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ARTE POPULAR EM CARUARU-PE

Vitalino, Mestre (1909 - 1963)

Soldado com Bêbado , s.d.


cerâmica policromada
17 x 10 x 4,5 cm
Museu do Homem do Nordeste (Recife, PE)
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini

Biografia
Vitalino Pereira dos Santos (Ribeira dos Campos, Caruaru PE 1909 - Alto do
Moura, Caruaru 1963). Ceramista popular e músico. Filho de lavradores, ainda criança
começa a modelar pequenos animais com as sobras do barro usado por sua mãe
na produção de utensílios domésticos, para serem vendidos na feira de Caruaru. Ele cria,
na década de 1920, a banda Zabumba Vitalino, da qual é o tocador de pífano principal.
Muda-se para o povoado Alto do Moura, para ficar mais próximo ao centro de Caruaru.

Sua atividade como ceramista permanece desconhecida do grande público até 1947,
quando o desenhista e educador Augusto Rodrigues (1913 - 1993) organiza no Rio de
Janeiro a 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana, com diversas obras suas. Segue-se
uma série de eventos que contribuem para torná-lo conhecido nacionalmente e são
publicadas diversas reportagens sobre o artista, como a editada pelo Jornal de Letras em
1953, com textos de José Condé, e na Revista Esso, em 1959.

Em 1955, integra a exposição Arte Primitiva e Moderna Brasileiras, em Neuchatel,


Suíça. O Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e a Prefeitura de Caruaru
editam o livro Vitalino, com texto do antropólogo René Ribeiro e fotografias de Marcel
Gautherot (1910 - 1996) e Cecil Ayres. Nessa época, conhece Abelardo Rodrigues,
arquiteto e colecionador, que forma um significativo acervo de peças do artista, mais
tarde doadas para o Museu de Arte Popular, atual Museu do Barro de Caruaru.

Mestre Vitalino, em 1960, realiza viagem ao Rio de Janeiro e participa da Noite de


Caruaru, organizada por intelectuais como os irmãos João Condé e José Condé, ocasião
em que suas peças são leiloadas em benefício da construção do Museu de Arte Popular
de Caruaru. Participa de programas de televisão e exibições musicais, comparece a
eventos e recebe diversas homenagens, como Medalha Sílvio Romero. Nessa ocasião, a
Rádio MEC realiza a gravação de seis músicas da banda de Vitalino, lançadas em disco
pela Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro na década de 1970. Em 1961,
atendendo a pedido da Prefeitura de Caruaru, doa cerca de 250 peças ao Museu de Arte
Popular, inaugurado nesse ano.

Em 1971, é inaugurada no Alto do Moura, no local onde o artista residiu, a Casa Museu
Mestre Vitalino. No espaço, administrado pela família, estão expostas suas principais
obras, além de objetos de uso pessoal, ferramentas de trabalho e o rústico forno a lenha
em que fazia suas queimas.

Ceia , s.d.
cerâmica policromada
14 x 24 x 30 cm
Acervo Galeria Pé de Boi
Reprodução fotográfica Cícero Rodrigues

Comentário Crítico
Mestre Vitalino se notabiliza por suas figuras inspiradas nas crenças populares, em
cenas do universo rural e urbano, no cotidiano, nos rituais e no imaginário da população
do sertão nordestino brasileiro. Ainda criança, começa a modelar pequenos animais de
seu repertório rural: boi, bode, burro e cavalo. Na década de 1930, possivelmente
influenciado pelos conflitos armados do período, modela seus primeiros grupos,
formados por figuras de cangaceiros, soldados, bacharéis e políticos. No início, a cor é
obtida por meio de argilas de diferentes tons, avermelhado e branco. Depois,
Vitalino pinta os bonecos com tintas industriais, o que lhes confere um aspecto alegre e
lúdico. A partir de 1953, deixa de pintar as figuras, mantendo-as na cor da argila
queimada.

Sem se preocupar com a concorrência, não se incomoda que outros artesãos observem
seu trabalho, imitem sua técnica e suas inovações de motivos. Vitalino deixa vários
discípulos, como Zé Rodrigues e Zé Caboclo, além de filhos e netos, que seguem
produzindo trabalhos de cerâmica com o mesmo repertório temático e o vocabulário
formal criado por ele. Boa parte de seus trabalhos se refere aos três principais ritos de
passagem: nascimento, casamento e morte. As cenas de batizados são como crônicas do
cenário rural. O tema do casamento aparece com freqüência, em trabalhos como
Casamento no Mato, O Noivo e a Noiva. Os enterros também são composições
reveladoras dos hábitos e do cotidiano da região. Comparando Enterro na Rede, Enterro
no Carro de Boi e Enterro no Caixão, por exemplo, pode-se perceber a diferença de
status dos mortos de acordo com o modo como são transportados. Somam-se a esses
trabalhos as diversas procissões criadas pelo artista, bem como as cenas que remetem a
aspectos do imaginário popular, como em A Luta do Homem com o Lobisome (sic), O
Vaqueiro que Virou Cachorro e Diabo Atentando o Bêbado.
As cenas que remetem à ordem e ao crime no sertão brasileiro são recorrentes em sua
produção. Entre bandidos e soldados, policiais, ladrões de cabra e de galinha, destacam-
se as figuras dos cangaceiros Lampião, Maria Bonita e Corisco. Os aspectos sociais da
região, como a seca e a migração, são captados em obras como Retirantes. Bastante
freqüentes são as figuras e cenas ligadas ao trabalho, que permitem notar a divisão entre
atividades laborais e tipos masculinos - vaqueiros, lavradores, homens carregando água
ou tirando leite - e femininos - lavadeiras, rendeiras, mulheres cozinhando e costurando.
As profissões do contexto urbano, como dentista, médico, veterinário, barbeiro,
costureira, vendedor de fumo de rolo, também são modeladas por Vitalino, em parte
para atender às demandas do mercado. Vale mencionar os trabalhos em forma de
animais, como boi, burro, cavalo, cachorro, onça, modelados pelo artista no decorrer de
sua carreira; a série em que ele compõe cenas de si próprio trabalhando, como em
Vitalino Cavando Barro, Vitalino Queimando a Loiça e Vitalino e Manuel Carregando
a Loiça; e sua produção de ex-votos.

Segundo a pesquisadora Lélia Coelho Frota, autora de livro sobre o artista, Vitalino
representa um agente-chave de transformação na região. Pelo reconhecimento artístico
alcançado por mestres como ele e o sucesso comercial da cerâmica no mercado
nacional, a partir de sua geração, famílias inteiras se ocupam desse ofício na
comunidade de Alto do Moura, em Caruaru. E transforma o povoado em referência
nacional na produção de cerâmica, concentrando cerca de 200 artesãos, considerado
pela Unesco um dos mais importantes centros de arte figurativa das Américas. Nesse
processo, Vitalino é o principal agente de renovação visual, criando diversos motivos, e
dono de um estilo pessoal marcante, que se revela na expressividade das feições e
gestos e posturas corporais, na composição teatralizada das cenas. Embora todos esses
aspectos de sua arte justifiquem a notoriedade alcançada por Vitalino, em certa medida
seu sucesso está relacionado a uma tendência cultural mais ampla de valorização dos
traços populares, considerados originais e exemplos de brasilidade. Inegavelmente sua
produção é interpretada como representativa dessas manifestações "autênticas" e
"simples" que muitos intelectuais e artistas, na primeira metade do século XX, elegem
como modelo.

Violeiros , déc. 1950


cerâmica policromada
Reprodução fotográfica autoria desconhecida

Fonte: Itaú Cultural (http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?


fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=4457)
Mestre Galdino
[Manoel Galdino de Freitas]
1924, São Caetano - PE / 1996, Alto do Moura – PE

Manuel Galdino de Freitas nasceu em 1929, na cidade pernambucana de São Caetano,


próximo ao Alto do Moura. Em 1940, muda-se para Caruaru,(PE), onde passa a trabalhar em
olaria, fazendo telhas e tijolos. Casa-se com Maria Rendeira e tem três filhos. Torna-se
funcionário municipal, trabalhando na construção civil. Nas horas vagas, se distrai modelando
figuras de barro, entre elas a de Judas, para as brincadeiras de malhação da Semana Santa. Sua
trajetória como artista tem início a partir de 1974, quando é destacado pela p refeitura para
executar serviços no Alto do Moura, onde faz amigos que o introduzem na arte de "bonecos",
principal atividade local. Apaixona-se de tal maneira pela modelagem em cerâmica, que
despede-se do trabalho público, vende a casa que possuía em Caruaru e muda-se com a
família, definitivamente, para o Alto do Moura. Tenta vários negócios alternativos, ao mesmo
tempo em que se dedica febrilmente à produção de novos bonecos. Logo passa a ser
reconhecido como um dos mais fecundos ceramistas do Alto Moura. Suas criações formam um
repertório de obras delirantes e originais, consagrando os monstros autofágicos, e outros
personagens de forte conteúdo onírico, como Lampião-Sereia e São Francisco Cangaceiro.
Manuel Galdino morre no Alto do Moura, em 1996.

Galdino, que imprimiu papel de carta em Caruaru, 1986, intitulando-se “Ceramista e


Poeta”, é um dos mais importantes escultores atuantes no país no século XX. Prendia na
mão dos seus personagens de barro, ou em reentrâncias da escultura, papeizinhos
enrolados com versos que lhes diziam respeito. Para a parede de sua casa emoldurou
poemas, em que lança o desafio da recepção do seu próprio trabalho, provocador por
excelência: “Tem carranca com recorte/ criada por minha mão / com bichinhos diferente
/ que faz a circulação. / Mesmo as peças de Galdino / é uma adivinhação.” Em 1940
Galdino já havia ido para Caruaru, onde se casou com Maria Marciolina, rendeira e
ceramista, teve três filhos e trabalhou em olaria, fazendo telha e tijolo. Empregado pela
prefeitura, trabalhou como pedreiro. Começou, então, a iniciar-se na modelagem do
barro. Durante a Semana Santa fez um Judas para a Malhação. Quando a prefeitura
mandou que rebocasse o posto de saúde do Alto do Moura, em 1974, teve finalmente a
oportunidade de ver como disse, “tanta riqueza, tanta beleza na arte de um povo”.
Referia-se aos ceramistas Zé Rodrigues, Zé Caboclo, enfim, a toda a verdadeira escola
que se havia formado em torno do mestre Vitalino. Com o transporte apaixonado que
caracteriza sua personalidade, abandonou em 30 dias o serviço público e mudou-se com
a família para o Alto do Moura. Viveu sempre na pobreza, sendo obrigado, em alguns
períodos, a executar serviços de vária natureza para sobreviver e conseguir permanecer
na arte. Inteiramente diversa dos demais artistas da localidade, a sua grande e original
produção na década de 1970 atrai particular atenção dos especialistas em arte e da
mídia, e ele extrapola os limites do Alto do Moura para ser conhecido pela elite do país.
A escultura de Galdino se distribui por duas grandes séries de trabalhos. A das figuras
hieráticas, alongadas e aguerridas de cangaceiros, como Maria Bonita, ou de
personagens como “Sonho realizado”, em que têm início as simbioses de humano e
animal que virão a ser tão frequentes no seu trabalho. A própria superfície das
esculturas é também provocadora, aguerrida, no espinhado quase de cacto das roupas.
Vê-se bem isto no Galdino poeta com seu violão. Em esculturas antológicas de quase
um metro de altura, com inscrições no barro, como “Descobrimento do Brasil”, dos
anos 1970, o aspecto de ferocidade da figura ainda humana, com um cocar na cabeça,
trajes espinhados, é sublinhado pelos longos punhais em seu cinto. Na face posterior da
escultura Galdino faz a incisão no barro das palavras que descrevem batalhas de
“Jaraguá, de armas em punho, no túmulo do rei morto por um tabajara em uma aldeia
africana, em 1413.” Tempos mitológicos, criados por ele para exprimir a sua percepção
da história do país Brasil. Esse repertório de figuras desafiadores, tratado plasticamente
com um verdadeiro esfolamento da matéria, desenvolve-se com inesgotável invenção ao
longo das décadas de 1970 e 1980. Na década de 1990 o artista vai desenvolver outra
grande série de figuras monstruosamente oníricas, como “Calango, Carranca corte de
Vênus, Guariba Milena, Jaraguá”, em que o vestígio do humano é muito tênue. Em
“Jaraguá”, um homem de face já simiesca cavalga um grande lagarto-dragão, cujo corpo
tem resquícios de roda de carro. A antropomorfização do automóvel e do avião, que ele
já começara nos anos 1980, chega aqui a transformar a máquina em coisa orgânica,
imbricando-a, não sem sofrimento e humor, com o homem, seu condutor. Expões ele
assim, com muita modernidade, a questão da violência exercida pela tecnologia sobre o
indivíduo. Movimentando como um mestre os segmentos diversos em que suas figuras
vão se desdobrando em pernas, braços, cabeças, ele os escarifica, retalha, incisa. Estes
seres são esfinges ameaçadoras, às vezes antropofágicas, ou híbridas, como “Lampião-
sereia”. Seu trabalho foi destacado na exposição “Brésil, Arts Populaires” (Grand
Palais, Paris, 1987). Integra o acervo de importantes coleções e de museus de arte
popular do país.
Fonte: Pequeno Dicionário do Povo Brasileiro, século XX | Lélia Coelho Frota – Aeroplano, 2005.

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