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MODERNA CANÇÃO CAIPIRA E CULTURA POLÍTICA CONSERVADORA

(1968-1974)

Marcela Telles Elian de Lima


Mestre e doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
marcelaelian@hotmail.com

Referir-se ao caipira é delimitar um modo específico de ser e viver do homem do


campo que configuram uma cultura própria. Não se trata de uma raça, e sim de uma
cultura caracterizada por uma vivência marcada pelo isolamento dos bairros rurais, pelo
trabalho doméstico, do qual tomam parte família e vizinhos – fator que reforça o
isolamento e a auto-suficiência dos bairros rurais; pela posse da propriedade que atribui
certa estabilidade a esses bairros; pela grande margem de tempo para o lazer, e por fim,
pela disponibilidade das terras capaz de propiciar, em tempos de crise, sempre novos
espaços para a reinstalação e permanência dessa cultura caipira.
Segundo a estratificação da sociedade rural do interior paulista proposta por
Antônio Cândido, os grandes proprietários de fazendas podem ser considerados
participantes da cultura caipira, mas nem sempre integrantes da mesma. Por estarem
diretamente conectados com o mercado pela comercialização de produtos, esses
fazendeiros estão mais sujeitos ao impacto das variações desse, inclusive em seu modo
de vida. O mesmo não ocorre entre os sitiantes, pois ainda que eventualmente,
participem do mercado com a venda de algum excedente de produção, prepondera, entre
eles, a economia de subsistência e a sociabilidade dos bairros (CANDIDO, 1982. p. 79).
É nessa camada da população rural do interior paulista que se sedimenta a
cultura caipira tradicional com as características acima indicadas. As canções de
trabalho, as danças e ritos religiosos de estrutura simples, criadas coletivamente,
obedecendo a padrões temáticos religiosos eram produzidas no interior desse estrato
social. Para isso, era fundamental o tempo para o lazer que permitia a sociabilidade e a
produção conjunta, tantos dos versos quanto da festa – parte fundamental da cultura
caipira.
Mesmo durante o trabalho achava-se jeito para compor versos e cantorias.
Quando a lida era maior que a soma dos braços disponíveis os trabalhadores caipiras
organizavam mutirões. Nesse momento a lida familiar se torna coletiva e o trabalho
passa a ser um ritual de troca e solidariedade expressa pela cooperação mútua. Quando
um lavrador necessitava de auxilio, recebia ajuda de um vizinho, ficando comprometido
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a retribuir quando chamado. Dessa forma, o mutirão não seria um pedido de socorro,
mas um ato de colaboração mútua. Talvez seja por isso que essa forma voluntária de
auxílio entre os iguais quase sempre termine em festa.
Já as romarias, novenas e visitas de parentes ocorrem entre os períodos
“vacantes”, determinando inclusive os ciclos da vida social. Ao longo do período
colonial brasileiro, a história apresenta várias referências sobre a ocorrência de festas
onde a canção era elemento constante. Porém, não se sabe muito, sendo até hoje objeto
de estudo de pesquisadores do cancioneiro popular brasileiro. Certo é que na cultura
caipira tradicional canção, dança e religiosidade permanecem conectados. Não são
poucas as ocorrências, no interior brasileiro, das festas de São João, do Divino (Espírito
Santo), de São Gonçalo – o protetor dos violeiros -, e de Nossa Senhora Aparecida – a
santa padroeira dos rodeios. Essa forte ligação pode ter suas origens nos cultos agrários
relativos aos períodos das plantações. Na época de colheita realizavam-se festas para
"celebrar, agradecer ou pedir proteção" (FERLINI, 2001. p. 449) a alguma entidade
sagrada pelo que havia sido produzido. A identificação dessas festas e das entidades
com a Igreja Católica se dá durante o período colonial brasileiro, quando "a Igreja da
Contra-Reforma buscou suprimir e sincretizar os cultos agrários pagãos, dando-lhes
roupagens cristãs" (FERLINI, 2001. p. 450). Ainda na primeira metade do século XX,
essas festas rurais continuam a exercer múltiplas funções, permitindo o encontro, a
coesão, introjetando normas para vida em grupo, permitindo aos vizinhos partilhar
conhecimentos, histórias configurando uma identidade para o grupo. Segundo Perez
Guarinello irá propiciar um singular de convivência comum, além disso, produzir uma
memória e, portanto, uma “identidade no tempo e no espaço sociais" (GUARINELLO,
2001. p. 972). Ao recordar esses encontros na fazenda Deca onde, em 1936, Tonico
trabalhou com sua família, o irmão mais velho da dupla Tonico e Tinoco, relata:
Todas as quintas feiras era folga. Era o dia da „tocata‟. Reuniam-se os melhores
tocadores da redondeza e fazíamos o choro (...) Na tulha de café já tinha sido
organizada a comissão certa para os bailes. O mais difícil era pedir a tulha ao
administrador (...) Então o serviço era dividido. Um ficava encarregado de convidar
as famílias que tinham moças. Outro tinha que arranjar o pó para o café. E a
brincadeira saía todos os sábados. Não era permitida a presença de pessoas de
outras fazendas. Quando vinham alguns de outras fazendas espionar, mandávamos
moleques insultar, para ver se eles ficavam furiosos e fugiam durante uma briga
que nós logo arranjávamos. (PERES (TINOCO), João Salvador; 1960. p.11)

Contudo, à medida que o trabalho assalariado se firma no campo e as terras


disponíveis escasseiam levando os sitiantes a se fazerem trabalhadores em roças alheias,
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o tempo do lazer se reduz e com ele o tempo disponível para as danças, cantorias e
folguedos. As canções produzidas no meio rural passam a ser marcadas por uma
secularização crescente e pelo individualismo “desaparecendo inclusive o elemento
coreográfico de sociabilidade, para ficar o desafio na sua pureza de confronto pessoal”
(CANDIDO, 1982. p. 9). Portanto, a redução do tempo do lazer irá incidir sobre uma
das principais formas de manifestação da cultura caipira tradicional: seus ritmos e
canções.
Um desdobramento desse processo terá início, em 1929, com a gravação da
Série Cornélio Pires. Essa série acabou por conformar uma tradição própria no interior
da moderna canção popular. Tradição essa que se consolida como variante moderna dos
ritmos executados no interior da cultura tradicional caipira. Antes de levar os caipiras
para o estúdio, Cornélio Pires já se dedicava a documentar e divulgar o universo rural
paulistano, por meio de livros e das caravanas artísticas que percorreram
sistematicamente o interior do estado, a partir de 1914. Poeta e contador de causos, sua
visão do mundo rural e do caipira oscilava “entre o anedótico e o exótico, a idealização
e o pitoresco” (LEITE, 1996. p. 120). Tratava-se, diria Antônio Cândido, de “uma
literatura de ação e comunhão, feita para o calor do momento e a comunicação direta e
eletrizante”, desse modo, nada mais natural do que a passagem para a linguagem
cantada. As canções gravadas sob seu selo foram categorizadas como autêntico material
caipira. Um material que, por um lado, daria a conhecer ao homem da cidade o mundo
que, em 1929, ainda podia ser encontrado nos grotões dos estados da região sudeste e
centro oeste, embora a própria necessidade de seu registro já apontaria para o risco do
seu desaparecimento. Talvez por isso, Cornélio Pires tenha sido o “cronista de um
mundo quase perdido” (BRUNO, apud: LEITE, 1996. p. 115). E a perda desse mundo
está estreitamente relacionada à crescente modernização das técnicas agrícolas e
pecuárias, e à redução das distâncias com o desenvolvimento dos meios de transporte.
Se ao pioneiro Cornélio Pires coube registrar esse mundo, sempre prestes a desaparecer,
aos compositores e intérpretes da moderna canção caipira que lhe seguiram caberia
lidar, também, com aquilo que se sobrepôs a esse mundo, ora deixando entrever seu
fundo arcaico, ora suplantando-o.
Essa passagem da catira à moda de viola, promovida por Cornélio Pires, foi
consolidada, no cenário musical nacional, durante as décadas de 1940 e 1950. Isso se
deu, em grande parte, pela difusão nos programas de rádio dessas canções rurais
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estilizadas. Na década seguinte, vários artistas ligados a essa vertente da moderna
canção popular brasileira foram gradualmente proscritos dos meios de comunicação de
massa. Esse processo teve início em 1958, com a Bossa Nova que firmou um padrão
simples, sofisticado e moderno na cena musical brasileira. Frente a esse padrão, a moda
de viola figurava obsoleta, atrasada. Em 1965, foi a vez da Jovem Guarda ganhar espaço
entre jovens nascidos num campo urbanizado ou nas periferias das grandes cidades para
onde, décadas antes, seus pais haviam migrado. Nesse período, artistas como Léo
Canhoto e Robertinho aproximaram a narrativa caipira à linguagem sonora do rock,
inserindo guitarras e baterias no arranjo de suas canções. Eles foram responsáveis
também por iniciar o diálogo entre a chamada “canção cafona”, em voga durante os
anos 1970, e a música caipira. Essas adaptações, processadas ao longo dessas duas
décadas, culminaram no sucesso da guarânia Fio de Cabelo, em 1982, na interpretação
de Chitãozinho e Xororó. O sucesso dessa canção abriu caminho para uma série de
nomes como Leandro & Leonardo, Zezé de Camargo & Luciano, entre outros. Ainda
durante os anos 1970, artistas como Renato Teixeira e Rolando Boldrin pegaram o
caminho de volta às características sonoras e temáticas iniciais dessa linhagem da
canção popular. Trilha seguida por uma geração de caipiras, os violeiros Paulo Freire,
Chico Lobo e Pereira da Viola.
Essa linhagem da moderna canção popular funcionará como meio para fortalecer
aquela que seria a voz “mais fraca e menos ouvida [que] é certamente a do caipira que
permanece no seu torrão” (CANDIDO, 1982. p. 223). Isso significa considerar a canção

popular moderna brasileira – devido a sua peculiar narrativa que conjuga letra e música
– como um modo capaz de integrar públicos diversos, no caso, cidade e interior. Ao
narrarem as experiências guardadas na memória daqueles que habitam os grotões de
estados como Minas Gerais, São Paulo e Mato Grosso, onde sempre houve o
predomínio da palavra falada sobre a escrita, e expô-las ao conhecimento do país, o
compositor caipira, por meio de disco, rádio, televisão ou shows irá cortar campo e
cidade. Desse modo, a moderna canção caipira, como a urbana, “integra públicos
diversos, fornece os temas e o vocabulário em que o debate sobre a realidade brasileira
se torna possível, produz enfim referências comuns, em um mundo marcado por
particularismos” (CARVALHO, 2004).

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Nesse movimento, levado à frente ao longo dessas décadas, as canções desses
compositores e intérpretes ao mesmo tempo em que se configuravam como resultado
das transformações sofridas pela cultura caipira tradicional narravam o processo de
desarticulação da mesma frente a crescente urbanização e modernização do campo. E o
fizeram a partir de um conjunto de códigos e referencias comuns consolidados no
interior dessa cultura, dotando-os, para isso, de significado político. Ao identificarmos o
vocabulário político mobilizado nessas canções poderemos identificar as motivações de
indivíduos
submetidos à mesma conjuntura, vivendo numa sociedade com normas idênticas,
tendo conhecido as mesmas crises no decorrer das quais fizeram as mesmas
escolhas, grupos inteiros de uma geração partilham, em comum, a mesma cultura
política que vai depois determinar comportamentos solidários face aos novos
acontecimentos (BERNSTEIN, 1998. p. 361)

Termos como sertão, cidade, civilização, progresso, roça e caboclo são


mobilizados por compositores e intérpretes da moderna canção caipira desde a gravação
da primeira Moda de Viola, intitulada Jorginho do Sertão. É a partir de termos como
esses que o cancioneiro popular irá estruturar seus argumentos e propor uma
interpretação da história do país, assim como, projetar um futuro vivido em comum. Em
determinados momentos, expressam o saudosismo identificado por Antônio Cândido, na
década de 1950, na qual o passado rural é narrado de modo a compor uma “verdadeira
utopia retrospectiva”. Para Antônio Cândido, essa seria a maneira do caipira criar “uma
idade do ouro para o tempo onde funcionavam normalmente as instituições
fundamentais de sua cultura, cuja crise lhes aparece vagamente como fim da era onde
tinham razão de ser como tipos humanos” (CANDIDO, 1982. p. 195). Em outros,
prepondera, nesse cancioneiro, o tema da superação e a adesão inconteste dos valores e
modos de vida urbanos.
A variedade de compositores e intérpretes, assim como os diferentes contextos
históricos e políticos que conformam essa vertente moderna do cancioneiro caipira
oferecem pontos de vista variados e privilegiados para análise do processo de
urbanização e modernização do campo. Contudo, se um levantamento inicial desse
cancioneiro nos permite identificar a recorrência dos termos acima enumerado, as
formas como eles compõem os argumentos no interior da narrativa musical irão
aproximar a cultura caipira a diferentes culturas políticas. Considerando com Serge
Bernstein que uma cultura política

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é um corpo vivo que continua a evoluir, que se alimenta, se enriquece com
múltiplas contribuições, as das outras culturas políticas quando elas parecem trazer
boas respostas aos problemas do momento, os da evolução da conjuntura que
inflecte as idéias e os temas, não podendo nenhuma cultura política sobreviver a
prazo a uma contradição demasiado forte com as realidades (BERNSTEIN, 1998.
p. 357)

o vocabulário político próprio, ou preponderante, na cultura caipira será mobilizado


para construção de argumentos próximos a concepções de passado histórico, de futuro,
de sociedade ideal e de discursos próprios, característicos a outras culturas políticas
configurando uma osmose entre a caipira e as demais.
O período que compreende o final da década de 1960 e o início da seguinte
assistiu a um processo semelhante. Alguns compositores se serviram da linha melódica
e harmônica e do vocabulário caipira na composição de um “discurso” próximo a uma
cultura política liberal-conservadora, que com a implantação da ditadura militar,
buscava afirmar sua hegemonia, principalmente frente uma cultura política de esquerda.
Como resultado dessa sintonia, entre alguns compositores e intérpretes da canção
caipira e os projetos de modernização conservadora levados à frente pelos governos
militares as narrativas sobre o mundo rural paulista perderam muito do tom nostálgico
ou de denúncia encontrado em compositores alinhados a outras posturas políticas. Ao
contrário, adotaram um tom ufanista, de crença no progresso, na ordem e no trabalho
como modo de inserção do homem do campo no projeto nacional. Talvez pela força da
Sociedade Ruralista Brasileira, organização contrária a expansão da legislação
trabalhista no campo, a sindicalização rural e a reforma agrária, no estado de São Paulo
a cultura caipira historicamente assentada nessa região tenha se mostrado tão afeita aos
projetos militares para o campo. Esse alinhamento pode ser percebido tanto entre os
compositores que se mantinham próximos a linguagem musical inicialmente
sistematizada por Cornélio Pires, caso da dupla Tonico e Tinoco, como entre as duplas
cuja linguagem musical se aproximava mais da sonoridade urbana, como Léo Canhoto e
Robertinho.
Com relação à produção discográfica dos irmãos Tonico e Tinoco, nesse
período, pode-se perceber, ainda, uma dubiedade. Talvez por terem crescido de fazenda
em fazenda na procura por emprego e onde, afirma Tonico:
não podíamos plantar nada. Morávamos na roça e tínhamos que comprar
tudo, como se estivéssemos morando na cidade (...) Quando íamos ajustar
contas no pagamento geral, tínhamos que pagar cinco mil réis por viagem de
carroça que foi feira para carregar lenha, ou qualquer outra coisa. A gente

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pagava tanta coisa que no fim das contas, ainda ficava devendo ao patrão. E
assim por diante. Uma verdadeira calamidade. (PERES, 1960. p. 9-10)

Tonico e Tinoco ainda viam com alguma desconfiança a chegada da modernização no


campo, percebido principalmente com o desenvolvimento dos instrumentos do trabalho.
A contínua superação de uma técnica de trabalho por outra farão com que esses
compositores melhor percebam a instabilidade do mundo em que se inserem. Pois, se as
ferramentas devidamente usadas não se acabam, fazendo parte, portanto, do mundo
rural, dão ao homem do campo a estabilidade necessária. Assim, o permitem crer na
realidade do mundo à sua volta, ou seja, que ele irá permanecer para além da
transitoriedade da vida humana. Contudo, com a crescente industrialização, os
instrumentos de trabalho passaram a ser consumidos e imediatamente substituídos por
outros mais eficientes na produção. À volatilidade desses instrumentos corresponde a
instabilidade do mundo que lhes é dado construir.
Desse modo, não é sem dor e nostalgia que, em 1960, Tonico e Tinoco vêem o
“velho carro de boi”, antes responsável por “abrir a picada, abrindo novas estradas,
formando vila e povoado” e comandar o progresso no sertão, ter se transformado num
“traste velho, apodreceu no relento, no museu do esquecimento, na consciência do
patrão”. Com o carro de boi foi-se, também, o mundo que lhe cabia, que se esvaiu antes
mesmo da transitória vida do compositor. O próprio carro de boi, relembra o tropeiro
em 1971, numa outra canção de Tonico em parceria com João Alves, chegou para
substituir o transporte cargueiro, quando se andava “sempre no lombo de burro, sempre
fazendo mudança”. Tempo em que o homem sabia exatamente a necessidade do esforço
empregado na tarefa, e a realizava “sem auxilio de ninguém”. Mas então, “chegou o
carro de boi, dominou sertão inteiro, procriou, fizeram estrada, é o progresso brasileiro,
hoje é o caminhão gigante”.
Contudo, talvez por terem percebido a inevitabilidade do desenvolvimento dos
instrumentos de trabalho que acabou por colocar em risco o mundo a que lhes foi dado
pertencer, Tonico e Tinoco optaram como os militares por “despolitizar o debate” em
torno da questão agrária para tratá-la em termos econômicos (MOTTA, 2006. p. 254-
255). Pode-se perceber nas canções da dupla, desse período, sobre esse tema, o
reconhecimento da necessidade de mudanças no meio rural. Porém, essas mudanças não
se davam via redistribuição da propriedade, mas por meio da integração do sertão aos

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projetos progressistas levados à frente pelo estado. Desse modo, a dupla Tonico e
Tinoco, ainda em 1971, saúdam a construção da Transamazônica
O grande tapete verde, o teu mundo encoberto,
A estrada Transamazônica trouxe você bem mais perto.

Ai, sá Dona, nóis vamos pro Amazonas.

Mais um povoado que cresce naquela mata esquecida,


Novo horizonte aparece no fim da estrada comprida.

Do teu seio sai minério, do teu mato sai madeira,


É um celeiro de fartura, tem petróleo e seringueira.

Um governo trabalhando, o nosso Brasil que avança,


A estrada Transamazônica transporta nossa esperança.

Contudo, de acordo com Vera Telles, o progresso não solucionou a questão


social, muito menos a política, ao contrário, reforçou o problema. A modernização ao
invés de gerar o emprego e a cidadania acarretou o contrário. A passagem do carro de
boi para o caminhão pode ter reduzido as distâncias entre os moradores das roças e,
entre esses e a cidade, mas em muitos casos a substituiu por outra, dessa vez social,
muito mais difícil de ser transposta. De um lado, o grande negociador ligado ao agro-
negócio, de outro, uma população rural sem condições de inserção no mercado. Se entre
1968 e 1976, período em que se deu o chamado “milagre econômico” os pobres não
ficaram mais pobres, os ricos, por sua vez, se tornaram muito mais ricos e a
modernização conservadora levada à frente pelos militares acabou por aprofundar o
fosso entre uma e outra categoria.
Em 1971, no mesmo LP em que, na canção Tropeiro, desvelam a tradicional
vivência caipira sob as camadas do desenvolvimento técnico, gravam também a canção
Pra frente sertão. Através de uma citação ao lema ufanista que se popularizou durante a
vitória do Brasil na copa de 1970, Tonico e Tinoco incluem no “milagre econômico” a
fatia da população historicamente excluída do sistema: os trabalhadores rurais. Durante
o período de maior cerceamento das liberdades políticas (1968-1974), Tonico e Tinoco
desconsideram a existência de qualquer tipo de conflito e afirmam que “nossos
fazendeiros são sempre os primeiros, ajudam os roceiros nos seus mutirões”. Esse papel
atribuído aos fazendeiros está acordado com a idéia de elite consolidada no interior da
tradição conservadora, ou seja, uma parcela da população possuidora de bens, mas
ciente de seus deveres morais e de honra, de modo a poderem se afirmar como modelo
para os homens do povo.

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O ano de 1971 também foi marcado pela criação do FUNRURAL (Fundo de
Assistência Rural) responsável por incluir os trabalhadores rurais na Previdência. Eles
passaram, então, a ter direito a aposentadoria, pensão e assistência médica sem terem
sido onerados em nada com a medida, pois os recursos vinham de impostos sobre
produtos rurais repassados ao consumidor. Essas medidas acabaram favorecendo aos
militares que puderam contar com um forte eleitorado no meio rural. Essa
despolitização da questão agrária gerada pela preponderância dos direitos sociais sobre
os civis e políticos, no campo, será incorporada na narrativa musical de Tonico e
Tinoco. O Projeto Rondon, com seus “estudantes, esperanças de glória semeiam vitórias
e a civilização” enquanto “nossos exércitos ficaram na história nos dão segurança de
paz e união”. Nessa canção, da cultura caipira tradicional restaria apenas a figura do
“caboclo valente que pega na enxada”, se ao final da canção ele não passasse a “soldado
sem farda”.
Mas, se Tonico e Tinoco ainda vacilam entre a nostalgia por um mundo em vias
de desaparecer e a superação completa do mesmo via uma modernização conservadora,
Leo Canhoto e Robertinho, vão além. Talvez por suas composições se mostrarem ainda
mais distantes da cultura caipira tradicional a qual pretendem se referir, a adesão as
concepções desenvolvimentistas conservadoras tenham se dado ainda mais facilmente.
Em suas canções o caboclo, ou caipira é substituído pelo lavrador cuja figura extrapola
os limites geográficos nos quais prepondera a cultura caipira entre os homens do campo.
Antes mesmo de Tonico e Tinoco, em 1970, Léo Canhoto e Robertinho já se referiam
ao lavrador, como o soldado sem farda. Um soldado que juntamente as outras forças
militares, então no controle do Estado, comporiam um todo coeso. Na canção, esse
“lavrador que derrama o suor com suas próprias mãos” é saudado com o “aperto de mão
e o abraço apertado” do Exército Brasileiro, da Marinha de Guerra e das Forças Aéreas.
O lavrador seria mais um componente dessas mesmas Forças Armadas do Brasil,
diferindo-se dela, e ao mesmo tempo completando suas funções, por ter, como frente de
batalha, o campo onde desempenha sua luta diária “com frio ou calor, isso possa ou não
possa” na promoção da produção agrícola nacional. Não é, portanto, sem propósito que
esse lavrador feito soldado sem farda receba de Deus a benção, do então Presidente
General Médici, cujo mandato foi marcado pelo acirramento da repressão às lutas
reivindicatórias no campo e na cidade, a devida homenagem:
Soldado sem farda que Deus lhe abençoe

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Para continuar sempre assim sorridente
Aceite lavrador o abraço apertado
Do homem que agora é nosso presidente

Ainda em consonância com essa tradição liberal-conservadora, Leo Canhoto e


Robertinho chegam a identificar a necessidade de modificações nas condições de vida
do trabalhador rural, mas não como reivindicação de direitos, e sim, como concessão a
ser outorgada pelo Presidente da República, Ernesto Geisel, à gente ordeira e
trabalhadora do interior. Alinhados ao pensamento conservador reconhecem a
autoridade do “grande chefe da nação” para dirigir o destino do trabalhador rural do
país. Na canção O Presidente e o lavrador, gravada pela dupla, em 1975, a crença no
poder de gerência das instituições, tão ao gosto do pensamento conservador, acaba por
dispensar ao “bom Presidente” uma fala semelhante a uma oração. Nela o Presidente
toma o lugar do Deus capaz de recompensar as boas ações de seus fiéis. Desse modo,
tanto nessa canção, como na anterior, reafirmam a crença na autoridade das duas
principais instituições que, para a tradição conservadora, seriam capazes de gerir e
moralizar homens imperfeitos e pecadores: a Igreja e o Estado.
Excelentíssimo senhor Presidente
Aqui estou na vossa frente
Com muita admiração
É um brasileiro que vos fala nessa hora
Por favor, nos ouça agora
Oh! Nobre chefe da nação

É com respeito que venho a vossa presença


Falar com vossa excelência
Para olhar para gente nossa
Venho pedir para o senhor, bom Presidente
Olhai pela minha gente que trabalha na lá roça
(...)
Esse meu povo é igualzinho a formiga
Trabalha muito e não liga
Sempre foi batalhador
Por isso digo e repito novamente
Ajude senhor Presidente
Ao meu querido lavrador

Considerando um discurso, uma canção ou um texto, não apenas a partir de seus


significados, mas como ações capazes de ultrapassar a intenção do autor\compositor,
podemos inquirir sobre as pretensões que o levaram a fazê-lo. (PALLARES-BURKE,
2000, p. 332). Ao mobilizarem argumentos caros à tradição liberal-conservadora Leo
Canhoto e Robertinho lançaram para na cena pública uma singular idéia de Pátria: um
lugar no qual a recompensa é possível para os indivíduos dispostos a sobreporem o

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econômico e o social à liberdade política. Iniciada com uma marcha militar a canção
Minha Pátria Amada, gravada em 1971, acaba por sintetizar a proposta de pátria ideal:
Sou orgulhoso por ser filho de uma terra
Onde seu povo só pensa em trabalhar (...)
Aqui seu moço não existe a tal de guerra
Nosso caminho é enfeitado de flor
Nós trabalhamos semeando em nossa terra
Ordem e progresso, liberdade, paz e amor
Aqui, meu chapa, não se brinca em serviço
A minha raça é destemida e varonil
A minha terra por Deus foi abençoada
Eu te amo pátria amada
Eu te adoro meu Brasil.

Não se trata de afirmar aqui a preponderância da cultura política conservadora


sobre o conjunto das expressões culturais caipiras, nem mesmo se considerarmos apenas
a vertente moderna de seu cancioneiro. No período aqui apresentado, compositores
como Tião Carreiro e Pardinho, em suas canções, mostravam-se mais críticos frente aos
projetos de modernização promovidos durante o período de ditadura militar. Outros
recorreram à valores republicanos ao reclamarem para si a construção de uma pátria
oposta aos moldes conservadores. Buscamos mostrar a plasticidade própria a uma
cultura política e sua capacidade em se moldar à diferentes culturas gerais na tentativa
de produzir uma visão de mundo comum capaz de orientar as escolhas dos indivíduos.

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CANÇOES CITADAS
CANHOTO, Leo; Soldado sem farda, 1970.
CANHOTO, Leo; Minha pátria amada, 1971.
CANHOTO, Leo; O Presidente e o lavrador, 1975
PIRES, Cornélio; Jorginho do Sertão, 1929
TONICO. Carro de boi, 1960.
TONICO; ALVES, João. Tropeiro, 1971.
TONICO, FURTADO, TOLEDO; Pra frente sertão, 1971.
TONICO, ERBA, J.C. Transamazônica, 1971.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BERNSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, SIRINELLI (org); Para uma
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transformação de seus meios de vida, São Paulo: Civilização Brasileira, 1982.
CARVALHO, José M. Cidadania no Brasil: o longo caminho, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
CARVALHO, Maria Alice R. O samba, a opinião e outras bossas... na construção
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PATO, Rodrigo; Do outro lado da cerca: os conservadores e a reforma agrária. In:
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Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
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TELLES, Vera; Direitos sociais afinal de que se trata? Belo Horizonte: Editora UFMG,
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