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COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

CARTA ABERTA

Da Praia de Pombal aos Pombalenses

Bons amigos:

Desculpem não abrir o arrazoado que ides ler – se, para tanto Deus vos
der paciência – com o tradicional: Estimo a vossa saúde na companhia de quem
mais desejarem, etc., etc.
Apesar de não ter a honra de vos conhecer, nunca a vossa Praia lhes
desejou outra coisa.
Para já, permitam-me este desabafo: Lamento que vós – queridos
Pombalenses, não contem a vossa Praia entre a companhia, não digo a que
mais desejam, mas, pelo menos desejável.
Só não morro de desgosto porque tenho o coração temperado a água do
mar. Mas, vivo tristemente desolada pela vossa indiferença.
Considero-me uma enjeitadinha sem ninguém que olhe por mim, quando é
certo, que, todas as minhas irmãs estendidas de Sagres ao Minho têm os seus
protectores.
Não tenho pretensões. Não aspiro a grandes voos. Aspiro tão sómente
que alguém olhe por mim e aproveitando os meus dotes naturais (modéstia à
parte) faça de mim uma Praia como tantas por esse País fora.
Nível modesto – é certo, mas Praias, verdadeiras Praias. A meu ver, a
vossa indiferença tem uma explicação: Não me conheceis. Apesar dos meios de
transporte serem para vós bastante acessíveis só o falecido e para mim
inolvidável Amílcar de Sousa, se candidatou nos últimos anos da sua vida a ser
um grande pioneiro do contacto Pombal-Litoral. Para aqui trouxe a família, e aqui
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passou dias felizes em convivência comigo e com a minha inseparável Amiga – a


Mata Nacional.
Se uma família por ano lhe seguisse o exemplo, se umas gotas de
iniciativa oficial lubrificassem as engrenagens do caminho para aqui, não me
faltariam qualidades para me candidatar a Internacional!... Não se riam. Outras o
são com menos dotes de raiz.
Desculpem estas «brotoejas» de garganta. Estou para aqui privada do
vosso convívio. Ai de mim se não for eu a realçar os meus encantos, e a gritar:
«Aqui também é Pombal. Aqui é a linda Praia dos Pombalenses, à qual estes
não ligam nenhuma».
O ditado é velho: Santos de casa não fazem milagres. A mim que sou uma
Praia boa como há poucas, desprezam-me, não dão dez reis de lustro aos dotes
que a Natureza me deu. Em contrapartida deixam em Praias alheias o
dinheirinho que bem lhes podia ficar em casa se em lugar de se deixarem atrair
por outras, olhassem pela Sua Praia – de modo que esta atraisse outros que de
longe viriam.

É tempo de justificar a razão porque venho importunar-vos com esta carta.


De há anos a esta parte com aumento crescente de ano para ano,
especialmente nesta época, e, em resultado do progresso já muito palpável que
vai ali na Leirosa e no Pedrógão – mas especialmente neste, sirvo de ponte de
passagem a grupos de turistas, banhistas, e...até aquistas. Já sabem, ou
passam ali à beira da minha vizinha Mata, a metê-la em trabalhos!...
Pedem-lhe para assassinar a sede que os persegue. Com a sua fina água
– exuberâncias das mal acarinhadas fontes dispersas sob as copas do seu
gigantesco arvoredo a «assassina» lá lhe faz a vontade!...
É tempo de vos dizer que sou unha em carne com a minha inseparável
Mata do Urso – o nome é feio, cheira a feras. Mas, a Mata é linda, tem recantos
de encantar e a maior fera que a pisa é o bicho chamado homem!...
Para aqui vivemos há dezenas de séculos. Ela bem estimada. Eu no
estado que já expuz, mas, a harmonia da nossa convivência só tem paralelo no
Paraíso.

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Vinha eu dizendo que especialmente nesta época passam por aqui


«passageiros» no entre-câmbio-Leirosa Pedrógão. Porém, o grupo a que me vou
referir e a quem devo a sugestão desta carta não era de passar mas sim de
estar.
Foi num domingo com o sol a pino:
O mar – inseparável companheiro desta enjeitadinha, passou a manhã um
tanto ou quanto agitado acariciando-me com certa impertinência. Às tantas
manso como um cordeiro quedou-se lá em baixo a fazer ó-ó.
Desta forma, de toillete feita, tive a tarde livre para dar conta do que se
passava à minha beira.
Eu conto:
Eram talvez duas dezenas de pessoas. Acampavam à sombra da Mata
amiga gosando assim duplo benefício. Oxigénio coado pela sua ramaria, e ar do
mar impregnado do mais puro aroma vegetativo.
Tive ocasião de constatar que não eram excursionistas daqueles que vêm
às praias mostrar aquilo que noutro lado parece mal. Num à vontade decente lá
se conservavam em plano superior talvez por o boletim meteorológico da areia
cá da casa os ter prevenido da vaga de calor a rondar-nos a porta.
Por lá se conservou o grupo em convívio próprio de quem sai de casa
para gosar bonançoso ambiente. A unidade só foi alterada quando alguns casais
(havia representação dos dois sexos) se embrenhavam surrateiramente na Mata
em «cata» de camarinhas. Pelo menos... era assim que justificavam a
ausência!...
O grupo fazia-se acompanhar de artístico caixotinho a princípio, para mim
um tanto misterioso dado o atrazo em que vivo em relação ao que vai pelo
mundo (a culpa não é minha). No entanto, fàcilmente descobri que se tratava de
um rádio portátil. Gritava com voz de sarampo e mastigava música em pápas.
Pode ser muito bonito, muito interessante, mas... os meus ouvidos só estão
educados para a sinfonia do Pinhal do Rei quando o vento por aqui passa de
longada, e para a melodiosa música dos passarinhos no seu «coreto-abrigo» que
é, o mesmo Pinhal.

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Quem escuta de si ouve – diz o velho rifão. Escutei e ouvi. Vastas vezes
me senti alvejada nas conversas mas sempre em abono desta pobre
abandonada – sem haver no entanto, quem ponha mão à obra. Havia entre o
grupo um elemento que se arvorou em cicerone e como tal respondia a
perguntas dos companheiros.
De uma vez falou assim:
O Concelho de Pombal tem o limite norte a uns 5 ou 6 quilómetros daqui –
ou seja na margem esquerda do Rego do Extremal (o nome cheira de facto a
extrema). Este Rego faz inveja a alguns rios porque não conhece estio – o seu
caudal não se guia por calendário – tanto corre no verão, como no inverno.
Um aparte: Quem dera aos Pombalenses, terem assim um Rego ao pé da
porta em vez de um Rio tão sujo que de verão nem os pés lava!
Outro aparte: Recordo-me que esse Rego tem a poucas centenas de
metros da Praia uma rica queda de água – apreciada tentação dos banhistas da
Leirosa, que dela se abeiram para tirar o salgadiço do corpo!...
Partindo do Extremal rumo ao sul começa a ver-se a Praia do Osso da
Baleia – já ostensivamente pombalense. Diz-se que o nome provém de em
velhos tempos ali dar à costa a carcaça de um cetáceo dessa espécie. De resto,
o sítio é atreito a receber do mar o que ele resolve atirar cá para fora.
Talvez por isso, a existência do Posto da Guarda Fiscal, único edifício ali
existente.
Coincidência: Vê-se um vulto ao norte: Alguém assestou o binóculo e
verificou tratar-se de pessoa fardada – o que deu a todos a esperança de ser o
Enviado do Posto do Osso, na sua missão de ronda à Praia.
De facto, poucos minutos depois viam-se duas fardas reunidas no centro
desta vossa Praia. É que o grupo estacionou sem dar por isso na direcção da
«arca», isto é, do ponto estabelecido para o encontro das rondas – Pedrógão-
Osso.
A um sinal do cicerone amador os dois guardas subiram até junto do
grupo que se honrou com a sua visita e até se sentiu mais forte, mais
homogéneo com a presença da autoridade local.
Nos farneis ainda havia substancial reserva para a merenda marcada para
aquela hora – após o que, a ordem era marchar.

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Boa oportunidade: O sr. Guarda do Posto do Osso era uma das pessoas
que melhor conhecem os escaninhos da região ribeirinha. A sua presença varreu
dificuldades.
Não foi difícil captar-lhe a boa vontade para se pôr incondicionalmente ao
dispor do grupo, para, a pé firme (deslocar-se era impossível), dar a todos uma
lição do que é a Praia de Pombal, e apêndices.
Fui toda ouvidos. O sr. Guarda começou assim: (pouco mais ou menos, é
claro, porque sou uma praia analfabeta, Deus dê saúde ao meu secretário, e a
Senhora da memória me ajude a dar-vos conta de tão útil informação).
«Devemos estar ao centro da Praia de Pombal, isto é, 6 quilómetros para
cada lado dão os 12 que pertencem a este concelho. Nesta direcção, caminho
do nascente, fica o Carriço – sede da nova freguesia. Do Carriço parte uma
estrada, que é pena não chegar aqui. São 4 quilómetros de bom piso – como
têm todas as estradas florestais. Sem curvas vem dar à Guarda do Norte – Sala
de Visitas desta linda Mata, que os Senhores já apreciaram em parte.
Pelo que vejo não visitaram o que ela tem mais digno de ver-se. Um dia
cá virão se Deus quiser e então, já a saber a terra que pisam.
Uma vez chegados à Sala de Visitas – se o itinerário não vem já
determinado, escolhe-se.
Certamente o objectivo máximo de quem se dispõe a dar este passeio é
sempre a Praia.
Em primeiro lugar vou indicar-vos um itinerário bastante simpático (não
admira!... vai dar ao meu Posto) que só não agradará a velhos de 100 anos, ou a
crianças de 2, dada a dificuldade de pisarem areia.
Parte-se da Guarda Norte – em direcção ao «Norte» por uma estradinha
de bonecas à margem de um rio tão sereno, tão calmo, tão bem educado que só
dá sinal de si pela frescura que empresta ao ambiente. Isto, aliado às belezas
florestais que têm no rio o seu melhor protector faz crescer água na boca, ao
mais exigente em beleza campestre.
Dois quilómetros andados eis-nos na Guarda do Juncal Gordo, também
conhecida entre a vizinhança, pela Guardita.
Daqui enveredamos à esquerda e, a 3 quilómetros, espera-nos o Osso da
Baleia.

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Uma futura (?) estrada, em linha recta actualmente apenas terraplanada


ou... antes «arenada». Nada substitui a areia que lhe serve de leito.
Tem esta futura estrada uma história bastante comovente assim resumida:
Meia dúzia de carolas bairristas da região, sedentos de uma porta para o
mar e de olhos postos nos aluviões de peixe que nas imediações do Osso brinca
na Praia em perfeita segurança, da sua integridade – visto o Homem não poder
lá chegar, planearam a estrada que lá está traçada e bem, mas... por ali ficou por
falta de auxílio oficial e consequentemente daquilo com que se fazem estradas
em vez de comprar melões.

Publicado no Jornal “O ECO” em 01/09/1960

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