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Da Política

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as Micropolíticas

Katia Canton
Katia Canton é PhD em artes interdis-
ciplinares pela Universidade de Nova
Yorke livre-docente em teoria e crítica
de arte pela Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Pau-
lo (ECA-USP). É professora do Museu
de Arte Contemporânea (MAC-USP),
curadora de arte e autora de vários
livros para crianças e adultos.
Da Política
as Micropolíticas
Katia Canton
Digitized by the Internet Archive
in 2023 with funding from
Kahle/Austin Foundation

https://archive.org/details/dapoliticaasmicr0000cant
Da Política
as Micropoliíticas
Katia Canton

Contemporânea
Arte
da
Temas

.
wmfmartinsfontes
SÃO PAULO 2009
Copyright O 2009, Editora WMF Martins Fontes Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1.32 edição 2009

Coordenação editorial
Todotipo Editorial
Preparação do original
Cláudia Cantarin
Revisão gráfica
Danilo Nikolaidis e Cássia Land
Projeto gráfico
Noris Lima
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Noris Lima e Thiago Nunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Canton, Katia
Da política às micropolíticas / Katia Canton. - São Paulo :
Editora WMF Martins Fontes, 2009. —
(Coleção temas da arte contemporânea]

ISBN 978-85-7827-228-9

1. Arte contemporânea |. Título. Il. Série.

09-11921 CDD-709

| Índice para catálogo sistemático:


1. Da política às micropolíticas: Arte contemporânea 709

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora WMF Martins Fontes Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042
e-mail: infoldwmfmartinsfontes.com.br
http://www.wmtfmartinsfontes.com.br
Para meu editor, Alexandre,
minha assistente, Daniele Ebling,
e para meus alunos.
Também dedico este projeto
aos professores, com
respeito e admiração.
Sumário
Esses

ROCRRONIAÇÕO = ss CN eee E e copa nana 09


Micropolíticas e arte contemporânea .................... 15
Entrevista com Jaime Spitzcovsky -..................o
nn. 17
Micropolíticas e globalização ............... nono 22
Entrevista com Peter Pál Pelbart..............n nn 24
Entrevista com Rosana Paulino ............n nene 31
Bobro MonkenNador js iá quan 39
Entrevista com BethMoysés...............l nn 45
Envia com Pat O aaa Roc R RE 51
Entrevista com Eduardo Srur ................... nono. 57
Entrevista sobre o grupo Ueinzz .................o nono 62
Sugestões de leituras. === os E sra saDsap tos aos sra mpada 68
Apresentação
Renegado:
Antes de tudo, devo dizer que esta coleção, composta de
seis livros, presta homenagem a um projeto editorial que, a
partir dos anos 1980, marcou minha vida.

Um denso universo me foi descortinado por pequenos livros


de assuntos variados, que passavam do teatro nô à adoles-
cência. Todos os temas do mundo pareciam caber na di-
mensão reduzida da série Primeiros Passos, concebida por
Caio Graco Jr. na Brasiliense. Partindo do mesmo formato
de bolso e do preço acessível (cada livro custa quase o mes-
mo que uma revista), resolvi criar uma coleção. Meu editor,
Alexandre Martins Fontes, apoiou a ideia. Juntos, pensamos
numa coleção com temas sobre os quais tenho me debru-
cado há anos em minha pesquisa acadêmica: os desdobra-
mentos entre a arte contemporânea e o mundo atual.

Gostaria de frisar que hoje a arte faz por si só essa apro-


ximação, misturando cada vez mais questões artísticas,
estéticas e conceituais aos meandros do cotidiano, em
todas as instâncias: o corpo, a política, a ecologia, a ética,
as imagens geradas na mídia etc.

09
O projeto desta Coleção Temas da Arte Contemporânea
é resultado de uma pesquisa realizada na condição de
professora e curadora do Museu de Arte Contemporã-
nea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) desde
meados dos anos 1990, quando passei a acompanhar
consistentemente o que os artistas que surgiam bus-
cavam como assuntos para emoldurar sua produção.
Também devo muitos instrumentos de pesquisa aos
anos de prática como crítica de arte, jornalista e cria-
dora de textos, poemas e imagens para Livros infantis e
juvenis, muitas vezes realizados em parcerias com vá-
rios desses artistas.

Como diz o título da coleção, nestes livros estão refle-


tidos os principais assuntos que definem o mundo con-
temporâneo e que são espelhados na arte. Os volumes
foram concebidos como mediação entre teorias, fatos,
pensamento dos artistas (na forma de entrevistas] e o
leitor, formado de professores, artistas, educadores,
alunos e (por que não?) curiosos - muito bem-vindos.
Para tornar a mediação mais fluida e propor uma apro-
ximação entre a arte e todas as pessoas, evitei o uso de
termos específicos do universo artístico.

10
O volume inicial, Do moderno ao contemporâneo, pode
ser lido como uma introdução à coleção, preparando as
bases dos volumes seguintes: Narrativas enviesadas;
Tempo e memória; Corpo, identidade e erotismo; Espa-
co e lugar; Da política às micropolíticas.

Você, leitor, perceberá que todos os temas estão conec-


tados nos volumes da coleção e que, sobrepostos, es-
pelham a complexa rede na qual se emaranha o mundo
atual. Para organizar essa rede, busquei desenvolver
cada tema num livro, mas sem criar uma sequência rígi-
da: você pode decidir começar a leitura por um ou outro
volume.

Um pano de fundo

Nos anos 1960, já dizia o crítico brasileiro Mario Pedro-


sa quea arte é o exercício experimental da liberdade”.
Acredito que é uma definição poderosa, sobretudo se
considerarmos que o conceito de Liberdade depende de
um contexto para se definir. O que é considerado um
ato ou pensamento de liberdade em determinado mo-
mento histórico pode não ser em outro. Por isso, em

KK
se tratando de arte, é necessário prestar atenção nos
sinais dos tempos e em seus significados.

E para que serve a arte? Para começar, podemos dizer


que ela provoca, instiga e estimula nossos sentidos,
descondicionando-os, isto é, retirando-os de uma or-
dem preestabelecida e sugerindo ampliadas possibili-
dades de viver e de se organizar no mundo.

Para ilustrar essa ideia, cito um trecho do poema “Uma


didática da invenção”, de Manoel de Barros.

Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.


aah
As coisas não querem mais ser vistas por
pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul -
que nem uma criança que você olha de ave.
(O livro das ignorãças.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.)

A arte ensina justamente a desaprender os princípios das


obviedades que são atribuídas aos objetos, às coisas. Ela

12
parece esmiuçar o funcionamento dos processos da vida,
desafiando-os, criando para novas possibilidades. A arte
pede um olhar curioso, livre de 'pré-conceitos”, mas re-
pleto de atenção.

Mas, ao mesmo tempo que se nutre da subjetividade,


há outra importante parcela da compreensão da arte
que é constituída de conhecimento objetivo envolvendo
a história da arte e da vida, para que com esse ma-
terial seja possível estabelecer um grande número de
relações. Assim, a fim de contar essa história de modo
potente, efetivo, a arte precisa ser repleta de verdade.
Precisa conter o espírito do tempo, refletir visão, pen-
samento, sentimento de pessoas, tempos e espaços.

Katia Canton é PhD em Artes Interdisciplinares pela


New York University, livre-docente em Teoria e Críti-
ca de Arte pela ECA-USP. É professora-associada do
MAC-USP, curadora de arte e autora de
vários livros envolvendo arte e literatura.
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Micropolíticas e arte contemporânea

Este livro trata da arte contemporânea a partir do con-


ceito de micropolítica, que tem sido usado cada vez com
mais frequência por pensadores da cultura contem-
porânea para colocar a discussão política em um novo
paradigma, isto é, no diagrama da nossa atualidade, de
acordo com as complexidades que se impõem no cená-
rio atual.

Antes da queda do Muro de Berlim, o mundo parecia or-


ganizado entre direita e esquerda, capitalismo e socia-
lismo. Hoje, com a dissolução desses contornos claros
entre os Estados-Nações, os partidos e suas posições
políticas, criam-se muitos outros focos, e esse exercício
político passa a se dar de nova maneira.

Artistas e pensadores substituem a noção de Política,


com “P” maiúsculo mesmo, pelas micropolíticas - a sa-
ber, uma atitude focada em questões mais específicas e
cotidianas, como o gênero, a fome, a impunidade, o direi-
to à educação e à moradia, a ecologia, enfim, tudo aquilo
que nos diz respeito e nos faz viver em sociedade.

15
Em suma, o livro propõe compartilhar com o leitor um
panorama em que a arte contemporânea espelha e re-
flete atitudes sociopoliticas diretamente relacionadas
com questões da realidade.

16
Entrevista com Jaime Spitzcovsky

Nesta entrevista, o jornalista político Jaime Spitzcovsky


procura estabelecer algumas definições sobre o concei-
to de política e sua situação no panorama atual. Veja o
que ele diz:

O cenário político em que vivemos tem muito a ver com


a diferença do momento atual com o da Guerra Fria. Ou
seja, o século XX foi, em sua maior parte, historicamen-
te marcado por uma polaridade ideológica: de um lado
estava o sistema capitalista, com economia de mercado
e democracia representativa. Esse sistema tinha como
principal personagem os Estados Unidos. De outro, a
União Soviética, com o sistema comunista, com a teoria
marxista, com um poder político que se poderia chamar
de ditadura do proletariado e no plano econômico a ideia
de uma economia planificada.

Era grande e claro o embate ideológico. Isso fazia com


que o cenário político fosse mais maniqueísta, mais fácil
de organizar, pontuado por aqueles conceitos claros: di-
reita, centro e esquerda.
Então, tudo o que se alinhava com os Estados Unidos es-
tava à direita. E à esquerda caminhavam as posições que
acreditavam na teoria de que a União Soviética se dizia
a grande representante, embora a esquerda fosse frag-
mentada em diferentes visões, o que também acontecia
com a direita. Mas, grosso modo, era um cenário clara-
mente demarcado.

Em 1991, a União Soviética se desintegra; dois anos an-


tes, havia caído o Muro de Berlim. São dois elementos
históricos que evidenciam o fracasso do chamado proje-
to soviético”. Com isso, as ideias de esquerda entram em
crise e passam a ser questionadas sobre a viabilidade da
construção de um modelo baseado naquela teoria social,
política e econômica.

A partir de então, o cenário político perde essa clara po-


laridade, a tal ponto que, nos Estados Unidos, muitos che-
gam a acreditar que, com o fim da União Soviética, o mundo
entraria em um período de paz e prosperidade, porque ha-
veria a prevalência dos valores norte-americanos. Assim,
ninguém mais questionaria o sistema político e econômico
representado por aquele país e haveria um mundo globali-

18
zado, em que a ideologia seria menos importante - a eco-
nomia estaria acima de tudo. Mas isso não aconteceu.

Isso corresponderia ao que Francis Fukuyama chamou


de “o fim da História”?
Exatamente. Segundo Fukuyama, os valores norte-ame-
ricanos e liberais teriam demonstrado sua supremacia e,
portanto, a História teria terminado.
Se pensarmos na variedade de países e de questões que
estão envolvidas nas negociações constantes de poder,
perceberemos que nem de longe estamos vivendo o fim
da História. Ainda há muitas mudanças para acontecer.
Acho que o conceito de fim da História foi um equívoco,
causado pela euforia que houve em Washington com o
fim da Guerra Fria, por parte de setores do governo e da
elite norte-americana. A ideia era de que a vitória” dos
Estados Unidos sobre a União Soviética teria confirmado
a superioridade do país. Mas não se chegou ao extremo
de se falar do fim da História porque a História não ter-
mina nunca.

Diz-se que uma das características mais gritantes


dessa pós-modernidade do pós-queda do Muro de Ber-

19
lim é a volta de uma narrativa hegemônica, uma meta-
narrativa, e essa grande narrativa seria o terrorismo,
como expressão máxima de renegociação do mundo.
Como você vê isso?
Não seise o terrorismo seria uma metanarrativa. De fato
trata-se de um fenômeno fundamental dentro do contex-
to do século XXI. Obviamente, o 11 de setembro é prova
disso. Eu vejo o terrorismo como um importante fator de
questionamento do status quo, que mostra a existência
de setores que questionam uma série de elementos das
sociedades ocidentais, ou particularmente as socieda-
des que os Estados Unidos simbolizam ou exemplificam.
E como combater o terrorismo? A meu ver, basicamente,
por meio de dois aspectos. O primeiro deles é a dissemi-
nação da democracia. Esse é um dos grandes desafios
do século XXI: quanto mais democracia, mais debilita-
dos estarão os grupos radicais. O segundo é combater
também os desequilíbrios e as injustiças no plano social
e no plano econômico.

Observamos nas artes uma preocupação muito grande


dos criadores de se reconectarem com questões socio-
políticas, vinculando suas produções a assuntos que

20
estão na pauta da política, tanto nacional como inter-
nacional. Como você vê isso?
Fazer política hoje já não é mais como fazer política nos
anos que marcaram o século XX. As ideologias entraram
em crise, os partidos entraram em crise, então agora as
pessoas procuram formas alternativas de fazer política
e também de expressar seus pontos de vista. Os artis-
tas, em vez de defenderem suas posições políticas no
âmbito partidário, vão canalizar para suas atuações ar-
tísticas a vontade de expressar seus pontos de vista. Ou
seja, eles encontram na atuação artística um espaço no
qual talvez se sintam mais à vontade do que nos partidos
políticos, os quais estão enfrentando uma crise, não só
no Brasil como no mundo, reflexo da crise das ideolo-
gias clássicas, e também do sistema político.

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Micropolíticas e globalização

Para o sociólogo britânico Anthony Giddens, um dos


grandes pesquisadores da modernidade, a globalização
não é um processo novo, mas sim uma continuação de
tendências postas em movimento pelo processo de mo-
dernização que teve início na Europa do século XVIII. A
modernização substituiu as formas de sociedades tra-
dicionais que eram baseadas na agricultura, até chegar
aos processos regidos pelas tecnologias atuais, em que
as instituições e formas políticas estão cada vez mais in-
terligadas à vida cotidiana do indivíduo.

O sentido da globalização está justamente na interdepen-


dência entre o espaço global e o local. Giddens explica, no
livro As conseguências da modernidade, que essa inter-
ligação ou interinfluência incide sobre as coletividades e
grupos de todos os tipos, incluindo o Estado. Todos têm que
levar em consideração essa realidade, o que pressupõe re-
pensar seus papéis, sua reorganização e reformulação.

A experiência global da modernidade está interligada


- e Influencia, sendo por ela influenciada - à pene-

22
tração das instituições modernas nos acontecimen-
tos da vida cotidiana. Não apenas a comunidade local,
mas as características íntimas da vida pessoal e do
eu tornam-se interligadas a relações de indefinida ex-
tensão no tempo e no espaço. Estamos todos presos
às experiências do cotidiano, cujos resultados, em um
sentido genérico, são tão abertos quanto aqueles que
afetam a humanidade como um todo (p. 77).

23
Entrevista com Peter Pál Pelbart
FERAS
A

Na entrevista que realizei em novembro de 2007 em seu


local de trabalho, o filósofo Peter Pál Pelbart explica
como o conceito de política tem se modificado, incluindo
várias dimensões da vida.

Como pensar a política hoje?


O que se entende por política talvez já não seja o jogo da
representação dos partidos, sindicatos e daquilo que se
entende consensualmente por políticos ou por política.
Talvez a grande contribuição a partir do pós-guerra dada
por pensadores de vários movimentos tenha sido enxer-
gar política onde ninguém a via, ou seja, descentrar o foco
e entender que há uma política do cotidiano, que a vida e
a gestão do corpo, da sexualidade, da família, da escola,
da relação com os saberes, com os médicos, com os psi-
quiatras, que tudo isso tem uma dimensão política e que o
poder não se resume a um presidente, a um ministro. São
mecanismos muito complexos, às vezes muito anônimos,
que atravessam campos diferentes. Então talvez a minha
relação com a medicina, ou o modo como o médico enxerga
meu corpo, já tenha essa dimensão do exercício de poder.

24
Pois o exercício de poder está por toda parte, seja dos pais
em relação aos filhos, seja dos médicos em relação aos
pacientes, dos psiquiatras em relação aos loucos, da tec-
nologia em relação a todos, enfim, há exercício de poder
por toda parte, mesmo naqueles campos considerados
neutros ou científicos. Talvez seja isso que alguns chamam
de microfísica do poder, ou dimensão molecular da políti-
ca, ou, então, da micropolítica.

Então podemos falar que existe uma migração da ideia


de uma política partidária para as micropolíticas, que
envolvem a questão cotidiana de várias formas, que está
em toda parte?
Eu acho que sim, mesmo levando em conta que essas
duas dimensões não são incompatíveis, ou seja, em al-
guns momentos, certas lutas, como as das mulheres
ou dos presidiários, e de todo tipo de minorias, criam
uma sensibilidade social e podem convocar alianças
com movimentos maiores. Isso é absolutamente lLegi-
timo, desde que os políticos não falem em nome de to-
dos com quem tais alianças se gestam. Uma coisa que
vem sendo posta em xeque é que um político se sente
representante de um povo, quando não existe um único

25
povo, existem muitos povos, muitas minorias, muitos
devires, que atravessam aquilo que se chama hoje de
multidão - esse conjunto muito heterogêneo, com pes-
soas diferentes, com seus afetos, suas inteligências,
seus agrupamentos diversos.
Enquanto nos anos 1960 e 1970 o inimigo político era
claro, estava relacionado à ditadura, hoje, no Brasil,
essa questão está muito mais diluída, os contornos es-
tão mais esparsos e os artistas têm se unido nos cha-
mados coletivos. Eles surgem em formações variadas,
abordando questões cotidianas e articulando o espaço
público, e o que têm em comum é transformar artistas
em agentes políticos, que cada vez mais quebram a dis-
tância entre arte e cotidiano.

O enfraquecimento do poder político tradicional, aque-


le que pressupõe governo e partidos, gera uma mobili-
zação entre a sociedade civil, que se organiza em torno
de ideias por ela defendidas, iniciando-se geralmente
em um nível local, para então expandir-se no âmbito
global. Com as micropolíticas, percebe-se a ocorrência
de uma descentralização. O que antes não possuia uma

26
conotação política, hoje a traz, da mesma forma que o
que era político perdeu sua força, diz Ulrich Beck.

Segundo esse mesmo autor, “procuramos o político no lu-


gar errado, nas tribunas erradas e nas páginas erradas dos
jornais” (p. 30). A política encontra-se nas mãos dos cida-
dãos inseridos em movimentos sociais, organizações não
governamentais, associações diversas - entidades que in-
troduzem uma nova concepção política e possibilitam uma
articulação de novas ideias, originando uma forma de reno-
vação política que se constitui a partir das relações sociais.

Na verdade, a própria noção de identidade se desloca dentro


de paisagens políticas que se modificam. Há novas bases
políticas, definidas por novos movimentos sociais: o femi-
nismo, as lutas negras, os movimentos de libertação nacio-
nal, os movimentos ecológicos e antinucleares. Em A iden-
tidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall explica que
a própria identidade se tornou politizada, modificando-se de
acordo com a maneira como o sujeito é representado.

No âmbito da arte, essas mudanças acarretam atitudes


particulares. No Brasil, sobretudo durante a ditadura mi-

27
litar, artistas produziam obras de forte caráter político,
em sua maioria de cunho figurativo. Não raro elas estam-
pavam imagens marcantes, exibindo sangue, caveiras,
bananas, ossos, na tentativa de criar metáforas para uma
situação de violência, impunidade, despotismo, ausência
de liberdade, práticas de tortura e nonsense.

No momento contemporâneo, esse tipo de arte dá lugar


a outra arte, cujo caráter político aparece de forma mais
fluida, aliada a uma preocupação existencial mais ge-
neralizada. O artista sul-africano William Kentridge, em
seu vídeo Certas dúvidas (2000), realizado pela Associa-
ção Videobrasil, com direção de Alex Gabassi, diz:

A obra é política quando explora a parte política do


mundo como um de seus temas. Da mesma forma, al-
guém pode tomar o amor, a desilusão ou a psicologia
de personalidades como temas a serem investigados.
Política no sentido de como diferentes formas de po-
der operam, em como o pessoal e o público intera-
gem. Quando isso se torna um campo de exploração,
há uma ordem na qual a obra deveria ter uma clare-
za política, uma posição política, uma linguagem não

28
ambígua. É aí que eu resisto. Estou interessado em
arte que seja política, que lide com essas questões,
mas que não precise vir com um slogan ou uma posi-
ção não contraditória. Isso porque eu acredito que po-
sições não ambíguas e não contraditórias são sempre
falsas, são sempre mentiras e representam sempre
um autoritarismo velado.

É justamente na manutenção da ambiguidade e da con-


tradição que a obra de William Kentridge adquire força e
impacto, apontando para contradições sociais por meio
da interação entre seus personagens, que surgem em
belas e potentes animações em branco e preto.

29
Bastidores, 1997.

30
Entrevista com Rosana Paulino
RE Rg so
Para início de conversa, transcrevo um texto escrito
pela própria artista em seu blog, no ano de 1997. Apesar
de ter se passado mais de uma década, ele permanece
consistente com o percurso da obra de Rosana.

Sempre pensei em arte como um sistema que devesse


ser sincero. Para mim, a arte deve servir às necessida-
des profundas de quem a produz, senão corre o risco
de tornar-se superficial. O artista deve sempre traba-
lhar com as coisas que o tocam profundamente. Se lhe
toca o azul, trabalhe, pois, com o azul. Se lhe tocam os
problemas relacionados com a sua condição no mun-
do, trabalhe então com esses problemas.

No meu caso, tocaram-me sempre as questões refe-


rentes à minha condição de mulher e negra. Olhar no
espelho e me localizar em um mundo que muitas vezes
se mostra preconceituoso e hostil é um desafio diário.
Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou
de comportamento que traz muito de preconceito, ve-
lado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão.

31
Dentro desse pensar, faz parte do meu fazer artístico
apropriar-me de objetos do cotidiano ou elementos
pouco valorizados para produzir meus trabalhos. Obje-
tos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do
domínio quase exclusivo das mulheres. Utilizar-me de
tecidos e linhas. Linhas que modificam o sentido, cos-
turando novos significados, transformando um objeto
banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento
de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modi-
fica o formato do rosto, produzindo bocas que não gri-
tam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fecha-
dos para o mundo e, principalmente, para sua condição
no mundo.

Apropriar-me do que é recusado e malvisto. Cabelos.


Cabelo “ruim”, “pixaim”, “duro”. Cabelo que dá nó. Ca-
belos longe da maciez da seda, longe do brilho dos co-
merciais de xampu. Cabelos de negra. Cabelos vistos
aqui como elementos classificatórios, que distinguem
entre o bom e o ruim, o bonito e o feio.

Pensar em minha condição no mundo por intermédio


de meu trabalho. Pensar sobre as questões de ser mu-

32
lher, sobre as questões da minha origem, gravadas na
cor da minha pele, na forma dos meus cabelos. Gritar,
mesmo que por outras bocas estampadas no tecido ou
outros nomes na parede. Este tem sido meu fazer, meu
desafio, minha busca.
(Disponível em: http://rosanapaulino.blogspot.com.
Acesso em: 5 nov. 2009.)

Onze anos depois, conversei com Rosana Paulino no es-


paço do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo, no parque do Ibirapuera:

O seutrabalho é político, e a política toma corpo através


de estratégias da intimidade, de uma dimensão afetiva.
Como você vê isso?
Esse viés político está presente, sem dúvida, no trabalho,
e essa intimidade que procuro colocar nele é para pensar
uma arte política diferenciada daquela da época dos anos
1960, que eu acho muito pontual e que tendeu a se per-
der no tempo. Muda-se o momento político, mudam-se os
processos e a obra pode ficar um tanto datada. O ser
humano é um animal político, nós somos seres políti-
cos, então a partir de um direcionamento um pouco mais

33
pessoal, de uma obra que traz a questão política, mas
não de maneira tão “escancarada”, eu acho que consigo
preservar esse sentido. Assim, a obra pode ser lida da-
qui a vinte, trinta anos sem que a pessoa precise voltar
no tempo e rever todo um contexto da época. Porque o
que está sendo tratado aqui em termos de política são
questões que extrapolam partidos e são inerentes à
condição humana.

Como surgiu o trabalho da série Arapucas?


A série Arapucas trata da questão da cobiça desenfreada,
desse foco no ter que tomou conta da sociedade brasi-
leira e da política. São escândalos atrás de escândalos,
é uma necessidade de status excessivo, e a sociedade e
o país que se danem, eu quero é o carro de luxo, o iate,
o jet ski, quero as compras, eu quero “chegar lá” - essa
frase que os publicitários adoram, justifica tudo. Rou-
bam-se milhares para se chegar lá. Lá onde?
Esse trabalho é formado por arapucas sobre imagens
que se referem ao consumo, gotas de parafina que lem-
bram as quirelas, para pegar passarinho. Essa é uma
carga de lembrança, de memória muito forte, e então
pensa-se quem pega quem nesse jogo de sedução.

34
O mercado da sedução parece inesgotável e mexe com
essa insatisfação constante do ser humano. Hoje se
fala muito de distúrbios alimentares - bulimia, anore-
xia, entre outros - gerados pela demanda desse tipo de
mercado, por essa expectativa de um corpo de Barbie
em mulheres adultas.
Acho que está na hora de nos questionarmos e pen-
sarmos se compactuamos com essa situação ou não.
A questão do corpo humano sempre me fascinou, esse
massacre do corpo, de colocá-lo, principalmente o fe-
minino, em um padrão inatingível, falso, doentio, sem-
pre me chamou muito a atenção. Em meu trabalho re-
tirei imagens de mulheres de um editorial de moda e
contrapus com imagens de morte. Acabei fazendo uma
série, como um memento mori feminino. É também uma
maneira mais brincalhona de falar do assunto. Retiro
aquela carga pesada que o memento moritinha na Idade
Média, pois trato a questão de maneira bem-humorada,
porque no fundo nós podemos modificar essa situação.

E em algumas obras vê-se o carimbo “Es pó”.


Exatamente, é uma chancela, eu assino, eu garanto que
tu és pó. E essa coisa do carimbo... Para muitos pro-

35
cessos são necessários inúmeros documentos. Tem na
obra uma crítica à burocracia, como se o carimbo fosse
garantir a honestidade de alguém.

Em outros trabalhos, você levantou questões relacio-


nadas às mulheres, principalmente às negras, como em
Bastidores. Fale um pouco a respeito.
Há uma despotencialização da mulher perante a socie-
dade. À maneira como é disposta a costura ali inverte o
sentido: são bocas que não podem falar, olhos que não
estão abertos para o mundo, que se fecham para a sua
condição; algumas vezes a costura está na garganta,
uma impossibilidade de se colocar diante da sociedade.
O trabalho das Aracnes foi montado no Paço das Artes
e também no subsolo; na parte da galeria eu projetava
as imagens dessas mulheres que estão escondidas no
subterrâneo. É a questão das “donas marias” que ficam
trabalhando no fundo das casas, sem que a sociedade se
dê conta da existência delas.

E quanto à série Ama de leite?


A ama de leite é um personagem totalmente ambíguo na
história do Brasil. Ao mesmo tempo que os senhores as

36
escravizavam, davam os filhos para serem alimentados
pelo leite dessas mulheres, geralmente negras, e elas,
ao criá-los, passavam, além do leite, seus valores, na
fala, na pele. Veja como é louca essa história!

Nessa conversa, fica muito clara a ideia de que o pes-


soal é sempre político e a arte é um recriar do mundo
incrivelmente potente.
Sim. A questão da individualidade é muito importante
em meu trabalho, porque a política é pessoal, a arte é
pessoal.

37
Paredes pinturas (da série), 2003. Vila das Torres, Curitiba.

38
Sobre Mônica Nador
[RD

Essa artista participou da emblemática exposição Como vai


você, Geração 807, que reuniu mais de cem jovens artistas
no parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1984, com o propósi-
to de reivindicar as possibilidades expressivas da pintura.

Mônica Nador, paulista de Ribeirão Preto, nascida em 1955,


fazia parte dessa geração e tinha na pintura seu grande
meio. Porém, sua produção substituía a ênfase na emo-
ção por um trabalho disciplinado, obsessivo, meticuloso.
Nessa época, as enormes telas da artista eram invariavel-
mente preenchidas com pinceladas repetidas, alternando
o preto, o vermelho e o azul.

Em 1996, a leitura do texto O fim da pintura, do crítico


norte-americano Douglas Crimp, reafirmou a sensação
de esgotamento da experiência formale confirmou o des-
conforto que a artista já sentia em relação às demandas
do mercado.

Foi assim que nasceu o projeto Paredes pinturas. Estou


ciente de que a arte não transforma as estruturas sociais;

39
por outro lado, não posso fazer arte sem levar essas es-
truturas em consideração”, afirma a artista.

Em 1996, ela abandonou o espaço do ateliê tradicional e


passou a se dedicar a projetos de pintura nas ruas, pare-
des e casas da periferia ou em pequenas cidades, traba-
lhando em bairros de baixa renda. No lugar de uma arte
de denúncia, a proposta de Nador consiste em uma polí-
tica através da beleza.

A arte contemporânea ocidental abandonou a procura


de beleza e reforçou aspectos da expressão mais liga-
dos à abjeção, conceitualmente baseados na realidade
cotidiana atual. Mas a falta da beleza faz mal à saú-
de e ao espírito. A beleza potencializa a arte. É preciso
reinstaurá-la como algo político.

Mônica Nador apropriou-se dos padrões islâmicos, que


para ela representam o choque ou o espanto do belo, e se
pôs a aplicá-los de todas as formas, por todos os cantos.
Tudo começou com uma grande parede de um hospitalem
Uberlândia, que Mônica pintou sozinha. Em 1998, a convi-
te da Universidade Solidária, pintou um coreto em praça

40
pública, na cidade de Coração de Maria, na Bahia, já com a
ajuda da comunidade, além de um clube em Nilo Peçanha,
no mesmo estado. Nesta última obra, utilizou motivos res-
gatados do repertório local, como máscaras e figuras de
boi, ligados ao grupo de percussão folclórico da cidade.

No ano de 1998, a artista trabalhou uma casa de palafita,


no Amazonas, usando o motivo de uma “casinha”, dese-
nhada pela própria moradora. Depois, pintou a sede de
um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra (MST), em Piratininga [SP), com desenhos
de estrelas criados pelos participantes do movimento.

Também pintou os muros e as fachadas das casas de um


bairro de São José dos Campos (SP), projeto patrocinado
pela Fundação Cassiano Ricardo. “A Vila Rhodia, que faz par-
te do bairro de Santana, é formada em grande parte por uma
população que emigrou do sul de Minas Gerais. Então eu
trabalho com os moradores criando motivos retirados dos
riscos de bordados mineiros, por exemplo”, conta Mônica.

Atualmente, ela vive no Jardim Miriam, onde trabalha com


os moradores do bairro no Jamac (Jardim Miriam Arte

41
Clube), com o objetivo de criar novas padronagens para as
paredes e estampas para panos, camisetas e papéis.

Articulando uma esfera micropolítica, Mônica Nador crê


na potência criativa da arte. Para ela, o exercício de fruição
do belo pode ser por si só um elemento transformador.

Abaixo, alguns trechos selecionados de seu depoimento a


Jorge Menna Barreto, em 2007, em troca de e-mails entre
ambos:

Quando fiz o trabalho na Vila Rhodia, que consistia em


levar tinta e ensinar a técnica do desenho (estêncil) para
eles pintarem seus lares, várias casas foram pintadas
usando o seguinte acordo cromático + motivos: flores
vermelhas, folhas verdes, miolo amarelo sobre fundo
branco. Muito óbvio [simples] e muito eficiente [bonito].
Pensei em como poderia ter passado despercebida por
mim, pintora sofisticada”, tal combinação. Aí, as mu-
lheres me contaram: “É que nóis pinta pano de prato!”.
Pronto: repertório de pintura de pano de prato. Desde
então, fiquei com essa vontade de pintar uma parede
pano de prato num cubo branco...

42
É interessante lembrar que euachava que meutrabalho
dentro do circuito estava “sobrando”. Aquelas pessoas
já não precisavam do momento de fruição do belo, di-
ferentemente das pessoas da periferia. Então, em cada
momento, o trabalho promove estados de consciên-
cia diferentes, não é? Lá, a boa e velha fruição estética;
aqui, outras fichas, relacionadas fortemente a toda a
tradição da história da arte. Mas eu insisto em obser-
var como é difícil Lidar com outros paradigmas! Como
é necessária mesmo a elaboração acadêmica para a
aceitação/entendimento de uma ação que se dá pela
urgência da realidade, antes de qualquer justificativa
intelectual. Digo isso inclusive de meu próprio proces-
so, pois só depois de autorizada pelo Douglas Crimp é
que pude atuar no que realmente me incomodava... e
fazendo arte, que é o que eu gosto e sei fazer.
(Transcrito no texto “As paredes pinturas de
Mônica Nador”, In: CANTON, Katia & PESSOA,
Fernando (org.) Sentidos e arte contemporânea.
Vitória: Vale, 2007. p. 4.)

43
Reconstruindo sonhos,
da série Mãos bordadas (Amélia), 2004.
Entrevista com Beth Moysés
Ea o de a
Desde meados dos anos 1990, a artista Beth Moysés tem
utilizado o vestido de noiva como matéria-prima para dis-
cutir e ampliar questões sobre o desejo, o amor, a con-
dição feminina e a violência doméstica. Numa conversa
comigo, em seu ateliê, em 2008, a artista respondeu às
perguntas:

Cabe ao artista um trabalho sociopolítico?


Eu não sei se é um compromisso do artista fazer uma arte
social. Não sei, mas acho que cabe a ele fazer aquilo que
tem vontade. E cada um vai realizar a arte da sua forma.
Se o artista é mais formalista, vai fazer um trabalho mais
formal; se tem outro ideal, vai seguir esse caminho. Cada
um vai resolver. No meu caso, por exemplo, acho que a
arte tem um cunho social muito grande. Eu nunca aceitei
muito bem tudo o que acontecia na relação homem e mu-
lher. Essa questão do relacionamento a dois foi algo que
sempre vi de forma complexa. A violência doméstica acon-
tece no ambiente privado, e as pessoas não se importam.
A sensação é de que não tem a menor importância para o
outro. As pessoas não imaginam que isso sai das quatro

45
paredes e que contamina a vida das outras pessoas. À vio-
lência não fica retida dentro de casa, ela sai para as ruas,
contamina a todos e acaba influenciando o social.

A matéria-prima básica, a tinta de sua tela já era o vesti-


do de noiva desde o início? Como foi seu percurso?
Fiquei muito tempo pintando e brigando, tentando adaptar
o uso de materiais do vestido de noiva dentro de uma pin-
tura no sentido mais convencional. Eu colocava material
- era matéria em mais matéria - e pintava, com meia de
seda, tule. Até que tirei essa pintura e apareceu apenas a
noiva, aquela coisa branca. Depois disso comecei a bus-
car o vestido de noiva, a desconstruí-lo. Cada vestido tinha
o nome da mulher que o havia usado. Para trabalhar, eu o
virava do avesso e construía uma forma específica. Mais
tarde, fiz uma instalação na Capela do Morumbi.

Pareciam secreções, lágrimas...


Sim,
os vestidos eram grudados, ficavam inflados, tinham
um brilho, estavam todos pregados ao teto. Ninguém po-
dia alcançá-los. Era como se fossem várias mulheres,
ausentes. Era oco, era só sonho, fantasia. Dal, esses
vestidos, metaforicamente, caíram no chão, e na expo-

46
sição seguinte eu forrei o chão da Galeria Thomas Cohn
com eles. As pessoas podiam caminhar descalças sobre
os vestidos. Naquele momento, a realidade estava muito
mais presente. Depois desse trabalho vieram as perfor-
mances na rua. Em meu percurso, é como se, naquele
momento, esses vestidos vazios fossem preenchidos por
corpos de mulheres vivas.

Acho que é aí, no trabalho com as mulheres, que vem a


potência de cura, isto é, vem a construção de algo que
toma corpo no limiar entre arte e ação social coletiva.
Sem dúvida. Em 25 de novembro de 2000, no Dia Inter-
nacional da Não Violência Contra a Mulher, esses cor-
pos que estavam no chão foram preenchidos e saíram
caminhando pela avenida Paulista em busca de uma
transformação. Cento e cinquenta mulheres vestidas
de noiva, de todas as idades, caminharam com buquê
de rosas nas mãos. No caminho, iam despetalando as
flores, atirando-as para pessoas e depois enterravam
os galhos com espinhos, coletivamente. Nessa perfor-
mance, que intitulei Da Consolação ao Paraíso, havia
uma mulher que fazia sete anos que estava sendo mal-
tratada pelo marido. Ela não saía de casa, pois estava

47
com a autoestima muito baixa. Participou da caminha-
da, voltou para casa, arrumou as malas e foi embo-
ra! Então, acho que essa coisa do coletivo, essa força
conjunta, acabou fazendo com que ela se fortalecesse
e tomasse uma atitude.

Assim como essa história, deve haver muitas... O que


também dá a ideia da potência da arte contemporã-
nea, essa ligação direta com a vida.
É verdade, e isso é muito bacana. O que mais me alegra
em tudo isso é a troca que tenho com essas mulheres.
Em 1995, fiz a minha primeira luva bordando a linha da
vida. Então, eu percebo isto em meu trabalho: muitos
trabalhos que surgiram numa escala individual agora
estão acontecendo no coletivo.
Tem uma performance em que as mulheres, vestidas
de noiva (eu fiz esse trabalho em Montevidéu; em Las
Palmas, nas ilhas Canárias, e em Cáceres, na Espa-
nha), caminham para uma praça, sentam-se em círcu-
lo e colocam luvas transparentes nas mãos. Com um
fio preto e uma agulha elas vão bordando; como a luva
é transparente, elas bordam a linha da vida pensando
na vida delas, em tudo o que passou. Quando o bordado

48
está pronto, elas tiram as luvas, como se descascas-
sem a pele antiga e começassem uma vida nova.

Esses trabalhos, por um lado, têm uma forma estetica-


mente muito marcante, porque ficam na cabeça das pes-
soas, e por outro apresentam uma forma catártica de li-
dar com arte. Você concorda?
Sim. Foi interessante, em Cáceres, porque as mulheres
tiraram as luvas e as levaram para o centro. Depois elas
foram doadas para o Museu Vostell, pois assim essas lu-
vas bordadas, que simbolizavam a violência, e que já não
estavam mais com as mulheres, poderiam sair de suas
vidas. O cuidado estético com o trabalho também fez com
que o museu o quisesse. Não que eu me preocupe e de-
cida fazer um trabalho político. Mas ele é, sim, político,
porque envolve um desenvolvimento no social.

49
Pelotão de fuzilamento, 2005.

50
Entrevista com Pazé

O artista contemporâneo Pazé apresentou na exposição


Poéticas da natureza, no Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo (MAC-USP), uma instigante
instalação que ele havia criado para compor sua mostra
individual na galeria Casa Triângulo, que o representa.

A obra se chama Floresta sem fim. Sem conhecermos a


história por trás da obra, essa instalação, que na verdade
é parte de um conjunto maior, tem um apelo irresistível: a
enorme fotografia de fundo estampa a imagem de uma flo-
resta. À frente dela, uma base sustenta vários soldadinhos
de chumbo, com o dedo em riste, como se apontassem ar-
mas, voltadas à paisagem ou aos espectadores.

Conte como esse trabalho lida com a questão da natu-


reza e, ao mesmo tempo, comenta a impunidade polí-
tica no país.
A ideia ocorreu após a morte do prefeito de Santo André,
Celso Daniel, em 2002, que foi um crime político. O que
aconteceu foi o seguinte: eu acompanhei o caso, porque
tinha alguns amigos que trabalhavam com ele. Quando

51
o mataram, fiquei comovido, assim como muita gente.
Rapidamente, foram encontrados os “culpados”: um
grupo de oito ou nove meninos de 17, 18 anos, e o caso
foi considerado solucionado”, embora com denúncias
de que eles não eram os mandantes do crime.
Nesse momento, eu me lembrei de um acontecimento
que vivenciei na minha infância, na época da ditadura
militar: meu pai era muito amigo do Hélio Bicudo. Num
fim de semana, o Hélio ligou para o meu pai e disse
que haviam entrado na casa dele e que tinham roubado
uma série de documentos. Fui então até a casa dele
com meu pai.
Lá havia uma porta pantográfica que dividia os quartos
do restante da casa, pois ele tinha muitos filhos, essa
porta era uma proteção (na época ele fazia as investi-
gações sobre o Esquadrão da Morte). A tal porta havia
sido arrombada. E eu lembro que o Hélio falou para o
meu pai que era interessante só terem sido encontra-
das digitais de crianças, e eles ironizaram aquilo.
Na hora eu não entendi, mas pouco tempo depois
percebi que aquilo não poderia ter sido feito por uma
criança. Uma criança não poderia arrombar uma por-
ta como aquela. Então, passados mais de trinta anos,

52
esse crime do Celso Daniel me remeteu a essa histó-
ria, pois também um crime político foi tratado de ma-
neira infantilizada.
Celso Daniel deu uma entrevista para um jornal, três
dias antes de sua morte, na qual dizia que era inconce-
bívelo Brasil continuar com juros tão altos, resultando
no dinheiro caro, na concentração de riqueza. Era um
homem que estava envolvido, certamente, era alguém
que foi lutar por isso e acabou sendo morto.
Então nesta instalação temos uma fotografia da flo-
resta sem fim. Essa foi a última visão que o Celso Da-
niel teve. Ele foi alvejado pelas costas, por isso na frente
desta fotografia tem os soldadinhos, que remetem a uma
visão infantilizada. Eles pertencem às histórias de contos
de fadas. O revólver é representado pelos próprios de-
dos, eles estão uniformizados. Eles são mecânicos, então
levantam os dedos e “dão um tiro”. Assim, o observador,
o visitante, olha a paisagem, entre a fotografia e os solda-
dinhos, e Leva um tiro pelas costas.

Quando a sua instalação foi montada para articular essa


questão política específica, como foi o retorno do público?
Eu acho que ela cumpriu sua função, porque grupos da

53
Floresta sem fim, 2005.

Secretaria de Cultura de Santo André vieram ver a exposi-


ção, pediram para que eu falasse e depois conseguiram le-
vara instalação para o Paço Municipal da cidade. Eu fiz isso
antes de o processo ser reaberto, antes do que aconteceu
com o escândalo do Mensalão.
Bastante interessante é o fato de o Hélio Bicudo — que era
um personagem da minha história — no início de 2008, ter
saído em uma reportagem de página inteira no jornal, in-
formando que ele é quem está na defesa da família do Cel-
so Daniel, que teve de sair do Brasil e está vivendo como
exilada política, para que um dia possa retornar ao Brasil.

54
Até que ponto você acha que o artista tem esse papel, ou
até que ponto pode gerar com uma obra uma discussão
numa esfera mais ampla?
Eu parto do princípio de que todos nós somos políticos,
seja executando uma ação, brigando, ou discutindo algo.
Se nos calarmos, estaremos de alguma maneira agindo
em concordância. Não há ninguém que não esteja inseri-
do nesse contexto.

55
Entrevista com Eduardo Srur
|
CS CT O
Nascido em São Paulo, em 1974, Eduardo Srur se tornou
referência como um artista que realiza intervenções ur-
banas com a potência de mobilizar o espectador.
Desde 2004, ano de seu Acampamento dos anjos, até
2008, com a instalação Pets, com garrafas PETs gigan-
tes instaladas às margens do rio Tietê, o artista tem
focado sua produção nas questões ambientais, éticas e
arquitetônicas da cidade de São Paulo. Vejamos o que
ele tem a dizer.

Como você começou esse trabalho de intervenções ur-


banas?
Eu trabalhei dez anos com pintura e nos últimos tempos
comecei a desenvolver essa obra que se chama Acam-
pamento dos anjos. Ela consiste no deslocamento da
barraca para a posição vertical e na apropriação da ar-
quitetura de edifícios urbanos. Fiz a ocupação do prédio
de um hospital abandonado há mais de uma década na
avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo.

Caiaques, 2006.
Rio Pinheiros, São Paulo.

57
Quando foi que você fez essa ocupação?
Foi em 2004, e a ideia de usar barracas é de proteção.
Consegui transformar essa ideia de proteção individual
em algo maior, coletivo. Eu tive várias aberturas e uma
ampliação muito forte no sentido de ele se tornar políti-
co. Às pessoas viam menos o lado de proteção e mais o
lado de como eu estava fazendo uma provocação sobre
a questão de fazer um acampamento de anjos em um
hospital público que não estava em atividade. Isso ge-
rou, para mim, uma ideia de como o meu trabalho teria
uma capacidade de ser político e de ter uma força maior
nesse sentido.

Aqui em seu ateliê, estamos bem pertinho da marginal


do rio Pinheiros, onde no ano passado você instalou
caiaques. Como foi esse trabalho?
Estar aqui diariamente acabou gerando a ideia de fazer
esse resgate histórico do que era o rio, do que ele re-
presentava para a cidade e do que ele é hoje. Quando
colocamos caiaques com manequins, há um caráter de
provocação, estamos falando de uma coisa séria, mas há
uma ironia. Eram 100 caiaques, 150 manequins, a insta-
lação começava na ponte das Bandeiras e ia até a ponte

58
Eusébio Matoso. Eu fiz uma composição com as peças, e
a chuva com os dejetos e o Lixo da cidade a foram trans-
formando. Nas últimas semanas formou-se um mapa de
lixo entre as peças, que estavam aglomeradas. A ideia
também era fazer uma obra onde falta o ser humano, fal-
ta a consciência de preservação, de cuidado com o meio
ambiente. Todas as minhas obras cada vez mais pensam
numa mensagem direta para o espectador. Tenho uma
preocupação de desenvolver um produto democrático
com o qual todos são atingidos.
O Acampamento dos anjos teve um desdobramento para
levar essa instalação para fora do país. Montei algumas
barracas na Alemanha e na França também.

Você acha que esse tipo de trabalho devolve de alguma


forma o espaço público para as pessoas ou as estimula
a voltarem a percebê-lo?
Eu acho que sim, e com sorte uma rápida reflexão, mas
a ideia do trabalho é justamente fazer uma reativação de
pontos inertes da cidade. Quando se anda pela marginal
todos os dias, essa dimensão acaba esquecida.
O vídeo Atentado, no qual eu visto um uniforme e explo-
do bombas de tinta em outdoors, representa bem essa

59
questão do que é público e do que é privado. O outdooré
privado, mas está em um espaço público, e eu, como públi-
co, por que não posso interferir nessas publicidades, que
me dão imagens que eu não quero ver?
O trabalho exige do artista velocidade mas às vezes é ne-
cessário pedir autorizações. Nesse caso atuei sem auto-
rização, porque eu modifiquei o conteúdo dos outdoors.
Eu ataquei a imagem deles, afinal, ninguém pergunta se
pode pôr propaganda na sua rua, então da mesma forma
eu os ataquei. Esse vídeo é curioso porque anuncia o que
a Prefeitura passou a fazer com a Lei da Cidade Limpa,
entrando de sola nos anunciantes que fazem mídia exte-
rior; hoje não temos mais mídia na cidade.

Coincidência ou não, ele prenunciou a nova lei na cidade.


Sim. Recentemente eu fiz uma instalação no rio Tietê,
com garrafas PET gigantes. Nesse caso, acabei mexendo
numa questão muito delicada, pois confrontei a indústria,
o governo e a população. O meu esforço ali foi criar um
alerta geral sobre a poluição do meio ambiente, o proble-
ma do lixo. Os aterros já estão saturados!
Em outra instalação, chamada Sobrevivência, eu colo-
coquei coletes salva-vidas em monumentos públicos.

60
Consegui a autorização da Prefeitura e do Departa-
mento do Patrimônio Histórico [DPH) para ocupar os
monumentos da cidade de São Paulo, como o Borba
Gato, o Duque de Caxias, o Monumento as Bandeiras.
Foram dezesseis esculturas. Esse projeto fala do des-
caso à memória e à cidade.

61
Entrevista sobre o grupo Veinzz

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tador vive dentro disso um próprio estranhamento em re-
lação ao que é loucura, ao que é sanidade, ao que é cena,
ao que é vida. Há um embaralhamento de fronteiras.

Como você definiria esse estranhamento na prática do


Ueinzz?
Eu acho que esse trabalho é um minúsculo exemplo de
uma prática “estética”; é a vida que está em cena, uma cer-
ta vida que está em cena, ou uma certa vida na sua fragili-
dade, na sua impotência e na sua extrema potência, na sua
dissociação e no seu poder de reinventar conexões.
Aí tem um modo de revirar uma exclusão em relação à
loucura, em que o louco é quem não fala, é quem, quan-
do fala, não há sentido no que ele diz, é aquele que não
trabalha, que não existe, que não está no circuito, que
não pode, e aí ocorre uma pequena inversão. É de re-
pente um trabalho que tem um poder de afetação muito
grande, que toca algo nos espectadores que eu não sei
dizer o que é; por diversas vezes já sondei, mas não te-
nho muito claro o que é.
Muitos espectadores dizem ter a sensação de serem
eles mortos-vivos e aqueles que estão do lado de lá, os
que estão no palco, serem os vivos-vivos. É o que nos faz
perguntar a nós mesmos: afinal, o que é estar vivo hoje?
Será que estamos vivos?

No texto “Exclusão e biopotência no coração do Im-


pério”, Peter Pál Pelbart comenta seu trabalho com o
grupo Ueinzz e argumenta que, tal qual a necessária to-
lerância em relação a sua diferença, é imprescindível
também garantir o direito à desterritorialização, isto é,
à liberdade dos indivíduos, incluindo a dos loucos, de se
construírem.

a partir das linhas de escape de que necessitam, com


as viagens na maionese” e as traições ao pacto so-
cietal que isso implica. Vejam, tudo isso é muito im-
palpável, muito intangível, e sobretudo inquantificável
- mas a subjetividade, não só dos loucos, é impalpá-
vel, intangível e inquantificável. Pois ela é um cam-
po de experiência, de afeto, de marcas, de sonho, de
abertura, ela é feita de conexões e fugas, de criação
de sentido, de agenciamento coletivo, de produção de
st — tudo isso é a subjetividade. Pareceria que são coi-
sas demasiado etéreas diante da solidez de um Impé-

64
rio. E um imperador deve ter coisas mais importantes
a fazer do que cuidar de coisas etéreas. [...)]
No entanto, resulta que o Império capitalista não é nada
indiferente a essa dimensão subjetiva, eu ousaria afir-
mar até o contrário, que é nisso que ele se assenta pri-
mordialmente. Como poderia ele manter-se caso não
capturasse o desejo de milhões de pessoas? Como con-
seguiria mobilizar tanta gente caso não plugasse o sonho
das multidões à sua megamáquina produtiva e midiática
planetária? Como se expandiíria se não vendesse a todos
a promessa de um modo de vida, suscitando em todos
um desejo? Pois é um fato: hoje o que compramos cada
vez mais são maneiras de ver e de sentir, de pensar e de
perceber, de morar e de vestir, ou seja, consumimos for-
mas de vída. E mesmo quando nos referimos apenas aos
estratos mais carentes da população, ainda assim essa
tendência é crescente. Na verdade, através dos fluxos de
imagem, de informação, de conhecimento e de serviços
que nos chegam ou que acessamos, consumimos tone-
ladas de subjetividade e somos mobilizados nos recôndi-
tos de nossa subjetividade.
(Disponível em: www.cedest.info/peter.pdf.
Acesso em: 3 nov. 2009.)

65
Pélbart discute como os fluxos de imagem, informação,
conhecimento e serviços produzem e transmitem, na so-
ciedade contemporânea, toneladas de subjetividade”. E
argumenta sobre quais seriam as possibilidades de pro-
duzir subjetividades singulares:

A partir daí, seria preciso perguntar-se de que ma-


neira, no interior dessa megamáquina de produção de
subjetividade que é a cidade contemporânea, indiví-
duos e coletivos produzem subjetividades singulares,
percepções outras, sensibilidades inusitadas, moda-
lidades raras de se agregar, de criar sentido, de trocar
experiências, de inventar dispositivos expressivos, de
operar sua memória, de celebrar ou de resistir às in-
junções hegemônicas.
[Disponível em: www.cedest.info/peter.pdf.
Acesso em: 3 nov. 2009.)

Diante dessa indagação, creio que poderíamos considerar


a arte como ferramenta importante na fabricação de uma
multiplicidade de subjetividades, contanto que ela mante-
nha viva sua capacidade de afetar, que ela articule nossos
pensamentos e expanda nossa potência de criar sentidos

66
para o mundo. Que sejam eles sentidos enviesados, tur-
buientos ou meditativos, corpóreos ou etéreos. Que seja a
arte ancorada em políticas cotidianas, tal qual na produção
de artistas como Rosana Paulino, Beth Moysés, Mônica
Nador, Pazé, Eduardo Srur, ou que seja ela apenas plena
da vibração que brota de um sentir estético, sensorial. De
qualquer modo, que através da arte seja mantida nossa
capacidade de estranhamento e de uma afetividade que
não desiste da vida.

67
Sugestões de leitura
Ret
AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano
e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASCH, Scott.


Modernização reflexiva: política, tradição e estética
na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes.
Sao Paulo: Unesp, 1997.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas.


São Paulo: Martins Fontes, 1981.

— . Vigiar e punir. 20. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

— . Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro:


Forense, 2006.

— . Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002

GIDDENS, Anthony. As conseguências da modernidade.


São Paulo: Ed. Unesp, 1991.

68
— . A terceira via: reflexões sobre o impasse político
atual e o futuro da social-democracia.
Trad. Maria Luiza X. de A. Borges.
Rio de Janeiro: Record, 2000.

HALL, Stuart. 4 identidade cultural na pós-modernidade.


Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

PELBART, Peter Pál. Vida capital.


São Paulo: Iluminuras, 2003.

NADOR, Mônica. As paredes pinturas de Mônica Nador”.


In: CANTON, Katia & PESSOA, Fernando (org.)
Sentidos e arte contemporânea. Vitória: Vale, 2007.

69
Obras reproduzidas neste livro
FE
pi
Capa
Beth Moysés, Memória do afeto - Madri, 2002.
Performance.

Página 30
Rosana Paulino, Bastidores, 1997. Imagem transferida sobre
tecido, costura e bastidor de madeira. 30 cm (diâmetro).
Galeria Virgílio.

Página 38
Mônica Nador. Paredes pinturas (da série), 2003. Muro de escola,
Vila das Torres, Curitiba. Foto de Lucília Guimarães.
Cortesia Galeria Vermelho.

Página 44
Beth Moysés, Reconstruindo sonhos, série
Mãos bordadas (Amélia), 2004.
Performance. Foto da artista.

Página 50
Pazé, Pelotão de fuzilamento, 2005.
Poliuretano, alumínio, motor. 40x 110 x 20 cm.
Cortesia Casa Triângulo.

Página 54
Pazé, Floresta sem fim, 2005. Fotografia, paisagem e soldadinhos.

Página 56
Eduardo Srur, Caiaques, 2006. Rio Pinheiros, São Paulo.
Intervenção urbana. Foto: Eduardo Nicolau.
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Coleção Temas da Arte Contemporânea

Do moderno ao contemporâneo
Narrativas enviesadas
Tempo e memória
Corpo, identidade e erotismo
Espaço e lugar
Da política às micropolíticas
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