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COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

MINHA TERRA

Há dias foi Pombal visitado por elevado número de ferroviários que aqui
assistiram ao funeral de um saudoso camarada.
Aproveitei a oportunidade para lhes mostrar Minha Terra, servindo de
cicerone a um grupo.
Percorrida a parte mais central da vila e também a mais atraente, dirigimo-
nos para o castelo tomando a Rua Direita.
Alguns passos dados logo a nossa atenção é despertada por incómoda
exalação. Verificámos então que ali, junto do Hospital da Misericórdia, do
Hospital da nossa terra, estacionavam matérias putrefactas esperando entrada
no cano de esgôto!...
Seguimos, sempre mal impressionados; a incómoda pitada não nos larga,
a sargeta à esquerda alimenta-a.
À esquina da Rua da Misericórdia cortamos subindo para o Bairro de
Santo António e, como subimos, desce a nosso lado como acompanhando-nos o
mesmo líquido, a mesma substância.
Atingimos o Bairro. Deprimente o cenário que se nos apresenta. Sob a
escada que conduz à Capela dois canos despejam constantemente na via
pública os dejectos de duas ou três habitações!
Ali se aglomeram e, logo que atingem o nível do solo, ramificam-se até
encontrarem a sargeta que, por sua vez, lhes dá o destino de nós conhecido...
Imperdoável desleixo!
Além velhas habitações desmoronadas de que restam sombrias ruínas, lá
em cima a Capela de Santo António, Padroeira deste Bairro, vélhinha,
abandonada de todos e de tudo, excepto da imundice que no ádro fecunda. Até
o pequeno muro que margina o terreira ameaça ruir. Oh! O que recorda este
pequeno muro? Nos tempos em que alegremente se festejava Santo António,

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neste muro se sentavam todas garridas as simpáticas aldeãs que nos vendiam
os seus pinhões, os seus tremoços que nos ofereciam as suas passas... passas
de figo, passas de uva. Néle, alternadamente, se sentavam os pares após uma
canção, após um agitado vira e os mais apaixonados ali se esqueciam em
colóquio amoroso pela noite fora...
Se o muro falasse!!!
Tudo morre, tudo esquece.
Hoje a Capelinha até do próprio Santo está abandonada: há anos que a
sua imagem dali foi retirada. E quem nos diz que Santo António desgostoso
retirasse também por sua vez, à Capelo, ao ádro e por último ao Bairro a sua
protecção, todo o seu auxílio?
Não, são creio em tal. Santo António, ainda que desconsiderado, não
pensava nisso.
E, com o casario enegrecido, as ruas sem pavimento, intransitáveis, com
a higiene que conhecemos e as ruínas que vimos, deixámos o velho Bairro de
Santo António, o humilde Bairro onde nasci...
Detestável abandono!
De regresso do Castelo encorporámo-nos ao préstito fúnebre, última
homenagem a prestar ao extinto camarada.
No cemitério algumas observações interessantes que registei:
- Oh F...! em Pombal «morre-se» pouco!
- A erva é aqui cultivada!
Era um facto. O cemitério pequeno, acanhado: a erva crescendo cobre
sepulturas, encobre caminhos; as ruas estreitas, primitivas, insuficientes
para receberem um acompanhamento regular e, a servir de proémio a
esta obra, um muro velho, esquelético, tristonho, pardacento, muro que
desconhece a brocha do caiador.
Por último, no momento da descida do corpo à terra, nova desolação que
nos irrita, que nos revolta – a sepultura não tinha as dimensões
ordinàriamente exigidas. Reclamações, protestos até o coveiro se
certificar do seu engano, da sua falta, o que faz com o auxílio de uma
cana, e esperamos, esperamos que o pobre velho procure a enxada e

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novamente cave... cave o coval que não tem altura para receber um
cadáver!!!
Que desagradável impressão tudo isto causa áqueles que nos
visitam.

Autor: J.Jáles

Publicado no Jornal “O ECO” em 25/05/1947

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