da variação formal funcional de um artefato reside na maneira
exibida pelo artefato. Ao contrário, para como a sua forma serve a um determinado fim e
Sackett (1982:105), o estilo não se restringe a o aspecto estilístico reside na variante étnica
uma única categoria tipológica, como a ou escolha isocréstica em que esta forma
morfologia. Segundo este:
E stilo p o d e ser encontrado na escolha da
m atéria prim a, nas técn icas de lascam ento p a ra
redução de núcleos e na produ ção de artefatos, (2) Sackett elabora este conceito a partir de um
nos tipos altern ativos de retoques m arginais, nos neologism o do grego Isos - igual e chrestikôs - bom
vá rio s ângulos de uso de borda, na form a de para o uso, útil, usual, que sabe se servir de, habilitado
uso e rejuvenescim ento do artefato. (...) [Estes para se servir de (Bailly 1990:2154).

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

surge (Sackett 1977:75). O autor argumenta e natural) na qual vive (Binford 1989: 55-60).
que quando analisamos um artefato em termos Porém, a variabilidade funcional tem sempre
funcionais salientamos sua “voz ativa” e a implicações seletivas e o contexto desta
dimensão estilística seria a sua “voz passiva”, seleção pode variar independente das identi­
como um código que sinaliza a “arena em que dades sociais. O conceito de variação isocrés-
os papéis são performados” (Sackett 1977:370). trica seria, portanto, improdutivo, pois não
Se considerarmos a noção de variação permitiria reconhecer a diferença de conjuntos
isocréstica de Sackett (1982), podemos perceber produzidos por membros de um mesmo grupo
que, em parte, este está de acordo com uma étnico e conjuntos análogos produzidos por
visão tradicional de que os estilos refletem membros de diferentes grupos (Binford 1989:
etnicidade, na medida em que as escolhas 62-65).
isocrésticas são para ele contextualmente Refletindo sobre as críticas de Binford,
determinadas. No entanto, diferencia-se deste Sackett (1993: 38) aponta que a possibilidade
enfoque ao dissociar forma de função, pois, de diferenciação de conjuntos produzidos,
segundo Sackett, o estilo não é simplesmente similares ou não, seriam ditadas pelo contexto
um padrão que se manifesta na forma, mas trata- de deposição dos artefatos. No caso dos
se de uma propriedade da forma em si, na artefatos líticos também deve ser considerado
medida em que esta é o resultado de escolhas e que os padrões de variabilidade podem derivar
é nelas que precisamente reside o estilo. de variações étnicas no contexto tecnológico,
Binford (1986), por sua vez, ressalta que a dotadas por diferenças territoriais em sua
relação entre estilo e função, por si só não relação com diferentes recursos, aspectos da
basta para dar conta explicativamente dos demografia, do sistema de assentamento, da
fenômenos que determinam a variabilidade dos densidade dos artefatos e da maneira como
conjuntos de artefatos. Baseado em estudos estes se agrupam nas superfícies ocupadas
etnoarqueológicos, critica a associação da dos sítios. Compreender estilo e função como
variabilidade de formas dos conjuntos dos aspectos indissociáveis nas escolhas isocrés­
artefatos à noção de estilo enquanto correlato ticas permite observar os contextos dos sítios
de etnicidade. Para o autor, a variabilidade dos de uma área de forma mais ampla da que a
conjuntos de artefatos é funcional, devendo sugerida por Binford. Assim, uma técnica
esta ser entendida a partir da relação entre específica de descarne pode transmitir melho­
classes de restos materiais diferencialmente res informações etnicamente significativas do
estruturados pela organização interna de um que a tipologia dos artefatos com o qual o
sistema cultural (Binford 1986: 558-559). descarne foi feito (Sackett 1993: 35).
Binford defende que a função é uma concep­ Jelinek (1976: 21-22) adverte ainda que o
ção mais ampla do que uso real de um item no maior problema na análise e na interpretação
sistema socio-cultural, relacionada às condi­ estilístico-funcional de materiais provenientes
ções interativas em um sistema. Condições de sítios puramente líticos reside na natureza
situacionais diferenciadas podem condicionar das coleções. Deve-se levar em consideração
o uso de diferentes formas de artefatos no que a maior parte do material lítico presente
desenvolvimento de tarefas análogas ou a nos sítios provavelmente representa o que não
produção de restos arqueológicos altamente é mais desejado por seus habitantes quando
variáveis por um mesmo grupo nos diferentes estes abandonaram o local. Da mesma forma, o
sítios que ocupam. O autor ressalta que a potencial das coleções para estudos estilís­
variabilidade de conjuntos artefatuais pode ticos pode variar em função das técnicas de
caracterizar certos lugares e períodos de escavação e amostragem empregadas no
tempo, porém não implica que seja diagnostica trabalho de campo, dos contextos de deposi­
de identidade étnica. Para Binford, as escolhas ção natural, do sistema de assentamento do
isocrésticas correspondem à essência da grupo estudado e da natureza dos recursos a
variabilidade organizacional em um grupo sua disposição.
étnico, promovendo-lhe flexibilidade adapta- Um aprofundamento do debate sobre a
tiva para lidar com a dinâmica ambiental (social relação entre estilo, função e etnicidade foi

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DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

desenvolvido por Sackett (1985, 1993) e indivíduos entre si. Neste caso, na variação
Wiessner (1985, 1993) a partir do trabalho da nas pontas San não se trata de uma variação
autora sobre a variabilidade das pontas de isocréstica, mas sim de um comportamento
projétil dos San do Kalahari, no qual procura estilístico, pois não corresponde a uma
demonstrar que a variação estilística é utilizada equivalência em uso, mas em uma demarcação
como um instrumento para transmitir mensa­ de fronteiras. Em última instância, a discussão
gens a respeito da identidade social e indivi­ entre eles gira em torno de onde reside o estilo
dual daqueles que as produzem (Wiessner e do questionamento da intencionalidade ou
1983). Segundo Wiessner, quanto maior o nível não do estilo como um código de etnicidade.
de interação social, mais sutil é a diferença No desenvolvimento deste debate, ambos
entre as pontas de projétil, porém num contex­ os autores relativizam suas posições. Sackett
to social mais amplo, elas servem como (1993) passa a aceitar a idéia de que as varia­
demarcadoras dos grupos de linguagem San. ções isocrésticas podem, em alguns casos,
São um instrumento fundamental nas estratégi­ resultar de escolhas conscientes por parte dos
as de sobrevivência destes grupos, sendo artesãos e servir como um código para trans­
constantemente distribuídas nas redes de mitir mensagens. Wiessner (1993), por outro
reciprocidade o que implica no acesso dos lado, admite que o estilo relaciona-se também
indivíduos pertencentes aos diferentes grupos com a variação isocréstica, pois as diferentes
de linguagem aos recursos existentes nos pontas San são equivalentes em uso. Neste
vários territórios ocupados pelos San. Para a sentido, ambos concordam que a dicotomia
autora, o estilo é um elemento ativo na trans­ entre estilo e função não é pertinente na
missão de mensagens e, no caso dos San, é análise dos conjuntos artefatuais. Wiessner
empregado conscientemente nos processos de insiste, porém, que alguns atributos dos
identificação social e individual. artefatos podem ser utilizados, mais do que
A crítica de Sackett (1985) a este trabalho outros, como instrumentos ativos de comuni­
fundamentou-se sobre a noção de que estilo cação de etnicidade e identidade social e
simboliza etnicidade a partir de uma auto­ individual. Na mesma direção das críticas de
determinação consciente dos indivíduos. Para Wiessner ao modelo de Sackett encontra-se
ele, a variação que ocorre nos conjuntos de Lemonnier (1992), segundo o qual a noção de
pontas de projétil dos San é uma variação variação isocréstica é insuficiente para o
isocréstica inconsciente que surge em função estudo dos sistemas tecnológicos, pois é
das diferentes tradições artesanais em que os necessário que se investiguem as bases
indivíduos de variados grupos de linguagem sociais das escolhas tecnológicas das quais
se inserem. Além disso, para Sackett, a inter­ esta é resultante e que se verifique como estas
pretação de Wiessner também incorre na escolhas se inserem em um sistema de signifi­
separação entre estilo e função, na medida em cados.
que ela aponta que apenas alguns elementos Acrescentando outra perspectiva ao
da morfología das pontas são atributos debate em questão, Schiffer e Skibo (1997)
estilísticos, empregados para transmitir defendem que a compreensão da variabilidade
mensagens. Segundo Sackett, o estilo é dos conjuntos artefatuais relaciona-se à
subjacente a todas as características dos natureza das escolhas tecnológicas, sendo os
artefatos e reside nas escolhas isocrésticas conceitos de estilo e função não explicativos
feitas dentre alternativas variadas durante para se entender os processos que geram e
todo o processo produtivo, sendo a morfo­ motivam as escolhas feitas pelo artesão. Para
logía uma decorrência destas escolhas. os autores, a variabilidade artefatual é definida
Por sua vez, Wiessner (1985) destaca que pelo conhecimento e experiência do artesão e
existe uma diferença comportamental que gera por aspectos situacionais. O primeiro estaria
as escolhas isocrésticas, produto de um relacionado com as diferenças individuais, as
comportamento repetitivo e de imitação, e as estruturas de aprendizagem, a percepção e
escolhas estilísticas, geradas a partir de um decisão de fazer, a transmissão de conheci­
processo dinâmico de comparação dos mento e a tradição tecnológica. O segundo

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DIA S, A .S.; SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

vincula-se a aspectos como a procura do mesma região que podemos antever a possibi­
material, a manufatura, o transporte, a distri­ lidade de distinção entre identidades sociais
buição, o uso, a estocagem, a manutenção e ou culturais no registro arqueológico de
reparo, a reutilização e a deposição. Portanto, caçadores-coletores. Contudo, esta percepção
não haveria sentido questionar se a causa da nunca pode estar dissociada de uma análise
variabilidade é estilística ou funcional, mas contextual, na medida em que um estilo
investigar sistematicamente os processos de tecnológico só adquire sentido quando
ordem comportamental, social e ambiental dos compreendido como parte de um sistema
quais ela resulta. Embora Schiffer e Skibo tecnológico e este, por sua vez, de um sistema
neguem a relevância destes conceitos para o cultural mais amplo. Assim, no resgate das
entendimento da variabilidade, suas premissas cadeias operatórias de uma determinada
sobre a inter-relação entre performance, indústria lítica, estas devem ser compreendi­
escolhas técnicas e propriedade formal do das em conjunto e associadas ao contexto
artefato correspondem, de fato, à idéia da situacional da região estudada para possibili­
inter-relação entre estilo e função revisitada. tar a interpretação da variabilidade artefatual.
Fazendo um balanço dos pontos de vista No caso do estudo das indústrias líticas
analisados, poderíamos destacar alguns do sul do Brasil, estas discussões sobre a
aspectos que nos parecem centrais para o natureza dos sistemas tecnológicos e a
estudo da variabilidade de indústrias líticas: dimensão estilística das tecnologias são
a) que a variabilidade dos conjuntos de fundamentais, pois nos obrigam a tornar mais
artefatos líticos é resultado de escolhas complexos os nossos parâmetros de análise
tecnológicas, culturalmente determinadas, e sobre as mesmas.
que estas escolhas são indissociáveis da
função, na medida em que os artefatos são
idealizados para alcançar determinados fins; As indústrias líticas das
b) que estas escolhas tecnológicas Tradições Umbu e Humaitá
refletem estilos tecnológicos que, por sua vez,
residem na seleção dos materiais, técnicas e As reflexões desenvolvidas sobre os
seqüências de produção e nos resultados conceitos de sistema tecnológico e estilo
materiais destas escolhas; tecnológico em suas implicações para o estudo
c) que os estilos tecnológicos, sendo o de indústrias líticas abrem a possibilidade para
produto de uma tradição cultural, podem servir se repensar as Tradições arqueológicas pré-
como indicadores de identidades sociais e cerâmicas do sul do Brasil. Neste item objeti­
culturais. vamos levantar alguns tópicos neste sentido,
No entanto, o estabelecimento da diferen­ avaliando as lacunas existentes quanto aos
ciação de grupos culturais a partir de sistemas dados atualmente disponíveis nessa área e
tecnológicos distintos depende da compara­ destacando dois estudos de caso, cujos
ção contextual dos seguintes tipos de informa­ resultados permitem levantar propostas
ções: interpretativas associadas à questão do estilo.
a) análise comparativa de conjuntos As pesquisas arqueológicas desenvolvi­
tecnológicos líticos associados a diferentes das na região sul brasileira, entre as décadas
contextos arqueológicos de uma dada região; de 1960 e 1970,3 identificaram centenas de
b) identificação do estilo tecnológico
subjacente às escolhas técnicas que origina­
ram diferentes categorias de artefatos;
c) interpretação da funcionalidade dos (3) Estas pesquisas associavam -se ou seguiam as
contextos de deposição destes conjuntos de orientações teórico-m etod ológicas do Programa
Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA),
artefatos, pois forma e função são aspectos
coordenado por Betty M eggers e Cliford Evans. Para
indissociáveis no estudo do estilo. uma análise de seu processo de implementação e das
É da comparação entre estilos tecnoló­ orientações seguidas pelo Programa ver Dias (1994
gicos de indústrias líticas dos sítios de uma 1 9 9 5 ).

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DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecn ológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

sítios líticos classificados como pertencentes a pontas de projétil líticas foram associadas a
duas tradições tecnológicas em função da uma unidade histórico-cultural e, em oposição a
presença de determinados tipos de artefatos esta, aquelas nas quais as pontas estavam
diagnósticos: as pontas de projétil líticas, ausentes foram relacionados à outra unidade,
demarcando a Tradição Umbu, e os grandes subentendendo a existência de dois grupos
bifaces e talhadores que representam a caçadores-coletores distintos.
Tradição Humaitá (Meggers & Evans 1977). Os Em segundo lugar, a metodologia de
trabalhos de síntese, posteriormente elabora­ campo utilizada nas pesquisas que definiram
dos, apontaram uma dispersão espacial e as Tradições Umbu e Humaitá contribuiu para
temporal correlata,4 estando suas principais este quadro (Evans & Meggers 1965). Na
diferenças marcadas em termos ecológicos. medida em que o objetivo que orientou estes
Assim, a Tradição Umbu estaria centrada em trabalhos iniciais era identificar a distribuição
áreas abertas e de ecótone, entre floresta e espaço-temporal dos conjuntos pré-históricos
campo, e a Tradição Humaitá associada à sul brasileiros, os métodos de campo emprega­
exploração de ambientes florestais do planalto dos foram a seleção de áreas amplas (princi­
(Kem 1981,1983; Ribeiro 1979; Schmitz 1981, pais vales de rios) que, em sua maioria,
1984,1987). apresentavam contextos arqueológicos e
Uma revisão destes trabalhos, no entanto, ecológicos extremamente diversificados. Por
aponta uma série de lacunas que comprometem outro lado, os trabalhos de campo conduzidos
as interpretações sobre o significado da através de estratégias oportunísticas, privilegi­
variabilidade lítica entre ambas as Tradições. aram coletas assistemáticas de superfícies e
Em primeiro lugar, deve-se destacar o enfoque sondagens em níveis artificiais (através de um
teórico-metodológico empregado em sua ou dois poços testes por sítios) oferecendo
definição. Seguindo uma perspectiva histórico- uma amostragem dispare no que se refere aos
cultural, o fator presença/ausência de artefatos sítios líticos. Igualmente, os sítios arqueológi­
guia foi fundamental para a definição das fases cos foram considerados como unidades não
arqueológicas destas Tradições que, em última relacionadas entre si nas áreas pesquisadas e
instância, subentenderiam unidades sociais. De os sítios líticos foram tratados de forma
acordo com Meggers e Evans (1985: 5), embora homogênea, não se considerando a dinâmica
fases arqueológicas correspondam a abstra­ de ocupação do espaço de comunidades
ções, sem base etnográfica, “as tradições caçadoras-coletoras.
definidas em termos de fases que compartilham Um terceiro aspecto diz respeito à metodo­
um conjunto de elementos (...) [comuns] logia de análise das coleções líticas. A maioria
provavelmente representam entidades tribais ou dos trabalhos publicados centra sua atenção
lingüísticas”. No caso dos conjuntos líticos nos artefatos, desprezando os resíduos de
aqui analisados, as similaridades morfológicas lascamento. Também não há padronização no
dos artefatos guia foram utilizadas como tratamento dos dados, caracterizando-se
principal fator para estabelecer unidades alguns relatórios pela utilização da metodolo­
culturalmente significativas em termos de fases gia francesa (Laming-Emperaire 1967) e outros
e tradições. Deste modo, todas as fases pré- na elaboração de listas de artefatos definidos
cerâmicas do sul do Brasil que apresentavam por sua morfologia, muitas vezes não apresen­
tando dados quantitativos associados a estas
categorias, dificultando comparações. Nestas
(4) Ambas Tradições abrangem os Estados do Rio análises destaca-se a busca do artefato guia,
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Para a centrada na tentativa de filiação cultural dos
Tradição Umbu as datações radiocarbônicas apontam conjuntos líticos analisados a qualquer uma
uma dispersão temporal entre 10.500 anos A.P. (fase das duas tradições. Por outro lado, alguns
Uruguai) ao início da Era Cristã (fases Lagoa, Patos e
autores buscaram estabelecer cronologias
Chuí). A Tradição Humaitá apresenta datações entre
6.500 A. P. (fase Antas) e 1.100 A.P. (fase Canhem-
relativas, com base no método Ford (Ford
borá), embora a maioria de suas fases apresentem 1962), a partir da seriação de pontas de projétil
apenas estim ativas cronológicas de ordem relativa. líticas, obtendo resultados questionáveis.

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

Fazendo um balanço destes trabalhos fica derivam de uma distinção cultural e/ou crono­
a questão: o que realmente diferencia em lógica. Procurando refletir sobre estas ques­
termos culturais as tradições Umbu e Humaitá? tões destacamos dois estudos de caso para o
A nosso ver, a variabilidade entre os conjun­ Rio Grande do Sul onde a metodologia de
tos líticos observada para estas Tradições análise das coleções líticas permite sugerir
pode ser compreendida a partir de questões problemáticas associadas às questões levanta­
não apenas de ordem adaptativa, mas também das.
de ordem funcional e estilística, subentendem Em primeiro lugar, destacamos o trabalho
escolhas tecnológicas que refletiriam, em de Hoeltz (1995, 1997) que procurou investigar
última instância, identidades culturais. Portan­ quais características tecnológicas distinguiri-
to, o problema em questão ultrapassa os am as Tradições Umbu e Humaitá. Para tanto, a
limites teórico-metodológicos das pesquisas autora desenvolveu pesquisas que objetiva­
levadas a cabo até o presente, demandando ram, através de trabalhos comparativos entre
novas orientações analíticas em campo e coleções, estabelecer padrões relativos à
laboratório. organização tecnológica das Tradições em
Podemos exemplificar esta idéia através da questão. Tendo por base as coleções líticas de
análise dos resultados das prospecções 10 sítios a céu aberto localizados no vale do
realizadas por Miller no nordeste do Rio rio Pardo, Hoeltz buscou estabelecer critérios
Grande do Sul, abrangendo os vales dos rios de diferenciação entre os conjuntos líticos dos
dos Sinos, Maquiné, Três Forquilhas e sítios que transcendessem os tradicionais
Mampituba (Miller 1967, 1974). Nesta região artefatos guia, utilizados em trabalhos anterio­
foram identificados mais de 200 sítios líticos res para classificar a afiliação cultural das
distribuídos cronologicamente ao longo de ocupações da área (Ribeiro 1991). A autora
4.000 anos de ocupação da área. A associação trabalhou com critérios tecno-tipológicos,
destes sítios à Tradição Umbu está relaciona­ reconstituindo as cadeias operatorias e
da aos abrigos sob rocha (105 sítios), sendo comparando estatisticamente as categorias de
apenas 5 sítios a céu aberto associados à artefatos associadas aos resíduos de lasca-
mesma pela presença de pontas de projétil. mento em cada sítio. Como estes se distribuí­
Todos os demais sítios líticos que não apre­ am em diferentes áreas geomorfológicas que
sentaram pontas de projétil foram vinculados à caracterizam a região (planície, encosta e
Tradição Humaitá, embora a região também planalto), foi possível estabelecer um critério
apresente uma ampla ocupação ceramista pré- de comparação entre as indústrias quanto à
histórica relacionada à Tradição Guarani, nos disponibilidade de matéria-prima e estratégias
vales, e à Tradição Taquara, no planalto. de confecção de artefatos. O conjunto de
Partindo das discussões levantadas neste sítios apresentou uma homogeneidade grande
trabalho, podemos sugerir que a ausência de quanto à organização da tecnologia de produ­
pontas de projétil líticas nos sítios arqueológi­ ção de artefatos, com marcada preferência pela
cos associados à Tradição Humaitá poderia utilização da matéria-prima disponível local­
marcar uma funcionalidade diferenciada mente. As estratégias de redução e produção
destes, tanto associada a sítios de atividade de artefatos também seguem um padrão
específica da Tradição Umbu quanto das homogêneo, estando presentes nos sítios
Tradições ceramistas. Tais questões não apenas os resíduos de lascamento associados
podem ser compreendidas com clareza somen­ à redução primária e secundária de artefatos
te com base nos relatórios de pesquisa e bifaciais e ausentes ou sub-representados
devem ser levadas em consideração para a aqueles associados a atividades de preparação
reavaliação dos estudos na área. de núcleos. A única exceção é representada
O problema de pesquisa por nós destaca­ por um sítio localizado no planalto, onde se
do coloca em pauta a relação entre variabilida­ observa um padrão de resíduos, uso de
de e variação para os conjuntos líticos identifi­ matéria-prima e artefatos que foge aos demais.
cados como pertencentes às Tradições Umbu Com base nas diferenças na produção de
e Humaitá, buscando observar em que medida peças bifaciais, Hoeltz propõe que a Tradição

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líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

Umbu seria caracterizada na área por apresen­ para as fases da Tradição Umbu (Miller 1969c,
tar artefatos de morfologia variada (incluindo Ribeiro & Hentschke 1976). As críticas a este
as pontas de projétil), elaborados sobre seixos enfoque partem do princípio de que a morfo­
e lascas unipolares, com dimensões pequenas logia desta categoria de artefatos não se
ou médias e com 1/3 ou menos de sua superfí­ constitui enquanto marcador temporal eficien­
cie coberta por córtex. A Tradição Humaitá, te, pois sua variabilidade formal pode respon­
representada em um único sítio do planalto, der a razões alheias à cronologia, dependentes
caracterizar-se-ia por bifaces elaborados sobre de características tecnológicas e funcionais.
bloco, com dimensões que variam entre médio Igualmente, estabelecer distinções cronológi­
a extra-grande e superfície coberta em até 2/3 cas baseadas em diferenciações morfológicas
por córtex. de uma única categoria de artefatos torna-se
Embora ressalte a importância de compre­ problemático, particularmente em situações
ender os sítios em conjunto, as interpretações arqueológicas como coletas de superfície e
de Hoeltz limitam-se em função das estratégias sítios analisados isoladamente ou relaciona­
de campo utilizadas que, por não se realizarem dos entre si, mas sem controle estratigráfico
através de coletas controladas ou escavações adequado, caso recorrente às metodologias de
em áreas amplas, impedem inferências quanto à campo empregadas no estudo de sítios
funcionalidade dos sítios. Contudo, os dados arqueológicos da Tradição Umbu até o
levantados abrem margem para o questio­ presente (Flenniken & Raymond 1986).
namento de uma efetiva coexistência de dois Partindo das premissas acima expostas, a
grupos contemporâneos na área. autora estudou a coleção de 404 pontas de
Um primeiro fator que deve ser considera­ projétil líticas associadas a um abrigo sob
do diz respeito à possibilidade de haver uma rocha, situado no vale do rio Caí,5 tendo em
variação de funcionalidade entre estes artefa­ vista as tendências tecnológicas gerais dos
tos. Embora os bifaces de grande porte conjuntos de artefatos em sua relação com os
associados aos sítios do planalto pudessem resíduos de lascamento. Os resultados permiti­
estar relacionados à exploração de recursos ram observar dois grandes grupos: pontas de
ecológicos mais diversificados do que os da projétil de morfologia lanceolada, derivadas de
planície, isto não indicaria grupos necessaria­ redução primária de lascas bipolares em
mente distintos em termos étnicos. Além calcedonia; e pontas de projétil pedunculadas
disso, o fato de o sítio do planalto apresentar produzidas a partir da redução primária de
peças de maior porte e cobertura cortical lascas unipolares em arenito silicificado. A
extensa pode referir-se a um local de produção distribuição estratigráfica das pontas de
e abandono de peças inacabadas, associado projétil demonstrou que as freqüências dos
aos grupos assentados na planície. Destaca-se diferentes tipos apresentavam correspondên­
o fato de que na planície os talhadores bifa- cia entre si e com a distribuição dos resíduos
ciais, de menor porte não estão ausentes. Este de lascamento e demais artefatos. Portanto,
não parece ser um dado isolado para o Rio variações na freqüência de determinados tipos
Grande do Sul, pois algumas das fases da morfológicos de pontas de projétil não corres­
tradição Umbu apresentam em seus conjuntos ponderiam a um indicador de mudança tempo­
líticos talhadores que tipicamente seriam ral associado ao conceito de fase, mas em um
associados à tradição Humaitá, como é o caso reflexo dos padrões de descarte ao longo da
da fase Itaqui, no vale do médio rio Uruguai ocupação do sítio (Dias 1996).
(Miller 1969b), da fase Amandaú, no vale do Embora este estudo tenha demonstrado
alto rio Uruguai (Miller 1969a), e da fase que a representatividade das pontas de projétil
Araponga, no vale do rio das Antas (Miller enquanto marcadores temporais deve ser
1971). relativizada, por ser um trabalho pontual não
O segundo estudo de caso diz respeito às
pesquisas de Dias (1994, 1996) quanto à
variação morfológica entre pontas de projétil, (5) Sítio RS-C-43: Picada Capivara, localizado no
entendidas como marcadores cronológicos município de São Sebastião do Caí, Rio Grande do Sul.

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D IA S, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecnológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e'E tnologia, São Paulo, 11: 95-108, 2001.

permite avaliar as causas de variação entre arqueólogos. Como podemos observar a partir
conjuntos líticos da Tradição Umbu para do debate apresentado, a forma dos artefatos e
diferentes cronologias e áreas. Uma possibili­ a sua distribuição espacial e temporal são as
dade de interpretação alternativa é levantada variáveis básicas sobre as quais os conceitos
pelo conceito de estilo tecnológico, ao sugerir de estilo e função são utilizados para alcançar
que a variação dos conjuntos de pontas esta compreensão.
líticas, funcionalmente equivalentes, seria Nossa atenção no debate sobre o proble­
resultante de escolhas técnicas refletidas na ma do estudo estilístico das indústrias líticas
seleção dos materiais, nas seqüências de traz subjacente a nossa preocupação em
produção e nos resultados materiais destas compreender de uma maneira mais aprofun­
escolhas. Portanto, a noção de estilo tecno­ dada as causas da variabilidade (entre os
lógico, entendido enquanto produto de uma conjuntos artefatuais) e da variação (nos
tradição cultural, pode servir como indicador conjuntos artefatuais) que se observa nas
de identidades sociais e culturais para a indústrias líticas do sul dó Brasil.
Tradição Umbu, demarcadas regional ou Quando distinguimos variabilidade de
temporalmente. Contudo, tal abordagem só variação estamos seguindo a proposta de
torna-se possível através de estudos regionais Schiffer (1992: 18-21) que associa o conceito
que estabeleçam padrões comparativos de variabilidade aos padrões materiais dos
uniformes em termos intra e inter-sítio, basea­ conjuntos arqueológicos que se estendem por
dos em cronologias sólidas. longos períodos de tempo e cobrem extensas
A incorporação da noção de estilo tecno­ áreas geográficas. Em outras palavras, o autor
lógico a esta reflexão contribui para ampliar o relaciona o conceito de variabilidade à idéia de
referencial interpretativo quanto à variação cultura arqueológica, em alusão às propostas
dos conjuntos de pontas de projétil líticas da de Willey e Phillips (1958). Segundo Schiffer, é
Tradição Umbu, além do referencial cronológi­ sobre esta base de padrões materiais de
co. A partir deste enfoque abre-se a discussão grande extensão espaço-temporal que os
para a possibilidade de estarmos diante de arqueólogos criam seqüências que são
uma variação tecnológica ligada a escolhas definidas a partir das variações observadas.
culturais que derivam de processos de intera­ Estas variações consistem, portanto, nas
ção entre indivíduos pertencentes a uma diferenças nos conjuntos de artefatos que
mesma tradição, sendo, portanto, funcionais e ocorrem espaço-temporalmente no interior de
estilísticas. O problema das variações regio­ uma dada tradição.
nais representadas pelas fases da Tradição Sendo assim, a nossa preocupação é
Umbu pode sugerir que alguns dos padrões entender quais aspectos, além do artefato
tecnológicos observados entre coleções de guia, justificariam a distinção entre dois
sítios contemporâneos em áreas distintas, conjuntos líticos originalmente definidos em
englobando a variação morfológica das pontas termos de tradições arqueológicas e divididos
de projétil, poderiam representar identidades em diferentes fases arqueológicas para o sul
regionais. No entanto, isto requer uma revisão do Brasil. Nossa proposta é que se tomem
crítica dos critérios de definição destas fases, mais complexos os parâmetros definidores de
associado à complexificação da idéia de sua variabilidade, bem como, que se procure
interpretação contextual dos vestígios arqueo­ apreender contextualmente as causas de suas
lógicos para o estabelecimento de uma tradi­ variações internas.
ção ou fase. Ao reconhecermos a importância da noção
de estilo tecnológico pretendemos ressaltar
que o processo produtivo é um campo de
Conclusão análise complexo, no qual diferentes fenôme­
nos (comportamentais, sociais, culturais e
Compreender o significado e as causas da físicos) podem atuar e contribuir na configura­
variabilidade e da variação da cultura material ção dos itens materiais. Neste sentido, torna-
é uma das principais preocupações dos se central para esta reflexão a noção de que a

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DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Sistem a tecnológico e estilo: as im plicações desta interrelação no estudo das indústrias
líticas do sul do Brasil. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77: 95-108, 2001.

técnica constitui-se da inter-relação de elemen­ quia no seu emprego; entre os homens e os


tos (matéria, energia, objetos, gestos e conhe­ utensílios, principalmente no que se refere ao
cimentos) que fazem parte de um conjunto de saber-fazer; entre os indivíduos que participam
cadeias operatorias, ou seja, de uma “série de no processo de produção; entre os indivíduos,
operações envolvidas em qualquer transforma­ a matéria e os artefatos, no que concerne aos
ção da matéria (incluindo o nosso próprio usos que deles fazem; entre as diferentes
corpo) pelos seres humanos” (Lemonnier 1992: matérias, em relação à sua disponibilidade e
26). E a partir da análise e compreensão destas aplicabilidade (adaptado de Muchnik 1987: 78-
cadeias operatorias que se torna possível 82 e Schiffer e Skibo 1997: 31-39). Em resumo,
verificar a natureza das relações que se para entender a variabilidade e a variação dos
estabelecem entre a matéria e os objetos conjuntos artefatuais é necessário, antes de
utilizados na sua transform ação; entre os mais nada, apreender os processos a partir dos
utensílios, na medida em que há uma hierar­ quais estas foram resultantes.

DIAS, A.S.; SILVA, F.A. Technological systems and style: the implications of this
interrelationship in the study of lithic industries of southern Brazil. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77 : 95-108 , 2001.

ABSTRACT: Starting from the evaluation of the concepts of technological


system and style, we will analyze the notion of technological style and its
implications in the study of lithic industries. We will also contemplate its
application in the study of Umbu and Humaita Tradition’s lithic assemblages,
having as reference two case studies.

UNITERMS: South-Brazilian archaeology - Lithic technology - Style -


Hunter-gatherers.

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R ecebido p a ra p u b licação em 9 de abril de 2001.

108
Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paúlo, 11: 109-124, 2001.

POSSIBILIDADES DE INTERPRETAÇÃO DA
CADEIA OPERATÓRIA DE PRODUÇÃO DE
INSTRUMENTOS LÍTICOS - SÍTIO PEDREIRA (MT)

Paulo Jobim Campos Mello*


Sibeli Aparecida Viana*

MELLO, P.J.C.; VIANA, S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de


produção de instrumentos líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de
A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

RESUMO: O presente artigo apresenta a cadeia operatória para a confec­


ção de instrumentos líticos lascados em um dos sítios escavados durante o
‘Projeto de Resgate do Patrimônio Arqueológico da UHE Manso (MT)’.

UNITERMOS: Cadeia operatória - Indústria litica - Estado do Mato


Grosso.

Introdução decoradas etc.), tomando também mais clara a


percepção da mudança cultural. Assim, os
Os instrumentos líticos dominaram o artefatos mais característicos de certos
conjunto de material arqueológico por um estratos eram utilizados como ‘fósseis direto­
grande período na maior parte do mundo. Não res’, permitindo o reconhecimento e ordenação
é surpresa, portanto, que as tendências de da sucessão das facies industriais e das
análise do material lítico tenham seguido a culturas que eles identificavam.
trajetória comum de análise da arqueologia em A maioria dos estudos das indústrias líricas
geral (Odell 1996). pré-históricas, portanto, restringia-se à descri­
Como podemos ver em Karlin; Bodu & ção e à classificação de somente uma fração
Pelegrin (1991), a pré-história, desde o século dos testemunhos, em detrimento de uma
XVIII, consagrou a maior parte de seus interpretação mais geral das atividades técnicas
esforços no estabelecimento de um quadro nas quais esses testemunhos se inserem.
crono-cultural. Esse objetivo fez com que se Não faz muito tempo que a pré-história,
focalizasse o interesse sobre os testemunhos com André Leroi-Gourhan na década de 1950,
cuja intencionalidade era mais clara e imediata­ ampliou esses objetivos: as atividades técni­
mente acessível pela observação direta cas, cujos objetos são os testemunhos
(instrumentos líticos retocados, cerâmicas materiais, tomaram-se um campo de pesquisa.
Se o estudo tipològico ‘clássico’ das
indústrias provou seu valor para uma primeira
identificação cultural dos grupos graças à
(*) Instituto G oiano de Pré-história e A ntropologia comparação das indústrias (cronologia -
da Universidade Católica de Goiás. tempo de longa duração), convém se chegar

109
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

hoje a uma melhor precisão do que essa No total, foram coletadas 376 peças
indústria testemunha (cotidiano - tempo de líticas,2 havendo o predomínio do arenito (338
curta duração) (Karlin; Bodu & Pelegrin 1991). peças), aparecendo, ainda, o sílex (34 peças),
É possível perceber, portanto, que o calcedonia (duas peças) e o quartzo (duas
conjunto lítico resulta de uma série complexa peças).3
de inter-relações envolvendo seleção de O material aparece desde a superfície até
matéria-prima, economia de debitagem, técnica os 40 cm de profundidade, sendo que a grande
de lascamento, função de sítio e sistema de maioria das peças, 335, correspondendo a
assentamento/subsistência. Assim, se se 90,8%, foi recolhida até os primeiros 10 cm.
deseja obter dados significativos sobre o Em relação ao peso geral4 desse material, é
comportamento humano, deve-se analisar o possível ver também o predomínio do arenito
conjunto inteiro de relações (Thacker 1996). sobre as demais matérias-primas: 50.955 g de
Foi essa a abordagem utilizada para a arenito, representando 83,86% do geral de
análise do material lítico da área afetada pela material do sítio, 9.765 g de sílex, representando
construção da UHE Manso (MT).1 Pretende­ 16,07% e 45 g de quartzo, representando 0,07%.
mos, nesse artigo, mostrar o início dessa Foram identificadas duas técnicas de
análise, com a cadeia operatória de um dos lascamento - a unipolar e a bipolar, nos três
sítios escavados. tipos de matéria-prima.

1. Área da pesquisa 2. O material arqueológico em arenito5

A construção da barragem da UHE Manso O material em arenito pode ser dividido


(localizada nas coordenadas N 8.355.500 e S nas seguintes categorias: 281 lascas (sendo
631.000) formou um lago de aproximadamente 208 inteiras, 72 fragmentos proximais e uma
429 km2, abrangendo parte dos municípios de lasca de refrescamento de plano de percussão
Chapada dos Guimarães, Rosário do Oeste e de núcleo unipolar), oito núcleos unipolares,
Nova Brasilândia. A área afetada pelo empre­ sete suportes retocados, 12 instrumentos
endimento mostrou-se extremamente rica em utilizados brutos, 22 lascas bipolares sobre
termos arqueológicos, tendo sido localizados seixo, oito núcleos bipolares.6
92 sítios arqueológicos pré-históricos, sendo
que 60 dentro da área a ser diretamente afetada 2.1. Núcleos unipolares
e os restantes nas suas imediações.
Será apresentada, no presente artigo, a
Foram considerados como núcleos
análise do material lítico do sítio Pedreira, um
unipolares os blocos de matéria-prima rocho­
dos sítios escavados durante o projeto de
sa, dos quais foram retiradas lascas para
resgate. Esse sítio localiza-se nas coordenadas
obtenção de instrumentos (Tixier et al. 1980).
UTM 21.636598 E / 8.334039 N. Está implanta­
do em um terreno com declividade inferior a
10%, a cerca de 20 m de um pequeno córrego e
a 1.250 m do rio principal, o rio Quilombo. (2) Não foram computados os fragmentos de lasca e
O material está disperso por uma área de de matéria-prima, que só foram pesados.
(3) Não há evidências de ação de fogo sobre o
aproximadamente 14.000 m2, onde foram
m aterial.
realizadas 53 sondagens de lx l m, além de ter (4) Aqui, foram incluídas todas as categorias do
sido delimitada uma área de 400 m2 , na qual material: lascas, fragmentos de lascas, instrumentos,
coletou-se material de superfície (Prancha 1). núcleos, fragmentos de núcleos, percutores e
fragmentos de matéria-prima.
(5) Só o material em arenito, que apareceu num
maior número de peças e do qual foi possível esboçar
(1) Projeto em desenvolvim ento pelo IGPA/UCG em a cadeia operatória, será descrito com mais minúcia.
convênio com FURNAS Centrais Elétricas desde (6) Para a descrição detalhada dessas peças cf. Viana,
1 999. M ello; Barbosa (2002).

1 1n
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . P ossibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - S ítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

LEGENDA
□ SONDAGEM SEM MATERIAL
■ SONDAGEM COM MATERIAL LÍTICO
B COLETA DE SUPERFÍCIE
J CÓRREGO
«GROTA
OBS AS ÁREAS DAS SONDAGENS ESTÃO 3
VEZES MAIORES. PARA EFEITO DE VISUALIZAÇÃO

PRANCHA 1

m
MELLO. P.J.C.; VIANA. S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 20,01.

A análise tecno-morfológica dos oito apresentar face superior lisa ou com uma ou
núcleos da coleção demonstrou que esses duas nervuras.
suportes eram obtidos a partir de seixos
grandes, medindo de 54 a 98 mm e média de 2.2. Instrumentos modificados por retoques
72,35 mm de comprimento; de 86,4 a 164,4 mm e
média de 109,33 mm de largura e 57,8 a 144,7 Foram classificados sete instrumentos,
mm e média de 87, 95 mm de espessura. Acerca compostos por retoques que não formam um
da intensidade de exploração dos núcleos, padrão específico, não apresentando, portan­
ressalte-se que nenhum deles se encontra to, forma definida (Prancha 2). Instrumentos
totalmente esgotado. Sobre a qualidade da tecnológicamente semelhantes foram descritos
matéria-prima, observou-se que os núcleos por Fogaça; Sampaio e Molina (1997).
apresentam-se com matéria-prima homogênea, Todos os instrumentos são espessos e
com ausência de intrusões, assim como de pouco elaborados. São raras as peças que
grandes negativos refletidos na superfície. apresentam marcas de façonnage, caracteri­
Essas informações, associadas ao contexto zando-se por terem formas grosseiras e
ambiental onde o sítio esteve instalado, com preliminares. As atividades de moldagem,
abundância de matéria-prima de boa qualidade executadas em poucos instrumentos do sítio
à sua disposição, levam a supor que não Pedreira, não se assemelham à definição
houve uma economia de matéria-prima; em proposta por Tixier; Inizan & Roche (1980) que
outras palavras não houve uma preocupação as caracterizam como uma sucessão de
em exploração total do suporte, já que no seu operações de lascamento cujo objetivo é
entorno havia grande disponibilidade. moldar o instrumento pretendido. Os retoques
O fato de todos apresentarem forma localizados nos instrumentos também são
globular leva a pensar em métodos semelhan­ pouco elaborados e pouco representativos nas
tes de gestos de exploração desses núcleos. A peças, ou seja, estão dispostos em áreas
presença de uma lasca de refrescamento aleatórias, não formando um padrão específico
indica, por sua vez, prolongamento de explora­ e, portanto, não se caracterizando como
ção do núcleo, recuperando os ângulos aptos atividades finais que, conforme definição dos
para debitage. autores acima mencionados, teria como finalida­
Pela análise dos negativos dos núcleos, de dar o acabamento final ou reavivar a peça.
pode-se inferir que as lascas debitadas se - Instrumento sobre suporte indetermi­
classificam em dois tipos: uma maior - resul­ nado, com dimensões 42 mm x 31 mm x 17 mm.
tante da produção de lascas tanto na fase Apresenta retoques curtos e longos, paralelos,
inicial, de descorticagem, como de debitagem sobre nervura, delineando um gume côncavo,
- e outra menor, que pode estar relacionada ao com ângulo de cerca de 60° e peso de 20
reforço das arestas do núcleo ou produção de gramas. O instrumento não apresenta negati­
lascas pequenas. vos de lascas de façonnage', apenas negativos
As lascas maiores resultantes teriam saído das lascas de retoques abruptas (ângulo talão/
com formas quadrangulares, semi-circulares ou face interna de 120° a 125°), com uma forma
triangulares, com talões lisos, dimensões semi-circular, com talão liso, com apenas uma
aproximadas de 20 a 87 mm de comprimento e ou sem nenhuma nervura na face externa e
31 a 60 mm de largura, ângulo da face interna dimensões aproximadas de 7 mm x 10 mm;
do talão de 100° a 120° e face externa cortical, - Instrumento sobre núcleo, com dimen­
semicortical ou sem córtex, apresentando uma sões de 121 mm x 70 mm x 56 mm, apresentando
ou duas nervuras na face superior. As lascas retoques longos, alternantes, paralelos,
menores, por sua vez, teriam saído com formas delineando um gume convexo, com ângulo de
quadrangulares, semicirculares ou triangula­ cerca de 50° e peso de 460 gramas. O instru­
res, com talões lisos e lineares, dimensões mento apresenta negativos de lascas retoques,
aproximadas de 10 a 33 mm de comprimento e 7 que se apresentariam com inclinação semi-
a 32 mm de largura, ângulo da face interna do abrupta (ângulo talão/face interna de 105°),
talão de 95° a 110° e face externa lisa, podendo com forma triangular, talão liso, uma ou duas
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

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MELLO. P.J.C.; V IA N A . S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

nervuras na face externa e dimensões aproxi­ teriam inclinação semi-abruptas (ângulo talão/
madas de 9 mm x 9 mm; face interna de 120°), apresentando forma
- Instrumento sobre lasca, com dimensões triangular, talão liso, face superior com uma
de 164 mm x 118 mm x 63 mm, apresentando nervura e dimensões de 32 mm x 39mm;
retoques longos, diretos, paralelos, no bordo - Instrumento sobre suporte indetermina­
direito e nas partes mesial e distai, formando do, com dimensões de 104 mm x 56 mm x 42 mm,
duas coches, com ângulo de cerca de 70° e apresentando retoques diretos curtos, parale­
peso de 1.090 gramas. O instrumento apresenta los, formando uma coche, com ângulo de cerca
negativos de lascas de façonnage e de lascas de 70° e peso de 155 gramas. O instrumento
de retoque. As lascas de façonnage seriam apresenta negativos de lascas de façonnage e
semi-abruptas (ângulo talão/face interna de de lascas de retoque. As lascas de façonnage
105°), apresentando formas triangulares ou seriam semi-abruptas (ângulo talão/face
quadrangulares, talão liso, com uma ou interna de 110°), apresentando formas triangu­
nenhuma nervura na face externa e dimensões lares ou quadrangulares, talão liso, com uma
de 71 mm x 61 mm. As lascas de retoques ou nenhuma nervura na face externa e dimen­
resultantes seriam também semi-abruptas sões de 39 mm x 26 mm. As lascas de retoques
(ângulo talão/face interna de 105°, aproximada­ resultantes seriam semi-abruptas (ângulo
mente), quadrangulares e com talão liso talão/face interna de 105°), com forma triangu­
relativamente espesso, apresentando uma lar ou quadrangular, talão liso, apenas uma
nervura na face externa e dimensões aproxima­ nervura na face externa e dimensões aproxima­
das de 18 mm x 45 mm; das de 9 mm x 13 mm.
- Instrumento sobre lasca de seixo frag­ Tendo em vista que não foi verificada uma
mentado, com dimensões de 120 mm x 98 mm x diferença em termos tecnológicos entre esses
45 mm; apresentando retoques longos, diretos, instrumentos, mesmo entre aqueles com
escamosos, delineando um gume convexo, com evidências de negativos de façonnage,
ângulo de cerca de 70° e peso de 520 gramas. O dividiram-se esses materiais em duas categori­
instrumento apresenta negativos de lascas de as de instrumentos, tomando por base seu
retoque as quais teriam inclinação semi-abrupta aspecto morfológico:
e abrupta (ângulo talão/face interna de 110°, 1 - composta por peças espessas, sobre
aproximadamente), triangulares e quadran­ lascas ou massa central, sendo a maioria com
gulares com talão liso, apresentando uma ou matéria-prima recuperada sob forma de seixo. Os
duas nervuras na face externa e dimensões instrumentos dessa categoria medem de 164 a
131 mm de comprimento e 117 a 170 mm de
aproximadas de 19 a 30mm x 14 a 26 mm; largura e espessura de 62 a 45 mm. Apresentam
- Instrumento sobre lasca fragmentada, uma seqüência de retoques, os quais estão
com dimensões de 132 mm x 117 mm x 52 mm, representados nas posições diretas ou alternan­
apresentando uma seqüência de retoques tes, em formas paralelas, sub-paralelas ou
localizada na porção direita da peça: apresenta escamosas, longas ou curtas, formando gumes em
coches, com ângulos que variam de 50° a 80°.
retoques longos, diretos, delineando um gume
Somente um instrumento apresentou marcas,
côncavo, com ângulo de cerca de 60° e peso de embora grosseiras, de tentativa de façon n age.
755 gramas. O instrumento apresenta negativos Pela análise dos negativos, observou-se que essas
de lascas, as quais seriam semi-abruptas lascas teriam formas triangulares e quadrangu­
(ângulo talão/face interna de 120°, aproximada­ lares, com talões lisos e inclinação sempre semi-
abrupta (ângulo da face. interna/talão de 105° a
mente), com forma triangular e quadrangular,
120°). Os comprimentos são de cerca de 61 e 71 mm
talão liso, uma nervura na face externa e e face superior lisa ou com uma nervura,
dimensões aproximadas de 36 mm x 30 mm; enquanto as lascas de retoques resultantes teriam
- Instrumento sobre suporte indetermina­ formas triangulares e quadrangulares, de talões
do, com dimensões de 79 mm x 55 mm x 39 mm, lisos e inclinação semi-abrupta, sendo que
somente uma apresentou-se abrupta (ângulo da
apresentando retoques diretos, longos,
face interna/talão de 100° a 130°). Os com pri­
formando uma coche, com ângulo de cerca de mentos variam de 9 a 36 mm e de largura de 9 a
55° e peso de 150 gramas. O instrumento 45 mm, apresentando face superior com uma ou
apresenta negativos de lascas de retoque que duas nervuras;

1 14
MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. P ossibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (M T). Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

2 - a outra categoria caracteriza-se por 2.4. Lascas unipolares


peças menores, sobre lasca ou suporte não-
determinado, apresentadas em seixos ou em
categorias não determinadas. Os instrumentos
Foram consideradas como lascas peças
dessa categoria medem de 42 a 104 mm de que apresentam estigmas característicos de
comprimento, 31 a 56 mm de largura e espessura lascamento por percussão unipolar: bulbo,
de 17 a 42 mm, apresentando som ente uma talão, ondas de percussão etc. (Tixier; Inizan &
seqüência de retoques, os quais estão representa­ Roche 1980) e lascas bipolares sobre seixo, as
dos nas posições diretas ou em nervura, em
quais apresentam características dessa técnica
formas paralelas às escam osas, longos ou curtos,
formando gumes côncavos, em coches ou (Prous 1986/1990). Essa categoria foi subdivi­
retilíneos com ângulos que variam de 55° a 70°. dida em: lascas inteiras, lascas fragmentadas
Somente uma peça apresentou evidências de (presença da porção proximal) e fragmentos de
atividades de façon n age. lascas (porção mesial e/ou distai). Foram
tabuladas somente as lascas inteiras e as
Pela análise dos negativos, observou-se
fragmentadas, enquanto os fragmentos foram
que saíram lascas de façonnage de formas
somente pesados (Prancha 3).
triangulares e quadrangulares, com talões lisos
As características tecnológicas, como
e inclinação semi-abrupta (ângulo da face
podem ser observadas a seguir, em geral,
interna/talão de 110 ). Os comprimentos
coincidem com os negativos observados nos
dessas lascas são de cerca de 39 mm e largura
núcleos, bem como aqueles localizados nos
de 26 mm, apresentavam face superior lisa ou
instrumentos, o que denota uma possibilidade
com uma nervura. As lascas de retoques
de inter-relação entre essas classes.
resultantes teriam formas triangulares, qua­
As lascas pesaram 22.545 g, representando
drangulares ou semi-circulares, com talões 44,24% do total do arenito presente no sítio.
lisos e inclinação semi-abrupta e abrupta Quanto à cor, dez são brancas, oito cinza, 110
(ângulo da face interna/talão de 105° a 140°). Os avermelhadas e 152 amareladas. A maioria das
comprimentos variavam de 7 a 32 mm e de 10 a lascas unipolares (173) não apresenta córtex.
45 mm de largura, apresentando face superior Em seguida, aparecem aquelas que apresentam
lisa ou com uma nervura. uma pequena reserva cortical (69), depois as
semi-corticais (29) e, por último, as inteiramen­
2.3. Instrumentos utilizados brutos te corticais (9). A maioria delas é de seixo.
Com respeito à morfología,7 a forma
Dentre os instrumentos não-modificados quadrangular predomina (113), vindo a seguir
desse sítio, estão 11 percutores, todos em a triangular (45). Aparecem, ainda, a com mais
seixo, de tamanhos e pesos variados, o que de quatro lados (29), a subcircular (15) e a
sugere que esses percutores estariam relacio­ laminar (seis).
nados a diferentes etapas de produção dos Quanto às dimensões das lascas, o
instrumentos. O comprimento maior deles é 132 comprimento varia de 10 a 139 mm (média de
mm, o menor é 79 mm, com média de 105,6 mm, 52,2 mm e mediana de 48,5 mm), a largura de 8 a
a largura maior é 117 mm, a menor é 55 mm, 126 mm (média de 52,2 mm e mediana de 47,0 mm)
com média de 76,4 mm e a espessura maior é 52 e a espessura de 2 a 59 mm (média de 19,2 mm e
mm, a menor é 39 mm, com média de 43,4 mm. mediana de 18,0 mm).
Apresentam marcas de uso, localizadas nas Com relação ao perfil, o helicoidal e o
superfícies aplanadas, provavelmente por curvo aparecem quase na mesma quantidade
causa de atividade relacionada à percussão (80 e 73, respectivamente). Lascas com perfil
bipolar e vestígios em diversos pontos das convexo e retilíneo aparecem em menor
superfícies laterais das peças. quantidade (37 e 18, respectivamente).
O outro instrumento dessa categoria foi
classificado como um triturador, apresentando
em uma de suas faces marcas de intenso (7) A análise da morfologia das lascas, do perfil, do
picoteamento ou amassamento, que indicam número de nervuras e dim ensões, foi restrita às lascas
esta atividade. unipolares inteiras.

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de Arqueologia e E tn ologia, São Paulo, / / : 109-124, 2001.

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

Quanto ao número de nervuras na face 77,6 mm e mediana de 66,5 mm), a largura de 16 a


externa, a maior parte apresenta apenas uma 100 mm (média de 57,4 mm e mediana de 59,5 mm)
(67), vindo a seguir aquelas que apresentam e a espessura de 16 a 66 mm (média de 35,9 mm e
três ou mais (41). Também aparecem aquelas mediana de 30,5 mm).
que não apresentam nenhuma (35), duas (22),
em Y invertido (18), em Y (12), em T (uma), 2.7. Fragmentos de lascas
duas paralelas (oito) e uma vertical (quatro).
O talão liso é o predominante, aparecendo Foram classificadas nessa categoria todas
em 188, vindo a seguir o cortical (50) e o linear (18). as lascas que não apresentavam porção
Aparecem, ainda, o talão esmigalhado (sete), em proximal. Estão inseridas nessa categoria 3,765
asa de pássaro (cinco), diedro (três), facetado, em
gramas, que representam 7,39% do total de
vírgula e puntiforme (um de cada tipo).
material de arenito.
Em relação ao ângulo do talão/face interna,
este varia de 90° a 140° (média de 105,8° mm e
mediana de 110,0° mm). 2.8. Fragmentos de matéria-prima
Quanto ao comprimento do talão, pode-se
perceber que apresenta uma grande variação, Todo o material que não apresentava
indo de 3 até 108 mm (média de 31,5 mm e vestígio de lascamento foi introduzido nessa
mediana de 27,0 mm). categoria. No total, foram registrados 6,620
O mesmo acontece em relação à espessura gramas de matéria-prima, que representam
do talão, que varia de 1 a 51 mm (média de 13,8 12,99% do total de material de arenito.
mm e mediana de 11,0 mm).
Quanto ao acidente de lascamento, 56
lascas (20% do total) apresentam algum tipo, 3. Análise comparativa: negativo dos
sendo o sir et o mais comum (46). Aparecem, instrumentos x negativos dos
ainda, lascas refletidas (4), com lingueta (4) e núcleos x detritos de lascamento
transbordantes (2).
A análise comparativa das características
2.5. Lasca de refrescamento dos negativos dos instrumentos e dos núcleos
com as lascas presentes da coleção constatou
uma possível inter-relação entre essas catego­
Foi identificada uma lasca de refresca­
rias.
mento de plano de percussão medindo 94 mm
Com o objetivo de averiguar essa inter-
de comprimento, 42 mm de largura e 24 mm de
relação em nível estatístico, trabalhou-se
espessura e pesando 90 g, que apresenta, em
primeiramente com a categoria de dimensão
sua superfície, vários negativos de retirada de
das lascas (largura e comprimento), com o
lascas, orientados em diversas direções.
intuito de averiguar diferenças entre elas;
posteriormente, trabalhou-se com ângulo de
2.6. Lascas e núcleos bipolares talão e com presença de córtex, buscando uma
diferença para as lascas de dimensões peque­
Quanto ao material obtido pela técnica nas, de retoque e de preparação de núcleo; um
bipolar, foram identificadas 22 lascas e oito outro teste foi realizado, agora utilizando as
núcleos sobre seixo. dimensões de comprimento, largura e espessu­
Em relação às dimensões das lascas, o ra das lascas maiores; buscando diferenças
comprimento varia de 30 a 99 mm (média de ainda entre os tipos de lascas de descortica-
64,1 mm e mediana de 60,5 mm), a largura de 12 a gem e as de façonnage, foi realizado um teste
48 mm (média de 33,0 mm e mediana de 33,5 mm) utilizando as variáveis de comprimento e
e a espessura vai de 8 a 50 mm (média de 20,4 mm presença de córtex na face externa e, finalmen­
e mediana de 19,0 mm). te com o objetivo de refinar o teste anterior,
Já quanto às dimensões dos núcleos, o trabalhou-se com as categorias de tipo de
comprimento varia de 37 a 117 mm (média de talão e presença de córtex na face externa.

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MELLO. P.J.C.; V IA N A . S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatoria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

O primeiro teste, no qual foram utilizados a preparação de núcleo (sendo que 14 lascas
largura e o comprimento das lascas, mostra um podem pertencer a qualquer um dos grupos)
continuum, não podendo perceber-se nenhu­ (Fig. 2).
ma divisão entre os diferentes tipos de lascas Quanto ao grupo de lascas maiores, no
(retoque, preparação de núcleo, descortica- qual estariam representadas as lascas de
gem, façonnage, debitagem para obtenção de descorticagem, façonnage e que serviriam para
suporte para instrumento) em relação a esses suportes de instrumentos, essas últimas
atributos (Fig. 1). podem ser diferenciadas das demais pelas suas
A partir da observação dos negativos grandes dimensões (comprimento maior que
existentes nos núcleos e instrumentos, no 100 mm, largura maior que 80 mm e espessura
entanto, nota-se que as lascas referentes às
atividades de retoque e preparação de núcleo
apresentam dimensões menores (não ultrapas­

maior que 30 mm), características observadas


nos instrumentos fabricados sobre lasca.
Dentro da coleção há apenas cinco lascas com
sam os 30 mm de comprimento ou 35 mm de essas características (Fig 3).
largura) que as dos outros tipos. Para fazer a diferenciação entre as lascas
Trabalhando-se com esse grupo de lascas de descorticagem e as de façonnage, uma vez
menores, e ainda por meio da observação dos que elas apresentam dimensões semelhantes,
negativos dos instrumentos e dos núcleos, pode ser usada a quantidade de córtex: as
pode-se tentar distinguir aquelas referentes às primeiras apresentam-se inteiramente ou semi-
atividades de retoque das ligadas à preparação corticais e as últimas mostram-se sem córtex,
de núcleos tanto pela presença de córtex com uma pequena reserva ou, também, semi-
(enquanto as primeiras apresentam-se sem corticais (Fig 4).
córtex ou com apenas uma reserva cortical, as E possível notar que as lascas semi-
últimas podem apresentar-se, também, semicor- corticais podem pertencer a qualquer uma
ticais) como pelo ângulo talão/face interna (as das duas categorias. Esse grupo ambíguo
primeiras apresentam ângulo maior que 100°, pode ser diminuído com a utilização do tipo
enquanto as últimas têm ângulo menor que de talão: enquanto as lascas de descor­
120 °). ticagem podem apresentar talão liso ou
Assim, foram identificadas 21 possíveis cortical, nas de façonnage dificilmente
lascas de retoque e 34 possíveis lascas de apareceria este último tipo de talão. Assim,

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . Possibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, l l \ 109-124, 2001.

de uma inter-relação entre os núcleos, os


instrumentos e os detritos de lascamentos
presentes na coleção. A análise comparativa
desses elementos demonstrou a possibilidade de
essas categorias terem sido organizadas (desen­
cadeadas) numa série de operações que, segun­
do Balfet (1991), são como malhas indispensá­
veis e dependentes de uma cadeia operatória.
Essa cadeia operatória está caracterizada
por três fases (Prancha 4), sendo a primeira
realizada fora do sítio e as demais realizadas no
interior do assentamento, identificadas na
coleção ou inferidas a partir dos detritos de
lascamento.
A primeira fase, denominada Obtenção de
Fig. 3. Matéria-Prima, realizada fora do sítio consti-

as lascas que poderiam pertencer a estas


duas categorias ficam reduzidas ao número
de nove (Fig. 5).
No total, portanto, as lascas de descorti-
cagem aparecem em número de 20 e as de
façonnage em número de 36 (lembrando que
nove delas podem pertencer a qualquer um
desses dois grupos).

4. Reconstituição da cadeia operatória

A reconstituição da cadeia operatória do


sítio Pedreira só foi possível pela identificação

Fig. 5.

tui-se na primeira etapa de uma cadeia


operatória de fabricação de instrumento lítico.
No sítio Pedreira, as matérias-primas mais
utilizadas foram os grandes seixos de arenito
e de sílex, que poderiam ser adquiridos na
área de entorno do sítio (num raio de 5 km),
presentes tanto nos rios secundários, como
naquele de maior porte da área, o rio Quilombo,
localizado a cerca de 1.250 metros de distân­
cia do sítio.
A segunda fase da cadeia operatória,
realizada no interior do sítio, caracteriza-se
Fig. 4. pela produção propriamente dita dos instru-

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. Possibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
1íticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11'. 109-124, 2001.

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líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

mentos, elaborados pelas técnicas unipolar e da à quantidade expressiva desse material, às


bipolar. Através do lascamento unipolar, características grosseiras dos instrumentos e
predominante na coleção, foi se desencadean­ ao contexto do próprio sítio, situado numa
do uma série de gestos que, a partir de se­ cascalheira. Pensa-se que o limite dessa cadeia
qüências previsíveis, teriam transformado a operatória não seja unicamente a produção
matéria-prima no instrumento desejado. Nessa desses artefatos rústicos, mas sim a elabora­
fase, estão inseridas desde as primeiras ção de peças mais refinadas que pudessem
etapas, como a preparação do plano de atender a finalidades específicas. Essas peças
percussão, até a produção de suportes- para a teriam sido finalizadas e aproveitadas em
produção de instrumentos. Os suportes dos outros assentamentos da região que mantives­
instrumentos foram adequados a partir de sem alguma inter-relação com o sítio Pedreira.
métodos distintos de lascamento: debitagem, Essa estratégia permite que o gasto de energia
façonnage e fatiagem de seixo, cujas seqüênci­ seja dissipado de modo positivo, de forma que
as de operações foram identificadas da não seja transportada matéria-prima que não
seguinte forma: atenda às necessidades previstas.
Nesse sentido, estudo em nível de detalhe
1 - Atividades de debitagem - durante ou
a ser desenvolvido a posteriori pretende não
após as atividades de descorticagem, utilizando
um plano de percussão preparado ou não, as só encontrar em outros assentamentos da
lascas grandes, assim com o os fragmentos de região coleções líticas cujos suportes para os
matéria-prima, seriam utilizados com o suporte instrumentos já estão preparados, sem a
para instrumentos. Ressalta-se que lascas primeira fase da cadeia operatória, mas também
bastante espessas também poderiam passar por
elementos tecnológicos que possam inter-
atividades de façon nage e somente depois serem
finalizadas (retocadas);
relacioná-los.
2 - atividades de façonnage - dos grandes
seixos teria sido retirada uma lasca inicial; seu
negativo teria criado o plano onde as lascas de 5. Distribuição espacial
fa ço n n a g e sairiam com talão liso, face externa
cortical no início e, posteriorm ente, sem i-
cortical e sem córtex. Após a façonnage da Baseando-se em dados gerais como,
massa central, o instrumento tomaria sua forma tamanho do sítio, deposição de refugo arqueo­
final através das seqüências de retoques; lógico, implantação topográfica e reconsti­
3 - atividades de fatiagem - dos grandes
tuição da cadeia operatória, há fortes possibili­
seixos teria sido retirada uma lasca cortical;
posteriorm ente, sairiam outros tipos de lascas, dades de esse assentamento não ter sido de
porém não utilizando o plano de percussão habitação, mas de atividades específicas,
criado, mas “fatiando” o seixo, ou seja, as lascas relacionado à produção de instrumentos
sairiam com talão cortical, mas com face líticos, elaborados a partir das estratégias de
externa sem i-cortical, com córtex localizado no
fatiagem, façonnage e debitage. Esses instru­
dorso da lasca. Ressalta-se que lascas espessas
poderiam ser moldadas por atividades de
mentos apresentam-se, como já demonstrado,
fa ço n n a g e antes de serem retocadas.
pouco elaborados e, de modo geral são
grandes e toscos, os quais poderiam ser
Ao final dessa segunda fase, a base de transportados para outros sítios para servirem
produção dos instrumentos estaria finalizada, de suportes de peças mais elaboradas ou
sendo concluída na terceira etapa com as utilizadas como tal.
retiradas de retoque. Essa terceira fase poderia No entanto, a análise da distribuição
ser desenvolvida no interior do sítio, onde espacial do material lítico em arenito ficou
seriam produzidos instrumentos dos tipos 1 e comprometida por causa do estado de preser­
2, cujas descrições já foram apresentadas, ou vação do sítio, pela baixa densidade de
transportada para outros assentamentos, onde material e pelo método de escavação, os quais
instrumentos mais elaborados seriam con­ não propiciaram a identificação de área
feccionados. A hipótese de transporte de específica de produção dos instrumentos.
material preparado está sustentada na própria Na área de escavação (Prancha 5), obser­
diversidade de produção de suportes, associa­ va-se pouca densidade de material lítico,

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MELLO, P.J.C., V IA N A , S.A . P ossibilidades de interpretação da cadeia operatòria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

rKANCHA 5

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A. P ossibilidades de interpretação da cadeia operatoria de produção de instrumentos
líticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

disperso em sentido oblíquo, visualmente As duas metodologias mostram-se


perceptível na direção NO/SE, enquanto nas equivalentes. Então é provável que represen­
extremidades ocorre ausência de materiais. tem o total do sítio, tanto em termos quantitati­
Esses dados não sustentam a preservação de vos como qualitativos.
ateliês originalmente bem delimitados, ainda O problema da delimitação obtida para o
que fossem posteriormente alterados. sítio poderia ser explicado pelo intenso
A relação observável entre algumas remeximento de uma área, originalmente mais
categorias tecnológicas que, ao menos teorica­ concentrada e menor.
mente, deveriam estar interligadas, não sustenta A possibilidade de transporte de material,
a possibilidade de se reconhecer ateliês de levantada anteriormente, será aprofundada
lascamento pouco perturbados: a proporção pela análise tecnológica mais detalhada do
entre núcleos (oito peças) e lascas em geral (140 material, com reconhecimento de métodos de
peças) é de apenas 1:18. Deve-se atentar para o debitage, confecção de artefatos etc. Esse
fato de que se no grupo de lascas estão detalhamento permitirá ultrapassar os dados
incluídas aquelas resultantes de façonnage, até agora levantados, quando buscar-se-á
retoque etc., esta relação deve ser ainda menor. estabelecer as relações qualitativas entre as
Se tomarmos apenas as lascas corticais categorias para um melhor controle dos
(sete peças), que estão estreitamente ligadas à indícios ainda preliminares resultantes da
debitage, a proporção é de aproximadamente análise espacial ainda baseada em relações
1:0,88, inferior ao que seria de se esperar em se
quantitativas gerais.
tratando de seixos recuperados no curso
d ’água localizado próximo.
Por outro lado, comparando-se os dados da
Agradecimentos
área de coleta (área contínua) com os dados dos
materiais de superfície das sondagens de lm 2, as
relações mantêm-se muito próximas: lascas : Os autores agradecem ao Prof. Emílio
núcleos - 1:18 e lascas : núcleos - 1:1,33. Fogaça pelas valiosas críticas e sugestões.

MELLO, P.J.C.; VIANA, S .A. Possibilities o f interpretation o f the operational


sequence for the stone tool production - Pedreira site (MT). Rev. do Museu de
A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

ABSTRACT: This article presents the operational sequence for the stone
tool confection in one of the sites excavated in the course of the ‘Project of
Archaeological Rescue in the Manso Dam (MT)’.

UNITERMS: Operacional sequence - Lithic - Mato Grosso State.

Referências bibliográficas

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MELLO, P.J.C.; V IA N A , S.A . P ossibilidades de interpretação da cadeia operatória de produção de instrumentos
liticos - Sítio Pedreira (MT). Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 109-124, 2001.

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PROUS, A. VIANA, S.; MELLO, P.; BARBOSA, M.
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1 9 9 0 classificatórios. A rqu ivos do M useu de dos S itios A rq u eológicos do rio M anso/
H istória N atural, IX: 1-90. MT. R elatório Final. Projeto de R esgate
TH AC K ER, P.T. do P atrim onio A rq u eo ló g ico Pré-
1 9 9 6 H unter-gatherer lith ic econ om y and histórico da U H E -M anso/M T . G oiânia,
settlem ent system s. G.H. Odell (Ed.) UCG /IGPA.

R ecebido p a ra p u b lica çã o em 4 de ju n h o de 2001.


Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 125-140, 2001.

A ARQUEOLOGIA DA REGIÃO DE RIO CLARO: UMA SÍNTESE

Astolfo Gomes de Mello Araujo*

ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de
A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 11: 125-140, 2001.

RESUMO: A área arqueológica de Rio Claro, uma região compreendendo


vários municípios localizados na porção central do Estado de São Paulo, pode
ser considerada como uma das mais importantes em termos de arqueologia
brasileira, tanto por sua importância dentro do debate sobre o povoamento
das Américas como pela riqueza de seu registro arqueológico. Apresentamos
aqui um breve histórico da pesquisa arqueológica na área, uma visão geral das
características de seu registro arqueológico e os principais resultados obtidos
pelos diferentes grupos de pesquisa.

UNITERMOS: Arqueologia - Rio Claro - Estado de São Paulo - Paleoam­


biente - Paleoindio.

Introdução mais tempo pesquisando a região, entre 1964 e


1973, e em menor escala nas pesquisas realiza­
A porção centro-leste do Estado de São das por Maria C. Beltrão (Becker 1966, Beltrão
Paulo, cujo epicentro em termos de estudos 2000), Fernando Altenfelder Silva (1967, 1968),
arqueológicos pode ser considerado o Municí­ Caio R. Garcia e Dorath P. Uchôa (Uchôa 1988) e
pio de Rio Claro, é a região onde supostamen­ Luciana Pallestrini e José Luiz de Morais
te se localizam os sítios arqueológicos mais (Morais 1982,1983).
antigos do Estado.
A importância da região e a grande quanti­
dade de informações sobre ela referentes Localização geográfica e
justificam uma síntese, ainda que modesta, das aspectos ambientais
informações arqueológicas coligidas por
diferentes pesquisadores oriundos de institui­ A região em pauta situa-se em sua maior
ções diversas. Como seria de se esperar, as parte dentro da Depressão Periférica, uma
abordagens utilizadas foram um tanto distintas, Província Geomorfológica existente entre dois
bem como os objetivos de cada pesquisa. Este planaltos (Planalto Atlântico e Planalto Ociden­
trabalho irá tratar principalmente dos estudos tal), caracterizada por um compartimento topo­
realizados por Tom O. Miller Jr, que despendeu gráfico rebaixado, apresentando um relevo de
colinas suaves, formando um corredor de
aproximadamente 80 a 100 km de largura (IPT
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia/USP - DHP - 1981). A área situa-se, grosso modo, entre 22° 15’
Prefeitura M unicipal de São Paulo. e 23°45’ S e 47°00’ e 47°45' W, e é recoberta por

125
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, Sao
Paulo, 11: 12 5 -1 4 0, 2001.

uma densa rede de drenagem, tendo como rios como representativas de possíveis episódios
principais o Corumbataí e o Piracicaba, afluentes de queimada natural. Deste modo, os autores
do Tietê pela margem direita. (Mapa) correlacionam o carvão encontrado nos solos
O clima atual na região poderia ser classifi­ às fases climáticas mais secas. Isto pode ser
cado como Cwa (Kõppen), ou subtropical com verdadeiro, salvo os casos onde a existência
temperaturas médias anuais entre 20 e 21°C e de carvões seja relacionada à ocupação
acentuada amplitude térmica anual devido à humana. Um maior intercâmbio entre arqueólo­
circulação atmosférica. No entanto, a incidên­ gos e quaternaristas seria bastante proveitoso
cia de massas de ar promove um regime de para ambas as áreas de conhecimento.
chuvas cujo máximo da precipitação coincide De qualquer modo, os resultados obtidos
com os meses de verão, e o mínimo com os por Melo (1995) para datações de fragmentos
meses de inverno, o que coloca a região nas de carvão em solos coluviais da região de Rio
características de clima tropical. (Feltran Filho Claro são bastante interessantes. Segundo o
1981, Scheel et al. 1995). autor, “(•••) nota-se que as idades aparente­
A vegetação original, atualmente quase mente distribuem-se aleatoriamente com
completamente destruída, seria caracterizada relação à profundidade da coleta, às coordena­
por uma área de fronteira ecológica entre o das geográficas e níveis planálticos, mas
cerrado/cerradão (savana) e mata (floresta parece haver tendência de concentração de
estacionai semidecidual). Segundo o Projeto idades compreendidas no intervalo entre 6.500
Radambrasil (1983), a Região da Savana e 8.500 anos AR” (Melo 1995:76). Correlacio­
(cerrado) na área apresenta-se como uma nando esta possível idade para um clima mais
disjunção da ocorrência principal no Planalto seco com datações realizadas em outras
Central. Dentre as formações remanescentes localidades do país, o autor sugere que as
da savana, a Arbórea Densa (cerradão) mesmas estejam indicando uma variação
apresenta características xeromorfas, com dois paleoclimática significativa.
estratos bem definidos. A formação Arbórea Outro dado de possível correlação paleo­
Aberta (campo-cerrado) apresenta composição climática para a região foi obtido por Scheel et
florística semelhante à anterior, mas sua al. (1995), que dataram carvões do solo no
estrutura é mais simples. A Região da Floresta Município de São Pedro (SP), não muito
Estacionai Semidecidual ocorre em regiões com distante de Rio Claro, e obtiveram datas de
dupla estacionalidade climática, com mais de 2.250±40 AP e 5.540 ±40 AP. Estas duas
60 dias secos, ou com seca fisiológica provo­ datações foram provenientes de fragmentos de
cada pelo frio. Na área em questão, ocorrem as carvão soltos. Uma terceira datação, de 1.220
formações Submontana e Montana, definidas ±40 AP, foi realizada em uma estrutura de
de acordo com a altitude e a latitude (IBGE, combustão que os autores consideraram de
1992). provável origem antrópica. Apesar de uma
possível correlação entre a idade dos carvões
Dados paleoambientais e episódios de clima mais seco, somente um
recentes para a região maior número de datações, preferencialmente
realizadas fora de sítios arqueológicos, poderia
Desde meados da década de 70, qvando lançar mais luz sobre esta questão.
os últimos estudos de Arqueologia com
caráter regional foram realizados na área, até
os dias de hoje, não se pode dizer que os Os levantamentos arqueológicos na
conhecimentos a respeito dos paleoambientes região de Rio Claro
da região de Rio Claro tenham sofrido um
avanço muito significativo. Algumas datações Segundo Altenfelder Silva (1967, 1968), a
de C 14, feitas a partir de fragmentos de carvão região que compreende Rio Claro e adjacências
encontrados imersos em solos coluviais, há muito interessou pesquisadores e colecio­
começaram a ser realizadas a partir da década nadores devido à abundância de material
de 80. Tais datações estão sendo encaradas arqueológico, principalmente material lítico

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Paulo, 11: 1 2 5 -1 4 0 , 2 001.
ARAUJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 12 5 -1 4 0 , 2001.

lascado. Peças provenientes da região engros­ região, inserido dentro da Depressão Periféri­
saram coleções de particulares e atraíram ca, apresenta colinas suaves com desníveis
arqueólogos amadores, sendo, inclusive, a que não ultrapassam 40 a 60 m, formando um
falsificação de peças uma “atividade lateral verdadeiro corredor no sentido N-S. No
compensatória”. A prospecção mais sistemáti­ sentido E-W, o “caminho natural” seria o eixo
ca teria sido iniciada por Altenfelder em 1959, fluvial representado pela bacia do Rio Tietê,
pela Cadeira de Antropologia, Etnologia e localmente reforçado pela presença do Rio
Arqueologia da Faculdade de Filosofia, Piracicaba.
Ciências e Letras de Rio Claro. Em 1965, Maria O panorama inicial traçado por Altenfelder
C. Beltrão iniciou um projeto de levantamento dá conta de basicamente duas classes de
arqueológico paralelo na região. No ano de vestígios arqueológicos na região: sítios
1966, Altenfelder Silva insere-se formalmente líticos, caracterizados por serem amplos e
dentro do Programa Nacional de Pesquisas numerosos, e sítios cerâmicos, em número mais
Arqueológicas (PRONAPA), sob a coordena­ reduzido. Dada a maior facilidade com que
ção dos arqueólogos norte-americanos Betty geralmente são identificados sítios cerâmicos,
Meggers e Clifford Evans. Posteriormente, o é de se supor que a estimativa do autor seja
projeto de levantamento desvinculou-se do válida no que concerne ao tipo e à intensidade
PRONAPA. O responsável pelos trabalhos da ocupação pré-colonial na área.
seria Tom O. Miller Jr., então professor assis­ Apesar do reconhecimento da existência
tente da Faculdade de Filosofia, Ciências e de sítios líticos bastante amplos, Altenfelder
Letras de Rio Claro. As etapas de prospecção sugere que os mesmos seriam representativos
realizadas por Miller Jr. entre os anos de 1965 e de ocupações rápidas, “(...) sugerindo em
1967 abrangeram os municípios de Rio Claro, alguns casos tratar-se mais de campo de
Ipeúna, Charqueada, Itirapina, Cordeirópolis e pouso para sortidas de caça que habitações
Piracicaba, resultando na detecção de 97 sítios permanentes.” (Altenfelder Silva 1968:160).
arqueológicos. Um dos fatores que levou o autor a esta
Seguindo uma linha de pesquisa que pode conclusão foi a pequena espessura das
ser considerada bastante atual, e que infeliz­ camadas arqueológicas, que não ultrapassari­
mente não foi muito aplicada na Arqueologia am trinta centímetros. Trabalhos subseqüentes
brasileira de um modo geral, Altenfelder realizados por Miller Jr, publicados original­
justifica a inexistência de escavações sistemá­ mente na Tese de Doutoramento do autor
ticas por parte da equipe da FFCL de Rio Claro (Miller Jr. 1967) e posteriormente em outras
pelo fato de ser necessário primeiramente o publicações (Miller Jr. 1969a, 1969b, 1969c,
entendimento do panorama arqueológico da 1972), não favorecem a hipótese de os sítios
região, o que só seria feito por meio de um líticos da região de Rio Claro representarem
amplo trabalho de prospecção, uma vez que o ocupações tão rápidas, ou que fossem produto
“(...) trabalho de escavação implica na de populações que estavam “de passagem”:
destruição (...) e somente deve ser realizado
(...) para salvá-lo [o sítio] de uma destruição “O número de sítios nos horizontes
já iniciada ou inevitável, ou para responder líticos não tem que significar migrações;
um problema específico que não poderá ser pode, antes, significar ocupação intensiva da
resolvido de outra form a.” (Altenfelder Silva região por um povo, durante muito tempo.”
1968:158). (Miller Jr. 1968:40).
Alguns sítios apresentaram materiais
O panorama arqueológico inicial líticos em abundância; além disso, sabe-se
hoje que a espessura de uma camada arqueoló­
Os primeiros trabalhos de síntese e de gica é mais relacionada a processos de forma­
tentativa de correlação foram publicados por ção de sítio do que à duração da ocupação
Altenfelder (1967, 1968), que entendia a região propriamente dita (não tomando exemplos
como área de passagem e confluência de extremos como Tróia ou Jericó, bem entendi­
caminhos naturais. Com efeito, o relevo da do). Pode-se aventar, quando muito, a hipóte­

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se de que a região de Rio Claro e adjacências Dado o extenso trabalho de prospecção


tenha sido uma área de confluência de popula­ realizado na região, supomos que estas
ções pré-cerâmicas oriundas de outras regiões. observações sejam confiáveis, e não fruto de
No que se refere aos sítios cerâmicos, estes viés amostrai, comum em prospecções realiza­
poderiam ser atribuídos a dois grupos distintos: das estritamente ao longo de drenagens.
um grupo de sítios apresentando cerâmica No tocante à cronologia, apesar de ter sido
espessa com decoração plástica e pintada, aventado “um marcado hiato temporal” entre
atribuível à Tradição Tupiguarani (Altenfelder as ocupações pré-ceramistas e as ceramistas
Silva 1967:81) e outros sítios, em menor quanti­ (Altenfelder Silva 1967:82, 1968:163), a ausên­
dade, apresentando cerâmica pouco espessa e cia de datações absolutas e a existência de
escura, provavelmente relacionados à Tradição sítios líticos superficiais podem não corroborar
Itararé (Miller Jr. 1972). esta hipótese. Na verdade, toda a cronologia
Altenfelder coloca tentativamente uma da região foi realizada com base em métodos
cronologia baseada nos dados disponíveis à de datação relativa, quer seja pelo posicio­
época: um nível pré-cerâmico antigo, que seria namento estratigráfico dos níveis arqueológi­
datado entre 5.000 e 3.000 anos AP, contendo cos (no caso dos sítios líticos), quer seja por
apenas material lítico; um nível pré-cerâmico seriação de atributos estilísticos e tecnoló­
mais recente, entre 3.000 e 1.000 anos AP, gicos. Somente após a elaboração de uma
apresentando artefatos polidos; finalmente, o cronologia relativa é que foram datados alguns
nível cerâmico, entre 1.000 AP e a época da estratos, conforme será visto adiante.
colonização européia. Esta cronologia basea­
va-se no conhecimentos existente na época; o Estudo e interpretação dos
sítio arqueológico com datação mais recuada horizontes líticos segundo Tom O. Miller Jr.
do Brasil era José Vieira, com 6.683 anos AP
para o nível lítico mais profundo (Andreatta Antes de proceder ao apanhado geral das
1968, apud Miller Jr. 1968). interpretações realizadas por Miller Jr., seria
interessante colocar em contexto o autor e sua
Relações espaciais e temporais linha de pesquisa.
Os trabalhos de Miller Jr. podem ser
A ocupação do espaço pelas populações considerados pioneiros e mesmo exemplares,
indígenas da região de Rio Claro parece ter principalmente se levarmos em conta o então
obedecido a uma padronização distinta, estágio da Arqueologia em termos epistemo­
dependendo da faixa cronológica. Altenfelder lógicos, e o nível do conhecimento em termos
(1968:160) nota que há uma dicotomia com de Arqueologia brasileira. A ênfase na tecno­
logia lítica (e não simplesmente nos aspectos
relação à localização dos sítios líticos e
formais das peças), a preocupação com a
cerâmicos. Os primeiros encontrar-se-iam nas
interação homem-ambiente, o raciocínio
proximidades dos cursos d ’água, quer seja em
interdisciplinar e a fundamentação teórico-
terraços fluviais ou em elevações próximas.
metodológica explícita colocam os trabalhos
Os últimos, em sua maioria, estariam a cerca
deste autor em pé de igualdade com os
de um quilometro dos cursos d ’água e em
realizados pelos colegas de países mais ricos,
pontos elevados, onde a visibilidade dos
apesar do atraso que seria esperado na
terrenos adjacentes seria favorecida. Além
divulgação e acesso à bibliografia. Assim,
disso, o autor sugere uma maior coincidência
antecipando os colegas brasileiros em pelo
entre as ocupações ceramistas e as ocupa­
menos duas décadas, Miller Jr. já citava
ções atuais:
correntemente Butzer e Binford. O primeiro
“Os sítios do horizonte cerâmico acham-se capítulo de sua Tese de Doutoramento apre­
localizados quase sempre em áreas mais senta o posicionamento teórico que justificaria
próximas dos atuais centros de população, as tomadas de decisão efetuadas ao longo do
vilas ou cidades, coincidindo mesmo com elas, trabalho, incluindo discussões a respeito do
em alguns casos." (Altenfelder Silva 1967:82). tipo de analogia que seria usada nas interpre-
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Paulo, 11: 1 25-140, 2001.

tações (analogia comparativa geral) e qual o “vertical”, com execução de poços-teste e


conceito de cultura que mais seria adequado, a coletas em barrancos em detrimento de
seu ver, para o alcance dos objetivos propos­ escavações mais amplas, uma vez que seria
tos.1 Apesar de seus trabalhos apresentarem inútil tentar observar padrões espaciais em
uma ênfase em determinantes ecológicos que material arqueológico retrabalhado. Tal visão
atualmente poderia ser considerada um tanto pode ter, inclusive, chocado alguns colegas
excessiva, o mérito de explicitar teoricamente arqueólogos menos versados em processos
suas posições coloca o autor em uma categoria geológicos e geomorfológicos. O autor estava
à parte da de seus colegas. consciente de que somente os sítios arqueoló­
Saindo do domínio estrito da Arqueologia, gicos situados acima da linha de seixos superior
pode ser percebido nos textos de Miller Jr. um (mais recente) poderiam ser considerados
diálogo bastante profícuo com profissionais “depósitos primários” (Miller Jr. 1972:22).
das Ciências da Terra. Este diálogo, um
intercâmbio de informações na verdadeira Definição das tradições
acepção da palavra, resultou não só em líticas arqueológicas
aplicações da Geomorfologia à Arqueologia,
como é comum acontecer atualmente, mas em Com o aprofundamento das pesquisas
contribuições da Arqueologia à Geomor­ relacionadas aos horizontes líticos, Miller Jr.
fologia, o que é muito mais raro, para não dizer (1968) definiu duas tradições pré-cerâmicas
quase inexistente; a contraparte pode ser para a região; a Tradição Rio Claro e a Tradi­
exemplificada no artigo de M.M. Penteado, a ção Ipeúna. A diferença básica entre as duas
respeito das linhas de seixos (“stone lines”) da tradições estaria no tipo de tecnologia empre­
região de Rio Claro: gada na manufatura de artefatos líticos; na
Tradição Rio Claro haveria uma ênfase no
“Contudo, consideramos esta observação
lascamento e espatifamento, ou seja, na
e as conclusões a que chegamos válidas por
modificação da massa primordial de matéria-
estarem corroboradas por conclusões e dados
prima. A Tradição Ipeúna, por sua vez, seria
da pré-história.” (Penteado 1969:20).
calcada no aproveitamento de material com
Para entender a potencialidade e as formas preexistentes, como seixos, chapas,
limitações das correlações efetuadas por Miller cristais a fragmentos naturais. Não serão aqui
Jr., teríamos que nos aprofundar em uma série discutidas as definições de termos como
de definições geomorfológicas que talvez não “tradição”, “sub-tradição”, “fase” etc., que
caibam neste artigo. Outrossim, deve ficar carregam consigo uma série de problemas
claro que a cronologia e as reconstruções conceituais, mas será apresentada simplesmen­
ambientais tentadas pelo autor estavam te uma síntese dos conhecimentos adquiridos
balizadas, em termos de conhecimentos sobre a região.
paleoambientais e de processos morfoge- A Tradição Rio Claro foi subdividida em
néticos, no “estado da arte” da época. Basica­ quatro fases arqueológicas: a mais antiga seria
mente, o autor iniciou uma datação relativa a Fase Serra D ’Agua, caracterizada por uma
levando em conta a posição estratigráfica dos indústria com forte predominância de espatifa­
sítios arqueológicos e de seus “componentes” mento e lascamento bipolar (Miller Jr. 1972:72),
na paisagem. onde técnicas como a percussão direta estariam
O reconhecimento da gênese dos estratos praticamente ausentes. O tamanho dos imple­
onde o material arqueológico estava inserido mentos seria de médio a grande. Dentre os tipos
justificava em muitos casos uma abordagem de artefatos descritos estão incluídos plainas,
facas, raspadores, chopping tools e bolas, além
de bifaces foliáceas.2 Não foram observadas
1) N o caso, o conceito de cultura com o um meio
extra-som ático de adaptação, preconizado por L eslie
White e utilizado por Lewis Binford com o uma das 2) A tipologia definida pelo autor está em M iller Jr,
bases da “New Archaeology”. 1 9 7 2 :4 1 -4 4 .

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pontas de projétil. Posteriormente, o autor Monjolo Velho (Miller Jr. 1972:73), caracteriza­
admitiu que existem problemas de interpretação da pela predominância quase exclusiva de uma
no tocante à chamada técnica bipolar; as “lascas tecnologia de aproveitamento de seixos,
côncavas” e os respectivos “núcleos globu­ plaquetas e cristais em estado natural, fendi­
lares” ou “bolas” resultantes poderiam não ser dos ou com retoques marginais. Espatifamento
produtos de lascamento bipolar, e sim de e lascamento seriam raros. Os artefatos
alteração térmica. Outrossim, experiências de apresentariam tamanhos reduzidos.
lascamento com o núcleo parcialmente enterrado Um outro grupo de sítios apresentaria uma
no solo e aplicação tangencial do golpe de indústria ainda menos elaborada, com a utiliza­
percussão podem resultar em lascas côncavas ção de seixos, plaquetas e blocos naturais de
semelhantes às encontradas na região (Miller Jr., vários tamanhos, com um inventário tecno­
comunicação verbal).3 lógico ainda mais restrito do que o da Fase
A fase arqueológica seguinte, denominada Monjolo Velho.
Fase Santo Antônio, seria tecnológicamente O autor realizou também vistorias em sítios
embasada no espatifamento, mas apresentaria arqueológicos nos municípios de Conchas,
ênfase considerável na percussão direta com Anhembi e Laranjal Paulista, encontrando
percutor duro. Implementos de tamanho médio material lítico que “mostra essencialmente a
a grande, com grande freqüência de facas e mesma situação que observamos no norte do
raspadores, apresentando também chopping Rio Tietê” (Miller Jr. 1972:60), o que represen­
tools, plainas etc.. Pontas de projétil possivel­ taria uma extensão de pelo menos 100 quilôme­
mente fariam parte desta fase, embora não tros, na direção sul, das tradições e fases
tivessem sido encontradas in situ. reconhecidas para a região de Rio Claro.5
Posteriormente, teríamos a Fase Marchiori, Posteriormente, segundo Prous (1992), a
caracterizada por predominância da percussão chamada Tradição Rio Claro foi englobada no
direta com percutor duro, com baixa freqüência que se define atualmente como “Tradição
de espatifamento. Presença de pontas de Umbu”,6 sendo mantidos, porém, os nomes
projétil e machados de pedra polida.4 Maior das fases. Já a Tradição Ipeúna foi incluída na
freqüência de facas do que a fase anterior, e denominação genérica das “indústrias de
menor freqüência de raspadores. lascas sem pontas de projétil”, sendo mantida
Finalmente, a última fase da Tradição Rio a Fase Monjolo Velho.
Claro seria a Fase Pitanga, apresentando
variedade de técnicas de lascamento, com C ronologia
predomínio de percussão direta com percutor
duro e macio, incluindo percussão indireta. Os Conforme dito anteriormente, a cronologia
artefatos desta fase apresentariam característi­ das ocupações pré-coloniais para a região de
cas mais formais, com retoques ao longo dos Rio Claro foi feita principalmente levando em
bordos, peças trabalhadas bifacialmente, conta o posicionamento estratigráfico dos
incluindo formas foliáceas, ovoides e pontas níveis arqueológicos. Esta abordagem foi
de projétil, estas últimas em freqüência superi­ possível devido ao avançado estágio dos
or à fase anterior. Continua a presença de estudos de geologia e geomorfologia da região
artefatos de pedra polida. e, sobretudo ao caráter de multidisciplinari-
Para a Tradição Ipeúna, foi definida pelo dade adotado pelos pesquisadores envolvi­
autor apenas uma fase, denominada Fase dos, que transparece nos artigos escritos na
época.

3) Porém, as “lascas côncavas” mostradas na fig. 24


de M iller Jr. (1972:94) são provavelm ente lascas 5) Especificam ente a Fase Santo A ntonio da Tradição
térm icas. Rio Claro.
4) O que corrobora observações posteriores de que 6) Atribuição um tanto controversa, uma vez que
artefatos de pedra polida não são indicadores diretos nem todas as fases da Tradição Rio Claro apresentam
da existên cia de agricultura, e nem necessariam ente pontas bifaciais e, portanto, não poderiam ser
con tem p orân eos à cerâm ica. englobadas na Tradição Umbu.

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A correlação entre níveis arqueológicos apresentou peças pouco trabalhadas (possi­


ou “componentes” e formações geológicas velmente Tradição Ipeúna) misturadas a um
não é isenta de problemas. Se em alguns casos nível de cascalheira depositado imediatamente
pode-se ter um controle razoável sobre o que acima de uma formação geológica bem mais
representa a existência de artefatos em uma antiga (siltitos do Grupo Passa Dois, do
formação geológica, este nem sempre é o caso. Permiano Superior). Acima deste nível, interca­
Um depósito natural pode conter artefatos lado por pouco mais de um metro de solo
muito mais antigos do que a idade de sua coluvial, estaria o nível II (Tradição Ipeúna,
formação (como é o caso de uma cascalheira Fase Monjolo Velho) coincidindo com uma
de rio, por exemplo, que pode ter em seu “stone line”, ou linha de seixos, que na
interior artefatos erodidos de níveis mais interpretação de geomorfólogos seriam
antigos). O contrário também pode ocorrer; fragmentos de rocha transportados, remanes­
artefatos mais recentes podem se introduzir em centes de um período semi-árido. Após nova
depósitos subjacentes mais antigos, por meio intercalação de solo, com espessura de 1,20 a
de movimentação vertical. A primeira hipótese 1,40 m, haveria a deposição de mais um nível
foi amplamente reconhecida pelos pesquisado­ de linha de seixos com artefatos arqueológicos
res envolvidos (Miller Jr. 1972:25, Penteado misturados, que representariam o nível III
1969:25-28). Já no caso contrário, a inserção de (Tradição Rio Claro, Fase Serra D’Água).
peças mais recentes em níveis mais antigos é A partir da posição estratigráfica das
assunto pouco desenvolvido e pouco reco­ indústrias líticas, o autor utilizou-se da seria-
nhecido de um modo geral, quer seja entre ção de atributos tecnológicos e formais para
arqueólogos ou entre profissionais das entender quais atributos variavam com o
Ciências da Terra (Araújo 1995). Este último tempo. Assim, observou-se que, por exemplo,
fator pode, inclusive, invalidar algumas lascamento direto, tamanho da plataforma
interpretações relativas à existência de peças (talão), gumes de 15° a 35° e “canivetes” tinham
arqueológicas em extratos geológicos conside­ sua porcentagem aumentando com o tempo, ao
rados muito antigos. De qualquer modo, existe passo que raspadores laterais, gumes de 80° a
uma superposiçãq, de níveis arqueológicos na 100° etc. diminuíam com o tempo. Calculando as
região de Rio Claro que sugere um período porcentagens dos atributos sensíveis à passa­
longo de ocupação pré-colonial. Um exemplo gem do tempo e utilizando alguns cálculos
de “sítio-tipo” que representaria esta sucessão bastante simples, o autor construiu a chamada
e a cronologia relativa envolvida seria o Sítio “linha de regressão”, onde cada “componente”
Tira Chapéu (SP.IN.8), que apresentou três ou nível arqueológico é plotado em um plano
níveis arqueológicos distintos, ao longo de 4 cartesiano, formando uma reta que representa
metros de profundidade. Deve ficar claro que, um modelo de tempo (ver Miller Jr. 1972:68-71 e
no caso de Tira Chapéu, estamos lidando com fig- 58).
um depósito sedimentar, um depósito de baixa
vertente em processo de erosão. Segundo o Interpretações
autor e também Penteado (1969), os artefatos
teriam sido acumulados por processos morfo- A conjugação do posicionamento dos
genéticos, depositados juntamente com níveis arqueológicos em estratigrafía e a
material rochoso não trabalhado, durante um análise do material inserido em cada nível
período mais seco. Assim, o valor informativo levaram Miller Jr. a concluir que “(...) ao menos
de Tira Chapéu está, sobretudo, no que se na Tradição Rio Claro, houve uma evolução
refere à ordenação diacrônica das indústrias contínua da tecnologia lítica; a começar com
líticas, não podendo ser encarado como um a simples utilização de formas naturais com
local onde atividades humanas tivessem sido pouca ou nenhuma modificação (...) seguido
desenvolvidas. pelo espatifamento de blocos e seixos de sílex
Os artefatos dos níveis (componentes) I, II para produzir margens cortantes (...); final­
e III encontravam-se invariavelmente imersos mente observamos uma tradição de (...)
em formações naturais. O nível I, mais antigo, percussão direta, que empregou, primeiro,

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percutores duros (pedra), e, posteriormente, sas, o que não foi inteiramente possível. Porém,
percutores moles (Miller Jr. 1972:75). ainda a tempo de serem publicadas no último
No caso da Tradição Ipeúna, o contexto artigo-síntese (Miller Jr. 1972), o autor apresen­
seria menos claro, dada a própria característica tou algumas datações de C-14 feitas para o
pouco sofisticada dos artefatos. Em verdade, componente Santa Rosa III (portanto, Tradição
foi observada uma certa interrupção na Rio Claro, Fase Santo Antonio). Das datas
evolução proposta para a indústria lítica. A obtidas, apenas a mais antiga foi aceita pelo
Fase Santa Rosa, anterior a Monjolo Velho, autor, que considerou as outras inconsistentes e
apresentaria grande semelhança à Fase Santo provavelmente sujeitas a contaminação. Este
Antonio, posterior a esta última, colocada em argumento foi baseado em uma correlação que,
outro nível estratigráfico. Ao quadro de se com os conhecimentos da época poderia ser
evolução técnica, o autor acrescentou um viável, hoje parece um tanto frágil: o componente
quadro paleoambiental e propôs um modelo Santa Rosa IH estaria dentro da Fase Santo
hipotético para ser testado e orientar os Antonio, que, por sua vez, seria correlacionável
trabalhos de campo. Assim teríamos, resumida­ ao paleopavimento (linha de seixos) superior,
mente, a seguinte seqüência de eventos que, por sua vez, teria a mesma faixa de idade do
(Miller Jr., 1969b): terraço de várzea. Dado o fato de que um terraço
de várzea teria sido datado no Paraná em 2.500
1) Am biente de estepe ou savana, tempera­
tura alta, favorável à caça. Tradição “e co lo g ica ­ a.C., a única data plausível para Santa Rosa III
mente livre” (segundo Haury 1956, apu d M iller seria a data mais antiga, de 4.530±290 AP (3.330/
Jr. 1969b), representada no n ível (com ponente) 3140 a.C.).7 Na verdade, as datações para Santa
Santa Rosa I. Rosa III parecem coerentes, uma vez que as
2) M udança clim ática, aumento da
idades radiocarbônicas vão aumentando com a
umidade, expansão da floresta, dim inuição da
biom assa, especialm en te caça de grande porte.
profundidade (vide Tabela). Outro fator a ser
Tradição de caçadores torna-se incom patível levado em consideração é que não existe uma
com as con d içõ es am bientais, torna-se “e c o lo ­ correspondência direta entre as linhas de seixos
gicam ente presa”, resultando em uma adaptação (“paleopavimentos”) e fases climáticas mais
à vida florestal e em pobrecim ento do inventá­
secas. Sabe-se hoje que processos distintos
rio lítico , resultando em uma “tradição em
redução” (Haury op. c it.), representada pela
podem levar à formação de tais linhas.
Tradição Ipeúna. Parte da população teria saído No tocante à organização da tecnologia,
da região. hoje sabemos que é muito problemático dividir
3) Volta às condições clim áticas mais secas, sítios arqueológicos em classes cronológicas
condições de erosão formadoras da linha de
com base em atributos tecnológicos, como o
seixos inferior, onde foram depositados os
artefatos da Tradição Ipeúna (Fase M onjolo
tipo de lascamento (se por percussão direta,
Velho). N estas condições, M onjolo Velho seria por espatifamento etc.), ângulos de gume ou
uma tradição “ecologicam ente presa”, que tamanhos de artefatos. Sítios de atividades
encontrou situação am biental incom patível e específicas podem apresentar um inventário
desapareceu da região. Descendentes da popula­ bastante distinto de sítios habitação, mesmo em
ção que abandonou a área no estágio anterior,
se tratando de uma mesma população. Outros-
representada em Santa Rosa I, voltam à região
formando a Tradição Rio Claro. sim, pode ser que em longo prazo tais tendênci­
4) Continuidade da Tradição Rio Claro, as de variação na freqüência de atributos sejam
passando por mudanças representadas pelas fases realmente significativas. Independente de tudo,
descritas anteriorm ente, até aproxim adam ente o mérito de Miller Jr. residiu em organizar,
2.500 anos AP, quando o clim a volta a se tornar
publicar e justificar suas observações, além de
úmido, resultando na redução da tradição. Depois
disso, os agricultores teriam adentrado a região, montar bancos de dados com vista a uma
portando uma tecn ologia mais com patível com posterior informatização, novamente demons-
os recursos disponíveis.

A validade do esquema cronológico e


evolutivo proposto pelo autor poderia ser 7) Todas as datas calibradas dadas em parênteses
testada por meio de datações absolutas (C-14, (a.C.) foram calculadas segundo Stuiver & Reimer
termoluminescência) e continuidade das pesqui­ 1993.

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TABELA
D atas o b tid as p ara sítio s da região de R io C laro
Sítio Idade Data calibrada* Referência

2.490 ± 325 A P(30 cm prof.) 760 a 550 a.C. Miller Jr. 1972

2.840 ± 210 AP(33 cm prof.) 990 a.C. Miller Jr. 1972


Santa Rosa
3.080 ±455 A P(50 cm prof.) 1.380 a 1.320 a.C. Miller Jr. 1972
(com ponente III)
3.600 ±480 AP(56 cm prof.) 1.940 a.C. Miller Jr. 1972

4 .530 ±290 AP(55 cm prof.) 3.330 a 3.140 a.C. Miller Jr. 1972

Faz. Tanquinho 2.510 ±90 AP 760 a 600 a.C. U chôa 1975

Faz. Água Ronca 6.160 ±180 AP 5.070 a.C. U chôa 1975

Faz. Pau D ’Alho 4.140 ±345 AP 2.860 a 2.630 a.C. Uchôa 1988

5.505 ±105 AP 4.350 a.C.

Caiuby 5 .3 5 0 ± 1 2 0 AP 4.230 a 4.180 a.C. Morais 1982

A lice Boêr 2.190 ± 185 AP (TL) Beltrâo et al. 1983

10.970 ± 1.020 AP (TL)

14.200 ± 1.150 AP 14.583 a.C.

(*) Conforme Stuiver & Reimer, 1993.

trando um pioneirismo bastante louvável. A Paulista, o autor percebeu a “presença fre­


abordagem dos ângulos e formas de gumes qüente de alguns recipientes pequenos e
realizada pelo autor, em detrimento da tipologia rasos, muitos deles no estilo policromo, (...) ao
morfológica realizada amiúde até hoje, é extre­ lado de vasos redondos de 20 a 25 cm de
mamente pertinente e necessária para se altura, com superfície lisa, corrugada, engobo
entender a organização de uma tecnologia lítica branco ou banho vermelho, e ainda vasos de
“não formal” ou expediente.8 tamanho maior, provavelmente umas, com 0,80
a 1 m de altura, lisos, corrugados ou policro­
Os sítios cerâmicos mos.” (Altenfelder Silva 1967:83).
Com base em seriação, o autor comparou
Os principais trabalhos versando sobre os as freqüências de alguns atributos decorativos
grupos ceramistas da região de Rio Claro são e tecnológicos dos sítios de Rio Claro com as
de Altenfelder Silva (1967, 1968). O autor dá coleções de São Carlos, Piracicaba, Guaira e
conta de sítios cerâmicos em Rio Claro, Estirão Comprido (este último localizado no
Piracicaba, Itirapina e São Carlos, todos Paraná), obtendo uma cronologia relativa.
pertencentes à Tradição Tupiguarani, apresen­ Deste modo, como “hipótese provisória de
tando urnas funerárias no estilo corrugado e trabalho” o autor sugeriu uma maior antigüida­
policromo. Os fragmentos de cerâmica recupe­ de para os sítios localizados mais a sul, a
rados sugeriram ao autor uma grande varieda­ cerâmica de Piracicaba sendo mais antiga do
de de formas. Especificamente no Sítio Vila que a d ' Rio Claro e São Carlos. Os sítios de
Piracicaba apresentariam ainda uma maior
variedade e riqueza de formas, “(...) sugerindo
que se busque ali o centro de difusão da área.”
8) Ou “expedient” em inglês, segundo a definição de
(Altenfelder Silva, 1968:165). A região de Rio
Binford (1979), ou seja, uma tecnologia empregada
para um fim específico. Não confundir com o termo Claro apresentaria uma cerâmica mais tardia,
“expedito”, cujo sentido se restringe a um caráter de constituindo uma área periférica em termos de
rapidez. ocupação Tupiguarani.

134
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São
P aulo, 11: 12 5 -1 4 0 , 2001.

Com relação à presença de sítios da estratigráfica. Dado o estado de conhecimentos


Tradição Itararé na região de Rio Claro, Miller atuais com relação às idades de alguns sítios
Jr. (1972:46, 54) dá indicação de dois sítios pleistocênicos no Brasil, pode-se aceitar sem
(Paraíso e Camaquã), o primeiro apresentando problemas que Alice Boér é um sítio cuja
material “semelhante ao Iacrí cinzento polido” primeira ocupação de deu em tomo de 11.000
encontrado pelo autor na região de Tupã, e o anos AP, o que o mantém como o mais antigo
segundo com cerâmica “idêntica ao Icatu do Estado de São Paulo.
escovado” encontrado em Braúna. Estes sítios A indústria lítica de Alice Boér apresentaria
estariam entre os mais setentrionais já encon­ três componentes tecnológicos que se sucede­
trados no Estado de São Paulo, sugerindo uma riam em ordem cronológica: inicialmente uma
continuidade espacial entre os sítios tradicio­ indústria com ênfase no lascamento de seixos,
nalmente conhecidos no sul do Brasil e a sotoposta a uma indústria com lascamento
região central do país (vide Araújo 2001 para unifacial, por sua vez substituída por uma
uma discussão sobre a possível dispersão indústria com lascamento bifacial (Beltrão,
espacial da Tradição Itararé). 2000:45). Estas observações se coadunam com
as “Tradições” propostas por Miller (1972) e
apresentadas acima; a Tradição Ipeúna poderia
Outras pesquisas realizadas na região representar a indústria sobre seixos, e a Tradi­
ção Rio Claro englobaria as indústrias mais
Além dos trabalhos desenvolvidos por elaboradas, com lascamento unifacial e bifacial.
Miller Jr., cabe citar as pesquisas efetuadas Em 1973, Dorath Uchôa e Caio Garcia, do
por Beltrão (1974, 2000), Uchôa e Garcia (1976) Instituto de Pré-História da USP, executaram
e Morais (1982, 1983). algumas vistorias e prospecções na região de
Os trabalhos de Beltrão foram iniciados em Rio Claro, dentro de um projeto que seria
1965, com a detecção de três sítios arqueológi­ conveniado entre a FFCL de Rio Claro e o IPH/
cos, um deles sendo o Sítio Alice Boér. USP. A continuidade do projeto foi comprome­
Assentado em um terraço fluvial e com uma tida, mas ainda assim os pesquisadores
estratigrafía de 4 m de profundidade, este sítio realizaram algumas vistorias e prospecções em
foi datado por termoluminescência e C l4, quinze sítios, tendo havido coleta de superfí­
apresentando datas entre 2.190 ± 185 AP e cie em onze deles, e escavação sistemática em
11.000 ± 1.000 AP (por T L )e 14.200 ± 1.150 AP um, denominado Sítio Pau D’Alho. O sítio
(por C14; vide Beltrão et al. 1983). Tais datas situa-se em uma encosta suave, próximo ao
dividiram a comunidade arqueológica nacional. fundo do vale, e a escavação foi realizada em
Muitos não aceitaram tal antigüidade para o uma área de 24 m2. Carvão associado ao
Homem na América do Sul, levando em conta material lítico (em sua maioria silexito, perfa­
as idades dos sítios arqueológicos mais zendo 98,97% do inventário) foi datado em
antigos descobertos no hemisfério norte. As 4.140 ± 345 AP (2.860 a 2.630 a.C.- Laboratório
idades de Alice Boêr colocariam o sítio como de Geocronologia da USP) e 5.505 ±105 AP
contemporâneo a Clovis, nos EUA, com uma (4.350 a.C. - Laboratório Isotopes, França). O
indústria lítica nada similar. A data mais antiga, material lítico encontrava-se sempre próximo
obtida por radiocarbono, pode ser colocada ou diretamente sobre o contato entre o
sob suspeita devido à relação indireta entre embasamento (arenitos do Grupo Tubarão) e o
carvão e material arqueológico, e pela abundân­ solo coluvial, o que sugere uma possível
cia de evidências de bioturbação na estratigrafía redeposição ou movimentação vertical. Se for
do sítio (vide o perfil estratigráfico apresentado este o caso, a relação entre o carvão datado e
em Meis & Beltrão 1982, Perez 1991:246). As o material cultural pode ser um tanto dúbia.
datas obtidas por TL, porém, são bastante Como não houve publicação de perfis estra-
confiáveis por se relacionarem às próprias peças tigráficos, a questão permanece em aberto.
líticas com alteração térmica, não dependendo Entre 1979 e 1980, a equipe de arqueólogos
de argumentos de ligação e tornando, portanto, do Museu Paulista da USP, chefiada por
irrelevantes as questões de perturbação Luciana Pallestrini, realizou três etapas de

135
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 125-140. 2001.

prospecções no Sítio Caiuby, no Município de da periférica rendeu 36 peças líricas, encontra­


Santa Bárbara D’Oeste. O Sítio Caiuby, localiza­ das nos primeiros 15 cm de profundidade, e
do na margem esquerda do Médio Piracicaba, outras seis peças foram coletadas em superfície.
apresentou exclusivamente material lítico O material lítico, a supor pelas observações
lascado, e o achado de uma estrutura de realizadas e pelos desenhos de algumas peças,
combustão com material arqueológico associa­ parece ser pouco trabalhado, composto princi­
do permitiu sua datação: 5.350± 120 AP (4.230 a palmente de lascas com retoque marginal, a
4.170 a.C.). As prospecções resultaram na maioria em arenito silicificado. Além do material
coleta de 405 peças que foram analisadas por lítico, o abrigo apresenta gravuras em uma área
Morais (1982, 1983). O inventário lítico mostrou- restrita, de 3 m2, e sulcos de polimento.
se bastante requintado, apresentando uma No Município de Analândia, o mesmo grupo
tecnologia de redução formal ou “curada”,9 de espeleólogos localizou o chamado “Abrigo
apesar de se tratar de local próximo à área fonte do Alvo”, que também apresenta gravuras
de matéria-prima; 26,35% das peças encontra­ rupestres (Figs. 1, 2, 3 e 4). O autor reaüzou
das eram retocadas. Encontrou-se alta freqüên­ algumas experiências de estabilização da rocha,
cia de raspadores de diversos
tipos, totalizando 11,6% das
peças. Além disso, foram encon­
tradas pontas projéteis finamente
trabalhadas, bifaces, percutores,
peças com reentrâncias etc..

Informações adicionais -
abrigos rochosos e arte rupestre

Cabe aqui tratar também das


prospecções realizadas pelo
grupo de espeleólogos liderado
por Guy C. Collet, que encontrou
uma série de abrigos rochosos
com gravuras e pinturas rupestres
nos municípios de Analândia,
Ipeúna e Corumbataí. Em um
destes abrigos, denominado
“Abrigo da Glória” (Collet 1980),
o grupo de espeleólogos chegou
a realizar uma sondagem. O
Abrigo da Glória é uma cavidade
arenítica localizada no Município
de Ipeúna, e suas coordenadas
aproximadas são 22° 26’08”S e 47°
47’40”W. De grandes dimensões,
o abrigo apresenta 55 m de
comprimento total, e altura média
de 6 a 8 m, com abertura voltada
para o norte. A sondagem
realizada em uma área considera­

Fig. 1 - Abrigo do Alvo - Analândia, SP. Croqui de gravura


(9) Ou “curated”, sensu Binford (1979). rupestre. Medida aprox. 1,00 x l,30m. Modif. de Collet 1981.

136
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 12 5 -1 4 0 , 2 001.

Figs. 2 e 3 - Abrigo do Alvo - Analândia, SP. Croquis de gravuras rupestres, sem escala
exata. Medida aproximada 1,00 x 1,30 m. Modificado de Collet 1981.

que se encontrava extremamente friável, com um (Collet 1986), obtendo resultados aparentemente
produto químico à base de acetato de vinila satisfatórios, mesmo após um período de doze

137
ARAÚJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 1 25-140, 2001.

Fig. 4 - Abrigo do Alvo - Analândia, SP. Croqui de gravura rupestre, sem escala exata.
Medida aproximada 1,00 x 1,30 m. Modificado de Collet 1981.

anos. Segundo o autor, o abrigo está localizado profundidade temporal da ocupação humana na
no sopé de um morro arenítico, voltado para região parece ser considerável. Sítios arqueológi­
leste, nas coordenadas geográficas 22° 07’03”S cos apresentando pontas de projétil foram
e 47° 39’05”W. As gravuras recobririam uma datados na faixa de 4.200 a 5.000 anos a.C., e uma
área de 12 metros quadrados, com motivos antigüidade maior pode ser pleiteada para os
geométricos, linhas e pontos. níveis arqueológicos estratigraficamente mais
Além das ocorrências mencionadas acima, antigos. Ocorre, porém, que apesar de um início
há ainda referências a outros quatro abrigos com promissor e metodológicamente bem embasado,
material arqueológico e/ou arte rupestre (Collet a arqueologia da região passou por um período
1981 e 1982): Abrigo Roncador, Abrigo da Santa, de total abandono desde meados da década de
Abrigo Bocaina (todos localizados em Ana­ 70, culminando com a dispersão da coleção
lândia, os dois últimos bastante próximos um ao arqueológica sob guarda da antiga Faculdade de
outro) e Abrigo Santo Urbano (Corumbataí). Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro. Após a
saída de Miller Jr. dos quadros da FFCL, o
material arqueológico, segundo testemunhos de
Considerações finais mais de um informante, foi acondicionado de
maneira insatisfatória, em caixas de papelão
A região centro-leste do Estado de São sobre o chão, e “pilhado” por alunos de gradua­
Paulo, e principalmente a área que compreende o ção. Pontas de flecha e machados de pedra
Município de Rio Claro e adjacências, apresenta teriam servido como elementos decorativos nas
um panorama bastante instigante no contexto da repúblicas estudantis. A preocupação de Miller
Arqueologia brasileira. A área foi objeto de Jr. com a documentação de suas pesquisas é o
estudos arqueológicos já há bastante tempo, e a que nos dá alguma esperança de resgate da
despeito da polêmica suscitada por algumas arqueologia da região. Um dossiê preparado pelo
datações bastante recuadas, é fato que a autor (Miller Jr. 1969c), por exemplo, lista todos

138
ARAUJO. A.G.M. Arqueologia da região de Rio Claro: uma síntese. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 11: 1 2 5 -1 4 0 , 2001.

os 86 sítios encontrados até então, com as Este (des)caso poderia servir como ponto de
respectivas descrições e croquis de localização. partida para uma reflexão a respeito da efeme-
Suas outras publicações apresentam tabelas de ridade do que julgamos eterno (as coleções
classificação do material lítico, indo além da arqueológicas, os artefatos inter-relacionados
tradicional listagem de tipos e freqüências. É compondo um conjunto), da necessidade de se
possível que esta documentação cuidadosa publicar algo além de notas prévias e descrições
tenha sido tudo o que restou do patrimônio sucintas, e de nossa própria impermanência
arqueológico recuperado ao longo de quase uma como guardiões de um patrimônio que, se não
década de trabalhos na região de Rio Claro, uma for inculcado no imaginário popular como algo
vez que não se sabe quantos dos sítios identifi­ importante, dificilmente escapará incólume à
cados podem ainda existir. ignorância de administradores despreparados.

ARAUJO. A.G.M. Archaeology from Rio Claro region: a synthesis. Rev. do Museu de
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 125-140, 2001.

ABSTRACT: The Rio Claro archaeological area, a region emcompassing


several counties located in the central part of the State of São Paulo, can be
singled out as one of the most important in terms of Brazilian archaeology,
both for its importance on the issue of the peopling of the Americas, and for
the richness of the archaeological record. We here present a brief history of
the archaeological research in the area, an overview of the characteristics of
the archaeological record, and the main results obtained by the different
research teams.

UNITERMS: Archaeology - Rio Claro - São Paulo State - Paleoen-


vironment - Paleoindian.

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Recebido p a ra publicação em 20 de setem bro de 2001.

140
Rev. do M useu de A rqu eologia e E tnologia, S. Paulo, 11: 141-164, 2001.

OS DADOS INÉDITOS DO PROJETO MARAJÓ (1962-1965)

Denise Pahl Schaan*

SCHAAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu


de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 141-164, 2001.

RESUMO: Durante a década de sessenta, o Projeto Marajó identificou e


estudou dezenove novos sítios no sudeste da Ilha de Marajó, buscando
ampliar, dentro da metodologia de pesquisa empregada pelo Programa Nacio­
nal de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica/PRONAPABA, a base
de dados que sustentava o modelo das Fases da Floresta Tropical proposto
por Meggers & Evans (1957). No entanto, os resultados das pesquisas não se
encaixaram totalmente dentro das expectativas dos pesquisadores, e alguns
dados importantes nunca foram publicados. Neste artigo, confrontamos os
dados parciais publicados com os relatórios das pesquisas de campo e
resultados das análises da cerâmica (fichas de sítios, relação de fragmentos e
livro de tombo do Museu Goeldi), discutindo a validade do modelo utilizado
para a definição de culturas cerâmicas pré-históricas na Ilha.

UNITERMOS: Arqueologia da Ilha de Marajó - Fases da Floresta Tropical


- Culturas cerâmicas.

O Projeto Marajó foi um programa de Museu e do Instituto do Patrimônio Histórico e


pesquisas arqueológicas desenvolvido na Artístico Nacional/IPHAN, enquanto a firma
região sudeste da Ilha de Marajó, estado do Cardoso & Irmãos ofereceu ocasionalmente
Pará, em uma área de 450 km2 entre os rios transporte, estadia e outras facilidades, como a
Goiapi e Camará, durante os anos de 1962 a cedência de trabalhadores braçais (Simões
1965. Em um período de escassez de recursos 1981:155). Em quatro etapas de campo, entre os
destinados às pesquisas arqueológicas dentro meses de setembro a novembro dos anos de
do Museu Paraense Emílio Goeldi, a execução 1962, 1963, 1964 e 1965, Napoleão Figueiredo,
desse projeto foi possível graças à parceria Mário Simões e José Carlos Cardoso - os dois
desenvolvida entre a Universidade Federal do primeiros representantes das duas instituições
Pará, o Museu Goeldi e a firma Cardoso & conveniadas e o terceiro, sócio da firma proprie­
Irmãos, proprietária de várias fazendas em cujas tária das fazendas - localizaram, mapearam e
terras se localizavam os sítios arqueológicos. realizaram sondagens em dezesseis novos
Um pequeno apoio financeiro proveio do sítios, ampliando em direção à área sudeste da
Ilha o conhecimento que se tinha sobre a
ocupação pré-histórica na região (Simões 1967).
(*) Universidade de Pittsburgh, PA. Doutoranda em Esse foi o segundo maior projeto de
A ntropologia Social, Bolsista do CNPq. investigação arqueológica realizado no

141
SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

Marajó, pois, após as pesquisas de Meggers uma prospecção arqueológica na região dos
& Evans nos anos de 1948-49, houve somente rios Goiapi e Camará, Ilha de Marajó” (Atas do
a pesquisa realizada por uma expedição do Simpósio sobre a Biota Amazônica) e “The
Museu Paulista, nos primeiros meses do ano Castanheira Site: New evidence on the anti-
de 1950, da qual participou Peter Paul Hilbert quity and history of the Ananatuba Phase,
como representante do Museu Goeldi.1 Dados Marajó Island, Brazil” (.American Antiquity).
os antecedentes, o objetivo do Projeto Marajó Cerca de trinta e cinco anos depois, revendo
era o de: as anotações de laboratório, os relatórios e as
fichas dos sítios estudados naquela época,
“comprovar a seqüência local estabele­
descobrimos que vários dos dados que surgiram
cida por Meggers & Evans (1957) (...) e obter
através da análise do material cerâmico coletado
amostras de carvão para datação por C l4 ”
pelo Projeto Marajó continuam inéditos. Algu­
(Simões 1981:155-6).
mas ocorrências importantes jamais foram
O carvão coletado em dois sítios permitiu mencionadas, como a contemporaneidade das
datar o período de contato entre as Fases fases Mangueiras e Marajoara nos sítios PA-JO-
Ananatuba e Mangueiras (sítio PA-JO-26: 23: Ilha da Ponta e PA-JO-28: Ilha do Fogo, ou a
Castanheira) e forneceu uma data antiga para a existência de cerâmica, em alguns sítios, que não
Fase Marajoara (sítio PA-JO-36: Frei Luís).2 pôde ser enquadrada em nenhuma das fases,
Do Projeto Marajó resultaram quatro pois não se encaixava em nenhum dos tipos
relatórios de viagem com mapas e croquis, cerca descritos, por apresentar diferentes colorações
de quarenta mil fragmentos de cerâmica, de núcleo ou antiplástico constituído por ossos,
algumas poucas peças inteiras ou fraturadas areia ou cariapé.3 Além disso, o material proveni­
como urnas, vasos, banquinhos e tangas, além ente do sítio-cemitério de Ilha Pauxis nunca foi
de fragmentos de ossos e alguns artefatos estudado e o sítio não foi registrado. A rigidez de
líticos. A cerâmica foi classificada nos laborató­ princípios teóricos prévia à coleta de dados pode
rios da Área de Arqueologia do Museu Goeldi ter influenciado decisivamente na avaliação dos
segundo a metodologia utilizada na época, resultados das pesquisas:
separando-se os fragmentos segundo os tipos
já definidos por Meggers & Evans (1957), e “Como a seqüência regional já era conhe­
quantificando-os para a realização de seriações. cida, seria necessário apenas efetuarmos
O estabelecimento de cronologias relativas rápidas prospecções de reconhecimento ( “spot
entre os sítios partia da comparação entre as surveys”), isto é, a localização extensiva dos
freqüências relativas de dois dos tipos simples sítios e a respectiva coleta de material de
(não decorados) de cada fase. Os relatos das superfície para identificação e seriação
etapas de campo e os resultados das análises posteriores. Entretanto, pelo desconhecimento
do material foram publicados parcialmente em arqueológico da área em prospecção e a
três artigos: o primeiro em 1963, na Revista do necessidade de dados relevantes, como amos­
Museu Paulista, intitulado “Contribuição à tras de carvão para datação por C-14, padrões
arqueologia da Fase Marajoara”, assinado por de sepultamento e outros - somente obtidos
Figueiredo e Simões, e os posteriores, em 1967 através de escavações -, preferimos proceder
e 1969, de autoria individual de Simões, em todos os sítios cortes-estratigráficos para
respectivamente: “Resultados Preliminares de extrair destes o maior número possível de
informações” (Simões 1967:213).

(1) Os resultados das prospecções realizadas durante


essa expedição foram publicados por Hilbert, em (3) Em todas as cinco fases descritas por Meggers &
1952, e por M eggers & Evans, em 1957. Evans para a Ilha de Marajó, é característico o uso do
(2) Segundo o relatório de 1965 (Sim ões 1965:11), caco m oído com o antiplástico; com o a ocorrência
foi coletado carvão de mais dois sítios: PA-JO-33: desse antiplástico é atributo distintivo fundamental
São Leão (nível 45cm ) e PA-JO-34: Gentio (níveis na caracterização dos tipos cerâm icos dessas fases,
30, 60 e 90cm ), mas, aparentemente, estas amostras toda ocorrência diversa era considerada com o
não foram datadas. “inclassificado” ou, por vezes, cerâm ica “cabocla”.

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do M useu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

No entanto, à medida que as prospecções superfície foi, em geral, assistemática, e as


e a análise da cerâmica começaram a produzir sondagens foram realizadas nos pontos mais
dados que não confirmavam a seqüência já altos e/ou aparentemente não muito perturba­
estabelecida para as fases, e que mostravam dos dos sítios.
que poderia haver uma contemporaneidade Os cortes não seguiram um padrão
muito além da esperada entre os sítios, além de determinado quanto às suas dimensões -
revelar uma diversidade na manufatura da variando entre lxlm , l,5 x l,5 m e lx2m. As
cerâmica até então não reportada, os pesquisa­ escavações obedeceram a níveis artificiais que
dores podem ter optado por desconsiderar as variaram de 10 até 25cm. Como geralmente a
novas informações, uma vez que assumi-las escavação era realizada por trabalhadores não
implicaria em ter que rever o modelo corrente. qualificados e não era dada importância às
Os resultados publicados, portanto, apenas camadas estratigráficas, as observações a esse
confirmaram o quadro teórico já existente, respeito, nos relatórios, são lacônicas. Entre­
reforçando-o com as seriações realizadas com tanto, em alguns sítios, as poucas notas
os novos sítios descobertos na região sudes­ mostram a existência de camadas de ocupação
te. As datações absolutas obtidas, por seu distintas, com a ocorrência de placas de barro
turno, reenquadraram cronologicamente a batido e queimado, provavelmente relaciona­
posição geral das fases sem alterar sua das com pisos de casas (cf. Figueiredo 1963).
situação na sucessão diacrônica. No entanto, essas diferentes camadas não
No presente trabalho, portanto, apresenta­ foram consideradas relevantes para a constru­
mos e discutimos alguns dos dados levantados ção das seriações, o que poderia ter sido feito,
pelo Projeto Marajó - a partir do exame dos aumentando a confiabilidade do método, do
registros existentes na Reserva Técnica da Área qual uma das premissas era a de sucessão
de Arqueologia do Museu Paraense Emílio cronológica dos níveis estratigráficos, seguin­
Goeldi sobre os sítios pesquisados e do exame do o princípio geológico. Não foi levado em
do material proveniente dos sítios Ilha da consideração, por exemplo, que poderiam estar
Ponta, Ilha do Fogo e Ilha Pauxis, confrontan­ trabalhando com seqüências invertidas,
do-os com os dados publicados por Figueiredo ocasionadas por um reviramento acidental ou
& Simões (1963) e por Simões (1967,1969). antrópico do solo.
Em PA-JO-21: Teso dos Bichos, foi feito
um corte em 1964, escavado em níveis de 25cm,
A pesquisa de campo levado até 350cm. Após foi feito um “capea-
durante o Projeto Marajó mento” (Figueiredo 1964:6-8), com a descrição
das camadas estratigráficas - 10 camadas
distribuídas em 6 estratos distintos. Mesmo
A pesquisa de campo conduzida pelo
com esses dados, as seriações continuavam a
Projeto Marajó consistiu basicamente na
ser feitas segundo os níveis artificiais, mistu­
identificação, mapeamento, coleta de material
rando, portanto, em um mesmo nível, fragmen­
de superfície e realização de sondagens nos
tos de períodos claramente diferentes.
sítios arqueológicos da área selecionada. Os
Segundo Simões (1967), teriam sido
sítios foram identificados tanto através das
realizadas prospecções em 16 novos sítios,
informações obtidas junto a moradores locais,
levando em conta que os sítios PA-JO-21: Teso
como a partir da observação da existência de
dos Bichos e PA-JO-37: Fortaleza já tinham
material na superfície ou de acúmulo de
sido escavados anteriormente. No entanto, é
sedimento de origem antrópica em contraste
curioso que ele inclua na lista dos novos sítios
com o relevo natural da paisagem.4 A coleta de

(4) A região pesquisada é muito plana e os sítios vindo daí o nome de muitos deles. Os sítios da fase
sobressaem-se por serem elevados e cobertos de vegeta­ Formiga pesquisados em 1965, por exemplo, apresenta­
ção. Principalmente na época das chuvas, quando os vam cerca de 0,50m de altura acima do nível do campo e
campos são inundados, os sítios surgem como “ilhas”, somente PA-JO-33: São Leão, chegava a atingir 0,95m.

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SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

pesquisados pelo Projeto Marajó o sítio PA- A classificação da cerâmica


JO-26: Castanheira, que foi trabalhado por
José Carlos Cardoso sozinho em 1965, e que A construção tipológica realizada por
exclua de seus registros outro sítio pesqui­ Meggers & Evans para a aplicação do método
sado por Cardoso: Ilha Pauxis (nunca registra­ Ford no estudo da cerâmica proveniente da Ilha
do como sítio arqueológico). Ilha de São de Marajó baseou-se em dois critérios básicos:
Raimundo, por seu turno, segundo o relatório a decoração e a coloração do núcleo, uma vez
de 1962, foi visitado nesse mesmo ano por que o antiplástico identificado em todas as
Simões e Figueiredo, que fizeram coleta amostras era o caco moído, não podendo,
superficial, não registrando o sítio. Outro sítio portanto, ser utilizado como atributo distintivo.
ainda, PA-JO-38: Rocinha, não citado nas Durante a vigência do Projeto Marajó, nos
publicações, foi pesquisado por Cardoso em
laboratórios da Área de Arqueologia do Museu
1966 e, segundo a ficha do sítio,5 nos registros
Paraense Emílio Goeldi, a cerâmica era limpa,
do Museu Goeldi, é também da fase Marajoara.
numerada e classificada segundo os tipos
Durante a vigência do Projeto Marajó,
cerâmicos descritos por Meggers & Evans
foram visitados, portanto, segundo o que
(1957) para as fases da Ilha de Marajó. Simões
apuramos, um total de 19 sítios, sendo quatro
havia organizado as coleções-tipo, conjuntos
destes compostos por dois aterros cada um.
de fragmentos representativos de cada um dos
Do total, 17 foram formalmente registrados,
tipos cerâmicos, que serviam de guia comparati­
sendo exceção feita a Ilha Pauxis e Ilha de São
vo para a classificação.
Raimundo. Ilha Pauxis foi prospectada por
José Carlos Cardoso (fazendeiro que partici­ Em um primeiro momento, os fragmentos
pou das pesquisas de campo) e não existem no eram separados em função da existência ou não
Museu Paraense Emílio Goeldi notas de de decoração. Cada uma das três primeiras fases
campo, apesar de o sítio ter fornecido material da seqüência (Ananatuba, Mangueiras e
interessante e em quantidade (cf. Quadro 1). Formiga) possuíam um tipo-decorado-diagnósti-
Quanto às fases arqueológicas identi­ co, ou mesmo alguns traços diagnósticos que
ficadas, Simões descreve: permitiam sua rápida identificação; a cerâmica da
fase Marajoara, por sua complexidade decorativa,
“Dos sítios prospectados, 10 perten­ diferenciava-se suficientemente das outras fases.
cem à fase Marajoara (7 sítios-cerimoniais
No grupo dos fragmentos não decorados -
e 3 sítios-habitações), 5 à fase Formiga e 1
chamados simples - cada uma das fases se
à fase Ananatuba” (Simões 1967: 222).
diferenciava por apresentar características
Quatro dos cinco sítios da fase Formiga distintivas quanto à tecnologia de preparo e
pesquisados faziam parte, na verdade, de um queima da cerâmica, visíveis, supostamente, no
grupo de sete aterros, conforme o relatório: exame da pasta cerâmica. Os tipos simples
descobrimos uma série de sete descritos, no entanto, para cada uma das fases
aterros sobre a lombada do teso que vai desta (dois para as fases Ananatuba, Mangueiras e
fazenda [Ilha do Fogo] até o Curuxis. Embora Marajoara e quatro para a fase Formiga), possu­
nenhuma evidência arqueológica fosse em, na realidade, diferenças realmente significati­
encontrada à superfície, a ligeira elevação vas apenas quanto à cor do núcleo, apesar de as
acima do nível do campo e o tipo de solo descrições de cada um dos tipos serem detalha­
levaram-nos a testar tais elevações, revelando das quanto à qualidade da mistura, tamanho das
todos os cortes experimentais a presença de inclusões, dureza etc.. Sabe-se, no entanto, que
cacos logo abaixo da capa superficial. Dos uma construção tipológica sempre se baseia em
sete aterros prospeccionamos: aterro I (J-29), dois, no máximo três, atributos distintivos
II (J-30), III (J-31) e IV (J-32)” (Simões 1965:4). básicos e que as demais características do tipo
são, na realidade, variações previsíveis dentro de
um mesmo grupo de entes semelhantes.
(5) As fichas de sítio foram feitas seguindo o modelo Na tipologia de Meggers & Evans os tipos
proposto por M eggers e Evans (1965: 21-28). simples não apenas descrevem tipos sem

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

QUADRO 1
Ilha Pauxis
Informações constantes no Livro de Tom bo/Acervo arqueológico MPEG
(procedência Pauxis/Faz. Santa Maria, coletor José Carlos Cardoso). As observações são nossas

N°Tom bo D escrição Local Observações

933 Frag fase Marajoara Sitio A 53 frag. de cerâmica decorada, a maioria com engobo
vermelho e 54 frag. de cerámica-decorada.
934 Vaso fase não-identificada Sitio A Cerâmica leve, temperada com caco moído, muito porosa,
formato irregular, provavelmente devido à queima.
935 Vaso fase não-identificada Sitio A Tigela restaurada (cf. fig.2)
936 Vaso fase não-identificada Sitio A Tigela restaurada (cf. fig.2)
940 Frag. fase não-identificada Sitio A Vasilha restaurada em 1999. Pasta sem elhante ao tipo
Catarina sim ples (fase Formiga); engobo verm elho (cf.
fig.2)
941 Urna fase não-identificada Sitio A Uma sem decoração, restaurada (cf. fig.2)
942 Vaso fase não-identificada + 2 Sitio A Vaso com borda entalhada (cf. fig.2)
frag. Fase Marajoara
943 Frag. fase não-identificada Sitio B 9 fragmentos de cerâmica decorada e 12 de cerâmica não
decorada
944 Urna fase n ão-id en tificad a + Sitio B Vestígios de pintura marrom avermelhada (cf. fig.2)
ossos
945 Urna fase n ão-id en tificad a + Sitio B Não localizada
ossos
946 Frag. fase Marajoara ???? Sitio B Peça restaurada em 1999. Diâmetro 54cm, não foi possível
enquadrar em nenhuma das fases. Formato semelhante à
peça n° 940
947 Frag. fase Marajoara + fase não- Sitio C 97 fragmentos de cerâmica decorados e 150 fragmentos de
identificada cerâmica não decorada. Os fragmentos que não puderam
ser c la ssific a d o s na fase M arajoara apresentam pasta
sem elhante à fase M angueiras, mas também aos tipos
Camutins simples e Formiga Simples. A decoração inclui
u n gu lad os, d ig ita d o s, pintura p o licrô m ica , en gob o
vermelho, escovados e incisos
937 Lâmina de machado pequena Sem inform.
948 Lasca lítica Sem inform.
938 Pigm ento para pintura Sem inform.
939 Fragmentos de ossos humanos Sem inform.

decoração mas também definem tipos de pasta decorados, Saúba escovado (com pasta Coroca
cerâmica que podem - e devem - ser identi­ pimples), Mucajá corrugado (com pasta Embaú­
ficadas nos tipos decorados. Na fase Manguei­ ba simples) etc.. Essa classificação permitiu,
ras, por exemplo, existem dois tipos simples: principalmente para os autores, caracterizar
Mangueiras simples e Anjos simples, e, entre' mudanças cronológicas, criando uma seqüência
os tipos decorados, Bacuri escovado (com qüe resultou em uma sucessão diacrônica entre
pasta Anjos simples), Croari escovado (com as fases e uma cronologia relativa entre os
pasta Mangueiras simples), Pocoató raspado sítios de uma mesma fase, com o objetivo de
(com pasta Mangueiras simples) etc.. Na Fase mostrar que os sítios eram apenas parcialmente
Formiga, por exemplo, há quatro tipos simples: contemporâneos e, portanto, com grau de
Formiga simples, Coroca simples, Embaúba sedentarização compatível com o esperado para
simples e Catarina simples, e, dentre os tipos culturas de floresta tropical.

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SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 77: 141-164, 2001.

No entanto, um dos problemas que a equipe enterramentos: urnas, “alguidares”, banco,


de Simões encontrou na classificação do material tanga, “fruteiras”. O corte “aproveitado”
proveniente desses três sítios que aqui descre­ provavelmente foi aquele que possibilitou a
vemos foi que alguns dos tipos decorados, recolhida de fragmentos suficientes para a
relacionados a fases facilmente identificáveis, realização da seriação. Há a seguinte descrição
estavam aparecendo com pastas cerâmicas que sobre esse (corte 4):
não se enquadravam na descrição dos tipos “No primeiro horizonte, evidência de
simples de suas próprias fases. Além disso, barro queimado, carvão e pequenas placas
mesmo quando a maioria dos decorados se de barro endurecido de cor branca e amare­
encaixava bem em uma das fases, os tipos la, com sinais de fogo. Em um dos cantos do
simples pareciam ser de outra fase, o que era corte, fo i encontrada urna excisa, junto com
incoerente. Isso sem falar na coexistência de outra globular totalmente fragmentada.
fragmentos cerâmicos das fases Mangueiras e Retirou-se a urna, mais ou menos inteira, que
Marajoara em vários níveis em um mesmo sítio se encontrava repousando sobre areia numa
(Ilha da Ponta e Ilha do Fogo), o que era incom­ profundidade de 0,75cm” (Figueiredo 1963).
patível com a posição diacrônica dessas duas
Foi possível aos pesquisadores classificar a
fases, uma vez que, após as datações radiocar-
maior parte dos fragmentos coletados nesse
bônicas processadas com carvão obtido nas
ano segundo os tipos estabelecidos para a Fase
escavações do próprio Projeto Marajó, haveria
Marajoara (cf. Tabela 1). Entretanto, 71 fragmen­
um hiato temporal muito grande entre elas.
tos tombados sob o n° 1329 são classificados
Uma vez que esses fatos não poderiam ser
como “Mangueiras(?)” [sic].6 Nas fichas do
explicados de maneira convincente sem questio-
sítio encontra-se, referente ao nível 25-50cm, a
ir o modelo, Simões não publicou esses dados,
seguinte observação: “25 cacos não-Marajoara
) mesmo tempo em que preservou as primeiras
- provável Mangueiras?” [sic], enquanto, em
notações de laboratório onde, ao lado das
relação ao nível 50-75cm, 44 cacos já são
¡uantificações dos fragmentos da fase Manguei­
classificados como Mangueiras.
ras em dois dos sítios da fase Marajoara se
Essa ocorrência de fragmentos da fase
observam grandes pontos de interrogação.
Mangueiras, ainda que em número bastante
reduzido, nesse que se caracterizava como um
sítio-cemitério da fase Marajoara, deve ter sido
PA-JO-23: Ilha da Ponta
o motivo que levou Simões a voltar à Ilha da
Ponta em 1965. No entanto, o relatório de 1965
Durante a primeira semana de setembro do é bastante lacônico quanto a este teso:
ano de 1963, Napoleão Figueiredo e José
Carlos Cardoso escavaram o sítio Ilha da procedemos ainda a novo corte-
Ponta, localizado na Fazenda Santa Maria: estratigráfico no aterro Ilha da Ponta”
(Simões 1965:4).
“O aterro Ilha da Ponta é uma elevação
com aproximadamente l,5m de altura, medindo Nas fichas, entretanto, há a descrição do
200m de comprimento por 50m de largura, teso, seguida pelo relato de que o novo corte,
coberto de vegetação, com declives para o chamado então de 2, foi feito a 3m do corte 1
campo e para a baixa que, na estação chuvosa, (o aproveitado, corte 4) de 1963 (MPEG N° de
fica ligada ao igarapé Ilha do Fogo (...) Foram Tombo 964). Esse corte (lx lm ) foi escavado em
procurados os pontos mais altos do aterro. No níveis artificiais de 20cm até o nível 80cm, a
primeiro fo i tentado corte experimental de partir do qual começava o solo estéril. Apare­
Ixlm. Foram feitos 5 cortes, mas somente um foi ceram cacos, blocos de barro queimado e
trabalhado” (Ficha do sítio Ilha da Ponta, 1963). vestígios de carvão. Essa escavação foi
pródiga em fragmentos da fase Mangueiras,
O relatório de campo, entretanto, descreve
com algum detalhe os cinco cortes realizados,
sendo que em todos eles foram encontradas (6) Fonte: Listagem de fragmentos tombados,
peças semi-inteiras e fragmentadas, denotando Reserva Técnica Arqueológica MPEG.

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do iviuseu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

como mostra a Tabela 2. Na publicação de pesquisado Ilha da Ponta, em 1965, uma vez
1967, no entanto, Simões considera somente que são próximos um do outro. O aterro de Ilha
uma parte dos fragmentos coletados (tipos do Fogo é banhado a sul e sudeste pelo
Inajá simples e Camutins simples, da fase igarapé Ilha do Fogo, e media, à época,
Marajoara) para a realização da seqüência 98mx45m, possuindo 1,15m de altura acima do
seriada: 203 fragmentos Inajá simples e 84 nível do campo e distando cerca de 500m da
fragmentos Camutins simples (Simões 1967: fazenda Ilha do Fogo. Na parte oriental do teso
220), enquanto, somente no nível 0-20cm, havia um cemitério e o terreno estava bastante
havia 199 fragmentos Inajá simples e 113 perturbado e por essa razão escolheram a parte
Camutins simples! oeste para trabalhar, onde foram feitos dois
Simões realizou ainda uma coleta superfici­ cortes-estratigráficos e coleta de superfície.
al que produziu um total de 187 fragmentos, Ambos os cortes (lx lm ) foram escavados em
sendo 69 de cerâmica decorada e 118 de níveis de lOcm, mostrando evidências até o
cerâmica não decorada (cf. Livro de Tombo, n° nível 140cm, constituídas de fragmentos de
962). Não há registro da análise desse material cerâmica, barro queimado, pequenos fragmen­
nas fichas. tos de ossos e vestígios de carvão (Simões
Segundo a classificação realizada na 1965). No livro de tombo constam os números:
época, do total de 667 fragmentos tombados T. 967 - fragmentos das fases Marajoara e
provenientes da escavação de 1965, 10,64% Formiga, corte 1-A e T. 968 - fragmentos da
são da fase Mangueiras, 4,35% não puderam fase Marajoara e Formiga, corte 2-B. No
ser classificados dentro de nenhum tipo entanto, duas outras fontes de informações na
cerâmico e 85,01% são da fase Marajoara. Reserva Técnica da Área de Arqueologia do
Dessa fase, a porcentagem de decorados Museu Goeldi mostram dados diferentes.
atinge 41,23%, um valor bastante elevado, As fichas do sítio, feitas em seguida à
mesmo para sítios-cerimoniais.7 chegada de campo e onde eram colocadas as
Se, por um lado, os fragmentos coletados informações sobre a análise dos fragmentos
por Figueiredo e Cardoso em 1963 foram, mostram que, em relação à coleta de superfície,
infelizmente, guardados por tipo-variedade, dos 189 fragmentos coletados, 52 fragmentos,
perdendo-se a informação sobre sua proce­ classificados como pertencentes à fase
dência estratigráfica, por outro lado, o material Mangueiras e 9 fragmentos, classificados
coletado por Simões foi guardado segundo os como cerâmica cabocla, são tidos como: “não
níveis estratigráficos de onde provieram, Computados”. No canto da ficha consta:
divididos dentro dos níveis segundo os tipos “Marajoara - 72,5%; Mangueiras (?) - 27,5%”.
cerâmicos, o que tornou possível reexaminar Já na relação de fragmentos tombados na
parte do material e confrontar os dados com as Reserva Técnica (Tabelas 4, 5 e 6) tem-se 51
análises feitas à época. fragmentos como “provável Formiga”. Em
relação aos dois cortes feitos, os fragmentos
foram classificados em parte entre os tipos
PA-JO-28: Ilha do Fogo cerâmicos da fase Marajoara e parte permane­
ceu como pertencente à fase Mangueiras,' sem
A prospecção no sítio Ilha do Fogo foi a classificação nos tipos dessa última fase e
feita na mesma oportunidade em que foi com constantes pontos de interrogação ao
lado da expressão “fase Mangueiras”, com
relação a todos os níveis.
(7) Sim ões (1967: 219) classificou Ilha da Ponta É interessante notar que, na relação de
com o aterro-cerim onial, uma terceira categoria de quantificação de fragmentos existente na
sítio, que não é o sítio-cem itério (por não conter Reserva Técnica para todos os fragmentos
enterramentos), mas que apresenta mais de 8% da tombados, no corte 1-A, entre os níveis 0 e
cerâm ica coletada com decoração. N o entanto,
m esm o segundo esses critérios, Ilha da Ponta seria
80cm, os fragmentos Mangueiras aparecem
sítio-cem itério, pois Figueiredo, em 1963, localizou como “provável Formiga”, e para todos os
en terram en tos. demais níveis como “não-Marajoara”. Já no

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
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148
SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

TABELA3 Tombo 934, 935, 936, 942) e três umas (n° de


PA-JO-23: ILHA DA PONTA Tombo 941, 944 e 945) foram registrados como
(Resumo de dados da Tabela 2) de “fase não-identificada” (cf. Tab. 1; Fig. 1).
Fase Marajoara Fase Mangueiras Total Duas dessas urnas continham ossos. Apesar
de esse sítio não ser citado no relatório, sua
Níveis N° % N° % N°
localização consta do mapa anexado ao
0 -2 0 cm 399 100 0 0 399 relatório de 1965 (cf. Mapa). No Livro de
2 0 -4 0 cm 747 9 5 ,0 3 39 4 ,9 6 786 Tombo o material está registrado como proce­
4 0 -6 0 cm 266 3 6 ,3 4 466 6 3 ,6 6 732 dente de “Ilha Pauxis, Fazenda Santa Maria,
6 0 -8 0 cm 0 0 20 100 20 doado por José Carlos Cardoso em 1963”.
Total 1412 7 2 ,8 9 525 2 7 ,1 0 1927 Além disso, como local de procedência dentro
de Ilha Pauxis constam as denominações: sítio
A, sítio B e sítio C, o que sugere que o sítio
Livro de Tombo, o sítio é caracterizado como pode ser um agregado de pelo menos três
pertencente às fases Marajoara e Formiga, aterros. Além dessas peças, fragmentos e
enquanto na publicação de Simões de 1967 o ossos, provêm também do sítio uma lâmina de
sítio Ilha do Fogo consta como um sítio machado pequena (n° de Tombo 937) e pig­
cerimonial da fase Marajoara, sem nenhuma mento vermelho (n° de Tombo 938).
menção a outras fases. Ou seja, das primeiras Nesse sítio, os fragmentos que não podem
anotações de laboratório nas fichas até a ser claramente relacionados à fase Marajoara
publicação dos resultados, desapareceram mostram diferenças que não permitem enqua­
3.692 fragmentos! drá-los em nenhuma das fases, mas que
Observe-se ainda que no nível 90-100cm possuem uma maior semelhança aos tipos
do corte 2-A, os fragmentos da fase Manguei­ simples da fase Formiga. O fato de os enter-
ras (ou “provável Formiga” ou “não-Marajoa- ramentos estarem justamente em urnas de fase
ra”) perfazem 67,54% do total, enquanto no “não-identificada” torna esse sítio especial­
nível 40-50cm do corte 2-B, são 73,24%; mente interessante, pois em nenhum dos sítios
números expressivos o bastante para serem das fases Ananatuba, Mangueiras e Formiga
desprezados. pesquisados por Meggers & Evans e por
Simões & Figueiredo foram encontrados
enterramentos em urnas.
Ilha Pauxis
O antiplástico nos tipos cerâmicos
Esse aterro foi escavado por José Carlos
Cardoso e apesar de este material ter dado O caco moído é identificado como anti-
entrada no Museu Goeldi ainda em 1965, e do plástico predominante nas cinco fases cerâmi­
sítio constar no mapa do relatório de Simões cas da Ilha de Marajó. No entanto, outros
do mesmo ano, nenhuma menção é feita tipos de antiplástico, como cariapé, areia e
quanto a ele na publicação de 1967 ou mesmo osso, têm sido constatados em fragmentos de
na publicação de Simões e Araújo-Costa de cerâmica associados a todas as fases.8 Sobre o
1978 - onde, além de todos os sítios pesqui­ sítio PA-JO-26: Castanheira, Simões relata que:
sados e registrados, há menção da existência “os cacos simples inclassificados incluem
de diversos sítios sem localização precisa 6 temperados com osso e 29 temperados com
(Simões e Araújo-Costa 1978: 106-108).
A cerâmica, no entanto, foi analisada,
constando de fragmentos de vasilhas e urnas,
algumas das quais foram restauradas recente­ (8) Palmatary 1949 e M agalis 1975 fazem referência
ao uso do cariapé em cerâmica da fase Marajoara.
mente. Segundo a classificação realizada na R ecentem ente, Canto L opes (1 9 9 9 ) apresentou o
época, alguns fragmentos foram registrados cariapé com o antiplástico predom inante em cerâm ica
como pertencentes à fase Marajoara (n° de de sítio proto-histórico no leste da Ilha (sítio PA-JO-
Tombo 933, 946 e 947) e quatro vasos (n° de 46: Joanes).

149
SCHAAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia ,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

areia. Os primeiros se limitam à superfície e níveis, mas no total do corte atinge somente
níveis superiores e se relacionam à ocupação 1,11% (cf. Tabela 8).
cabocla recente do sítio "(Simões 1969: 404). Em PA-JO-33: São Leão, a cerâmica
Outros sítios, como os da fase Formiga temperada com osso está presente nos três
pesquisados durante o Projeto Marajó, níveis superiores, atingindo 3,14% do número
apresentaram também quantidades variáveis total de fragmentos (cf. Tabela 9).
de cerâmica temperada com osso. No sítio PA- Em alguns fragmentos decorados da fase
JO-31: Aterro Pelado, aparece uma porcenta­ Marajoara também temos constatado ocasio­
gem significativa de cerâmica temperada com nalmente a utilização de ossos triturados como
osso no 2° nível, perfazendo 31,74% dos antiplástico.
fragmentos do nível, enquanto, por exemplo, o
tipo não-decorado predominante do nível,
Formiga simples, alcança somente 26,7%. O A seqüência cronológica
número total de fragmentos do nível é estatis­
ticamente significativo: 397. No terceiro nível A partir das pesquisas realizadas no final
também há a presença da cerâmica temperada dos anos 40, Meggers & Evans identificaram a
com osso, em menor quantidade. No total do existência de contato entre as fases Anana-
corte ela alcança 11,91% (cf. Tabela 7). tuba e Mangueiras, a segunda substituindo a
No sítio PA-JO-32: Cavalo Morto, também primeira em dois sítios (J-7 e J-10), na costa
ocorre cerâmica temperada com osso no 2° e 3o Norte, e contato entre as fases Formiga e

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SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do M useu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

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São Paulo, 11: 141-164, 2001.

TABELA5
PA-JO-28: ILHA DO FOGO - Corte 1-A (Simões 1965) - MPEG Tombo 967
Fase Marajoara
Tipos não decorados Tipos decorados Outras cerâmicas
Camutins Inajá Joanes Carmelo Goiapi Outros tipos Provável Não N ão TOTAL
simples sim ples Pintado vermelho Raspado decorados Formiga Marajoara classificada

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10-20 cm 103 31,79 131 4 0 ,4 3 15 4,63 14 4,32 14 4,32 21 6 ,4 8 17 5,25 - 0 9 2 ,7 8 324 1 0 0 ,0
20-30 cm 115 27,38 168 4 0 ,0 17 4,05 14 3,33 36 8,57 16 3,81 44 10,48 - 0 10 2 ,3 8 420 1 0 0 ,0
30-40 cm 63 19,15 102 3 1 ,0 6 1,82 11 3,34 58 17,63 17 5 ,1 7 62 18,84 - 0 10 3 ,0 4 329 1 0 0 ,0
40-50 cm 35 12,28 84 2 9 ,4 7 2 0,7 7 2,46 41 14,39 18 6 ,3 2 82 28,77 - 0 16 5,61 285 1 0 0 ,0
50-60 cm 15 6,94 36 16,67 0 6 2,78 39 18,06 7 3 ,2 4 108 50,0 - 0 5 2,31 216 1 0 0 ,0
60-70 cm 30 12,55 56 2 3 ,4 3 0 5 2,09 20 8,37 2 0 ,8 4 121 50,63 0 5 2,1 239 1 0 0 ,0
70-80 cm 69 14,97 96 2 0 ,8 2 0 - 0 - 0 9 1,95 268 58,13 - 0 19 4 ,1 2 461 1 0 0 ,0
80-90 cm 61 14,59 40 9 ,5 7 0 4 0,96 6 1,44 1 0 ,2 4 0 275 65,79 31 7 ,4 2 418 1 0 0 ,0
90-100 cm 86 18,74 22 4 ,7 9 0 - 0 6 1,31 - 0 - 0 310 67,54 35 7 ,6 3 459 1 0 0 ,0
1 0 0 - 1 10cm 30 18,63 20 1 2,42 0 - 0 - 0 1 0 ,6 2 0 103 63,98 7 4 ,3 5 161 1 0 0 ,0
1 10-120cm 11 17,46 8 12,7 5 7,94 2 3,17 - 0 - 0 0 36 57,14 1 1,59 63 1 0 0 ,0
1 2 0 -1 30cm 7 16,67 4 9 ,5 2 0 -, 0 0 - 0 0 26 61,9 5 11,9 42 1 0 0 ,0
Total 892 21,7 1107 2 6 ,9 3 64 1,56 74 1,8 221 5,38 120 2 ,9 2 728 17,71 750 18,25 154 3 ,7 5 4110 1 0 0 ,0

Outras ocorrências - Nível 0-10cm: 3 fragmentos de tangas, 1 aplique; nível 10-20cm: 1 fragmentos de tanga; nível 30-40cm: ossos.
SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
TABELA6
PA-JO-28: ILHA DO FOGO - Corte 2-B (Simões 1965) - MPEG Tombo 968
Fase Marajoara
Tipos não decorados Tipos decorados Outras cerâmicas
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

Camutins Inajá Joanes Carmelo Goiapi Outros tipos Tempero de Não N ão TOTAL
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0-10 cm I 17, 19,67 195 3 2 ,8 35 5,9 8 1,34 28 4,71 9 1,51 0 194 32,6 9 1,51 595 1 0 0 ,0
10-20 cm 67 15,58 11 1 25,81 6 1,4 25 5,81 28 6,51 6 1,4 0 173 40,23 14 3 ,2 5 430 1 0 0 ,0
20-30 cm 42 10,1 71 17,1 2 0,48 5 1,2 34 8,17 5 1,2 0 243 58,41 14 3 ,3 6 416 1 0 0 ,0
30-40 cm 39 8,04 68 14 ,02 2 0,41 10 2,06 33 6,8 7 1,44 0 311 64,12 15 3,1 485 1 0 0 ,0
40-50 cm 19 5,35 30 8 ,4 5 1 0,28 9 2,53 19 5,35 1 0 ,2 8 0 260 73,24 16 4 ,5 1 355 1 0 0 ,0
50-60 cm II 5,76 14 7 ,3 3 2 1,05 9 4,71 6 3,14 - 0 0 139 72,8 10 5 ,2 4 191 1 0 0 ,0
60-70 cm 30 12,5 29 12,1 0 9 3,75 6 2,5 1 0 ,4 2 18 7,5 130 54,17 17 7 ,0 8 240 1 0 0 ,0
70-80 cm 33 11,54 25 8 ,7 4 0 10 3,5 15 5,24 - 0 0 190 66,43 13 4 ,5 4 286 1 0 0 ,0
80-90 cm 28 10,14 11 3 ,9 8 0 1 0,36 - 0 - 0 9 3,26 210 76,1 17 6 ,1 6 276 1 0 0 ,0
90-100 cm 22 9,91 12 5 ,4 0 - 0 2 0,9 - 0 10 4,5 152 68,47 24 10,81 222 1 0 0 ,0
100-1 10cm 4 3,51 1 0 ,8 8 0 2 1,75 1 0,88 - 0 13 1 1,4 78 68,42 15 1 3 ,1 6 114 1 0 0 ,0
1 10-1 2 0cm 4 10,81 - 0 2 5,4 - 0 - 0 - 0 0 22 59,46 9 2 4 ,3 2 37 1 0 0 ,0
1 2 0 -1 3 0 cm 7 35,0 1 5 ,0 0 2 10,0 - 0 - 0 0 10 50,0 - 0 20 1 0 0 ,0
Total 423 11,53 568 15,49 50 1,36 90 2,45 172 4,7 29 0 ,7 9 50 1,36 2112 57,59 173 4 ,7 2 3667 1 0 0 ,0

Outras ocorrências - Nível 0-1 Ocm: 4 fragmentos de tanga; nível 20-30cm: 1 fragmento de tanga; nível 30-40cm: 6 fragmentos de tanga; nível 60-70cm : 2
fragmentos de tanga.
SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia ,
SCH A AN , D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). Revista do Museu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

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SCH AA N, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia ,

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i°Vd164S2001ltOS d° Pr0jet° MafajÓ (1962'1%5)- Revista d° Museu de Arqueologia e Etnologia ,

Marajoara, essa última também tomando os uma das fases (cf. Quadro 2). Segundo esses
locais ocupados pela anterior. Nenhuma dados combinados, observa-se, então, a
“conecção estratigráfica" (Meggers & Evans existência de um hiato entre o final da fase
1957: 408) foi encontrada pelos autores entre Mangueiras e o início da fase Formiga (ante­
as fases Formiga e Mangueiras ou entre cessora da Marajoara), que pode chegar a 800
Marajoara e Mangueiras. Mesmo assim, anos (Meggers & Danon, 1988:249). Durante
segundo as primeiras estimativas dos autores esse período, segundo os autores, que
na época, baseados na cronologia relativa adicionam dados climáticos e palinológicos ao
construída entre os sítios através da análise quadro, teria havido um período de aridez
cerâmica, o final da Fase Mangueiras estaria onde os recursos disponíveis à subsistência
próximo ao início da Fase Formiga e, portanto, teriam diminuído drasticamente, o que poderia
também ao da Marajoara (Meggers & Evans ter levado ao abandono da Ilha ou ao desmem­
1957: 590, fig.205). A partir de hipóteses bramento das comunidades que subsistiram
construídas sobre a duração do período de em pequenos grupos de caçadores-coletores
ocupação dos sítios, a construção da cronolo­ nômades, pelo menos em determinadas épocas
gia relativa e o fato de a Fase Aruã ser consi­ do ano (op.cit:251-2).
derada proto-histórica, os autores concluíram
que a ocupação da Ilha por todas as fases -
Ananatuba, Mangueiras, Formiga, Marajoara e Entendendo a “linguagem da cerâmica”
Aruã - teria durado cerca de 800 anos, com
início de Ananatuba em 700 d.C. A pesquisa que resultou no presente
Entretanto, após terem sido processadas artigo iniciou-se ao acaso, enquanto fazíamos
as primeiras datações absolutas, a partir das um levantamento nos registros das coleções
amostras de carvão coletadas durante o de cerâmica da fase Marajoara que haviam
Projeto Marajó, ampliou-se cronologicamente procedido de escavações, na Reserva Técnica
o período de ocupação pré-histórica na Ilha. A Arqueológica do Museu Paraense Emílio
pesquisa no sítio Castanheira, além de esten­ Goeldi. A constatação de que no sítio PA-JO-
der a área de dispersão das fases Ananatuba e 23: Ilha da Ponta, havia cerâmica das fases
Mangueiras para a região sudeste da Ilha, Mangueiras e Marajoara coexistindo nos
proporcionou a primeira e única datação mesmos níveis, nos levou do Livro de Tombo
absoluta para o momento de contato entre às fichas de sítios, relatórios e artigos publica­
essas duas fases - 980 ± 200 a.C. (SI-386), dos, que revelaram a existência de dados
através do carvão recolhido no corte A, nível discordantes entre as fontes e nunca reporta­
50-60cm (Simões 1969: 403). Além disso, dos à comunidade científica. Como resultado,
Simões obteve datas antigas para o que ficamos frente à tarefa a qual Simões se furtou
poderia ser o início Fase Marajoara: 480 ± 200 há 35 anos: explicar a contemporaneidade entre
d.C. (SI-386) e 580 ± 200 d.C. (SI-387) no sítio as fases Mangueiras e Marajoara, identi­
PA-JO-36: Frei Luiz. Como a fase Mangueiras ficadas em dois sítios da região pesquisada
teria tido uma curta duração e, além disso, era pelo Projeto Marajó.9
parcialmente contemporânea com Ananatuba, Examinamos uma amostra do material dos
sua distância diacrônica com relação à Fase sítios Ilha da Ponta e Ilha do Fogo, que atingiu
Marajoara poderia chegar a ser de 1.000 anos. cerca de 10% dos fragmentos de todos os
Na década de 80, Meggers & Danon (1988)
dataram vários fragmentos de cerâmica,
representando todas as fases de Marajó, pelo (9) O projeto Marajó não teve o mérito de, pela
processo de termoluminescência da cerâmica. primeira vez, ter identificado contem poraneidade
A combinação entre as datas produzidas pela entre as fases Mangueiras e Marajoara. M eggers e
Evans identificaram a presença de fragmentos de
cerâmica e as datações de radiocarbono
tangas vermelhas da fase Marajoara em “níveis
obtidas em escavações (dados de Simões e perturbados” no sítio PA-JO-17: Flor do Anajás (fase
Roosevelt) desenhou um quadro cronológico Mangueiras), mas essa ocorrência não foi considerada
bem mais preciso para o início e final de cada indicação de contato.

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São Paulo, 11: 141-164, 2001.

______________________________ QUADRO_2_____________________________
D a ta ç õ e s a b so lu ta s p a ra as fa se s a r q u e o ló g ic a s d a Ilh a de M a ra jó
(R a d io c a r b o n o e T e r m o lu m in e sc ê n c ia d a C erâ m ica )

FASES ARQUEOLÓGICAS

Datas/ n° laboratório Ananatuba Mangueiras Formiga Marajoara Aruã

1460 AC (T L -18) J-26


1450 AC (T L -34) J-7
1182 AC (T L -80) J-26
1110 AC (T L -79) J-26
1090 AC (T L -69) J-26
1062 AC (T L -81) J-26
1050 AC (T L -47) J-10
980 AC (C 14/SI-385)* J-26 J-26
920 AC (T L -76) J-26

S u p o sto h ia to en tre 920 AC e 70 AC (M eggers & D an on 1988)

70 AC (C 14/SI-202)* J-21
10 DC (T L -125) J-32
88 DC (T L -127) J-32
97 DC (T L -132) J-33 (J-33)
220 DC (T L -161) J-36
245 DC (T L -126) J-32
2 90 DC (T L -117) J-29
3 20 DC (T L -130) J-33
380 DC (T L -131) J-33
4 0 0 DC (T L -120) J-30
4 80 DC (C 14/SI-386)* J-36
580 DC (C 14/SI-387)* J-36
610 DC (TL) J-6
615 DC (C 14/G X -16061) J-14
690 DC (C 14/SI-199)* J-21
695 DC (C 14/G X -16075) J-21
750 DC (TL) J-6
837 DC (TL) J-6
890 DC (C 14/G X -16063) J-14
1150 DC (T L -88) ?
1195 DC (C 14/G X -16066) J-21
1275 DC (C 14/G X -16061) J-14
1320 DC (T L -48) J-21
1350 DC (TL) ?

Fonte: As datas TL são de M eggers & Danon (1988:248); as datas de C14* são de Sim ões
(1969:402 e em R oosevelt 1991:313-314); as dem ais são de R oosevelt (op.cit.).
“?” foi usado por não haver informação sobre o sítio a que pertencia a amostra cerâmica.

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níveis, apenas paia confirmar a análise feita em então era conhecido para a região, principal­
laboratório na época do projeto Marajó. O mente considerando-se as formas e o tipo de
material de Ilha do Fogo e de Ilha da Ponta de decoração pintada (identificada em apenas
1965 foi guardado separadamente por nível e uma vasilha). Além disso, esse sítio apresenta
por tipo cerâmico e nossa análise confirma a enterramento secundário em urnas, que até
classificação feita: de acordo com a classifica­ então não tinha sido identificado para as fases
ção tipológica construída por Meggers & Ananatuba, Mangueiras e Formiga.
Evans (1957) para a cerâmica das fases Man­ Aparentemente, os dados acima expostos
gueiras e Marajoara, há coexistência das duas significam que a fase Mangueiras, sendo
fases nos níveis 20-40cm e 40-60cm em Ilha da parcialmente contemporânea às fases Anana­
Ponta, com um total de 27,10% de fragmentos tuba e. Marajoara, possui uma duração superior
da fase Mangueiras em todo o corte (cf. Tab.3). a 1.000 anos, sendo, portanto, provável que se
Quanto à Ilha do Fogo, a situação é um pouco encontrem sítios dessa fase que venham a
diferente. O material é muito fragmentado e a preencher o “hiato” (baseado em evidências
análise depende basicamente do exame da pasta negativas) que é mostrado no Quadro 2. Ilha
cerâmica, onde identificam-se em geral fragmen­ Pauxis, por outro lado, seria uma sexta fase,
tos que seriam da fase Mangueiras e em menor pelo menos parcialmente contemporânea à fase
freqüência fragmentos que pertenceriam à fase Marajoara, ainda não estudada, e à espera de
Formiga. A cerâmica, em geral, não-Marajoara datação.
atinge um total de 35,96% no corte A-l e Vale relembrar que a metodologia de
57,59% no corte B-2 (cf. Tabs. 5 e 6). pesquisa utilizada por Meggers & Evans
Nas fichas do sítio Ilha do Fogo, onde baseava-se em duas hipóteses nunca compro­
foram anotados os resultados das análises de vadas: 1) de que os sítios encontrados na Ilha
laboratório, os fragmentos “não-Marajoara” seriam típicos das “culturas de floresta tropical”
aparecem claramente como Mangueiras. Nas (Meggers & Evans 1957: 18), portanto com
outras fontes de registros aparecem como agricultura pouco eficiente, dependentes dos
“provável Formiga”, “não-Marajoara” ou recursos florestais e aquáticos, de estilo de vida
“Formiga”. Isso se deve ao fato de que a semi-sedentário, e com organização social
contemporaneidade da fase Formiga com simples (sem concentração de poder, divisão do
Marajoara era possível segundo o modelo de trabalho ou desigualdade social) e 2) de que
sucessão diacrônica das fases da floresta não havia sentido em estudar a estratigrafía já
tropical e, portanto, era considerado mais que os sítios seriam “tipicamente pequenos e
provável que uma fase não-Marajoara, encon­ pouco profundos... com estratigrafía natural
trada juntamente com cerâmica Marajoara, limitada e sem restos arquitetônicos sobrevi­
fosse pertencente à fase Formiga. ventes, como paredes ou pisos” e os artefatos,
O fato de o sítio Ilha Pauxis ter sido sendo constituídos quase que exclusivamente
totalmente ignorado nas publicações não pode de cacos de cerâmica, não compensavam o
ser explicado pelo fato de esse sítio ter sido esforço de uma “escavação intensiva” (Evans
escavado por José Carlos Cardoso. Afinal, o & Meggers 1965: viii).
sítio PA-JO-26: Castanheira, que forneceu a As poucas referências sobre camadas
única data radiocarbônica para a fase Anana- estratigráficas nos registros do Projeto Marajó
tuba também foi escavado por Cardoso, sem a atestam a existência de camadas distintas, que
participação dos pesquisadores do Museu deveriam ter sido consideradas quando da
Goelui e da Universidade Federal do Pará. A coleta de fragmentos para as seriações,
cerâmica de Ilha Pauxis possui formas diferen­ proporcionando maior confiabilidade ao
tes das demais fases, mas é temperada com método. Além disso, o fato de na maioria dos
caco moído e possui pasta que, em algumas casos não ter sido feito nenhum comentário
peças (T.940, T.947) pode ser considerada sobre a estratigrafía, levanta dúvidas a respei­
semelhante à da fase Formiga. No entanto, no to da confiabilidade dos depósitos trabalha­
conjunto, a cerâmica de Ilha Pauxis aparece dos. Podemos, a partir de nossa própria
como algo totalmente diferente do que até experiência de pesquisa na Ilha de Marajó -

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escavamos sete sítios recentemente no rio sítio Ananatuba escavado pelo projeto
Anajás10 (Schaan 1999) - afirmar que é possí­ Marajó (PA-JO-26: Castanheira) localiza-se
vel identificar camadas arqueológicas distintas no campo, junto ao médio rio Camará, que
relacionadas a diferentes intensidades de deságua na Baía de Marajó e é navegável.
ocupação e uso diferencial do espaço; que Por outro lado, um dos sítios escavados
diferentes áreas escavadas dentro de um por nós, PA-JO-50: Rio Branco, localiza-se
mesmo sítio mostram diferenças importantes no em zona de floresta, à margem esquerda do
tipo e quantidade de artefatos encontrados; e rio Anajás, um dos maiores rios do centro
que é possível distinguir claramente depósitos da Ilha, navegável em todo seu curso. O
bem preservados de depósitos onde as cama­ sítio Rio Branco fica a mais de 20km de
das sofreram distúrbios, antrópicos ou naturais. distância do campo e, enquanto em nenhum
Um rápido exame da literatura arqueológica dos sítios Ananatuba pesquisados anteri­
brasileira da década de 1990 permite observar ormente foram encontrados enterramentos,
que a “crença” na impossibilidade de distin- no sítio Rio Branco encontramos dois
guir-se camadas estratigráficas acabou enterramentos em umas.
juntamente com o Programa Nacional de 2) Os sítios da fase Marajoara escava­
Pesquisas Arqueológicas/PRONAPA e sua dos por Meggers e Evans (1957): PA-JO-
versão amazônica, o Programa Nacional de 14: Monte Carmelo e PA-JO-15: Camutins;
Pesquisas Arqueológicas da Bacia Amazônica/ e por Roosevelt (1991): Guajará (aterro de
PRONAPABA. A utilização das seriações dos PA-JO-14: Monte Carmelo) e PA-JO-21:
tipos cerâmicos como forma de inferir duração, Teso dos Bichos, foram considerados
tamanho, contemporaneidade e reocupação em como sítios típicos da fase Marajoara. Os
sítios nas terras baixas amazônicas tem sido autores basearam suas conclusões (sem
seriamente criticada (Raymond 1995; DeBoer, entrar no mérito das diferenças radicais
Kintigh e Rostoker 1996) e à medida que novas entre as duas abordagens) também nas
pesquisas arqueológicas desenvolvem-se na evidências disponíveis para outros sítios
Amazônia, os modelos generalizantes come­ da fase, a grande maioria deles, aterros
çam a ser postos em cheque (ver Hecken- construídos artificialmente, localizados na
berger, Petersen e Neves 1999). região dos campos, contendo cerâmica
Vimos somar aos dados aqui apresentados cerimonial e funerária. No entanto, os
aqueles coletados durante nossas pesquisas, aterros são apenas parte - ainda que
atualmente em andamento. Basicamente o que fundamental - da história da fase Mara­
pretendemos demonstrar é que há uma variabi­ joara. Quatro sítios dessa fase, recente­
lidade de formas de ocupação do espaço mente escavados, localizam-se às margens
fisiográfico e organização social na pré- do rio Anajás, dentro de um trecho de 5km,
história da Ilha de Marajó da qual o modelo no centro da Ilha, em zona de floresta,
anteriormente utilizado não pode dar conta. sobre elevações naturais do terreno. Não
Citamos como exemplo: há indício de construção artificial nem de
relação clara entre os sítios, que mostram
1) Meggers & Evans (1957: 246)
diferenças marcantes na cultura material e
concluem que a fase Ananatuba caracteri-
nas formas de ocupação do espaço
za-se por ocupar região de floresta prefe­ intrasítio (Schaan 1998, 1999).
rencialmente, e que a proximidade do campo
é mais importante do que a proximidade a As fases arqueológicas identificadas por
um curso d’água navegável. No entanto, o Meggers e Evans foram concebidas como
demarcadoras de culturas distintas. Enquanto
Ananatuba foi incluída na tradição hachurado-
(10) PA-JO-49: Cacoal, PA-JO-51: Saparará, PA-JO- zonada, Mangueiras na borda-incisa e Mara­
52: Casinha e PA-JO-55: Leal, da fase Marajoara;
joara na policrômica, a fase Formiga não foi
PA-JO-50: Rio Branco, da fase Ananatuba; PA-JO-53:
Vista A legre, PA-JO-54: São Benedito, até agora não relacionada a nenhuma tradição maior. Funda­
classificados em nenhuma das fases previamente mentalmente, percebe-se que o método de
definidas. classificação considerou as fases como não-

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relacionadas a priori. No entanto, todas as pelo exame da superfície dos fragmentos,


fases ocupam os mesmos ecossistemas, distinguir entre a técnica de escovação desta
compartilham semelhanças na tecnologia fase para as outras. Além disso, os tipos
cerâmica: nas formas de vasilhames, nas Bacuri escovado e pseudo-sipó inciso da fase
técnicas decorativas, nos designs. Além disso Mangueiras são feitos nas mesmas formas que
todas usam o caco moído com antiplástico, são feitos na fase Ananatuba, só mudando,
uma característica que não é comum em outras portanto, a pasta, no exame da qual a caracte­
cerâmicas da foz do Amazonas. Basicamente, o rística distintiva é a cor do núcleo.
uso do caco moído como antiplástico, o Espera-se que a coloração do núcleo dos
engobo e a técnica da escovação das paredes fragmentos cerâmicos seja conseqüência dos
externas das vasilhas surge com a fase Anana- procedimentos técnicos utilizados pelo
tuba e perdura até a fase Marajoara. ceramista para o processo de queima dos
O “tipo diagnóstico” da fase Ananatuba, vasilhames. Considera-se que contumazes
sipó inciso, se apresenta em freqüências muito ceramistas no passado tenham criado, repro­
pequenas nos sítios pesquisados - 0,5% em duzido e perpetuado procedimentos técnicos
PA-JO-9; 1% em PA-JO-10 e 3% em PA-JO-7. para a realização de uma queima bem feita e
Talvez por isso não seja coincidência o fato de rentável, o que se pode traduzir em vasilhames
PA-JO-7 ser justamente o sítio onde há resistentes e minimização de custos com
coexistência entre as fases Ananatuba e material combustível e tempo despendido por
Mangueiras, quando Mangueiras começa a peça. Como resultado do processo de reprodu­
“copiar” o tipo inciso Ananatuba. Os tipos ção de procedimentos técnicos durante várias
incisos são tão semelhantes que Meggers & gerações, pode-se identificar no registro
Evans chamaram tanto o inciso da fase arqueológico através do estudo da cerâmica a
Mangueiras quanto o da fase Formiga de manutenção e reprodução de uma determinada
Pseudo-sipó inciso, nome dado inicialmente ao técnica de produzir cerâmica. Que isso seja
tipo inciso da fase Ananatuba, chamando-os chamado de fase pode fazer sentido, mas não é
de “Pseudo-sipó inciso variação M anguei­ lógico que as fases sejam identificadas com
ras" e “Pseudo-sipó inciso variação Formi­ diferentes culturas e que essas culturas
ga", uma vez que teriam copiado ou sofrido correspondam a diferentes grupos sociais. Não
influência da fase Ananatuba. há razão para que se considere que uma
“Este tipo [Sipó inciso] fo i assim chamado técnica ou um estilo tomado isoladamente
para enfatizar o fato de que os motivos são defina uma cultura, como se a cultura pudesse
idênticos àqueles do Sipó inciso da fase ser reduzida a uma de suas dimensões e fosse
Ananatuba. Se distingue somente por ser homogêna e imutável; e ainda que à sociedade
aplicado à Mangueiras simples ou Anjos corresponda uma só cultura, e que, portanto,
simples, mostrando que representa a adoção cultura e sociedade possam ser definidas
e perpetuação desta técnica decorativa dentro dos mesmos limites.
alienígena pelo povo da fase Manguei- Em vista dos dados coletados pelo Projeto
ra s ”(Meggers e Evans 1957: 218-9). Marajó, é necessário avaliar as semelhanças e
Uma análise dos tipos decorados nos leva diferenças entre a cerâmica das fases Man­
a perceber que existe uma continuidad; das gueiras e Marajoara. As duas fases têm dois
técnicas decorativas utilizadas em todas as tipos “simples”: um com núcleo alaranjado e
fases. Os tipos escovados são, em geral, outro com núcleo de cor escura (cinza, preto
bastante semelhantes: deixando-se de examinar ou marrom). Anjos simples (fase Mangueiras)
a cor da pasta, muitas vezes podem ser e Camutins simples (fase Marajoara) têm
encontradas diferenças mais significativas núcleo claro, alaranjado, mas Anjos tem uma
entre fragmentos com decoração escovada de pasta mais fina, melhor misturada, de cor mais
uma mesma fase do que entre fragmentos de freqüentemente ocre, enquanto Camutins tem
fases diferentes. Dentre todas as decorações, uma pasta de mistura mais grosseira, de uma
os tipos escovados atingem freqüências mais cor alaranjada forte, mostrando uma clivagem
altas na fase Mangueiras, mas não é possível, em ângulos bem pronunciados. Fragmentos

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típicos desses tipos, examinados à lupa, são co dessa maneira e que a provável grande
caracteristicamente distintos. No entanto, duração da fase Mangueiras (ou a menor
examinamos muitos fragmentos de cerâmica distância entre as fases Ananatuba e Marajoa­
Marajoara decorada (bastante elaborada) com ra) não pode ser explicada dentro do antigo
pasta tipicamente... Anjos simples! paradigma. Por outro lado, os dados estritos
Entendemos que as diferenças na queima produzidos pelas pesquisas anteriores não
da cerâmica indicam diferentes procedimentos permitem interpretações diferentes, pois estão
técnicos, cujos efeitos não são totalmente amarrados a hipóteses de pesquisa que não se
controlados pelo ceramista, e não definem sustentam frente às novas evidências.
obrigatoriamente diferentes culturas ou grupos Entendemos que os novos dados aqui
sociais na acepção dada por Meggers & Evans. apresentados e as questões levantadas, ainda
O problema é que a coleta dos fragmentos de que de maneira preliminar, não apenas questio­
cerâmica durante o projeto Marajó foi feita nam a validade da seqüência cultural apresenta­
seguindo um procedimento que não admite da por Meggers & Evans para a Ilha de Marajó
outras leituras. Por isso, dificilmente um mas demonstram a fragilidade da construção
reestudo da cerâmica proveniente das pesqui­ tipológica cerâmica até então utilizada para a
sas anteriores poderia dar um bom resultado ou identificação e caracterização de culturas pré-
esclarecer os muitos pontos obscuros. Além históricas distintas na área. A partir desse novo
dos problemas assinalados relativos aos quadro fica claro que as pesquisas relativas à
métodos de escavação, a cerâmica proveniente ocupação pré-histórica da Ilha de Marajó
de campo é, em geral, muito fragmentada e, em deverão orientar-se no sentido de questionar a
alguns casos, não foi guardada obedecendo validade do modelo de sucessão diacrônica das
aos critérios de sua procedência, mas segundo Fases da Floresta Tropical, não só em função
sua classificação em tipos cerâmicos, o que de sua relação espaço-temporal mas inclusive
para alguns sítios toma inviável aplicar uma questionando as bases teóricas sobre as quais
metodologia diferente de análise. ele constituiu-se.
Não pretendemos afirmar que não existem
diferenças entre as supostas fases. Com base
nas evidências que se possui até o momento, Considerações finais
pode-se considerar cada fase como diferentes
estilos de fazer cerâmica. A coexistência A fase de pesquisas arqueológicas na Ilha
parcial ou total de algumas destas populações que se encerra com o projeto Marajó ilustra
com seu estilo próprio de fazer cerâmica levou uma abordagem do registro arqueológico em
ao compartilhamento de procedimentos que toda a explicação derivava simplesmente
técnicos e à ocorrência de influências mútuas do estudo de fragmentos cerâmicos, tidos
entre elas. As poucas datações absolutas que como demarcadores culturais e temporais que
se possuem para as três primeiras fases podiam ser lidos do ponto de vista de algumas
cerâmicas da Ilha não são conclusivas sobre de suas características técnicas e suas quanti­
sua duração, início e fim, pois baseiam-se em dades. Essas características não eram relacio­
material coletado em alguns poucos sítios. Os nadas com nenhuma outra evidência material
dados disponíveis constituem-se basicamente ou feição arqueológica dentro dos sítios
na descrição de tipos cerâmicos e seriações, pesquisados. Considerava-se, desta maneira:
além de estimativas sobre o tamanho dos 1) o sítio arqueológico como um espaço
sítios. A aplicação dessas técnicas buscou homogéneamente ocupado, por onde os itens
produzir dados comparáveis de tal maneira que componentes da cultura material (cerâmica)
uniformizou o registro arqueológico fechando espalhavam-se indistintamente; 2) que todos
os olhos para especificidades e variações que os sítios que exibiam os mesmos tipos cerâmi­
não estivessem previstas no modelo. Ou seja, cos básicos, agrupados sob a denominação de
a metodologia de trabalho trazia implícitas as “fase cerâmica”, faziam parte de uma mesma
conclusões da pesquisa. Consideramos que etnia/cultura e, conseqüentemente, indicavam
não é possível entender o registro arqueológi­ a existência de populações que possuíam as

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mesmas estratégias de subsistência; 3) que a onde for encontrado o mesmo tipo de cerâmica
mudança de características tecnológicas encontrar-se-ão também todas as demais
através do tempo obedecia uma razão constan­ características relacionadas a ela nos sítios
te e homogênea para todos os sítios; 4) que os previamente pesquisados. Disso decorre que,
sítios não eram totalmente contemporâneos e se antes, a abertura de um ou dois poços-teste
que representavam episódios de reocupação em uma meia dúzia de sítios fornecia material
dada a mobilidade dos grupos sociais em para o entendimento do processo de ocupação
função dos recursos naturais. humana de uma grande área geográfica, hoje a
Nossa crítica a esse modelo de pesquisa escavação da mesma quantidade de depósitos
não se refere simplesmente à sua abordagem em um só sítio nos fala ainda pouco sobre o
no estudo da cerâmica, mas à concepção sítio e menos ainda sobre sua inserção em um
subjacente a ele a respeito do significado da contexto regional.
cerâmica enquanto fonte de dados sobre as Ao lado do estudo meticuloso de sítios
sociedades e culturas arqueológicas. A arqueológicos, os levantamentos e estudos
cerâmica é uma das mais importantes fontes de regionais são extremamente importantes e são
dados para os sítios amazônicos dadas suas cada vez mais reconhecidos como necessários
características de perenidade dentro do na medida em que fica claro que complexas
ambiente úmido da floresta tropical, mas não redes de trocas e intercâmbios culturais
pode ser entendida fora do seu contexto de regionais ligavam as sociedades humanas pré-
deposição. Isso significa dizer que deve ser históricas. Esses estudos requerem planeja­
relacionada com feições arqueológicas e com mento da pesquisa e metodologias específicas
as diferentes áreas de atividade e organização - prospecções regionais que combinem
do espaço intrasítio, dados estes que somente técnicas de amostragem probabilística adequa­
podem ser obtidos através de uma escavação das às perguntas da pesquisa, construções de
que envolva: estudo de camadas estratigrá- tipologias de sítios e artefatos, estudos de
ficas - seu processo de formação, sua compo­ variabilidade e dispersão de feições arqueoló­
sição e sua distribuição diferencial diacrônica gicas, levantamento de informações sobre a
e sincrónica no sítio - , estudos de composição distribuição espacial dos sítios e monitora­
química e mineralógica do solo, estudos de mento e análise dos dados em um sistema de
remanescentes de fauna e flora, plotagem e informação geográfica. Nesse sentido, os
registro gráfico da distribuição de objetos da artefatos constituem-se em um dos segmentos
cultura material através do sítio, estudo e geradores de informação, que devem ser
registro gráfico horizontal e vertical de feições estudados dentro do contexto particular de
arqueológicas etc.. sua ocorrência e em uma perspectiva regional.
Afirmamos que os fragmentos cerâmicos Por todos os motivos acima expostos,
não têm distribuição homogênea, mas diferen­ consideramos que, ainda que os estudos com
cial sobre o sítio. Dada a existência de diferen­ material proveniente de antigas pesquisas
tes áreas, relacionadas a atividades específicas possa ser importante, as novas questões que
- descarte, preparação de alimentos, manufa­ ora se colocam para a arqueologia da Ilha de
tura de artefatos, circulação, performances Marajó, e por extensão a toda a arqueologia
rituais etc. - os contextos deposicionais amazônica, certamente só poderão ser respon­
devem ser estudados para a reconstituição das didas a partir do desenvolvimento de novas
áreas de produção, uso e descarte dos obje­ pesquisas, orientadas segundo um enfoque
tos. teórico-metodológico que seja consistente
Além disso, que a presença de determina­ com os problemas colocados.
do tipo de cerâmica não é o reflexo direto da
existência de determinado tipo de organização
social e utilização do espaço físico. O que Agradecimentos
significa dizer que o estudo de um único sítio
ou pequeno número deles não autoriza o Gostaríamos de agradecer ao CNPq pela
arqueólogo a concluir que em todos os sítios concessão da Bolsa de Desenvolvimento

162
SCH AAN, D.P. Os dados inéditos do Projeto Marajó (1962-1965). R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia,
São Paulo, 11: 141-164, 2001.

Científico Regional, que possibilitou a realiza­ ao técnico da Área de Arqueologia do Museu


ção desse trabalho; à Curadora da Reserva Goeldi, Raimundo Teodório dos Santos pela
Técnica Arqueológica do Museu Goeldi, Vera restauração das vasilhas de Ilha Pauxis; e a
Guapindaia, e aos técnicos Regina Farias e Julice Pimentel, bolsista do PIBIC/CNPq, pelos
Raul Ivan Campos pelas facilidades de acesso desenhos das peças de cerâmica que ilustram
ao acervo e registros sobre o Projeto Marajó; esse artigo.

SCHAAN, D.P. The unpublished data o f the Marajo project (1962-1965). R evista do
Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 11: 141-164, 2001.

ABSTRACT: During the 1960’s, the Marajo project recorded and studied
nineteen new archaeological sites on the southeastern portion of Marajo
Island, aiming to increase, by employing the PRONAPABA’s methodology,
the data that supported the basis for the Tropical Forest Phases model
proposed by Meggers and Evans (1957). Nevertheless, not all the results
conformed to the researches’ expectations and as a result, some important
data was never published. In this article, I compare the published material to
the field and laboratory reports (site files and records of artifacts at the Museu
Paraense Emilio Goeldi), discussing the validity of the model used for the
definition of ceramic cultures on Marajo Island.

UNITERMS: Marajo archaeology - Tropical Forest Phases - Ceramic


cultures.

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Recebido para publicação em 21 de novembro de 2000.

164
Rev. d o Museu de A rqu eologia e Etnologia, S. Paulo, 77: 165-187, 2001.

A CERÂMICA “NEO-BRASILEIRA” NAS TERRAS PAULISTAS:


UM ESTUDO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE IDENTIFICAÇÃO
CULTURAL ATRAVÉS DOS VESTÍGIOS MATERIAIS NA VILA
DE JUNDIAÍ DO SÉCULO XVIII

Walter Fagundes M orales*

MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as


possibilidades de identificação cultural através dos vestígios materiais na vila de
Jundiaí do século XVIII. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
77: 165-187, 2001.

RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar alguns dos resultados
obtidos na dissertação de mestrado “A escravidão esquecida: a administração
indígena em Jundiaí durante o século XVIII”. Em especial, aqueles que se
referem às possibilidades interpretativas oferecidas pela chamada cerâmica
“neo-brasileira” no contexto das terras Paulistas do período colonial.

UNITERMOS: Arqueologia-histórica - São Paulo Colonial - Adminis­


tração Indígena - Escravidão Africana - Interação Cultural - Identidade
Étnica - Cerâmica - “Cerâmica Neo-brasileira”.

Introdução Óbitos)2 dos índios e negros ocorridos na


Matriz da “Villa da Nossa Senhora do Desterro
“A escravidão esquecida: a administração de Jundiahy”.3 Os registros4 destes manuscri­
indígena em Jundiaí durante o século XVIU” tos são diferentes em sua composição, pois
(Morales 2000) foi uma pesquisa de mestrado
que procurou demonstrar a presença e inser­
(2) Pertencente ao acervo do Museu H istórico e
ção social de uma população indígena utilizada Cultural de Jundiaí.
como mão-de-obra escrava na vila de Jundiaí (3) Jundiaí corresponde a um dos núcleos coloniais
até as últimas décadas do século XVIII, mais antigos da capitania de São Vicente, com o
através de dados de natureza distinta. Um povoado sendo elevado a vila em 1655. Seu povoa­
mento ocorreu nas primeiras décadas do século XVII
conjunto de informações foi extraído de fontes
devido à procura por novas terras para o plantio e a
textuais primárias, como os documentos necessidade da máxima aproximação da mão-de-obra
manuscritos do século XVIII, até agora principal do período: as aldeias indígenas.
inéditos, onde foram registrados os casamen­ (4) As anotações manuscritas existentes no “Livro de
tos (Livro de Casamentos)1 e mortes (Livro de Óbitos” referem-se aos 1271 óbitos ocorridos entre os
anos 1744 e 1787, enquanto o “Livro de Casamentos”
remete as 204 uniões realizadas perante a Igreja entre
1739 e 1777. De uma maneira geral, cada um dos registros
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Pós- destes documentos tem informações sobre a condição
graduação em Arqueologia, Doutorado. social dos cativos, sua idade, origem étnica, relações de
(1) Pertencente ao Arquivo da Cúria de Jundiaí. parentesco, local de residência, nome dos proprietários etc.

165
MORALES, W.F. A ceramica neo-brasileira nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn o lo g ia, São Paulo; 11: 165-187, 2001.

tratam de acontecimentos distintos da vida o recenseamento da vila de Jundiaí realizado


social. Entretanto, no que diz respeito aos em 1767.6
estudos de demografía histórica, são comple­ O levantamento intensivo e sistem ático
mentares, já que cada um deles, a sua maneira, dessas fontes escritas ofereceu referências,
auxilia a entender aspectos da composição mesmo que pontuais e esparsas, sobre os
social, étnica e cultural da região de Jundiaí. A locais das diversas sesmarias doadas na
transcrição de ambos os documentos, com a região ou dos antigos bairros rurais. A partir
inserção de seus registros em um banco de dessas inform ações docum entais esboçam os
dados informatizado, possibilitou análises e um mapa com a implantação aproximada
acesso a um volume considerável de informa­ desses sítios durante o período colonial, que
ções inéditas sobre um período histórico serviu como definidor das áreas onde
escasso em documentos originais. realizar-se-iam os primeiros trabalhos de
O outro conjunto de dados foi de natureza campo - as prospecções.7 Identificados os
essencialmente arqueológica. Trata-se dos sítios,8 procedemos à escolha daqueles mais
fragmentos cerâmicos provenientes de diver­ adequados a intervenções arqueológicas -
sos sítios arqueológicos localizados em abertura de poços-testes, sondagens,
fundos de vale e pequenos platôs nas cercani­ trincheiras e coleta sistemática de material
as da serra do Japi e na bacia do rio Jundiaí- em superfície - que evidenciaram, em sua
Mirim, exatamente onde as fontes documentais maior parte, material cerâmico, objeto de
registram a implantação de várias fazendas e análise deste trabalho.
roças no período em questão. A cerâmica coletada nestes locais, em
O direcionamento dos trabalhos de especial a indústria cerâmica do sítio Russo,9
prospecção arqueológica baseou-se na apresentou características técnicas e decorati­
pesquisa das transcrições do Arquivo do vas similares às empregadas pelos grupos
Estado publicadas na coleção “Documentos portadores de cerâmica Tupiguarani anteriores
Interessantes para a História e os Costumes à chegada dos portugueses, embora agregadas
de São Paulo”, no “Repertório das Sesmarias a elementos europeus e africanos como
Concedidas pelos Capitães da Capitania de
São Paulo desde 1721 até 1821” e na série
“Inventários e testam entos”. Somada a estas
publicações, foi realizada também uma busca (6) As informações destas últimas duas fontes, apesar
completa na cartografia histórica referente a de bastante genéricas, já que somente indicam os
Jundiaí, depositada no Museu Histórico e bairros da vila, serviram para inferir a densidade
aproximada de ocupação dos antigos bairros rurais.
Cultural desta cidade,5 a fim de obter infor­
(7) As prospecções aplicadas à serra do Japí desenvol­
mações sobre a toponimia de locais, cami­ veram-se em dois eixos principais, ambos trilhas de
nhos e acidentes geográficos que tiveram grande circulação de pessoas e mercadorias no
seus nomes alterados nos mapas atuais, mas passado. O primeiro deles corresponde ao antigo
que são amplamente empregados nos caminho de ligação entre a vila de Jundiaí, as
barrancas do Tietê e a vila de Itu, onde atualmente
documentos coloniais. Por último, foram
passa a rodovia Mal. Rondon. O segundo eixo, que
acrescentadas as informações obtidas com a quase não é mais utilizado nos dias de hoje, até
transcrição do Livro de Óbitos, onde estão décadas atrás servia com o elo de ligação entre Jundiaí,
anotados o local de residência dos cativos, e Santana do Parnaíba e São Paulo.
(8) Durante os trabalhos de prospecção arqueológica
foram localizados um total de dez sítios relacionados
ao período histórico.
(5) Os mapas são: 1) Força Pública do Estado de São (9) O sítio Russo foi escolhido como unidade de análise
Paulo, folha de Jundiahy (Norte n ° 46 aj e a.^), 1932; preferencial devido à existência de documentos
2) da Commissão Geographica e G eologica do Estado escritos que indicam a implantação de diversas
de São Paulo, folha Jundiahy, 1925; 3) Planta de sesmarias na região no final do século XVII e início do
parte da linha divisória dos m unicípios de Jundiahy e XVIII, a significativa quantidade de vestígios diagnósti­
Itatiba, 1924; 4) Planta do Encanamento Geral - cos do material produzido ou utilizado em Jundiaí no
Estudo para o abastecimento d’água de Jundiahy, período em questão, e o razoável estado de conserva­
1893. ção desse sítio.

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 77: 165-187, 2001.

pegadores, alças e gargalos.10 Esta sobre­ certo segmento da cultura material, produzida
posição de estilos indica a permanência, nas no período colonial.
fazendas, de pessoas que manufaturavam Resultado de um somatório de elementos
vasilhas cerâmicas conforme padrões tradicio­ provenientes do contato de três segmentos
nais indígenas e que, somados aos novos distintos - indígena, africano e europeu o
elementos, deram origem a uma cerâmica material cerâmico analisado reflete a interação
cabocla, genericamente denominada como cultural que a situação de cativeiro, imposta
“tradição neo-brasileira”11 (Chymz 1976: 145). pelos europeus aos indígenas e africanos,
O estudo integrado dos aspectos tecno­ acabou por produzir. A identificação das
lógicos, decorativos e morfológicos12 desse alterações sofridas pela cerâmica neste
material, com a possibilidade de análise período e as informações presentes no conjun­
estrutural dos elementos que compõem os to de dados históricos, demonstram a existên­
artefatos cerâmicos (Shepard 1976, Deane cia de uma rede de sociabilidade e miscigena­
1985, Rye 1988, Rice 1988, Price 1988, Arnold ção que, a partir de meados do século XVIII,
1989, Sinopoli 1991), aliado à mediação de descaracteriza os segmentos indígenas como
parâmetros temporais, culturais e demo­ mão-de-obra escrava. Os trabalhos forçados
gráficos que as fontes históricas proporcio­ passam a ser cada vez mais atribuídos aos
nam (Marcflio 1977, Henry 1977), serviram indivíduos de origem e ascendência africana e
como uma excelente oportunidade para os indígenas e seus descendentes passam a
diagnosticar as alterações sofridas, em um ocupar os estratos mais baixos, porém livres,
da sociedade paulista colonial.

(10) Durante os trabalhos de campo foram coletadas


duas amostras de cerâmica e sedimento datadas por
As condições de contato na
term olum inescência no “Laboratório de Vidros e sociedade colonial
Datação” da FATEC/SP, com o resultado final
praticamente igual, respectivam ente, 290 e 300 anos
Desde cedo, qualquer estudante aprende
antes do presente. Essas duas datas confirmam que a
ocupação do sítio Russo ocorreu entre o final do que a formação do Brasil contemporâneo se
século XVII e início do XVIII. Se estendermos a deve ao encontro da raça branca, índia e negra
margem de erro das amostras ao máximo, ou seja 20 (Freyre 1930). Contudo, essa afirmação, em vez
anos a mais ou a m enos, podemos perceber que a de oferecer a dimensão da pluralidade étnica
ocupação histórica se deu entre 1680 e 1730. Assim ,
do povo brasileiro, acaba por esconder a
os resultados obtidos através da datação cerâmica
permitem trabalhar sincrónico e contextual as
verdadeira diversidade existente entre nós.
evidências materiais e as inform ações provenientes Não se pode reduzir centenas de grupos
das fontes docum entais primárias. étnicos, tanto os autóctones quanto os vindos
(11) Entendida e analisada de um modo geral com o e os trazidos de fora, a somente três categorias
“uma tradição cultural caracterizada pela cerâmica - dos “brancos”, dos “índios” e os dos
confeccionada por grupos fam iliares, neobrasileiros
“negros”. Essa redução favorece a idéia de
ou caboclos, para uso dom éstico, com técnicas
indígenas e de outras procedências, onde são diagnos­ que os componentes de cada um destes
ticas as decorações: corrugada, escovada, incisa, grupos compartilhariam a mesma língua,
aplicada, digitada, roletada, bem com o asas, bases cultura, organização social, religião etc., ou
planas em pedestal, cachim bos angulares, discos seja, apresentariam poucas diferenças inter­
perfurados de cerâmica e pederneiras” .
nas.
(12) Os atributos analisados em cada um dos fragmen­
tos de paredes, bases, bordas e apêndices foram:
Mas a realidade está bem longe disso. As
técnicas de manufatura, tratamento de superfície, variações internas entre os chamados “índios”
tipo de decoração, tipo e tamanho de antiplástico, e “negros” é enorme, assim como as diferenças
espessura da parede e tipo de queima. Em seguida entre os “brancos”. Apenas na vila de Jundiaí
realizam os a reconstituição da forma dos recipientes
do século XVIII foi possível constatar, a partir
a partir da inclinação (ângulo) e diâmetro dos
fragmentos das bordas e bases, com o intuito de
do manuscrito “Livro de Óbitos de escravos”,
definir a existência de categorias baseadas no seu pelo menos quatro denominações para os
fo rm a to . indígenas - Carijó, Kayapó, Pareci e Bororo -

167
MORALES, W.F. A cerâmica neo-brasileira’ nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos v estígios m ateriais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo, 11: 165-187, 2001.

e três para os africanos - os da Guiné, Congo “peça” - como era mais comumente chamado,
e Benguela. Estas definições costumam ser que deveria ser capturada e vendida para quem
genéricas e por isso escondem sua especi­ oferecesse melhor preço (Schwarcz 1996).
ficidade étnica, porque costumam ser nomes Desta forma, algumas das designações
dados por outros grupos e/ou pessoas encontradas nos registros documentais, como
externos a eles, dificilmente tratando-se de “peça do gentio da guiné” ou “preto da nação
autodenominações. banguela”, somente fazem referência ao porto
Os chamados Carijó, termo amplo que de saída na costa africana (Ramos 1943) - e
englobava uma série de grupos falantes de esse é o indicador aproximado da origem de
línguas Tupi-Guarani, eram os cativos prefe­ alguns dos indivíduos africanos trazidos
renciais dos colonos paulistas desde os durante os mais de 300 anos que o tráfico
primeiros tempos do século XVII (Schaden negreiro foi praticado no Brasil (Schwartz
1954). Essa preferência se dava por vários 1995).
fatores: moravam em aldeias numerosas, Segundo Nina Rodrigues (1932) e Artur
falavam a mesma língua, estavam acostumados Ramos (1934), dentre os vários milhares de
aos trabalhos agrícolas e ocupavam territórios escravos importados, dois grupos destaca­
relativamente próximos e de fácil acesso a vam-se numericamente: aqueles de língua
incursões de aprisionamento - o interior banto e os sudaneses. No século XVI, os
paulista e as porções mais ao sul da província escravos vinham predominantemente da região
de São Paulo, em áreas conhecidas como da Senegâmbia, também conhecida como
“sertão dos carijós” e “sertão dos patos” Guiné, e das feitorias de São Tomé e Cabo
(Monteiro 1994). Verde, e eram os grupos sudaneses Manjaca,
Da mesma forma que os Carijó, os Kayapó Balanta, Bijago, Mandinga e Jalofo. No século
trazidos para a vila de Jundiaí não representam XVII, expande-se a oferta de negros ao tráfico
um grupo específico e sim, um termo geral para nas porções equatorial e central do continente
os falantes da família lingüística Jê. Estes africano, no porto de Mpinga, e na região ao
grupos ocupavam uma vasta região que vai do sul do rio Dande (Angola), sem, contudo,
noroeste de São Paulo até o norte de Goiás cessar o comércio com outras áreas. Durante o
(Turner 1992), e não eram vistos como bons século XVIII, ocorre uma retomada na captura
trabalhadores devido a sua belicosidade e a dos escravos sudaneses na costa da Guiné e
dificuldade em adaptá-los ao trabalho agrícola na costa da Mina e inicia-se a captura de
(Neme 1969). Eram considerados por isso um escravos em direção à baía de Benin, de onde
obstáculo e acabaram sendo envolvidos nas vieram os Iorubá, Jeje, Nagô, Tapa e Haussá
chamadas guerras justas e combatidos impie­ (Verger 1987). Posteriormente, entrando no
dosamente (Ataídes 1998). século XIX, esta captura estende-se até
As duas únicas referências isoladas ao Moçambique, na costa oriental da África (Law
apresamento dos Pareci e Bororo, habitantes 1991).
de territórios mais afastados, em áreas dos Os africanos trazidos para a região de São
chapadões de Mato Grosso, no planalto Paulo no final do século XVIII e início do XIX
central, são indicativas das grandes distâncias eram, em sua grande maioria, Banto de “Ango­
que as incursões percorriam em busca de um la” saídos dos portos de Luanda e Benguela
fluxo contínuo de cativos para mover a (Sienes 1991-1992). Os Banto, ou Bantu,
economia paulista e, neste caso, parecem estar correspondem às populações que ocupam a
mais relacionadas aos grupos étnicos de parte meridional da África, possuindo uma
origem dessas pessoas. origem lingüística comum (Oliver 1966), mas
Quanto à identificação dos africanos apresentando uma grande diversidade de
capturados, a questão é ainda mais difícil de valores e costumes (Lopes 1988).
resolver, pois esbarra na falta, de registros nos Enfim, havia uma variedade de grupos
documentos de época que, quando muito, têm étnicos dessas terras e de outras que compu­
apenas a sua procedência, já que um escravo nham uma complexa multiplicidade de históri­
não passava de uma mercadoria ou uma as, culturas e condições sociais e jurídicas que

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos v estígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn olo g ia , São Paulo, 11: 165-187, 2001.

influíam diretamente, e de diversas maneiras, or distribuição dos cativos para os engenhos


em seu grau de inserção na sociedade colonial do litoral (Furtado 1989, Prado Jr. 1953).
e nos modos de entender sua própria situação Aquele autor enfatiza que a principal função
(Faria 1998). Darcy Ribeiro (1995:131) traçou o das expedições residia na reprodução física da
resultado final dessa situação: força de trabalho e que São Paulo era tanto
“O brasilíndio com o o afro-brasileiro
fornecedora como consumidora de cativos,
existiam numa terra de ninguém , étnicam ente mobilizando expressivos contingentes indíge­
falando, e é a partir dessa carência essencial, nas que influenciaram sua formação.
para livrar-se da ninguendade de não-índios, não- Através da análise de dados históricos e
europeus e não-negros, que eles se vêem forçados arqueológicos, procuramos ampliar este
a criar a sua própria identidade étnica: a
quadro para o século seguinte e demonstrar
brasileira”.
que a presença indígena na “Villa de Nossa
Essa “brasilidade”, no entanto, estava Senhora do Desterro de Jundiahy” perdurou
longe de se concretizar durante o transcorrer até pelo menos meados do século XVIII.
do século XVIII. Pode-se dizer que estava em
andamento e a inserção dos africanos e índios
na sociedade colonial se processava de índios e africanos:
maneira bastante desigual. Ela dependia da culturas em transformação
região e época, uma vez que a oferta, a neces­
sidade e os tipos de cativos empregados não A situação de contato imposta a diversas
foram uniformes dentro da colônia ao longo do etnias cativas causou um profundo impacto
tempo. Sabe-se, por exemplo, que em áreas não só na sociedade colonial, que as absor­
responsáveis por grande produção de açúcar veu, como na totalidade das esferas socio-
para exportação, como Bahia e Pernambuco culturais das sociedades indígenas e africanas
(Schwartz 1996), os africanos tiveram uma (Wolf 1982, Beauregard 1994). No entanto,
participação fundamental desde muito cedo, a acreditar que estas comunidades tiveram sua
partir da metade do século XVI, e que as cultura simplesmente eliminada, com a incor­
Minas Gerais receberam um grande contingen­ poração automática de novas normas e regras
te de escravos africanos para a mineração no (Rubertone 1994), indica desconhecer a
final do século XVII (Souza 1999). Nas terras capacidade de reformulação e transformação
paulistas, a importação africana em larga de padrões culturais (Geertz 1973, Shalins
escala aconteceu apenas a partir das derradei­ 1976). Claro que é difícil que uma cultura seja
ras décadas do século XVIII, período em que a transportada de sua base de origem para
cana-de-açúcar, e logo em seguida o café, novos contextos e continue mantendo as
alavancaram a economia paulista definitiva­ mesmas características (Cohen 1969). Uma
mente (Marcílio 1974, Linhares & Silva 1981). situação nova exige a reformulação das
Sobre o cativeiro indígena e sua inserção características internas e dos modelos e
na sociedade colonial ainda pouco se sabe. Na símbolos culturais ancestrais para que se
maior parte das vezes, a historiografia tradicio­ adaptem às novas realidades e significados
nal prioriza o papel e a presença do negro absorvidos (Durham 1977, Cunha 1985).
como mão-de-obra, restringindo o emprego Assim, alguns valores são mantidos, outros
dos indígenas às etapas iniciais da colonização transformados ou substituídos, sem que isso
(Furtado 1989, Fausto 1999). Entretanto, elimine a possibilidade de existência de uma
recentes trabalhos desenvolvidos por John identidade comum ou de continuidade cultural
Monteiro (1988, 1989, 1992, 1994) têm dado desses grupos (Balandier 1963, Thomas 1996).
novos contornos a esta situação. Segundo Barth (1969), a própria identidade
Através de extenso levantamento cartorial, de um grupo é mutável. Ela depende de como
Monteiro demonstra a presença do cativeiro os indivíduos situam-se a si próprios e aos
indígena em São Paulo durante todo o século outros, dentro de categorias formuladas a
XVII e modifica a tradicional visão da capitania partir de uma origem ou elementos culturais
apenas como centro de apresamento e posteri­ comuns. Esse discernimento cria grupos, os

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rqu eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 77: 165-187, 2001.

grupos étnicos, que têm o poder de definir colônia. Escravos (africanos), administrados13
quem está dentro ou fora dele. Mas não basta (indígenas) ou seus descendentes, poderiam
somente a auto-identificação dos seus compo­ ascender a uma melhor condição jurídica como
nentes (Drummond 1981). É necessário que alforriados ou libertos. Sua ascensão social era,
outros grupos aceitem essas diferenças, no entanto, ainda mais difícil que a jurídica,
definindo categorias relacionais, dicoto- havendo outras categorias qualitativas e bem
mizadas, onde “Nós” contrapõe-se a “Outros” mais sutis para classificar os estratos mais baixos
(Todorov 1988, Novaes 1993). Dessa relação da população colonial (Mattos 1998). Dentro da
nascem e são construídas as diferenças, quer escravaria conviviam, por exemplo, os “crioulos”
sejam elas reais, imaginárias ou até impostas (filhos de africanos nascidos no Brasil), “mula­
(Balibar & Wallerstein 1988, León 1992, tos” (filhos de branco e negra), africanos recém-
Brandão 1986). chegados e que ainda falavam apenas sua
Era assim que se davam as relações sociais língua nativa (“boçais”), “ladinos”, que eram os
nas terras Paulistas. Havia uma classe econômi­ escravos trazidos há mais tempo, os “cayapó
ca e política dominante que tinha o poder de vindo do sertão”14 e até índios aldeados.15
nomear e dividir a população em função da sua Todas essas macro-divisões eram exóge-
origem racial - branca, negra ou indígena - e, a nas, isto é, impostas de fora para dentro. Para
partir daí, definir sua condição de homens um viajante europeu recém-chegado das
livres, libertos, alforriados, administrados ou metrópoles, estas categorias seriam claras e
escravizados. funcionais para definir e identificar a situação,
As etnias africanas foram reduzidas a pelo menos a grosso modo, de qualquer
escravos, com condição jurídica e social bem componente da colônia de imediato.
definidas dentro da colônia (Mattoso 1990). Os componentes dessas categorias
Esta redução também foi feita às etnias também sabiam seu lugar e porque faziam parte
indígenas, mas, apesar de estabelecida, sua delas. Um africano ou indígena, por força da
condição não era tão clara juridicamente. dominação, sabia a que grupo social pertencia,
Primeiro, devido às flutuações da legislação mesmo que à sua revelia, porque estava
indigenista (Thomas 1981; Cunha 1992a, compulsoriamente inserido nele. Só que
1992b; Perrone-Moisés 1992; Hansen 1998) e, também se reconheciam enquanto grupo
segundo, socialmente, devido à dificuldade de étnico e criavam suas próprias diferenças
reconhecer quem era ou não branco, já que as internas. Um negro da “nação” Benguela sabia
características fenotípicas indígenas estavam das suas diferenças culturais e lingüísticas
bastante misturadas às dos “brancos”. Essa com os negros da Guiné, tanto quanto um
situação correspondia a um interesse da coroa índio Bororo em relação ao Pareci.
em integrar esses segmentos à sociedade, Esse contato entre padrões culturais,
como pode-se perceber pelo alvará de 4 de étnicos e condições sociais e/ou jurídicas
abril de 1775, no qual o rei de Portugal declara diversas presenciou ações de dominação,
(citado de Souza Filho 1994:158): resistência e assimilação diferenciadas, que
“Eu El-Rei, sou servido declarar que os meus acabaram por gerar articulações e soluções
vassalos deste reino e da América que casarem novas para lidar com as necessidades impos-
com as índias dela não ficam com infâmia
alguma, antes se farão dignos de real atenção.
Outrossim proíbo que os ditos meus vassalos
casados com índias ou seus descendentes, sejam
tratados com o nome de caboclos ou outro
(13) Como os indígenas, pelas leis da Coroa somente
semelhante que possa ser injurioso. O mesmo se
podiam ser escravizados em situações específicas
praticará com portuguesas que se casarem com
(com o as guerras justas), evitava-se utilizar na
ín d ios”. documentação de época a palavra “escravo”,
em pregando-se o termo “administrado” para registrar
Esse quadro propiciava aos indígenas
os indivíduos de origem indígena.
uma maior mobilidade social que aos africanos, (14) Livro de Óbitos - 28/4/1767.
em bora fosse possível a ambos os grupos (15) O Livro de Óbitos revela o falecim ento em
ascender social e juridicam ente dentro da Jundiaí de índios aldeados de Barueri e São Miguel.

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MORALES, W.F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação
cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 11: 165-187, 2001.

tas (Sienes 1991-1992). Nada mais natural, já solução para isso ocorrer seria apropriar-se de
que as pessoas, quer individualmente ou em sinais e elementos daqueles que eram conside­
grupos, são agentes ativos na elaboração da rados “brancos” pela sociedade.
ordem social e não apenas reprodutores dessa As possibilidades de ascensão eram ainda
situação. mais difíceis e limitadas para os negros
A estratégia dos segmentos indíge