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Notas sobre um trabalho em andamento

25 de novembro de 2021Conexões, Produtos de Cartéis

Por Andrea Vilanova

Cartel: Corpo, imagem e tecnologias: (re)leituras do Estádio do Espelho entre arte e psicanálise.

Cartelizantes: Andrea Vilanova (mais-um), Carla Sá Freire Cunha, Cristina Bezerril e Fabiano


Fernandes.

 “Aquele que produz uma obra, seja esta uma obra de arte ou não, articula os três registros.”
Stella Jimenez (1997)

A pandemia nos expropriou de nosso cotidiano, subverteu nossos laços, exigindo


distanciamento, novos hábitos e muito mais. O trabalho de cartel que seguimos construindo
ao longo dos últimos meses nasce dessa experiência de ruptura, mas também de uma
convocação a tomar de modo não apenas pragmático o uso dos recursos audiovisuais e a
presença das telas em nosso cotidiano.  São muitas vias possíveis de interrogação dentro desse
oceano digital.

Decidi recolher um pouco de uma experiência desenvolvida em minha pesquisa de pós-


doutorado em 2019, sobretudo porque também traz essa marca de uma subversão dos modos
de enlace com a vida vivida, a partir da experiência de entrada dos jovens estudantes cotistas
na universidade pública. A realização dessa pesquisa na universidade surgiu de uma
interrogação acerca da demanda generalizada por atendimento em saúde mental. E encontrou
na temática das migrações o pano de fundo, a partir dos deslocamentos exigidos pelo ingresso
de estudantes cotistas e bolsistas na universidade pública, tradicional reduto da classe média.

Migrantes de outras regiões do país, dos confins da cidade do Rio, testemunhas de tantas
travessias, esses jovens enfrentam seus próprios desafios diante da necessária remontagem de
seu cotidiano. Fragilizam-se face às novas exigências e aos impasses que se apresentam
quando “o sonho de entrar na universidade se torna um pesadelo” – uma frase ouvida de
muitos, mas que ganha sua modulação um a um. A aposta de que o mal-estar vivido e narrado
por estudantes cotistas na universidade pudesse encontrar um destino diferente do
tratamento em saúde mental, aportou em um encontro com a arte, a partir desse projeto de
pós-doutorado.

A solidão do exílio como constituinte da subjetividade, ponto de partida, enlaça esses dois
recortes que articulo. A marca dessas experiências – a pandemia e a entrada de “migrantes” na
universidade – é o encontro com uma contingência radical a exigir trabalho. Nesta
comunicação, pretendo assentar um pouco as pedras no caminho já percorrido da minha
pesquisa na universidade, à luz do caminho que ainda percorremos na pandemia, e no
trabalho de cartel.

Como propõe o nome do cartel, é entre psicanálise e arte que encontro uma possibilidade de
ler algo do que esses estudantes me ensinaram por meio de suas soluções e, sobretudo, seus
modos de elaboração apoiados na multiplicidade de suportes e discursos que o campo da arte
comporta. Revisitar esse material foi reencontrar pistas do segue me interrogando.

A psicanálise sempre se serviu da matéria que os artistas colocam no mundo, como afirmou
Freud, mas é Lacan quem acentua que não se trata de interpretar as obras de arte. São elas
que interpretam. Se a pulsão freudiana coloca na cena do mundo nossa posição de objeto, ao
mesmo tempo em que nos convida a uma posição inédita no mundo, indissociável do objeto
que lhe dá materialidade e consistência nos desfiladeiros do significante, é com Lacan que isto
se evidencia. É com o objeto a que vem reescrever a dimensão do objeto em psicanálise, ao
inscrever a satisfação pulsional no cerne de nossa existência, apoiada no objeto que o
encontro com a língua recorta para cada um.

A passagem que Lacan opera ao formular a dimensão escópica, recorta o olhar e inscreve um
plano de leitura inédito ao colocar o objeto a entre o visível e o invisível, entre semblante e
furo. Isto nos coloca no coração das questões suscitadas pela arte moderna e contemporânea
que dialogam com a psicanálise a partir da perspectiva do objeto. Recorto, portanto, no ato de
criação, a marca do objeto: de sua elevação à “dignidade da Coisa” na sublimação, à “salvação
pelos dejetos”, diante do desvanecimento do Outro.

Hoje, diante de nosso país em colapso, me vem a urgência de escrever sobre essa experiência,
pelo que ela segue escrevendo em mim. Vivemos um momento que dura demais e não pode
ser percorrido sem nos servirmos daquilo que nos engancha na vida. Porque se a morte é
certa, hoje sua precipitação é um projeto escancarado. Diante dos desmandos frente à
condução da pandemia pela COVID-19 não podemos ignorar a permanência da política
genocida de um Estado que mata à queima-roupa uma população jovem, gente preta, gente
que descobriu o caminho da universidade.

“Cada homem é um artista”, afirmou Joseph Beuys[1], para quem todo ato humano é um ato
criador. Inclassificável, Beuys é um dos mais influentes artistas da segunda metade do século
XX. Sua obra transita entre suportes diversos, elementos orgânicos, obras efêmeras,
performances. É o nome do artista que amarra toda a profusão de intervenções e objetos que
interpretam o seu tempo.

Do sublime ao dejeto, os artistas com suas próprias entranhas espalhadas por aí, colocam no
mundo objetos que inquietam, interrogam, perturbam. Somos atingidos em cheio pelo que,
estrangeiro em nós mesmos, retorna desde fora. Seguir os passos de artistas que produziram
obras em torno do tema migrações recolocou em perspectiva as inúmeras facetas da própria
experiência recolhida por cada um de nós ao longo da referida pesquisa. A pergunta que me
movia a partir das minhas inquietações – O que poderia ser possível na abordagem da
crescente demanda por “tratamento em saúde mental”, já que não se trata de psicanálise para
todos, diante do sofrimento desses estudantes? – encontrou na travessia do abismo que
separa o Instituto de Psiquiatria e a Escola de Comunicação, uma via inédita que segue me
ensinando.

Como conclusão do curso, durante o qual desenvolvi minha pesquisa, ao final de um semestre
de experimentações, realizamos uma oficina de trabalho final onde os participantes,
organizados em pequenos grupos, trouxeram suas elaborações, servindo-se dos mais diversos
suportes: fotografia, vídeo, performance, texto, desenho, colagem… As apresentações
resultaram em uma série de trabalhos, nos quais se alternavam todos e cada um nos papéis de
público, protagonista, diretor, crítico… Assisti temas dramáticos performarem-se, encarnados
em formas surpreendentes, encenados, deslocados do pathos.

Que manejo do objeto o tratamento estético oferece, dando corpo a vivências singulares, indo
além do desabafo, da queixa ou do lamento, operando sobre e a partir do vivido, indo além de
qualquer ficção? Aqui retomo a epígrafe: “Aquele que produz uma obra, seja esta uma obra de
arte ou não, articula os três registros.” No seu texto, Stella (1997) desenvolve a questão a
partir da ideia de uma “consolidação do sinthoma” de forma opaca, sem que se faça escutar a
“verdade do sinthoma” (p. 199). Nisso temos uma pista fundamental.

É evidente que o recorte que essa experiência de pesquisa na universidade oferece não se
superpõe a um trabalho de artista no sentido estrito, considerando a trajetória que cada obra
escreve enlaçando corpo e nome. No entanto, algumas pinceladas foram possíveis, além de ter
recolhido modos inéditos de construir bordas frente à inconsistência do Outro – “universidade
mãe e madrasta” – que tanto perturba e desorganiza, promovendo as demandas de
tratamento em busca de “saúde mental”.

Um dos trabalhos foi um vídeo no qual um aluno, que chamarei Pedro, foi entrevistado por
outros colegas de turma. “Sou filho de uma dona de casa e de um técnico em refrigeração,
morador da Baixada, nunca tinha vindo para a zona sul. Atravesso a metrópole para chegar
aqui. Foi um choque, duas horas e meia para chegar aqui e depois voltar para casa. […] Eu não
sabia o que era uma ciclovia, quase fui atropelado algumas vezes. […] Sou o primeiro da minha
família na universidade. Na pelada do final de semana, meus amigos me perguntam sobre a
faculdade. […] Estou aqui, não segui o caminho comum aos meus amigos, nem o caminho do
meu pai”. Nas cenas do vídeo, ele circula pelos corredores da ECO, é recebido por algum
colega em cada espaço em que chega. Ao fundo o som de “Pequenas alegrias da vida adulta
(Emicida): “Deve-se ter cuidado ao passar no trapézio / Memo que pese o desespero dos
novos tempos”. O título do trabalho é “Caxias”, que se tornou nome para Pedro na
universidade.

Referências Bibliográficas

BROUSSE, M.-H. “O objeto de arte na época do fim do belo”. In: Opção Lacaniana nº 52, São
Paulo: Eolia, 2008.

______. “O saber dos artistas”. In: Arquivos da Biblioteca nº 5. EBP-Rio: Rio de Janeiro, 2008

Jimenez, S. (1997). “Sublimação e Sintoma”. Os destinos da pulsão. EBP-RJ. Rio de Janeiro:


Contra Capa.

Lacan, J. (1964/1985). O seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Miller, J.-A. (2010). “A salvação pelos dejetos”. Correio: Revista da Escola Brasileira de
Psicanálise, 67, 21-27.

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