Você está na página 1de 4

COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

TEMPOS IDOS...

UMA FESTA À SENHORA DA BOA-MORTE

A velha Albertina Trino, que atirou às fauces hiantes, da sociedade dois


filhos criados à custa de um labor intenso e honesto, aproveitava bem o seu
tempo. Costureira a dias, chegada que era a casa, não dava descanso à
máquina até às tantas da noite. E nos dias de lazer, por feiras e mercados ia
montando a sua quitanda, não fosse o dia perdido cercear o alimento dos filhos.
Mãe amantíssima, merecia um monumento – se não fosse terem que erigir-se
monumentos a todas as mães iguais que felizmente tem havido no mundo. À
falta de calhau público que ateste a sua passagem pela vida, ficaram duas
memórias, tão minúsculas quão ricas de veneração: dois corações, sofredores
como foi o seu, e que ainda hoje, e por todo o sempre enquanto palpitarem, a
celebrarão neste agradecimento bem sentido: obrigados, mãezinha!

Ora, foi numa dessas andanças de feiras e mercados que nos fizemos de
longada até ao Louriçal. Era a festa da Senhora da Boa-Morte, romaria ao tempo
muito concorrida e que a deficiência de transportes e caminhos tornava pouco
frequentada por feirantes.
Há quantos anos lá vai isto? Sei eu bem... Uns trinta e tantos – e se esses
tantos me pudessem ser descontados agora, já me dava por satisfeito.
Alugada a carroça do Catrapus, em meação com segundo interessado, a
possante muar teve que arrastar a carga até ao destino. Não vos vou contar as
peripécias da viagem, onde, nas subidas, «passageiro de tendeira apeia» - e
chegava ao passageiro de primeira... Felizmente, não foi preciso o «passageiro
de terreira» empurrar o rrole... Lá estava na boleia – perdão, na tábua do carro,
que a boleia ia ocupada... – o António, ganapo como eu e filho do dono da
FRADE DIVALDO
COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

burra... Às duas por três - «recolhe as pernas, ó Alfredo» - e zás: uma tropelia, a
mula dava parelha e arrancava com nova gana, com gaudio do condutor e, sem
lamúrias escusadas, com mágoa minha, que fui sempre um amigo dos
irracionais – tantas vezes até dos que usam só duas patas...
Mas, afinal, estou-vos a falar do caminho – e era o que eu não queria...

O Louriçal de então, como é óbvio, era diferente do de agora. Não sei se


terá acompanhado a marcha do tempo, mas muito melhor deve estar – e digo
isto porque até eu, embora também já em tempos idos, o vi um pouco melhor.
Num canto do Largo principal desembocava uma... rua onde era o ensaio
da música. Ora, nessa altura, não havia no país banda de vila ou de aldeia que
não tivesse sido ferida pela coqueluche do momento: a Marcha Brasileira. Por
azar, ficou-nos a barraca logo à embocadura da rua. E toda a santa noite foi um
louvar a deus. O amigo Sidrak não se dava por satisfeito; e, ao que me parece,
como os componentes da filarmónica se não reuniam todos, pois alguns
andavam investidos nas suas funções de ornamentadores da festa, o ensaio
geral não tinha fim. Findou quando, manhã cedo, se iniciaram os festejos com a
arruada – é claro, tocando a banda a Marcha Brasileira. Posso ter-me esquecido
das minhas canções de embalar. Posso estar olvidado das modas populares do
meu tempo de rapaz. Mas, depois daquela injecção ainda hoje tenho no ouvido,
bem patente, a Marcha Brasileira. Essa, é uma das recordações daquela festa.
Mas, ao tempo, havia outra coqueluche: uma canção popular que dizia:

«Também o nosso calção


E o nosso pé delicado»...

E à noite, chegou um rancho de Buarcos – ou perto. Moças bonitas,


coradas, risonhas, sem pretensões. Rapazes esbeltos, alegres, queimados do
iodo do mar. Todos descalços – que é a melhor forma de vencer jornadas por
caminhos de areia. Entre eles, algumas velhices e, como chefe de equipa, um
calmeirãozão enorme, já grisalho, dando na aparência a certeza de parecer mais
novo do que poderia rezar a sua certidão de idade. De calça arregaçada,
mostrava uns pés descomunais, que se alguma vez tivessem sido calçados teria

FRADE DIVALDO
COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

sido necessário fazer formas de propósito. O rosto, picado das bexigas,


dimanava um não sei quê de simpatia – um sorriso de homem são, um olhar de
lealdade. Era o mandão do grupo. No seu vozeirão não despido de melodia,
iniciava o canto, dava o lamiré ao homem do harmónio e ao dos ferrinhos.
Mandava o malhão, cantava à desgarrada – animava o rancho.
Às tantas, chegou a coqueluche. E, então, foi vê-los. Com ar trocista,
gestos de exagero e voz tonitroante, cantou e bailou agitando a calça arregaçada
e mostrando o pèzorro desmedido:

«Também o nosso calção


É o nosso pé delicado»...

Foi um sucesso. Creio que até as freiras velhinhas, que de várias janelas
sem luz assistiam ao arraial, tiveram de se retirar com receio de que o excesso
de riso as levasse a ferir as regras da civilidade!...

Mas, porque me lembrou agora esta festa da Senhora da Boa-Morte?...


Talvez porque à saída do banho, me puz a admirar os meus pés
delicados, outrora gabados pelos mestres sapateiros, e que hoje, deformados
pela gota e pelas varizes justificam, quer o direito quer o esquerdo, o epigrama
de Bocage:

«Se o Padre Santo tivesse


Um pé tão grande e tão mau,
Podia mesmo de Roma
Dar beija-pé em Macau!»

FRADE DIVALDO
COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

Autor: Frade Divaldo


Publicado: Jornal “O ECO” – 30/07/59

FRADE DIVALDO

Você também pode gostar