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Narrativas
Enviesadas
Katia Canton
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Katia Canton é PhD em artes interdis-
ciplinares pela Universidade de Nova
York e livre-docente em teoriae critica
de arte pela Escola de Comunicacoes
e Artes da Universidade de Sao Pau-
lo (ECA-USP). E professora do Museu
de Arte Contemporanea (MAC-USP],
curadora de arte e autora de varios
livros para criancas e adultos.
Narrativas
Enviesadas
Katia Canton
Digitized by the Internet Archive
in 2023 with funding from
Kahle/Austin Foundation
https://archive.org/details/narrativasenviesOO0Okati
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SAO PAULO 2009
Copyright © 2009, Editora WMF Martins Fontes Ltda.,
Sao Paulo, para a presente edicao.
1.2edicao 2009
Coordenacao editorial
Todotipo Editorial
Preparacao do original
Claudia Cantarin
Revisao grafica
Danilo Nikolaidis e Cassia Land
Projeto grafico
Noris Lima
Producao grafica
Geraldo Alves
Paginacao
Noris Lima e Thiago Nunes
Canton, Katia
Narrativas enviesadas / Katia Canton. - Sao Paulo :
Editora WMF Martins Fontes, 2009. -
(Colecao temas da arte contemporanea)
ISBN 9978-85-7827-224-1
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Apresentacao
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Antes de tudo, devo dizer que esta colecao, composta de
seis livros, presta homenagem a um projeto editorial que, a
partir dos anos 1980, marcou minha vida.
09
O projeto desta Colecao Temas da Arte Contemporanea
é resultado de uma pesquisa realizada na condicao de
professora e curadora do Museu de Arte Contempora-
nea da Universidade de Sao Paulo (MAC-USP] desde
meados dos anos 1990, quando passei a acompanhar
consistentemente o que os artistas que surgiam bus-
cavam como assuntos para emoldurar sua producao.
Também devo muitos instrumentos de pesquisa aos
anos de pratica como critica de arte, jornalista e cria-
dora de textos, poemas e imagens para livros infantis e
juvenis, muitas vezes realizados em parcerias com va-
rios desses artistas.
10
O volume inicial, Do moderno ao contemporaneo, pode
ser lido como uma introducao a colecao, preparando as
bases dos volumes seguintes: Narrativas enviesadas;
Tempo e memoria; Corpo, identidade e erotismo; Espa-
co e lugar; Da politica as micropoliticas.
Um pano de fundo
11
se tratando de arte, 6 necessario prestar atencao nos
sinais dos tempos e em Seus Significados.
12
parece esmiucar o funcionamento dos processos da vida,
desafiando-os, criando para novas possibilidades. A arte
pede um olhar curioso, livre de ‘pré-conceitos”, e repleto
de atencao.
13
Tramas fragmentadas
Sierras oe
Neste livro proponho o conceito de “narrativas envie-
sadas’ para comentar uma forma particular e contem-
poranea de contar historias.
15
uma historia, mas que se recusa a Criar uma narrativa
cujo sentido seja fechado em si mesmo, ou seja, que
possa ter linearidade.
16
A busca do novo absoluto
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17
painting (pintura de acao) de Jackson Pollock — tudo isso
fazia parte de uma necessidade de autonomia e valori-
zacao do “agora”, 0 que superaria as experiéncias das
vanguardas europeias, que dialogavam com as proprias
tradicoes historicas.
18
Esse projeto foi seguido pelos dancarinos que compunham
o grupo do Judson Dance Theater, que se iniciou em 1962
dentro da igreja protestante Judson Memorial Church, no
bairro do Village, em Nova York, com dancarinos e coreo-
grafos como Trisha Brown, Lucinda Childs, Steve Paxon,
David Gordon, Meredith Monk e Yvonne Rainer, criando,
ensaiando e apresentando suas obras a partir das pre-
missas lancadas por Cunningham.
of,
O espirito do tempo, que marcou as décadas de 1960 e
1970, foi registrado no livro Against interpretation [Contra
a interpretacao], da filosofa Susan Sontag, para quem a
arte estabelece um valor per se, suficiente em suas Ca-
racteristicas visiveis, tateis e auditivas, o que a libera de
interpretacoes criticas, implicacdes autorais e historicas.
O “Menos é mais”, slogan dessa arte analitica, é refor-
cado em uma declaracao-manifesto escrita pela coreo-
grafa e cineasta Yvonne Rainer, em 1965, e intitulada
“Manifesto de renuncia’:
20
A ideia era retirar do espectador a possibilidade de se
identificar com a narrativa. Essa estratégia se liga ao uso
de métodos anti-ilusionistas ou antinarrativos. Em arte,
ilusionismo é a capacidade de conectar o espectador em
um nivel diegético, ou seja, de identificacao e de relacio-
namento com a obra.
21
Abstracao?
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O modernismo norte-americano busca, no momento de
seu auge, 0 desenraizamento dos artificios da narrativa
do cotidiano para alocar 0 obServador em um mundo sin-
tético, puro e transcendente: o mundo da arte abstrata.
22
O coredgrafo norte-americano Merce Cunningham, por
exemplo, artista que trabalhou muitos anos com o mu-
sico John Cage, propdos-se a criar coreografias com-
pletamente abstratas explorando um modo singular de
operacao. Por meio de um acaso absoluto, Cunningham
procurou desvencilhar-se de qualquer intencao narra-
tiva a priori.
23
compostos sem a obrigatoriedade de uma hierarquia
proporcionavam liberdade, independéncia entre eles.
Eliminava-se dessa forma a possibilidade de criar uma
narrativa como resultado de uma juncao linear.
24
tavam nomes como Jasper Johns, que realizava experi-
mentos paralelos a fim de testar os limites da possibi-
lidade de criar uma arte cujo valor fosse simplesmente
ela mesma. Desviando-se do caminho transcendente
proposto pelos expressionistas abstratos, em cujos
campos de cor 0 espectador era convidado a mergulhar
livremente, Johns, entao um jovem artista, concluiu
em 1955 uma obra que gerou polémica. Intitulada Flag
[Bandeira], ela apresentava as listras e estrelas da ban-
deira norte-americana, em grande dimensao, utilizando
pintura e encaustica.
25
Experimentalismo e crise da abstracao
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A partir dos anos 1960 e 1970, nos Estados Unidos, muitos
artistas mergulham sua producao em experimentacoes
que buscam alargar os limites entre arte e nao arte.
26
deixam de se colocar numa posicao transcendente, na qual
a arte poderia se valer por si mesma, descolada dos limites
impostos pela vida real.
27
Os anos 1990
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28
A aids, 0 ebola, as gripes aviaria e suina, além de outras
doencas virais, desafiam um mundo que parecia domina-
do e controlado pela ciéncia. A fisica quantica, 0 Projeto
Genoma e as clonagens de DNA relativizam conquistas
cientificas e apresentam ao mundo uma estreita ligacao
entre arte, ciéncia e tecnologia. A internet e seus desdo-
bramentos virtuais constroem promessas de nucleos de
vida cibernéticos e reafirmam o conforto doméstico dos
contatos humanos a distancia.
29
sente em relacado a esse poder da mulher. Isso o faz
enérgico, criativo, obsessivo. E por isso que as grandes
obras artisticas, literarias, cientificas foram criadas
por homens [...] Negando luxo e glamour - condicoes
dignas da mulher -, as feministas radicais apenas pro-
vam que gostam da posicao de vitimas.
(Katia Canton, Novissima arte brasileira,
um guia de tendéncias. Sao Paulo: Iluminuras/
MAC-USP/ Fapesp, 2001. p. 19.)
30
desse tipo de comportamento esta no sucesso da revista
Caras, lancada no Brasil em 1993 pela editora Abril, segui-
da por outras publicacoes do género.
31
dos videoclipes da MTV, na comunicacao via internet, nos
painéis eletrdnicos de alta definicao, instalados estrategi-
camente nas grandes cidades, observados pela massa de
automoveis estagnada no transito. Com a fusao de corpo-
racoes, como a AOL e a Time Warner, por exemplo, ja nos
anos 1990, a informacao fica sob monopolios de poder.
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contempordanea, nao isento de tais excessos, move-se no
interior de uma densa rede que envolve 0 mercado, 0 sis-
tema de galerias e museus, as feiras nacionais e interna-
cionais, os saloes, os curadores e oS criticos, as bienais,
os colecionadores.
33
de todo o resto da producao gerada pela sociedade pos-
industrial. Essa instabilidade na arte, ao repercutir numa
sociedade marcada progressivamente pela informacao
virtual e pela engenharia genética, desnorteia e intriga.
Provoca. Nao permite mais aos artistas adotar uma postu-
ra descolada dessas redes que amarram a vida.
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Um elenco complexo e sofisticado de suportes e materiais
se abre naturalmente aos artistas, que substituem essa
preocupacao com o meio por outra, ligada ao sentido.
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e que muitas vezes emprestam a sofisticacao estrutural
e a variedade no uso de materiais dos projetos desenvol-
vidos justamente pela vanguarda modernista, que mar-
cou uma parte significativa do século XX.
36
Contando historias
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37
Spalding Gray, David Calle, Eric Bogosian, entre outros,
ocupam a cena de bares, cafés e teatros, munidos ape-
nas de seus corpos e, eventualmente, de um caderno de
anotacoes.
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Contos de fadas
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Em 1984, antes da queda do Muro de Berlim e do fim da
bipolarizacao do mundo, 0 fildsofo francés Jean-Francois
Lyotard escreveu sobre o final das metanarrativas, isto é,
das grandes narrativas (ou narrativas hegemonicas) que
fossem capazes de contar a historia do mundo.
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No final dos anos 1970, a coredgrafa alema Pina Bausch,
introdutora do tanztheatre ou danca-teatro, pos em cena o
espetaculo Barba-Azul. Nesse conto de fadas escrito por
Charles Perrault no século XVIII, narra-se a historia de um
homem muito rico que se casa repetidas vezes e da uma
vida luxuosa para suas mulheres. No entanto ele as proibe
de entrar em um quarto encantado. Cada uma das esposas
falha: sem conseguir conter a curiosidade, elas usam a cha-
ve magica, entram no quarto e sao traidas por uma mancha
de sangue que nunca mais Sai da chave.
40
versao, nao prevalece nem a versao de Perrault, a mais
conhecida, nem a dos irmaos Grimm. Marin propde uma
versao propria, em que os personagens sao bonecos de
pano. A fada madrinha é€ um boneco que se transforma
em robo, e sua carruagem é um pequeno calhambeque
conversivel que a propria Cinderela é convidada a dirigir.
Ela e o principe sao duas criancas que dancam de ma-
neira espelhada, sem a hierarquia tipica do balé classico
nem a passividade atribuida as mulheres nos tempos de
Perrault. E tudo termina com uma bem-humorada pro-
cissao de brinquedos.
41
tado ao meio e depois remendado, numa desconstrucao
levada a fisicalidade de uma tesoura cortando o papel.
Esse texto, recortado e recolado de modo aleatorio, foi
lido por um narrador em off, enquanto as trés dancarinas
criavam gestos que se colavam as palavras através de
sua sonoridade. Algumas pausas foram introduzidas no
espetaculo com a insercao de musicas folcloricas e de
deslocamentos no espaco por parte das bailarinas.
42
Imagens e palavras
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Desde o final dos anos 1960 e inicio dos anos 1970, ar-
tistas conceituais como Joseph Kosuth se apropriam
de palavras escritas em neon como obras de arte em
si. A grande questao, naquela época, era discutir a na-
tureza da arte. Para isso, Kosuth criou obras icénicas,
como € 0 caso de fourcoloursfourwords [quatrocores-
quatropalavras], em que, no texto cursivo em neon,
cada palavra tinha uma cor: verde, roxo, vermelho e
anil, respectivamente.
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Barbara Kruger amplia a estratégia de estranhamento
ou “perturbamento”, sobrepondo imagens retiradas da
midia com tarjas que lembram as usadas em caixas de
remédios. As informacoes se tensionam - ora endos-
sam, ora brigam - com as imagens, criando sentidos
ambiguos que ecoam na mente e no coracao.
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antropofago, escrito por Oswald de Andrade, é mistura-
do a um mundo de letras aleatorias, resultando em um
caca-palavras. Outra parte do manifesto se transforma
em um texto escrito ao contrario, decifrado apenas atra-
vés do espelho.
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Entrevista cor Georgia Vilela e Vitor Mizael
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mim para o trabalho, mas também acontece 0 inverso: se
estou desenhando e assistindo TV, as palavras que ouco
e chamam a minha atencao entram dentro do desenho. E
um entra e sai constante que da significado ao texto.
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Contra o fascismo do texto
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Em sua aula inaugural da cadeira de Semiologia Lite-
raria no College de France, em 7 de janeiro de 1977,
mais tarde transformada em livro, o pensador francés
Roland Barthes disse que era preciso criar mecanis-
mos capazes de sabotar a tendéncia fascista do texto.
O fascismo nao esta em impedir de dizer, mas sim em
obrigar a dizer.
50
der. Para esse pensador, “a ciéncia é grosseira, a vida
é sutil, e 6 para corrigir essa distancia que a literatura
nos importa” (p. 19).
51
Vania Mignone, A noite, 2008.
Entrevista com Vania Mignone
53
tes de tudo, tem as linhas bem delimitadas, 0 desenho.
Eu venho da xilogravura (gravura feita com madeira] e
penso muito no desenho no espaco. Me interesso muito
pelos cartazes publicitarios e pelos quadrinhos. E tam-
bém gosto muito do construtivismo russo, da visualida-
de criada nas artes graficas, logo apos a Revolucao de
1917. Também olho muito para a poesia concreta.
54
Quando é que a sua obra produz uma narrativa?
No momento em que 0 observador a vé. E no exato ins-
tante em que a pessoa pensa que esta ali, tudo é esta-
vel, mas de repente ela enxerga na obra alguma coisa
estranha que produz um incomodo...
55
Sugestoes de leitura
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Livros
BARTHES, Roland. Aula.
Trad. Leyla Perrone-Moisés.
Sao Paulo: Cultrix, 1988.
56
TUCKER, Marcia & WALLIS, Brian (orgs.) Art After
Modernism: Rethinking Representation. 7. reimpr.
Nova York/ Boston: The New Museum of Contemporary
Art and David R. Godine Publishers, 1996.
Entrevistas
Merce Cunningham. Nova York,
estudio do coredgrafo, 1989.
Entrevista para o Jornal da Tarde.
Barbara Kirshenblatt-Gimblett.
Nova York, Performance Studies Department, 1993.
57
Obras reproduzidas neste livro
Capa
Vania Mignone. Sem titulo (poliptico) (detalhe), 2007.
Acrilica sobre MDF. Cortesia Casa Triangulo.
Pagina 46
Vitor Mizael, Autorretrato, 2004.
Gravura em metal - agua-forte e 4gua-tinta. 63 x 63 cm.
Pagina 48
Georgia Vilela, Comprometida para sempre, 2006.
Caneta e tinta acrilica sobre papel. 28,5 x 30cm.
Pagina 52
Vania Mignone, A noite, 2008.
Acrilica sobre papel. 51,5 x 54 cm. Ed. unica.
Cortesia Casa Triangulo.
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Colecao Temas da Arte Contemporanea
Do moderno ao contemporaneo
Narrativas enviesadas
Tempo e memoria
Corpo, identidade e erotismo
Espaco e lugar
Da politica as micropoliticas
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978-85-7827-2
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