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COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

TEMPOS IDOS...

HIBERNAÇÃO, DESPORTOS, BACALHOADAS, E O MAIS QUE ADIANTE


SE VERÁ

Os meus quatro leitores obrigatórios haviam esfregado as mãos de


contentes e dito com os seus botões: - «Desta estamos livres!»
Mas não... Como vêem, ainda não houve um diabo que me levasse – e
mais que não levava grande rês...
Simplesmente ... hibernei. Não se compadeceram os meus brônquios com tão
terrível invernia. E se a minha prosa, já de si insulsa, devia ir, aborrecer, com seu
concerto de ninhadas de gatos e de pintainhos, tão conspicuos ledores...
hibernei!
Agora que, - o dianho seja surdo...-segundo o «Seringador» vai vir bom
tempo, saio do «casulo» e ensaio novos passos.
Pêsames a quem julgou que por eu ser de «tempos idos», já tinha pago a
viagem ao barqueiro...

Esta coisa dos desportos vai-se tornando uma fúria a que não escapa
ninguém.

- Ó homem, tu a saberes a nossa vida, as crianças aqui cheias de fome,


eu sem um tostão, para lhes chegar nada – e chegas tarde e mal a casa...
Trazes ao menos algum dinheiro?
- Viva o Porto?
E a mulher, vendo a mão no ar berra:
- Viva o Porto!
E os garotos, cheios de fome, gritam:
- Viva o Porto!

FRADE DIVALDO
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... E reina a felicidade no lar!


- Aquele foi hoje despedido pelo patrão... Há tantos anos naquela casa,
deixou lá ficar o sebo. Agora, despedem-o. Ó Zé! Anda cá... Disque te
despediram? É verdade?
- Quero lá saber! Viva o Benfica!
- É pá! Olha que quem ganhou foi o Porto!
- Moralmente, ganhou o Benfica!
- Então vamos lá beber dois e não se pensa mais em tristezas!

A verdade é que já em tempos idos houve uma «onda» idêntica, embora


não tão furiosa – talvez porque nessa altura o desporto era só desporto.
Ocorre-me que, uma época, veio o «Hesingborg» jogar a Portugal.
Resultados? Não me lembram agora. Sei que – se a memória me não falha –
bateu o Benfica, empatou com o Belenenses e foi vencido pelo Sporting.
Estão a ver a dor...
Mas, o Benfica pede a desforra – e faz o melhor resultado para os
portugueses.
Não vos digo nada... Ainda a notícia não era bem sabida na vila – que
nesse tempo não havia estes desinteressados alcoviteiros a que chamam
locutores... – já no Castelo subiam no ar foguetes e morteiros em sinal de
regozijo e a ... provocar beiço... Mas, caso interessante, ao mesmo tempo e sem
prévio conluio, no Arnado rebentou também o foguetório - João Antunes em
acção...
À noite, ceata no Joaquim Cortador, com aquele velho menu de todos os
tempos e agora tão saudoso: - boas batatas, belíssimo bacalhau e os
inestimáveis ovos cozidos.
Era larga a assistência: Manuel dos Santos, guarda-redes e capitão do
S.L.P., motorista de praça e antigo jogador do Benfica; Joaquim Gonçalves,
Joaquim «do Artur», Luís Gonçalves, Rogério Silva, António Cordeiro, Hermínio
(de Soure), António de Sousa Cardoso (da Figueira) – e sei lá agora quantos
mais ou, até, se confundi alguns. O que sei é que as cabeceiras da mesa
estavam ocupadas por mim e pelo Manuel dos Santos; e que passei a ceia toda
a pedir a travessa «para tirar um bocado de bacalhau que acompanhasse o resto

FRADE DIVALDO
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das batatas» e «para tirar umas batatas que acompanhassem o resto do


bacalhau»!
...Bons tempos, em que não havia bronquites nem fruculoses, nem outras
coisas terminadas em ites nem em oses. Bati por longe o Hermínio, que, se era
também um azelha no futebol, era um ás a comer bacalhau com batatas!

Que saudades!
Agora, o Sport Lisboa e Pombal já não existe. Existirá, até porventura o
Hesingborg? Sei lá... Dos que assistiram à ceia, quantos restarão?
Mas o certo é que não existem aquelas ricas batatas sem escaravelho. Os
ovos, estão pela hora da morte, por causa da mortilha nos galináceos. E o fiel
amigo, esse, há muito que se safou do mercadio. Deixámo-lo de ver no prato
aquelas belas postas «que pareciam toucinho», que deixavam aquelas conchas
que abriam o apetite a um hepático em crise figadeiral. Sumiu-se, sumiu-se, e
em boa hora o fez, porque seria para ele desprimor ver-se agora besuntado em
não sei quanto por cento de óleo de maucarra!
...E tudo o vento levou!

Autor: Frade Divaldo


Publicado: Jornal “O ECO” – 07/06/56

FRADE DIVALDO

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