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COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

Pequeno contributo para a história dos ranchos


na Vila de Pombal

Breve introdução sobre as danças tradicionais

Tal como a música tradicional, as danças tradicionais (folclóricas, se


assim quisermos chamar) de um povo representam, antes de mais, um traço
da sua personalidade. É uma característica da sua cultura específica e
individual, fruto da ligação a um passado étnico e cultural, herdado pela
transmissão (oral, com todas as implicações inerentes, nomeadamente a
alteração sistemática dos processos, que ainda hoje acontece) dos seus
antepassados e, no caso da região em estudo, acrescente-se também pelo
resultado das suas migrações, que tem um forte impacto na atualização
cultural face “às novidades” emergentes nas diversas épocas.

Em Portugal notam-se algumas diferenças relativamente a outros


povos da Europa. As nossas danças tradicionais são, por norma, danças de
conjunto e acresce-se o facto de serem, quase sempre, cantadas pelos
intervenientes. Ou seja, os pares que as bailam geralmente também cantam as
melodias. Nos levantamentos culturais que realizei, na região da Serra da Sicó,
encontrei sempre relatos de que os bailaricos, na maioria das vezes, eram
feitos apenas com os intervenientes a cantar. Era a forma mais comum. Os
músicos eram poucos, custavam dinheiro e para as gentes pobres da serra,
nem sempre era possível realizar receitas que permitisse contratá-los. Ouvi (e
está também registado no levantamento cultural de Pombal, entre 1983 a
1985) relatos de que o “cachet” dos músicos, para além do valor monetário,
incluía uma refeição de bacalhau cozido com batatas, um luxo para aquelas
gentes, naquele tempo. Por falar em receitas monetárias para suportar os
custos dos bailaricos, o normal era existir um garrafão de vinho com um copo
de vidro pendurado no gargalo, onde os homens iam beber e pagavam por
cada copo a quantia previamente estipulada. As mulheres por norma não
pagavam.

Isto no que toca às danças nas aldeias.

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Na Vila de Pombal era diferente. Existia uma Filarmónica que


fomentava a formação de músicos, sendo que os bailes na Vila tinham sempre
acompanhamento musical. Para além da Filarmónica, encontram-se registos
de pequenas orquestras de cordofones (como a orquestra do Dr. Pinto, que
nos finais do século XIX e princípios do século XX, animava os bailaricos,
quer dos santos populares, quer das Festas do Bodo). Mas mesmo assim, na
Vila e nas principais festas da Vila (o Bodo e os Santos Populares), existiam
sempre “ranchos” de gente proveniente das aldeias, que com os seus
tocadores e as vozes das suas raparigas, animavam até de madrugada os
bailaricos espontâneos que surgiam em cada canto da Vila.

Muitas das danças antigas lusitanas (Chacota, Bailharote, Lundum,


Enleio, Xotiça, Estalado, entre outras) deixaram de se bailar nesta região,
apesar de existirem registos escritos da sua existência. Atualmente, parece (é
apenas uma suposição pessoal, porque de facto não existem dados que
comprovem esta teoria), que ainda se encontram referências no reportório de
alguns “ranchos” face à similaridade entre os nomes antigos e os atuais (ex.:
Estalado com Estaladinho, no Rancho Típico de Pombal), sendo que
relativamente ao Enleio, apesar de ainda ser conhecido de alguma geração
mais antiga, tem vindo gradualmente a ser abandonado pelos atuais
“ranchos”, correndo esta dança um sério risco de se ir juntar a todas as outras
desaparecidas.

As nossas danças populares dividem-se em cinco grandes grupos:

a) As “danças antigas” que são todas aquelas que o povo esqueceu.


b) As “danças religiosas”, que estão quase todas postas de parte e
também esquecidas.
c) As “brincadeiras”, que normalmente atraiam os jovens.
d) Os “jogos bailados”, que são as mais adulteradas.
e) As “danças atuais”, que são aquelas que estão em voga no
reportório dos ranchos.

Não vou especificar cada uma, porque o objetivo deste trabalho não é
esse, mas em http://tantramuna.home.sapo.pt/danca.html poderão encontrar
mais informação detalhada. O foco neste trabalho é sobre as danças na nossa
Vila de Pombal e esta introdução serve apenas para enquadrar o trabalho no
tempo e na origem.

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Os ranchos na Vila de Pombal

Ao contrário do que muita gente pensa, a palavra “ranchos” não surgiu


com os denominados “ranchos folclóricos”. É muito anterior a esse
fenómeno cultural. Antes de mais, significa conjunto de pessoas. E sempre se
aplicou a outras realidades fora do contexto do “rancho folclórico”,
nomeadamente nas migrações laborais. Nesta região, eram habitualmente
contratados “ranchos de gente” para ir para as ceifas, para as mondas ou
outras atividades agrícolas, nas regiões de Portugal carentes de mão de obra,
casos do Alentejo e do Ribatejo. Foi muito comum essa contratação até
meados dos anos setenta do século XX.

Passou então a ser comum chamar “ranchos” ao aglomerado de


pessoas que se deslocavam de um sítio para outro. É por isso normal
encontrar a utilização dessa expressão para os grupos de gente que vinham das
aldeias em redor da Vila aos mercados ou às Festas do Bodo, por exemplo.

Esses grupos de gente que vinham, principalmente aos eventos festivos,


eram responsáveis pela animação cultural dos mesmos. Nos relatos dos
intervenientes que participaram, em 2020, no documentário “Memórias do
Bodo”, existem vários testemunhos na primeira pessoa sobre a animação
espontânea dos ranchos de gente que animavam o recinto das Festas (o
Cardal).

E é por aqui que começa esta história.

Percorrendo as notícias publicadas nos jornais pombalenses, (último


quartel do século XIX e durante a primeira metade do século XX),
encontram-se nos programas das festas, as expressões “descantes populares”
ou “animação popular”, sempre depois da principal atuação musical, que por
norma estava destinada à filarmónica contratada, quer fosse local ou vinda de
fora. Coincidia (nos programas) com a ligação da iluminação festiva. Feita de
forma espontânea, desorganizada e, (acrescente-se um pormenor interessante),
competitiva entre os membros das várias aldeias e lugares presentes, esta
animação popular durava até de manhã e era, sem dúvida, a verdadeira festa
de animação que existia no evento.

Portanto, conclui-se que as danças e os cantares populares foram


durante muito tempo protagonizados pelos “ranchos” de aldeões que se
deslocavam às festas, sempre de forma espontânea. Uma simples “flaita” de
beiços era suficiente para fazer a festa e pôr toda a gente a cantar e a dançar.

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Sobre a espontaneidade inerente à participação do povo na animação (a


mesma resulta de que nada era ensaiado, não existia esse cuidado de preparar
a apresentação, isso surgiria mais tarde), há um ponto interessante a ter em
conta: é que nada era fixo, estanque, repetitivo… o cruzamento cultural entre
os vários “ranchos” de cada lugar, cada aldeia, (nas Festas do Bodo da Vila de
Pombal, chegavam a juntar-se no Jardim Municipal ou no meio do Largo do
Cardal e tocavam, cantavam e dançavam em conjunto, até porque as danças e
os cantares seriam sobejamente conhecidos por todos), acrescentava sempre
uma qualquer novidade.

A partir de uma determinada altura, (primeiros anos do século XX), e


por exigência da competitividade entre festas, (como o S. Mateus, em Soure, a
Sra. da Boa Morte no Louriçal, ou mesmo a Sra. da Guia no Avelar, que eram
concorrentes das Festas do Bodo e isso obrigava, cada novo ano, a criar um
cartaz mais apelativo), começou a surgir o fenómeno de organizar danças e
cantares, de forma a proporcionar espetáculos com melhor qualidade. Por
outro lado, em localidades próximas, exibiam-se grupos mais organizados, já
nesta altura apelidados de “ranchos”. Estes “ranchos organizados” (vamos
assim denominá-los) eram depois contratados para vir à Vila de Pombal
exibir-se. Nas Festas do Bodo de 1916, umas das atrações foi o Rancho das
Tricanas da Figueira da Foz, cuja atuação foi largamente ovacionada, tendo
causado grande sucesso junto das gentes de Pombal (conforme se pode
constatar no Jornal O Imparcial, dessa época). Mas não foi só nesse ano.
Noutros anos, outros grupos tiveram largo sucesso com as suas exibições,
passando o povo a ter espetáculos exibidos em pavilhões, (em detrimento do
espaço público natural), que eram muito do seu agrado. Percebe-se assim a
importância que começaram a ter este tipo de “ranchos organizados”.

Mantendo-se na mesma a espontaneidade popular, o povo ganhava


mais um motivo para ir às festas, revendo-se agora num fenómeno cultural
mais preparado, supostamente próximo das suas raízes, mas mais moderno.
Olhando para essa época, percebe-se também de que a partir deste momento,
iria passar de participante a espectador. O que vai acabar por ser o início do
fim da aprendizagem das nossas danças endógenas. Outro pormenor
importante é o facto de começarem a consolidar raízes para um fenómeno
que iria ser mais tarde a génese dos “ranchos folclóricos”.

Em Pombal, o primeiro “rancho organizado”, e de acordo com as


fontes até hoje consultadas, surgiu em 1918, com a designação “Rancho
Flores de Pombal”. É o primeiro projeto de danças e cantares populares com
esta designação, em Pombal. Ainda surgiriam ao longo do século XX mais
dois “ranchos” com esta designação, em anos diferentes. Foi ensaiado pelo Sr.
Joaquim Paes e apresentou-se pela primeira vez nos festejos da noite de S.
João, nesta Vila de Pombal, num pavilhão erguido na Praça Velha (designada
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atualmente Praça Faria da Gama). Desconhece-se o percurso deste “rancho”,


quanto tempo durou ou que outras exibições poderá ter tido. Como
curiosidade, existiu outro pavilhão na Ponte Pedrinha (onde hoje se situa a
CGD e os Correios), onde existiram as ditas danças e cantares populares
espontâneos e provavelmente um bailarico animado por uma das tunas
pombalenses em moda.

Este tipo de “ranchos” não tinha ainda a preocupação etnográfica que


hoje existe. Havia sempre alguém que fazia as letras, alguém que fazia as
músicas e alguém que idealizava a coreografia e a “farda” adequada ao
espetáculo que pretendiam realizar. Estariam próximos daquilo que hoje
conhecemos como “As Marchas Populares”. Como uma vez me disse o
pombalense Amândio de Aguiar, que ainda participou num projeto similar,
eram “grupos mais próximos do estilo festivaleiro”.

O primeiro passo estava dado para implementar os espetáculos


organizados.

Ao longo dos anos 20 do século XX, não se encontrou referências a


outros projetos idênticos, com origem na Vila de Pombal. Não obstante a
isso, nas festas realizadas na Vila, constam sempre “ranchos organizados”, na
maioria das vezes, vindos de fora. Eram as atrações da época.

É em 1930 que voltamos a encontrar referência a um outro “rancho


organizado” nesta Vila. Designava-se “Rancho das Tricanas”. Foi organizado
e ensaiado pelo pombalense Ernesto Martins, (uma das grandes figuras
culturais desta Vila na primeira metade do século XX, percursor do cinema na
Vila de Pombal), sendo diretor da orquestra o pombalense João Augusto
Gonçalves. Este “rancho” teve uma grande notoriedade na época, não só na
Vila de Pombal, como fora da sua localidade de origem. É o primeiro
“rancho” pombalense a atuar nas Festas do Crato. Uma viagem longa
(juntamente com a Filarmónica Pombalense), feita, naturalmente com grande
sacrifício, mas com o gosto de representar a sua terra fora de portas. Em 1931
foram a grande atração das Festas do Bodo, em Pombal, mas com um
reportório diferente. Como eram projetos originais, para cada ano era
preparado um espetáculo diferente.

Também em 1931 aparece uma referência a um outro “rancho”, com a


designação “As Mimosas de Pombal”, do qual chegou até nós a letra do tema
“A Mocidade”, escrita por Abel A. Oteda (música de Cesar Magliano),
projecto que deve (provavelmente) ter sido preparado para atuar nos festejos
dos santos populares. Esta informação aparece-nos numa brochura dos
“Amigos de Santo António”, não tendo sido possível obter a informação

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sobre a sua origem. Só consultando melhor as fontes da época,


nomeadamente jornais, se pode esclarecer

É precisamente na década de trinta do século XX que em Pombal


surgiram mais “ranchos organizados”, (relativamente a outras épocas). Não é
de todo excluir a importância do Estado Novo neste processo, que tem o seu
auge em 1937, com a organização do Grande Cortejo Folclórico, e no qual
Pombal foi representado pelo “Rancho Os Capinhas”. A ida deste “rancho” a
Lisboa participar neste evento de propaganda nacional tem a cumplicidade e o
apoio da Família Martel Patrício, que inclusivamente alojou na sua própria
casa os componentes do “rancho”. Teve também o apoio determinante do
Administrador do Concelho à época, o Sr. Gualter Soveral e a organização e
preparação do mesmo foi levada a cabo pelo Dr. Amadeu da Cunha Mora, já
na época um amante das novas tendências da antropologia cultural e social,
nomeadamente na área da etnografia. Amadeu Mora foi autor de uma
monografia sobre o Concelho de Pombal, onde os aspetos etnográficos
tiveram bastante relevo, mas que infelizmente se perdeu, chegando até nós
apenas alguns trechos que foram publicados no jornal “Notícias de Pombal”.

Este “rancho” é o primeiro agrupamento pombalense com cuidados


etnográficos e já próximo daquilo que seriam os futuros “ranchos folclóricos”
originários da política cultural do Estado Novo. Era composto por um
“interessante conjunto de aldeões da vizinha localidade da Ranha, ostentando os
típicos trajes de há 30 anos, não faltando o grupo musical, constituído por harmónios,
“fraita” e pífaro. O berrante dos seus lenços e a originalidade das saias sobre os
ombros, foram motivo de maior interesse para os milhares de assistentes, que no
intervalo de algumas horas viram passar sob os seus olhos tudo o que de típico o nosso
país conserva em indumentária” (Jornal Terra Mãi). O sucesso deste “rancho”
em Lisboa foi tão grande, que lhe foi conferido um dos poucos prémios
destinados aos grupos representativos das várias regiões.

Talvez seja conveniente ter em conta (para melhor compreender a


organização deste tipo de “ranchos” nesse ano e nos anos seguintes) de que o
objetivo da propaganda nacionalista sempre foi pegar em representações de
memórias sociais e transformá-las em cultura institucionalizada, conferindo
um toque modernista à arte popular, para ser apresentada fora do seu meio
natural como espetáculo para um público urbano, culturalmente diferente.

Apesar de estarem aqui, aparentemente, criadas condições para


organizar um “rancho etnográfico”, finda a sua participação no grande evento
da Emissora Nacional, tal projeto esfumou-se do panorama local e
rapidamente em Pombal as “elites culturais” se voltaram para o padrão
habitual do “rancho organizado”, preparado anualmente para eventos (leia-se
Festas do Bodo). Talvez seja conveniente dizer que durante anos os
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organizadores destes “ranchos organizados” foram sempre, praticamente, os


mesmos, nomeadamente Ernesto Martins, Daniel Pais de Moura, João
Gonçalves, etc. Talvez este pormenor ajude a explicar a aposta permanente
neste tipo de projetos culturais.

E por isso, em 1938, surgiu mais um “rancho organizado” sob a


designação “Floristas Pombalinas”, com a mesma estrutura e o mesmo
desígnio. A novidade nesse ano surge a pouco tempo da realização das Festas
do Bodo: as festas iriam ter, não um, mas dois ranchos pombalenses,
preparados e ensaiados de propósito. Veio juntar-se ao “Rancho Floristas de
Pombal” um “rancho infantil”, designado “Os Miudinhos”. Ambos os
ranchos foram “marcados e ensaiados por Ernesto Martins. Como escreveu o
Jornal O Eco na sua edição de 25 de junho de 1938: “Não há fome que não
dê em fartura”.

Chegamos a 1940 e cruzamo-nos com mais um “rancho organizado”


para atuar numa iniciativa da Casa de Leiria, em Lisboa, no dia 4 de abril desse
mesmo ano. Designado “Rancho Flores de Pombal”, repetindo assim o
mesmo nome que já tinha sido utilizado anteriormente (o primeiro com este
nome, recorde-se, foi em 1918), é uma espécie de “rancho” híbrido, em que as
mulheres utilizam uns trajes tipo tradicionais, já com as “saias das costas”
fazendo parte da indumentária, mas em que os homens usavam uma espécie
de fato e gravata. Não consegui até hoje obter informação nenhuma sobre o
seu reportório, nem nenhuma outra informação para além da obtida sobre a
sua participação neste serão, transmitido pela Emissora Nacional. Um
pormenor importante. O Jornal O ECO, a 30 de março de 1940, noticiava a
realização deste evento e relativamente a este rancho, escreve que seriam
“executadas danças e cantares regionais por este agrupamento pombalense”.

Surge-me uma dúvida: por influência do anterior sucesso do “Rancho


Os Capinhas”, em 1937, precisamente em Lisboa, sendo os anfitriões os
mesmos (família Martel Patrício), foi preparado este “rancho” apenas para
levar até à Capital os cantares e as danças regionais de Pombal, deixando de
lado a costumeira organização de “ranchos festivaleiros”?

Não sei responder, mas aparentemente parece que sim, porque finda
esta participação, não existe mais nenhuma referência a este “rancho”. Todas
as pessoas que viveram nesta época e às quais falei deste rancho, ninguém se
lembra da sua existência. Provavelmente foi organizado apenas para participar
na homenagem que a Casa de Leiria, em Lisboa, fez a Pombal e às suas
gentes.

Em 1944 surgiu, por iniciativa da Liga de Proteção à Criança de


Pombal, o rancho infantil “Rancho das Papoilas”, cujas danças e cantares
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contam com a participação de autores como Amadeu da Cunha Mora,


Ernesto Martins, Daniel Pais de Moura, Pedro Couceiro da Costa e Ricardo
Augusto da Silva. Participam neste “rancho” Amândio de Aguiar, António
Lopes ou Adília Aguiar, entre muitos outros. A primeira exibição realizou-se
num evento organizado pela Comissão de Iniciativa de Leiria, no Jardim de
Leiria, tendo recebido como prémio um potezinho com rebuçados. A segunda
exibição é nas Festas do Bodo, em Pombal.

Durante o resto da década de 40 do século XX (até 1949) não


encontramos mais referências no que diz respeito à organização de “ranchos”.
Pombal tem uma ligeira decadência cultural, não tem jornais ativos e os
principais responsáveis pela organização destes grupos emigram para o Brasil
(Ernesto Martins, Daniel Pais de Moura, entre outros).

Em 1949, integrado no programa das Festas do Bodo desse ano,


organizou-se um desfile de “Ranchos Folclóricos das Freguesias”, em que
participaram algumas freguesias do Concelho de Pombal. O método foi o
mesmo, com novos autores a despontarem, nomeadamente António Oleiro
que é autor da letra e música de quatro freguesias. No domingo de Bodo, dia
31 de julho de 1949, os “ranchos das freguesias” desfilaram ao longo do
Cardal, mostrando ao público as características endógenas das suas terras.
Pormenor que convém referir: é utilizado pela primeira vez o termo “rancho
folclórico”, o que demonstra já nesse tempo o caminho que estava a ser
trilhado na cultura dita popular e que mais ano, menos ano, chegaria a
Pombal. Provavelmente (é apenas a minha suposição) este desfile tem forte
influência da participação, doze anos antes, do “Rancho Os Capinhas” no
Grande Desfile Folclórico, organizado pela Emissora Nacional, em Lisboa,
conforme descrito anteriormente.

E chegamos a 1950, ano que é extremamente relevante, não só para o


futuro cultural de Pombal, mas para um novo paradigma dos “ranchos”, que
se estende até aos dias de hoje.

E o que aconteceu em 1950, assim tão importante?

Pois, na verdade, não aconteceu rigorosamente nada. Parece um


paradoxo, mas é a verdade: não aconteceu nada culturalmente e esse “não
aconteceu” acaba por ser um embrião que dá origem a uma década de
projetos culturais dos mais relevantes que a Vila de Pombal teve até hoje (não
comparando estilos próprios da época com os tempos de hoje… esta
afirmação apenas tem em conta a mobilização social em torno desse
movimento cultural, o que, por exemplo, não acontece nos tempos de hoje).

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Mais um pormenor para situar melhor o contexto sociocultural desse


tempo: as principais figuras mobilizadoras de projetos culturais tinham
emigrado para o Brasil e as associações viviam uma época de marasmo, sem
atividade. Até o Sporting Clube de Pombal esteve inativo durante alguns anos.

E essa apatia generalizada tem a sua “cereja em cima do bolo” quando,


por falta de se arranjar uma comissão, não se realizaram as Festas do Bodo.

Foi um choque para os Pombalenses. Perla primeira vez, em muitos


anos, não se realizavam as principais Festas da Vila, e os pombalenses
sentiram-se “órfãos” de qualquer coisa. À última da hora, organizaram-se uns
“chás dançantes” na pérgula do Jardim Municipal…, mas não foi a mesma
coisa.

E é então que é dado, na Vila, uma espécie de “Grito do Ipiranga”. A


sociedade pombalense organizou-se e começou a preparar o ano de 1951
como sendo um ano forte em iniciativas culturais, para que as Festas do Bodo
retomassem o brilho que sempre tiveram.

É em 1951 que surge o Grupo Coral Misto de Pombal, que durante


anos foi um dos grandes embaixadores culturais pombalenses pelo país.

E foi nesse ano que António Gaspar Serrano, Telémaco António da


Conceição e Octávio de Sousa Zink decidiram organizar um “rancho” para
atuar nas Festas do Bodo, designado “Rancho Flores de Pombal”, (portanto, a
terceira versão com o mesmo nome), convidando para ensaiador António
Oleiro, também conhecido como Mestre Oleiro, que irá ter um papel
preponderante à frente deste projeto, para o bem e para o mal. O sucesso
deste projeto foi tão grande que ainda hoje existe, passados estes anos todos.
Mas já lá vamos…

Na sua orquestra, composta essencialmente por instrumentos de sopro,


(músicos oriundos da filarmónica), aparecem nomes como Augusto César de
Oliveira, António Carreira ou Jorge Gonçalves.

O projeto em si era igual a todos os outros “ranchos organizados” que


até esta data foram aqui descritos (com exceção do “Rancho Os Capinhas”).
Um projeto de danças e cantares originais, com a participação de António
Oleiro (autor da letra e da música da marcha “O Recordar”), António Serrano,
entre outros, como autores das letras, das músicas, do “fardamento” e da
coreografia.

A primeira madrinha do “rancho” foi a menina (na altura) Maria dos


Anjos Cardona.

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Apresentando-se com enorme êxito nas Festas do Bodo, tem a sua


primeira saída fora de portas a 23 de setembro desse ano e logo para atuar nas
grandes Festas de S. Mateus em Viseu.

Em 11 de julho de 1953 exibiu-se em Tomar, juntamente com o grupo


de “Danças e Cantares de Granada” (Espanha), em agosto desse mesmo ano
exibiu-se com grande sucesso na Vila da Batalha, para além da habitual
presença nas Festas do Bodo ao longo dos anos, até 1956.

Mas a política cultural do Estado Novo não estava interessada neste


tipo de projetos. Queria que a etnografia fosse adaptada a um espetáculo de
“variedades”, e o “Rancho Flores de Pombal”, apesar do enorme sucesso que
tinha junto do povo, passou a ter dificuldades em ser convidado para se exibir
nos grandes palcos a que estava habituado. Nas Festas de S. Mateus, em
Viseu, por exemplo, onde apesar de gostarem muito de ter o grupo
pombalense no seu cartaz artístico, estavam proibidos de o contratar, uma vez
que as regras só permitiam a inclusão de “Ranchos Etnográficos”, que
passaram a ser conhecidos como “Ranchos Folclóricos” ou, caso o «rigor»
fosse total, seriam designados “Ranchos Típicos”.

Ao fim de cinco anos a somar sucessos nas exibições, o agrupamento


da Vila de Pombal tem de tomar uma decisão: ou se convertia num “rancho
folclórico” ou então seria o fim da sua existência.

E a opção foi a da conversão em “Rancho Folclórico”.

Com o apoio incondicional da Câmara e dos Pombalenses, contratou-se


um dos folcloristas na moda (à época), o Dr Pedro Homem de Melo.
Fizeram-se algumas recolhas de danças e cantares, predominantemente na
zona de Abiúl, e idealizou-se um novo “fardamento”, como se dizia na época.
Aliás, tratava-se na prática de uma “farda”, uma vez que os homens vestiam
todos de igual e as mulheres também. A camisa branca, os laços e as fitas, de
cores vivas do “Flores”, foram substituídas pela jaqueta típica da região e pelas
“saias das costas”. Manteve-se a orquestra de metais intacta, que acompanhou
assim a transição. Foram aprendidas danças regionais, a substituir as marchas
do “Flores”, como o Fadinho ou o Ferrim Fim Fim, e com muito sacrifício e
dificuldades, o “rancho” apresentou-se nas Festas do Bodo de 1956 com um
projeto todo novo e dentro nas normas vigentes, criadas pelo Estado, para o
desenvolvimento do folclore nacional. E com outro nome: Rancho Típico de
Pombal. Em setembro desse ano de 1956 torna-se o primeiro rancho em
Portugal a atuar num programa de televisão, ainda nas emissões experimentais
da RTP, na Feira Popular, Palhavã, em Lisboa.

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É desta forma que surge o Rancho Típico de Pombal. Como conversão


de um “rancho organizado” chamado “Rancho Flores de Pombal” para um
projeto folclórico de divulgação da “tradição” na região de Pombal. Assim se
chega aos tempos de hoje. O nosso Típico continua firme na sua existência,
perdeu eventualmente alguma noção das suas origens, o que é normal porque
são já muitos anos e muitas gerações por lá passaram, passou por muitas
convulsões, mas continua a ser o nosso representante de um projeto cultural
que vem dos anos 50 do século passado, com as regras desse tempo. Muita
coisa mudou, o conceito de “farda” desapareceu para dar lugar ao termo
“traje”, alguns temas foram-lhe surripiados e levados para outros “ranchos
folclóricos”, a “orquestra filarmónica” deu lugar a uma “tocata” onde
predomina o acordeão, quiçá o elemento mais perturbador na reconstituição
da tradição.

Face á sua já grande longevidade, (neste ano de 2021 comemora 70


anos desde o “pontapé de saída”, em 1951), o Rancho Típico de Pombal
merece, só por si, que seja contado todo o seu historial ao longo deste tempo
que já passou. Ficará para outra oportunidade.

Pombal, 28 de janeiro de 2021

O autor

Paulo Alexandre Baptista da Silva

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