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“Predador”
Júlia Milaré
São Paulo
2010
1
2 3
FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO
FACULDADE DE ARTES PLÁSTICAS
CURSO DE BACHARELADO EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA
HABILITAÇÃO EM ARTES PLÁSTICAS
“Predador”
São Paulo
2010
4 5
Projeto gráfico
Rosana Milaré e Júlia Milaré
Revisão de texto
Luiz Thomazi
Agradecimentos 11
Apresentação 13
1. Polka-dots 17
2. Kitsch 27
3. Enlatado de trincheira 39
4. “Predador”: estratégias de “ataque” 47
4.1 A antessala 47
4.2 O título 49
4.3 A estampa 49
4.4 “Inventário” de objetos 55
Entre 61
Referências Bibliográficas 63
Agradecimentos
Aos meus pais, Valkir Gropo e Luciana Milaré Gropo, pelo amor e carinho diários, cami-
nhadas garimpeiras em meio à massa popular e incentivo.
Ao meu irmão, Pedro Milaré Gropo, pela amizade, conversas de beliche e risadas a
qualquer hora.
Ao meu professor e orientador Thiago Honório, por ser impecável em sua dedicação,
seus cuidados minuciosos e por apresentar caminhos preciosos no desenvolvimento
deste processo.
À minha querida Helena Kavaliunas, amiga, companheira e energia pura que abriu ca-
minhos importantes, emocionantes e felizes na minha trajetória profissional.
À minha tia Ro, por compartilhar ideias artísticas, da vida e pelo trabalho incrível na
diagramação deste trabalho.
Aos meus padrinhos, Tio Luiz e Tia Mer, pelas histórias, conversas culturais e algumas
besteiras em jantares fartos.
A todos da minha família, pelo apoio, reuniões e ouvidos para ideias arteiras.
Aos amigos Letícia, pela grande amizade e apoio de todas as horas e choramingos
constantes, Fred, pelas piadas e amizade fortificantes, Wagner, por ser o Julinho e ter
cílios compridos seguidos de um olhar doce, Celo, pela paternidade amável e dias de
abrigo na Bahia com a Piauí, apto. 52, Lulu, pelas tardes “faapintando” e nuvens bauni-
lha, Veri, pelos momentos de crescimento e ornamentações, e ao trio Meninas Alegria,
Marjô, Renatinha e Vick, pela aproximação imprescindível, momentos cosmo e piri-
lampagens.
Ao Francisco Rensi, pelo carinho, amor, apoio, escuta e sorvetes para viagem.
10 11
Apresentação
14 15
Polka-Dots
A
“e camuflagem é um recurso resultante da ação
da seleção natural sobre uma determinada
espécie, empregado por inúmeras espécies para se pro-
tegerem dos seus predadores”¹. A artista japonesa Yayoi
Kusama (1929) desenvolveu uma camuflagem própria,
porém artificial. Kusama, desde criança, sofre de uma
doença denominada Transtorno Obsessivo Compulsivo
– TOC². Este dado, de alguma maneira, remanesce em al-
guns de seus trabalhos. A artista desenha, pinta, realiza
1
instalações e vídeos repletos de pontos, de “bolinhas”, In: <http://
pt.wikipedia.
as chamadas polka-dots³, que aparecem em diferentes org/wiki/
cores, dimensões, repetidas... Pode-se dizer que sua do- Camufla-
gem>. Acesso
ença é sua “galinha de ouro”. Seus trabalhos apresentam em: 28 maio
em suas fisionomias uma obsessividade por “bolinhas”. 2010.
2
Trata-se de um transtorno mental, ou também transtorno mental de ansiedade.
Manifesta-se sob a forma de alterações do comportamento (rituais ou compulsões,
repetições), dos pensamentos (obsessões como dúvidas, preocupações excessi-
vas) e das emoções (medo, desconforto, aflição, culpa, depressão). Sua caracte-
rística principal é a presença de obsessões: pensamentos, imagens ou impulsos
que invadem a mente e que são acompanhados de ansiedade ou desconforto, e
das compulsões ou rituais: comportamentos ou atos mentais voluntários e repeti-
tivos, realizados para reduzir a aflição que acompanha as obsessões. Dentre as ob-
sessões mais comuns estão a preocupação excessiva com limpeza (obsessão) que
é seguida de lavagens repetidas (compulsão). Um outro exemplo são as dúvidas
(obsessão), que são seguidas de verificações (compulsão). In: <http://www.ufrgs.
br/toc/oque_toc.htm>. Acesso em: 5 maio 2010.
3
Polka-dots é o termo em inglês para nomear o padrão/estampa que conhecemos
por “bolinhas”. O termo surgiu a partir da dança popular “polca”, mas não possui
uma relação direta com esta.
16 17
O acúmulo, o exagero, a “doença estetizada” ganharam
espaço no circuito artístico e Yayoi Kusama revelou-se entre os
anos 1950 e 1970, quando deixou o Japão e foi para os Estados
Unidos, grande potência da arte pop. “Cada peça de trabalho é
a condensação da minha vida”4, diz a artista. É com o trabalho
artístico que Yayoi Kusama parece estabelecer uma linha tênue
entre a sua realidade mental e a realidade externa.
A ideia de camuflagem também está presente em seu
trabalho5, pois Yayoi Kusama cria ambientes próprios e neles
encontra o seu habitat para se proteger. O trabalho da artis-
ta igualmente assume, por vezes, um papel inverso, quando
suas “bolinhas” têm o poder de contaminar o mundo externo.
Podemos perceber essa contaminação em um de seus vídeos,
intitulado Kusama’s self obliteration, de 1967, no qual ela se co-
loca no papel de “contaminadora matriz”, dissipando as suas
polka-dots pela natuzeza – água, animais e árvores –, como
podemos ver nos frames ao lado.
4
KUSAMA, Yayoi. Across the water. Londres: Phaidon Press, 2000, p. 136. Entrevista
concedida ao artista Damien Hirst (1965).
5
Evidentemente, essa ideia de camuflagem pode ser reconhecida na fisionomia
de variados trabalhos e na produção de diversificados artistas presentes no âm-
bito da história da arte, passando por diversos períodos e movimentos. A escolha
pontual do trabalho de Yayoi Kusama, no caso deste TGI, diz respeito, sobretudo,
a um interesse e investigação constantes, por parte de meu trabalho, em relação Frames do vídeo Kusama’s Self Obliteration, 1967.
à sua produção, reconhecendo nas suas polka-dots questões importantes à minha Direção: Jud Yalkut e Yayoi Kusama.
poética. Duração: 9’17”
18 19
“Obliterar” significa destruir, extinguir e, também, Logo, a produção de Yayoi Kusama, como se
fazer esquecer. A “obliteração” que o trabalho da artista disse, é tomada como referência para este Trabalho de
sugere, a meu ver, é a extinção de si mesma, tornando Graduação Interdisciplinar – TGI, pois uma das ideias
tudo igual a ela, assim a destruição seria apenas da ideia centrais deste trabalho é a camuflagem. A partir dela há
de unidade da sua condição. uma espécie de processo rizomático, onde outras ideias
É dentro dessa contaminação que identifico a o integram.
camuflagem. Conforme mencionado, Kusama busca
sondar questões interiores com o seu trabalho, logo, a
produção de alucinações obsessivas foi indicada como
termômetro para a doença da artista, que tomou pro-
porções grandiosas partindo dessa ideia fixa por pulveri-
zar “bolinhas”. Atualmente, Yayoi Kusama tem que vestir
Yayoi Kusama
roupas com polka-dots devido ao grau avançado de sua Dots Obsession,
doença. Obviamente essa “necessidade” resultou numa New Century,
2000.
intenção artística, performática, por assim dizer, tornan- 11 Balões,
do-se obra, que, por conveniência ou não, é a ideia de Bolinhas de
vinil.
“camuflar-se no seu mundo criado”. Ocorre algo como “o Instalação.
retorno do feitiço ao feiticeiro”. Dimensões
variáveis
Yayoi
Kusama
Dots Obses-
sion Day,,
City Gallery,
New Zealand,
2009.
Balões de
vinil.
Instalação.
Yayoi Kusama, 2006 Dimensões
20 21
6
Trata-se de zzz
um tecido que
tem como Em 2009, realizei o trabalho intitulado Ambien-
suporte o tação padrão que pode ser considerado como “germe”
morim, uma
espécie de desta pesquisa. Ambientação padrão constitui-se na
tecido de criação de um ambiente e objetos revestidos com teci-
algodão
rústico. Chita
do tipo chita6. Os objetos camuflam-se, são como que
vem de chint, “engolidos” pelo ambiente com a mesma estampa. O
termo nascido
na Índia,
ambiente construído também evoca uma sensorialida-
que significa de peculiar, na medida em que é possível que seja per-
mancha ou
cebida nele, e a partir dele, uma sensação de vertigem e
pinta. O tecido
surgiu na de tontura devido à ilusão óptica. Em Ambientação pa-
Índia mas foi
drão a camuflagem estava incorporada à principal ideia
rapidamente
difundido pela do trabalho, que era a padronagem. O padrão, a estam-
Europa até pa e o desejo de padronizar – padronagem – foram ele-
chegar ao
Brasil, através mentos decisivos para a construção deste trabalho.
de Portugal.
Suas estampas
são planifica-
das, com mo-
tivos florais,
na maioria das
vezes em
cores
primárias e
secundárias.
In: KUBRUSKLY,
Maria Emilia.
Que chita
bacana. São
Paulo: A Casa,
2005.
Júlia Milaré
Ambientação padrão, 2009.
Ambiente e objetos revestidos com tecido tipo chita.
Dimensões variáveis.
22 23
À medida que a pesquisa foi sendo esmiuçada,
os conceitos tornaram-se cada vez mais complexos, en-
tretanto, deslocados. Foi no processo, escrevendo sobre
o projeto inicial que viria a constituir este TGI, que a ideia
de camuflagem evidenciou-se e foi sendo amadurecida.
A camuflagem é uma defesa natural do animal, a mescla
do corpo com o ambiente. Pensando na criação de um
ambiente fechado, um cômodo, algo já pensado como
proteção para o ser humano em relação ao espaço ex-
terno, por que tornar camuflável o seu interior, a prote-
ção artificial já existente?
O homem dentro de um espaço como o de Am-
bientação padrão não fica protegido, ao contrário, tor-
na-se evidenciado, destaca-se dentro de um ambiente
onde tudo possui a mesma configuração.
Tomar partido da ideia de camuflagem natural
norteou o TGI a partir da escolha da estampa utilizada
no revestimento da antessala. Seu motivo característi-
co é fundamental para a compreensão da camuflagem
como seleção natural que permite ao animal com essa
habilidade proteger-se de seu predador. Neste caso, o
fator mais importante é o meio ambiente. Não será vá-
lido para o animal fundir-se ao ambiente se o seu pre-
dador não for sensível às cores, por exemplo. Ainda no
caso da antessala totalmente revestida escolhida por
este trabalho, o espectador será ressaltado exatamente
porque as cores e formas do ambiente, uma vez repeti-
das, destacarão a “presa” exercendo um papel de camu-
flagem inversa, em negativo.
24 25
Júlia Milaré
Kitsch 3, 2010.
Impressão digital.
Júlia Milaré
Kitsch 2, 2010.
impressão digital.
Kitsch
26 27
Para falar de kitsch, faz-se necessário repor bre-
vemente o contexto do estilo artístico art nouveau.
Trata-se de um estilo que se desenvolveu entre 1890
e a Primeira Guerra Mundial na Europa e nos Estados
Unidos, e que consistiu na ornamentação dos objetos
produzidos na indústria, já que desde o advento da Re-
volução Industrial as produções em série resultavam em
materiais com acabamentos menos sofisticados. Essa
revalorização da ornamentação torna-se questionável a
partir dessa articulação estreita entre a arte e a indústria.
A ideia de kitsch firma-se nesse contexto do art nouveau,
porém coloca-se do lado oposto, pois enquanto a “arte
nova” pretende atribuir qualificações estéticas aos obje-
tos de produção, o kitsch é o termo conceitual daquilo
que indica o mau gosto e a qualidade inferior. O termo
alemão kitsch, surgido no ambiente artístico de Muni-
que em 1870, vem de kitschen e verkitschen, que signi-
ficam “trapaça”, ou, no popular, “vender gato por lebre”.
Contrapõe-se ao art nouveau pelo seu caráter românti-
co, sendo o art nouveau um estilo reativo ao sentimen-
talismo romântico, aderindo à lógica e racionalidade da
ciência e da engenharia, encontrando nos materiais da
indústria (ferro, vidro e cimento) formas de desenvolver
uma estética em objetos cotidianos.
Júlia Milaré
Kitsch1, 2010
Impressão digital.
Objetos art nouveau. Abajures, início do século XX.
28 29
O kitsch é a “negação do autêntico”, a cópia e a 7 GREENBERG,
artificialidade, o tom dramático e açucarado que exce- Clement.
Vanguarda
de a um universo romântico. Alguns autores analisam e kitsch. In:
o kitsch até mesmo questionando se é um estilo, pois ROSENBERG,
B.; WHITE, D.
trata-se de um termo diretamente relacionado à socie- (org.). Cultura
dade moderna industrial. Abraham Moles (1920-1992) de massa: as
artes populares
aponta que a abundância do kitsch está ligada à expan- nos EUA. Trad.
são do mercado e ao crescimento das sociedades de Octavio M.
Cajado. São
massa, que verificam no mercado a possibilidade dos Paulbi: Cultrix,
baixos preços provenientes das reproduções e cópias e 1973. p. 121-
134.
de adquirirem produções artísticas reproduzidas. Assim,
a “arte” se tornaria alcançável, disponível no comércio
cotidiano. Theodor Adorno (1903-1969) analisa o kitsch
a partir de uma perspectiva marxista de “falsa consci-
ência”, determinando o seu lugar na indústria cultural
e na produção de massas. Herman Broch (1886-1951),
por sua vez, faz sua crítica ao termo de forma manique-
ísta, colocando a “arte verdadeira” como o bem e a “arte
imitativa” como o mal. Clement Greenberg (1915-2001),
assim como Broch, avalia o termo como a “arte da cópia”,
das falsas sensações que obedecem às regras acadêmi-
cas. No texto “Vanguarda e kitsch”7, Greenberg mencio-
na a atuação do kitsch em um governo ditador. Avalia
que o kitsch mantém um contato mais próximo do di-
tador com o povo, e a cultura da “elite” seria um grande
problema para atingir a “alma” de uma população. Tudo
isso indica a característica inocente, alienante e engano-
sa que o kitsch possui.
30 31
Identificado pelo acúmulo, artifício, técnica de
simulação e, muitas vezes, pelo exagero, o kitsch é um
dos elementos-chave para a discussão do meu trabalho.
O revestimento de uma antessala será realizado com
tecido estampado que imita a pele de um animal. Este
tecido foi inicialmente “garimpado” nos maiores centros
comerciais de cultura popular do Brasil: os bairros do
Brás8 e Bom Retiro9 e a Rua 25 de Março10, todos situados
na região central da cidade de São Paulo. Pesquisar e
comprar um tecido em um desses lugares significa tran- Imagem de
loja de tecidos
sitar e relacionar-se diretamente com o mundo da cultu- na rua Almi-
ra de massa. Uma bobina de tecido vendida no Brás, no rante Barroso,
no bairro Brás.
Bom Retiro ou na Rua 25 de Março pode ser comprada
por qualquer confecção de roupas ou algo do gênero. A
questão é que o tecido estampado pode ser adquirido e
apropriado por qualquer um, gerando uma espécie de
trabalho terceirizado, em grande escala. Neste sentido,
o valor de criatividade da estampa impressa no tecido
cai, e o fácil acesso e a grande distribuição a tornam po-
pularizada. A apropriação de uma estampa “popular” e
sua inserção num trabalho de arte questiona a delicada
relação que o kitsch pode estabelecer com a arte. 8
O bairro do Brás, situado na região central de São Paulo, nasceu como uma região
de chácaras, cresceu e se desenvolveu como bairro operário e “pátria” dos imigran-
tes italianos, depois acolheu os migrantes nordestinos, conheceu sua decadência
e deterioração urbana e hoje é um dos principais centros do comércio popular
na cidade, destino diário de milhares de sacoleiros e sacoleiras de todo o Brasil. A
origem do Brás está ligada à figura do português José Brás. Foi considerado como
freguesia em 1817. In: <http://almanaque.folha.uol.com.br/bairros_bras.htm>.
Acesso em: 1º jul. 2010.
9
A instalação da Estrada de Ferro São Paulo Railway e a chegada dos imigrantes
na cidade de São Paulo marcaram o desenvolvimento do bairro. Localizado na re-
gião central da cidade, abriga a Pinacoteca do Estado, Museu de Arte Sacra de
São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa (dentro da Estação da Luz), a Estação
Pinacoteca e o Centro de Estudos Musicais Tom Jobim. Suas características comer-
ciais são as confecções e lojas de tecido. In: <http://almanaque.folha.uol.com.br/
bairros_bom_retiro.htm>. Acesso em: 1º jul. 2010.
Imagem de loja de tecidos na rua Almirante Barroso, no bairro Brás.
32 33
10
A Rua 25 de Março
é considerada o maior
centro comercial da
América Latina pois
consiste em um dos
mais movimentados
centros de compras
varejistas e atacadis-
tas da cidade de São
Paulo. Um dos grandes
entraves do comércio
local são os came-
lôs, as barracas, que
disputam espaço com
as lojas comerciais
vendendo os mais
diversos produtos na-
cionais e importados,
muitas vezes sem re-
conhecimento oficial.
In: <http://almanaque.
folha.uol.com.br/
mundo_25mar1968.
Imagens da rua 25 de Março e lojas da mesma htm>. Acesso em: 1º
(acima, abaixo e ao lado). jul. 2010.
34 35
O motivo escolhido da estampa é o “tigrado” (ver
Capítulo 4 – “Predador”: estratégias de “ataque”). Como a
ideia central do trabalho é a camuflagem, foi definida,
portanto, uma estampa animal, do tigre. É possível que
esta estampa possa ser considerada próxima do univer-
so kitsch. Camuflar uma antessala com tecido estam-
pado industrializado é, também, tratar da artificialida-
de presente neste universo. A antessala não sofre uma
seleção natural e, sim, artificial. O motivo tigrado pode
conduzir o olhar dos espectadores para o entendimento
da relação animal de camuflagem. Conforme menciona-
do anteriormente, o espectador “insere-se” no trabalho
com o papel inverso de sua “atuação” na natureza: ao in-
vés de ser o predador, destaca-se pelo ambiente que ele
próprio construiu e, neste caso, sua segurança e prote-
ção acabam sendo possivelmente “ameaçadas”.
Pode-se sugerir que a revelação do humano,
ainda no caso de “Predador”, seja evidenciada no inte-
rior do trabalho. O espectador ficará exposto num certo
“sentido animal”, onde o instinto será seu maior valor,
indicando uma camuflagem inversa.
36 37
Enlatado de Trincheira
11
Predator, cor, 106 min., ficção científica, Estados Unidos, 1987. Direção: John
McTiernan. Produção: John Davis, Lawrence Gordon e Joel Silver. Atores: Arnold
Schwarzenegger, Carl Weathers, Elpidia Carrillo , Bill Duke, Jesse Ventura.
12
In:<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/03/070321_arte-
camuflagemebc.shtml>. Acesso em: 20 out. 2010.
38 39
das cores e formas foi bastante estudado, não só para a
realização dos uniformes mas, também, para os outros
instrumentos de guerra (transportes, armamentos). Os
padrões criados foram produzidos em larga escala na
Segunda Guerra Mundial. As cores variavam de acordo
com o local de ataque. Se a tropa instalava-se em flores-
tas, o uniforme, instrumentos ou veículos eram verdes
com marrom, se estavam em lugares desérticos, as co-
res eram em tons ocre, cáqui. Os “ninjas” japoneses, por
exemplo, usavam um uniforme escuro, normalmente
preto, pois suas lutas aconteciam no período noturno.
Também é importante observar que, antes da tecnolo-
gia de camuflagem estampada, os soldados das antigas
guerras utilizavam a própria pele dos animais como uni-
forme camuflável. As mais comuns eram as dos ursos,
leopardos e leões. No trabalho “Predador” o revestimen-
to de estampa animal, mais especificamente “tigrado”,
dialoga com essas ideias. Essa espécie de intercâmbio
ou troca que o homem parece buscar estabelecer com
a natureza para sua própria sobrevivência conduz para
o centro do trabalho. Ali, o tecido criado pelo homem, o
ambiente criado pelo homem/artista, sugerem a aproxi-
mação com a natureza, mas essa aproximação na reali-
dade “trai” o homem/espectador que fica evidenciado:
uma presa fácil.
Outra característica importante a ser destacada
do filme Predador é a produção hollywoodiana e de mass
media latentes do cinema estadunidense. A película foi
filmada nas selvas do México, mas não perde o caráter
hollywoodiano, pois Hollywood tornou-se sinônimo de
megaprodução. Atribuir qualidade hollywoodiana a um
filme não significa que ele tenha que ser produzido nos
40 41
Frames do filme Predador. Amostras de estampas “camufladas”.
42 43
estúdios de Hollywood, basta simplesmente identificar-
se com a ideia de megaprodução da indústria cinemato-
gráfica. Os efeitos especiais inseridos no filme também
fazem jus à qualidade de megaprodução.
Nesse sentido, Predador, o filme, e “Predador”,
o trabalho, têm em comum o caráter kitsch analisado no
capítulo anterior. Sendo o kitsch um termo que expressa
mau gosto e qualidade inferior, pode-se indentificar essas
características em Predador, o enlatado hollywoodiano,
que apresenta recursos “datados” localizados, por exemplo,
nos movimentos “trashes” de suas personagens, que não
são vistos como recursos despojados e/ou sofisticados nos
dias atuais. O kitsch está relacionado ao tempo, ao antigo, a
algo fora de moda. Pode-se arriscar dizer que o ator Arnold
Schwarzenegeer é uma figura kitsch em seus personagens,
pois a maioria de seus papéis, em diversos filmes, é de um
“fortão” estereotipado, normalmente monossilábico, com
pouca roupa, em cenários de ação. É difícil atribuir a uma
pessoa ou personagem o significado kitsch, mas os contex-
tos ajudam a elucidar.
Este capítulo, Enlatado de trincheira, pode ser en-
tendido como uma breve análise da referência do filme
Predador, homônimo do trabalho apresentado, frisando
aqui que seu título não surgiu devido ao filme, mas sim
que o filme, dentro desta reflexão, surgiu devido à es-
colha do título do trabalho plástico-visual. A presença
desta referência no “corpo” deste trabalho revela o sen-
tido do produto realizado em massa e para a massa, o
enlatado hollywoodiano, algo produzido em larga es-
cala, sugerindo uma conexão sutil com o que abordei
anteriormente sobre o uso da camuflagem nas guerras,
bem como a narrativa do filme Predador.
44 45
“Predador”:
Estratégias de “Ataque”
4.1 – A antessala
46 47
Imagens 4.2 – O título
da antes-
sala antes do
revestimento. Aproveito a reflexão ao lado para discorrer sobre
o título do trabalho, “Predador”, cuja escolha foi muito
importante para concluir alguns levantamentos apon-
tados pelo mesmo. Predar significa destruir, abater, mas
“Predador” não possui apenas esse sentido. Por isso o
título apresenta-se entre aspas. O ambiente construído,
a um só tempo pode indicar uma pressuposta perda da
proteção do homem/espectador, evidenciando-o, é tam-
bém um espaço que acolhe, envolve, tanto por conter
Essa antessala é um lugar elementos do cotidiano nele, aludindo a uma saleta de
de passagem. Como pontuei, ela espera, quanto pela camuflagem e ilusão de óptica, que
tem duas portas de acesso a uma atraem o olhar do espectador fazendo com que ele “mer-
sala maior, de aula, onde serão gulhe” naquele espaço. Há algo como uma espécie de
apresentados outros trabalhos, jogo de atração e repelência por parte do trabalho. Este
de outros colegas. Nesse senti- envolvimento e a sedução do olhar podem ser conside-
do, ”Predador” também pode ser rados atributos predadores. As aspas também sugerem
pensado como uma “armadilha” o “entre”, e “Predador” encontra-se em um espaço entre,
por ser um local de passagem: o pois a antessala onde estará instalado é um “entre” de
visitante é como que obrigado a passagem.
passar pela antessala se quiser
ver os demais trabalhos expostos
4.3 – A estampa
na sala maior (sala 1102), à qual a
antessala dá acesso, vivenciando
O motivo da estampa foi inicialmente definido
a experiência da evidenciação de
a partir de “um ideal” associado à estampa da plumária
seu corpo dentro do ambiente re-
do pavão. O “ideal” era que a estampa fosse colorida, e
vestido com estampa animal.
que representasse a pena do pavão, destacando, assim,
a ideia de camuflagem inversa, além do fato de o pavão
apresentar características do universo kitsch, a exube-
Representação do teto com recorte rância de cores, sua forma. Reforço esta ideia na seguinte
das caixas de luz. frase de Umberto Eco (1932):
48 49
13
ECO, “(...) mas Kitsch é a obra que, para justificar sua função Entretanto, a “garimpagem” pelo tecido “ideal”,
Umberto.
Apocalípticos e de estimuladora de efeitos, pavoneia-se com os espó- com estampa de pena de pavão, não foi feliz. A Rua 25
integrados. São lios de outras experiências, e vende-se como arte, sem de Março foi o primeiro local de busca, porém sem reve-
Paulo: Perspec-
tiva, 2004. reservas”13. lações produtivas. A Rua Almirante Barroso, no bairro do
Outra característica kitsch reside na apropriação Brás, apresentou resultados mais animadores; algumas
dessa estampa, encontrada e comprada, principalmen- estampas com motivo “pavão” foram encontradas, mas
te, em locais de efervescência da indústria popular de nenhuma respondeu às demandas internas do trabalho,
massa, como os bairros do Brás e Bom Retiro ou a Rua 25 ao desejo inicial de se criar um “ambiente camuflado”.
de Março, já visitados como pesquisa de campo. Para que o ambiente e objetos se misturem, a estampa
deve ter repetições próximas, itens acumulados, assim a
confusão ou uma sugerida ilusão óptica seria mais efeti-
va. Pela falta de um tecido estampado que atendesse às
necessidades do trabalho, foi cogitada a possibilidade
da criação de um motivo ideal que seria estampado nos
200 metros de tecido. Entretanto, esse processo destitui-
ria, a meu ver, parte significativa da ideia kitsch, impor-
tante ao trabalho, tornando possível uma nova questão
e outros encaminhamentos peculiares, como a autoria
criativa da estampa utilizada.
Considerando os interesses de minha pesquisa,
o meu percurso, a apropriação de objetos da cultura
popular, criar uma estampa e imprimi-la em tecido trai-
Estampa construída em progra-
ma Adobe Photoshop. ria o próprio modo de operar e o movimento interno de
meu trabalho, bem como questões que lhe são caras. A
produção da estampa seria esteticamente kitsch, mas,
no sentido cultural, pela busca, o trajeto percorrido nos
centros da cultura de massa e a apropriação acabariam
sendo descartados – como pontuei, algo não desejado
pelo trabalho.
Portanto, uma vez assumida a ideia central da
camuflagem, optei por pesquisar outra estampa animal,
Simulação do espaço e estampa da
plumária do pavão.
que também dialogasse com o universo kitsch e, reite-
50 51
rando, que fosse, sobretudo, intimamente relacionada
à ideia de camuflagem. Assim, encontrei amostras de
imitações das pelagens de zebra, onça, girafa e tigre.
Essas estampas são muito comuns no circuito
comercial popular, mas, por questões estéticas e téc-
nicas, escolhi o padrão tigrado. Seu efeito de camufla-
gem é bastante eficaz e solucionou um dos problemas
técnicos que encontrava desde o início dos estudos
para a realização deste trabalho, a sujeira que aparece-
ria durante o tempo de permanência e com o contato
do caminhar das pessoas sobre uma de suas superfíces.
A cor, as imperfeições do tecido e o desenho de quali-
dade inferior permitem que as interferências da sujeira
e emendas do tecido não apareçam tanto.
52 53
Conforme mencionado, a camuflagem é uma 4.4 – “Inventário” de objetos
característica de defesa e sobrevivência essencialmente
Os objetos presentes na antessala serão revestidos
animal. O ambiente no qual este animal está inserido é
pelo mesmo tecido.
um fator determinante para que a camuflagem seja efi-
caz. O tigre possui listras que lhe permitem misturar-se
à relva para que sua presa não perceba sua presença, e
assim, estrategicamente, o hábil animal a surpreende 1- Poltrona – É um dos objetos mais
na caçada. Mas, além de facilitar a caça, a camuflagem importantes na antessala. Foi o pri-
também permite que animais mais frágeis escondam-se meiro móvel pensado para o lugar,
de seus predadores e é nessa duplicidade gerada pela pois a intenção é apresentar, além da
camuflagem que reside a essência deste trabalho. sensação de emboscada, arapuca, pa-
radoxalmente, um ambiente acolhe-
dor, que ao mesmo tempo provoque
incômodo e estranhamento pelo re-
vestimento total de uma só estampa.
A poltrona foi encontrada num bazar
de móveis usados.
54 55
3- Cadeira de canto – A cadeira
ficará em um dos cantos da
sala, ao lado do criado-mudo.
Foi comprada em uma loja de
antiguidades.
56 57
Os objetos relacionados compõem o ambien-
te da antessala. Será como algo próximo a uma saleta
de espera, onde o deslocamento proposto pelo traba-
lho e, paradoxalmente, a sugestão de se construir uma
espécie de armadilha acontecerá pelo revestimento de
suas superfícies. Sendo o ambiente talvez identificável,
uma pressuposta aproximação com o espectador pode
se tornar maior, mas também acentuar o “desvio” de um
ambiente “acolhedor” para um ambiente “perturbador” e
“evidenciador”.
58 59
14
In: Di-
cionário
Houaiss: <
http://houaiss.
uol.com.br/
busca.jhtm?ve
rbete=predad
or&cod=15338
Entre 8>. Acesso em:
28 out. 2010.
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15
Vincu- Este trabalho é analisado tendo a camuflagem e
lado à ideia
a relação presa/predador como pilares. No entanto, são
do kitsch
contida inúmeras as possibilidades de novas leituras. Até mesmo
Referências bibliográficas
neste tra-
a discussão sobre o kitsch tomada de dentro do próprio ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, Max. Cultura e sociedade. Trad. Car-
balho, pois
simulacro é trabalho é bastante abrangente. E aqui é possível que se los Grifo. Lisboa: Presença, 1970.
fingimento, estabeleçam relações não somente com alguns trabalhos
simulação, BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da
cópia. da artista Yayoi Kusama, como também com produções de Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’ Água, 1981.
outros diversos artistas.
Ademais, é importante destacar que “Predador” não CATUNDA, Leda. Poética da maciez: pinturas e objetos. 2003. Tese
16 de doutorado em Artes – Escola de Comunicações e Artes da
Idem se encerra em si, naquilo que se refere à pesquisa aborda- Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Orientação do
nota 14.
da. A partir dele pretendo explorar outras questões caras Prof. Dr. Júlio Plaza.
ao meu processo, como a de simulacro15, e outros possí-
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva,
veis desdobramentos vinculados a estes estudos. Consi- 2004.
dero estimulante e produtivo relacionar essas ideias com
a definição etimológica da palavra predador, em latim KUBRUSKLY, Maria Emilia. Que chita bacana. São Paulo: A Casa,
2005.
praedátor,óris, ”ladrão, saqueador”16.
Se em sua raiz predador quer dizer ladrão, saquea- KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro:
dor, ou, no mesmo sentido, “pirata”, sua relação com a dis- Nova Fronteira, 1985.
cussão proposta pelo trabalho aqui se conecta, pois esta- KUSAMA, Yayoi. Across the water. Londres: Phaidon Press, 2000.
mos nos referindo novamente à “trapaça”. Entre!
MOLES, Abraham. O kitsch. São Paulo: Perspectiva, 1975.
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Fontes da Web
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