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Narrativas
Enviesadas

Katia Canton

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Katia Canton é PhD em artes interdis-
ciplinares pela Universidade de Nova
York e livre-docente em teoriae critica
de arte pela Escola de Comunicacoes
e Artes da Universidade de Sao Pau-
lo (ECA-USP). E professora do Museu
de Arte Contemporanea (MAC-USP],
curadora de arte e autora de varios
livros para criancas e adultos.
Narrativas
Enviesadas
Katia Canton
Digitized by the Internet Archive
in 2023 with funding from
Kahle/Austin Foundation

https://archive.org/details/narrativasenviesOO0Okati
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wmfmartinsfontes
SAO PAULO 2009
Copyright © 2009, Editora WMF Martins Fontes Ltda.,
Sao Paulo, para a presente edicao.

1.2edicao 2009

Coordenacao editorial
Todotipo Editorial
Preparacao do original
Claudia Cantarin
Revisao grafica
Danilo Nikolaidis e Cassia Land
Projeto grafico
Noris Lima
Producao grafica
Geraldo Alves
Paginacao
Noris Lima e Thiago Nunes

Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP)


(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Canton, Katia
Narrativas enviesadas / Katia Canton. - Sao Paulo :
Editora WMF Martins Fontes, 2009. -
(Colecao temas da arte contemporanea)

ISBN 9978-85-7827-224-1

1. Arte contempordanea l. Titulo. Il. Série.

09-11820 CDD-709

indice para catalogo sistematico:


1. Narrativas enviesadas: Arte contemporadnea 709

Todos os direitos desta edicdo reservados a


Editora WMF Martins Fontes Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 Sao Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042
e-mail: info(@wmfmartinsfontes.com.br
http://www.wmfmartinsfontes.com.br
Para meu editor, Alexandre,
minha assistente, Daniele Ebling,
e para meus alunos.
Também dedico este projeto
aos professores, com
respeito e admiracao.
Sumario
Pe ee
Apresentacao® 2) 2 eee ee ees San eae tS 09
Nramas fragmentadas #2222265.
2526 eee eee AS
Aibuscaido novo absoluto 5 oe eicacececsceane iW
ARUBA
ONC ID 24S oe ee eh eo iS ot tg toe 22
Experimentalismo e crise da abstracao _-........-...------ 26
OS ANOS 1990 oo eee ee eee ee ee eee ee eee ee 28
Cortando WSWONlAS:> oo. sak geen oe een eee e7
Contos detadass 2 202) eee eee ner rece eee cer nee nae 39
Imagens e'\palavrasS----.----52-22e
ence ce cers pacarenemencer 43
Entrevista com Georgia Vilela e Vitor Mizael .............-- 47
Contraofascismodotexto:----.---.5-6---
eee es seen eee 50
Entrevista com Vania Mignone ..._........-.--------------- 53
SUGSIORS U0 LOIN ACS. «cohen eee rao eeny keene oecncaes 56
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Apresentacao
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Antes de tudo, devo dizer que esta colecao, composta de
seis livros, presta homenagem a um projeto editorial que, a
partir dos anos 1980, marcou minha vida.

Um denso universo me foi descortinado por pequenos livros


de assuntos variados, que passavam do teatro né a adoles-
céncia. Todos os temas do mundo pareciam caber na di-
mensao reduzida da série Primeiros Passos, concebida por
Caio Graco Jr. na Brasiliense. Partindo do mesmo formato
de bolso e do preco acessivel (cada livro custa quase 0 mes-
mo que uma revista], resolvi criar uma colecao. Meu editor,
Alexandre Martins Fontes, apoiou a ideia. Juntos, pensamos
numa colecao com temas sobre os quais tenho me debru-
cado ha anos em minha pesquisa académica: os desdobra-
mentos entre a arte contemporanea e 0 mundo atual.

Gostaria de frisar que hoje a arte faz por si so essa apro-


ximacao, misturando cada vez mais questoes artisticas,
estéticas e conceituais aos meandros do cotidiano, em
todas as instancias: 0 corpo, a politica, a ecologia, a ética,
as imagens geradas na midia etc.

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O projeto desta Colecao Temas da Arte Contemporanea
é resultado de uma pesquisa realizada na condicao de
professora e curadora do Museu de Arte Contempora-
nea da Universidade de Sao Paulo (MAC-USP] desde
meados dos anos 1990, quando passei a acompanhar
consistentemente o que os artistas que surgiam bus-
cavam como assuntos para emoldurar sua producao.
Também devo muitos instrumentos de pesquisa aos
anos de pratica como critica de arte, jornalista e cria-
dora de textos, poemas e imagens para livros infantis e
juvenis, muitas vezes realizados em parcerias com va-
rios desses artistas.

Como diz o titulo da colecao, nestes livros estao refle-


tidos os principais assuntos que definem o mundo con-
temporaneo e que sao espelhados na arte. Os volumes
foram concebidos como mediacao entre teorias, fatos,
pensamento dos artistas (na forma de entrevistas] e o
leitor, formado de professores, artistas, educadores,
alunos e (por que nao?) curiosos —- muito bem-vindos.
Para tornar a mediacao mais fluida e propor uma apro-
ximacao entre a arte e todas as pessoas, evitei 0 uso de
termos especificos do universo artistico.

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O volume inicial, Do moderno ao contemporaneo, pode
ser lido como uma introducao a colecao, preparando as
bases dos volumes seguintes: Narrativas enviesadas;
Tempo e memoria; Corpo, identidade e erotismo; Espa-
co e lugar; Da politica as micropoliticas.

Vocé, leitor, percebera que todos os temas estao conec-


tados nos volumes da colecao e que, sobrepostos, es-
pelham a complexa rede na qual se emaranha 0 mundo
atual. Para organizar essa rede, busquei desenvolver
cada tema num livro, mas sem criar uma sequéncia rigi-
da: vocé pode decidir comecar a leitura por um ou outro
volume.

Um pano de fundo

Nos anos 1960, ja dizia 0 critico brasileiro Mario Pedro-


Sa quea arte €0 exercicio experimental da liberdade”.
Acredito que é uma definicao poderosa, sobretudo se
considerarmos que 0 conceito de liberdade depende de
um contexto para se definir. O que é€ considerado um
ato ou pensamento de liberdade em determinado mo-
mento histdrico pode nado ser em outro. Por isso, em

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se tratando de arte, 6 necessario prestar atencao nos
sinais dos tempos e em Seus Significados.

E para que serve a arte? Para comecar, podemos dizer


que ela provoca, instiga e estimula nossos sentidos,
descondicionando-os, isto é, retirando-os de uma or-
dem preestabelecida e sugerindo ampliadas possibili-
dades de viver e de Se organizar no mundo.

Para ilustrar essa ideia, cito um trecho do poema Uma


didatica da invencao”, de Manoel de Barros.

Desaprender oito horas por dia ensina OS principios.


lech
As coisas nao querem mais ser vistas por
pessoas razoavels:
Elas desejam ser olhadas de azul -
que nem uma crianca que vocé olha de ave.
(O livro das ignoracas.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.)

A arte ensina justamente a desaprender os principios das


obviedades que sao atribuidas aos objetos, as coisas. Ela

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parece esmiucar o funcionamento dos processos da vida,
desafiando-os, criando para novas possibilidades. A arte
pede um olhar curioso, livre de ‘pré-conceitos”, e repleto
de atencao.

Mas, ao mesmo tempo que se nutre da subjetividade,


ha outra importante parcela da compreensao da arte
que € constituida de conhecimento objetivo envolvendo
a historia da arte e da vida, para que com esse ma-
terial seja possivel estabelecer um grande numero de
relacoes. Assim, a fim de contar essa historia de modo
potente, efetivo, a arte precisa ser repleta de verdade.
Precisa conter o espirito do tempo, refletir visao, pen-
samento, sentimento de pessoas, tempos e espacos.

Katia Canton 6 PhD em Artes Interdisciplinares pela


New York University, livre-docente em Teoria e Criti-
ca de Arte pela ECA-USP. E professora-associada do
MAC-USP, curadora de arte e autora de
varios livros envolvendo arte e literatura.

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Tramas fragmentadas
Sierras oe
Neste livro proponho o conceito de “narrativas envie-
sadas’ para comentar uma forma particular e contem-
poranea de contar historias.

A modernidade do século XX, com suas propostas de


vanguarda que libertaram a arte da representacao do
real e desembocaram na geometrizacao e na simplifi-
cacao formal até a abstracao, modificou nossa nocao de
narrativa ou estruturacao de uma obra ou um texto.

As narrativas enviesadas contemporaneas também con-


tam historias, mas de modo nao linear. No lugar do co-
meco-meio-fim tradicional, elas se compoem a partir de
tempos fragmentados, sobreposicoes, repeticoes, des-
locamentos. Elas narram, porém nao necessariamente
resolvem as proprias tramas.

Na pratica, a ideia é discutir uma producao artistica


que surge no cenario internacional, incluindo o Brasil,
sobretudo a partir de meados dos anos 1990. Trata-se
de um tipo de obra ou texto que da indicios de contar

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uma historia, mas que se recusa a Criar uma narrativa
cujo sentido seja fechado em si mesmo, ou seja, que
possa ter linearidade.

16
A busca do novo absoluto
REE AER EE

Para entender melhor esse conceito, vamos retroceder


ao periodo subsequente a Segunda Guerra Mundial,
quando as experiéncias de vanguarda chegam aos Es-
tados Unidos. Os Estados Unidos, em especial a cidade
de Nova York, tornam-se efervescentes com a presen-
ca de muitos artistas europeus de vanguarda que ali
se refugiam. Nasce nesse cenario 0 movimento do ex-
pressionismo abstrato.

Trata-se de um momento de emancipacao da arte nor-


te-americana: uma arte criada no Novo Mundo e que
busca um “novo absoluto”, desancorado de qualquer
tradicado ou comprometimento com a historia e suas
cargas de passado. Essa postura equivale ao abandono
da hegemonia europeia, com sua memoria e historia.

As pinceladas livres de William de Kooning; as imensas


telas monocromaticas de Barnett Newman, responsa-
vel pelo encontro com o sublime através da criacao de
campos de cor; a valorizacao do tempo presente em mo-
vimentos de pinceladas e drippings (respingos) na action

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painting (pintura de acao) de Jackson Pollock — tudo isso
fazia parte de uma necessidade de autonomia e valori-
zacao do “agora”, 0 que superaria as experiéncias das
vanguardas europeias, que dialogavam com as proprias
tradicoes historicas.

Um artista como Pollock, emblematico da pintura de


acao, demonstrava que a acao da pintura, isto €, o que
esta sendo feito naquele instante, justifica a natureza
de toda a construcao pictorica. A ideia de uma acao
presente, desvinculada de qualquer intencao de narra-
tiva ou de inclusao na historia, busca apagar 0 passado
hegemé6nico europeu a fim de salientar o conceito de
arte per se (por si so).

Essa nocao, legitimada por criticos norte-americanos


importantes, sobretudo Clement Greenberg, comecou
a ser testada e levada a outras direcoes pelas proxi-
mas geracoes. No cenario norte-americano dos anos
1960-1970, o movimento do minimalismo propunha: “Me-
nos é mais”. Isso correspondia, na danca do coredgrafo
Merce Cunningham, a incorporacao do acaso, a economia
de gestos ou a possibilidade de dancar sem musica.

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Esse projeto foi seguido pelos dancarinos que compunham
o grupo do Judson Dance Theater, que se iniciou em 1962
dentro da igreja protestante Judson Memorial Church, no
bairro do Village, em Nova York, com dancarinos e coreo-
grafos como Trisha Brown, Lucinda Childs, Steve Paxon,
David Gordon, Meredith Monk e Yvonne Rainer, criando,
ensaiando e apresentando suas obras a partir das pre-
missas lancadas por Cunningham.

A musica serial de Steve Reich e Philip Glass sintetizam


uma arte emblematica de negacao - uma arte analitica,
que reage a narrativa, ao academicismo, ao drama e ao
expressionismo, realcando os aspectos formais e fun-
cionais da arte, materializando uma preocupacao com
a abstracao, a austeridade e a nocao democratizante de
que qualquer um pode ser artista’.

Esse despojamento liga-se a uma atitude politica de rea-


Cao nao sO aos exageros propostos pelo consumismo
do American way of life, que ganha forca a partir do
final da Segunda Guerra Mundial, mas também como
reacao a atuacao norte-americana na Guerra do Vietna
(1954-75}, que provocou muitas mortes e destruicao.

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O espirito do tempo, que marcou as décadas de 1960 e
1970, foi registrado no livro Against interpretation [Contra
a interpretacao], da filosofa Susan Sontag, para quem a
arte estabelece um valor per se, suficiente em suas Ca-
racteristicas visiveis, tateis e auditivas, o que a libera de
interpretacoes criticas, implicacdes autorais e historicas.
O “Menos é mais”, slogan dessa arte analitica, é refor-
cado em uma declaracao-manifesto escrita pela coreo-
grafa e cineasta Yvonne Rainer, em 1965, e intitulada
“Manifesto de renuncia’:

Nao ao espetaculo nao ao virtuosismo nao a trans-


formacao e magia e ao faz de conta nao ao glamour
e a transcendéncia da imagem da estrela nao ao he-
roico nao ao anti-heroico nao ao lixo metafora nao
ao envolvimento do interprete ou do espectador nao
ao estilo nao ao camp nao a seducao do espectador
pelos artificios do intérprete nao a excentricidade
nao ao mover ou comover nao a ser movido ou co-
movido.
(Extraido de Katia Canton, Novissima arte brasileira,
um guia de tendéncias. Sao Paulo: Iluminuras/
MAC-USP/ Fapesp, 2001. p. 19.)

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A ideia era retirar do espectador a possibilidade de se
identificar com a narrativa. Essa estratégia se liga ao uso
de métodos anti-ilusionistas ou antinarrativos. Em arte,
ilusionismo é a capacidade de conectar o espectador em
um nivel diegético, ou seja, de identificacao e de relacio-
namento com a obra.

Na introducao do livro Art After Modernism: Rethinking


Representation, Brian Wallis fala nas politicas de repre-
sentacao e na capacidade reveladora da obra de arte de
apresentar significado, mesmo quando nao ha Linearidade,
como é 0 caso de boa parte da producao contemporanea.

21
Abstracao?
Sah
O modernismo norte-americano busca, no momento de
seu auge, 0 desenraizamento dos artificios da narrativa
do cotidiano para alocar 0 obServador em um mundo sin-
tético, puro e transcendente: o mundo da arte abstrata.

E certo que toda obra de arte é por si s6 uma abstracao.


Um dos artistas que demonstraram isso com precisao
foi o belga René Magritte. Em A traicao das imagens
(1928-29], sob uma pintura que exibe um cachimbo, lé-
se a frase: “Isto nao € um cachimbo”. A grosso modo,
Magritte quer dizer que aquele cachimbo é a represen-
tacao do objeto cachimbo por meio da arte.

Os artistas de vanguarda que produziram a abstracao bus-


cavam, por sua vez, o fim da arte como representacao de
algo fora dela mesma. Isto é, almejavam a abstracao pura,
sem equivaléncias na realidade. Mas seria possivel a per-
cepcao humana olhar uma tela pintada sem fazer, a partir
dela, nenhuma associacao com as bagagens da historia
pessoal, da memoria, sem a associacao que todos nos
produzimos com as questoes da vida?

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O coredgrafo norte-americano Merce Cunningham, por
exemplo, artista que trabalhou muitos anos com o mu-
sico John Cage, propdos-se a criar coreografias com-
pletamente abstratas explorando um modo singular de
operacao. Por meio de um acaso absoluto, Cunningham
procurou desvencilhar-se de qualquer intencao narra-
tiva a priori.

Em primeiro lugar, muitas de suas coreografias eram


compostas mediante sorteios de gestos, que eram co-
lados como num livro de consultas de | Ching. Outro
elemento importante de suas obras era a ocupacao nao
linear do espaco do palco pelos bailarinos, que preen-
chem a frente, os fundos e as laterais, desrespeitando a
estrutura linear do palco italiano, em que os bailarinos
costumam Se virar para a frente.

A maneira como Cunningham propunha as colaboracoes


também se concretizava de forma impar: 0 coredgrafo, o
musico, 0 artista responsavel pelos figurinos e cena-
rios, cada um trabalhava do seu modo, no seu tempo,
sem nenhum conhecimento do trabalho do colega até
o dia da apresentacao inaugural. Assim, os elementos

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compostos sem a obrigatoriedade de uma hierarquia
proporcionavam liberdade, independéncia entre eles.
Eliminava-se dessa forma a possibilidade de criar uma
narrativa como resultado de uma juncao linear.

Em 2007, na California, a Merce Cunningham Dance


Company realizou um experimento explorando percep-
cao e acaso: durante a apresentacao, os espectadores
receberam um aparelho iPod, de forma que cada mem-
bro da plateia poderia escolher as musicas para a ges-
tualidade dos bailarinos.

Em uma entrevista que realizei com Merce Cunningham


em 1989, em seu estudio em Nova York, ele explicou que,
mesmo com todas as estratégias criadas para atingir
uma abstracao capaz de subverter a narrativa, o publico
muitas vezes tendia a atribuir sentidos proprios ao modo
como 0 som, os gestos e a luz se combinam. Isto é, de
formas singulares, os espectadores acabam retirando
dos espetaculos uma narrativa.

Enquanto Cunningham e Cage desenvolviam esse méto-


do de trabalho, nas artes visuais dos anos 1950 despon-

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tavam nomes como Jasper Johns, que realizava experi-
mentos paralelos a fim de testar os limites da possibi-
lidade de criar uma arte cujo valor fosse simplesmente
ela mesma. Desviando-se do caminho transcendente
proposto pelos expressionistas abstratos, em cujos
campos de cor 0 espectador era convidado a mergulhar
livremente, Johns, entao um jovem artista, concluiu
em 1955 uma obra que gerou polémica. Intitulada Flag
[Bandeira], ela apresentava as listras e estrelas da ban-
deira norte-americana, em grande dimensao, utilizando
pintura e encaustica.

A simples apresentacao da bandeira, sem nenhum co-


mentario extra, assim como 0 incOmodo e a atracao gera-
dos pela obra nos espectadores, deixaram claro 0 fato de
que é inevitavel que uma imagem contenha indices cultu-
rais e esteja necessariamente mergulhada em implica-
ces sociopoliticas e ideoldgicas. Flag abre caminho para
a arte pop e atesta inexoravelmente o poder das imagens
midiaticas de gerar narrativas proprias.

25
Experimentalismo e crise da abstracao
VE
Ss
A partir dos anos 1960 e 1970, nos Estados Unidos, muitos
artistas mergulham sua producao em experimentacoes
que buscam alargar os limites entre arte e nao arte.

Dancar em superficies verticais, nas paredes de prédios,


como fez a coredgrafa Trisha Brown, parecia muito mais
interessante do que se apresentar no palco de um teatro,
por exemplo.

Porém, por conta de experimentalismos que buscavam um


alargamento cada vez maior de limites, instaurou-se uma
sensacao de hermetismo entre os artistas e o publico. Esse
cenario acabou colaborando para o afastamento do publico,
que muitas vezes se sentia desconfortavel, com dificuldade
de compreender as obras.

Como resposta, no decorrer do tempo, em especial a partir


da década de 1980, muitos artistas sentem necessidade de
se reaproximar da realidade e do publico e retomam a ideia
de narrativa. Eles passam a buscar uma producao que se
relacione diretamente com os fatos e movimentos da vidae

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deixam de se colocar numa posicao transcendente, na qual
a arte poderia se valer por si mesma, descolada dos limites
impostos pela vida real.

Outro elemento a ser levado em consideracao € 0 mercado.


Depois de algumas décadas experimentando dancar sem
musica ou realizar performances que nao podiam ser co-
mercializadas, os artistas percebem a necessidade de vi-
ver do proprio trabalho, expondo novamente em galerias,
apresentando-se em teatros e em casas de espetaculos.

Em oposicao as experiéncias das vanguardas norte-ame-


ricanas, 0 uso consistente da narrativa tornou-se progres-
sivamente uma ancora para a representacao contempora-
nea. Adécada de 1980 - chamada nos Estados Unidos deera
republicana de Reagan e Bush [pai], ou de era dos yuppies
[jovens urbanos que enriqueceram com o mercado finan-
ceiro) - substitui as experiéncias da vanguarda e 0 senso
de comunidade artistica pelo recrudescimento do consu-
mismo e o fascinio pela opuléncia, ilustrado em seriados
de televisdo norte-americanos, como Dallas (1978-91) e Di-
nastia (1981-89). Nesses anos, o refrao minimalista Menos
é mais” é trocado pela maxima de que “Mais é mais”.

27
Os anos 1990
ae ae

O periodo de transicao entre os anos 1980 e 1990 anuncia


mudancas no panorama internacional. Elas terao forte
impacto na formacao artistica da nova geracao e passa-
rao a compor as bases para um novo mundo - um mundo
de excessos, que despreza a nocao de privacidade, a qual
é substituida pela busca de celebridade. Um mundo que
estetiza a violencia, anestesiando nossos Sentidos, e que
transforma a informacao em uma comodidade descarta-
vel, com poucos resquicios de memoria.

Nesse mundo, o sistema de corporacoes e 0 anonimato


reestruturam as relacoes sobre um terreno globalizado. A
queda do Muro de Berlim ea derrocada do comunismo rea-
justam as estruturas politicas em favor do neoliberalismo.

Os problemas ecologicos passaram a fazer parte da rede


de interesses econdmicos do Primeiro Mundo. A crise am-
biental, ditada pelo crescimento de poluentes; o aqueci-
mento generalizado e gradual do planeta e a iminéncia de
escassez de agua potavel a médio prazo fazem da ecologia
a palavra de ordem de grupos da sociedade civil e ONGs.

28
A aids, 0 ebola, as gripes aviaria e suina, além de outras
doencas virais, desafiam um mundo que parecia domina-
do e controlado pela ciéncia. A fisica quantica, 0 Projeto
Genoma e as clonagens de DNA relativizam conquistas
cientificas e apresentam ao mundo uma estreita ligacao
entre arte, ciéncia e tecnologia. A internet e seus desdo-
bramentos virtuais constroem promessas de nucleos de
vida cibernéticos e reafirmam o conforto doméstico dos
contatos humanos a distancia.

Uma nova espiritualidade, impulsionada pelos finais de sé-


culos e de milénio, assume contornos diversos por meio
de pensamentos e atitudes da new age. Numa onda neo-
conservadora, revaloriza-se a familia e nasce o pos-femi-
nismo, encabecado pela norte-americana Camile Paglia.
Em entrevista que realizei com ela em 1991, as diferencas
de género sao enfatizadas:

Intrinsecamente, a mulher é superior - todo ser huma-


no sai do ventre de uma mulher. Percebendo Isso, 0 ho-
mem passa a vida toda tentando superar sua limitacao.
Seu corpo carrega uma ansiedade bioldgica latente
que o faz desafiar o mundo para vencer a opressao que

29
sente em relacado a esse poder da mulher. Isso o faz
enérgico, criativo, obsessivo. E por isso que as grandes
obras artisticas, literarias, cientificas foram criadas
por homens [...] Negando luxo e glamour - condicoes
dignas da mulher -, as feministas radicais apenas pro-
vam que gostam da posicao de vitimas.
(Katia Canton, Novissima arte brasileira,
um guia de tendéncias. Sao Paulo: Iluminuras/
MAC-USP/ Fapesp, 2001. p. 19.)

A importancia dada a moda, ao mundo das aparéncias e


“atitudes”, em conjuncao com uma tecnologia sofisticada
de cirurgias plasticas, implantes, aparelhos de ginastica,
vitaminas e outras substancias quimicas, ao lado da pos-
sibilidade de modificacoes genéticas que se abre com os
sequenciamentos cromossomicos, faz do corpo um campo
de experimentacoes futuristas.

Culturalmente, a busca de originalidade e experimenta-


coes, que caracterizou a vanguarda modernista do século
XX, € substituida pela busca de fama e celebridade, numa
transferéncia do foco das preocupacoes e olhares — da pro-
ducao para o produtor, da obra para o autor. Um exemplo

30
desse tipo de comportamento esta no sucesso da revista
Caras, lancada no Brasil em 1993 pela editora Abril, segui-
da por outras publicacoes do género.

No contexto econdmico, o desgaste dos mercados pri-


meiro-mundistas e as demandas de expansao ditadas
pelo corporativismo e pela globalizacao impulsionam a
conquista de mercados alternativos, com o uso de discur-
sos politicamente corretos” e a ativacao de termos como
“transculturalidade”
e multiculturalismo”.Este Ultimo, de
acordocom aantropologa Barbara Kirshenblatt-Gimblett,
torna-se um codigo para a palavra ‘etnia” (1993), ao mes-
mo tempo que guerras étnicas explodem em meio aos Li-
mites da nova geografia mundial.

As guerras e as necessidades politicas e econdmicas pro-


vocam um fluxo geografico internacional e, como conse-
quéncia, os deslocamentos humanos instauram uma nova
nocao de identidade e de nacionalidade. O espaco flexivel e
instavel, emblematico da era global, expande-se num tempo
também marcado por instabilidade e fragmentacao de infor-
macoes e por excesso de imagens e estimulos de multiplas
naturezas. Tempo e espaco se redefinem na linguagem

31
dos videoclipes da MTV, na comunicacao via internet, nos
painéis eletrdnicos de alta definicao, instalados estrategi-
camente nas grandes cidades, observados pela massa de
automoveis estagnada no transito. Com a fusao de corpo-
racoes, como a AOL e a Time Warner, por exemplo, ja nos
anos 1990, a informacao fica sob monopolios de poder.

A esse panorama soma-se uma ideia fundamental para a


producao artistica que se desenvolve nos anos 1990: a ori-
ginalidade da criacao 6 um mito modernista. A afirmacao,
discutida pela critica norte-americana Rosalind Krauss
no livro The Originality of the Avant-Garde Art and Other
Modernist Myths, difunde-se com as nocoes e praticas
pos-modernas, ligadas a uma atracao pelo passado, pela
memoria, pelas convencoes e clichés. Segundo Krauss, a
busca de originalidade e autenticidade esta sendo progres-
sivamente engolida e perde, assim, seu lugar e sentido em
um mundo gerado pela informacao midiatica e pela repro-
dutibilidade virtual.

Nesse contexto historico, numerosos debates sobre uma


“crise da arte” se instauraram numa sociedade bom-
bardeada por excessos de toda sorte. O mundo da arte

32
contempordanea, nao isento de tais excessos, move-se no
interior de uma densa rede que envolve 0 mercado, 0 sis-
tema de galerias e museus, as feiras nacionais e interna-
cionais, os saloes, os curadores e oS criticos, as bienais,
os colecionadores.

A propria definicao de arte, nesse momento, esta mergu-


(hada numa condicao de estranhamento e instabilidade,
gerada durante o percurso historico das experimenta-
coes postas em pratica por artistas do século XX. Isso
ocorre sobretudo apos as pesquisas do francés Marcel
Duchamp, que no inicio do século XX incorporou ao uni-
verso artistico a nocao de ready-made.

Durante o desenvolvimento da arte conceitual, nos anos


1960 e 1970, Duchamp enfatiza o processo e as propostas
artisticas em lugar dos “produtos”, validando como arte
objetos como uma bula, um cartao-postal, um biscoito,
uma copia xerografica. Nesse processo, e na incorpora-
cao de meios virtuais e tecnoldgicos, a producao artistica
proliferou a tal ponto que se perderam de vista os limites
que delimitavam o universo artistico. A high art (expressao
que pode ser traduzida como “belas-artes’} foi separada

33
de todo o resto da producao gerada pela sociedade pos-
industrial. Essa instabilidade na arte, ao repercutir numa
sociedade marcada progressivamente pela informacao
virtual e pela engenharia genética, desnorteia e intriga.
Provoca. Nao permite mais aos artistas adotar uma postu-
ra descolada dessas redes que amarram a vida.

Os artistas contemporaneos nao podem compartilhar


uma atitude modernista, que buscava na arte uma res-
posta transcendente, abstrata e sintética, acima das coi-
sas que formam a complexa tessitura do mundo real.
A arte nao redime mais. E os artistas contempordneos
incorporam e comentam a vida em suas grandezas e pe-
quenezas, em seus potenciais de estranhamento e em
suas banalidades.

No Brasil, logo apos a efervescéncia da pintura institul-


da pela Geracao 80, discutiu-se e polemizou-se a “morte
tedrica da pintura”. Porém a geracao seguinte nao coube
mais discutir questoes relativas aos suportes.

A pintura nao morreu, tampouco a escultura. Juntaram-se


a elas instalacoes, objetos, textos, internet e outros meios.

34
Um elenco complexo e sofisticado de suportes e materiais
se abre naturalmente aos artistas, que substituem essa
preocupacao com o meio por outra, ligada ao sentido.

Artistas contemporaneos buscam sentido. Um sentido


que pode estar alicercado em preocupacoes formais -
intrinsecas a arte e que se sofisticaram com o desenvol-
vimento dos projetos modernistas do século XX -, mas
que finca seus valores na compreensao [e na apreensao]
da realidade, infiltrada dos meandros da politica, da eco-
nomia, da ecologia, da educacao, da cultura, da fantasia,
da afetividade.

Em vez de uma arte per se, potente em si mesma, capaz


de transcender os limites da realidade, a arte contempo-
ranea penetra as questoes cotidianas, espelhando e re-
fletindo exatamente aquilo que diz respeito a vida.

O tempo e a memoria; 0 corpo, a identidade e o erotismo;


0 espaco eo lugar; as micropoliticas - tudo isso é tema de
inquietacao para a geracao atual. Esses temas se estru-
turam a partir de arranjos formais e de construcoes con-
ceituais que formam narrativas nao lineares, enviesadas,

35
e que muitas vezes emprestam a sofisticacao estrutural
e a variedade no uso de materiais dos projetos desenvol-
vidos justamente pela vanguarda modernista, que mar-
cou uma parte significativa do século XX.

A producao contemporanea nao é de negacao, como foi


a producao moderna de vanguarda. As experimentacoes
do século XX foram apreendidas e incorporadas, injeta-
das, no entanto, dessa busca de sentido, que se liga as
especificidades de um novo contexto sdcio-historico.

Elementos herdados do modernismo - a abstracao, a va-


lorizacao dos aspectos formais da obra de arte, a nao line-
aridade das estruturas de pensamento, a valorizacao dos
mecanismos que compoem os processos de concepcao
de uma obra - foram incorporados pela arte contempo-
ranea, que, por sua vez, a eles acrescenta uma relacao de
sentido, significado ou mensagem, criando, nos proces-
sos aglutinadores da obra contemporanea, uma narrativa
fragmentada, indireta, que desconstrdi as possibilidades
de uma leitura unica e linear.

36
Contando historias
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As palavras e seus sentidos, a memoria, a heranca e a tra-


dicao sao elementos que passam a Ser revalorizados num
mundo inundado por imagens fosforescentes, propagadas
incessantemente pela midia. Eles formam uma narrativa
que incorpora sobreposicoes, fragmentacoes, repeticoes,
simultaneidade de tempo e espaco - enfim, todo 0 jogo que
pode fornecer elementos para a criacao de uma obra de
sentido aberto, que se constroi durante a relacao com o
outro, com o publico, com o leitor, com o observador.

No momento em que Se perde a confianca no excesso de


imagens que varre 0 mundo, contar historias se transfor-
ma em um Jeito de se aproximar do outro e, na troca entre
ambos, de gerar sentido em si e nesse outro.

Essa estratégia de aumento do interesse pelo storytelling


(ato de contar historias) comecou no final dos anos 1980
e inicio dos anos 1990. Em Nova York, proliferam desde
esSa época espacos alternativos que recebem todo tipo
de contadores de historias. Vive-se ali uma explosao do
storytelling.

37
Spalding Gray, David Calle, Eric Bogosian, entre outros,
ocupam a cena de bares, cafés e teatros, munidos ape-
nas de seus corpos e, eventualmente, de um caderno de
anotacoes.

Laurie Anderson é outra referéncia de storytelling. Trata-


se, porém, de uma contadora de historias que se equipa
de toda a tecnologia disponivel, com distorcoes de voz,
projecoes de imagens e outras estratégias imagéticas
para construir criticas irdnicas a sociedade americana
em espetaculos que constituem bizarros talk-shows. Os
mais conhecidos sao O Superman (1981), United States
(1984) e Home of the brave (1986).

38
Contos de fadas
Be 12 bi SY
Em 1984, antes da queda do Muro de Berlim e do fim da
bipolarizacao do mundo, 0 fildsofo francés Jean-Francois
Lyotard escreveu sobre o final das metanarrativas, isto é,
das grandes narrativas (ou narrativas hegemonicas) que
fossem capazes de contar a historia do mundo.

Hoje, no lugar das metanarrativas temos as pequenas


historias, que sao contadas e recontadas de formas
muito singulares. Escorregando e reconstruindo em
meio ao mundo onde tempo e espaco se refazem mutua-
mente, procuramos ressignificar o mundo por intermé-
dio das historias.

Para criar suas narrativas enviesadas, uma das estraté-


gias dos artistas contemporaneos é 0 uso de contos de
fadas. Essas historias paradigmaticas do mundo ociden-
tal sao conhecidas o suficiente para poderem ser frag-
mentadas, repetidas, desconstruidas e viradas do avesso
pelos artistas. Nao ha risco de que a identificacao com o
espectador ou leitor desapareca, considerando-se a po-
pularidade de que sao revestidas.

39
No final dos anos 1970, a coredgrafa alema Pina Bausch,
introdutora do tanztheatre ou danca-teatro, pos em cena o
espetaculo Barba-Azul. Nesse conto de fadas escrito por
Charles Perrault no século XVIII, narra-se a historia de um
homem muito rico que se casa repetidas vezes e da uma
vida luxuosa para suas mulheres. No entanto ele as proibe
de entrar em um quarto encantado. Cada uma das esposas
falha: sem conseguir conter a curiosidade, elas usam a cha-
ve magica, entram no quarto e sao traidas por uma mancha
de sangue que nunca mais Sai da chave.

Pina Bausch explora a trilha sonora da opera O castelo


de Barba-Azul, do compositor hungaro Béla Bartok, que
é acionada em um gravador em plena cena. O chao do es-
petaculo é recoberto por folhas secas, e os protagonis-
tas, Barba-Azul e sua esposa, sao envolvidos em jogos
gestuais repetitivos, exaustivos, espelhados em outros
dancarinos: assim, os papéis de vitima e algoz constan-
temente se alternam e se confundem.

Na década de 1980, a francesa Maguy Marin cria, sob


encomenda do Lyon Opera Ballet, uma Cinderela esque-
matica, desprovida de romantismo ou pieguice. Nessa

40
versao, nao prevalece nem a versao de Perrault, a mais
conhecida, nem a dos irmaos Grimm. Marin propde uma
versao propria, em que os personagens sao bonecos de
pano. A fada madrinha é€ um boneco que se transforma
em robo, e sua carruagem é um pequeno calhambeque
conversivel que a propria Cinderela é convidada a dirigir.
Ela e o principe sao duas criancas que dancam de ma-
neira espelhada, sem a hierarquia tipica do balé classico
nem a passividade atribuida as mulheres nos tempos de
Perrault. E tudo termina com uma bem-humorada pro-
cissao de brinquedos.

O espetaculo A menina sem mdos (1988), do grupo nor-


te-americano de danca-teatro Kinematic, € baseado na
historia de mesmo nome escrita pelos irmaos Grimm no
século XIX. O conto narra a trajetoria de uma menina ofe-
recida ao diabo por seu pai, que se vé obrigado a cortar
fora as maos da filha. Depois de um longo processo, do-
loroso e rico de maturacao, a menina vé suas maos cres-
cerem novamente.

As dancarinas do grupo Kinematic encenaram a historia


de forma austera e enviesada. O texto da historia foi cor-

41
tado ao meio e depois remendado, numa desconstrucao
levada a fisicalidade de uma tesoura cortando o papel.
Esse texto, recortado e recolado de modo aleatorio, foi
lido por um narrador em off, enquanto as trés dancarinas
criavam gestos que se colavam as palavras através de
sua sonoridade. Algumas pausas foram introduzidas no
espetaculo com a insercao de musicas folcloricas e de
deslocamentos no espaco por parte das bailarinas.

O estranhamento do espetaculo A menina sem mdos se


completa com o fato de que, apesar de explorar um tex-
to todo fragmentado, é possivel perceber a narrativa da
historia.

42
Imagens e palavras
Sea,
Desde o final dos anos 1960 e inicio dos anos 1970, ar-
tistas conceituais como Joseph Kosuth se apropriam
de palavras escritas em neon como obras de arte em
si. A grande questao, naquela época, era discutir a na-
tureza da arte. Para isso, Kosuth criou obras icénicas,
como € 0 caso de fourcoloursfourwords [quatrocores-
quatropalavras], em que, no texto cursivo em neon,
cada palavra tinha uma cor: verde, roxo, vermelho e
anil, respectivamente.

Na década de 1980, na producao de artistas como a


norte-americana Jenny Holzer, as palavras tornam-se
instalacoes e sao combinadas em frases provocativas,
perturbadoras. O que se passa nao é mais a discussao
sobre arte como a tonica do trabalho, mas sim 0 sen-
tido da propria existéncia humana, com suas idiossin-
crasias e estranhamentos. Nas frases de Holzer, mui-
tas vezes compostas como instalacoes que dialogam
com os espacos ao redor, o sentido nao é dado: ele se
forma invariavelmente com as referéncias de vida do
observador-leitor.

43
Barbara Kruger amplia a estratégia de estranhamento
ou “perturbamento”, sobrepondo imagens retiradas da
midia com tarjas que lembram as usadas em caixas de
remédios. As informacoes se tensionam - ora endos-
sam, ora brigam - com as imagens, criando sentidos
ambiguos que ecoam na mente e no coracao.

A inglesa Tracey Emin, que faz transbordar as frontei-


ras entre o publico e o privado, anuncia em neon uma
frase que seria intima: “Eu beijo voce”.

Shirin Neshat grava em seu corpo a escrita iraniana,


fazendo da pele um territorio de confronto entre cultu-
ra e desejo, género e geografia.

A artista brasileira Rosana Ricalde usa em suas obras


desenhos, esculturas-objeto e instalacoes e empreende
investigacoes detalhadas sobre as possibilidades de per-
cep¢ao e recepcao das palavras na construcao dos sen-
tidos. Seu trabalho se constitui, na maioria das vezes, de
jogos instigantes que partem de textos de grandes escri-
tores e pensadores, transformando-os em construcoes
formais impecaveis. Numa de suas obras, 0 Manifesto

44
antropofago, escrito por Oswald de Andrade, é mistura-
do a um mundo de letras aleatorias, resultando em um
caca-palavras. Outra parte do manifesto se transforma
em um texto escrito ao contrario, decifrado apenas atra-
vés do espelho.

Com o romance Ensaio sobre a cegueira [1995], de


José Saramago, Rosana Ricalde criou um labirinto de
palavras, extraindo do livro todas as ocorréncias das
palavras ‘cego” e ‘cegueira’. Da obra As palavras eas
coisas, de Michel Foucault (1966), ela recortou justa-
mente os trechos em que aparecia o termo ‘palavras”
e com eles revestiu cubos.

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Vitor Mizael, Autorretrato, 2004.

46
Entrevista cor Georgia Vilela e Vitor Mizael

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Georgia Vilela, Comprometida para sempre, 2006.

Katia Canton: Roland Barthes disse que, diferentemente


da obra, o texto recusa uma significacao unica e que tem
um estatuto de enunciacao, por isso usa nao so a obra
literaria, mas todos os produtos da pratica significante.
O que vocés acham dessa ideia?

Georgia: E exata. O texto € sempre movimento. Penso


na maneira como eu crio: as palavras saem de dentro de

48
mim para o trabalho, mas também acontece 0 inverso: se
estou desenhando e assistindo TV, as palavras que ouco
e chamam a minha atencao entram dentro do desenho. E
um entra e sai constante que da significado ao texto.

Vitor: Ha um jogo que tem de existir para dar sentido a


obra. Quando vi o trabalho de Jenny Holzer pela primeira
vez, eu era menino. So tinha visto sua obra como pontos
de luz, como brilhos de neon. Eso assim o trabalhoja me
atraia. O conteudo das palavras se somou a tudo depois.
Mas acho que tudo é importante nesse jogo.

49
Contra o fascismo do texto
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Em sua aula inaugural da cadeira de Semiologia Lite-
raria no College de France, em 7 de janeiro de 1977,
mais tarde transformada em livro, o pensador francés
Roland Barthes disse que era preciso criar mecanis-
mos capazes de sabotar a tendéncia fascista do texto.
O fascismo nao esta em impedir de dizer, mas sim em
obrigar a dizer.

Para Barthes, seria preciso criar uma linguagem critica da


propria linguagem para buscar trapacear esse fascismo:

Essa trapaca salutar, essa esquiva, esse logro mag-


nifico que permite ouvir a lingua fora do poder, no es-
plendor de uma revolucao permanente da linguagem,
eu a chamo de literatura.
(Roland Barthes, Aula. Sao Paulo:
Cultrix, 1988. p. 14.)

Para o autor, a importancia da literatura estaria no fato


de ela exercer uma “funcao utdpica”, uma vez que con-
siste num discurso teoricamente vindo de fora do po-

50
der. Para esse pensador, “a ciéncia é grosseira, a vida
é sutil, e 6 para corrigir essa distancia que a literatura
nos importa” (p. 19).

Nessas juncoes escorregadias e instaveis, artistas


escapam dessa tendéncia fascista do texto. Sabotam,
subvertem, quebram as possibilidades de um sentido
narrativo Unico. Desestabilizam nossas compreensoes
da vida e injetam sutilezas, incertezas, sons que se re-
combinam e se estranham entre si.

Os sentidos, na obra dos artistas contemporaneos, nao


estao prontos, mas se configuram no acontecimento,
isto 6, na construcao das multiplas relacoes que acon-
tecem entre a obra e o observador.

51
Vania Mignone, A noite, 2008.
Entrevista com Vania Mignone

Em marco de 2007, quando realizou uma exposicao na


Galeria Casa Triangulo, em Sao Paulo, Vania Mignone e
eu conversamos sobre seu trabalho.

O que vocé acha do conceito de “narrativas enviesadas”?


Acho que se encaixa muito bem no meu trabalho. Eu
crio uma narrativa, conto uma historia, mas nao de
maneira linear, clara. Ao contrario, essa narrativa so
acontece nos cruzamentos, diagonalmente.

No que vocé pensa quando cria?


A minha preocupacao é para que o trabalho seja muito
pessoal. Quero quea obra mostre quem eu sou, de onde
vim, de uma cidade pequena como Campinas, e 0 que
esta envolvido na minha formacao. Ao mesmo tempo
me agrada perceber que esse aspecto local, diante do
observador, se expande e ganha um tom amplo. Sinto
que meu trabalho conversa bem com as pessoas.

Parece haver nele um flerte com a midia.


Sim, eu me interesso muito pela linguagem. Mas, an-

53
tes de tudo, tem as linhas bem delimitadas, 0 desenho.
Eu venho da xilogravura (gravura feita com madeira] e
penso muito no desenho no espaco. Me interesso muito
pelos cartazes publicitarios e pelos quadrinhos. E tam-
bém gosto muito do construtivismo russo, da visualida-
de criada nas artes graficas, logo apos a Revolucao de
1917. Também olho muito para a poesia concreta.

Na sua obra ha uma juncao entre imagem, texto e uma cor


de fundo, normalmente forte, onde palavras e imagens
ficam mergulhadas. O que vem primeiro na criacao?
Nao ha regra para dizer 0 que vem primeiro. Depende
do trabalho. Por exemplo, na tela A viagem comecei fa-
zendo um vaso com figuras japonesas e coloquei nele
um cacto. Depois é que coloquei uma mulher deitada,
escrevi aviagem” em letras grandes e preenchi tudo
com um fundo cor de laranja.

Por que “a viagem”?


Para mim, a mulher esta viajando nos proprios pen-
Samentos. Mas isso nao é claro. Cada um que olhar
a pintura vai poder pensar o que quiser, inventar sua
propria narrativa.

54
Quando é que a sua obra produz uma narrativa?
No momento em que 0 observador a vé. E no exato ins-
tante em que a pessoa pensa que esta ali, tudo é esta-
vel, mas de repente ela enxerga na obra alguma coisa
estranha que produz um incomodo...

0 fildsofo e critico norte-americano Arthur Danto chama


esse incOmodo de “perturbamento”. Vocé acha que sua
obra perturba?
Acho que sim. Gracas a Deus! As pessoas se incomo-
dam. Dizem que na pintura tem coisas esquisitas, que
é claustrofobica, que tem tensoes presas.

Tudo na obra é pensado?


Nao, ao contrario, ela se potencializa no acaso. Valo-
rizo muito o erro. Quando erro alguma coisa, tenho de
refazer e assim o trabalho fica mais forte e consisten-
te. A obra so acontece na juncao dos elementos ima-
gem, texto e cor. Tudo isso é escolhido em movimento,
em acao. Nao conseguiria realizar uma obra sabendo
como vai comecar e como vai terminar. Preciso deixar
um fio solto.

55
Sugestoes de leitura
eee ee

Livros
BARTHES, Roland. Aula.
Trad. Leyla Perrone-Moisés.
Sao Paulo: Cultrix, 1988.

CANTON, Katia. The Fairy Tale Revisisted.


2. ed. Nova York: Peter Lang Publishers, 1994, 1996.

___. Novissima arte brasileira, um guia de tendéncias.


Sao Paulo: Iluminuras/ MAC-USP/ Fapesp, 2001.

DANTO, Arthur. Apos o fim da arte:


a arte contempordanea e os limites da historia.
Sao Paulo: Edusp, 2001.

KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde


and Other Modernist Myths. Cambridge,
Mass.: MIT Press, 1985.

SONTAG, Susan. Contra a interpretacdao.


Porto Alegre: LP&M, 1987.

56
TUCKER, Marcia & WALLIS, Brian (orgs.) Art After
Modernism: Rethinking Representation. 7. reimpr.
Nova York/ Boston: The New Museum of Contemporary
Art and David R. Godine Publishers, 1996.

Entrevistas
Merce Cunningham. Nova York,
estudio do coredgrafo, 1989.
Entrevista para o Jornal da Tarde.

Barbara Kirshenblatt-Gimblett.
Nova York, Performance Studies Department, 1993.

57
Obras reproduzidas neste livro

Capa
Vania Mignone. Sem titulo (poliptico) (detalhe), 2007.
Acrilica sobre MDF. Cortesia Casa Triangulo.

Pagina 46
Vitor Mizael, Autorretrato, 2004.
Gravura em metal - agua-forte e 4gua-tinta. 63 x 63 cm.

Pagina 48
Georgia Vilela, Comprometida para sempre, 2006.
Caneta e tinta acrilica sobre papel. 28,5 x 30cm.

Pagina 52
Vania Mignone, A noite, 2008.
Acrilica sobre papel. 51,5 x 54 cm. Ed. unica.
Cortesia Casa Triangulo.
\\
vVe
mee
2
Colecao Temas da Arte Contemporanea

Do moderno ao contemporaneo
Narrativas enviesadas
Tempo e memoria
Corpo, identidade e erotismo
Espaco e lugar
Da politica as micropoliticas
24-1

978-85-7827-2
ISBN

=
HOTLY
CASABIBLIOTECA
DAROS

Nesta colecao, a escritora e professora Katia Canton


apresenta temas que emolduram o mundo contem-
poraneo e que sao refletidos na arte atual: a supe-
racao da modernidade; a questao das narrativas; 0
tempo e suas relacdes com a memoria; 0 corpo. a
identidade e o erotismo; as nocOes de espaco
gar; as politicas e micropoliticas. Em lingu
acessivel, a teoria é entremeada a entrevistas
artistas brasileiros.

Projeto apoiado pelo Governo do Estado de Sao


ria de Estado da Cultura - Programa de Acao C

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